Versão completa / Full version - Laboratório de Arqueologia

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Versão completa / Full version - Laboratório de Arqueologia
R EVISTA DO MUSEU
DE
A RQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
U NIVERSIDADE DE SÃO PAULO
I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
“Representações da romanização no mundo provincial romano”
Coordenadora
Maria Isabel D’Agostino Fleming
Suplemento n. 18
2014
R EVISTA DO MUSEU
DE
A RQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
U NIVERSIDADE DE SÃO PAULO
I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
“Representações da romanização no mundo provincial romano”
Coordenadora
Maria Isabel D’Agostino Fleming
SÃO PAULO, BRASIL
I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
“Representações da romanização no mundo provincial romano”
27 a 29 de novembro de 2013
Faculdade de Educação – USP
Coordenadora
Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino Fleming
Comissão Organizadora
Alessandro Mortaio Gregori
Alex da Silva Martire
Tatiana Bina
Comissão Científica
Carlos Augusto Machado
Fábio Faversani
Apresentação
O I Simpósio do LARP “Representações da romanização no mundo provincial romano”,
realizado de 27 a 29 de novembro de 2013, no auditório da Faculdade de Educação da USP, foi uma
reunião exclusivamente sobre Roma no Brasil, de forma a abrir espaço para discussões mais aprofundadas relativas às temáticas do imperialismo romano; exército; romanização; alteridade/identidade;
identidade e discurso; religião e política; urbanismo/urbanização; transformação dos espaços públicos; monumentalidade; iconografia; espaço doméstico: tecnologia, produção e consumo; território
e paisagem, entre outros. Consistiu, pois, numa oportunidade única de estabelecer debates entre
especialistas para aprimorar o desenvolvimento desta área no Brasil. Foi o primeiro evento com uma
representatividade expressiva de treze pesquisadores docentes de universidades brasileiras (UFRJ,
UFES, UFPE, UFRN, UFPR, UFOP, UNICAMP e USP), que proferiram palestras de 45 minutos, e
três do exterior (Universidade de Lisboa, Duke University e Universidade do Minho), que proferiram
conferências de uma hora. Entre os demais participantes, em número de 14 e que contribuíram com
comunicações de 20 minutos, estiveram presentes doutores e doutorandos da USP, UFRJ e UERJ.
Os trabalhos apresentados foram de extremo interesse para a comunidade que pôde acompanhar
pesquisas em andamento e/ou com resultados mais consolidados, o que permitiu inclusive propostas
de cooperação em temas transversais que incluíram outros especialistas do público ouvinte, como,
por exemplo, pesquisas desenvolvidas no Norte da África de dominação romana e de contexto púnico.
Agradecemos nesta oportunidade o apoio financeiro da FAPESP, da Pró-Reitoria de Pesquisa e do
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, além do apoio logístico da Faculdade de Educação-USP.
Maria Isabel D’Agostino Fleming
Sumário
PALESTRAS
3
Maria Isabel D’Agostino Fleming
A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica
e a presença romana: perspectivas de análise
11
Gilvan Ventura da Silva
A cidade representada pelo poder imperial:
Juliano e a censura à população de Antioquia
no Misopogon
19
Pedro Paulo A. Funari
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana
29
Renato Pinto
O interesse pela violência da “romanização”.
Um breve estudo arqueológico das primeiras
revoltas na Britannia
37
Marcia Severina Vasques
Espaços territoriais e redes de poder no Egito
Romano: imperialismo, religião e identidade
49
Norma Musco Mendes
A província da Lusitania: sistema econômico
global e local
59
Silvana Trombetta
O ritual da morte entre os celtiberos
69
Regina Maria da Cunha Bustamante
A construção romana das representações sociais
da África através das moedas
79
Vagner Carvalheiro Porto
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano
COMUNICAÇÕES
91
Fábio Augusto Morales
Graecia capta, novamente: considerações sobre
os limites da nova romanização da Grécia
99
Marcio Teixeira Bastos
A indústria da luz na Palestina romana: produção,
consumo e distribuição de lucernas de disco
109
Alessandro Mortaio Gregori
Arqueologia e Imagem: a cristianização das
elites romanas (s. IV e V)
119
Uiran Gebara da Silva
Os camponeses e a terra do norte da Gália do
Império Romano tardio
127
Irmina Doneux Santos
Os fóruns romanos provinciais: representação
de identidade local dentro de um espaço de
poder tipicamente imperial
135
Alex da Silva Martire
ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP
141
Airan dos Santos Borges
“Entre espaços, representações e agentes: a
paisagem imperial em cidades da Lusitânia
romana”: uma proposta de pesquisa
Contents
CONFERENCES
3
Maria Isabel D’Agostino Fleming
The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsula and the Roman presence: perspectives of analysis
11
Gilvan Ventura da Silva
The city represented by the imperial government: Julian and his rebukes against the Antiochene population in the ‘Misopogon’
19
Pedro Paulo A. Funari
The role of archaeology of Baetica in studying
the Roman economy
29
Renato Pinto
The interest in the violence of ‘Romanisation’.
A brief archaeological study of the first uprisings
in Roman Britain
37
Marcia Severina Vasques
Territorial spaces and networks of power in
Roman Egypt: imperialism, religion and identity
49
Norma Musco Mendes
The province of Lusitania: global and local
economic systems
59
Silvana Trombetta
The death ritual among the Celtiberian People
69
Regina Maria da Cunha Bustamante
The Roman construction of social representations of Africa by means of coins
79
Vagner Carvalheiro Porto
The city as ideological discourse: monumentality
in the coins of the Roman Empire
COMUNICATIONS
91
Fábio Augusto Morales
Graecia capta, again: some thoughts on the
limits of the romanization of Greece
99
Marcio Teixeira Bastos
The industry of light in Roman Palestine:
production, consumption and distribution of
discus oil lamps
Alessandro Mortaio Gregori
Arqueologia e Imagem: a cristianização das
elites romanas (s. IV e V)
Uiran Gebara da Silva
The peasants and the land of northern Gaul in
the Late Roman Empire
Irmina Doneux Santos
The Roman provincial fora: local identity representation inside a typically imperial place of power
135
Alex da Silva Martire
ROMA 360 and DOMUS: LARP’s three-dimensional interactive projects
141
Airan dos Santos Borges
“Among spaces, representations and agents:
the imperial landscape in cities of the Roman
Lusitania”: a research proposal
109
119
127
Palestras
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.
A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana:
perspectivas de análise
Maria Isabel D’Agostino Fleming*
FLEMING, M.I.D’A. A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença
romana: perspectivas de análise. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 3-9, 2014.
Resumo: O longo processo de passagem da produção cerâmica pré-romana
para a romana, que durou praticamente dois séculos e meio em alguns centros
castrejos do noroeste da Península Ibérica, espelha a dificuldade de romper
tradições estruturais, fortemente arraigadas no interior de populações dominadas e que estabelecem os limites da romanização no contexto doméstico.
Esta comunicação visa discutir as formas de análise específicas desse tipo de
produção comparativamente às realizadas comumente para as cerâmicas de
grande difusão produzidas em oficinas especializadas, como a cerâmica sigillata,
e que evidenciam a integração das populações locais nas redes comerciais e
culturais do Império romano.
Palavras-chave: Cerâmica castreja – Tecnologia cerâmica – Mão-de-obra
feminina e masculina.
Introdução
A
questão que nos interessa situa-se em
duas frentes, a primeira refere-se à
produção da cerâmica doméstica e sua duração
no contexto castrejo do noroeste da Península
Ibérica, a segunda, atrelada à primeira, investiga
o significado e alcance sociocultural e tecnológico de uma mudança extremamente importante,
ou seja, a passagem da mão-de-obra feminina
à masculina, como ponto de inflexão de uma
tradição milenar e que indica um dos caminhos
de integração das populações locais nas redes
comerciais e culturais do Império romano.
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial.
<[email protected]>
Tendo em vista o maior ou menor contato
entre essas comunidades e os elementos externos,
os dados necessários para estimar o nível de contato e a variação nas técnicas utilizadas na produção cerâmica no contexto castrejo esbarram em
dificuldades, como a diferença entre os sítios e
os diferentes tempos e condições desse processo.
A esses aspectos devem ser acrescentados outros
enfatizados por alguns estudiosos, como Manuela Martins (1990: 29), referentes à valorização
deficiente dos materiais arqueológicos – habitat
indígena e ocupação do espaço rural – correspondentes à época romana. Segundo a autora, “Com
exceção dos achados de natureza numismática,
mais fáceis de datar, e nos quais repousam algumas cronologias da ocupação de povoados e de
necrópoles, ou das cerâmicas importadas (campanienses, ânforas, sigillatas), os outros achados
têm sido pouco estudados. Estão nesse caso
as cerâmicas comuns, que constituem afinal o
3
A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.
material mais abundante, quer nos castros, quer
nos sítios arqueológicos. O desconhecimento da
cronologia destas produções cria com frequência
graves distorções interpretativas, favorecendo
uma deficiente valorização dos achados e das estações e consequentemente uma errada perspectiva
do povoamento da região. A datação tardia da
maior parte das necrópoles romanas do Norte
de Portugal, escavadas em condições deficientes,
forneceu uma imagem deformada da romanização. Com efeito, a abundância de necrópoles
datadas dos sécs. III e IV levou à asserção de que
a ocupação rural romana só teria sido um facto
pleno já no Baixo Império, pelo que se valorizou
excessivamente o habitat castrejo nos primeiros
séculos de nossa era. Os estudos mais recentes,
sobretudo incidentes nas cerâmicas comuns de
Bracara Augusta, permitem hoje aceitar que muitos dos materiais daquelas necrópoles poderão
ser datados do Alto Império, ainda que possam
ter tido perdurações em época tardia”. (Fig. 1 )
Essas são informações valiosas para estimar
o período de convivência entre a produção cerâmica doméstica castreja e a da grande produção
especializada testemunhada pelas vasilhas en-
contradas nos contextos de escavação. Ao longo
dessa convivência, que pode ser estimada por
volta dos finais do séc. I a.C. em diante, podem-se prever mudanças gradativas nas formas de
produção da cerâmica doméstica com mão-de-obra feminina na perspectiva de atingir a plena
inserção da mão-de-obra masculina no processo
produtivo especializado de modelo romano.
O contexto castrejo: cerâmica e metalurgia
A cerâmica e a metalurgia, de tradições
milenares, se opõem e ao mesmo tempo se
complementam, assim como o mundo feminino
e o masculino no contexto da Idade do Ferro
castreja. Segundo Marín Suarez (2007: 157), “Se
atendermos à complementaridade das tecnologias de cada sociedade, um de nossos objetivos
deve ser conhecer o modo em que as sociedades
castrejas estruturaram simbólica e espacialmente
um artesanato metalúrgico em mãos masculinas, que reforça a ideologia guerreira, com um
artesanato cerâmico em mãos femininas”. Nesse
sentido, é nosso objetivo investigar a mudança
Fig. 1. Cerâmica préromana ( sécs. II-I a.C.).
Bracara Augusta. Museu
Arqueológico D. Diogo
de Sousa, Braga. Foto
da autora.
4
Maria Isabel D’Agostino Fleming
neste binômio através da análise da cerâmica, na
medida em que esta passou a ser um produto do
trabalho masculino.
Ainda segundo Martins (1990: 29-30), foi
grande a influência romana na cultura castreja
nos primeiros séculos da nossa era, além de
uma intensa ocupação rural, juntamente com
a sobrevivência dos povoados fortificados, de
acordo com os resultados das prospecções e
interpretação dos dados epigráficos. Especialmente os dados epigráficos têm uma relação
estreita com a manufatura de vasilhas cerâmicas
diferenciadas de confecção masculina, conforme
será visto adiante.
O método de análise
Se desejarmos alcançar o processo de
mudança por que passou a produção cerâmica
castreja no período de dominação romana é preciso que seja através de um distanciamento dos
métodos de análise tradicionais, aplicados a cerâmicas finas, com datações precisas e de grande
difusão.(1) Esses métodos normalmente visam
o estudo das formas em detrimento do uso ou
função. É grande o peso dos estudos iconográficos e o vaso, frequentemente decorado, é visto
como um objeto cultural em sentido completamente diferente do das vasilhas comuns que são
nosso foco de estudo. Tais estudos de cerâmica
de grande produção voltam seu interesse para a
distribuição e adoção de certas formas cerâmicas
e decorações para identificar elementos de ordem cultural, socioeconômica, ou ainda tecnológica, apenas para citar os domínios principais
a que se associa este material. Por outro lado,
para a cerâmica que nos interessa, é necessário
(1) Sobre o método utilizado nesta comunicação veja-se especialmente o resumo da mesa redonda Fabrication et fonctions:
les “cultures en contact” et la céramique commune, organizada por
Julien Zurbach (Ecole française d’Athènes) e Arianna Esposito
(Université de Lille), apresentada no XVII Congresso da AIAC,
Roma, 2008, programa: pp. 20-21. A publicação relativa a esta
pesquisa encontra-se no prelo: Esposito, A; Zurbach, J. (Éds.)
Fabrication et fonctions : les “cultures en contact” et la céramique
commune dans la Méditerranée grecque et romaine. Paris: Presses
de la MAE, Maison René Ginouvès.
o conhecimento das funções e usos das vasilhas,
das cadeias operatórias de sua fabricação para
se chegar a informações mais precisas sobre
o contato entre culturas. Nesse sentido, são
detectáveis as alterações nas fases que compõem
a confecção das vasilhas, eventualmente decorrentes de interferências externas. O método de
análise mais adequado para essa categoria cerâmica de cozinha e de armazenamento se apoia
nos instrumentos da antropologia das técnicas,
como os conceitos de sistema técnico ou de
cadeia operatória (CO) (Leroi-Gourhan 1943,
1945; Lemonnier 1986). Nesse caso, a cerâmica
comum proporciona o acesso a dois campos
diferentes, o do uso das cerâmicas na economia
doméstica e o da fabricação dos recipientes. A
cerâmica é vista como um conjunto que encerra
a relação entre os modos de produção e modos
de consumo, ou seja, a fabricação dos vasos
propriamente dita e a preparação e conservação
dos alimentos, que são o índice de duas cadeias
operatórias.
Quanto ao uso, a abordagem funcional tem
a preocupação maior com os sistemas técnicos,
apesar de dificuldades que se apresentam: no
estudo do mobiliário observa-se a presença de
várias técnicas e existência simultânea de vários
ceramistas, sem que seja possível evidenciar o
sistema de produção desses objetos, pois excepcionalmente são conhecidas as estruturas das
oficinas cerâmicas.
Mudança na produção cerâmica castreja
Podemos avaliar bastante insuficiente o
nível de informações sobre o contexto de produção da cerâmica castreja: resultados geralmente parciais sobre as oficinas, assim como as
atividades dos artesãos ceramistas, com raras
evidências das estruturas de produção, além
de esporádicas informações fornecidas pelas
fontes literárias sobre a organização social das
oficinas. A passagem da mão-de-obra feminina
para a masculina na produção da cerâmica
castreja em período de dominação romana será
analisada através de dois trabalhos sobre acervos
cerâmicos provenientes de castros do noroeste
da Península Ibérica, cujos dados produzidos
5
A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.
contribuíram para o encaminhamento de nossa
hipótese sobre a forma de como se deu esse
processo: “Los materiales del castro de San L.
Luis (Allande, Asturias)”, publicado por Carlos
Marín Suarez (2007) e A Cerâmica Castreja da
Citânia de Briteiros, publicado por Maria Antónia Dias da Silva (1997).
Martins Suarez (2007) apresenta o material
cerâmico, em sua maior parte inédito, resultante das escavações dos anos 1960. Propõe uma
reflexão teórica sobre o estudo da tecnologia
cerâmica, com a aplicação de conceitos antropológicos, tais como as cadeias operatórias (CO) e
a superação definitiva das análises tipologistas,
o que permite propor hipóteses de processos
sociais, que são apresentados em chave de gênero. Enfatiza que o estudo das técnicas permite
aproximações sociológicas porque as técnicas
são, sobretudo, produções sociais, sendo a
cultura, e não a natureza, a principal limitação
da técnica (Martins Suarez 2007: 139). Dias da
Silva (1997), por sua vez, realizou um levantamento exaustivo da cerâmica de produção local,
escavada em cerca de quarenta campanhas desde o século XIX (1875-1884) à década de 1960
e depositada no Museu da Sociedade Martins
Sarmento. São analisadas as transformações
que marcam o período cronológico-cultural, do
final do I milênio a.C. e século I d.C., sendo a
cerâmica que serve de base ao estudo integrada
cronologicamente a esta fase.
No contexto castrejo de ambos os estudos
são detectadas variações na cadeia operatória,
com diferentes fases, sendo apontadas modificações nas estruturas habitacionais no castro San
Luis (Astúrias). Neste sítio, no último estágio da
CO pré-romana verifica-se a presença de peças
da CO de tradição local do período romano
(“comum romana”), de peças de Terra Sigillata
e de vasilhas de paredes finas. Nos estratos mais
recentes é recorrente a associação das diversas
CO: a) CO pré-romana, que perdurou até a
passagem do séc. I ao II d.C., b) sua substituição completa pela cerâmica de tradição local
de período romano e pelas “vasilhas de luxo”,
sem possibilidade de diferenciação entre a
fase pré-romana e a romana. Não se sabe até
que ponto continuaram a ser feitos vasos com
orelhas (forma muito típica pré- romana), os
6
quais foram substituídos pelos vasos de borda
perfurada (Fig. 2). Outras formas continuaram
(bordas facetadas, curvas e retas). Novas formas
aparecem (travessas), e talvez reflitam mudanças gastronômicas, pois podem ser usadas para
panificação, substituindo presumivelmente os
mingaus de cereais (Martins Suarez 2007: 15556). Esse exemplo de introdução e evolução
de certas formas em repertórios cerâmicos de
produção local dá a dimensão das dinâmicas,
continuidades e transformações culturais dessas
populações, e responde a necessidades relativas às práticas da mesa, como também aponta
Michel Bats (1985; 1988).
Fig. 2. Vaso de borda perfurada. Forma que substituiu
os vasos com orelhas, forma típica pré-romana. Museu
Arqueológico da Citânia de Sanfins. Foto da autora.
Segundo Marín Suarez (2007: 158), o uso
das Cadeias Operatórias nos revela a improdutividade de categorias clássicas nos estudos
cerâmicos – como a oposição mão/torno,
análises tipológicas baseadas nas formas finais –
e possibilita reconhecer tradições tecnológicas
historicamente situadas. O estudo das vasilhas
do Castro San Luis indicou que a mudança
fundamental na Cadeia Operatória pré-romana
não se produziu tanto nas formas e decorações,
mas na rotação empregada e na sequência de
montagem, sendo esta a chave que no nível
social pode ter levado ao fim do controle tecnológico feminino de uma tradição milenar e
o fim das produções locais ou autossuficiência
tecnológica.
Maria Isabel D’Agostino Fleming
Se por um lado a pesquisa da cerâmica do
castro San Luis possibilitou identificar as transformações no controle tecnológico feminino
na produção doméstica, o estudo do vasilhame
cerâmico da Citânia de Briteiros apresentou
um elemento interessante para investigar a
inovação neste binômio masculino / feminino,
condizente com a introdução da especialização
masculina na produção cerâmica. No acervo
cerâmico de Briteiros, assim como no do castro
San Luis, a presença da Terra Sigillata do século II d.C. revela a integração desses sítios no
circuito comercial. Em Briteiros essa integração
é acompanhada pela presença de vasilhas de
produção local, do século I d.C., com marcas
de fabricação e inscrições votivas (Figs. 3 e 4).
São vasos votivos, isto é, com uma função específica. Apesar de seu de grande porte, são feitos
com pasta mais depurada, contrariamente à
usada para grandes vasilhas de armazenamento. Seu acabamento é esmerado e a decoração
diferenciada. Essas características indicam uma
produção que extrapola o nível local e se destina à circulação entre os demais castros da região, confirmada pela identificação do artesão,
que atingiu muito provavelmente uma posição
de prestígio social. Forma-se um contexto que
contrasta nitidamente com o da produção da
cerâmica comum, doméstica, com poucas variações e restrita ao uso interno (Quadro 1). Este
é o início da passagem da produção feminina
para a masculina e que posteriormente seguirá
o modelo da produção cerâmica em oficinas
fora do âmbito doméstico, com artesãos especializados, voltadas para a exportação, típicas
do mundo romano.
Fig. 3. Vaso com inscrição votiva. Museu da
Citânia de Briteiros. Foto da autora.
Fig. 4. Reprodução do mesmo vaso.
Silva (1997: Est. LXI, 4).
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A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.
Quadro 1. Contexto de circulação, para além do castro de origem, de vasos castrejos com inscrições
votivas e nome do artesão.
FLEMING, M.I.D’A. The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsula and the
Roman presence: perspectives of analysis. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18:
3-9, 2014.
Abstract: The long process of transition from pre-Roman pottery production to the Roman one, during practically two and a half centuries in some castro centers in the Northwest of the Iberian Peninsula, mirrors the difficulty in
breaking structural traditions, strongly rooted in the interior of the dominated
populations which establish the limits of romanization in the domestic context. This communication aims at discussing the specific forms of analysis of
this type of production as compared to those commonly done for potteries of
large diffusion produced in specialized workshops, as the sigillata pottery, and
that evince the integration of local populations in the commercial and cultural
networks of the Roman Empire.
Keywords: Castro pottery – Pottery technology – Feminine and masculine
labor.
8
Maria Isabel D’Agostino Fleming
Referências bibliográficas
BATS, M.
1985 La vaisselle céramique d’Olbia de Provence
(Hyères, Var), milieu du IVe-milieu du Ier s. av.
J.-C., Recherches sur l’alimentation et les manières
de table. Thèse de IIIème Cycle, Aix-en-Provence, 1985, 2 vol., 360 p.+ 186 pl.
1988 Vaisselle et alimentation à Olbia de Provence
(v.350-v.50 av.J.-C.).Modèles culturels et
catégories céramiques. Paris (18e Suppl. à la
RevArchNarb).
LEMONNIER, P.
1986
The Study of Material Culture
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Archaeology, 5: 147-186.
LEROI-GOURHAN, A.
1943 L’Homme et la Matière. Sciences
d’aujourd’hui. Paris: Albin Michel.
1945 Milieu et Techniques. Sciences
d’aujourd’hui.Paris: Albin Michel.
MARTINS, M.
1990 O Povoamento Proto-Histórico e a Romanização da Bacia do Curso Médio
do Cávado. Cadernos de Arqueologia,
Monografias. Unidade de Arqueologia da
Universidade do Minho.
MARÍN SUAREZ, C.
2007 Los materiales del castro de San L. Luis
(Allande, Asturias). Complutum 18:
131-160.
SILVA, M.A.D.da
1997 A Cerâmica Castreja da Citânia de Briteiros. Gimarães: Sociedade Martins
Sarmento.
9
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.
A cidade representada pelo poder imperial:
Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon
Gilvan Ventura da Silva*
SILVA, G.V. A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 11-18, 2014.
Resumo: Antioquia, a metrópole da província da Síria, era, na Antiguidade
Tardia, uma cidade célebre pela exuberância dos seus festivais lúdicos e religiosos e pela intensa mobilização dos seus habitantes, que dia e noite frequentavam a avenida das colunatas ladeada por pórticos e monumentos, numa
interação que por vezes resultava em manifestações verbais de descontentamento contra as autoridades romanas ou mesmo em rebelião aberta. Neste artigo,
temos por finalidade refletir sobre o estranhamento de Juliano com a população de Antioquia quando o imperador aí se instalou, entre 362 e 363, a fim de
preparar a expedição contra os Sassânidas. Para tanto, exploramos como fonte
principal o Misopogon, sátira na qual Juliano dirige severas críticas ao estilo de
vida dos antioquenos, que considera licenciosos e indolentes, permitindo-nos
assim captar sua representação acerca da cidade.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia – Representação – Antioquia – Juliano
– Misopogon.
A
transição da cidade clássica para a cidade pós-clássica, e isso tanto no Oriente
quanto no Ocidente, foi marcada por um
complexo jogo de rupturas e de permanências,
de estímulo à inovação e de apego à tradição
que pode ser acompanhado mediante a investigação dos repertórios artísticos e dos arranjos
arquitetônicos, pois muito da arte e arquitetura
cristãs é tributário dos modelos clássicos, fato
sobejamente conhecido, mas que nunca é excessivo recordar. Do ponto de vista simbólico, no
(*) Departamento de História, Programa de Pós-graduação em
História e Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
<[email protected]>
entanto, vemos se esboçar, no século IV, uma
imagem da cidade que contrasta agudamente
com tudo aquilo que até então se pensava a
respeito do assunto. No torvelinho das transformações operadas a partir da segunda metade do
século III e que culminaram com a redefinição
de muitos elementos da sociedade romana,
emerge uma representação da vida urbana, das
suas atividades e entretenimentos, calcada, por
um lado, num profundo pessimismo e, por
outro, no pressuposto segundo o qual a cidade
não é mais um ambiente consagrado aos deuses,
um território colocado sob a proteção divina
e, portanto, imune aos perigos e calamidades,
tanto as do corpo quanto as da alma. Se, no
decorrer de todo o Mundo Antigo, a cidade
nunca foi tida a priori como uma ameaça aos
11
A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.
seus habitantes, como um ambiente inóspito,
degradado, privado de carisma e que merecesse
ser regenerado, reformado ou mesmo purificado, no século IV parece pouco a pouco tomar
forma uma representação que, ao converter a
cidade numa realidade potencialmente nociva,
uma heterotopia, como certa vez sugeriu Lefebvre
(2004: 45), engendra um conjunto de discursos
e de práticas que visam à sua reabilitação, segundo uma lógica na qual prevalece a obsessão pela
pureza, de modo a se obter, ao término da operação, uma cidade coesa, una, solidária e isenta
de qualquer agente que a coloque em risco.
Quando refletimos sobre as múltiplas
imagens da cidade na Antiguidade Tardia, de
imediato se impõe o estranhamento entre os
cristãos e o modus vivendi urbano que desemboca, ao fim e ao cabo, numa proposta de reforma
social bastante ambiciosa, como é possível constatar por intermédio da consulta aos autores da
Patrística. Mas, e quanto aos pagãos? Teriam
eles, no século IV, alguma alternativa a propor
ao discurso cristão no que se refere à imagem de
cidade que gostariam de ver concretizada? No
caso de Antioquia, cujo processo de cristianização vimos investigando há alguns anos, um
exame da literatura pagã disponível nos permite
captar alguns pontos de interseção absolutamente insuspeitos entre a representação pagã e
a cristã acerca da cidade antiga. Nesse aspecto,
uma obra emblemática e até certo ponto desconcertante é o Misopogon, de Juliano, sátira na
qual o imperador, sob o pretexto de se defender
da intensa zombaria da qual foi vítima durante
a estada em Antioquia, esboça os contornos da
sua concepção de cidade, concepção esta que,
acreditamos, não deva ser tomada como mero
produto de um desacordo trivial entre os súditos e Juliano, mas como parte do programa de
governo que este almeja implementar após a sua
proclamação como Augusto, em 361.
Juliano permaneceu em Antioquia cerca de
oito meses, entre julho de 362 e março de 363,
após uma breve passagem por Constantinopla,
onde celebrou as exéquias de Constâncio II,
morto em novembro de 361. Sua entrada solene na cidade ocorreu em 18 de julho de 362, no
segundo dia do festival de Adonis, quando se
pranteava a morte da divindade, o que mais tar-
12
de foi reportado por Amiano Marcelino (22.9)
como um mau presságio. Antioquia, àquela
altura, encontrava-se imersa em uma grave crise
de abastecimento, resultado de uma longa estiagem durante os anos de 361 e 362 que havia
arruinado a colheita do trigo (Liebeschuetz
1972: 126 e ss.). A despeito da conjuntura
desfavorável, o imperador foi bem recebido pela
população reunida no hipódromo para saudá-lo.
Em pouco tempo, no entanto, sua relação com
os antioquenos tornou-se conflituosa, e isso
por diversos motivos. Em primeiro lugar, os
esforços de Juliano para contornar a crise foram
vãos, pois o trigo importado, vendido a preço
fixo, era adquirido pelos atravessadores e pelos
grandes proprietários tendo em vista a especulação. Os comerciantes urbanos, culpando os
grandes proprietários pela carestia, decidiram
cruzar os braços, em protesto. O tabelamento
do preço do pão, expediente destinado a conferir algum alívio à população urbana, não surtiu
o efeito desejado, pois os camponeses afluíram
em massa à cidade para se beneficiar do subsídio. Já o aquartelamento de um extenso contingente de soldados em Antioquia aumentava
a demanda por víveres. Por fim, a campanha
da Pérsia era tida como um erro de estratégia
e carecia, portanto, de apoio popular (Downey
1961: 390 e ss.). À parte todas essas variáveis de
ordem econômica e militar, bastante influentes
por sinal, é necessário atentar para o fato de
que o “ruído” entre Juliano e os antioquenos
foi agravado também pela política religiosa do
imperador, que desencadeou uma série de atritos, não apenas com os adeptos do cristianismo,
como seria de se esperar, mas igualmente com
os pagãos.
Nos meses em que residiu em Antioquia,
Juliano dedicou-se a uma autêntica peregrinação
pelos templos e santuários em sinal de reverência às divindades cívicas, dentre as quais Zeus,
Deméter, Hermes, Pan, Ares, Calíope, Apolo,
Ísis e a Tyche. Uma peculiaridade da devoção
de Juliano era o seu apego aos sacrifícios sangrentos, com o abate de um grande número de
vítimas prontamente consumidas pelos soldados
de sua comitiva, atitude um tanto ou quanto
acintosa diante de uma crise de abastecimento
então em curso. O palácio imperial da ilha do
Gilvan Ventura da Silva
Orontes, por sua vez, foi convertido num templo, erigindo-se altares nos jardins, sob as árvores, onde o imperador poderia acompanhar os
sacrifícios com maior comodidade (Soler 2006:
44). Crítico contumaz dos jogos, dos mimos e
pantomimas, Juliano se afasta deliberadamente
do teatro e do anfiteatro, proibindo inclusive
que os sacerdotes pagãos compareçam aos espetáculos ou recebam a visita de atores, dançarinos
e aurigas (Ep. 89b, 304). Agindo com singular
audácia, decide suprimir a Maiuma, um antigo
festival orgiástico celebrado a cada três anos em
honra a Dioniso e Afrodite (Soler 2006: 39).
Inclinado a uma postura rigorista e altaneira,
Juliano se apresenta, na cidade, como um filósofo, evitando o contato com a população nos
espaços de lazer, censurando suas modalidades
de entretenimento e acusando-a de indiferença
para com os deuses. Irritados, os antioquenos
não tardam a lançar mão da irreverência e do
deboche contra o imperador. De acordo com
Gleason (1986: 108), no início de janeiro de
363, quando da comemoração das Calendas,
que anunciavam o Ano Novo, o desconforto da
população com o imperador teria se tornado
insustentável, pois a festa, ao assumir um tom
claramente jocoso, forneceu aos antioquenos o
pretexto para exercitar amplamente a sua verve
satírica, sendo Juliano comparado a um macaco,
a um anão, a um bode barbado e mesmo a um
victimarius, um açougueiro, devido à pletora de
sacrifícios que promoveu (Am. Marc. 22,14).
Não obstante a indignação pelo ultraje sofrido,
Juliano evitou o uso da força contra a cidade,
preferindo responder aos insultos mediante a
redação de uma obra sui generis, o Misopogon, na
qual recorria à ironia para justificar suas ações
como imperador, ao mesmo tempo em que censurava asperamente os habitantes de Antioquia
pela sua leviandade e indisciplina.
O Misopogon, em tradução literal, o “inimigo da barba”, foi composto entre a segunda
quinzena de janeiro e o mês de fevereiro de 363,
num momento em que Juliano se preparava
para partir rumo à Babilônia, onde daria combate aos persas. O título é uma alusão direta
à sua barba de filósofo que tanto desconforto
causava aos antioquenos. Os manuscritos
registram, no entanto, um outro título pelo qual
a obra também era conhecida: Antiochikos, o que
reforça o teor satírico do texto, pois Antiochikos
evocaria um panegírico em louvor à cidade,
como aquele pronunciado por Libânio por
ocasião dos Jogos Olímpicos de 356. Invertendo os cânones literários dos panegíricos cívicos,
nos quais era de praxe se exaltar a nobreza do
fundador da cidade, a reverência dos habitantes
para com os deuses, a temperança dos cidadãos
na vida pública e a correta educação dispensada
à juventude, Juliano faz do Misopogon um antipanegírico (Marcone 1984: 233-4), um discurso
decerto dirigido à cidade, mas não para a enaltecer e sim para denunciar as suas imperfeições,
permitindo-nos captar, nas entrelinhas, a representação da cidade ideal que pretendia erigir.
Sendo o Misopogon uma obra que se aproxima
muito mais do psogos, da inventiva, do que dos
textos legislativos, é muito difícil enquadrá-la
nos assim denominados “editos de castigo” que
desde o Principado os imperadores de quando
em quando promulgaram contra uma cidade
ou outra devido ao mau comportamento da
população, o que nos obriga a refutar a hipótese
de Gleason (1986: 116) sobre os antecedentes
jurídicos do texto. Como argumentam Van
Hoof e Van Nuffelen (2011), em contraposição
a Gleason, o Misopogon se distingue dos “editos
de castigo” por duas características que lhe
conferem uma inequívoca singularidade. A primeira delas diz respeito à forma, uma inventiva
extensa e erudita de um imperador contra o “desatino” dos súditos. A segunda, ao conteúdo,
pois, no Misopogon, Juliano se propõe a aclarar a
sua própria interpretação acerca do conflito que
o opôs aos antioquenos e que foi suscitado, ao
que tudo indica, por uma grave falha de comunicação entre o poder imperial e a população.
Um exemplar do Misopogon foi afixado no
Tetrapilo dos Elefantes, arco triunfal que suportava uma quadriga puxada por tais mamíferos.
Segundo o relato de Malalas, o monumento
situava-se na Regia, a avenida que conduzia à entrada do complexo palacial do Orontes (Chronicon, 13, 19). De fácil acesso, o Tetrapilo adequava-se bastante bem à publicidade que Juliano
desejava conferir à obra (Downey 1961: 393-4).
Cópias do Misopogon foram certamente enviadas
às principais cidades do Império, de maneira
13
A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.
que o texto era de amplo conhecimento, tendo
sido citado por Amiano Marcelino, Gregório de
Nazianzo, Eunápio, Sócrates e Sozomeno, além
de Libânio. Sobre a sua repercussão, logo após
Juliano deixar a cidade, Libânio escreveu duas
orações, uma destinada ao imperador (Or. XV) e
outra aos seus concidadãos (Or. XVI), nas quais
os exortava à reconciliação. Receosos da decisão de Juliano de não mais retornar a Antioquia
após a campanha da Pérsia, a cúria se apressa
em enviar uma embaixada a Litarba a fim de
demover o imperador, que já teria eleito Tarso
como sua nova residência (Van Hoof & Van
Nuffelen 2011). Os antioquenos, ou ao menos
a elite local, pareciam assim tomar consciência
do quanto haviam desagradado o imperador,
que os deixou à mercê de Alexandre de Heliópolis, o recém-nomeado consularis da Síria, personagem reputado como irascível e implacável na
cobrança dos impostos (Petit 1955: 117).
Sócrates, um cronista cristão do século V,
menciona, na sua História Eclesiástica (III, XVII),
que por meio do Misopogon Juliano teria lançado
um “estigma indelével” sobre Antioquia e seus
habitantes, sugerindo assim que o texto teria
gerado ou ao menos reforçado uma imagem depreciativa da cidade. Mas qual seria o teor dessa
imagem contida no Misopogon? Numa apreciação geral, é possível perceber que a principal
censura de Juliano refere-se ao apego excessivo
dos antioquenos a tudo aquilo que diz respeito
às modalidades de entretenimento público, um
dos pressupostos da vida urbana sob o Império
Romano. Em sua opinião, Antioquia constituía
um exemplo extremo de polis tryphosa (Mis. 6),
ou seja, de uma polis refém da tryphè, vocábulo
que pode ser traduzido como “moleza”, “delicadeza”, “voluptuosidade”, “indolência” ou
mesmo “humor desdenhoso e altivo”, traços da
personalidade de indivíduos inclinados à calúnia, à insolência e à devassidão, tais como os
histriões, os bêbados e os glutões (Saliou 2011:
153). Muito embora, em algumas circunstâncias, a tryphè pudesse adquirir uma conotação
positiva, exprimindo a alegria de se viver numa
cidade plena de conforto e de bem-estar, como
celebra Libânio em seu panegírico de 356 (Silva
2011), a tryphè, de modo geral, era empregada
como um rótulo contra aqueles que se deixavam
14
seduzir pelos prazeres da cidade e que, portanto,
careciam de autocontrole, de sobriedade e de
decência. Acerca disso, uma das críticas mais
ácidas de Juliano versa sobre a predileção dos
antioquenos pelas performances cênicas e pelas
competições do hipódromo. Fazendo o elogio
da própria austeridade, o imperador se gaba de
sempre ter evitado o teatro (Mis. 4) e de detestar
os ludi circenses (Mis. 5), lições que teria aprendido com o seu preceptor, Mardônio, responsável
por instruí-lo no gosto pelos clássicos, afastando-o assim das pantomimas (Mis. 21), ou seja, dos
solos de dança dramática bastante apreciados
à época pelos habitantes de Antioquia, que
se repartiam em claques ruidosas para torcer
pelos bailarinos. Tomando o teatro como
expoente da tryphè, Juliano compara a conduta
dos antioquenos à dos celtas e germanos, com
os quais havia convivido durante a campanha
das Gálias. Afeitos à frugalidade e à simplicidade (rusticitas), assim como o imperador, esses
povos não poderiam, naturalmente, apreciar os
ludi theatralis, que reputavam como grotescos e
indecentes, principalmente devido à encenação
do cordax (Mis. 30-31), um estilo de dança lasciva
em louvor a Ártemis que teria sido incorporado
pelos bailarinos às apresentações de pantomima
(Jiménez Sánchez 2003: 117).
A principal razão pela qual Juliano combatia com tanta veemência o teatro, tendo inclusive se recusado a comparecer, em Antioquia,
às encenações, como ele mesmo declara (Mis.
38), era de fundo religioso. Juliano desprezava
o teatro não apenas pelo fato de este corromper
a personalidade dos indivíduos, incentivando-os
à prática de atos indecorosos, mas de atentar
contra a dignidade dos deuses, pois nele os
atores zombavam publicamente de Héracles e de
Dioniso. Na avaliação do imperador, o teatro
de seu tempo havia sido esvaziado por completo
do ethos sagrado que outrora possuía, desconectando-se do culto aos deuses e adquirindo um
matiz sacrílego, ímpio. Numa carta ao sacerdote
Teodoro, escrita em janeiro de 363, quando
ainda se encontrava em Antioquia, Juliano confessa que, se fosse possível banir dos teatros a
indecência de modo a restituí-los, purificados, à
tutela de Dioniso, não hesitaria em o fazer, mas,
diante das circunstâncias, recomendava expres-
Gilvan Ventura da Silva
samente aos sacerdotes pagãos que evitassem os
espetáculos teatrais (Ep. 89b, 304). Considerando o teatro uma atividade ofensiva aos deuses,
Juliano o transformava em algo que, ao menos
em meios pagãos, ele nunca havia sido, ou seja,
um vetor de poluição capaz de romper os liames
entre os deuses e a polis. Aqui não se trata mais
de apenas qualificar os atores e atrizes como
infames, tendência já bem consolidada entre os
juristas romanos do período imperial (Perea
Yébenes 2004: 33-34), mas de condenar os ludi
theatralis e o recinto que os abrigava como uma
ameaça à sacralidade do solo urbano.
No intento de demonstrar como Antioquia
era a antítese das hierai poleis, ou seja, das cidades sagradas que veneravam as divindades, a
exemplo de Emesa (Mis. 28; 33), Juliano acusa
os antioquenos de negligenciar o cuidado com
os cultos e os templos. Ao longo de toda a obra,
vemos assim delinear-se uma tensão permanente
entre as aspirações ascéticas de Juliano, imbuído
da missão de edificar espiritualmente a polis,
e a predileção dos antioquenos pela pândega,
pelos mimos e espetáculos, sinais explícitos
de degradação (Mis. 8; 14; 27). Nessa tarefa
de reintroduzir a cidade na esfera do sagrado,
Juliano se apresenta como um devoto obstinado
dos deuses, alguém que não perde a oportunidade de frequentar os templos, mesmo quando
a população se encontra em festa. O fervor da
sua devoção ultrapassava a do simples crente,
aproximando-o do estatuto de hierofante, mais
um motivo de zombaria por parte dos antioquenos, que o censuravam pela excessiva satisfação
com que portava os objetos do culto, em vez de
delegar a tarefa a um sacerdote de status inferior, como registra Amiano Marcelino (22, 14).
Ambicionando incutir nos antioquenos uma
rigorosa disciplina espiritual, exercitá-los numa
ascese coletiva, poderíamos mesmo acrescentar,
Juliano se recusava a patrocinar os jogos e os
festivais, impedindo assim o congraçamento de
todos os setores que compunham a polis. Dentre os excluídos da cidade de Juliano contavam-se os cristãos, e isso por um motivo bastante
peculiar. Sendo a priori um espaço de convívio
entre homens e deuses, Antioquia não poderia
comportar um culto como o dos adeptos de
Cristo, responsáveis por profanar, com seus
ritos em honra aos mortos, o solo consagrado
da cidade. Talvez por influência de Máximo de
Éfeso, um dos seus principais conselheiros, Juliano se posiciona abertamente contra o hábito,
que começa a se tornar corrente em seu tempo,
de se realizar cortejos fúnebres durante o dia, o
que não apenas expõe os espectadores ao risco
de contaminação pelos cadáveres, mas também
profana os templos, neutralizando a eficácia dos
rituais (Ep. 136b).
Contrapondo-se à cosmovisão cristã segundo a qual não haveria nenhuma incompatibilidade entre os cadáveres e a vida urbana, a ponto
de santos e mártires terem sido entronizados
como protetores espirituais da polis, o que lhes
permitia habitar o território intra muros, Juliano
busca reforçar os antigos códigos do paganismo,
que proibiam o livre trânsito dos defuntos. Tal
constatação poderia nos induzir a supor, como
querem alguns, que Juliano desejasse em certa
medida “reviver”, “restaurar” ou “reabilitar” um
paganismo moribundo diante de um cristianismo já consolidado. Todavia, uma leitura mais
atenta da imagem de Antioquia que ressalta do
Misopogon e de outros textos contemporâneos
nos desautoriza a concluir que Juliano tenha
sido tão somente um restaurador dos cultos
ancestrais. Na avaliação de Soler (2006: 43) e
Limberis (2000: 378), Juliano teria sido antes
um inovador em assuntos religiosos, uma vez
que, por intermédio da sua atuação político-filosófica, pretendeu oferecer uma nova face ao
paganismo. Para tanto, não hesitou sequer em
recorrer a elementos extraídos do cristianismo,
o que explica, em diversos momentos, a proximidade entre as concepções do imperador e as
dos cristãos. Nesse sentido, como argumenta
com propriedade Bowersock (1996), ao lidarmos
com o paganismo tardio não nos encontramos,
a princípio, diante de um sistema religioso
ineficaz, obsoleto e destinado a desaparecer por
conta do avanço do cristianismo, nem muito
menos diante de um sistema religioso refratário
à inovação, à renovação e às adaptações requeridas pelo seu tempo. Antes, devemos estar
atentos para captar a própria historicidade das
crenças e práticas que costumamos reunir sob
a categoria de “pagãs”, pois não raro a unidade
sugerida pelo vocábulo tende a ocultar a extre-
15
A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.
ma diversidade e plasticidade daquilo que foi o
paganismo antigo, um sistema religioso aberto a
toda a sorte de empréstimos, inclusive de natureza cristã, como a reforma religiosa de Juliano
nos permite concluir. Dentre tais empréstimos,
um dos mais evidentes foi a noção de philanthropia, ou seja, o exercício da caridade para com
os pobres, tema que o imperador desenvolve
extensamente na carta ao sacerdote Teodoro
(Ep. 89b). Num contexto em que as autoridades episcopais, ao liderar as redes de assistencialismo, começavam a controlar uma massa
anônima de pobres e indigentes, uma poderosa
base de apoio para o trabalho de cristianização
da cidade, Juliano propõe uma contraofensiva
em moldes pagãos, exortando os sacerdotes ao
cuidado com os pobres e prisioneiros, que deveriam ser protegidos da ganância alheia.
A conexão entre o pensamento de Juliano e
a doutrina cristã aflora, igualmente, na maneira
pela qual o imperador se refere a Antioquia,
como vemos no Misopogon. Em sua opinião,
Antioquia não seria apenas uma cidade tryphosa,
como tantas outras do Império, mas uma cidade
marcada pela impiedade, pela falta de respeito
para com os deuses. Juliano condena o estilo
de vida dos antioquenos, sua frequência ao
teatro e ao hipódromo, seus festivais, seu gosto
pelas comemorações em praça pública, não
como um desvio moral próprio de indivíduos
de categoria inferior, mas como uma afronta à
majestade divina. Para Juliano a cidade deveria
aspirar à santidade, à elevação espiritual, o que
exigia a rejeição a tudo aquilo que até então a
caracterizava em prol da autopurificação. Talvez
não fosse incorreto supor que, diante da cristianização da cidade antiga, processo cada vez mais
nítido em meados do século IV, a reforma do
paganismo idealizada por Juliano comportasse a
16
“helenização” da cidade, desde que esta helenização não seja compreendida tão somente como
um bloqueio à atuação dos cristãos no recinto
urbano, como uma reabilitação dos cultos ancestrais da polis ou como o restauro dos templos
e santuários. De fato, pensar nos termos de
uma helenização da cidade greco-romana sob
Juliano é pensar na configuração da polis como
uma cidade hierática e ascética na qual as redes
tradicionais de sociabilidade urbana tendem a
ser suplantadas por um estilo de vida calcado na
frugalidade, na simplicidade, no autocontrole,
mas, acima de tudo, numa atitude de permanente veneração. Levando em conta que Juliano
buscava erodir a influência cristã sobre a vida
pública e reatar os laços que uniam a cidade ao
mundo divino, tal reverência não poderia restar
oculta no interior dos templos. Por esse motivo,
a devoção de Juliano assume uma dramaticidade
hiperbólica, com a multiplicação de procissões,
rituais e sacrifícios na expectativa de mobilizar a
população em prol da causa dos deuses (Limberis 2000: 380). Antioquia, no entanto, parecia
resistir às investidas reformadoras do imperador, do mesmo modo que resistirá, alguns
anos depois, às pretensões de João Crisóstomo.
Permanecendo unidos a tudo aquilo que, sob
o Império, havia caracterizado o modus uiuendi
urbano, os antioquenos se recusavam a abandonar a praça pública para se recolher, em oração,
nos templos. Por meio da dança, da algazarra e,
em especial, do deboche, a população desafiava
as propostas de enquadramento autoritário do
seu cotidiano, preferindo prestar culto aos seus
deuses como por séculos havia feito, ou seja,
com alegria e espontaneidade, o que a levava
a ignorar o fervor religioso nutrido por um
imperador-filósofo atormentado pela busca da
pureza, da simplicidade e da perfeição.
Gilvan Ventura da Silva
SILVA, G.V. The city represented by the imperial government: Julian and his rebukes
against the Antiochene population in the ‘Misopogon’. R. Museu Arq. Etn. Supl., São
Paulo, n.18: 11-18, 2014.
Abstract: Antioch, the metropolis of the Syrian province, was, in the Later
Roman Empire, a noticeable city due to the exuberance of its religious festivals,
the quality of its theatrical performances and the intense movement of its inhabitants, who night and day attended the avenue of the colonnades surrounded by porticoes and monuments, in a kind of interaction which sometimes
resulted in demonstrations against the local and imperial authorities. In this
article, we intend to analyze the clash between Julian and the Antiochenes during his sojourn in the city between 362 and 363, when he organized the Persian
campaign. In order to do that, we exploit as main source the Misopogon, a satire
in which Julian admonishes fiercely the Antiochenes, considered by him lustful
and indolent people. By means of such rebukes, we can recreate to a certain
extant the Julian’s representation regarding the city and its population.
Keywords: Later Roman Empire – Representation – Antioch – Julian –
Misopogon.
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modelli e contaminazione letteraria nel
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética
para o estudo da economia romana
Pedro Paulo A. Funari*
FUNARI, P.P.A. Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o
estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 19-27, 2014.
Resumo: O artigo inicia-se ao propor o uso do estudo arqueológico da
Bética para discutir como a Arqueologia é relevante para discutir os modelos
interpretativos. Em seguida, volta-se para a província romana desde a conquista
romana inicial, passando pelo período republicano tardio e, depois, pelo Principado. Ressalta o papel das descobertas arqueológicas na observação de relações
econômicas complexas. Isto é possível pelas pesquisas de campo na Espanha
meridional, mas também alhures, em particular pelo estudo de evidências materiais como as ânforas encontradas em todo o Império. Conclui-se ao enfatizar
o papel central da Arqueologia para o estudo da economia antiga.
Palavras-chave: Bética – Economia antiga – Modelos interpretativos.
Introdução
E
ste artigo inicia-se com a apresentação
do ponto de vista adotado, numa
perspectiva de História da Ciência que enfatiza
suas ligações com as circunstâncias sociais e
políticas (pace Thomas Patterson). Em seguida,
são explicitados os contextos de investigação,
em particular como parte de um projeto apoiado pelo CNPq (bolsa de produtividade) de
estudo da economia romana e com apoio do
Centro de Estudos da Interdependência Provincial na Antiguidade Clássica, em parceria
com o Professor José Remesal, assim como a
colaboração com Airton Pollini e que resultou
na publicação de Mercato, Le commerce dans les
(*) Universidade Estadual de Campinas.
<[email protected]>
mondes grec et romain (Paris, Belles Lettres, 2012).
O estudo da economia antiga remonta ao século
XIX e está inserido nas discussões resultantes
do capitalismo, mas também do nacionalismo
e do imperialismo (pace Bruce Trigger (2004) e
Margarita Díaz-Andreu 2007). A admiração pela
racionalidade capitalista levou à identificação
do mundo antigo ao moderno (modernismo) ou
à sua dissociação (primitivismo).
Muito embora vários conceitos empregados
por Rostovtzeff (1926) tenham sido duramente
criticados por se aproximarem muito do moderno capitalismo, sua ênfase na Arqueologia sempre chamou atenção daqueles que discordam
dos modelos de Finley (1973) desenvolvidos a
partir do conceito de “cidade consumidora”,
proposto por Max Weber (1976). Estes modelos,
de matriz weberiana, partem de uma concepção
normativa e homogeneizadora das sociedades
antigas e, nos últimos anos, no contexto do
19
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.
pós-modernismo, têm sido muito criticados
por sua falta de atenção à heterogeneidade e
diversidade. A economia antiga, neste contexto,
é encarada como uma totalidade, homogênea,
caracterizada por relações pessoais (face a face),
fundadas na ética contrária ao esforço, considerado como ponos, a partir de um ethos urbano,
masculino, de elite e, no limite, representado
por alguns pensadores antigos. A insatisfação
com esses modelos normativos deriva tanto de
considerações epistemológicas como empíricas.
No século XX, desde Mikhail Rostovtzeff
em particular, o estudo da cultura material para
a compreensão da economia antiga agregou ao
debate, de forma decisiva, a Arqueologia. Os
modelos primitivistas ancorados na tradição
literária, como em Moses Finley, foram contrastados a partir da década de 1960, com a profusão de estudos arqueológicos e no contexto da
contestação crescente aos modelos normativos
de cultura e sociedade, que sustentavam e
sustentam modelos que enfatizam a oposição
entre racionalidade capitalista moderna e a
irracionalidade econômica dos antigos, envolvidos apenas nas relações de status e num mundo
de imprecisões (Koyré 1967). O estudo arqueológico da Bética fornece elementos para questionar essas visões, em dois âmbitos: o padrão
de assentamento de fazendas, olarias, fábricas
de salações; e o estudo das ânforas na própria
Bética e nos lugares aos quais chegaram, seja no
Mediterrâneo, seja no Limes. As publicações a
respeito multiplicaram-se desde os seus princípios, na década de 1970, com uma produção
imensa e variada.
A Bética e sua economia
A economia da Espanha Meridional Romana tem sido abordada com particular destaque
nos últimos anos (Remesal 2011). Uma maior
atenção foi dada, devido à própria situação dos
estudos a respeito, à compilação, crítica e descrição detalhada dos testemunhos disponíveis.
Podemos, a partir dos resultados já alcançados,
propor o deslocamento da questão da apresentação dos dados para sua articulação e estruturação. Isto significa estudar o inter-relacionamento
20
sincrônico das diversas atividades econômicas
– mineração, oleicultura, triticultura e assim por
diante – como parte de um sistema articulado
de exploração de recursos. Em outro nível, compreende a observação e explicação das transformações na esfera produtiva, o que implica uma
periodização das principais alterações estruturais. Ambos os momentos, portanto, envolvem
uma análise das relações sociais de produção
e apropriação de excedentes a nível regional e,
igualmente, no contexto da dicotomia política e
econômica entre periferia e centro do domínio
romano.
O contexto ambiental
A região produtora insere-se na extensa
planície do Guadalquivir, o mais meridional
dos grandes rios atlânticos da Península Ibérica,
delimitado pelas cadeias montanhosas de Sierra
Morena, Sierra Nevada e Sub-Bética. Este vale,
de formação terciária, estende-se por cerca de
680 km, desde sua nascente na Sierra de Segura
até sua foz dupla, próxima a Cádiz. Navegável
na antiguidade por barcos de grande calado até
Sevilha e daí até Córdoba por barcos fluviais,
o Guadalquivir possui 806 afluentes, a maioria
dos quais na margem esquerda, proveniente
da cadeia Sub-Bética e de Sierra nevada. Tal
fato explica a assimetria da planície, estreita ao
Norte, onde a Sierra Morena se aproxima do
rio, e ampla ao sul, atingindo uma largura entre
40 e 55 km. O vale, formado por solos argilosos
miocênicos, é favorável ao cultivo de cereais,
vinhedos e olivais. Estes últimos, em particular,
são favorecidos pelo relevo colinar da campina
ao sul, tornando a região o maior produtor
mundial de azeite da atualidade.
As estratégias da implantação romana
A ocupação romana do vale do Guadalquivir, em especial da região entre Sevilha e
Córdoba, apresenta estratégias diferenciadas de
exploração de recursos, relacionadas com fatores
diacrônicos e sincrônicos. Em primeiro lugar,
a exploração de recursos da região vincula-se a
Pedro Paulo A. Funari
estratégias decorrentes de penetração romana
que apresenta ritmos e características diferentes
no correr do tempo. Em seguida, e como fenômeno paralelo, a apropriação de recursos efetua-se num contexto de relações sociais específicas,
cujas contradições assumem formas particulares
no processo contínuo de incorporação do vale
do Guadalquivir no mundo romano.
A implantação romana desenvolveu-se em
duas fases com características distintas. De início, a ocupação foi extrativa, apresentando uma
dualidade constante entre o elemento externo
e explorador romano e a população indígena.
A partir da ampliação do mercado mundial
no final da República e início do Principado,
predomina, aos poucos, um processo de colonização que desloca a oposição ao eixo romano/
indígena para o eixo proprietário/expropriado.
O estudo desse processo permite observar as
características essenciais das estratégias específicas de apropriação e exploração dos recursos da
região.
A exploração de recursos
A primeira fase de ocupação romana tem
início em fins do século III a.C., no contexto da
luta contra os púnicos. Num primeiro momento, a atuação militar dos romanos explica-se pela
necessidade de retirar uma importante retaguarda para as tropas de Aníbal, impossibilitando
o recrutamento de soldados e, principalmente,
apropriando-se das minas que constituíam uma
significativa fonte de financiamento da guerra.
Assim, o início da penetração romana, voltada
para o controle militar das minas andaluzas,
fornece a chave para a compreensão das características básicas dessa larga primeira fase,
ressaltando o caráter impositivo e extrativo da
estratégia romana de ocupação.
Desde o início a presença romana apresenta
uma dupla estratégia de obtenção de recursos,
visando, ao mesmo tempo, a apropriação direta
e indireta de matérias-primas e produtos agrícolas. O avanço romano tinha por objetivo, antes
de tudo, a obtenção de metais, único produto
citado regularmente pela tradição textual como
tributo exigido (vejam-se os dados de Tito Lívio
entre 206 e 168 a.C.). A exploração das minas
da Prouincia Hispania ulterior, constituída em 197
a.C. (Tito Lívio, 32, 28, 11) estava sob a direção
de elementos romanos e itálicos que constituíam o núcleo da população imigrante. Em
termos de ocupação espacial do vale do Guadalquivir, apenas a margem direita concentrava
esses primeiros núcleos ligados, de uma forma
ou de outra, à extração e exportação de metais
provenientes de Sierra Morena. Outra característica marcante da colonização romana neste
período é seu aspecto castrense, relacionado
diretamente com a proteção das minas contra
os ataques de lusitanos e celtiberos. O primeiro
núcleo de ciues romani, Itálica (atual Santiponce)
foi resultado da reunião de soldados feridos
na batalha de Ilipa (Alcalá del Rio, ao norte se
Sevilha) em 206 a.C., por Cipião.
Um segundo aspecto da exploração de
recursos por parte dos romanos diz respeito à
apropriação indireta do excedente de produção
indígena, que é efetuado pela tributação (stipendium – desde 206 a.C.) sem alterações profundas no aparato produtivo local, cristalizado pela
diferenciação ideológica e jurídica entre o elemento indígena e o romano. A persistência de
formas de organização social local nas cidades e
comunidades manifesta-se bastante tardiamente (cf. César, Bell. Ciu., 50: Interim Oscenses et
Calagurritani, qui erant com Oscensibus contributi,
mittendi ad eum (sc. Caesarem) legatos...).
Tal fato explica a contínua importância da
criação de gado e de culturas locais, como a de
grãos, cuja produção não era prioritariamente
destinada ao mercado. Em termos de implantação na paisagem, isto implicava a continuidade
da ocupação local na margem esquerda, dominada pela planície bética e que fornecia condições ideais para o exercício da transumância (em
combinação com a Sierra Morena ao Norte) e
para o cultivo de trigo nos fundos do vale.
Ambas as formas de exploração de recursos – direta nas minas e indireta pelos tributos
– condicionavam as outras esferas de atividade
social levando a uma polarização colonizador/
indígena. Em termos políticos, dois fenômenos
paralelos e contraditórios separavam e uniam
os grupos étnicos presentes. A divisão da região
em núcleos de romanos e itálicos localizados na
21
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.
margem direita do Guadalquivir opunha-se ao
vazio jurídico dos indígenas da planície bética.
Essa oposição de estatuto legal refletia-se diretamente na forma de apropriação do excedente
(uectigal certum = tributo fixo, Cícero, Pro Balbo,
41), igualando os espanhóis ao tradicional
inimigo púnico (Cícero, In Verrem, 2, 3, 13,
6: ceteris (sc. Prouinciis) aut impositum uectigal est
certum, quod stipendiarium dicitur, ut Hispanis et
pleerisque Poenorum quasi uictoriae praemium ac
poena belli).
Por outro lado, desde o início da penetração romana uma aliança entre os grupos sociais
dominantes indígenas e o colonizador opunha-se a essa diferenciação étnico/política. Já com
a fundação da primeira colônia romana no vale
do Guadalquivir, em 152 a.C., podemos perceber a comunhão de interesses entre os colonizadores e a elite, que é admitida em Córdoba
(Estrabão, 3, 2, 1). Os interesses econômicos e
militares comuns uniam nativos e romanos. A
presença e atuação dos exércitos romanos possibilitavam a defesa da região das incursões de
lusitanos e celtiberos e a ligação com o mercado
mediterrâneo permitia uma crescente dissolução
das formas de produção de subsistência, fortalecendo a aristocracia local. Essa aliança de grupos sociais mostra-se, com clareza, no período
das Guerras Civis, com a formação dos partidos
cesaristas (BC, 2, 20, 1-8) e pompeiano (BC, 2,
20, 4: B. Hisp., 1) na região, dos quais participava a aristocracia indígena. Outro exemplo é o
número crescente de cavaleiros andaluzes (BC,
2, 22; B. Hisp., 39). Elementos dominantes nativos identificam-se cada vez mais com o colonizador romano, como afirma Estrabão (3, 2, 15).
A integração do vale do Guadalquivir
no mercado mundial
A primeira fase caracteriza-se, portanto, por
uma integração constante das diversas esferas da
vida social, dominada, por um lado, pela aliança
entre romanos e elite indígena e, por outro,
pela crescente integração da região no mercado
mediterrânico. Esta última tendência dependia
da estabilidade do setor comercial, empreendida por Pompeu, no combate à pirataria e, de
22
forma mais abrangente, por Augusto. Além do
estabelecimento da paz interna, a ação estatal
teve grande importância no favorecimento do
comércio interprovincial. De um lado, construi-se uma infraestrutura, formada pelo sistema de
uillae – destinadas à proteção do território – e
pelo desenvolvimento dos transportes marítimos e fluviais (construção de diques e eclusas
que asseguravam a navegação no Guadalquivir,
a partir de Júlio César, atendendo ao crescimento dos mercados urbanos. Esta política visava,
em particular, o bom funcionamento do abastecimento urbano e militar, que compunha o
principal consumidor de mercadorias no Império. De outra parte, a oposição étnica e política
entre romanos e provinciais atenuou-se durante
todo o primeiro século d.C., até a ascensão ao
principado de elementos provinciais béticos a
partir de Trajano. Tal política de integração favoreceu o desenvolvimento da comercialização,
em larga escala, de produtos como vinho, azeite
e salmouras.
Mudanças na produção
Na Prouincia Romana ulterior Baetica ocorre,
como consequência, uma transformação da
exploração de recursos, acompanhada de uma
forte imigração itálica, de caráter eminentemente civil concentrando-se desde cedo, em empreendimentos agrícolas voltados para a produção
de bens de consumo, antes de tudo azeite e
vinho.
Embora as minas de ouro, prata (Estrabão,
3, 2, 3), cobre, ferro (Estrabão, 3, 2, 8), chumbo
e estanho continuassem ativas, é possível que
parte do capital aplicado em investimentos na
Sierra Morena se dirigisse para a planície bética,
propícia ao cultivo da oliveira. De qualquer
forma, a importância relativa do metal no total
das exportações béticas decai de frente ao azeite,
vinho e salmouras.
Também a criação de gado adquire características diversas a partir do Principado, devido à
intensificação da comercialização de cavalos, já
numerosos em fins da República (Júlio César,
bel. Afric., 501; Bel. Hisp., 2) e de lã, de excelente qualidade (Juvenal, 12, 40-42; Marcial, 5,
Pedro Paulo A. Funari
37, 3; 8, 28, 26; Estrabão,2, 26). Nas regiões ao
norte de Córdoba o gado poderia fornecer, para
as uillae rusticae da região (que não produziam
ânforas) couro para a confecção de odres destinados ao azeite. Em termos gerais, o movimento
transumante de gado de Sierra Morena para a
planície bética adquire uma ligação orgânica
com o desenvolvimento agrícola e urbano da
região, integrando-se, em certa medida, no ciclo
do mercado regional (cf. os artesãos, ligados ao
trabalho de matérias-primas provindas da pecuária e encontrados nas cidades: centonarii em
Hispalis, CIL, II 1167; uestiarius em Corduba,
CIL, II, 2240; lanificus em Tucci, CIL II, 1699).
O cultivo de cereais, em particular de trigo,
mas também de cevada (Estrabão, 2, 26) às
margens do Guadalquivir, devia obedecer a dois
delimitados fisiograficamente. A planície bética,
em particular a Veja de Carmona, conhecia
uma plantação monocultora que abastecia de
cereais os mercados urbanos da Província (Dio
Cássio, 43, 33 – Carmona; Júlio César, B.B., 2,
18) e exportava mesmo, em certa quantidade,
para algumas regiões do Império (D. Cássio, 60,
24, 15 – Mauritânia). Varrão, que conhecia em
detalhe a triticultura da Bética, refere-se a dois
instrumentos utilizados, provavelmente, no cultivo de trigo na região, o tribulum e o plostellum
punicum (RR, 1, 52, 1). Nas pequenas elevações
da mesma planície, entre o vale do Corbones e
a margem direita do Genil ocorria outro sistema
de exploração. O cultivo de trigo (Plínio, 18, 95)
nestas terras férteis, em conjunção com o plantio de olivais, é atestado pela tradição textual
(Plínio, 17,94) e pelos restos de mós encontrados nesta região e relacionava-se ao abastecimento do mercado local ou aldeão da planície como
uma atividade subsidiária à atividade agrícola
exportadora.
Das duas principais culturas voltadas
para o comércio, a viticultura tem sido menos
estudada e, como resultado, sua distribuição
na província permanece, em grande parte,
desconhecida. Todo o vale do Guadalquivir é
propício ao cultivo da vinha, como atesta sua
expandida distribuição contemporânea. Cádiz é
a única região mencionada pela documentação
epigráfica (CIL, XV, 4570) e apenas nesta área
surgiram, nos últimos anos, evidências materiais
de produção vinária. A tradição textual limita-se
a mencionar a qualidade (Columella, 3, 2,19 –
vinho de segunda qualidade) e quantidade de
vinho bético (Estrabão, 3, 4, 16; Justino, 44,
1). Um estudo da distribuição dos restos de
ânforas vinárias béticas, Haltern 70 e Dressel
28 no vale do Guadalquivir permitiria precisar
a localização dessa cultura. O mesmo pode ser
dito quanto à exportação do vinho bético que,
embora pouco estudado, permite entrever uma
distribuição ocidental do produto, abrangendo
Roma e o Limes renano.
A oleicultura, em contrapartida, apresenta
uma abundância de testemunhos textuais e arqueológicos que permite precisar suas principais
características. Embora o zambujeiro estivesse
presente na região, o cultivo da oliveira, durante
a primeira fase de colonização, era praticado
apenas em pequena escala (Júlio César, B. Hisp.,
27,1). A exportação do azeite bético desenvolveu-se, durante o Principado, graças à criação de
um mercado internacional e às transformações
na forma de exploração das províncias pelos
romanos. O vale Guadalquivir é favorável à
oleicultura (Columella, 5, 8, 5) e esta adquiriu a
primazia de toda a produção agrícola da região
já em meados do século I a.C. (Plínio, 17, 93:
non alia maior in Baetica arbor). A qualidade do
azeite bético, mencionada por Plínio (15, 3, 8) e
por Pausânias (10, 32, 19), deriva da adequação
do solo (Plínio, 17, 31), do relevo (Columella,
5, 8, 5) e de outros fatores geográficos à oleicultura, permitiu sua penetração nos mercados
internacionais com rapidez e facilidade.
As variações na concentração de olivais, presentes em todo o vale do Guadalquivir (Estácio,
2, 7, 28), relaciona-se com mudanças fisiográficas regionais. Apenas ao sul de Sevilha, com
a presença de pântanos, e na Sierra Morena,
devido às suas cristas relativamente abruptas, as
condições não se apresentavam propícias à oliva
[Columella, 5, 8, 5: neque depressa loca, neque
ardua amat (sc. Olea)]. As pequenas elevações da
planície bética, especialmente entre o rio Corbones e Córdoba, com seu solo pesado, constituíam um terreno favorável à olivicultura. Os
vestígios arqueológicos de época romana confirmam a presença de lagares desde a província de
Jaén, passando pelo vale do Genil, até Sevilha,
23
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.
e uma concentração de olarias anforárias entre
esta última e Córdoba. A ausência de oficinas
cerâmicas de Dressel 20 na região ao norte de
Córdoba. Em uma região produtora e, provavelmente, exportadora de azeite (Marcial, 12, 631632; 981-988) explica-se pela não navegabilidade
do Guadalquivir, em época romana, a partir
de Córdoba. Nosso conhecimento das características da produção oleícola apresenta certas
limitações, sobretudo no que se refere às áreas
não prospectadas por Ponsich (Remesal 2011).
Além disso, foram escavadas apenas duas olarias
anforárias e nenhuma uilla rustica, enquanto
a tradição literária refere-se de forma apenas
fragmentária ao cultivo e feitura do azeite bético
(Isidoro, Etym., 11, 1 ,68).
Possuímos, por outro lado, evidências textuais e, principalmente, materiais da distribuição e
comercialização de azeite da região. A documentação epigráfica é abundante, referindo-se aos
diffusores olearii ex Baetica (CIL, II, 1481; CIL,
VI, 29722; CIL, XII, 714, atuantes em Astigi
(Ecija), na Gália e em Roma; negotiatores olearii
ex Baetica (CIL, VI, 1625 b; Pancieira, 1980:244
– negotiatrix) em Roma; um mercator olei hispani
ex prouincia Baetica (CIL, VI, 1943) em Roma; e
um adiutor praefecti annonae ad oleum afrum et hispanum rescensendum (CIL, II, 1180) em Sevilha.
A profusão de referências (nove inscrições) a
elementos ligados ao comércio do azeite bético,
bem como sua distribuição, permitem observar
não apenas de sua distribuição (ocidental) como
sua importância qualitativa.
Sobre a extensão das exportações, entretanto, as evidências materiais fornecem elementos
ainda mais significativos. Os mercados potenciais de azeite bético eram de três tipos: Roma,
abastecida pela annona urbana; o Limes renano,
britânico e mauritâneo, ligados à annona militaris, e os centros urbanos do Ocidente. Nos
três casos a distribuição de achados de ânforas
Dressel 20 comprova sua penetração maciça,
em particular em Roma (restos do M. Testaccio,
Rodríguez-Almeida 1972) e nos acampamentos
castrenses no Reno e no Danúbio.
As pesquisas dos últimos anos têm demonstrado que as esparsas informações textuais
referentes à presença do azeite espanhol na
parte oriental do Império (Luciano, Nau., 23)
24
e em particular a documentação papirológica
egípcia (Pap. Oxyr, 1924), devem ser consideradas dignas de crédito. As recentes escavações na
Iugoslávia e, sobretudo, a publicação de material
epigráfico das ânforas Dressel 20 encontradas
em sítios orientais (em particular Alexandria,
Antioquia, Atenas e Corinto) por E. Lyding
Will (1984) têm ressaltado a necessidade de
uma reconsideração sobre a tradicional dicotomia entre mercados ocidentais e orientais no
Alto Império, tanto para produtos agrícolas
como para a própria definição de áreas de
difusão cerâmica. De qualquer forma, embora
não possamos definir quantitativamente a importância desses mercados, deve-se reconhecer
que a difusão do azeite bético abrangia uma área
imensa, com uma presença significativa em todo
o Ocidente romano.
Na própria província, essa produção para
exportação em larga escala exigiu a criação, ou
favoreceu o desenvolvimento, de suas atividades
artesanais subsidiárias, cuja localização pode ser
precisada. Por um lado, as olarias anforárias,
que se concentraram às margens do Guadalquivir e do Genil pela facilidade de transporte
(as ânforas pesam até 80 kg) e pela abundância
de matéria-prima. A significação econômica e
social destas manufaturas no quadro do assentamento romano na região pode ser avaliada pelos
resultados obtidos pela escavação de um forno
em La Catria (Remesal 2011). Sua capacidade de
produção, bastante significativa, permite atestar
a importância desse artesanato para a região nos
meses de atividade da olaria (maio-setembro).
A demanda de mão-de-obra para o trabalho nas
figlinae coloca a questão da movimentação sazonal dos trabalhadores, provavelmente liberados
das atividades ligadas à oleicultura ou ao cultivo
de trigo nas pequenas propriedades, ou mesmo
provenientes das áreas de corte madeireiro ou
de criação de gado na Sierra Morena ou dos
estaleiros. Quando a estes, possuímos evidências
epigráficas e textuais sobre a existência, no vale
do Guadalquivir, de scapharii, lintrarii e nauicularii (CIL, II, 1163; 1168-9). No primeiro caso
trata-se da construção naval de grande envergadura, predominante na região de Sevilha, onde
penetravam os navios mediterrâneos (Estrabão,
3, 2, 3;), e atestado já por César (B. Ciuile, 2,
Pedro Paulo A. Funari
18, 1: Naues longas... complures in Hispali faciendas (Varro) curauit). Rio acima localizavam-se os
estaleiros de menor porte, destinados à construção de barcos pequenos, semelhantes a barcaças
fluviais (Estrabão, 3, 2, 3).
As atividades da região entre Sevilha e
Córdoba, delimitada pela Sierra Morena e pela
Sierra Nevada, oferecem um quadro complexo
em termos de sua implantação na paisagem.
As principais características da margem direita
são a presença de agrupamentos humanos com
estatuto político de cidade, e em consequência
da pouca extensão da planície marginal, a convivência da agricultura com atividades ligadas
à Sierra Morena, como a mineração, criação
de gado, abate de árvores e construção naval.
Esta margem do rio, menos atacada pela erosão,
abriga os principais portos da região. A planície
bética ou campiña domina a margem oposta,
possibilitando uma vida agrícola interior mais
intensa, articulada em aldeias que se relacionam
com as uillae rusticae de seu território e com o
exterior.
Duas questões interligadas, de importância
capital para a compreensão da economia e da
cultura material do mundo romano, merecem
um comentário particular. A primeira delas
refere-se à estrutura econômica da agricultura
romana durante o Principado.
Ao nível da documentação material, um
estudo que efetuamos da região de La Campana
permite constatar uma grande estabilidade no
assentamento desde meados do primeiro século (sigillata hispânica), de forma ininterrupta,
até a antiguidade tardia (sigillata clara D). Esse
assentamento é caracterizado pelo predomínio
de uillae oleicultores com um território hipotético – calculado pela aplicação dos polígonos
de Thiessen – considerável (de 500 à 1500 ha).
Parece não se tratar, contudo, de latifúndios,
com características de exploração extensiva e
autárquica, nem muito menos de pequenas unidades geridas por colonos; estas grandes propriedades deviam ser trabalhadas por esquadrões de
escravos e dirigidas por uilici (Columella, 1, 1,
20), pois apenas dessa forma explica-se a ausência de elementos de luxo nas uillae da Campina
e a contínua vinculação de sua produção com
o mercado externo (documentada pela presen-
ça de lagares). Esta suposição é reforçada pelo
assentamento marginal do Guadalquivir, dominado por uillae providas de lagares, luxuosas,
de pequenas e médias demissões prováveis, cuja
função intermediária entre as olarias anfóricas
e as uillae oleiculturas da Campiña apresenta-se
bastante clara.
Este predomínio de relações mercantis,
caracterizado pela criação de um marcado
pan-mediterrâneo desde Augusto, encontra
correspondência na cultura material em geral
e na constituição, em particular, de um mercado unificado para os produtos transportados
em ânforas. Isto leva-nos à segunda questão,
referente à constatação de Remesal (2011, com
literatura anterior) de uma diferença entre a
estabilidade morfológica do tipo Dressel 20 em
comparação com a multiplicidade de formas de
ânforas destinadas ao transporte do azeite bético
no Baixo-Império (Dressel 23 A e B, El Tejarillo
1, 2, 3). Este fenômeno pode ser compreendido
caso observemos a ligação necessária entre a
existência de um mercado pan-mediterrâneo e
a estabilidade formal dos diversos recipientes.
A existência, por cerca de três séculos, de um
comércio estável possibilitou e favoreceu a manutenção de uma tradição artesanal (nas olarias)
e de transmissão de mensagens (a respeito do
conteúdo do vaso) para os usuários e consumidores.
A desagregação desse mercado pan-mediterrâneo e o enfraquecimento das estruturas
imperialistas de concentração de recursos em
centros urbanos, resultado do fortalecimento
da autarquia agrícola de diversas regiões do
Império, ocasionou o desaparecimento de um
público consumidor unificado. Dessa forma
pode-se explicar o surgimento de diversos tipos
concomitantes das ânforas destinadas ao mesmo
produto e a relativa instabilidade na transformação morfológica dos mesmos. A existência de
públicos consumidores desconectados permite
que formas sejam destinadas a mercados locais
(caso, talvez, das ânforas El Tejarillo 1, 2, 3) e
outras a mercados ultramarinos, cada qual com
um universo de ânforas particular. A existência
de uma forte autoridade estatal interessada no
controle rigoroso do comércio em ânforas, presente e atuante durante o Principado, permitia
25
Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.
a manutenção de formas anfóricas determinadas, procedimento necessário para o controle
do transporte e armazenamento desses vasos-recipientes. Estas amarras rompem-se quando
a dicotomia centro-periferia se transforma em
descentralização política e econômica na Antiguidade tardia.
uma multiplicação das pesquisas de campo, seja
em cidades, seja no campo. Estudos arqueológicos das exportações béticas para Roma e para
todo o mundo romano também contribuíram,
de forma espetacular, para o conhecimento da
economia bética e romana. Os modelos interpretativos e suas discussões ganham muito com
esse manancial crescente de informações.
Conclusão
Agradecimentos
Os estudos arqueológicos revolucionaram
o conhecimento do mundo antigo, em geral,
e das relações econômicas, em particular. As
descobertas arqueológicas multiplicaram-se, de
forma exponencial, tanto por meio de pesquisas
temáticas, como pela atuação da legislação patrimonial e a explosão da Arqueologia preventiva.
O sul da Espanha, a antiga Bética, testemunhou
Agradecemos a Margarita Díaz-Andreu,
Airton Pollini e José Remesal e mencionamos,
ainda, o apoio institucional do CNPq, FAPESP,
Departamento de História e Nepam/Unicamp,
Universidad de Barcelona e Stanford University.
A responsabilidade pelas ideias restringe-se ao
autor.
FUNARI, P.P.A . The role of archaeology of Baetica in studying the Roman economy. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 19-27, 2014.
Abstract: The paper starts by proposing to use the archaeological study of
Baetica to discuss how archaeology is useful for discussing interpreting models.
It then turns to presenting the Roman province from the early Roman conquest through the late Republican and early imperial periods. It highlights the
role of archaeological findings in enabling us to observe the complex economic
relations. This is due to archaeological fieldwork in southern Spain itself, but
also elsewhere, particularly studying such material evidence as amphorae found
throughout the empire. It then concludes emphasizing archaeology as key to
study the ancient economy.
Keywords: Baetica – Ancient economy – Interpretive models.
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J.M. (Comp.) Segundo Congreso del Aceite en
la Antiguedad. Madri, Universidad Complutense: 391-440.
27
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.
O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico
das primeiras revoltas na Britannia*
Renato Pinto**
PINTO, R. O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das
primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.
Resumo: Poucos podem negar que a violência seja um tema de grande
importância para o estudo de nossa sociedade, e não é algo novo. A violência
no mundo romano já é velha conhecida para os arqueólogos, e pode mesmo
ter sido vista como óbvia e esgotada há algumas décadas. Todavia, o advento do
pós-colonialismo ajudou a deslocar o foco das respostas binárias – i.e.: ‘Roma
saqueia as províncias, as províncias se rebelam contra os invasores’ – para abordagens mais multifacetadas e nuançadas. No caso da Britannia, o uso romano
de violência na invasão, ocupação e repressão pode ter se misturado à religião
nativa existente e às práticas funerárias/mortuárias de maneira que desafia as
análises simplistas. Para os arqueólogos da Britannia, os indícios de execuções e
de sacrifícios ritualísticos não são sempre facilmente discerníveis, o que levanta
questões desafiadoras a respeito das interações entre a intolerância religiosa
contra os druidas, a Revolta de Boudica, e práticas ainda obscuras, como o culto
às cabeças decepadas. Ademais, é relevante avaliarmos o quanto tais interações
afetam a forma como vemos a violência no passado, comparamo-la com episódios no presente, e como a mídia divulga os achados arqueológicos de possíveis
massacres, a fim de envolver suas audiências e seus leitores.
Palavras-chave: Violência – Britannia – Boudica – Romanização.
Introdução1
Com notável frequência surgem notícias
sobre novas descobertas arqueológicas de res-
tos mortais humanos do período de presença
romana nas ilhas britânicas. A maioria de tais
achados está concentrada nos sites noticiosos
britânicos, é verdade, mas não parece ser muito
(*) Segmentos desta apresentação foram enviados para comporem
parte do dossiê sobre “Representações da Morte no Mediterrâneo
Ocidental e Oriental”, sob organização de Luciane Munhoz de
Omene e Pedro Paulo A. Funari, a ser publicado no periódico
Clássica – Revista Brasileira de Estudos Clássicos. No prelo.
(**) Professor de História Antiga da UFPE; membro associado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
– LARP MAE/USP. <[email protected]>
(1) Optou-se, aqui, por não divulgar imagens dos restos
humanos aos quais o texto faz referência. Trata-se de uma
escolha baseada em questões éticas, sem consenso, a respeito
da exibição de restos humanos, e que ainda podem ser mais
bem ponderadas pelo meio acadêmico.
29
O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.
arriscado sugerir que há um amplo fascínio no
mundo, ao menos o ocidental, pelo tema da
morte nos tempos da Roma antiga. Se isso já
não for tido como uma curiosidade lúgubre demais, saber, vez ou outra, que alguns dos corpos
de homens, mulheres e crianças daquela longínqua época permitem entrever sinais de sevícias,
nem sempre cria algum esperado (ou desejado)
sentimento de repulsa ao tema da morte violenta. Ler a respeito da morte, natural ou violenta,
e de elementos ritualísticos e funerários dos habitantes de uma província romana tão distante
do Mediterrâneo pode se tornar uma atividade
ainda mais fascinante quando as imagens das
descobertas arqueológicas nos oferecem esqueletos, crânios (alguns decapitados), com alguma
sorte, corpos com tecidos moles preservados, e
ainda, algumas reconstruções faciais.
Ao nos depararmos com qualquer representação cartográfica do Império Romano, podemos nos perguntar como teria alcançado tamanha dimensão. O Império Romano, para além
de sua grande influência cultural no Ocidente,
também pode ser lembrado pelo uso que teria
feito da violência para alcançar seus fins expansionistas, ao menos em algum momento do
processo, se não durante todo ele. O tema da
violência é central ao argumento de que foi pelo
uso da força militar que os romanos dominaram
tal território. Ainda que a presença militar não
precisasse ser um fenômeno ubíquo, saber que
o exército romano poderia intervir a qualquer
momento poderia influenciar dramaticamente
as decisões dos habitantes das províncias. Os
romanos podem ter pensado no uso persuasivo dos elementos culturais que poderiam ser
adotados pelos povos que almejavam subjugar,
ou nas possibilidades dos acordos políticos, mas
não teriam se eximido de outros meios menos
diplomáticos, por assim se dizer. Em especial
no processo primevo de expansão imperial, as
crucificações e a escravização em massa teriam
feito parte fundamental do arsenal de ações
militares levadas a cabo nas regiões onde Roma
enfrentava algum tipo de oposição à sua presença ou influência (Horsley 2004: 20).
A destruição de grandes cidades da antiguidade pelos romanos, e a dimensão da violência
a elas dirigida, tornou-se um tema de difícil tra-
30
to mesmo para os antigos, como nos faz pensar
Cícero em um arrazoado sobre as formalidades
diplomáticas que antecedem as guerras. Aqui, a
violência é uma opção, vencida a etapa do debate e da proclamação da guerra. Ainda que algum
comedimento possa ser esperado, Roma poderia
muito bem abrir mão dos limites do homem
civilizado e devastar todo um país em nome de
uma pretensa guerra justa. Tudo dependeria de
como o Império interpretasse a disposição dos
ocupados em resistir ao seu comando (Cícero,
De Officiis, I, 11.33-6, passim).
Quando nos lembramos da prática da crucificação, não é possível ignorarmos o quanto
a própria forma de um instrumento de tortura,
amplamente usado para aterrorizar e dissuadir
os inimigos, afetou nosso modo de pensar o Império Romano em seus momentos mais coercitivos. A imagem da cruz está marcada pela ideia
do perdão em boa parte das crenças cristãs,
mas não conseguiria afastar de nossas mentes,
in totum, a violência usada contra suas vítimas
(Horsley 2004: 19). Chega a ser surpreendente
que os arqueólogos tenham encontrado tão pouco material associado à prática da crucificação.
O único esqueleto humano que tem sido descrito sistematicamente como o de uma vítima
desse tipo de execução foi encontrado em Giv’at
ha-Mivtar, Israel (Zias & Sekeles 1985). Mesmo
no Brasil, o tema da violência no Império romano vem sendo estudado há um bom tempo (ver,
por exemplo: Silva & Mendes 2006; Garraffoni
2008). Qual o valor dos estudos sobre a violência romana em suas províncias para o público
em geral, hoje em dia?
A violência na Britannia
Ao longo das últimas décadas, em um contexto de autores pós-colonialistas, a percepção
de que a construção do Império Romano se deu
por meios violentos e autoritários aumentou
consideravelmente. Em especial, no contexto
dos revisionismos pós-coloniais, os estudiosos
do mundo romano tendem a ressaltar as restrições e dificuldades das populações colocadas
sob o controle das forças romanas. Muitos desses autores são britânicos, herdeiros de uma já
Renato Pinto
longa tradição dos estudos sobre o processo de
romanização, surgida e desenvolvida nas universidades inglesas do final do séc. XIX e do início
do séc. XX (ver: Mattingly 1997; Webster 1997;
Hingley 2000; Mattingly 2006/7: 128).
O estudo da violência romana na província
da Britannia pode ser um caminho profícuo
para o tema em questão. Provida com um
volume de contingente militar desproporcional
ao restante do Império nos primeiros séculos
depois de Cristo (Mattingly 2006/7: 128-31),
a província da Britannia também colecionou
algumas importantes revoltas contra o Império, inclusive com a nomeação de imperadores
apóstatas. Uma das principais revoltas contra o
poder romano durante o séc. I d.C. foi aquela
liderada por Boudica (ou Bodiceia). Tal fato
marcaria dramaticamente a maneira como os
arqueólogos interpretariam os vestígios romanos
na ilha.
A fundação oficial da província da Britannia
se deu somente após a invasão das legiões comandadas pelo imperador Cláudio, em pessoa,
no ano de 43 d.C., embora Júlio César já tivesse
visitado a ilha em meados do séc. I a.C. por
duas vezes consecutivas. Em algum momento,
entre os anos de 60 e 61 d.C., as legiões romanas estacionadas na Britannia teriam enfrentado
uma maciça rebelião organizada pelos bretões
das tribos dos icênios e dos trinovantes. Liderados por uma mulher, – a rainha dos icênios,
Boudica, ultrajada que ficara com o tratamento
violento que recebera de oficiais romanos –, os
bretões marcharam em grande número contra
centros urbanos que pudessem ter habitantes
romanos ou associados a eles. Em seu caminho,
os revoltosos destruíram edificações romanas e
outras ligadas a tribo dos catuvelaunios, tidos
como um reino cliente dos romanos. O primeiro alvo de Boudica foi Camulodunum (Colchester), em especial, o recém-construído templo
dedicado ao Divino Cláudio, como parte do
Culto ao Imperador, prática político-religiosa
existente no Império desde a época de Augusto. O templo foi completamente queimado e
desmantelado pelos seguidores da rainha dos
icênios. Lá também havia sido fundada uma
ampla colônia de soldados veteranos, que teve o
mesmo fim malfadado. Os saques e a violência
dos nativos teriam sido desastrosos à província e
fizeram com que o governador Suetônio Paulino
movesse suas tropas do extremo oeste da ilha
para o leste, no encalço dos revoltosos, e que
tentasse interceptá-los em Londinium (Londres),
para onde a marcha dos bretões se dirigira após
saquear Camulodunum.
Suetônio Paulino estava em campanha
militar contra os druidas no oeste da ilha e
não dispunha de todo o efetivo da província.
Impossibilitado de proteger Londinium com um
efetivo suficiente para a tarefa, o governador
abandonou seus habitantes à própria sorte
e procurou se fortalecer ao convocar outras
legiões que, naquele momento, ocupavam
áreas mais distantes do palco da revolta. Neste
ínterim, Boudica, depois de saquear Londinium,
teve ainda tempo de causar enormes estragos e
carnificina em Verulamium (St. Albans). Quando as forças de Suetônio Paulino finalmente
conseguiram paralisar as hordas de Boudica, a
província já estava à beira do desastre. Contudo,
o governador romano, em uma ação audaciosa e
eficiente, destruiu a resistência bretã e derrotou
os seguidores de Boudica em uma sangrenta
(para os bretões) batalha. A rainha teria morrido
em decorrência de alguma doença, ou tirado a
própria vida, mais tarde, por envenenamento.
Seguiu-se então uma campanha punitiva que,
graças a sua violência, deixou alarmados o
imperador Nero e Sêneca, a ponto de enviarem
à Britannia um procurador, Caio Júlio Alpino
Classiciano, a fim de investigar e apaziguar os
ânimos. A partir de então, a província não mais
teria se rebelado com tal intensidade contra a
presença romana e seus habitantes teriam vivido
suas vidas calmamente, adotando a toga e os
costumes romanos. Ao menos, é assim que nos
contam sobre a revolta e suas consequências os
autores romanos Tácito (Anais, Vida de Agrícola)
e Díon Cássio.
Escritos muito tempo depois dos eventos
dos quais tratam, algumas décadas ou mais
de cem anos, os relatos de Tácito e de Díon
Cássio foram, por vezes, tomados como verdade
inquestionável por estudiosos do passado. No
que diz respeito à revolta de Boudica, coube
aos arqueólogos ultrapassarem os antiquários
na busca de vestígios da marcha dos rebeldes
31
O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.
e da batalha final. Parece claro que os propósitos que moviam as buscas eram tão ambíguos
quanto a representação de Boudica. Os achados
poderiam reforçar a ideia de que os historiadores romanos eram confiáveis e que a província
reergueu-se “romanizada”, para usarmos um
termo moderno e controverso. Por outro lado,
em especial após o surgimento dos estudos
pós-coloniais, os sinais de violência romana poderiam demonstrar a força da resistência nativa
contra os invasores do continente, quase sempre
visto como uma fonte de ameaças à integridade
insular dos britânicos.
Druidas e o “culto das cabeças decepadas”
No contexto religioso, os sacrifícios humanos teriam sido uma prática muito mal vista
pelos romanos, podendo ocasionar severas
punições aos infratores (Salway 1984: 665; 680).
Das características da religião dos bretões, que
eram também, em alguma medida, compartilhadas em outros locais do Império, inclusive pelos
próprios romanos e gregos, merece destaque o
culto a céu aberto, sem templos: uma religião
“natural”. Tácito (Ann. XIV, 30) ressalta que os
druidas estavam praticando sacrifício humano
nas clareiras de Mona (Anglesey) quando o governador romano Suetônio Paulino lá chegou.
Díon Cássio faz referência à clareira onde Boudica teria sacrificado seus prisioneiros e buscado
convencer seu exército a continuar a luta contra
os romanos por meio de um vaticínio da deusa
Andata/Andraste (epítome, LXII, 7). Temos, contudo, muito poucos dados a respeito do tema,
em especial, no caso dos druidas. Também eram
tidos como sagrados os locais marcados pela
presença de água, como nascentes, lagos, rios,
pântanos, turfeiras e poços (Henig 1984: 17-8;
Salway 1984: 672; Ottaway 2013: 88-9).
Nas escavações de cemitérios do período
romano na Grã-Bretanha, são, por vezes,
encontrados corpos com as cabeças decepadas.
No cemitério de Curbridge, foram encontrados
três esqueletos com suas cabeças entre os pés
(Salway 1984: 706). A prática da decapitação
oferece um fértil campo de estudo, ainda que
esteja longe de oferecer respostas. Os autores
32
tratam do fenômeno como o “culto da cabeça
decepada”.
Por sua vez, um enterramento em Driffield
Terrace, merece destaque por conter cinquenta
e três homens adultos em meio a somente sete
não adultos. Entre os adultos, ao menos trinta
estavam decapitados, tendo sido os crânios depositados entre os pés, as pernas ou na região da
pélvis (Ottaway 2013: 224). Uma questão fundamental que se apresenta aos especialistas é a
capacidade de discernir quando a decapitação se
dá em um contexto ritualístico religioso e quando se trata de uma pena capital, inclusa aqui a
possibilidade da prática de empalar em estacas
os crânios para exibição pública, em alguns
casos. Na maior parte dos casos em que se encontram corpos decapitados do período romano
na ilha, as cabeças nem mesmo estão presentes,
talvez usadas para algum tipo de ritual, ou para
exposição pública, no caso de execuções, por
exemplo (Ottaway 2013:225). Tácito (Ann. I, 61)
nos fala dos crânios dos romanos vencidos pelos
Germanos na derrota de Quintilo Varo, em
9 d.C., pregados aos troncos de árvores, mas,
também, dos altares de sacrifício, locais onde
teriam se dado as decapitações. As fontes clássicas fazem silêncio sobre exemplos na Britannia,
o que poderia, num primeiro momento, indicar
a ausência da prática. Contudo, cada vez mais
surgem indicações do contrário disso na própria
Britannia (cf. Salway 1984: 692).
Em um contexto de militarização da ilha,
uma série de sepultamentos foi achada em
Colchester, nas escavações de Balkerne Lane,
quando seis corpos foram achados perto de
um fosso da fortaleza dos legionários romanos.
Dois crânios e alguns ossos mostram sinais de
violência, sendo que ao menos um deles parece
ter sido executado, por decapitação. Podem ter
sido corpos deixamos à porta decumana, uma
passagem de soldados para execuções e punições
(Johnson 1983: 41; Gascoyne 2013: 73).2 Não
se pode assegurar se são os corpos de soldados
romanos ou de bretões, punidos, em qualquer
um dos casos, se confirmada a execução marcial.
(2) Sobre a possibilidade de nunca ter existido uma porta
decumana, ver Gascoyne 2013: 75.
Renato Pinto
O arqueólogo David Radford (2013b: 96), por
sua vez, indaga se os corpos teriam sido executados em Balkerne Lane, possíveis vítimas
de Boudica. O especialista em arqueologia de
Colchester, Paul Sealey (2004: 19), acredita, por
sua vez, que tenham sido vítimas dos romanos,
e que suas cabeças teriam sido penduradas em
postes para execração pública, mas antes de 55
d.C., não estando, portanto, envolvidas com a
revolta de Boudica (60 ou 61 d.C.).
Massacres e mídia
Em algumas ocasiões, os arqueólogos se
deparam com uma grande quantidade de corpos depositados em poços, fossos, lagos, rios,
ou em situação de aparente descuido funerário,
como no exemplo de Driffield Terrace, onde
corpos foram inumados sem caixões. Esses casos
são costumeiramente tratados como indícios
de “massacres”. No caso da Britannia, os momentos de maior convulsão social são quase
que imediatamente associados aos achados,
em especial o da Revolta de Boudica em 60/61
d.C. (Sealey 2004). Uma vez que os autores
antigos nos relatam a crueldade empregada
pelos nativos contra os romanos, e, mais tarde,
quando de sua derrota para Suetônio Paulino,
em local desconhecido, da revanche não menos
sangrenta do governador sobre os vencidos, há
um grande interesse em encontrar os vestígios
humanos de tamanho embate. Tais vestígios
seriam encontrados no chamado “horizonte de
Boudica”, uma camada estratigráfica referente
ao período da revolta (Sealey 2004: 22; Hingley
& Unwin 2006: 69). Essas aproximações diretas
podem, contudo, levar a conclusões precipitadas
(ver Hingley & Unwin 2006: 64-5). Este parece
ter sido o caso do suposto vandalismo à lápide
de Longino Spadeze, um oficial de cavalaria das
tropas auxiliares que teria vindo da Trácia para
lutar na Britannia. A peça foi achada em Colchester, em 1928 (Hingley & Unwin 2006: 64),
e durante muito tempo se afirmou que partes
do relevo da lápide haviam sido destruídas pelos
seguidores de Boudica, dada a temática da imagem: o cavalo de Longino pisa sobre um bretão,
indefeso, nu. Quando achada, a lápide estava
em seis pedaços e caída de frente, e a vingança
dos rebeldes diante da imagem explicaria a fúria
liberada (Sealey 2004: 26). Todavia, os danos
causados à lápide, envolvendo uma suposta
“decapitação” da imagem de Longino, sua face
removida, não parecem ter sido causados na
antiguidade, como antes se supunha. Ao contrário, teriam sido causados pelos escavadores
braçais no momento da descoberta do artefato,
no início do séc. XX. De fato, o restante do
rosto de Longino foi achado bem no local da
retirada da lápide, em 1996 (Hingley & Unwin
2006: 66). Não está descartada a derrubada da
lápide por alguma comoção de revoltosos, mas
fica o alerta contra as conclusões precipitadas.
Ainda sobre os massacres ligados à revolta
de Boudica ou às retaliações romanas, o ataque
de Suetônio Paulino contra os habitantes de
Anglesey (Mona, para os romanos), no País
de Gales, e a subsequente execução daquelas
pessoas e dos druidas envolvidos em ações tidas
como ilícitas pelos romanos (Tácito, Ann, XIV,
30; Díon Cássio, Hist. LXII, 1-11) ficou conhecido como o “Massacre de Menai”, nome do
estreito que separa Anglesey do resto da ilha.3
O interesse da mídia em relatar e difundir tais
descobertas se abre como um novo campo de
estudo para os próprios pesquisadores, que podem se debruçar sobre o impacto causado pelo
conhecimento de aspectos da violência ou de
práticas mortuárias distintas de nosso tempo.
De grande impacto midiático, também, foi
a descoberta do “Massacre de Somerset” (Yeovil),
local do maior oppidum (hill fort) da Idade do
Ferro na Bretanha: Ham Hill. O jornal britânico The Independent publicou em seu site de notícias,4 no dia 4 de setembro de 2013, uma reportagem sobre a descoberta de dezenas de corpos,
datados dos séc. I d.C., em período romano,
cujos ossos mostravam cortes estratégicos indicativos de remoção da carne a partir de juntas do
(3) O incidente foi tema de uma reportagem no site British History Net: http://british-history.net/roman-britain/the-menaimassacre-and-boudica-52-59-a-d/. Acessado em 06/02/2014.
(4) Disponível em: http://www.independent.co.uk/news/
science/archaeology/exclusive-slaughtered-bodies-strippedof-their-flesh--a-gruesome-glimpse-of-ironage-massacre-at-ukslargest-hill-fort-8798680.html . Acessado em 06/02/2014.
33
O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.
corpo humano. A “escarnação” (ou o despostejamento), pode ter sido feita pelos nativos, em
uma associação com o culto das cabeças decepadas, por exemplo, embora as mortes em si sejam
atribuídas a algum tipo de execução em massa
feita pelos romanos contra os bretões da região
daquela fortaleza. Ao menos, assim interpreta o
arqueólogo responsável pela escavação, Marcus
Brittain, da Universidade de Cambridge.
O caso dos mais de cem crânios de Walbrook, em Londres, é também significativo
no contexto de massacres (Sealey 2004: 34).
Os achados fazem parte de uma campanha de
escavação que se intensificou em 1952, sob os
cuidados do Roman and Medieval London Excavation Council, liderados por W. F. Grimes e Audrey Williams.5 Os restos humanos, na maioria
crânios, encontrados acumulados no leito do
antigo riacho (agora subterrâneo), Walbrook, na
área que teria sido central na antiga cidade romana de Londinium, estariam associados à revolta de Boudica. Pertenciam a adultos, na maioria
dos casos, homens de meia idade. Enquanto é
comum associar esses crânios a possíveis vítimas
de Boudica, Tácito (Ann. XIV, 32-3) nos diz que
os mais jovens e capazes teriam fugido de Londinium antes do ataque, ficando para trás apenas
os velhos e incapacitados. Assim, a idade dos
indivíduos não combina com o relato clássico
(Henig, 1984: 207). Teriam, então, sido vítimas
da vingança do governador romano Suetônio
Paulino? Os crânios achados no leito do rio
estavam sem as mandíbulas, tendo a correnteza
levado, de imediato, tais partes, menos pesadas
do que o resto do crânio. Isso parece indicar
que as cabeças foram lá depositadas depois de
“escarnadas” (Sealey, 2004: 34), aproximando
os depósitos muito mais ao culto das cabeças decepadas do que às possíveis execuções romanas.
Com o que sabemos das práticas religiosas dos
bretões e dos locais favorecidos para as deposições de corpos, em corpos d’água, a presença de
água no contexto de Walbrook não pode nos
passar despercebida. Há ainda, a possibilidade
(5) Disponível em: http://walbrookdiscovery.wordpress.
com/2012/12/19/historic-walbrook-excavations-pt-1-a-life-ofgrimes/. Acessado em: 12/04/2014.
34
tafonômica de os corpos pertencerem a uma
necrópole localizada a montante, inundada
pelas águas do Walbrook, quando, então, os
crânios e outras partes dos corpos teriam sido
deslocados corrente abaixo.6 Uma nova interpretação para os crânios do Walbrook seria o da
presença de caçadores de cabeças, pessoas que se
dedicariam a recolher as cabeças de executados,
para depositá-las, na sequência, em locais tidos
como sagrados.
Paralelo ao caso de Walbrook, está a descoberta de trinta e nove crânios de adultos masculinos, com idade média entre 26 e 35 anos,
descobertos ao longo do Muro de Londres, em
1988. A biorqueóloga Rebecca Redfern indica
que mostram sinais de extrema violência, com
inúmeras cicatrizações. Isso poderia indicar que
teriam vivido em contextos sociais muito violentos, como o de gladiadores, ou de escravos,
talvez. Sabe-se que os restos humanos foram
depositados ao longo do muro na primeira
metade do séc. I d.C.. Podem ter sido vítimas
da retaliação dos romanos que, no período,
lutavam contra os invasores da região da atual
Escócia. Independentemente da forma como
morreram, a presença dos crânios alí poderia
estar associada à coleta das cabeças para algum
fim ritualístico, mais um lado obscuro do culto
das cabeças decepadas, talvez.7
O cenário é de incerteza. Mais uma vez,
um grande mistério ainda cerca tais práticas e
os motivos para as deposições dos corpos decapitados nessa região do Império, ao longo dos
séculos, desde a Idade do Ferro. As investigações
continuam e seria muito produtivo estudarmos
como a população no presente recebe e interpreta as notícias dos achados arqueológicos ligados
ao uso da violência no mundo romano. Roma
(6) Ver a notícia: http://walbrookdiscovery.wordpress.
com/2012/10/05/a-watery-grave-the-walbrook-crania-ataphonomic-explanation/. Acessado em 05/03/2014.
(7) Ver as notícias: http://theconversation.com/barbarians-gladiators-and-head-cults-roman-london-uncovered-22127 e
http://www.independent.co.uk/news/science/archaeology/
news/gladiators-or-roman-battle-trophies-stateoftheart-forensictechniques-solve-mystery-of-39-skulls-discovered-in-the-cityof-london-over-a-quarter-of-a-century-ago-9059925.html.
Acessado em 13/04/2014.
Renato Pinto
e seu poderio imperial, em especial, o militar,
ainda são fontes de fascínio, gerando séries
de TV, vídeo games, e filmes. De que maneira
os arqueólogos podem contribuir para visões
mais polissêmicas da violência do passado e
o que isso significaria para o nosso presente,
são questões em aberto, mas que parecem ser
instigantes.
PINTO, R. The interest in the violence of ‘Romanisation’. A brief archaeological study
of the first uprisings in Roman Britain. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18:
29-36, 2014.
Abstract: Few can deny that violence is a theme of great concern to the
study of our society today, and it is nothing new. Violence in the Roman World
is ‘known of old and long familiar’ to archaeologists and it may even have been
seen by some as jaded and matter-of-fact some decades ago. However, the advent of post-colonialism helped to shift the focus from binary responses – i.e.:
‘Rome ransacks provinces, provinces rebel against invaders’ – to more multifaceted and nuanced approaches. In the case of Roman Britain, the Roman use
of violent invasion, settlement and repression may have mixed with existing
native religion and funerary/mortuary practices in ways that defy simplistic
analysis. To Roman Britain archaeologists, the evidence of executions and
ritual sacrifices are not always easily distinguishable, posing some challenging
questions about the possible interactions between religious intolerance towards
the druids, the Boudican Revolt and still obscure mortuary practices such as
the severed head-cult. Also, it is worth pondering how much such interactions
affect the way we see violence in the past, compare it to present episodes, and
how the media reports archaeological finds of possible massacres to appeal to
its audiences and readership today.
Keywords: Violence – Roman Britain – Boudica – Romanisation.
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Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano:
imperialismo, religião e identidade
Marcia Severina Vasques*
VASQUES, M.S. Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo,
religião e identidade. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 37-48, 2014.
Resumo: Propomos abordar alguns conceitos comumente empregados
nos estudos arqueológicos quando consideramos a relação entre Roma e suas
províncias. Em primeiro lugar, o conceito de centro e periferia e a proposta de
ampliação desta visão dicotômica para uma visão espacial mais geral, associada
às redes de poder dos espaços territoriais. Em seguida, discutimos a aplicabilidade do termo Romanização e a sua relação com a temática da identidade. O
terceiro ponto apontado diz respeito ao uso do termo emaranhamento cultural,
proposto pelo arqueólogo alemão Stockhammer em substituição ao conceito
de hibridização. Finalizamos citando alguns exemplos da utilização do conceito
de emaranhamento e das redes de poder romanas no território egípcio, tendo
como documentação material artefatos funerários do Egito Romano.
Palavras-chave: Espaços territoriais – Imperialismo – Identidade – Egito romano.
Introdução
O
s estudos sobre imperialismo e centro
e periferia, fundamentais à análise
da relação entre Roma e suas províncias, estiveram, durante muito tempo, atrelados a uma
concepção dualista, no sentido de considerar a
existência de um centro, a sede do poder imperial, e as periferias a ele subordinadas. Atualmente, a visão dicotômica deste modelo tem se
desdobrado em outras possibilidades de análise,
que permitem a observação de um leque de
conexões ou redes de poder de um território.
Este é o caso, por exemplo, dos estudos sobre o
Império Romano.
(*) PPGH/Dep. de História/CCHLA/UFRN. <vasquesms@
gmail.com>
Quando não privilegiamos apenas a divisão
binária entre centro e periferia podemos analisar a existência de redes de poder variadas, conectadas via sistemas de transportes marítimos,
fluviais e terrestres, que interligavam cidades e
aldeias da costa ao interior dos territórios. As
trocas – de mercadorias, mas também de ideias,
hábitos e costumes – circulavam por essas redes,
essas tramas, esses emaranhados não apenas
econômicos mas, sobretudo, culturais. A partir
desta perspectiva podemos discutir também
uma temática bastante usual nos estudos culturalistas, que é a questão da identidade. Como
iremos abordar este conceito para o mundo
antigo? Como definir “identidade”? Quando
pensamos em redes de conexão podemos entender também que a identidade ou as identidades
locais estariam mais arraigadas a uma tradição
nativa ou mias propensa aos “emaranhamen37
Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.
tos”, conforme a distância em relação aos pontos conectados às redes de poder romanas. São
essas questões que discutiremos neste artigo.
Apresentaremos, inicialmente, uma introdução a respeito dos conceitos de imperialismo e
centro e periferia. Em seguida, trataremos do
uso do termo identidade ou identidades para o
mundo antigo e, por fim, discutiremos também
os termos hibridização ou hibridismo e emaranhamento. Encerraremos, por fim, com alguns
estudos de caso do Egito Romano.
Imperialismo, Romanização e Centro e
Periferia no Mundo Antigo
A utilização de conceitos como Imperialismo, Romanização e Centro e Periferia
para o Mundo Antigo, vem de longa data na
academia e tem sido, atualmente, motivo de
debate e discussão nos estudos sobre o Império
Romano, já que a aplicação desses conceitos e as
formas de análise de nossas fontes acompanham
o desenvolvimento das teorias do conhecimento
no campo das Ciências Humanas, o qual tem
tido novos desdobramentos na atualidade. Uma
publicação como a editada por Rowlands, Larsen e Kristiansen, em 1987, Centre and periphery
in the Ancient World, pela Cambridge, apresentava o tema voltado para a análise das relações
de poder díspares entre impérios e suas áreas
de dominação, suas periferias, suas colônias ou
áreas conquistadas. Esta relação desigual seja
política, econômica e, sobretudo, militar criava
relações de dependência entre áreas dominadas
ou colonizadas e suas metrópoles. Desta forma,
a preocupação principal estava voltada para a
exploração da periferia pelos centros de poder.
Dentro dos debates sobre centro e periferia
e imperialismo os estudos sobre Romanização
estavam pautados pelas questões relativas às
relações de poder entre Roma e suas províncias
e tentavam explicar a influência que a metrópole, Roma, centro do Império, exercia sobre áreas
periféricas. Esta dominação poderia ser comprovada pela presença de edifícios e construções
romanas como fóruns, anfiteatros, estradas,
aquedutos etc., os quais seriam exemplos de que
os nativos estavam se tornando “romanizados”.
38
Em outras palavras, o conceito de Romanização
estava muito próximo ao de aculturação, no sentido de que as populações indígenas adotariam
o modo de vida romano, mais civilizado.
Originalmente, o uso do termo Romanização foi influenciado pela política britânica
(um outro Império) de dominação mundial no
decorrer dos séculos XIX e XX e vinha embutido da ideia de que os romanos civilizaram os
bárbaros da mesma maneira que os britânicos
então faziam em relação aos povos primitivos
do planeta. Um segundo momento adveio com
o decréscimo do poder britânico, quando se
passou a considerar que não houve propriamente uma imposição do modo de vida romano nas
províncias e sim uma adoção deste pelas elites
locais em um processo de aculturação. Finalmente, o terceiro modelo de Romanização veio
romper com a ideia de certa forma “positiva”
que o termo até então preconizava. Os estudos
de pós-colonialismo postulavam que existiram
várias respostas ao domínio colonial, que a simples dicotomia entre “nativos” e “colonizadores”
não correspondia de fato à realidade, sendo que
o papel ativo da periferia em relação ao centro
passou a ser destacado (Hingley 2010).
David Mattingly, por exemplo, é um dos
autores que se coloca, atualmente, contra a utilização deste conceito, por considerar que não
havia uma política romana deliberada de Romanização. No entanto, o mesmo autor, no seu
livro Imperialism, power, and identity. Experiencing
the Roman Empire (2011), defende a continuação
do uso do conceito de Imperialismo. Segundo
ele (2011: 22), império “é uma manifestação
geopolítica das relações de controle impostas
por um estado sobre a soberania de outros”. O
Império geralmente combina um centro, território metropolitano, e as periferias, os territórios
periféricos multiétnicos ou multinacionais.
Acreditamos, como Mattingly que, em muitos aspectos, quando tratamos de um Império e
sua ação imperialista sobre as áreas colonizadas,
este modelo pode ser utilizado, com as devidas
precauções, em relação às especificidades locais.
Um modelo teórico mais abrangente seria, neste
caso, calibrado com a análise de estudos de caso
que podem, ou não, comprovar a hipótese central da pesquisa. Quando observamos o Império
Marcia Severina Vasques
na longa duração podemos perceber as mudanças em termos diacrônicos. Por outro lado, as
abordagens sincrônicas permitem a percepção
das relações sociais no âmbito local ou regional.
Um critério básico para analisar o Imperialismo seria, portanto, explorar as redes de
poder que o sustentam. Este seria o elo que
une todas as épocas e locais do Império, já que
a dominação de uns pelos outros é uma característica premente em toda sociedade humana,
mas somente um Império atua neste sentido
em larga escala (Mattingly 2011: 7). A consideração de que não existe um Imperialismo e sim
Imperialismos vem ao encontro às novas discussões decorrentes dos estudos pós-coloniais. A
preocupação com as respostas das populações
locais ao Império foi um fenômeno que se deu,
sobretudo, após o processo de libertação dos
países africanos e asiáticos do jugo europeu, no
decorrer do século XX. Nos estudos a respeito
do Império Romano e suas províncias notamos
uma nova abordagem a respeito do uso do
conceito de Romanização ou mesmo, em alguns
casos, o seu abandono.
De certo modo, as ideias de David Mattingly assemelham-se àquelas defendidas por Louise Revell (2009), quando propõe uma análise
do aspecto global combinado às especificidades
da identidade local. Revell aplica a teoria de
Antony Giddens ao buscar conciliar a análise do
local, da questão do indivíduo, à totalidade das
estruturas sociais. Enquanto a preocupação com
o indivíduo, com o agente, é uma prerrogativa
da Arqueologia Pós-processual quando considera as identidades permeadas pelas relações de
poder, envolvidas em um discurso que envolve,
por exemplo, as questões de status social, a
análise das estruturas sociais permite uma visão
do conjunto da sociedade.
Identidade ou identidades
O tema “identidade” tem sido motivo de
debate na academia nos últimos tempos, estando presente com frequência nas teses e dissertações desenvolvidas nas universidades dentro
e fora do país. Sua atualidade advém da crise
mundial que vivemos decorrente de um mundo
globalizado pós-Guerra Fria, quando a extinção
da União Soviética permitiu o surgimento de
inúmeras identidades locais com o fim da bipolaridade entre soviéticos e norte-americanos.
Sabemos que as preocupações dos historiadores
caminham com a sua época e com a História
Antiga nunca foi diferente.
A partir dos anos de 1970 teve início uma
nova perspectiva de abordagem para os estudos
históricos com as chamadas teorias pós-coloniais. Com a descolonização da África e da Ásia,
a Europa deixou de ser o centro do mundo e a
ideia de Ocidente entrou em crise. De Michel
Foucault a Edward Said vemos a crítica contundente ao discurso estabelecido, é chegada, então
a época da “desconstrução”. Os povos colonizados passaram a ter voz, assim como os grupos
antes excluídos da história, como as mulheres e
os homossexuais.
Na década de 1980 a Nova História Cultural, de viés pós-moderno, colocou o foco dos
estudos históricos na esfera cultural e simbólica.
A chamada “virada cultural” (Cultural Turn)
acarretou modificações importantes como a
discussão do conceito de identidade. O antigo
conceito de classe da historiografia marxista foi
substituído por aquele de identidade (Guarinello 2013: 40). As reivindicações dos grupos
não se fazem mais pelo conceito de classe (a luta
de classe) e sim por organizações de minorias
que reivindicam maior participação política,
além de direitos civis.
A definição do que vem a ser identidade foi
(e continua sendo) motivo de amplos debates na
academia. Os essencialistas ou primordialistas
reivindicam que a identidade étnica é natural,
que advém de uma herança biológica comum,
que determinado grupo compartilha entre
si, além da língua e de costumes. Outros, os
instrumentalistas, acreditam que a ênfase deve
ser dada às necessidades que o grupo tem, em
um determinado momento, de reivindicar uma
dada identidade. Esse é um debate que tem
acontecido entre os teóricos da etnicidade, no
campo da antropologia, e que tem se desdobrado também nos estudos históricos.
A formação da identidade se dá pelo embate de um grupo contra outro, ou seja, pelo
critério da alteridade. Essas ideias aparecem em
39
Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.
obras de importantes helenistas como Jonathan
Hall (1997) e François Hartog (1999). Também
os historiadores da Roma Antiga, e arqueólogos,
têm se dedicado a este estudo. Os critérios do
que era ser romano e não romano estão sendo
redefinidos ou, melhor dizendo, colocados
em xeque. Richard Hingley, David Mattingly e
Louise Revell, por exemplo, têm se dedicado a
essa discussão. O que era ser grego ou bárbaro?
Romano ou não romano no mundo antigo? As
mesmas questões que debatemos atualmente em
um mundo globalizado servem para questionarmos a Antiguidade.
Segundo Mattingly (2011: 206), a identidade está relacionada com a questão do poder na
sociedade romana e a criação das identidades
provinciais não pode ser tomada isoladamente
da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados. A etnicidade
seria uma forma de identidade que a sociedade
constrói (Jones apud Mattingly 2011: 206).
Consideramos aqui a identidade étnica como
sendo assumida em casos de dominação colonial como estratégia de manutenção de poder
e de status social. No entanto, como próprio
Mattingly (2011: 210) sugere, a etnicidade não
era uma constante no tempo e no espaço, pois
nem sempre a marcação de identidade era
necessária.
Mattingly prefere usar o termo “identidade discrepante”, de autoria de Edward Said,
para discorrer a respeito da heterogeneidade
de respostas a Roma. O termo “discrepante”
indica “discordância”, “desarmonia”. Na
verdade, as sociedades coloniais poderiam,
conforme o contexto, demonstrar similaridades ou discordâncias culturais em relação
ao modelo imperial romano (Mattingly 2011:
213). A identidade pode ser múltipla e redefinida a cada momento. Mattingly não considera
que a identidade possa ser considerada apenas
pelo viés da resistência ao colonizador (modelo pós-colonial), pois acredita que existiam
várias respostas em relação ao poder romano.
Sua “identidade discrepante” ou “identidade
da diferença” não indica, segundo ele, necessariamente um confronto entre “romanos” e
“nativos”, duas categorias, segundo ele, não
aplicáveis ao estudo dos contextos coloniais
40
Emaranhamentos
Uma outra possibilidade de análise nos é
colocada por Philipp Stockhammer em Conceptualizing Cultural Hybridization: a transdisciplinary approach (2012), publicação resultado de
um workshop organizado pela Universidade de
Heidelberg. Nesta obra Stockhammer (2012b:
47-56) discute sobre a validade do termo hibridização e a possibilidade de substituí-lo por outro
termo: emaranhamento (entanglement). Segundo
este autor (2012: 1), o conceito de hibridização
tem sido usado nos estudos pós-coloniais, mas
ainda permanece não definido totalmente. O
termo é utilizado para caracterizar fenômenos
que são facilmente detectados como borderline,
nas “margens” ou “fronteiras”, mas que não são
facilmente explicáveis.
Como definir “hibridização”? Estudiosos
do campo da literatura, sobretudo Edward Said,
Gayatri Spivak e Homi Bhabha, se preocuparam
com problemas de representar o “outro” nos
estudos literários e desenvolveram um renovado
interesse pelo hibridismo. Eles argumentaram
que desde que nenhuma cultura tem permanecido intocável pela circulação global de pessoas, artefatos, signos e informação, a cultura é
essencialmente híbrida constituindo um local
de conflito entre representações de identidade e
diferença (Ackermann 2012: 12). As teorias pós-coloniais estão mais interessadas nas transições
e rupturas do que nas origens e homogeneidade, mais afeitas a procurar a diferença do que
a identidade. Este foco de estudo é resultado
das análises de desconstrução, mas também da
biografia desses autores. Said era palestino que
viveu a maior parte da vida em Nova Iorque,
Spivak se mudou de Calcutá para Nova Iorque
e Bhabha de Bombaim para Oxford e, depois,
Chicago.
As teorias pós-coloniais baseiam-se nas
ideias desenvolvidas pelo linguista e filósofo
Michail Bakhtin (1895-1975), que usou o termo
“hibridismo” no sentido filosófico, a fim de
descrever sua teoria particular. Bakhtin apresenta duas ideias para hibridismo: o primeiro é o
hibridismo intencional e, o segundo, o orgânico. A hibridização “orgânica” refere-se ao não
intencional, não consciente, à mistura e fusão
Marcia Severina Vasques
da vida diária de diversos elementos culturais,
como, por exemplo, na linguagem. Isto pode
ser culturalmente produtivo, porque a hibridização não consciente tem potenciais para novas
visões de mundo, com novas formas internas
para perceber o mundo em palavras. Aplicando
esta ideia para a cultura e a sociedade, em geral,
podemos dizer que apesar da ilusão da fronteira,
a cultura está envolvida historicamente através
de empréstimos não reflexivos, apropriações
miméticas, trocas e invenções.
Contrariamente à visão anterior (de hibridização “orgânica”), a hibridização “intencional” é
o resultado de um contraste consciente e oposições em um único discurso, quando uma voz é
capaz de desmascarar o discurso da autoridade.
Na hibridização intencional os dois pontos
de vistas não estão misturados, mas estão um
contra o outro dialogicamente.
Enquanto na hibridização orgânica a mistura emerge e se funde em uma nova linguagem
e visão de mundo, na hibridização intencional
estão reunidos diversos pontos de vista contra
outros em uma estrutura conflituosa. Isto seria
a dupla forma de hibridização postulada por
Bakhtin. Bhabha utilizou o conceito de Bakhtin
de “hibridização intencional” na sua interpretação dos textos coloniais (Ackermann 2012: 12).
Em relação à arqueologia e ao estudo da
cultura material como poderemos lidar com esta
questão da hibridização? As relações de poder
precisam ser levadas em consideração, pois normalmente alguns indivíduos participam mais
do processo do que outros. Também alguns
locais são mais propícios às trocas culturais do
que outros como, por exemplo, as metrópoles,
o porto e a fronteira. Grandes cidades como
Nova Iorque, Londres ou São Paulo constituem
cruzamentos de comércio e cultura. É a presença de um grande número de habitantes que faz
com que a metrópole seja um importante local
para trocas culturais. As fronteiras são outras
áreas para troca e hibridização. Por exemplo, a
fronteira entre o Islã e cristianismo na Europa
Oriental, a Espanha medieval e a relação com o
mundo islâmico (Ackermann 2012: 19-20).
Os estudos de contextos de globalização
não podem vir separados da preocupação com o
local. Tanto a homogeneização quanto a hetero-
geneidade são simultâneas e complementares,
assim como as apropriações e a resistência.
Devemos sempre analisar o global e o local.
Stockhammer (2012b: 43) acredita que
existe um hiato entre a discussão sobre os fenômenos de hibridização cultural na antropologia
e as abordagens metodológicas da arqueologia e
suas interpretações. O autor chama o processo
de hibridização de processo de emaranhamento
(processes of entanglement), que existe em estágios
distintos e cada estágio pode ser percebido na
cultura material. A palavra “híbrido” teria uma
conotação biológica na origem enquanto “hibridização” está atrelada ao contexto político nos
estudos pós-coloniais. Stockhammer defende,
portanto, o uso do termo emaranhamento no
lugar de “hibridização cultural”. Este seria a
versão despolitizada do conceito pós-colonial.
Qual a metodologia a ser usada, neste
sentido, para a cultura material? Qual o método
adequado para verificarmos o processo de apropriação que emerge da relação dialética entre
aceitação e resistência? A cultura material pode
sofrer um processo de “emaranhamento” ou
ter apenas o seu uso, ou seja, as práticas sociais
emaranhadas.
Para definirmos se um objeto é “emaranhado”, precisamos criar, elaborar um modelo
do que é uma entidade, no sentido de cultura
arqueológica. Por exemplo, definir o que é um
objeto micênico, egípcio, cananeu etc. A definição de tais entidades sempre coloca o risco
de cairmos na ideia de essencialismo e pureza.
Segundo Stockhammer (2012b: 49), estamos
considerando-as do ponto de vista ético (externo), do pesquisador. Então, estas entidades são
modelos mentais, usados como modelo analítico.
A percepção ética da diferença significa
que, provavelmente, no passado os indivíduos também a perceberam. Este momento do
encontro, da construção e percepção da alteridade e da diferença, é o impulso central que
tem lugar nos espaços liminares, que o autor
visualiza como situações e espaços que não estão
limitados a uma área geográfica. Podemos ter o
que Stockhammer chama de processo de “emaranhamento relacional” e o “emaranhamento
material” (2012b: 50). No primeiro caso, um
41
Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.
objeto estrangeiro pode ser usado em outra
cultura, sendo ressignificado. Ele não mudou, o
que foi alterada foi a prática social em relação a
ele. Não é este um procedimento, uma escolha
individual apenas, pois depende das regras e
rituais da sociedade. Essas regras e rituais foram
criados para negociar com a alteridade e o novo.
Stockhammer (2012b: 54-55) cita o exemplo da
cerâmica egeia (do Período do Bronze) encontrada no Levante. Objetos utilizados em banquete
foram utilizados de outra maneira. Por exemplo,
os vasilhames originalmente fabricados para
conter vinho foram usados no armazenamento
de cerveja.
No processo de “emaranhamento material”
temos o desenvolvimento dos objetos emaranhados, que está associado ao processo de
“criação material”. Um objeto é criado, novo,
combinando o familiar com o estrangeiro. Ele
não é o resultado de uma continuidade local,
mas das trocas com o outro. Mesmo que um
objeto tenha perdido seu contexto de origem,
e, portanto, perdemos a informação da prática
social, ele pode ser identificado como um objeto
emaranhado, uma evidência de emaranhamento
na arqueologia. É importante sabermos qual
o processo final de apropriação e criação. Esse
processo pode resultar em contínuas reinterpretações, incorporações, manipulações e criações.
Caso de estudo: Egito Romano
Onde se situariam, então, os estudos sobre
o Egito Romano neste contexto? Na verdade, a
historiografia do Egito Romano mais tradicional o considerava como algo à parte no mundo
romano. Os estudos de Romanização se concentraram, sobretudo, na análise das províncias
ocidentais do Império então consideradas mais
“atrasadas” em relação ao Oriente helenizado.
Dois conceitos pejorativos dominavam, então,
esta historiografia oriunda do ideal civilizatório
do século XIX. Em primeiro lugar, a ideia de
barbárie associada ao mundo celta e germânico
e a consideração de que o Oriente Próximo teria
sido helenizado após a conquista de Alexandre
e a formação de seu império no período helenístico. Hoje sabemos que o Egito Romano não
42
foi uma exceção no mundo romano. Mesmo
não utilizando o conceito de Romanização, por
seu caráter reducionista, um aspecto importante
deve ser realçado em relação ao Egito e este diz
respeito às ações preconizadas pelos imperadores romanos para controlar a província e tentar
integrá-la à política imperial.
As diversas respostas a Roma devem ser
testadas no âmbito local. No caso do Egito
Romano dependendo da localidade teremos
determinadas atitudes em relação à presença de
elementos culturais de origem grega e romana.
Quanto mais próximos do poder central mais
direta é a influência: em primeiro lugar de
Alexandria e evidentemente do Delta egípcio;
em segundo lugar, do Fayum e, em terceiro, do
Médio Egito. Estamos considerando que houve
adaptações da cultura autóctone em resposta à
ação romana. Trocas e reciprocidades culturais
e mesmo atitudes de resistência podem ser
observadas nos aspectos da cultura material por
todo o Egito. No entanto, acreditamos que as
redes de conexão ao poder central devam ser
consideradas. Assim, ao mesmo tempo em que
analisamos em nossa abordagem a capacidade
de atuação do sujeito e de suas escolhas, defendemos que, no caso de sistemas imperiais, há
uma limitação nesta escolha. Então, é preciso
balancear o conceito de agência com um exame
mais detalhado das influências estruturais.
Neste sentido, no contexto colonial, precisamos estar atentos à questão das relações de poder conforme estipulado no modelo de análise
de Mattingly. O conceito de emaranhamento de
Stockhammer nos é útil para refletirmos sobre
os lugares mais propícios ao contato e às trocas
culturais. Assim, a análise do espaço e das redes
de conexão no território egípcio é essencial para
nossa proposta de pesquisa.
Podemos considerar o Egito Romano como
dividido em áreas que servem como redes de
conexão. Segundo o modelo teórico utilizado,
as áreas mais propícias ao contato e às trocas
culturais são aquelas situadas próximas ao Mar
Mediterrâneo, na costa marítima, portanto, na
região do Delta egípcio. Evidentemente, que
se tratando do período ptolomaico e romano a
cidade de Alexandria tem um destaque especial
sendo a grande metrópole, a pólis por excelência.
Marcia Severina Vasques
No entanto, exemplificaremos
aqui com exemplares da cultura
material de cunho funerário,
de quatro áreas do Egito: Delta
(Baixo Egito), Fayum, Médio
Egito e Alto Egito. Veremos que
a religião egípcia, ainda que tradicional, sofreu no âmbito iconográfico adaptações que, segundo
nossa hipótese, se relaciona com
as influências recebidas por meio
das redes territoriais estabelecidas e, em certos casos, mantidas
pelo poder romano instituído em
Alexandria.
O Delta evidentemente mais
próximo ao Mar Mediterrâneo
era, essencialmente, mais propício
aos emaranhamentos do que outras áreas do Egito. Além da proximidade da costa marítima, era no
Delta que se situava Alexandria,
a sede do poder imperial romano
no Egito, embora fosse considerada como estando “ao lado” do
Egito e não propriamente fazendo parte do mesmo. As estelas
funerárias de Terenuthis (Kom
Abu Billo), cidade do Delta, são
interessantes como exemplos de
emaranhamento material (Fig. 1).
Fig. 1. Estela funerária. Terenuthis. Walker, S. (Ed.). Ancient faces: mummy
O tipo de representação mescla
portraits from Roman Egypt. The Metropolitan Museum of Art, New York,
elementos egípcios tradicionais,
Routledge, 2000, p. 142, fig. 95.
como a figura do deus Anúbis,
com elementos próprios da região
do Nilo. No período ptolomaico o Fayum foi
mediterrânica, como o uso da kliné na qual a
uma importante área de colonização macedôfigura feminina está reclinada. Este tipo de icononica e grega. A presença de habitantes descengrafia da estela se assemelha às representações de
dentes de gregos e macedônicos foi um fator
sepultamentos na necrópole de Kom el-Chugafa,
importante na época romana. Por exemplo, para
em Alexandria, que data dos séculos I-II d.C. Na
fundar a cidade de Antinoópolis, no Médio
Grande Catacumba (nicho central), por exemplo,
Egito, o imperador Adriano levou como colohá a representação de um sarcófago tipicamente
nizadores membros de famílias de status étnico
romano, com a iconografia de uma figura femini“grego” que habitavam o Fayum.
na reclinada (Venit 2002: 135).
Existem vários exemplos de emaranhamenA região do Fayum tem seu nome derivado
to da cultura material do Fayum. Talvez os mais
do copta Pa-youm, que significa “o mar” ou
conhecidos sejam os retratos do Fayum (Fig.
“o lago”, nome dado no Novo Império a uma
2), pintados sobre madeira ou tela de linho e
depressão ocupada por um lago alimentado pelo
colocados no lugar da máscara funerária nas
Bahr Yussuf (Canal de José), um braço natural
múmias da época romana.
43
Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.
e Antinoópolis. Semelhanças com o Fayum podem ser apontadas em relação, por exemplo, aos
modelos dos retratos funerários como é o caso
do retrato de mulher de Antinoópolis (Fig. 3).
Na Fig. 4 observamos uma máscara de gesso
de Tuna el-Gebel, necrópole de Hermópolis
Magna. São muitos os tipos de máscaras dessa
região, mas alguns modelos assemelham-se àqueles produzidos no Alto Egito. O cabelo típico
egípcio, em tranças, é recorrente entre várias
máscaras femininas da região e associam a figura
feminina às deusas Nut, Háthor e Ísis. Portanto, quando consideramos as máscaras de gesso
notamos as influências de Meir e Akhmin (Alto
Egito), que serviam como ponte intermediária
com a região da Tebaida, mais ao sul.
Fig. 2. Retrato de oficial romano. Fayum. Walker, S.
(Ed.). Ancient faces: mummy portraits from Roman Egypt.
The Metropolitan Museum of Art, New York, Routledge, 2000, p. 72, fig. 31.
Ao sul do Fayum começava o Médio Egito,
região que teve um papel importante no período romano, por estar em um local estratégico
intermediário entre o Delta e o Egito meridional. Possuía ligações mais estreitas com o Fayum
e também com o Alto Egito. Influências destes
emaranhamentos podem ser observadas na
cultura material funerária de cidades como Hermópolis Magna e sua necrópole (Tuna el-Gebel)
44
Fig. 3. Retrato de mulher. Antinoópolis. Walker, S.
(Ed.). Ancient faces: mummy portraits from Roman Egypt.
The Metropolitan Museum of Art, New York, Routledge, 2000, p. 89, fig. 49.
Marcia Severina Vasques
Fig. 4. Máscara feminina de gesso. Necrópole de Tuna
el-Gebel. Grimm, G. Die Römischen Mumienmasken aus
Ägypten. Deutsches Archäologisches Institut. Wiesbaden, Franz Steiner Verlag GMBH, 1974, pr. 66, fig. 1.
No Alto Egito a presença de elementos egípcios tradicionais se faz constante, ainda que as
influências culturais provenientes da região mediterrânica também apareçam, embora de forma
mais atenuada. O material funerário da família
Sóter, um oficial romano que administrava a Tebaida no decorrer do século II d.C. é um exemplo disso (Fig. 5). Tanto as máscaras funerárias
feitas de cartonagem quanto as representações
dos caixões apresentam as figuras femininas de
maneira semelhante. A figura da deusa Nut no
fundo do caixão remonta à tradição faraônica
revitalizada com acessórios próprios do período
romano como é o caso, por exemplo, da representação do bracelete em forma de serpente,
artefato comum não somente no Egito mas em
todo o Mediterrâneo Oriental.
Fig. 5. Deusa Nut. Parte interna do caixão de madeira
de Petamenophis. Família Sóter. Tebas Ocidental. Séc.
II d.C. Riggs, Ch. The beautiful burial in Roman Egypt: art,
identity, and funerary religion. Oxford, Oxford University
Press, 2005, p. 192, fig. 92.
45
Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.
Considerações finais
Neste artigo propomos apresentar, de forma
sucinta, determinadas discussões acadêmicas
a respeito do uso de conceitos utilizados pelos
arqueólogos que estudam o Império Romano e
se dedicam a analisar a relação de Roma com as
suas províncias em seus mais variados aspectos,
sejam econômicos, sociais, religiosos e, sobretudo, culturais.
O debate sobre centro e periferia para o
mundo romano, por exemplo, tem ultimamente
se ampliado para considerarmos a existência de
redes de conexão territoriais que não implicam,
necessariamente, a relação entre um centro
(Roma) e as províncias e sim priorizam as interconectividades entre variados centros e áreas
periféricas que, por sua vez, a outras se associam
em redes. Também o uso do termo Romanização
tem sido muito discutido desde que os estudos
pós-coloniais trouxeram a ideia de resistência ao
poder estabelecido, sendo que os colonizados não
puderam mais ser considerados como passivos
e aculturados. A consideração de que existiram
várias respostas ao Império Romano predomina
atualmente ainda que a questão das relações de
poder devam ser consideradas quando tratamos
de Impérios e ações imperialistas. Estudos como
os desenvolvidos por David Mattingly (2011), por
exemplo, tentam produzir uma mediação entre
uma abordagem geral e, outra local, a fim de não
perder a noção global da sociedade sem deixar de
averiguar o âmbito regional.
O uso do termo Romanização traz à tona
a discussão sobre o conceito de identidade,
que envolve considerar o que era ser romano
no mundo antigo, a fim de estabelecermos a
separação entre romanos e não romanos ou
entre romanos e nativos (habitantes das províncias ocupadas). Como ficou difícil estabelecer
critérios de identidade não cabe mais atualmente falarmos que alguém foi “romanizado”.
Houve apropriações de elementos romanos
pelas diversas culturas em contato com Roma
e a dicotomia entre romanos (colonizadores)
e nativos (colonizados) se tornou reducionista
como critério de análise da relação entre Roma
e as suas províncias.
46
Um conceito que vem sendo aplicado à
arqueologia é o de emaranhamento cultural, que
pode ser utilizado também na análise de casos
de colonização, embora seu uso seja mais amplo
e não esteja restrito aos contatos decorrentes de
relações de poder. Emaranhamento foi proposto
pelo arqueólogo alemão Stokhammer (2012) no
lugar de hibridismo cultural com o objetivo de
se desvincular da teoria pós-colonial, para a qual
hibridismo tem uma conotação política, de oposição entre colonizadores e colonizados, sendo
a ênfase na questão da diferença e do conflito
entre os grupos envolvidos. Segundo este autor,
podemos considerar, em relação aos dados arqueológicos, a existência de um emaranhamento
relacional e outro material. O relacional é quando em contextos de contatos culturais um objeto,
por exemplo, de uma dada cultura é utilizado de
outra maneira, com outros propósitos, por outra
cultura. Desta forma, houve uma apropriação
de um elemento material externo, que recebeu
novas ressignificações de uso. Já o emaranhamento material é quando temos a fabricação de
um novo objeto, que reúne elementos de uma
ou mais culturas sendo resultado, portanto, do
contato cultural. Enquanto que, para o primeiro
caso, precisamos do contexto arqueológico para
sabermos como o objeto foi utilizado, no segundo, as próprias características físicas do objeto
nos informam sobre o emaranhamento.
Ao refletirmos sobre os conceitos expostos
acima, esboçamos no estudo de caso uma análise
de elementos da cultura material do Egito Romano. Os exemplares materiais escolhidos dizem
respeito a artefatos funerários, portanto, da esfera
religiosa, que normalmente são considerados
como pouco afeitos à mudança. Acreditamos que
uma abordagem metodológica que considere as
redes de conexão de poder romanas no Egito nos
ajuda a esclarecer as trocas e influências culturais
que encontramos no território egípcio durante
o domínio romano e que são reproduzidas na
documentação material. O objetivo aqui não foi
expor uma análise completa dos artefatos selecionados, uma tarefa por si só muito complexa,
mas sim apresentar algumas das discussões atuais
sobre os conceitos e as formas de abordagem que
podem ser aplicados aos estudos sobre o Império
Romano, tendo o Egito como exemplificação.
Marcia Severina Vasques
VASQUES, M.S. Territorial spaces and networks of power in Roman Egypt: imperialism, religion and identity. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 37-48, 2014.
Abstract: We propose to approach some common concepts in archaeological studies when we consider the relationship between Rome and its provinces.
Firstly, the concept of center and periphery and the proposal to expand this
dichotomy to a more general spatial vision, combined with the power networks
of territorial spaces. Then, we discuss the applicability of the term Romanization and its relation to the theme of identity. The third point concerns the
use of the term cultural entanglement, proposed by the German archaeologist
Stockhammer replacing the concept of hybridization. We end by quoting some
examples of the use of the concept of entanglement and networks of Roman
power in Egyptian territory, using the burial artifacts from Roman Egypt.
Keywords: Territorial spaces – Imperialism – Identity – Roman Egypt.
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A província da Lusitania: sistema econômico global e local
Norma Musco Mendes*
MENDES, N.M. A província da Lusitania: sistema econômico global e local. R. Museu
Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 49-58, 2014.
Resumo: O objetivo da presente intervenção é divulgar os projetos de
pesquisa individuais que integram o projeto coletivo de investigação histórica,
intitulado: “Império: teoria e prática imperialista romana”, sob minha orientação e em realização no Laboratório de História Antiga/ Instituto de História
da Universidade do Rio de Janeiro. Nosso segundo objetivo é refletir sobre a
aplicação da New Institutional Economics para o estudo da economia do Império
Romano, através das pesquisas em andamento sobre a província da Lusitania.
Palavras-chave: Império Romano – Lusitânia – Economia – New Institutional Economics.
Considero este evento o local apropriado
para divulgar e debater sobre os pressupostos
e hipóteses de trabalho do Projeto Coletivo de
Pesquisa, cadastrado no Diretório dos Grupos
de Pesquisa do CNPq, intitulado: “Império: teoria e prática imperialista Romana”, sob minha
orientação, no Laboratório de História Antiga
e no Programa de Pós-Graduação em História
Comparada, ambos do Instituto de História da
UFRJ. O projeto é dividido em subprojetos que
correspondem a um conjunto de problemas
sobre a experiência imperialista de Roma na
Antiguidade. Os projetos individuais de pesquisa
dos “experimentadores” do Império Romano são
norteados pelos mesmos pressupostos, a saber:
1- Afirmar que a formação, manutenção,
reprodução e colapso do Império Romano de-
(*) Laboratório de História Antiga. Programa de Pós-Graduação em História Comparada. Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. <[email protected]>
pendeu de uma dinâmica marcada pela conexão
entre cultura e poder;
2- Pressupor que as tensões causadas pelas
guerras de conquista e o impacto da presença
e posteriormente da colonização modificou as
comunidades subjugadas, dando início a variadas formas de interação social e cultural entre
grupos de pessoas, cuja ação possibilitou a constante recriação e definição do Império Romano
e do ideal de ser romano;
3- Repensar o conceito de romanização
como algo flexível o bastante para abarcar as
distintas formas de experimentação da presença
romana pelas comunidades conquistadas, ou
seja, devemos pensar que ser romano representa
algo repleto de possibilidades, ou seja, um discurso que pode ter várias interpretações (Revell
2009);
4- Utilizar este termo diante do seu valor
paradigmático para expressar a construção de
um império de proporções mundiais e extensa
durabilidade;
49
A província da Lusitania: sistema econômico global e local.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.
5- Olhar o Império Romano como uma
experiência histórica e específica de globalização
cultural. Porém, ampliando as conotações de
Hingley (2005), entender globalização como
processos infinitos de contradições, no sentido
de que a sua aplicação ao Império Romano é
uma forma de ressaltar o caráter ambíguo do
Império Romano; e
6- Entender por globalização os processos
infinitos de contradições dinâmicas e heterogêneas que caracterizaram a lógica cultural inclusiva das experiências colonialista e imperialista
romanas, possibilitando a criação de novas
e híbridas identidades locais, um fenômeno
conhecido pelo termo globalização (Gardner
2013: 1-25).
Aplicação destes conceitos não como uma
analogia entre o passado e o presente, mas como
um conceito heurístico que nos ajuda a abarcar
em uma mesma estrutura ambos os fenômenos:
um império como um todo e a experiência local
e a fazer comparações sobre temas recorrentes,
tais como: transformações na velocidade do ritmo dos meios de comunicação para as mercadorias, informações e pessoas; formação de novas
redes de interações; crescimento do consumo
e da economia; formação de novas identidades
híbridas marcadas pela interação entre padrões
globais e locais.
No entanto, conforme afirma Nevile Morley (2007: 90) é preciso considerar os limites da
globalização, observando os parâmetros próprios do mundo antigo em relação à tecnologia,
à capacidade de fluxo de informações, ao desenvolvimento da contabilidade, à previsão das
condições climáticas que sem dúvida influenciavam nas escolhas e decisões.
A nossa atividade de pesquisa nos últimos
anos tem sido caracterizada pelo desenvolvimento de estudos periféricos e interdisciplinares,
marcados principalmente pelo diálogo entre a
História e a Arqueologia e pela aplicação das
nossas hipóteses de trabalho, particularmente às
províncias da Lusitânia e, agora à Terraconense,
graças ao intercâmbio mantido há vários anos
com os pesquisadores vinculados ao Centro de
Estudos das Universidades de Coimbra e Porto
(CEAUCP), Universidade de Lisboa e Universidade Autónoma do Minho.
50
O objeto central de estudo do Projeto Coletivo de Pesquisa é analisar o valor da inserção
da Lusitânia e da Tarraconense no sistema de
economia imperial romano, preocupando-nos
em criar argumentos explicativos para analisar
de forma independente a existência numa sociedade agrária de ambos os fenômeno: império
e mercado, sem recorrer a comparações com a
economia capitalista (Bang 2002: 5).
Somos conscientes de que nas últimas décadas os estudos privilegiam temas relacionados
com a história cultural, principalmente, voltados para a questão das identidades. No entanto, se considerarmos que o estudo do imperialismo romano tem se voltado atualmente para o
estudo dos processos de interação e construção
da convivência no âmbito de uma estrutura
imperial, a análise do comportamento econômico das comunidades subjugadas também apresenta grande valor para a pesquisa histórica. Isto
porque compartilhamos com Ciro Flamarion
(2011: 15-36) no sentido de que o uso do termo
economia para a Antiguidade deve significar “as
realidades e processos que foram os que mais
afetaram de algum modo (mesmo se em graus
extremamente variáveis) – do ponto de vista
das atividades de produção e troca, da taxação,
do acesso a produtos e técnicas, da liberdade
pessoal ou de sua perda, etc. –, as populações
variadas englobadas no vasto Império Romano,
ou mesmo, eventualmente, fora dele”. Trata-se,
portanto, de atividades que são mantidas e reproduzidas pela vivência cotidiana dos diversos
tipos de romanos e não romanos existentes nas
comunidades provinciais. Ademais, deve ser ressaltado que o estudo da história econômica do
mundo romano teve um grande desenvolvimento a partir da segunda metade do século XX.
O surgimento de metodologias interdisciplinares possibilitou novas formas de abordagens
para o estudo da economia romana que se preocuparam em ir além dos debates entre primitivistas e modernistas. A tendência atual é ultrapassar
o debate sobre estas correntes historiográficas e se
concentrar nas especificidades dos desempenhos
econômicos das distintas regiões que compunham o Império Romano sem a preocupação
comparativa com o mundo capitalista. Estruturam-se, portanto, tipos de abordagens integradas
Norma Musco Mendes
que combinam evidências, teorias e comparações
para a construção de modelos críveis para o
desempenho das economias no mundo romano.
Tais abordagens valorizam a interdisciplinaridade
e o diálogo entre a História e as demais Ciências
Sociais, principalmente com a Arqueologia e
apresentam um caráter intertextual baseado em
dados provenientes de documentação textual e
de vestígios materiais – mercadorias consumidas,
contentores, técnicas, restos de assentamentos,
evidências de uso da terra, materiais de construção, ossos humanos, restos de animais e plantas,
moedas, naufrágios, traços de poluição do ar
preservado no gelo e em outros tipos de sedimentos –, os quais são cada vez mais amplos em
decorrência do desenvolvimento metodológico
advindo da ampliação do diálogo entre a Arqueologia (Greene 1986) e as Ciências Naturais.
Estas análises se afastam ou reinterpretam os
pressupostos básicos sobre o caráter da economia
greco-romana que dominou os debates, desde
meados do século passado e, se distanciam da
tendência historiográfica de se privilegiar temas
relacionados com a história cultural (Hopkins
2002; Bang 2006; Sheidel 2010). Por outro lado,
criam novas agendas de estudo sobre a procedência de mercadorias ou pessoas, extração mineral,
bem estar humano e sobre o contexto ecológico
que interagia com o comportamento econômico
das regiões mediterrâneas (Purcell 2000).
Todas estas questões justificam as problemáticas de pesquisa que apresentaremos a seguir,
visto que os nossos estudos complementares
atestam que o Império Romano, considerando-se a duração e tamanho, oferece uma das
melhores oportunidades para se estudar o desenvolvimento econômico num contexto de um
império agrário, visto que apresenta muitas de
suas características, tais como: produção agrícola
era a sua principal fonte de renda; a base de sustentação do Estado era o sistema tributário; existência de rígido sistema de taxação ou extração
de excedente; o centro da atenção do sistema
econômico é examinar a natureza do relacionamento entre sistema tributário e a produção econômica; formação de um estado poderoso e de
redes informais de poder, dominado pela corte
e aristocracia imperiais, burocracia e o exército;
existência de crescente estratificação social.
No entanto, o fato de o Império Romano
ter sido o único a possibilitar a fusão da bacia
mediterrânea numa entidade politicamente
organizada levanta questões sobre o quanto o
crescimento da economia, durante os séculos II
a.C. e II d.C. interagiu com a guerra, a conquista e a unificação imperial.
A análise da documentação textual e de
cultura material demonstra que o impacto do
domínio romano sobre o território interagiu
com as condições do meio ambiente e o grau de
complexidade da comunidade nativa anterior
aos processos que possibilitaram a consolidação
da conquista de acordo com o contexto histórico de formação de cada província. Significou
uma mudança gradual seja nos padrões de
assentamento, na natureza da exploração dos
recursos regionais e na forma como os seus
habitantes passaram a perceber e pensar sobre o
mundo ao seu redor. Isto fica bem evidente no
estudo realizado por Ph. Leveau (2008: 651670), ao longo do qual aplicam as quatro categorias espaço/tempo construídas por John Friedmann (1973) para a sociedade industrial, com o
intuito de classificar o desempenho econômico
das regiões das províncias ocidentais durante o
Alto Império, a saber:
1- “região Cêntrica”, identificada com a
cidade de Cartago;
2- “regiões de transição ascendente”, o caso
das províncias do noroeste;
3- “regiões de recurso de fronteira”, o caso
das regiões a oeste da Gália;
4- “região de transição descendente” compreende as regiões que já eram urbanizadas ou
estavam no caminho da urbanização na época
da conquista e viu um declínio durante o Alto
Império, ou seja, a Gália Narbonense e a Itália.
O autor cria uma quinta categoria para incluir
as regiões em que as formas de vida econômica da
pré-história persistiram durante o domínio romano, em decorrência de fatores geoecológicos, tais
como: regiões altas banhadas pelo Mar Mediterrâneo; as estepes da P. Ibérica e da África, as partes
altas dos Alpes e dos Pirineus, as grandes florestas
da Gália e do noroeste e os pântanos, existentes
nas áreas do interior, da costa ou dos deltas.
Esta categorização nos parece pertinente
para embasar a ideia das escalas locais de desen-
51
A província da Lusitania: sistema econômico global e local.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.
volvimento econômico, pois os meios técnicos,
novas formas de exploração da terra, novas formas de organização do trabalho e da produção
foram utilizados por Roma para dominar economicamente. No entanto, interagiram com a
tradição, com as potencialidades e os interesses
das elites nativas locais, possibilitando o desenvolvimento de sistemas econômicos embebidos
na cultura imperial compartilhada (global e
local). Por outro lado, ao considerar o desenvolvimento das províncias ocidentais reforça a tese
de que a economia apresentou um desempenho
econômico sem precedentes na Antiguidade, ao
longo dos séculos I e III, caracterizado pela unificação política do mundo mediterrâneo, pela
assimilação das práticas econômicas (economia
de mercado e comércio impessoal) e políticas
dos reinos helenísticos; pela anexação de ampla
área produtora do noroeste continental e atlântico e pela interação dos sistemas de economia
mediterrâneo e atlântico.
Portanto, foi possível a estruturação do sistema econômico imperial romano, conceituado
por Schiavone (2005: 100) como uma economia
romana agrário-mercantil de base escravista que
envolvia amplos circuitos comerciais pelas regiões mediterrâneas, sustentada por uma vigorosa
circulação monetária e dependente da “configuração mundial” proporcionada pelo domínio
romano. No entanto, ressalta que existia mesmo
nas regiões mais significativas, uma economia
natural ou de “subsistência” voltada para o autoconsumo ou para o comércio local.
As economias das regiões das províncias
da Lusitânia e Tarraconenses, ao longo do Alto
Império, representam um importante campo de
pesquisa para a validação das afirmações acima.
Além disto, apresentaram grande diversidade de
escalas do desempenho econômico, em decorrência das diferenças regionais.
O Imperador Augusto deu continuidade à
política de Júlio César de ampliar e consolidar o
domínio romano nas Hispânias ao reorganizar
a região, através da criação de três províncias:
Bética, Lusitânia e Tarraconense, em 27 a. C.
e consolidar a conquista, vencendo as tribos
do noroeste peninsular nas guerras Cantâbrias
(24-16 a.C). Neste contexto também foi muito
importante a fundação das colônias de Bracara
52
Augusta (Braga), em 16 a. C, sobre um povoado
indígena e de Asturica Augusta (Astorga), em
14 a. C, como um acampamento da Legio X
Gemina. Esta última adquiriu, ainda, grande
importância administrativa como um centro
de controle da produção aurífera da Galícia e
de seu transporte. O ouro partia de Asturica,
seguia pela estrada conhecida como Caminho
da Prata até as cidades de Augusta Emérita
(Mérida), Hispalis (Sevilha) e Cádis, de onde por
mar alcançava Roma. Em troca, os vestígios de
ânforas demonstram que a cidade importava
alimentos provenientes do Guadalquivir, principalmente, os condimentos preparados com
peixe (liquamen, muria, garum) e azeite; vinhos de
boa qualidade da Itália e da região do Mar Egeu
(Carreras 2010: 239-246).
Braga tornou-se um importante mercado,
estimulado pela densidade populacional do
território e pela proximidade da costa. Certamente, estas condições atraíram comerciantes
de várias regiões, tais como: Bética, Itália, Gália,
África, Egeu.
A apreciação do grupo de ânforas encontradas em Braga, principalmente, as do tipo Haltern
701 que denota a ligação com a produção do Vale
do Guadalquivir, nos leva a concluir que esta
cidade foi um importante mercado de importação e redistribuição de alimentos (azeite, vinho,
preparados de peixe) e produtos manufaturados
(variados tipos de instrumenta, necessários para
a agricultura e para a vida doméstica; lucernas;
cerâmica de mesa simples e de luxo; mortaria e
alum2). Acredita-se, ainda, que representou um
eixo de circulação interprovincial regular para o
suprimento do noroeste da península Ibérica, da
(1) Tipo de ânfora associada à fachada atlântica. Apresenta
boa distribuição pela costa da Lusitânia e pelo noroeste da P.
Ibérica, principalmente nos sítios militares. Deve ter surgido
na época de Augusto. O centro de fabricação foi o Vale do
Rio Guadalquivir e era utilizada como contentor de vários
produtos alimentícios, vinho, mosto cozido, azeitonas, muria
(salmora feita da gordura do atum).
(2) Mortarium era um instrumento doméstico utilizado por
gregos e romanos, em forma de uma bacia que pode ser menos ou mais profunda, como um pilão. Servia para socar os
grãos, de modo que se transformassem em farinha e alum era
uma espécie de verniz para dar acabamento final às pinturas
(Gaffiot 1989).
Norma Musco Mendes
Britânia e dos sítios militares do limes germânico
(Moraes 2010: 213-221). Neste contexto deve ser
ressaltada a importância de Olisipo (Lisboa) que
se transformou, ao longo do domínio romano
num centro do sistema marítimo atlântico, pois
o estuário do Tejo fornecia segurança aos navios,
propiciava o acesso de embarcações de amplo
calado e o rio permitia a comunicação com o
interior peninsular. Ademais, a conexão da rota
marítima Cádis/Lisboa possibilitou o transporte
para as regiões do norte e do interior da produção agrícola do Vale do Guadalquivir e reforçava
os contatos entre o mundo mediterrâneo e o
Atlântico. Citamos, apenas a título de exemplo,
a inscrição de M. Cassius M.f.Gal / Sempronianus
encontrada no vale do Guadalquivir e datada do
século II d.C. (MANTAS, 2007:183-208). Cassius era um que diffusor olearius3 – agente estatal
que intermediava os produtores e comerciantes
relacionados com a annona –, oriundo de Olisipo
e, portanto, esta epígrafe demonstra as relações
comerciais entre a cidade de Olisipo, a província
da Bética e a Itália.
Os vestígios de cultura material indicam
que a rota atlântica para a navegação de longa-distância partia de Cádis, fazia uma primeira
parada em Olisipo (Lisboa) e seguia para Brigantium. Desta localidade o norte podia ser
alcançado pela costa até a foz do Rio Garona ou
desbravando a Baia de Biscaia,4 até o sudeste da
Armorica (Normandia).
Dentre as mercadorias comercializadas devem ser destacadas a produção dos preparados
de peixe que nos estuários do Tejo (a “fábrica”
da Casa do Governador da Torre de Belém) e
do Rio Sado (complexo de Tróia); da costa do
Alentejo (Sines e Ilha do Pessegueiro) e ao longo
do litoral algarvio eram produzidos para a exportação, juntamente com a extração do sal e o
fabrico de contentores cerâmicos (Fabião 2009).
A conquista da Lusitânia e do restante da
Península Ibérica, portanto, permitiu unir ao
(3) Agentes contratados pelo Estado para envasar o azeite
comprado pelo Estado e colocá-lo a disposição dos navicularii
para o transporte. Membros das elites que em troca recebiam
pagamentos em metal e privilégios fiscais.
(4) Também conhecido como Mar Cantábrico.
domínio romano a área da Gália e do Norte
da África. Ademais, a inserção desta região no
sistema de economia imperial romano correspondeu à necessidade de abastecer as tropas
situadas no limes reno-danubiano e na Britania,
assim como a atração para a obtenção de metais
provocou uma valorização das rotas ocidentais,
sejam marítimas ou fluviais. Teve início uma
política atlântica centralizada no porto de Cádis
e na cidade de Hispalis (Sevilha), a qual deve
ser inserida no florescimento da província da
Bética, ao longo do I° e II° séculos.
Estes estudos preliminares propiciaram o
desenvolvimento de seis subprojetos de pesquisa, a saber:
“Entre espaços, representações e gentes:
a paisagem imperial nas cidades da Lusitânia
Romana”, em desenvolvimento pela doutoranda
Airan Borges, cujo enfoque principal é atuação
de benemerência dos grupos sociais ligados
à realização do culto imperial durante o Alto
Império;
“Os Espetáculos do Gládio e a Economia
Romana: uma abordagem comparativa sobre a
inter-relação da cultura, do mercado e do trabalho em Roma e Augusta Emérita”, em realização
pelo doutorando Kimon Speciale Ferreira.
Apresenta como objetivo principal analisar a relação entre o significado simbólico e ideológico
da realização e, consequentemente, da difusão
desta pratica cultural e o desenvolvimento das
atividades econômicas correspondentes ao seu
empreendimento, principalmente o comércio, e
a especialização do trabalho.
“Economia e Romanização em Bracara
Augusta: uma reflexão comparativa”, em desenvolvimento pelo mestrando Paulo Duprat, cujo
objetivo é analisar o desenvolvimento econômico registrado na região de Braga, através dos
vestígios arqueológicos que sugerem a ampliação
das linhas de comércio e da divisão do trabalho
e da urbanização;
“Contribuição de Olisipo para o estudo da
economia romana no Alto Império”, em desenvolvimento pela graduanda Thaísa Cristina
Valentino Almeida Michailowsky;
5- “Espaços produtivos rurais do litoral sul
da Lusitânia: villae e vici durante os séculos III e
IV d. C.”, em desenvolvimento pelo graduando
53
A província da Lusitania: sistema econômico global e local.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.
Rômulo Coimbra do Nascimento, cujo objetivo
é a análise das villae de Quinta de Marim, de
São Cucufate e de Milreu para demonstrar um
padrão de monumentalização crescente dessas
villae, entre os séculos I e IV A.D., o qual se
mostrou contraditório com a noção de “decadência” do Império Romano do Ocidente,
durante o IV século. Sugere, por outro lado,
o desenvolvimento das atividades de produção
agrícola, piscícola e do comércio, ao longo do
domínio romano.
Parece-nos evidente que a temática dos
projetos mencionados acima está associada às
condições geradas pelo estabelecimento do
Principado que possibilitou à economia romana
obter índices de desempenho sem iguais na
Antiguidade.
Posto isto, julgo fundamental a busca de
um instrumental teórico para embasar a análise
do estudo do comportamento econômico que
nos permita entender a relevância da institucionalização desta nova forma de governo para a
manutenção e reprodução do crescimento econômico já verificado ao longo dos dois últimos
séculos do período republicano.
Sem dúvida este último foi impulsionado
pela fusão da bacia mediterrânea numa entidade politicamente organizada e, portanto, suscita
o desenvolvimento de questões sobre o quanto
o crescimento da economia interagiu com a
guerra, a conquista e a unificação imperial.
Todavia, sentimos a necessidade de buscar uma
estrutura explicativa para entender a racionalidade econômica que interagiu com as condições
acima mencionadas. Neste sentido, construímos
um sexto subprojeto de investigação, intitulado
“Repensando a Economia Romana através da
Nova Economia Institucional”.
Buscar-se-á refletir com esta pesquisa a
viabilidade de aplicação da New Institutional
Economics (NIE)5 (Douglass 1977, 1990) que
possibilita não somente uma revisão das tradicionais abordagens sobre a economia romana
(5) Criada pelos trabalhos acadêmicos do economista norteamericano Douglass North que recebeu o Premio de Ciências
Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1993, juntamente com Robert Fogel.
54
como também permite analisar o papel das instituições e do Estado no desempenho econômico
da sociedade romana, num tipo de abordagem
holística, visto que se preocupa com a interação
dos fatores sociais, culturais e a economia.
É uma proposta teórica que segue a concepção marginalista de racionalidade econômica, segundo a qual o comportamento humano
é instrumental, no sentido de que busca sempre
os melhores meios para atingir seus objetivos,
ou melhor, aceita a existência de múltiplos tipos
de racionalidade econômica na história, distintas da racionalidade capitalista.
No tocante ao mundo antigo, este tipo de
abordagem que valoriza o papel das instituições
na economia é muito bem representado pelos
trabalhos de Neville Morley (2007) que defende o desenvolvimento de um comportamento
econômico costumeiro para garantir o lucro
possível pela diminuição dos riscos das incertezas baseados, portanto, numa racionalidade
limitada.6 A Nova Economia Institucional de
D. North apresenta uma proposta de renovação
deste pensamento, através da criação de uma
estrutura explicativa sob a ótica da análise da
importância para a atuação da economia dos
custos das transações, os quais são determinados, garantidos e protegidos pelas instituições
(North 1977: 703 - 716).
Apresenta como objetivos principais analisar duas questões: como as instituições se transformam em resposta aos incentivos individuais,
de grupos sociais, às estratégias e escolhas. E,
como as instituições (regras formais, limitações
informais, características compulsórias) afetam o
desempenho dos sistemas político e econômico.
As instituições determinam as “regras do jogo”
de uma sociedade ou mais formalmente são
definidas como barreiras construídas pela ação
humana para estruturar a interação politica,
econômica e social (North 1990: 3ss).
(6) Um esclarecedor resumo sobre esta questão pode ser
encontrado na dissertação de mestrado de Knust, J.E.M.
Senhores de Escravos, Senhores da Razão. Racionalidade,
Ideologia e a Villa Escravista na Republica Romana (sec. II e
I a.C.), orientação da Profa. Dra. Sonia Rebel, defendida na
Universidade Federal Fluminense, em 2011.
Norma Musco Mendes
Seguindo a linha de raciocínio de D. North a existência de mercado numa sociedade
necessita de instituições específicas para poder
existir, como por exemplo, a definição objetiva e
garantida por lei dos direitos de propriedade de
bens ou serviços a serem trocados e realizados.
Por outro lado, a eficiência econômica depende
da capacidade de suas instituições de diminuírem os custos das transações. Este aspecto está
aliado com os agentes responsáveis pela criação
e manutenção das instituições numa sociedade,
os quais naturalmente são movidos mais pelos
seus interesses de grupo do que no desempenho
econômico como um fator de desenvolvimento
social. Esta questão envolve a criação de instituições “imperfeitas” para o restante da sociedade,
aumento dos custos das transações e, por conseguinte, possibilitando tendências econômicas
de estagnação e até de retração de crescimento
econômico (North 1993: 246-265).7
Frente a isto, podemos afirmar que a unificação do império mediterrâneo; o estabelecimento da segurança nos mares; a ampliação
da rede de estradas, a construção de canais e
pontes que facilitavam o movimento das tropas
e do comércio; a difusão da tecnologia para
a agricultura e para a mineração; a criação de
uma área monetária com regras legais comuns,
especialmente no campo da lei do comércio
permitiu a criação de um cenário institucional,
responsável pela mudança no fluxo de informações que ao reduzir as incertezas e dificuldades,
propiciou a redução dos custos das transações.
O papel do Estado imperial se associou a
forma pela qual o poder de Augusto foi estruturado e seguido pelos seus sucessores. Concordamos com Lo Cascio (2006: 224) que define a
atuação do imperador romano como ambivalente. O imperador intervinha na economia através
das suas prerrogativas legislativas e decisões,
assim como, através dos gastos relacionados
com os serviços públicos,8 visto que juntamente
(7) Um bom resumo pode ser encontrado em (Mäki 1993: 2-43).
(8) Ressalto as medidas para a manutenção do preço dos grãos,
negociações contraídas com as corporações dos navicularii e
pistores e a política de construção de portos e armazéns para
estocar os grãos.
com o seu patrimônio (Fiscus Caesaris), também controlava os tesouros públicos de Roma
(Aerarium Saturni e Aerarium Militare) . Desta
forma, definia “as regras do jogo” e atuava de
forma privada para assegurar o suprimento das
distribuições gratuitas à plebe frumentária de
Roma. Este comportamento estava associado à
ideologia de legitimação do Principado. Como
patrono do Populus Romanus, o imperador agia
como o mais rico evergeta, demonstrando a sua
liberalitas e indulgencia em relação à plebe e, no
caso do relacionamento particular com os membros das elites pela concessão de privilegia.
Esta linha de raciocínio nos ajuda a entender o relacionamento de colaboração e competição entre o imperador e as elites cêntricas e
locais que foi essencial para a estruturação do
sistema de economia imperial romano e sua conexão com princípios que regulavam as relações
sociopolíticas, sejam no nível local, regional,
provincial e imperial. Logo, a economia pode
ser definida pelo conceito de uma economia
política que não exclui a existência de uma
economia de mercado como o principal modo
de transação econômica. Apesar de o Estado
representado pelos imperadores ter tido o controle de uma substancial parte da produção e da
redistribuição, não se pode aplicar as noções de
“redistribuição” e de um “comércio administrado”, de acordo com a tese de K. Polanyi (1996).
Isto porque a despeito da existência de mecanismos de redistribuição (frumentationes, congiaria
e donativa)9 e do tamanho das propriedades
imperiais, não existiu uma economia palaciana
e, portanto, o imperador não controlava completamente os recursos. Isto exclui a possibilidade de uma completa redistribuição.
Com os projetos de pesquisa acima mencionados pretendemos demonstrar que o desenvolvimento do desempenho da economia romana
ao longo do Alto Império foi sustentado pela
convivência de dois tipos de economia: uma
economia de prestígio (Garcia 2009) ligada ao
imperador e à aristocracia e uma economia de
(9) frumentationes (distribuição de trigo à plebe de Roma) e
congiaria (distribuição de azeite, vinho, dinheiro ao povo de
Roma) e donativa (aos soldados).
55
A província da Lusitania: sistema econômico global e local.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.
mercado de abrangência local, regional e inter-provincial, impulsionada pela administração do
Estado ou por interesses pessoais privados.
De acordo com esta linha de raciocínio e
em se tratando das províncias da Lusitânia e
Tarraconense, procuramos validar as seguintes
hipóteses de trabalho:
1- o poder romano e a cultura romana
foram ativamente reproduzidos no nível local
pela agência – comportamento, atuação – daqueles que foram incorporados dentro desta
área de influência. Isto porque concordamos
com a ideia de que a “ação humana não apenas
reproduz as condições materiais, as estruturas de
significados herdadas e a consciência histórica,
mas as modificam, as reinterpretam e as redefinem” (Renfrew e Bahn 2005: 2ss);
2- a existência de uma economia de mercado, tanto no seu sentido concreto (espaço ou
uma construção para a realização da troca de
bens) como abstrato (zona geográfica no interior
da qual uma determinada mercadoria segue as
regras da oferta e da procura;10 e
3- compartilhar da ideia de Vasco Gil Mantas (2003: 445-467) no sentido de que o Oceano
Atlântico representou para Roma uma fronteira, destinada a ser ultrapassada. Ou ainda,
o Império Romano, conforme argumenta este
historiador, foi, sobretudo, um império marítimo, visto que para o controle das suas partes, o
Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico eram
os espaços estratégicos fundamentais para a
comunicação.
Podemos afirmar que o Estado romano,
diante de finalidades bélicas e comerciais, relacionadas às necessidades de defesa, de obtenção
de riqueza mineral e de garantir o abastecimento de Roma e dos exércitos, se interessou pelo
controle das rotas comerciais atlânticas, se empenhando para debelar as dificuldades (Mendes
2013: 47-68).
Em suma, à luz da Nova Economia Institucional pretendemos contribuir para o estudo da visão
desenvolvimentista da economia romana para o
período de fins da República e Alto Império, possibilitando a interação econômica e cultural das
áreas do litoral atlântico da atual Península Ibérica
com o mundo mediterrâneo, confirmando a ideia
de que a experiência imperialista romana deve ser
compreendida como global e local.
MENDES, N.M. The province of Lusitania: global and local economic systems. R. Museu
Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 49-58, 2014.
Abstract: The purpose of this interview is to divulge the individual
researches that compose the common project of history investigation named
“Empire: theory and practice of roman imperialistic”, under my orientation
and realizing in the Laboratory of Ancient History/ History Institute of the
Federal University of Rio de Janeiro (Brazil). Our second aim is to ponder
over the application of the New Institutional Economics for the study of the
economy of the Roman Empire, through the researches that has been done in
the province of Lusitania.
Keywords: Roman Empire – Lusitania – Economy – New Institutional
Economics.
(10) Vide a conferência proferida na UNIRIO, em novembro
de 2011, intitulada “A economia romana era uma economia
de mercado?” pelo Prof. Jean Andreau, da École des Hautes
Études en Sciences Sociales de Paris.
56
Norma Musco Mendes
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O ritual da morte entre os celtiberos
Silvana Trombetta*
TROMBETTA, S. O ritual da morte entre os celtiberos. R. Museu Arq. Etn. Supl., São
Paulo, n. 18: 59-67, 2014.
Resumo: O presente texto analisa os aspectos ritualístico relacionados à
morte entre os povos celtiberos: os objetos depositados nas tumbas femininas e
a questão de gênero, a existência ou não de locais destinados especificamente à
cremação dos corpos e a questão do sacrifício humano e dos rituais de fundação ou proteção das comunidades celtiberas.
Palavras-chave: Celtiberos – Rituais de morte – Cremação – Urnas cinerárias.
O
s enterramentos celtiberos são fonte
de muitas controvérsias entre os
pesquisadores no que se refere ao tipo de
enterramento praticado, práticas ritualísticas,
presença ou não de sacrifícios humanos.
É possível observar, por exemplo, através dos
estudos de Lorrio (1997), Burillo Mozota (2005), Sopeña (2005), Cerdeño (2005), Villa (2007) sobre os
celtiberos, que os pesquisadores pontuam diferenças
quanto aos objetos depositados, a presença ou não
das estelas funerárias, a disposição dos túmulos, a
existência ou não do sacrifício humano e o ritual de
exposição de cadáveres. É preciso, portanto, observar atentamente cada um destes aspectos.
A disposição tumular e a documentação
material dos sepultamentos
Quanto à disposição dos túmulos nos
cemitérios celtiberos, vê-se que os mesmos
(*) Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP e pesquisadora
associada ao Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
-LARP, MAE/USP <[email protected]>
possuem evidentes particularidades. Embora
o pesquisador Lorrio (1997) ressalte que em
relação às necrópoles da Meseta Oriental, exista
uma “peculiar organização interna do espaço
funerário, que confere aos cemitérios celtiberos
uma evidente personalidade” (1997: 12), isto
“não pode em absoluto considerar-se uma prática
generalizada em todas as necrópoles celtiberas.
Muito pelo contrário, a maior parte das que têm
oferecido este tipo de informação mostram uma
distribuição anárquica à primeira vista, podendo-se detectar áreas com diferentes densidades de
enterramentos que, em ocasiões, podem inclusive
estar delimitadas por espaços estéreis, tendo-se
observado em certos casos, como nas necrópoles
de Altienza ou Carratiemes, a existência de uma
autêntica estratigrafia horizontal” (1997: 21).
Não obstante a disposição tumular possa
parecer não seguir nenhuma organização, em
muitos cemitérios celtiberos verifica-se, em relação
ao mobiliário funerário, que em alguns casos o
mesmo encontra-se disposto de modo ordenado
dentro da necrópole. No cemitério de La Mercadera (Soria), as tumbas com espada aparecem em
“quatro núcleos diferenciados, sendo que o conjunto mais numeroso encontra-se na zona central
59
O ritual da morte entre os celtiberos.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.
da necrópole. Em torno a este núcleo – até o norte
bertas. “Estruturas e objetos até então descoe o leste – localiza-se a maior parte das tumbas
nhecidos trouxeram novas questões sobre os
carentes de mobiliário” (Lorrio 1997: 22). Para Buenterramentos celtiberos: vinte e cinco depósirillo Mozota (2005: 457), La Mercadera é um caso
tos de cinza foram encontrados em associação
excepcional no mundo celtibero, pois possui um
com trinta tumbas paralelas. Elas continham
contexto fechado que possibilita melhor análise
cerâmica e restos faunísticos, um grande depósiarqueológica. As tumbas com espadas têm sido
to de cinzas de 63m2 com fragmentos de vasos e
interpretadas como manifestações de uma socieplataformas que não continham enterramentos,
dade socialmente hierarquizada. Porém, o próprio
alguns pertencendo aos ustrina e outros com
autor cita estudos que sugerem uma interpretação
oferendas, incluindo restos de animais não
alternativa para a necrópole de La Mercadera que
cremados. Quanto à datação, os enterramentos
“poderia ter sido um cemitério de uma comunidavariam dos séculos VI/V a.C. até os séculos III/
de camponesa estruturada em famílias estendidas,
II a.C. Durante os primeiros estágios, os enterna qual os camponeses poderiam portar armas e
ramentos apresentavam uma grande quantidade
os melhores conjuntos tumulares pertenceriam
de oferendas e sacrifícios animais enquanto
aos indivíduos de status social mais elevado ou
que nos estágios finais as oferendas tornaram-se
aos chefes de famílias (Burillo e Ortega 1999, apud
raras.” (Burillo Mozota 2005: 457) (Fig. 1).
Burillo Mozota 2005: 457)”.
Outro sítio arqueológico
importante é o de Numância
onde “uma parte importante
das 156 tumbas descobertas –
algumas sinalizadas com estelas
– concentram-se em dois grandes
grupos, tanto no que se refere à
localização espacial quanto ao
conteúdo do mobiliário. O que
ocupa a parte mais alta da necrópole caracteriza-se majoritariamente por mobiliários providos
de objetos de adorno e objetos
de prestígio de bronze, enquanto
que o outro, numa posição mais
baixa, oferece, de forma mais
generalizada, armas e objetos de
ferro” (Lorrio 1997: 26). Burillo
Mozota (2005: 458), igualmente
chama a atenção para a distribuição espacial desses enterramentos, revelando que bem como os
achados citados acima, a análise
osteológica apontou uma desigualdade social observada pela
dieta nutricional dissimilar entre
os dois grupos.
Dentro do mundo celtibero, as escavações na necrópole
de Aragoncillo em Guadalajara,
Fig. 1. Urna cerâmica e armas de metal (século VI a.C ? ) provenientes da necrópole de Aragoncillo em Guadalajara. Fonte: Burillo Mozota (2005: 457).
revelaram importantes desco-
60
Silvana Trombetta
De um modo geral, nos sepultamentos
celtiberos, os restos mortais eram depositados
diretamente no solo ou dentro da urna cinerária. Quanto ao mobiliário funerário, parece ser
consenso entre os pesquisadores que as oferendas eram mais frequentes nos estágios iniciais
(do século VI a.C até o IV a.C) tornando-se
menos opulentas durante os séculos II/I a.C.
Particularmente em relação às armas, em alguns
túmulos elas eram posicionadas ao lado da
urna ou sob a estela, sendo que muitas eram
propositalmente danificadas. A obra de Green
(2001: 50) cita a danificação das armas no sítio
celtibero de Numância e permite verificar que
este rito era praticado igualmente por celtas da
Bretanha e da Gália, sendo visto como um ato
de “destruição sagrada” ou morte simbólica do
objeto, no qual sua inutilização retirava-o do
mundo dos vivos.
Os objetos depositados e a questão de gênero
A presença das armas, fusos, objetos de
adorno encontrados nos sepultamentos celtiberos e sua conexão com o gênero são objeto de
controvérsia entre os pesquisadores. Embora na
maior parte das vezes a análise antropológica
confirme que os indivíduos sepultados juntamente com espadas, punhais e lanças sejam do
sexo masculino e indivíduos enterrados com
braceletes, pulseiras e anéis sejam mulheres
adultas, há casos nos quais isto não ocorre.
No cemitério celtibero de Las Ruedas
foi encontrada uma sepultura feminina com
armamento militar, no de Siguenza foram
encontradas quatro sepulturas femininas com
armas e, no de La Yunta, seis sepultamentos
femininos com mobiliário militar. Nos sepultamentos de Las Ruedas e Siguenza, a maior parte
dos túmulos com armas eram masculinos, mas o
caso de La Yunta é singular, pois de um número
total de doze sepulturas com armamentos, a
maior parte é feminina (seis), existindo quatro
sepultamentos masculinos e outros dois cuja
identificação do sexo não foi possível. Lorrio
defende uma posição segundo a qual “a existência de armas em sepulturas femininas não deve
ser vista como um indício do pertencimento
de algumas mulheres ao estamento militar, mas
que isto deve ser interpretado como uma prova
da posição privilegiada que a morta possuía em
vida, por seu matrimônio ou por pertencer a
um grupo familiar destacado” (Lorrio 1997: 53).
Com relação à particularidade da necrópole de
La Yunta, o autor relata que “sua cronologia
avançada e a localização geográfica a situam
numa área marginal em relação aos focos mais
ativos da Celtibéria, caracterizada pelo empobrecimento dos mobiliários e praticamente o desaparecimento das armas e, por isto, dificilmente
pode-se extrapolar para o resto do território
celtibero os resultados obtidos neste cemitério
mediante as análises antropológicas” (Lorrio
1997: 54). Cerdeño (2005), além da preocupação no que concerne aos dados obtidos nas necrópoles celtiberas, que podem ser incompletos,
propõe outra interpretação para a concentração
de armas em túmulos femininos: as armas do
guerreiro morto em batalha seriam recolhidas e
posteriormente enterradas com um membro da
família, o qual poderia ser a sua esposa.
Embora as explicações de Lorrio (1997)
e Cerdeño (2005) sejam bastante plausíveis e
importantes, resta explicar porque em túmulos
masculinos há a presença de fusos. Este objeto
se distribui de forma equivalente na necrópole
de La Yunta em sepultamentos de ambos os
gêneros, é encontrado num túmulo masculino
da necrópole de Siguenza e ocasionalmente
associa-se a túmulos nos quais encontram-se
armamentos. Assim como não sabemos determinar com certeza o motivo da escolha do
fuso enquanto componente de enterramentos
masculinos, creio que ainda não podemos saber
com certeza o porquê da deposição de armas em
túmulos femininos. Com relação às observações
de Cerdeño (2005), podemos nos perguntar:
por qual motivo as armas do guerreiro morto
em batalha não seriam destinadas aos descendentes do sexo masculino (o filho do guerreiro)
sendo retiradas de circulação e enterradas com a
provável esposa, a qual provavelmente morreria
de causa natural? Seriam essas armas utilizadas
por outros membros do grupo (descendentes ou
não descendentes) para posteriormente serem
enterradas com a matriarca ? Ainda não temos
respostas para essas perguntas e os cemitérios
61
O ritual da morte entre os celtiberos.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.
celtiberos revelam-se complexos em relação a
esta questão.
A existência dos ustrina e os rituais de cremação e exposição de corpos
Outro ponto a ser respondido diz respeito
à existência dos ustrina (locais específicos para
a cremação dos cadáveres). Nos cemitérios
celtiberos os ossos presentes no interior da
urna cinerária eram previamente selecionados,
tornando patente a prática do enterramento
secundário. A observação desta prática coloca
em pauta duas outras questões: a existência dos
locais específicos para cremação (ustrina) e/ou
a exposição do cadáver, do qual se recolheriam
os ossos após a devoração da carne pelas aves. A
existência da pira funerária é, em parte, atestada
pela fonte textual através da descrição feita por
Diodoro na Biblioteca da História dos funerais
de Viriato, chefe dos lusitanos que lutou contra
a dominação romana. Na descrição feita por
Diodoro, Viriato foi queimado numa altíssima
pira, enquanto seus soldados a pé ou a cavalo,
portando armas, cantavam e corriam ao redor
da pira até que o fogo se apagasse.
Quanto às evidências físicas relativas à presença de locais específicos para cremação, cabe
salientar que nos cemitérios celtiberos de Riba
de Saelices e de Atienza foram encontrados locais
com espessas camadas de cinza, sendo que em
Riba de Saelice junto às cinzas também foram encontrados fragmentos de cerâmica e de conchas e
em Atienza registrou-se a presença em alguns dos
ustrina de elementos metálicos com indícios de
queima. Cabe lembrar que também no já citado
cemitério de Aragoncillo em Guadalajara os grandes depósitos de cinza nos quais se encontram
vestígios de plataforma e ausência de enterramentos evidenciam a existência dos ustrina.
Embora nos cemitérios celtiberos sejam
encontradas sepulturas que permitem avaliar
a prática funerária da incineração, a questão
dos enterramentos entre os celtiberos ainda
gera muitas dúvidas. González relata que as
concepções em vigor sobre o mundo funerário
celtibero são de que o mesmo não deixa traços,
ou seja, “sem inumações bem definidas e sem
62
enterramentos dos restos dos defuntos, o que
conduz a avançar a hipóteses de que um dos
procedimentos mais prováveis do tratamento do
cadáver seria depositá-lo nas águas de um riacho
ou nas suas bordas. Podemos testemunhar este
fenômeno no Tâmisa, onde foram achados
restos humanos associados a armamentos do
Bronze Final. Outra hipótese, que poderá ser
verificada, por exemplo, na área celtibera seria
a exposição do cadáver ao ar livre de modo que
eles fossem devorados pelas aves; existem, com
efeito, representações deste método na cerâmica celtibera (Fig.2). Seja como for, a realidade
é que nas costas cantábrica e atlântica não se
pode falar em tumbas propriamente ditas até a
conquista romana” (González 2000:23).
As representações em cerâmicas da deposição do cadáver para ser devorado por abutres
(citadas por González) aparecem em um artigo
de Sopeña, no qual o autor faz uma análise
sobre ideologia e religião celtibera. O ritual
celtibero de exposição dos corpos seria uma
“prática atávica, com suas raízes no substrato
pré-histórico” (2005: 308). Sopeña também cita
a importante fonte textual de Silio Itálico em
relação aos celtiberos, a qual corrobora a prática
da exposição do cadáver.
Os celtas, que acrescentaram a seus nomes
aqueles dos Iberos, também vieram. Para estes homens
a morte em batalha é gloriosa; e eles consideram um
crime queimar o corpo de tal guerreiro; por causa que
eles acreditam que a alma sobe junto aos deuses no
paraíso se o corpo é devorado no campo por um abutre faminto (Silio Itálico, Punica., III, 340-343).
A conexão entre fonte textual e material faz-se presente no momento em que Sopeña (2005)
visualiza na encosta sul do sopé da montanha
do Cerro de La Muela (Garray), onde se localiza
Numância (oppidum celtibero), treze pavimentos
circulares feitos com pedras arredondadas nos
quais os corpos ficariam expostos para serem
devorados. Sopeña cita que a função mortuária
desta estrutura tem sido confirmada pela descoberta da já citada necrópole de Numância perto
da região e pelo fato de existirem outras estruturas similares em Montecillo-Dulla, El Arenal e
Castro Del Zarranzano. Porém, o próprio autor
relata que é necessário ter cautela em relação às
interpretações destas descobertas.
Silvana Trombetta
Curiosamente, ao discorrer
sobre as Ilhas Britânicas durante
o período entre o final da Idade
do Bronze e a Idade do Ferro,
Sopeña (2005: 384) relata que
a exposição dos corpos era a
prática funerária dominante,
visto que 95 % da população
eram dispostos deste modo no
momento da morte e que em
Norfolk haveria uma plataforma
sobre a água na qual os achados
incluíram não somente restos
humanos mas também armas.
Especificamente neste caso,
pressupõe-se que o corpo do
guerreiro deveria ser levado pela
Fig. 2. Um dos treze pavimentos feitos com pedras circulares, nos quais o
ação das águas para o Outro
corpo do guerreiro seria exposto após a morte. Fonte: Sopeña (2005: 381).
Mundo enquanto a maior parte
da
população
ficaria
sujeita a uma exposição do
Em relação às figuras que retratam o
corpo
em
outros
tipos
de plataforma existentes
morto sendo devorado por aves, Sopeña
nos
oppida.
Entretanto,
não se pode afirmar,
relata que elas são absolutamente explícitas,
até
o
presente
momento,
a existência deste tipo
não deixando margem para dúvidas. Cabe
de
prática
ritual
entre
os
celtiberos,
embora a
lembrar que Almagro-Gorbea e Lorrio (2005)
água
(tal
qual
o
fogo
da
pira
funerária)
seja um
igualmente descrevem esta imagem da cerâelemento
fundamental
e
conectado
a
ritos
de
mica numantina enquanto representação de
transposição
da
vida
para
a
morte.
um guerreiro sendo devorado por abutres
Um fato extremamente importante é que
(Fig.3).
os enterramentos celtiberos eram depositados
diretamente no solo ou em uma urna funerária
na qual estavam presentes ossos previamente
selecionados. Isto torna patente a prática do
enterramento secundário e a importância dada
a algumas partes do corpo humano, particularmente ao crânio, aos ossos mais largos e às
extremidades dos dedos.
Sopeña observa que muitos ossos encontrados nas urnas celtiberas foram queimados após
o descarnamento do cadáver havendo, assim,
um período intermediário entre a morte do
defunto e a cremação dos ossos selecionados.
Isto não significa que todos os corpos fossem
expostos para serem devorados por aves, visto
que este era um tipo de ritual destinado aos
mais valorosos, mas que deveriam existir outras
práticas que permitissem secar e descarnar os ossos. Igualmente em relação aos ossos selecionaFig. 3. Cerâmica numantina com representação de
dos, Sopeña diz que das 23 tumbas encontradas
um guerreiro morto sendo devorado por abutres (séc.
I a.C.). Fonte: Sopeña (2005: 381).
na necrópole de Numância 14 continham ossos
63
O ritual da morte entre os celtiberos.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.
Fig. 4. Urna Cinerária do século I a.C. proveniente da
necrópole de La Yunta (Guadalajara), decorada com
um motivo geométrico em forma de ondas. Fonte:
Sopeña (2005: 385).
que correspondiam ao crânio e às extremidades
dos dedos (2005: 285). Isto é particularmente
significativo, pois para o autor e para outros
pesquisadores como Green (2001), a cabeça
era o local onde para os celtas residia a alma,
existindo no santuário de Ribemont um pórtico
no qual há cabeças (provavelmente de inimigos
derrotados em batalhas) incrustadas em nichos
previamente esculpidos para este propósito.
A questão do sacrifício humano e dos rituais
de fundação e proteção da comunidade
É bem conhecido que as muralhas possuem
significados simbólicos que estão além do
sistema defensivo e que o pertencimento a uma
comunidade também se faz observar com base
em ritos ligados à delimitação do espaço.
Nesse sentido, as inumações existentes junto
à torre próxima à muralha do sítio arqueológico
de Bilbilis Itálica (Zaragoza), têm sido interpretadas
como sacrifícios de fundação, nos quais o “propósito era o de ganhar a aprovação de poderes sobrenaturais, em particular daqueles nos quais o território
64
da construção era erigido” (Green 2001: 166).
Assim, as vítimas imoladas tornavam-se protetoras
da localidade. Villa (2007: 17) relata que junto à
torre próxima à muralha foram encontrados três
esqueletos humanos cuja disposição e demais objetos que os acompanham têm oferecido informações
contraditórias. Na primeira inumação encontrada
o corpo (com pernas e braços separados) parece ter
sido jogado ao invés de depositado e junto à sua
cabeça estava o crânio de uma pequena ave, a mandíbula de uma ovelha ou cabra e um osso de javali
ou cervo. O segundo esqueleto encontrava-se em
posição fetal e era provavelmente um enterramento
secundário (os ossos foram descarnados previamente e alinhados em relação ao crânio), no qual junto
ao corpo havia uma vasilha indígena sem ornamento, fragmentos cerâmicos decorados que pertenciam
a uma jarra e também ossos de um corvo. A terceira
inumação é mais problemática visto que somente
se conservaram alguns ossos de um indivíduo de
grande estatura. A datação dos enterramentos foi
baseada nas cerâmicas encontradas, as quais pertencem ao século I a.C. Infelizmente, não foram feitas
análises que permitam identificar o sexo ou a idade
dos indivíduos.
O grande problema, como bem aponta Villa
(2007:20), é que não se sabe se estes enterramentos
se vinculam diretamente com os níveis de fundação
da torre, o que dificulta a caracterização dessas
inumações como sacrifícios de fundação. Não
obstante esta dúvida, é certo que o tratamento dado
aos cadáveres pressupõe ritos que se não estão vinculados diretamente à fundação, podem ter caráter
profilático para os habitantes da comunidade.
Por sua vez, três inumações infantis (século
VI a.C.) encontradas em Atxa (Vitoria-Gasteiz) evidenciam mais claramente o caráter de
proteção da comunidade. Localizadas na zona
perimetral próxima ao rio Zadorra, que serve
como defesa natural do assentamento, elas se
diferenciam das demais inumações infantis encontradas em solo celtibero (nas quais o corpo
era depositado no interior do espaço doméstico)
indicando um fenômeno diferenciado no qual
a deposição nos limites da comunidade conferia
aos indivíduos sepultados um poder apotropaico. Segundo Villa (2007:21), nenhum dos
corpos era de neonatos, e os três sepultamentos
eram de crianças de 6, 10 e 24 meses.
Silvana Trombetta
Mais reveladoras ainda são as duas inumações
simbolismos ligados aos ritos da comunidade
infantis do sítio de Peñahitero (século VI a.C ?)
(como relatado no caso de Bilbilis, embora não
nas quais uma das crianças com idade entre quatro
possamos depreender claramente seu significaou cinco anos foi enterrada com os pés apoiados
do). Isto não pressupõe relevar a importância
contra o cinturão defensivo “debaixo do solo de
dos achados numantinos, visto que, como diz
um recinto junto à muralha, sendo que no enterSopeña (1995: 256-257) nos encontramos frente
ramento havia também um dente de javali e uma
a “uma atividade funerário-ritual excepcional
galhada de cervo. O outro infante, um lactante
que parece responder a certas pautas, já que as
de poucos meses de vida, possuía um pingente de
vasilhas pintadas encontradas na zona NE estaosso e foi inumado com as pernas flexionadas denvam enterradas em solo nos ângulos das casas
tro do corpo da própria muralha” (Villa, 2007:22).
junto à muralha e, portanto, em direta associação
O tipo de enterramento não deixa dúvidas quanto
com ela, coincidências que não parecem casuais,
a um rito ligado diretamente à muralha, podendo
ainda que resulte mais complicado estabelecer as
ser um típico sacrifício de fundação.
razões que justificam sua localização no interior
Não obstante não seja possível saber se
da cidade”.
os infantes já se encontravam mortos quando
Por fim, ainda com relação ao sítio arqueolóforam depositados próximos à zona do povoado
gico de Numância, foi descoberta uma estrutura
(Atxa) ou junto à muralha (Peñahierto) ou se se
funerária retangular de pedra calcária com um T
tratava da efetivação de um sacrifício humano, o
inscrito (século I a.C.) e que cobria um buraco no
caráter ritual relacionado à fundação e defesa da
solo no qual havia restos ósseos (embora não seja
comunidade não pode ser negado.
possível saber se eram humanos ou faunísticos).
Embora não haja inumações como as citaSegundo Villa (2007: 7), o T inscrito na estrutura
das acima em Numância, a existência de urnas
possui várias interpretações: a representação de
cinerárias junto à muralha também traz à tona
uma palmeira, de um crescente lunar ou o marquestões relativas à proteção da localidade. Villa
telo da divindade celta Sucellus, que podia matar
(2007) relata que, segundo Gonzalez de Simancas
com a clava (utilizando o lado esquerdo) ou dar a
(1926), na parte Norte/Noroeste da muralha
vida (usando o lado direito).
foram encontradas três vasilhas decoradas (século
Villa (2007: 8) relata que esta estrutura
I a.C.) que continham ossos humanos e cinzas.
funerária intra-muros tem sido interpretada
Infelizmente, não temos hoje amostras que
por arqueólogos, como Gonzalez de Simancas
permitam identificar com certeza se se tratava
(1926) e Sopeña (1995), como um heroon, onde
realmente de ossos humanos. Por outro lado, não
indivíduos destacados na comunidade eram
se pode simplesmente descartar esta hipótese,
sepultados em habitações próximas às muralhas
visto ser incomum tigelas com restos funerários
com a função de proteger a população.
junto à muralha que não possuam significado
Assim, podemos dizer que embora o sepulsimbólico. Logicamente, não se pode atestar que
tamento não esteja relacionado a um sacrifício
o sepultamento seja resultante de um sacrifício
de fundação, o heroon igualmente visa à defesa e
humano, pois não é possível recuperar dados que
proteção da comunidade (Fig.5).
permitam saber as circunstâncias
da morte e a falta de informações
sobre o tipo de ossos (humanos
ou animais) inviabiliza maiores
interpretações. Ademais, geralmente nos sacrifícios humanos
de fundação os corpos eram
inumados e a própria disposição corporal (em posição fetal,
estendida, com partes do esqueFig. 5. Provável Heroon encontrado em Numância. Fonte: Villa (2007: 39).
leto suprimidas ou não) possuía
65
O ritual da morte entre os celtiberos.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.
Conclusão
Os enterramentos celtiberos suscitam instigantes debates. As plataformas encontradas em
Numância e sua possível relação com a prática de
exposição de cadáveres de guerreiros têm levado
arqueólogos a procurarem estruturas semelhantes em outras localidades. Ao mesmo tempo, a
existência no sítio de um provável heroon, revela
um tipo de sepultamento no qual a presença de
indivíduos valorosos para a comunidade seria
perpetuada. A existência destas estruturas juntamente com os achados encontrados nos túmulos
de Numância revela uma sociedade hierarquizada
e embora ainda não seja possível compreender
todos os ritos entrelaçados com a questão funerária, a da proteção da comunidade surge como
ponto importante, na medida em que há não
somente a existência do heroon, mas também
de vasilhas com a presença de cinzas e possíveis
restos humanos junto à muralha, o que denota
um simbolismo ligado ao apotropaico.
Outro ponto importante diz respeito aos
sepultamentos encontrados em La Yunta,
Ruedas e Siguenza, pois vêm reavaliar a relação entre os objetos depositados nas sepulturas e a questão de gênero. Embora muitos
dados provenientes destas escavações sejam
do início do século XX e, portanto, realizadas
sem o estrito rigor arqueológico (o que dificulta a exatidão dos resultados) é interessante
notar que não há respostas conclusivas sobre
o motivo das armas terem sido depositadas
nos túmulos femininos.
Práticas mortuárias e enterramentos
entre os celtiberos são, portanto, mais complexos do que poderia parecer à primeira
vista, sendo necessário examinar mais detalhadamente cada um dos processos ritualísticos ligados à morte (exposição dos corpos,
objetos encontrados nas tumbas, seleção
de ossos depositados em urnas, inumações
junto às muralhas) para melhor compreender
suas práticas funerárias.
TROMBETTA, S. The death ritual among the Celtiberian People. R. Museu Arq. Etn.
Supl., São Paulo, n. 18: 59-67, 2014.
Abstract: The intention of this article is to analyse the information regarding Celtiberian burial rites: the objects found in women graves and the question of gender, the existence or not of specific places for cremation and the
question of human sacrifice and rituals of foundation or protection of Celtiberian communities.
Keywords: Celtiberian – Death rituals – Cremation – Cinerary urns
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67
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.
A construção romana das representações
sociais da África através das moedas
Regina Maria da Cunha Bustamante*
BUSTAMANTE, R.M. da C. A construção romana das representações sociais da África
através das moedas. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 69-77, 2014.
Resumo: No mundo antigo mediterrâneo, Roma destacou-se por constituir
um dos maiores impérios, abarcando distintos povos, dentre eles, os norte-africanos. Para tanto, foram demandadas, dentre outros aspectos, a elaboração e
a consolidação de significados e valores, que nortearam e organizaram as ações
romanas e suas imagens de “si” e, concomitantemente, dos “outros”, gerando
diferenciação e hierarquização. No presente estudo, analisaremos uma das
estratégias romanas de definição e reconhecimento da África através de moedas
cunhadas desde fins do período republicano até o início da dinastia imperial
dos Severos. Optamos por trabalhar com a Teoria das Representações na vertente da Psicologia Social desenvolvida por Moscovici, centrando-nos processos
de ancoragem e objetivação.
Palavras-chave: Roma Antiga – África do Norte – Representação social –
Moeda.
N
o mundo antigo mediterrâneo, Roma
destacou-se por constituir um dos
maiores impérios, abarcando distintos povos,
dentre eles, os norte-africanos. Empenhou-se,
então, em construir uma identidade entre as
múltiplas culturas sob seu domínio, formando
uma comunidade de abrangência mediterrânea.
A constituição desta comunidade demandou,
dentre outros aspectos, a elaboração e a consolidação de significados e valores, que nortearam e
organizaram ações e imagens de “si” e, concomitantemente, dos “outros”, gerando diferenciação
(*) Laboratório de História Antiga (LHIA) do Instituto de
História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).< [email protected]>
e hierarquização (Augé 1999; Hall 2002; Silva
2000). Os conceitos de identidade e alteridade
rompem com a concepção de separação de
culturas isoladas historicamente e se pautam
por experiências relacionais sem deixar de
serem reconhecidas as diferenças. Este processo
caracteriza-se por negociações e conflitos e se
insere no jogo de interesses políticos, sociais e
econômicos. As identidades coletivas envolvem
sistemas complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes sociais se
inscrevem na ordem das formações sociais de
diferentes formas.
No presente estudo, analisaremos uma das
estratégias romanas de definição e reconhecimento da África através de moedas cunhadas.
Nosso recorte temporal vai de fins do período
69
A construção romana das representações sociais da África através das moedas.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.
republicano, quando da implantação do domínio romano na região norte-africana, até
fins do século II, que corresponde ao início da
dinastia imperial dos Severos, de origem afro-síria. Optamos por trabalhar com a Teoria das
Representações na vertente da Psicologia Social.
Segundo Moscovici (2009: 60-61), as representações sociais nos facultam analisar o processo de
tornar familiar algo não familiar, isto é, classificar, categorizar e nomear novos acontecimentos
e ideias com as quais inexistia contato anteriormente, possibilitando, assim, a sua compreensão e manipulação a partir de valores e teorias
preexistentes e internalizados e amplamente
aceitos pela sociedade romana. Para transformar
o não-familiar em familiar, ou seja, transformar
algo em senso comum, é necessário o funcionamento de dois mecanismos: ancoragem e objetivação. O primeiro mecanismo busca ancorar
ideias “estranhas”, reduzi-las a categorias e imagens comuns e colocá-las num contexto familiar.
A objetivação significa descobrir a imagem de
uma idéia, de um conceito, tornando-o concreto. Transformar um ser impreciso em algo que
pode ser visualizado é criar uma representação
visando se apropriar do objeto estranho. Na
medida em que estas representações se propagam, acabam por fazer parte da vida cotidiana
das pessoas através do senso comum, pois são
elaboradas socialmente e funcionam no sentido
de interpretar, pensar e agir sobre a realidade a
partir de um conteúdo simbólico e prático. As
representações são dependentes da forma como
são comunicadas, do poder derivado desta
transmissão e de como esta realidade foi controlada no passado e veiculada posteriormente. A
representação social só existe quando o objeto
reúne “espessura” ou “relevância” suficiente
para ser representado por um grupo social.
1. Os romanos na África
Segundo Decret e Fantar (1998: 20-25), os
vocábulos Afer, Africa, Africanus foram empregados somente em textos latinos. O termo latino
Africa originou-se de Afri, nome dado pelos
romanos a uma das tribos que habitavam o
antigo território cartaginês, atual Tunísia, onde
70
os romanos iniciaram o domínio da região após
a derrota dos cartagineses na 3ª Guerra Púnica
em 146 a.C. Posteriormente, alguns autores latinos, como Salústio (Guerra de Jugurta XVIII) e Plínio, o Velho
(
História Natural VII, 200), utilizaram Afri para
designar todos os povos da África do Norte. Por
sua vez, Pompônio Mela (Corografia I, 4, 20) utilizou o termo para designar todo o continente.
O interesse dos antigos romanos pela Africa
vem desde o período da República Romana,
quando houve a disputa pela hegemonia do
Mediterrâneo Ocidental entre Roma e Cartago,
que levou às Guerras Púnicas entre o século III
e o II a. C. Com a vitória romana, fundou-se,
em 146 a.C., a primeira província romana fora
do continente europeu, a Africa Vetus, no antigo
território cartaginês.
Em meados do século I a.C., com as Guerras Civis do 1º Triunvirato entre Pompeu e
Júlio César (Apiano. História Romana XCIV) e
o apoio do rei númida Juba I ao lado perdedor
(Guerra da África XXV, XXXII, XXXVI e XLVII;
Dion Cássio. História Romana LII; Apiano.
História Romana II, 96-100), o Reino da Numídia tornou-se a província romana da Africa
Noua. No último terço do século I a.C., durante
o governo de Augusto, a Africa Vetus, a Africa
Noua e mais as quatro colônias de Cirta, que
Júlio César concedera ao italiano P. Sítio, foram
unificadas e formaram a África Proconsular, sob
a administração de um procônsul, originário da
ordem senatorial. A partir daí, o domínio romano foi se expandindo, no sentido leste-oeste, até
as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar),
e, no sentido norte-sul, do litoral mediterrâneo
às cadeias montanhosas do Atlas saariano.
2. A África pelos romanos
O elefante era um dos animais mais emblemáticos da fauna africana juntamente com o
leão. Desde a Pré-História, os animais selvagens
eram representados nas gravuras rupestres encontradas ao sul de Orã (noroeste da Argélia) e
estavam relacionados à atividade de caça (Gautier 1952: 27 e 161; Souville 1992: 52 e 57), bastante praticada entre os povos norte-africanos,
segundo Salústio (Guerra de Jugurta XVIII). O
Regina Maria da Cunha Bustamante
interesse pelos animais não se restringia apenas
ao fornecimento da carne e da pele. No caso
específico do elefante, deve-se destacar que o
comércio do marfim já existia com a Península
Ibérica desde 2000 a.C. (Desanges 1983: 431)
e que o animal domesticado era utilizado nos
exércitos cartaginês (Políbio. História I, 11; I, 18;
I, 30; I, 34; I, 39; III, 1; Apiano. História Romana IX; Frontino. Estratagemas IV, 7, 18; Floro.
Epítome de História Romana II, 13, 67; Plínio, o
Velho. História Natural VIII, 8.) e númida (Salústio. Guerra de Jugurta XLIX e LII). Na 2ª Guerra
Púnica, a presença de elefantes1 nas tropas
de Aníbal, sua façanha de atravessar os Alpes
com estes imensos e pesados animais e a grave
ameaça da tomada de Roma pelos cartagineses
marcaram o imaginário romano. Assim, entre os
romanos, houve a forte associação entre África e
elefante, constituindo sua representação social,
que serviu para classificar e definir a “alteridade” africana e colocá-la num contexto familiar.
Em 81 a.C., foi cunhado um denário2 cujo
reverso apresentava o elefante. No seu exergo, há
inscrição Q C M P, referência a Quintus Caecilius
Metellus Pius Scipio, que recebeu o nome de Pius
por sua piedade filial quando das suas gestões
pelo regresso do seu pai, Cecílio Metelo Numídico, exilado em 99 a.C. Daí, no anverso deste
denário, se apresentar a cabeça perfilada da Pietas
com diadema, tendo, à sua direita, a cegonha, ave
consagrada a Juno pelos romanos, simbolizando
a piedade filial (CIRLOT, 1985: 130). O elefante
fazia alusão à atuação paterna na guerra contra o
númida Jugurta (112-104 a.C.), quando se destacou na reorganização das tropas romanas e na
obtenção de importantes vitórias. Assim, em 107
a.C., quando regressou a Roma, foi celebrado um
esplêndido triunfo e recebeu o epíteto de Numidicus por atuação na África.
(1) Durante o conflito entre Roma e o rei Pirro de Épiro, que
invadiu a Itália em 280 a.C., houve o primeiro contato dos
romanos com os elefantes compondo uma força militar. Um aes
signatum, do início do século III a.C., tem, numa de suas faces,
o elefante e, na outra, um porco, que pode ser uma referência
à bizarra ocasião em que, numa das batalhas contra Pirro, os
elefantes das suas tropas se assustaram com os grunhidos dos
porcos, mantidos pelo exército de Roma para sua alimentação.
(2) Norte da Itália; 81 a.C.; RCC 374/1.
Em moedas berberes3 do século I a.C.,
emitidas por Hiarba, rei massílio, e por Juba I,
rei númida, figura o busto feminino adornado
com uma coroa lembrando a cabeça de elefante:
grandes orelhas, tromba e presas. Este tipo de
coroa foi também utilizado em diferentes lugares e períodos, como por exemplo, em moedas
com Alexandre Magno, cunhadas por Ptolomeu I no século IV a.C.; em representações de
Agatócles de Siracusa, para comemorar a vitória
sobre Cartago; e, em moedas do século II a.C.,
cunhadas por reis bactrianos, vitoriosos na
campanha contra os indianos.
A representação da África pelos romanos
como mulher com a coroa elefantina é o que
encontramos no anverso de um raro4 áureo (Fig.
1), cunhado para comemorar o segundo triunfo
de Pompeu em 71 a.C., quando da sua vitória
sobre Sertório na Hispânia, conforme indicado,
no reverso, pela quadriga triunfal (conduzida
por um ginete, montado num dos cavalos)
trazendo Pompeu, que segura uma palma com a
mão direita, e a Vitória voando com a coroa.5 O
anverso faria referência a uma vitória na África,
como apontada pela coroa de louros que circunda a representação da África, que se encontra
ladeada por uma oenochoe (vaso), à esquerda, e
um lituus (bastão augural), à direita, apetrechos
religiosos. Como bem observado por Maricí
Magalhães, estes dois objetos conferem o caráter
de divindade à África.
Fig.1. Aureus; Espanha; tradicionalmente, datado de 71
a.C.; RCC 402/1a (anv.) e 402/1b (ver.).
(3) Um estudo sobre as emissões monetárias berberes foi
realizado por Kormikiari (2001).
(4) Há apenas quatro exemplares conhecidos.
(5) No exergo, há a inscrição PRO·COS.
71
A construção romana das representações sociais da África através das moedas.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.
Quando a Guerra Civil do 1º Triunvirato
alcançou a África, foram cunhados denários
para pagamento das tropas, que tinham elefantes como tipos monetários. Entre 47 e 46 a.C.,
Cecílio Metelo Pio Cipião liderou a resistência
pompeiana contra as tropas de César na África.
Filho de Públio Cipião Nasica, logo, descendente de Cipião Africano, que derrotou Aníbal
pondo fim a 2ª Guerra Púnica, foi adotado
por Quinto Metelo Pio, aliado de Sula contra
Mário e seus partidários. Embora não fosse um
patrício, sua riqueza e conexões familiares lhe
deram influência política. Estabeleceu estreitas
relações com Pompeu, que se tornou, em 53
a.C., marido de Cornélia (recém-viúva do filho
de Marcos Licínio Crasso), filha de Cecílio
Metelo. No ano seguinte, Pompeu o fez seu colega no consulado, convertendo-se, a partir de
então, num aberto adversário de César. Assim,
em 49 a.C., defendeu que César devia licenciar
seu exército no rio Rubicão, se não quisesse
ser declarado inimigo da pátria. Após a vitória de Júlio César na Batalha de Farsália na
Grécia em 48 a.C. e da morte de Pompeu no
Egito, Cecílio Metelo se uniu a Pórcio Catão e
demais partidários pompeianos na África para
resistir às forças cesaristas.
Neste momento, foram cunhados denários
com a figura do elefante, na medida em que a
África se constituiu num bastião de resistência
da facção dos nobilitas contra uma forma de
poder pessoal que desestabilizaria a República
oligárquica senatorial nos moldes, então, vigentes. Um dos denários (Fig. 2) reitera, no anverso, a representação perfilada da África personificada com a coroa elefantina, que teve acrescida
a referência à sua fertilidade agrícola, mais
especificamente, cerealífera, através da espiga de
trigo, à direita, e do arado, embaixo. O anverso completa-se com as inscrições SCIPIO IMP
(à esq.) e Q METELL (à dir.). No seu reverso,
Hércules em nu frontal, com a mão direita nos
quadris, encosta-se na clava, sobre uma pedra,
coberta por uma pele de leão. Assim, conjura
a virtude guerreira – e a almejada vitória – e se
faz também menção às Colunas de Hércules
(Estreito de Gibraltar), que separa África da
Hispânia. À direita, há inscrição EPPIVS e, à
esquerda, LEG F C.
72
Fig. 2. Denarius; oficina militar itinerante na África;
47-46 a.C.; RCC 461/1.
Outro denário6 refere-se ao lendário Cipião,
o Africano, vencedor do temível Aníbal e ancestral de Cecílio Metelo. A imagem perfilada e
laureada do Senhor do Olimpo, Júpiter, encontra-se no anverso do denário, acompanhada da
legenda monetária Q METEL PIVS. No reverso,
o elefante e, no seu exergo, SCIPIO IMP. Mesmo com os seus ancestrais vitoriosos em campanhas na África, infelizmente para Cecílio Metelo, a Vitória não lhe favoreceu. Foi derrotado
na Batalha de Tapso em 46 a.C., mas conseguiu
escapar. Quando fugia para Hispânia, uma tempestade arrastou seus navios para costa africana,
sendo capturado por P. Sítio, general de César,
e acabou por se suicidar em Hippo Regius.
No grupo das emissões monetárias de Cecílio Metelo na África, há um denário (Fig. 3) em
que a África está representada de outra forma no
seu anverso, enquanto, no reverso, há a tradicional imagem da Vitória alada, em pé, virada
para a esquerda, segurando um longo caduceu
numa das mãos e, na outra, um pequeno escudo
redondo. Do lado direito da Vitória, a legenda P
CRASSVS IVN (P. Crassus Junianus) e, do esquerdo, LEG PRO P R (legatus pro praetore). A “alteridade” africana se revela no anverso: uma figura
frontal feminina em pé, com vestido comprido
ricamente adornado, tendo a mão esquerda ao
peito e, com a direita, segura um objeto, que foi
identificado como um ankh, símbolo egípcio da
vida. Maria Cristina Kormikiari, quando da apresentação deste estudo no evento do LARP, propôs a possibilidade de outra leitura para o objeto
– bem pertinente, ao nosso ver, por estar mais
(6) Provavelmente, Útica; 47-46 a.C.; RCC 459/1.
Regina Maria da Cunha Bustamante
diretamente relacionada ao ambiente religioso
púnico –: o objeto da mão direita poderia ser o
“signo de Tanit”, símbolo antropomorfo, bastante presente em restos arqueológicos de origem
púnica, composto de um triângulo, cujo vértice
superior sustenta uma linha horizontal e, acima
desta, um disco, representando a deusa púnica
Tanit, protetora de Cartago e consorte de Baal
Hamon (Nicolet 1997: 588). Na moeda, a cabeça
do corpo feminino é leonina, assemelhando a
deusa egípcia Sekhmet.7 Na extremidade superior
da moeda, na altura da cabeça da figura antropozoomórfica, há inscrição GTA e, ladeando a
figura feminina, SCIPIO IMP (à dir.) e Q METEL
PIVS. (à esq.). Estamos frente ao Genius8 Tutelaris
Africae ou Genius Terrae Africae: GTA.
Fig. 3. Denarius; Útica; 47-46 a.C.; RCC 460/4.
Era a divindade protetora da África e estava
associada à Tanit cartaginesa. A Dea Africa estava imbricada em todas as atividades da vida dos
antigos africanos. No século I, Plínio, o Velho
(História Natural XXVIII, 24) expressava a relevância da deusa para os africanos: “Na África,
ninguém toma nenhuma resolução sem antes ter
invocado a Dea Africa.” A História Augusta (Vida
de Macrino III, 1) confirma a continuação desta
deferência, pois informa que os governadores
(7) Na mitologia egípcia, Sachmet, Sakhet, Sekmet ou Sakhmet
(“a poderosa”) é a deusa da vingança e das doenças. Muito
temida no antigo Egito por ser o símbolo da punição de
Rá, o Deus-Sol, que a enviou para destruir os humanos que
conspiravam contra ele.
(8) Varrão, segundo o bispo Agostinho (A Cidade de Deus VII,
13), definiu genius como um deus preposto a tudo que deve
ser engendrado e que tem poder neste domínio. Esta ampla
definição englobava, portanto, cada pessoa, família, província,
colégio, unidade militar, lugar e coletividade. Simboliza, na
cultura romana, a energia vital.
romanos da África consultavam a deusa.9 Ela foi
relacionada ao princípio feminino, que presidia
a fecundidade da terra, o que se evidencia através de alguns de seus atributos, como a cornucópia,10 distanciando-a da destruidora Sekhmet.
No final do século II, Tertuliano (Apologética
XXIV, 7) citou Africae Caelestis11 como uma
divindade da região norte-africana. Esta grande
divindade feminina tornou-se a patrona da
África e, notadamente, de Cartago, a principal
cidade da região e uma das mais importantes
do Mediterrâneo Ocidental. O célebre templo
da deusa e seu oráculo persistiram em Cartago
até 421 (Halsberghue 1984: 2207 et ss.; Le Glay
1966: 1233-1239).12 A deusa foi protegida e inclusive privilegiada pelos romanos em Cartago,
segundo Ulpiano (Regra XXII, 6). No início do
século III, a imperatriz Júlia Domna,13 esposa do
Septímio Severo, imperador de origem norte-africana, foi identificada com a divindade africana numa inscrição de Mogontiacum (CIL XIII,
6171). Em 221, o então imperador Heliogábalo,
também pertencente à domus severiana, deu-lhe
um lugar em Roma junto com Sol Inuictus, o
que, de acordo com Herodiano (História Romana
V, 6, 4), foi aparentemente uma boa ocasião
para transladar o tesouro cartaginês da deusa.
Seu templo no Capitólio romano manteve-se
até pelo menos 259 (ILS 4438). Entretanto, o
(9) Momogliano (1992: 212), entretanto, levanta dúvidas
quanto ao valor desta afirmação da História Augusta.
(10) Corno da abundância; símbolo dos inesgotáveis dons
presenteados ao homem sem sua intervenção direta; espécie
de corno do qual emanam sem cessar frutos e outras dádivas
deleitáveis (Biedermann 1993: 124-125).
(11) O termo Africae Caelestis aparece numa inscrição (AE 1976,
312 = 1973, 294) encontrada na Hispânia Tarraconesa e datada
entre o final do século III e o início do seguinte.
(12) Chastagnol (1994: CL), entretanto, embasando-se na
História Augusta, considera que o oráculo do templo cartaginês
foi fechado por intervenção de funcionários públicos em 399,
antes de o santuário ser convertido em igreja cristã, aproximadamente oito anos depois (Agostinho. A Cidade de Deus XVIII,
4; Quodvultdeus. Livro das promessas e predições de Deus III, 4).
(13) Sobre esta imperatriz, ver Gonçalves (2013: 100-106) que,
ao abordar a construção da imagem imperial em Septímio
Severo e Caracala, faz uma análise cotejada entre a documentação escrita (literatura e epigrafia) e a imagética (moedas,
estátuas, camafeus e pinturas) sobre Júlia Domna, importante
elemento da domus imperial severiana por ser esposa de Severo
e mãe de Caracala e Geta.
73
A construção romana das representações sociais da África através das moedas.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.
culto a Dea Africa aparece em algumas ocasiões
como hostil ao governo de Roma. Na História
Augusta (Vida de Pertinace IV, 1-2), há referência a rebeliões sufocadas na África por Pertinace
em fins do século II, que foram inspiradas pelas
profecias emanadas do templo da deusa.14
A representação antropozoomórfica da
Dea Africa como uma mulher leontocéfala foi
alterada. No período imperial, houve sua humanização e o leão se tornou seu atributo Foi assim
que Dea Africa aparece no reverso do áureo (Fig.
4) do imperador Adriano, para comemorar sua
visita à região: com sua coroa elefantina, um
de seus braços está sobre uma cesta de frutas,
tendo atrás duas espigas de trigo; reclinada,
afaga com a outra mão a cabeça do leão; acima
à esquerda, a legenda AFRICA. No anverso, o
busto perfilado para esquerda com sua então
titulação: HADRIANVS e AVG COS III PP.
Fig. 4. Aureus; Roma; 134-138; RIC 298.
Também acompanhada pelo leão, a vemos
no reverso de um áureo (Fig. 5), emitido sob o
governo de Septímio Severo. Mas, agora, ela está
cavalgando o animal, que salta sobre um rio. Na
mão esquerda, segura um longo cetro e, na direita, raios. Circunda a legenda INDVLGENTIA
AVGG e, no exergo, IN CARTH. No anverso, o
perfil laureado do imperador para a direita com
sua titulação: SEVERVS PIVS AVG.
(14) Há controvérsias quanto a esta passagem, pois há uma
corrupção do texto. Picard (1959: 41-62) defende o emprego
da palavra canum em lugar de earum para qualificar o oráculo
fundamentando-se na comparação com outros textos. Momigliano (1992: 212) não aceita esta colocação. Chastagnol (1994:
260, n. 1), apesar de adotar a palavra canum com reticências,
reconhece o caráter oracular do templo da deusa em Cartago,
mas ressalta que a existência de sublevações não é certa. Ver
também Zecchini (1983: 150-167).
74
Fig. 5. Aureus; Roma; 204; RIC 207.
Este mesmo imperador também cunhou
um denário,15 em cujo reverso há a Dea Africa;
sua mão esquerda segura a dobra do manto e o
braço direito está coberto, provavelmente, com
uma pele de leopardo; aos seus pés, o leão. No
anverso, o perfil laureado do imperador voltado
para a direita e sua identificação: SEVERVS
PIVS AVG.
Dea Africa possuía outros atributos, além
do leão, como por exemplo, cornucópia para
enfatizar a riqueza agrícola da região. Esta
prosperidade acentuou-se durante a ascensão da
dinastia dos Severos (193-235), de origem africana e síria, ao poder imperial, quando houve um
período de grande prosperidade para as províncias norte-africanas. Randsborg (1991: 128) nos
apresenta um quadro com os percentuais de
ânforas das várias partes do Império Romano
para o porto italiano de Óstia, resultante dos
trabalhos de arqueologia subaquática realizados
por Anselmino e sua equipe, no qual se destaca
a expressiva importação de produtos norte-africanos a partir de meados do século II (55%),
alcançando seu apogeu na primeira metade do
século III (71%).
Assim, encontramos, no reverso do denário
(Fig. 6) do governo de Adriano, África sentada
e recostada num monte de pedras, com a mão
esquerda segura a cornucópia e tem aos seus
pés um cesto com frutos. Na outra mão, há
um enigmático escorpião. Tradicionalmente,
o escorpião é considerando negativamente
por ser um animal peçonhento devido às suas
quelíceras e à cauda armada com um aguilhão
venenoso (Lurker 1997: 232-233; Cirlot 1985:
(15) Roma; entre 202 e 210; RIC 253 S.
Regina Maria da Cunha Bustamante
188; Biedermann 1993: 173). Entretanto, Biedermann (1993: 173) pontua que, para compensar sua ameaça mortífera, o escorpião também
era associado a veracidade e ressurreição. Ele
aparece ainda no mitraísmo, como observado
por Maricí Magalhães.16 Lurker (1997: 233)
informa que “em combinação com Mercúrio,
o escorpião pode ser símbolo da abundância e
da sorte”, o que estaria mais condizente com os
outros elementos da moeda: a cornucópia e o
cesto com frutos. A legenda da moeda não deixa
dúvida sobre a identificação da personagem:
AFRICA. No anverso, o busto perfilado e laureado do imperador e seus títulos: HADRIANVS
AVG COS III P P.
Fig. 6. Denarius; Roma; 134-138; RIC II 299d; BMC 813.
Esta mesma representação da Dea Africa
e seu enigmático escorpião encontram-se no
denário17 cunhado por Septímio Severo, cuja
titulação aparece no anverso (SEVERVS PIVS
AUG) circundando seu perfil laureado.
Busca-se também reiterar o aspecto da
submissão da região ao domínio romano. No
reverso do sestércio18 – (SC: Senatus Consultum)
– cunhado sob Adriano, a personificação da
África encontra-se ajoelhada e estende uma das
mãos ao imperador e com a outra segura uma
cornucópia. A inscrição monetária enfatiza a
situação de subjugação: RESTITUTORI AFRI-
(16) Na mitografia mitraica do sacrifício do touro por Mitra,
da coluna vertebral do touro saiu trigo e o seu sangue tornouse vinho, o seu semen, recolhido e purificado pela lua, gerou
animais úteis ao homem. Ao local do sacríficio, chegaram: um
cão, que comeu o trigo, um escorpião, que enfiou as suas pinças
nos testículos do animal, e uma serpente (Turcan 1992: 218).
(17) Roma; entre 202 e 210; RIC I 254 s.
(18) Roma, 134-138, RIC 940 f.
CAE. No anverso, o perfil imperial laureado
com seus títulos HADRIANVS AVG COS III PP.
Conclusão
As emissões monetárias romanas permitiram ancorar a ideia “estranha” – a África –,
reduzindo-a a categorias e imagens comuns,
como leão e, especialmente, o elefante, visando inseri-la num contexto familiar. O elefante
tornou-se, assim, um dos atributos mais característicos da África. Contudo, ele foi sendo
investido de um valor positivo, afastando-o da
traumática memória do elefante como a arma
aterrorizante dos exércitos de Pirro e Aníbal.
África foi objetivada nas moedas como uma terra exótica, rica e submissa; esta imagem mental
permitiu sua apropriação pelos romanos. De
selvagem e belicosa, a África foi “humanizada” e
“domesticada”. Tornou-se mais uma região sob
a égide do poder romano. Na apresentação oral
deste trabalho, Gilvan Ventura da Silva lembrou
a tradição clássica de personificação das regiões
como figuras femininas. De fato, nomeava-se
a terra com a forma feminina na medida em
que nela se geravam os seus naturais, que eram
sustentados através de sua exploração, similarmente à mãe que dá a luz aos filhos e os amamenta. A terra era vista como potência e reserva
inesgotável de fecundidade, gerando filhos e
riquezas. Huskinson (2000: 7-8) ressalta que
havia também a questão de gênero para explicar
a utilização da personificação feminina como
entidades culturais e geográficas das províncias
imperiais: representadas por mulheres, as províncias possuíam outra característica associada
ao feminino, a vulnerabilidade, situando-as, assim, numa posição inferior em relação a Roma.
As emissões monetárias romanas foram um
dos meios privilegiados para efetivar o processo
de ancoragem da “alteridade” africana. Observamos que a representação social romana da
África tornou-a concreta – objetivada – transformando o que era “exótico” e “ameaçador”
em algo que pôde ser visualizado e apropriado.
África era uma região estratégica em termos
geopolíticos e econômicos, o que levou a interações – pacíficas e bélicas – com os romanos.
75
A construção romana das representações sociais da África através das moedas.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.
Logo, a região reunia “espessura” ou “relevância” suficiente para ser representada pelos
romanos. Evidenciamos, nas moedas romanas,
a transformação da África em algo que pôde ser
visualizado e, asssim, houve uma apropriação
romana do “outro”. A moeda constituiu-se num
poderoso e eficaz instrumento de transmissão,
divulgação, pois era utilizada cotidianamente
e se caracterizava pela facilidade de transporte
e, dependendo do tipo de moeda, pela ampla
circulação. A leitura e a compreensão das
moedas demandavam o compartilhamento de
uma representação socialmente reconhecível,
fundamentando-se, para tanto, no senso comum. Desta forma, os romanos controlavam o
“outro”: passaram, então, do discurso imagético
da moeda para uma prática política de domínio,
nomeando, classificando, pensando e traduzindo posições e interesses hegemônicos romanos
ao descrever a África tal como pensavam que ela
era ou... como gostariam que fosse.
Agradecimentos
À Profª Drª Maria Isabel D’Agostino Fleming pelo convite para participar do I Simpósio
do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP): Representações da Romanização
no Mundo Provincial Romano. Aos colegas
presentes no evento pelas suas observações que
contribuíram para o aperfeiçoamento do presente trabalho. À pesquisadora Profª Drª Maricí
Martins Magalhães pela leitura crítica do texto.
BUSTAMANTE, R.M. da C. The Roman construction of social representations of
Africa by means of coins. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 69-77, 2014.
Abstract: In the Ancient Mediterranean, Rome was noteworthy for being
one of the biggest empires, containing different peoples, among them, the
North African ones. For that to happen, it was needed, among other things,
the elaboration and consolidation of meanings and values, that based and
organized the Roman actions and their “self” image, and concurrently, their
image of “others”, generating a differentiation and constructing hierarchies. In
this work, we will analyze the Roman strategies of definition and recognizing
of Africa by means of coins minted since the end of the Republican period
until the beginning of the Severus imperial dynasty. We chose to work with the
Social Representation Theory in the school of Social Psychology as developed
by Moscovici, centering in the processes of anchoring and objectification.
Keywords: Ancient Rome – North Africa – Social representation – Coin.
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77
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade
nas moedas do Império Romano
Vagner Carvalheiro Porto*
PORTO, V.C. A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do
Império Romano. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 79-87, 2014.
Resumo: É nosso objetivo neste trabalho introduzir e discutir a cidade
como discurso ideológico evidenciando a monumentalidade presente nas
moedas do Império Romano. A iconografia monetária será o veículo pelo qual
pretendemos, neste espaço que nos é dedicado, identificar o monumento como
suporte da memória, a cidade como suporte de um discurso construído. Também dedicaremos nossa atenção à forma como as moedas foram empregadas
para fortalecer o culto imperial no contexto da ideologia imperial romana.
Palavras-chave: Monumentalidade – Império Romano – Iconografia monetária.
Introdução
N
este texto apresentarei minhas reflexões acerca da monumentalidade, dos
monumentos nas moedas, e trarei à tona – na
medida do possível – questões relevantes que
colegas apresentaram no I Simpósio do LARP.1
Antes de entrar na temática na monumentalidade propriamente dita, gostaria de enfatizar
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana provincial – LARP.
<[email protected]>
(1) Coube a mim proferir a Palestra de encerramento do I
Simpósio do LARP. Desde já agradeço à Profa. Maria Isabel
D’Agostino Fleming, coordenadora do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial, e aos organizadores do evento pela
excelente condução deste simpósio. Destaco a harmoniosa
integração entre historiadores, arqueólogos e estudiosos da
realidade virtual, assim como o comprometimento de todos os
envolvidos pela ótima qualidade dos trabalhos apresentados e
aqui publicados. Por fim, saliento as valiosas intervenções dos
professores que compuseram este evento.
que as pesquisas do LARP - Laboratório de
Arqueologia Romana Provincial MAE/USP, se
pautam pelos debates em torno dos seguintes
temas: imperialismo romano; exército; romanização; alteridade/identidade; identidade e
discurso; religião e política; urbanismo/urbanização; transformação dos espaços públicos;
monumentalidade; iconografia; espaço doméstico: tecnologia, produção e consumo; território
e paisagem, entre outros. Nesse sentido, nosso
Simpósio visou sistematizar as recentes questões
teóricas a respeito da presença de Roma em
suas áreas de dominação dentro e fora da esfera
mediterrânica e analisá-las em conjunto com os
documentos arqueológicos de suas províncias,
de modo a entender a atuação do Império nas
diversas localidades, assim como as respostas
dadas a ele. Tal objetivo pressupõe a compreensão dos processos de interação cultural multidirecionais que se estabeleceram entre Roma e as
províncias.
Assim, como preconiza o LARP, nossa
apresentação teve a preocupação de se inserir no
79
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.
atual debate concernente à monumentalidade:
procuramos observar a esfera do monumental
pelo prisma tanto das estruturas arquitetônicas
e estudos de espacialidade (formas construídas),
como por um olhar que procura integrar grandes
edifícios com o fluxo de pessoas, objetos, ideias
e práticas (o conhecido ambiente construído de
Amos Rapoport2). É nessa perspectiva, também,
que Chris Gosden e Yvonne Marshall (1999)
assinalam a agência dos objetos, na busca das
interações sociais que envolvem pessoas e objetos,
de modo a compreender como a mudança de significados destes é negociada e renegociada através
da vida de um determinado objeto.
Outra autora importante para a nossa
reflexão é Janet Huskinson, que em seu trabalho Experiencing Rome: culture, identity, and Power
in the Roman Empire (2000) também aponta
o importante papel das construções públicas,
cujas funções e formas estavam articuladas aos
ideais romanos e à falta de homogeneidade que
se revela nas construções arquitetônicas das
províncias. E por falar em províncias, no caso
das moedas, as emissões monetárias romanas
serviam de referência para os tipos iconográficos
nelas utilizados. As elites locais decidiam quais
tipos imagéticos seriam cunhados nas moedas
e em que momento, segundo o interesse da
cidade. Durante o I Simpósio do LARP, Renata
Garrafoni, lembrando Richard Hingley,3 em
sua apresentação Pompeia e os romanos: algumas
abordagens pós-coloniais nos apontou que os
locais procuravam “imitar os povos romanos em
diferentes escalas inclusive na escrita”. Seguindo
na mesma direção, Fabio Faversani em sua fala
A aristocracia “não-romana” em Tácito refere-se à
opinião deste autor, segundo o qual os povos
provinciais se quisessem romanizariam Roma.
Monumentalidade: ecos na historiografia
Ao analisarmos a monumentalidade sob
uma perspectiva historiográfica encontramos
(2) Este tema pode ser aprofundado no trabalho de Amos
Rapoport (1982).
(3) Esta abordagem pode ser aprofundada em Hingley (2000).
80
ecos importantes em Henri Lefebvre que, em
A revolução urbana (1999) nos diz que: “em toda
parte a monumentalidade se difunde, se irradia,
se condensa, se concentra. Um momento vai
além de si próprio, de sua fachada (se tem uma),
de seu espaço interno. A monumentalidade
pertence, em geral, a altura e a profundidade,
a amplitude de um espaço que ultrapassa seus
limites materiais”.
Também Jacques Le Goff, em seu capítulo intitulado Documento/Monumento (1990),
busca as origens etimológicas dessas duas
palavras, e mostra as formas diferentes como
esses termos têm sido utilizados pelos historiadores ao longo do desenvolvimento da ciência
histórica. Vejamos o que escreve este autor
sobre monumento:
“A palavra latina monumentum remete
para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo
monere significa ‘fazer recordar’, donde
‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo
às suas origens filológicas, o monumento
é tudo aquilo que pode evocar o passado,
perpetuar a recordação, por exemplo,
os atos escritos. Quando Cícero fala dos
monumenta hujus ordinis (registros dessa
ordem) [...], designa os atos comemorativos, quer dizer; os decretos do senado”.
(Le Goff 1990: 535).
Le Goff afirma que desde a Antiguidade
romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: uma obra comemorativa
de arquitetura ou de escultura, como arco de
triunfo, coluna, troféu, pórtico etc.; e como um
monumento funerário destinado a perpetuar a
recordação de uma pessoa no domínio em que a
memória é particularmente valorizada, a morte
(Le Goff 1990: 95).
Continuando nossa observação de como
autores contemporâneos conceberam a monumentalidade, encontramos em Nietzsche, em
seu trabalho Crepúsculos dos Ídolos (2006), uma
reflexão importante em que o filósofo considerava a arquitetura como uma espécie de eloquência do poder. Diz ele:
Vagner Carvalheiro Porto
Os homens mais poderosos sempre
inspiraram os arquitetos; o arquiteto
esteve continuamente sob a sugestão do
poder. No edifício, o arrojo, a vitória
sobre a gravidade, a vontade de potência
devem ser tornadas visíveis: a arquitetura
é uma espécie de eloquência do poder
pelas formas, ora convincente e até
acariciante, ora dando somente ordens.
O sentimento mais elevado de potência e
de segurança encontra sua expressão naquilo que é de grande estilo. A potência
que não necessita mais de demonstração,
que desdenha o agradar, que dificilmente responde, que não vê testemunhas
em torno de si, que, sem ter consciência
delas, vive de objeções que lhe são feitas,
que descansa sobre si mesma, fatalmente, uma lei entre as leis: aí está o que fala
de si mesmo em grande estilo. (Nietzsche
2006: 26).
Nessa mesma linha, Michel Foucault,
estudioso das práticas e relações de poder, em
a Microfísica do Poder (1993) também apresenta
a estreita vinculação entre arquitetura, espaço
e poder. Segundo ele, seria preciso fazer uma
‘história dos espaços’ – que seria ao mesmo
tempo uma ‘história dos poderes’ – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até
as pequenas táticas do habitat, da arquitetura
institucional, da sala de aula ou da organização
hospitalar; passando pelas implantações econômico-políticas.
Foucault nos faz chegar a um ponto fulcral
de nossa apresentação: do monumento como
suporte da memória. Da cidade como suporte
de um discurso construído. Para nós arqueólogos, historiadores, a cidade como um texto a ser
lido.
Monumentalidade nas moedas
do Império Romano
Os padrões arquitetônicos existentes nas
províncias romanas podem ser examinados por
meio da ótica da transformação dos espaços
públicos, levando-se em consideração o modo
como foi realizada a interação entre romanos e
populações locais. A inserção no espaço de um
novo templo, terma ou a implantação de um
fórum pressupõe mudanças significativas nas
quais os habitantes entram em contato com
novos ritos e costumes: é o caso do santuário de
Sulis-Minerva em Bath, no qual Louise Revell
(2009) analisa não somente o impacto do edifício público em si, mas também dos ritos a ele
relacionados, que são evidenciados pelos objetos
arqueológicos encontrados no local, tais como
páteras e tabletes de maldição.
Tão logo conquistavam as províncias, seja
do lado oriental seja do lado ocidental do Império, os romanos tratavam de fazer do entorno
urbano um lugar digno para viver, providenciando o que era necessário: esgoto, aquedutos,
fontes, pontes, termas, banhos, pavimento, serviços de incêndios e de polícia, mercados e tudo
aquilo que era preciso para que vivessem com
todos os refinamentos possíveis para melhorar
a qualidade de vida de seus habitantes. Além
disso, havia motivos de adornos e comemoração
como as colunas e os arcos do triunfo. Tudo
isso era reiteradamente propagandeado pelo
Império, de várias formas, dentre elas, através
das moedas. Como exemplo, apresentamos um
sestércio produzido por Nero (Fig. 1) que traz
em seu reverso o porto de Óstia visto de cima,
rodeado por edifícios do porto e as galeras no
centro. Acima, farol com estátua de Netuno;
abaixo, personificação do rio Tibre. Esta moeda comemora as ações de Nero para garantir
um fornecimento estável de grãos para Roma.
Mostramos também duas moedas (Fig. 2) que
retratam imponentes aquedutos que simbolizam
aqui o urbanismo romano. A primeira moeda
traz um aqueduto, o Acqua Marcia, que foi
finalizado em 140 a.C. por Q. Marcius Rex. A
segunda moeda, um áureo de ouro de Claudio
que foi cunhado para comemorar as vitórias de
seus generais na Alemanha. Cláudio convertera
um dos arcos de um aqueduto, o Acqua Virgo
em um monumental arco do triunfo o Regio VII.
Roma causou impacto em todo o Império
com suas bem marcadas formas de urbanismo.
Na Judeia, por exemplo, o período romano em
geral é caracterizado pela atitude ambivalente da
comunidade judaica para com o governante: por
81
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.
Fig. 1
um lado eles reconheciam construções e projetos desenvolvimentistas, mas por outro lado,
existiam atos negativos que provocavam uma
constante apreensão dos judeus em relação às
intenções adversas dos romanos. Uma passagem
do Talmude possui uma boa explicação para a
situação:
R. Judá inicia [a discussão] observando: “Como são finos os trabalhos do
povo [romano]! Eles têm feito estradas,
eles têm construído pontes, eles têm erigido banhos”. R. José fica em silêncio. R.
Simão b. Yonai respondeu-lhe dizendo:
“tudo o que eles fazem, eles fazem para
eles mesmos; eles constroem mercados
para colocar prostitutas para eles; banhos
para rejuvenescê-los; pontes para levar
ferramentas para eles” (Shabbat, 33b apud
Meshorer 2001: 172).
A cooptação das elites locais ou a resistência destas são elementos que contribuíram para
o desenvolvimento da morfologia da cidade
romana: pouco a pouco, edifícios públicos
para o governo, fóruns e suas várias funções
(religiosa, cívica e comercial), o culto e a diversão: palácios, templos, foros, basílicas, teatros,
anfiteatros, circos, mercados, portos, banho etc.;
todos construídos a partir da planta que melhor
se adequava aos anseios romanos na região,
foram se conformando às múltiplas realidades,
aos múltiplos anseios.
A propósito do caráter religioso da monumentalidade empreendida pelos romanos,
Paul Zanker sugere algumas reflexões a respeito
de como devemos ver as imagens do Império
Romano. Segundo ele, nos derradeiros anos
da República, diante das disputas entre facções
82
Fig. 2
políticas, se acentuaram os excessos na forma de
representação individual dos romanos, principalmente dos membros das elites (Zanker 1992:
41-42). Dessa forma, foi prioridade das lideranças políticas e dos grandes generais difundir
seus cultos pessoais numa monumentalização
triunfal de tipo religioso dedicado aos seus próprios feitos, às suas divindades patronais e/ou
seus ancestrais. Zanker também dedica grande
atenção ao culto Imperial. Ele nos diz que o culto ao Imperador acirrou rivalidades entre elites
de Roma e de toda província.
A cidade no Império Romano constituiu
uma imagem ou representação de ideias, imaginação e cosmologia, que era uma visão dos
valores culturais associados com Roma naquele
determinado lugar.
Em seu texto Habitação e cidade: ordenação
do espaço no mundo clássico, Francisco Marshall
(2000) nos lembra que edificar era um ato de
poder. Templos, sepultamentos, altares e paisagem se articulam como nexos que são referências da comunidade, organizando o espaço e
assegurando a identidade das pessoas que vão
morar naquele local.
Hoje sabemos com muito maior precisão
o quanto a esfera do sagrado decide no processo de estabelecimento do espaço da área a ser
habitada, e dos limites e fronteiras do território.
Aqui abro parênteses para destacar a palestra
Vagner Carvalheiro Porto
de Norberto Luiz Guarinello, Fronteiras. Nela,
Guarinello expôs suas reflexões sobre a fronteira, destacando a fronteira política e culminando numa ideia de fronteira do tempo futuro.
Incluo também a fala de Pedro Paulo Abreu
Funari, A contribuição da Arqueologia da Bética
para o estudo da economia romana, e as questões
que podem ser pertinentes a uma fronteira econômica. Consumo associado a uma rede militar
(poder), mas que possui caráter econômico e
extra-econômico.
No mundo romano, a fundação e refundação das cidades dialogam com a questão da fronteira. Os romanos substituíam as já existentes
pólis por intermédio de um ritual de fundação
da nova colonia. Bird, North e Price (1998: 313)
comentam, a propósito da fundação das novas
coloniae, que todas as estruturas simbólicas da
colonia enfatizam seu status como ‘mini-Romas’
a partir do momento de sua fundação, conduzida com ritos que ecoam a fundação mítica de
Roma propriamente dita: “os auspícios foram
tomados – como Rômulo no bem conhecido
mito – o fundador arando em torno do lugar,
suspendendo o arado onde os portões deveriam
estar; dentro dessas fronteiras definidas, nenhum sepultamento poderia ser feito”. Roma,
assim, estabelecia sua soberania e definia os
territórios em torno dos quais se ordena a cidade. Rito que funda a realeza romana e reiterado
sucessivas vezes por vários imperadores diferentes, para vários lugares diferentes.
O ato de fundação de uma nova colonia por
parte do imperador romano – que é, simbolicamente, o fundador de todas as cidades – é recorrentemente verificado nas moedas. Na moeda
cunhada em Cesareia Marítima por magistrados
locais à época do Imperador Adriano, vemos
em seu anverso o busto laureado, drapejado, e
couraçado de Adriano. O reverso apresenta a cerimônia de fundação: Adriano como fundador
arando com dois bois, demarcando as fronteiras
da nova colônia (Mattingly, Sydenham 1923:
465; Hendin 1996: 836) (Fig. 3).
Sabemos que a colonia romana originalmente era um assentamento de veteranos de alguma
legião romana, que havia recebido terras como
parte do pagamento por sua aposentadoria.
Com o tempo, o termo tornou-se sinônimo de
Fig. 3
grande status. Todos os cidadãos das coloniae
eram considerados cidadãos romanos. As coloniae – tal qual o exército – reproduziam o sistema religioso romano no exterior. O seguimento
do calendário romano pelas novas cidades
sugeria que a ordenação das práticas religiosas
romanas ditasse o ritmo da vida nas coloniae.
Os procedimentos sacerdotais também eram os
mesmos que os de Roma (Porto 2010: 15-16).
Esta delimitação das fronteiras é o ato de
estabelecimento do pomerium, o limite da cidade. Um ato semelhante é também ritualizado
na definição do centro da cidade: corta-se uma
linha na direção norte-sul (o cardus), no meio do
qual, espelhando a posição central do sol e dividindo o território em quatro partes, é estabelecido o ponto de cruzamento em que se traça a
segunda via (decumanus), no sentido leste-oeste.
As outras ruas são mais estreitas e se inscrevem
dentro de um dos quarteirões em que se divide
o retângulo.
Marshall (2000: 123-124) nos lembra que
é exatamente no local da intersecção das vias,
em um local por vezes chamado umbilicus, que
se enterravam oferendas em uma câmara subterrânea, o mundus, com que se apaziguavam os
ânimos das divindades subterrâneas e se propiciava a bonança futura da cidade.
Também a “porta da cidade” que é produzida desde o momento de fundação da nova colonia
refere-se, de acordo com Chaves Tristan et al.
(2000), ao caráter plenamente urbano que desde
o primeiro momento se pretendia dar às novas
fundações provinciais romanas. De fato, trata-se
de elementos muito representativos do urbanismo romano, que raras vezes faltam em uma
cidade que se pretende “civilizada”. Ainda segundo esses autores, as cidades provinciais hispânicas
representavam monumentos em suas produções
83
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.
monetárias porque estes, construídos efetivamente ou não, são significativos para a comunidade,
em relação à política romana de municipalização
da Hispânia. Isto significa aceitar a moeda como
instrumento de uma propaganda oficial. A realidade provincial ora procura emular, ora procura
contradizer a realidade de Roma.
Como disse Carlos Jorge Soares Fabião em
sua palestra Representar graficamente as cidades da
Lusitania: potencialidades, virtualidades e desafios,
mas também perigos e armadilhas de um processo, “a
Península Ibérica não é tão periferia assim”. Ele
cita Quinto Sertório, partidário de Mario, que
organiza uma oposição ao governo estabelecido
de Roma na Península Ibérica, e finaliza: “não é
uma guerra de romanos contra indígenas, é uma
guerra de romanos contra romanos”. Entendemos, assim, que a realidade provincial ou periférica, como queiramos chamar, diz muito mais
respeito a uma leitura totalizante do Império
Romano do que uma leitura simplista, tendenciosa, de mão única que procura sempre analisar
o Império pela ótica centralista de Roma.
A arte estatuária também fez parte do
discurso ideológico empreendido pelos romanos
e está incluída entre os símbolos da monumentalidade presentes nas moedas do Império
Romano. As estátuas informam muito a respeito
do caráter monumental da cidade e Carlos
Augusto Machado, em sua palestra Depois da
Romanização: monumentos honoríficos e integração
sócio-política no século IV d.C., afirmou que havia
“um mundo de estátuas” e que as estátuas nas
províncias consolidavam a expansão da ordem
senatorial. Dedicar uma estátua era a forma
de se declarar romano. Diz respeito ao poder
expresso em Roma e das relações fluidas entre
as províncias e Roma.
Os romanos foram os primeiros a erguer em
bronze estátuas equestres de seus expoentes. Das
muitas que o Império viu talvez a única remanescente seja a de Marco Aurélio, que pode não
ter sido derretida porque teria sido confundida
com a de Constantino, o primeiro imperador
romano a seguir o cristianismo. Essa estátua foi
retratada nas moedas romanas. Outras produções monetárias batidas desde a época de Augusto em várias localidades do Império trazem a
estátua do Imperador.
84
Outro elemento que compõe a monumentalidade e que representa o discurso de poder
romano são as estradas. Aqui, destacamos a Via
Traiana. Essa estrada construída e financiada às
expensas do Imperador Trajano, que ligava as
cidades de Beneventum a Brundisium na costa
do Adriático, tinha uma extensão de 205 milhas terrestres e era completada por dezenas de
viadutos e pontes, dos quais muitos chegaram
até aos nossos dias.
A Via Traiana foi concluída em 109 d.C.,
informação contida nos marcos miliários. Em
algumas moedas emitidas a partir de 112 d.C.
a estrada é representada no reverso, a personificação da Via Trajana (Fig. 4) é retratada como
uma figura feminina que descansa em um
trecho rochoso que poderia simbolizar as montanhas dos Apeninos atravessados ​​pela estrada,
com a mão direita sobre uma roda apoiada em
sua perna (uma clara referência a viajar por
terra), enquanto a esquerda segura um pequeno
ramo do tronco nodoso (provavelmente oleícola
típico da região da Apúlia), com a legenda: S
(enatus) P (opulus ) Q (ue) R (omanorum) Optimo Principi. Via Traiana.
A representação iconográfica desta moeda
nos demonstra como esta serviu de veículo para
a propaganda político-ideológica empreendida
por Roma. O urbanismo romano, as estradas e
marcos miliários, assim como seu modo de vida
era levado para todas as províncias do Império:
seja pela circulação dessas moedas por várias
cidades, por suas inscrições, e pela monumentalidade nelas retratada.
Do lado oriental do Império, em Flavia
Neápolis, a Shechem bíblica (atual Nablus), o
Imperador Adriano construiu sobre o Monte Garizim, um grande templo dedicado à
Fig. 4
Vagner Carvalheiro Porto
adoração de Zeus-Hypsistos (“Júpiter, o deus
supremo”), no lugar do templo samaritano
que lá existia. O templo possuía uma enorme
estrutura, que incluía um portentoso altar sobre
o outro pico da montanha com um impressionante conjunto de escadarias em caracol
que conduzia a ele, e com um enorme portão
cerimonial. Todos esses elementos arquiteturais
aparecem com riqueza de detalhes nas moedas
de Antonino Pio em diante (Fig. 5). Podemos
notar que Roma, mesmo nas províncias mais
distantes do Império, causa impacto com sua
monumentalidade (também em suas moedas),
evidenciando seu caráter de instrumentalização
política. Essas cinco moedas que compõem a Figura 5 representam o Monte Garizim, de acordo
com as descrições das fontes textuais. As duas
moedas apresentadas na parte inferior, mostram
um conjunto de elementos que nos convidam
a uma reflexão. A moeda da esquerda mostra
Zeus-Amon, um estandarte legionário (vexillum)
uma espiga de trigo e um carneiro. A moeda da
direita mostra dois columbários com pombas
dentro e a representação da loba amamentando
Rômulo e Remo.
A construção do templo de Zeus-Hypsistos
por Adriano no local em que existia um templo
samaritano acentuou a interação cultural e religiosa dos habitantes da cidade com os romanos.
A introdução arbitrária de um templo dedicado
a Zeus por Adriano (não seria a escolha de Zeus
supremo parte de uma estratégica para conseguir uma melhor assimilação da população da
cidade?) transformou-se em um culto sincrético
que combinava a crença oriental romano-helenística com a crença monoteísta dos samaritanos. A representação desses elementos nas moedas produzidas pela cidade de Neápolis, vistos
em conjunto, é a mais contundente expressão
da interação cultural e religiosa que ocorreu
depois da ocupação romana da cidade.
As moedas de Neápolis, com suas representações e inscrições, possibilitam, não somente
reconstruir a história da cidade (com as tradições locais e intervenções romanas) e observar
o antigo cenário do Monte Garizim com suas
construções no cume da montanha, como também conseguir um melhor entendimento acerca
da vida religiosa e cultural da cidade.
Conclusão
Fig. 5
Visto individualmente o vexillum simboliza
a presença da III Legião Cyrenaica estacionada
na cidade, a espiga de trigo, segundo estudiosos, pode simbolizar a fertilidade do solo
regado pelas fontes da cidade, o carneiro pode
simbolizar o animal sacrificial dos samaritanos,
a loba amamentando Rômulo e Remo é uma
alusão clara à fundação mítica da cidade por
Roma.
O I Simpósio do LARP trouxe para o
debate acadêmico brasileiro, uma gama de possibilidades temáticas concernentes ao Império
Romano. Não há dúvidas de que as apresentações contribuíram efetivamente para um maior
amadurecimento dos estudos de Roma e suas
províncias em solo brasileiro. Nesse contexto, a
mim coube discorrer sobre a monumentalidade
nas moedas.
Construções e monumentos estão entre
os mais notáveis temas representados nas moedas antigas. Produções monetárias retratando
edifícios públicos e privados se transformaram
em uma importante ferramenta de trabalho
para o historiador, arqueólogo e numismata da
atualidade, por apresentar informações sobre
estruturas arquitetônicas que muitas vezes já
sucumbiram à força do tempo.
Abordamos anteriormente alguns dos
principais tipos de construções empreendidas
pelos romanos (ou sob influência deles) e reite-
85
A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.
ramos que praticamente todos esses elementos
arquitetônicos foram retratados nas moedas que
circularam pelo Império Romano. A relação
entre moeda e monumentalização pode ser observada praticamente entre todas as cidades que
emitiram moedas durante todos os governos
romanos que se sucederam enquanto Roma foi
a senhora das províncias ocidentais e orientais.
Não temos dúvidas de que os romanos usaram
símbolos, inscrições e desenhos sobre as moedas
para promover ideias políticas, eventos sociais e
religiosos, mensagens militares ou econômicas.
Assim, dentro de um pequeno período de tempo, séculos I e II d.C., as moedas tornaram-se
uma importante fonte de propaganda política
do império.
Procuramos neste texto tratar a cidade
como discurso ideológico partindo da monumentalidade retratada nas moedas do Império
Romano. Os estudos relacionados à iconografia
monetária demonstraram seu potencial ao
revelar as sutilezas da ideologia imperial romana
(muitas vezes não tão sutis) fazendo-nos perceber o monumento como suporte da memória.
PORTO,V.C. The city as ideological discourse: monumentality in the coins of the
Roman Empire. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 79-87, 2014.
Abstract: It is our goal in this work to introduce and discuss the city as an
ideological discourse through the monumentality present on the currencies of
the Roman Empire. Monetary iconography is the vehicle through which we
will identify, in this space that is dedicated to us, the monument as memory
support, and the city as support of a built discourse. We will also devote our attention to the ways coins were used to strength the imperial cult in the context
of Roman imperial ideology.
Keywords: Monumentality – Roman Empire – Monetary iconography.
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Comunicações
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.
Graecia capta, novamente: considerações sobre os
limites da nova romanização da Grécia
Fábio Augusto Morales*
MORALES, F.A. Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova
romanização da Grécia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 91-97, 2014.
Resumo: Este texto discute o debate historiográfico e arqueológico acerca
da relação entre a dominação romana e a cultura grega, tomando o Alto
Império como ponto focal. Se até os anos 90 existia um consenso acerca do
absurdo do uso do termo “romanização” para descrever e/ou explicar a cultura
grega sob dominação romana, as últimas décadas viram alguns desenvolvimentos esparsos que acabaram por produzir uma radical revisão deste consenso.
Após traçar algumas origens da hipótese da “romanização da Grécia”, o texto
discute os limites desta abordagem tomando como exemplo as dificuldades da
interpretação de um único monumento na acrópole ateniense, o monopteros de
Roma e Augusto.
Palavras-chave: Romanização – Grécia romana – Cultura provincial.
Q
ue a romanização seja um dos principais
debates da pesquisa histórica e arqueológica sobre o Império Romano, está fora de questão. A relação que o pesquisador deve ter com este
termo, porém, é objeto de intensas controvérsias.
Romanização com “r” maiúsculo ou minúsculo?
Com ou sem aspas? Com sentido negativo ou positivo? Compreendido como processo totalizante
ou parcial? Aplicado a todo o Império ou somente
a partes dele? Enfim, a “palavra” já produziu uma
bibliografia quase comparável às “coisas” que tenta
traduzir, seja por meio dos balanços bibliográficos,
seja por meio das discussões nos capítulos introdutórios dos estudos sobre as histórias e arqueologias
provinciais romanas.
(*) Doutorando em História Social (FFLCH-USP). Professor
de História Antiga e Arqueologia (PUC-Campinas). <[email protected]>
É extremamente difícil, de fato, separar
palavras e coisas. Não se trata, certamente, de
apenas uma questão terminológica. Diferentes
paradigmas são utilizados usando, por vezes, a
mesma variação do termo – e talvez aí resida
boa parte da discussão. A identificação destes
paradigmas também não é, por sua vez, das
tarefas mais simples. É consenso que os anos
entre 1960 a 1990 viram o surgimento de
diversas correntes acadêmicas que propunham
uma revisão das grandes narrativas consolidadas
entre o final do século XIX e o início do XX, e
que afetaram não apenas a história antiga e a
arqueologia clássica, mas as ciências humanas
como um todo; correntes que buscavam as
“histórias alternativas”, as “histórias vistas de
baixo”, as “histórias dos perdedores”, associados
usualmente aos camponeses, às mulheres, aos
negros, e aos povos colonizados. Nomeadas
91
Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.
como “virada linguística/cultural”, “virada
nativista”, “estudos pós-coloniais”, “estudos
de gênero”, “pós-estruturalismo”, “pósmodernidade” etc., estas várias correntes partilham uma perspectiva revisionista que se opunha às visões marcadas pela experiência imperialista europeia e norte-americana do período
anterior, ou às estruturas patriarcais, raciais ou
de classe das sociedades consideradas “ocidentais”. E, se é preciso destacar que a relação entre
a academia e a sociedade não é de determinação
direta ou mesmo reflexiva, não se pode negar o
papel de fenômenos sociais de nível global, em
suas diferentes modalidades, para a relevância
destas correntes: as descolonizações, as lutas por
direitos civis, as revoluções e a guerra fria, por
exemplo.
No caso que nos interessa – o debate sobre
a história e a arqueologia provincial romana –,
o impacto destas correntes é observável tanto
no ocidente quanto no oriente, mas, a discussão
sobre estes impactos se concentrou nos estudos sobre as províncias ocidentais. Procurarei,
aqui, discutir o modo como os estudos sobre
as províncias orientais – tomando como caso
os estudos sobre a província romana da Achaia,
usualmente, e talvez sem tanto cuidado, chamada de “Grécia propriamente dita” – sofreram
o impacto destas correntes e como suas consequências promoveram uma curiosa inversão na
última década. Este texto não pretende ser um
levantamento exaustivo, mas, tomando como
ponto focal o Alto Império, procura identificar
algumas das origens desta inversão em alguns
estudos particularmente influentes.
A ênfase na discussão a partir dos estudos
sobre as províncias ocidentais impõe que eles
sejam apresentados, ainda que de modo sucinto. Até a década de 1970, o paradigma da
Romanização era dominante: gauleses, berberes
e bretões, inferiores cultural e militarmente, se
tornaram romanos. A partir dos estudos pioneiros de M. Bénabou (1976) e J. Slofstra (1983), e
em particular de M. Millett (1990), o paradigma
da romanização passou a sofrer críticas cada
vez mais intensas: a manutenção de práticas
culturais anteriores à dominação romana (resistência), a fusão das tradições locais e imperiais
(hibridismo), ou mesmo a auto-romanização das
92
elites locais como forma de acesso a novas formas de dominação (estratégia) passaram a fazer
parte dos estudos sobre as culturas provinciais.
Assim, gauleses, berberes e bretões não foram
romanizados, mas resistiram e/ou criaram novas
culturas e/ou se autoromanizaram; romanização
perde o “r” maiúsculo, ganha aspas e passa a ser
o rótulo do paradigma que deve ser combatido,
e mesmo evitado.
O que ocorre com os estudos sobre a província da Achaia? O paradigma da Romanização
funcionava a partir de uma hierarquização das
culturas, a qual, se por um lado subordinava os
gauleses aos romanos, por outro subordinava
os romanos aos gregos – em uma etnogênese
eurocêntrica que fincará suas bases, inclusive,
na tradição literária romana, tendo em Horácio
(Epist., II.1.156-7) sua forma mais clara. Assim,
os gauleses se tornaram romanos, mas os gregos permaneceram gregos, e, mais do que isso, os romanos
foram helenizados. Falar, portanto, de romanização dos gregos não era cabível. Assim, por
exemplo, P. Graindor (1927) escreverá que os
atenienses do período romano, por meio de seu
culto às grandezas do passado clássico, modelaram a mentalidade romana e, por meio desta, a
renascentista e a “nossa”; e na mesma linha A.
H. M. Jones (1940) considerará que a “missão
da cidade” era difundir a cultura grega no oriente, o que permanecerá no período romano.
Os sinais de uma ruptura com o paradigma
de um “imperialismo cultural reverso” aparecem
na obra de G. Bowersock (1965). Então, o autor
refutaria o postulado da Romanização para a
análise das colônias romanas na Grécia, pois
ele “descreve o que ocorreu subsequentemente
em algumas áreas do ocidente imperial, mas
não ocorreu no oriente” (p. 72). Por outro lado,
considera que a criação de uma cultura greco-romana, resultado dos contatos entre as elites,
foi fundamental para a consolidação da dominação imperial sobre tanto o ocidente quanto
o oriente. As consequências culturais disto não
são desenvolvidas, ainda que o autor mencione
o caso do renascimento do estilo ático na escultura grega, “precisamente porque isto era o que
os romanos demandavam” (p. 74). Assim, os
gregos permaneciam gregos ao mesmo tempo em que
se tornavam greco-romanos.
Fábio Augusto Morales
A escassez de estudos sobre a “Grécia romana” prosseguiu até a década de 1980, quando,
motivados seja pelas correntes pós-coloniais, seja
pela profusão dos estudos de caso especialmente
ricos para este período – em particular aqueles
sobre Atenas augustana (Morales, 2014) – novos
estudos estabelecem novas bases para a questão.
Dois deles se destacam: a tese de doutorado de
S. Alcock (1993) e o breve artigo de G. Woolf
(1994). A partir dos resultados de diversas pesquisas arqueológicas baseadas nos surveys, S. Alcock
constrói um modelo segundo o qual a Achaia
sofreu profundas transformações em função,
direta ou indiretamente, da conquista romana,
em particular do ponto de vista da ocupação dos
assentamentos rurais e urbanos e da organização
dos santuários. A oposição entre transformações
“econômicas” e permanências “culturais” guiará
a pesquisa subsequente da autora, que, rejeitando
o termo e o paradigma da Romanização (1997),
se voltará para os processos de produção de
memória social dos gregos diante da nova realidade imperial (2002). G. Woolf, especialista na
Gália romana, analisará as concepções nas fontes
romanas sobre qual sua missão diante das províncias gregas, para construir uma hipótese segundo
a qual os romanos se viam como regeneradores
da cultura grega, e deviam resgatá-los da presente
decadência – os gregos permaneceram gregos
não porque eram superiores, mas, “ao menos em
parte, porque os romanos o permitiram” (p. 129).
A presença do império passava então a ser vista
cada vez mais claramente na organização espacial
e cultural do mundo grego; mas os gregos continuavam gregos.
Os gregos continuariam gregos não fosse a
desestabilização radical da identidade romana
operada pela retomada dos estudos sobre a
“helenização de Roma” nas obras de diversos
estudiosos, em particular na de A. Wallace-Hadrill (2008). O autor propõe um modelo
segundo o qual as elites italianas construíram
uma identidade própria, intimamente ligada
aos padrões cognitivos gregos, a partir do século
II a. C., e que em determinados momentos foi
concorrente à identidade tradicional romana;
com a ascensão das elites italianas dentro das
estruturas de poder romanas ocorre uma rearticulação, também a partir de uma matriz grega,
da identidade romana, opondo-se, na própria
sociedade romana, à autoridade da aristocracia
tradicional; o principado de Augusto marcaria
a vitória desta nova identidade romana pensada
em termos gregos, nomeada “a revolução cultural de Roma”, paralela à “revolução romana” de
R. Syme. Não por acaso, a metáfora escolhida
pelo autor é a de um coração, que bombearia
o sangue que vem do oriente para o ocidente.
Assim, os romanos não se tornaram gregos, mas
se tornaram romanos a partir de critérios ítalo-gregos,
e que situavam na Grécia a origem dos elementos e dos valores civilizacionais.
Será justamente a partir deste modelo
que a inversão ganhará corpo. A. Spawforth
(2012) proporá que a cultura grega na época de
Augusto sofrerá uma verdadeira revolução – a
“revolução cultural augustana”, muito mais
centrada na casa imperial do que a proposta de
A. Wallace-Hadrill – pois, na medida em que
os romanos esperam que os gregos sejam gregos como no período clássico, estes precisarão
romper com práticas culturais há muito estabelecidas, e paralelamente resgatar tradições há
muito abandonadas. Neste novo pacto de elite,
que se aproxima de uma “sociedade de corte”,
os gregos não permanecem gregos, mas se tornam
gregos de acordo com a expectativa de quem havia se
tornado romano a partir de critérios ítalo-gregos. Ou,
em outras palavras:
A utilidade do conceito de romanização é amplamente questionada hoje em
dia, principalmente pelos arqueólogos
(que o inventaram). [...] Onde este livro
aplica o termo alternativo “romanidade”
para os provinciais, o que se tem em
mente é a disposição da parte dos provinciais em imitar a cultura dos romanos
de Roma e da Itália. Dito isto, é preciso
admitir que as antigas conotações de
“romanização”, aquelas segundo as quais
um poder dominante impõe a “cultura
romana” sobre súditos não-romanos,
permanecem relevantes para este livro.
Desta maneira, a inversão se completa: se
no paradigma da Romanização (sem aspas) os
gauleses se romanizavam e os gregos resistiam,
no paradigma da “romanização” (com aspas)
93
Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.
os gauleses resistem auto-romanizando-se e os
gregos se romanizam re-helenizando-se.
Descrita a inversão, é preciso discutir seus
fundamentos e seus significados. Por um lado,
este movimento compreende-se em função do
impacto das diversas correntes acima mencionadas nos estudos de história e arqueologia provincial romana – o que comumente é feito. Por
outro lado, é fundamental que exista um grande
espaço de incerteza na interpretação das fontes.
Tomemos um exemplo bastante concreto: o templo de Roma e Augusto na acrópole de Atenas.
Diversos elementos arquitetônicos – tambores de colunas, capiteis, fragmentos de arquitrave – encontrados nas escavações do final do
século XIX na acrópole foram associados a uma
fundação quadrangular situada a poucos metros
a leste do Pártenon, alinhado com seu eixo principal (Baldassarri 1998: 45-63). A reconstrução
proposta era a de um monopteros jônico rodeado
por nove colunas. A identificação como um
templo de Roma e Augusto se sustenta na
inscrição em um fragmento da arquitrave (Fig. 1):
A datação da construção foi objeto de um
intenso debate, na medida em que nem os
vestígios arqueológicos nem as indicações epigráficas (na ausência de listas de arcontes para
o período) indicam uma datação mais precisa
do que algum período após 27 a. C., quando
Otávio torna-se César Augusto. Indicações mais
significativas vêm, principalmente, da numismática e da tradição literária: Dio Cássio (54.8.2-3)
informa que o Senado havia aprovado a construção de um templo a Mars Ultor no Capitólio
para receber as insígnias romanas perdidas por
Cássio em sua guerra contra os partas, mas
retomadas por Augusto em sua missão diplomática em 20 a. C.; cunhagens em diversas regiões
do império representam um monopteros com as
letras “MAR ULT”, indicando a forma deste
templo; como é sabido que Augusto passou por
Atenas ao menos um vez entre 20 e 19 a. C.,
sugeriu-se que o templo de Roma e Augusto
na acrópole fosse uma referência ao templo
de Mars Ultor no Capitolino – cujo projeto
talvez nunca tenha sido realizado – construído
no mesmo período, que se aproveitaria tanto
O povo [dedica] à deusa Roma e a
da passagem do princeps quanto da forte carga
Augusto César, sendo general dos hoanti-bárbara do santuário ateniense, já repleto
plitas Pamenes [filho] de Zenonos de
de representações das guerras contra gigantes,
Maratona, sacerdote da deusa Roma e
amazonas, centauros, persas e gauleses.
de Augusto Salvador na acrópole, sendo
Como interpretar o monopteros? Sua atrisacerdotisa de Atena Políade Megiste
buição como um templo é questionável, mas
filha de Asclepides de Alieos, durante o
certamente carrega um elemento votivo à deuarcontado de Areios [filho] de Dorionos
sa Roma personificada e ao princeps, além de
de Paiania. (IG II2 3173)
mencionar o sacerdócio “na acrópole” de ambas
as divindades, por um membro
da aristocracia local que acumulava o sacerdócio ao alto cargo
de general dos hoplitas. Teríamos aqui um exemplo claro de
romanização, seja pela intrusão,
no mais venerável santuário
ateniense, da presença ostensiva
de Roma e do nascente culto
imperial, seja pela visibilidade
da estratégia de membros da elite local em associar-se a Roma.
Por outro lado, alguns elementos arquitetônicos podem
levar a interpretação para um
Fig. 1. Fragmento da arquitrave do monopteros de Roma e Augusto. Acervo pessoal.
sentido oposto. A ornamenta-
94
Fábio Augusto Morales
ção do capitel jônico do monopteros (Fig. 2; de
cima para baixo: fina faixa em pérola-e-carretel,
larga gola lótus-e-palmeta, mais uma fina faixa
em pérola-e-carretel, equino em ovo-e-dardo,
faixa com trançado, volutas com canais que sugerem drapejado, e ábaco em ovo-e-dardo) é exatamente igual à fachada leste do Erechtheion,
construído no século V a. C. Sua posição e
tamanho relacionam-se não somente com o eixo
longitudinal do Pártenon, mas também sugerem
relações modulares: a largura do crepidoma do
Pártenon é igual à distância entre a fachada
do Pártenon e o limite oeste do monopteros;
largura da cela do Pártenon é igual à distância
entre a fachada do Pártenon e o limite leste do
monopteros; e o lado do peristilo quadrado do
opistodomo do Pártenon é igual ao diâmetro do
monopteros. Estas citações e modulações em função de edifícios construídos no período clássico
podem ser interpretadas como a incorporação
da dominação romana dentro das tradições
arquitetônicas locais. Esta hipótese é reforçada
pelo próprio uso do espaço do santuário a partir
do período clássico como um memorial da guerra contra a barbárie, no qual o monopteros (e sua
provável referência ao inimigo parto) se inserem
até timidamente, diante da grandiosidade do
Pártenon, da complexidade do Erechtheion ou
da monumentalidade da dedicação atálida.
Dominação ou resistência, romanização ou
tradição local? O monopteros resiste a classificações unívocas. Uma alternativa particularmente
atraente é aquela de considerar a diversidade
das leituras feitas por sujeitos diferentes: não
necessariamente o princeps, o sacerdote do
princeps, a sacerdotisa de Atena ou o cidadão
comum, quando observassem o monopteros,
teriam a mesma interpretação: símbolo da
dominação romana, homenagem à arquitetura
clássica, reforço do orgulho local pelos feitos
contra os bárbaros, asserção da posição social
do sacerdote do culto imperial e magistrado
local? Antes, o monumento permite as diversas
interpretações, e esta abertura é significativa dos
elementos que estão em questão na realização
do programa construtivo. A falta de evidências
complementares que indicariam com detalhes
os diversos momentos do programa (o projeto, a
procura de materiais e repertórios, a construção,
os usos, os padrões de descarte), se por um lado
permite as mais diversas hipóteses, por outro
inibe a construção de interpretações unilaterais.
Esta situação documental se repete para todas as intervenções urbanas em Atenas na época
de Augusto, e não é impossível fazer generalizações maiores. No caso de outras categorias de
fontes, como, por exemplo, a epigrafia, algumas
questões podem ser respondidas com menos
incerteza: a adoção de nomes
romanos, tanto por membros
da elite quanto pela população
comum, pode ser interpretada
como romanização... mas de
quê? Dos nomes, tão somente?
Se é possível observar com
segurança a romanização para
algumas dimensões da vida,
sociais e não para outras, deve-se ainda falar de romanização?
Ou deve-se, como já é aventado
na bibliografia sobre as províncias ocidentais, abandonar por
completo o termo e o debate em
torno de sua utilidade?
Qualquer resposta peremptória a estas questões, no espaço deste texto, seria temerária.
Fig. 2. Capitel jônico do monopteros de Roma e Augusto. Acervo pessoal.
Concluirei somente sugerindo
95
Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.
um caminho diverso. Sendo consenso que a
romanização total foi uma miragem de uma bibliografia marcada pelo imperialismo, pode-se
admitir romanizações parciais, de determinadas dimensões da vida, mas que estas mesmas
são romanizações instáveis, que dependem de
uma série de condições de realização. Ao invés
de se buscar pelas dominações ou pelas resistências em si, me parece fundamental discutir
estas instabilidades da romanização por meio,
principalmente, da articulação dos diversos
níveis ou elementos sujeitos a ela. Por exemplo,
pode-se falar, no caso do monopteros, de uma
romanização limitada da paisagem sagrada da
acrópole por meio da referência ao nome de
Roma e de Augusto e, possivelmente, de um
culto associado; mas dificilmente de uma ro-
manização da arquitetura.1 Qual a relação, do
ponto de vista da produção e do uso do espaço, entre a realização de cultos a personagens
romanos e o enquadramento nas tradições
arquitetônicas locais? Qual é determinante na
interpretação do espaço? E o mesmo tipo de
indagações pode ser aplicado para as relações
entre a dominação militar, as associações entre
elites locais e imperiais, a adoção de nomes
romanos, a realização de jogos, os estilos
esculturais, as práticas retóricas etc. Ou seja,
falta, ainda, uma teoria da posição e função da
romanização de determinados elementos na
estruturação das sociedades provinciais, que
dê conta da abertura de interpretações assim
como dos constrangimentos concretos da
dominação romana.
MORALES, F.A. Graecia capta, again: some thoughts on the limits of the romanization
of Greece. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 91-97, 2014.
Abstract: This paper discusses the historical and archaeological debate on
the relation between Roman domination and Greek culture, taking the Early
Roman empire as a focal point. If until the 1990’s there was a consensus on the
absurdity of the use of ‘romanization’ to describe and/or explain the Greek culture under Roman domination, the last decades saw some sparse developments
which ultimately produced a radical revision of that consensus. After retracing
some origins of the ‘romanization of Greece’ hypothesis, the paper discusses
the limits of this approach taking as example the difficulties on interpreting
a single monument on the Athenian acropolis, the monopteros of Roma and
Augustus.
Keywords: Romanization – Roman Greece – Provincial culture.
(1) Ainda que já tenha sido sugerido (Graindor 1927; Kajava
1999) que o monopteros faria uma referência, na planta baixa,
ao templo de Vesta no fórum romano, o que parece pouco
provável: o templo romano tinha mais colunas (20), seguia a
ordem coríntia, estava assentado em um pódio e apresentava
uma cela cercada por uma parede.
96
Fábio Augusto Morales
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97
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.
A indústria da luz na Palestina romana:
produção, consumo e distribuição de lucernas de disco
Marcio Teixeira Bastos*
TEIXEIRA BASTOS, M. A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e
distribuição de lucernas de disco. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 99-108, 2014.
Resumo: As lamparinas Imperiais (ou Augustas) foram assim nomeadas
justamente a partir do reinado de Augusto Cesar, período em que passam a ser
produzidas e massivamente espalhadas através dos inter-fluxos do Mediterrâneo.
Seu nome funcional, lucerna de disco, vem pelo fato de serem confeccionadas
com um côncavo disco no centro, geralmente portador de imagens relacionadas
à cosmovisão da cultura romana, bem como terem formato circular. Na Palestina
dois principais tipos deste artefato são encontrados: o primeiro, de bico triangular e estreito; e o segundo, com bico redondo e curto. Ambos servem como
confiável referencial de cronologia relativa e indicativo de ocupação. Assim como
nos outros lugares do Império, as lâmpadas romanas foram copiadas em moldes
feitos de cera, gesso ou argila. Através da replicação, o modelo vigente passou a
ser produzido nas oficinas locais, espalhando-se e derivando mais tipos na região.
Este artigo analisa a funcionalidade de um objeto com essas características e a
forma de organização comercial deste produto na Palestina romana.
Palavras-chave: Indústria da luz – Arqueologia – Lucernas de disco
“S
ócrates — Considera agora o que lhes
acontecerá, naturalmente, se forem
libertados das suas cadeias e curados da sua
ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros,
que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os
olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos
sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de
distinguir os objetos de que antes via as sombras.
Que achas que responderá se alguém lhe vier
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial
- LARP. Foreign PhD. Student, Tel Aviv University, Israel.
<[email protected]>
dizer que não viu até então senão fantasmas, mas
que agora, mais perto da realidade e voltado para
objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim,
mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o
obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não
achas que ficará embaraçado e que as sombras
que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do
que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais verdadeiras.
Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os
seus olhos não ficarão magoados? Não desviará
ele a vista para voltar às coisas que pode fitar
e não acreditará que estas são realmente mais
distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco - Com toda a certeza”.
Platão. A República. Livro VII)
99
A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.
Iluminar a escuridão é um dos mais elementares esforços da humanidade. A luz é um
dos fatores essenciais da vida humana e causa
fascínio desde tempos primórdios. Na Antiguidade, contudo, além de seu aspecto prático,
estava também intimamente imbricada, do
ponto de vista metafórico e simbólico, com a
religião, a mitologia e a psicologia social. É um
dos elementos físicos do ambiente humano que
foi constantemente associado ao Divino e acesso
ao conhecimento das coisas; além, é claro, de
prover a distinção entre as trevas e a claridade.
Lucrécio influenciado pelo pensamento atomista, no âmbito da filosofia natural (primeiro
século antes da Era Comum (AEC), lançou em
sua obra (De rerum natura) o princípio teórico
de que a luz visível seria composta por inúmeras
e minúsculas partículas sólidas que através dos
padrões complexos emergem em multiplicidade
de interações simples (o chamado fenômeno da
emergência). O princípio filosófico de Lucrécio
foi aprimorado no decorrer dos séculos seguintes e atualmente essa formulação é considerada
a precursora da teoria contemporânea dos
fótons de Max Planck (1858-1947).
A luz, em termos naturais e físicos, é uma
radiação eletromagnética que se propaga por
diferentes meios materiais e, por conceituação,
não atravessa determinados tipos de sólidos,
conhecidos como opacos. Conforme as ocasiões
ela tanto pode se comportar como uma onda
quanto uma partícula. A teoria corpuscular da
luz atualmente a considera como constituída
por pequenas partículas (os conhecidos fótons)
(Silva e Martins 1996); já na teoria ondulatória,
a luz é considera como uma manifestação de
energia, composta essencialmente por ondas
semelhantes às do som, porém de comprimento
muitíssimo menor (Rotman 2005).
Todos os corpos que possuem luz própria
são definidos como corpos luminosos e aqueles
que somente refletem a luz de corpos luminosos
são denominados como corpos iluminados.
Portanto, a maior parte dos corpos que nos
rodeiam são na verdade corpos iluminados.
Atente-se que tanto o sol (maior fonte de luz
conhecida pelo homem) como as estrelas e as
lâmpadas de óleo analisadas neste artigo, são,
em essência, denominados corpos luminosos.
100
No sentido das lâmpadas de óleo, contudo, o
objeto que produz o fogo,1 emissor de luz, também é agregado ao conceito, uma vez que não
existiria chama (e luz), não fosse o objeto.
As lâmpadas de óleo possuem luz própria
na medida em que o combustível de seu interior, associando-se quimicamente com o comburente (O2), é capaz de entrar em combustão na
presença de uma fonte de calor inicial. A tríade
combustível, comburente e energia de ativação é
a responsável pelo fogo que provê a iluminação.
Chamamos de fogo, então, a entidade gasosa
emissora de radiação que decorre da combustão.
Trata-se, portanto, da rápida oxidação de um
material que entra em combustão, liberando
calor, produtos de reação (e.g. CO2 e H2O) e o
mais importante: luz.
A iluminação de uma lâmpada de óleo é
uma mistura de gases em altas temperaturas,
formada pela reação exotérmica de oxidação e as
emissões de radiação eletromagnética nas faixas
do infravermelho e do visível. Nossos olhos não
são capazes de perceber aqueles objetos que
não têm luz própria. O agregado de objetos do
conhecimento é o resultado do aparato cognitivo inato (fruto das coisas de nossa experiência
cotidiana) sobre os dados subjetivos captados
pelos sentidos, neste caso a visão. O espectro
óptico (faixa visível do espectro eletromagnético)
cumpre função cognitiva e é delimitado pela relação entre a mais baixa frequência opticamente
estimulante (a radiação infravermelha) e aquela
mais alta frequência perceptível (chamada
radiação ultravioleta). Enxergamos, salvo casos
clínicos, portanto, entre a radiação infravermelha e a ultravioleta.
Como não temos olhos adaptados à visão
noturna, a obtenção de luz para enxergar os
corpos iluminados operacionalizou e organizou
nossas atividades depois do pôr do sol. Contudo, isto só foi possível pela produção e controle
(1) Evidências do norte da China apontam cronologia 400 mil
AP para o momento primordial de controle do fogo; contudo,
ossos carbonizados e cinzas descobertas na caverna Wonderwek
(África do Sul) indicam a presença de controle do fogo no local
há pelo menos 1 milhão de anos AP. Para mais informação
consulte o Procedings of the National Academy of Sciences de 2012.
Marcio Teixeira Bastos
deste tipo de corpo luminoso. A produção e
controle deste objeto que produz fogo estiveram
intimamente conectados com o simbólico e o
perceptível, como não haveria de deixar de ser.
O provimento de luz na sociedade romana
deu-se principalmente através de quatro instrumenta: os archotes; as velas ou candelae, as
lanternae e as lucernae, também denominadas
lucernas, candeias ou lamparinas. A principal
diferença das lâmpadas de óleo para as outras
formas de controle do fogo é a utilização de um
líquido combustível para o provimento de luz.
O mais comum destes líquidos foi o azeite, por
isso não é possível tratar a indústria das luzes
sem atentar para a produção, o consumo e a
distribuição de azeite.2 Estas duas produções
estão intrinsecamente relacionadas.
Devido à baixa pressão de vapor, o azeite
não é inflamável em temperatura ambiente, porém se for aquecido, a sua pressão de vapor aumenta. Toda evaporação de um líquido depende
sempre de sua temperatura e de sua superfície.
A funcionalidade do pavio segue esse princípio
e é baseada no efeito capilar que faz o líquido
ser consumido através dele. Uma vez embebido
no líquido oleoso e aquecido pela fonte de calor
inicial (através da energia de ativação), a mecha
acesa carboniza sua extremidade e o carbono
junto com as fibras provocam a evaporação do
combustível na extensão de superfície do pavio,
mantendo assim a chama acesa.
A luz da chama acesa emite a radiação
eletromagnética deste corpo luminoso e permite, então, a iluminação dos demais corpos. Ao
emitir radiação por uma grande faixa de comprimento de onda, de infravermelho à ultravioleta,
a intensidade, a forma e a curvatura máxima
da onda produzida dependerão diretamente da
temperatura do corpo luminoso. Isto significa
dizer que com o aumento da intensidade de
temperatura, a quantidade de emissão de ondas
curtas (luz visível) aumenta também e o resultado disto é uma luz mais clara e brilhante. A chama luminosa das lâmpadas de óleo é carregada
de pequenas partículas de fuligem que podem
(2) Para produção de ânforas de azeite, veja Funari 1990.
ser observadas na sombra da chama contra uma
parede (a parte mais escura da sombra). Uma
boa lâmpada, como tal, deveria manter concentrada a temperatura para obtenção de uma luz
de boa qualidade e menos fuligem na chama.
Além do azeite (um fluido insaturado de
gordura), banha de porco, óleo de fígado de
bacalhau, assim como qualquer outra gordura
(triglicerídeos em estado líquido ou sólido,
basicamente) poderiam servir de combustível
a uma lamparina. A diferença primordial, que
certamente não seria desconhecida tampouco
negligenciada, é a qualidade da luz proporcionada. De maneira geral, as gorduras (união de
três ácidos graxos e uma molécula de glicerol)
podem ser diferenciadas em ácidos graxos
saturados (gordura animal) e ácidos graxos insaturados (gordura vegetal). Os triglicerídeos em
estado líquido têm menor produção de fuligem
e devido a sua maior energia, a chama produzida é mais brilhante. A eficiência da luz é mais
elevada (essencialmente pela presença do Hidrogênio). Em contraste, as gorduras que têm alto
teor de ácidos graxos saturados, além da grande
quantidade de fuligem, produzem uma chama
mais escura e de baixa eficiência. Outro fator
negativo de gorduras sólidas é que se tornam
viscosas demais e anulam o efeito condutivo do
pavio.
Uma chama “normal” de lâmpada cerâmica
abastecida por óleo teria a eficiência de aproximadamente 0,01-0,15 lm/W, medidas com
Lfa. O consumo de energia, em contraste, seria
enorme. Uma pequena chama consumiria 85
Watt de energia e uma chama maior, com pavio
de 1,4 cm de comprimento e 0,5 cm de espessura, altura da chama de aproximadamente 5 cm
(levemente esfumaçada), consumiria 20g de óleo
por hora (760 kJ) (c.f. Wunderlich 2003:256)
(Fig. 1). A energia gasta, portanto, se elevaria à
casa dos 200 Watt de consumo. Se comparado
com a eficiência de uma lâmpada halógena de
200 Watt (as de hoje em dia), o custo seria por
demais elevado. Iluminar, como é possível perceber, implicava em custos e, assim, movimentava
a economia e a cultura romanas.
As fontes de luz exigiam um elevado nível
de manutenção e para se obter mais luminosidade seriam necessárias fontes múltiplas, como
101
A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.
também eram úteis na alimentação, e em caso de escolha, a
alimentação seria priorizada.
Assim, a vantagem da utilização das lucernae justifica-se
na medida em que esses objetos
produzem uma chama de longa
duração e estabilidade, sem que
a luz pisque como nas velas e
tem suportes e lugares específicos
(nichos). A fácil manutenção,
limpeza e portabilidade seriam
outros pontos positivos de sua
popularização durante a Antiguidade. Conforme o tamanho e
preenchimento do reservatório,
uma lamparina pode queimar
por horas ou mesmo dias sem
qualquer intervenção. A manutenção básica de uma lâmpada
de óleo seria o ajuste do pavio
e a limpeza do objeto. Convém
lembrar, obviamente, que para se
obter a luz desejada era necessário o passo primordial, isto é, a
energia de ativação para o calor
inicial. Este objetivo poderia ser
alcançado esfregando-se gravetos
ou utilizando pedras, aço ou
estopa. A prática de ascender
fogo somente com estes recursos
é algo que alguns indivíduos
tomariam como uma tarefa
praticamente sobre-humana em
Fig.1. Principais formas e tamanhos de pavio encontrados em Israel
nossa sociedade. A lâmpada de
(Sussman 2012: 2).
óleo, portanto, é essencialmente
um recipiente coberto e circular ou semicircuum lustre ou um feixe de varas para dispor as
lar de argila cozida, com uma abertura para o
lamparinas. A utilização de velas (candelae) não
combustível (pequena ou grande, conforme o
seria uma solução de baixo custo, como haveria
modelo e período) e outra abertura na extremide se supor, pois implicaria em substituições
dade de sua superfície que forma o bocal (onde
num curto período de tempo (devido a seu
seria posicionado o pavio) (Fig. 2). Nos tipos
rápido consumo) e aquisição de grandes quandisco popularmente encontrados na Palestina
tidades do produto. Na falta de cuidado, com
Romana (séculos II-III EC), o bocal e o corpo da
o escorrer do sebo e dependendo da localização
lâmpada estão dispostos de forma compacta, as
da vela, acidentes inflamáveis poderiam aconvolutas são estilizadas e anexadas à orla da peça
tecer. O custo para manter múltiplas formas de
como elemento decorativo. Um claro derivante
iluminação certamente era uma barreira e limidas lamparinas Augustas encontradas na região.
tava o acesso de alguma parcela da população.
Em Israel foram encontradas as lâmpadas do
Além disso, os óleos utilizados para iluminação
102
Marcio Teixeira Bastos
tipo Augustas em Tiberias, Caesarea (centros
administrativos e comerciais), Dor (Dora), Akko
(Acre) e Ashkelon (Asqelon) (portos marítimos);
bem como nas guarnições romanas estacionadas
em Jerusalém (Sheik Badr, Armenian Garden),
O’boda e Petra.
O tipo de decoração mais incidente nas
lâmpadas de disco produzidas com inspiração nas lâmpadas Augustas é a figuração do
características de um determinado fabricante.
Essa produção pode ser encontrada em praticamente todo o território de Israel, alguns exemplos são: 1) Sepultamento em caverna próximo
a Caesareia com pintura nas paredes (Siegeleman e Ne’eman 1992: fig.5: 1); 2) Sepultamento
em Shoham (II século CE) onde foi encontrada
lamparina próxima às pernas do esqueleto (Nagorsky 2007: 47, fig.3: 9); 3) Sepultamento com
kokhim em Pisgat Ze’ev, imediações de Jerusalém (Shurkin 2004,
Fig. 21: 1); 4) Sepultamento em
caverna em Beit ‘Anun, Monte
Hebron (Magen 2008, Pls. 1: 1,
caverna A e B, Pls.3: 6); 5) Caverna de refúgio da Revolta Bar
Kohkba em Wadi Ed-Daliyeh,
Neguev (Eshel e Zissu 1998, Pls.
4: 7-8); 6) Em Huqoq associadas
a lamparinas herodianas e fenícias – R29 (Kahane 1961: 129130; fig. 3: 23-25); 7) Bet She’an
(Fitzgerald 1931, Pl. XXVIII: 1 e
Fig.2. Principais atributos de uma lâmpada de óleo discus (sítio Apol- Hadad 2002); 8) Jalame (Manzoni-Macdonnel 1988, fig.6-2: 18);
lonia, Israel).
9) El-Shubeika, Galileia (Tatcher
machado duplo, muitas vezes aliada a outras
e Nagar 2002, fig.1: 1); 10) Tel Mevorakh (Stern
decorações de orla. As dimensões apresentam1978, Fig. 2: 20, camada II-III); 11) Antipatris
-se geralmente entre 8-10 cm (comprimento) x
(Neidinger 1982, Pls. 22 e 23); 12) Qumran
7-8 cm (largura) x 2-4 cm (altura, sem alça). Na
caverna 4, Neguev (De Vaux 1977, fig.6); 13)
superfície, na parte referente ao disco, as peças
Wadi Muraba‘at, Neguev (Benoit et al. 1961,
apresentam figuras e cenas associadas à cosmoFig. 8: 13).
visão tradicional romana (Fig.3). A base da peça
No final do I século AEC Roma contava
é caracterizada por um ou mais círculos concom uma bem organizada indústria da luz. Esticêntricos incisos, que podem apresentar marcas
ma-se que a produção de lâmpadas de oficinas
Fig.3. Exemplos dos motivos decorativos de lâmpadas de disco na Palestina Romana (Sussman 2012: 338, 382-384).
103
A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.
com assinatura (marca) em latim tenha alcançado sua plena distribuição geográfica justamente
durante esse período. Calcula-se que no sítio de
Roma entre 30-40% das lâmpadas dos enterramentos encontrados do período são assinadas.
Exemplares que cobrem o final do primeiro
século AEC até pelo menos 150 EC. Percebe-se
ainda que em uma Província próxima (a Hispânia), o mesmo percentual analítico consta entre
10-15% para o período abordado. Essa relação
demonstra que o mercado de Roma era muito
competitivo e bem definido, além de estritamente alinhando aos propósitos de Romanização;
servindo, então de modelo e inspiração ao
desenvolvimento dos mercados locais.
A última compilação feita demonstra pelo
menos 1700 assinaturas em latim de oficinas
produtoras de lâmpadas de óleo e aproximadamente 400 assinaturas em grego encontradas
nas lâmpadas. Segundo Harris (1980: 128-129),
entre 20 e 25% das lamparinas assinadas em
latim tiveram significante distribuição além do
seu lugar de manufatura. Existiria, então, uma
bem alinhada organização de Oligopólio em
que cada oficina levaria em conta as reações e
comportamentos das demais para as tomadas
de decisão no mercado. A produção de Roma
e seus modelos teriam inspirado os mercados
provinciais fortemente até 150 EC com somente algumas concorrências regionais menores
opondo-se ao mercado dominante (no caso da
Palestina Romana, notadamente as lâmpadas
herodianas (Adan-Bayewitz et al. 2007). Fenômeno similar é constatado no Norte da África,
onde por iniciativa de oficinas italianas foram
implantadas áreas produtoras locais. Estas, por
sua vez, assumem caráter produtivo próprio e
logram referência no mercado e maior distribuição principalmente a partir do III século EC
em diante. A concorrência oriunda das oficinas
locais e regiões produtoras foi, deste modo,
afetando o mercado de forma não polarizada,
gerando características interessantes e marcantes
em cada província do Império.
A concorrência estaria pautada pelas próprias características dos produtos, na imagem e
na fidelização do objeto; bem como na oferta e
demanda da peça. Mesmo oficinas não-autorizadas, ou mesmo aquelas sem marca acompanha-
104
vam os mesmos traços conhecidos de oficinas
com assinatura ou suas concessionárias. Seguindo, portanto, um modelo de atributos e sinais
característicos dos modelos dominantes, os
temas imagéticos de ampla aceitação e a tendência do mercado no período.
A utilização do termo “indústria”, não
pode passar, assim, sem uma devida explicação
de seu emprego neste artigo. É sempre complicado utilizar este termo sem que haja em mente
o emprego do modo de produção baseado no
poder das máquinas e na produção de tipo
taylorista e fordista. Se esse entendimento é
levado em conta, então o supostamente correto
seria empregar o termo pré-industrial. Contudo,
para tornar claro, o princípio regente e proliferativo da produção desses artefatos, considere-se
que qualquer produção de artefato em larga
escala pode ser denominada como da esfera da
indústria cultural humana (Harris 1980: 127).
Tendo em mente que as lâmpadas de óleo
poderiam ser produzidas em pequenas oficinas
locais, sem o emprego de muitos ceramistas,
e ainda, que provavelmente eram distribuídas
nos assentamentos mais próximos (villae e/ou
cidades) como parte do sistema, é interessante
perceber como os nomes de certos fabricantes
(e.g. FORTIS, FESTI, FAVSTI) são encontrados
em partes distantes3 do local inicial de manufatura desses objetos no Império. As exportações
que não seriam sistemáticas se efetuariam na
maioria das vezes através da carga pessoal dos
viajantes, ou organizada em pequenos carregamentos.4
A produção de lâmpadas de oficinas de
médio a grande porte com assinaturas em latim
está estabelecida a partir da segunda metade do
primeiro século AEC e tem seu desaparecimen-
(3) O’boda (Israel) e Tiro (Líbano) são dois bons exemplos,
veja Negev 1986: 1191 #72; 1974: 44, Pl. 15; Sussman 2012:
23, Fig. 16: 1.3; Mikati 2003: 175-180.
(4) O naufrágio de Port-Vendres (Gerbal) e Port-Miou apoiam
substancialmente essa ideia (veja Deneauve 1972:222). Deneauve (1986:141-161) também identificou que lâmpadas
idênticas possuem assinaturas de produção diferenciada e
que, portanto, os moldes italianos destas peças se espalharam
durante o II século CE na s recém criadas oficinas do Norte
da África
Marcio Teixeira Bastos
to situado em algum ponto da metade do século
III EC quando, então, os mercados do final
do III e IV séculos EC serviram-se somente de
produções locais.5
A indústria da luz em período Romano e
a distribuição desses produtos contemplariam
quatro momentos, sem que os mesmos sejam
entendidos na escala crescente.
O primeiro deles é aquele em que específicas marcas são encontradas em pequenas
quantidades dentro de um território único de
cidades ou áreas imediatamente adjacentes ao
local de manufatura (com peças isoladas alcançando outros lugares eventualmente). Exemplos
deste tipo de distribuição foram encontrados
na Espanha (Balil 1982), norte da Itália (marca
“Felicio”, Buchi 1975: 57-58); e Pannonia (marca
“Fab” ou “Fabi”, Iványi 1935: 78-90), para citar
alguns exemplos.
O segundo padrão é aquele em que as
marcas estão distribuídas em caráter regional,
encontradas em cidades-territórios da mesma
região com eventual dispersão além desses
marcos, sem, contudo, participar de relações
interprovíncias. Neste padrão se encaixam,
por exemplo, as marcas “Armeni” e “Luc.” (ou
“L.V.C.”). A primeira marca tem distribuição na
região da Dacia, Baixa Moesia e Pannonia; já a
segunda assinatura foi distribuída entre a Baia
de Nápoles e Mileto.
O terceiro padrão de distribuição cobre virtualmente todas aquelas lâmpadas denominadas
como Firmalampen. A maioria das assinaturas de
Firmalampen consiste em um simples cognome
e a distribuição se concentra no norte da Itália,
onde tende a ser predominante, e nas regiões
da Itália central, Gália, Províncias da Germânia
(Magna, Superior e Inferior), Alto Danúbio,
Dalmácia, Hispânia, Lusitânia, Dácia e Moesia.
Trata-se de uma distribuição mais abrangente,
contemplando as relações interprovinciais.
A última forma de distribuição diz respeito
àquelas marcas que são encontradas em número substancial, tanto no norte como no sul
do Mediterrâneo, centro e sul da Itália, África
(5) Sobre a discussão e embasamento cronológico veja Harris
1980: 143-144.
Proconsularis, Mauretania, Hispânia, Sul da
França, Sardenha e Pannonia (Tabela 1). Essa
distribuição, assim como a anterior, abrange
tanto regiões específicas como também elevado
número de Províncias. As adjacências de Roma,
o sul da França e a Alemanha são as regiões de
maior dispersão destas lâmpadas com a assinatura “C.Clo.Suc.”, uma abreviatura romana. Outra
assinatura que representa este padrão é a chamada “Romanesis”. Apesar de apresentar produções
locais, a manufatura desta peça está localizada
em Cnido (Turquia) ou Mileto (Jônia). Foi uma
das únicas exportadas das províncias orientais
para o período em questão que alcançou o Ocidente (Harris 1980: 129-130). As marcas Fortis,
Festi e Favsti também estão nesta categoria com
exemplares espalhados também pelo Levante
(Mikati 2003).
A assinatura das Firmalampen, também
denominadas ‘factory lamps’, ajuda a traçar
padrões de distribuição e rotas comerciais, bem
como localizar a região das oficinas. Esta produção serve também como um dos parâmetros do
desenvolvimento do comércio e indústria da luz
no Período Romano, como uma produção proliferativa e padronizada. Exemplos deste tipo são
encontrados no Norte da Itália, Suíça (Vindonissa), Gália, Germânia e Leste da Europa. A
assinatura Fortis também aparece distribuída
por todo o Império Romano, principalmente as
do tipo IX e X.
Dentro de Israel o tipo X foi encontrado
em Caesarea, em Jerusalém (com uma possível
oficina local no acampamento da Legião Romana - Sheikh Badr), em Tel Halif, Lahav (também uma reprodução local), e em alguns sítios
Nabateus, como Moa e O’boda. As datas desses
contextos e artefatos estão entre a segunda
parte do primeiro século EC e segundo século
EC. O tipo X ainda manteve algumas variantes
e manufaturas durante o II-III séculos EC na
região (Sussman 2012: 24-72). O comércio de
luz estaria, dessa maneira, organizado em nível
internacional (em menor escala), inter-regional e
intra-regional.
É possível, ainda, ressaltar três funções
econômicas primordiais no conjunto social
romano diante da produção e distribuição
desses artefatos: a reciprocidade, a redistribuição
105
A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.
Tabela 1. Listagem das principais oficinas romanas de cerâmica de iluminação e sua distribuição, com as principais
assinaturas de oficinas romanas de lamparinas Firmalampen (Harris 1980:130).
e a troca. A reciprocidade caracterizando-se por
um sistema informal em que as pessoas buscam
uma relação de equilíbrio entre os bens e os
serviços que oferecem e recebem, com valores
relativos determinados pelas obrigações sociais e
tradicionais do contexto inserido. A redistribuição sendo o sistema em que as mercadorias são
recolhidas por uma autoridade central (nesse
caso uma grande oficina) e distribuídas em
virtude do costume. Já a troca implicaria em um
agregado de transações econômicas (entre oficinas e pessoas) que voluntariamente trocam bens
e serviços, quer seja no escambo, quer seja por
outro benefício. Esse esquema tripartido também tem seus alcances individuais. A indústria
romana da luz do primeiro e segundo séculos
EC como se apresenta estava suficientemente
integrada e organizada em suas áreas de interesses, através de uma extensa rede de transportes e
redes de contatos econômicos. O objetivo, tanto
106
pelo Mar Mediterrâneo como pelas vias terrestres, era explorar as vantagens comparativas de
cada mercado e Províncias (veja Temin 2006:
137-140).
A especialização das relações econômicas
romanas indica ter promovido a eficiência operacional da agricultura e o comércio permitiu a
concentração de outras atividades como a produção de lâmpadas de óleo em lugares específicos das Províncias com seus respectivos câmbios.
As grandes oficinas ou regiões de manufatura
concentrando a produção poderiam obter ganho de eficiência e maiores lucros através da partilha de custos administrativos, uma vez que os
métodos de produção de manufaturas romanas
não apresentavam muitas escalas econômicas. O
desenvolvimento da produção independente local (como aquela que é evidenciada na Palestina
Romana) incrementou a concorrência (comercial e simbólica) no mercado antigo da luz.
Marcio Teixeira Bastos
TEIXEIRA BASTOS, M. The industry of light in Roman Palestine: production, consumption and distribution of discus oil lamps. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo,
n.18: 99-108, 2014.
Abstract: The Augustan or Imperial oil lamps (Bronner Types XXI-XXII
and XXIII) were named after Augustus Caesar reign when it became massively
produced and spread through the Mediterranean inter-flows routes. Its functional name, Roman disc-lamps, comes from the fashioned closed concave
disc at the center of piece (usually portraying figurative motifs). In the Roman
Palestine, two main types of this artifact were found: with triangular shaped
nozzle and rounded-tipped nozzle. Those lamps were copied into moulds made of
wax, plaster or clay and through the surmoulage process other types of oil lamps
originated from them. This paper analyzes the workability and the organization
of the light industry in Roman Palestine between 1st to 3rd centuries CE.
Keywords: Industry of light – Archaeology – Roman disc-lamps.
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Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V)
Alessandro Mortaio Gregori*
GREGORI, A.M. Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 109-117, 2014.
Resumo: Quando o cristianismo atinge a esfera das elites do Império
um problema se põe a este grupo: é possível ser romano – considerando esta
romanidade um conjunto de práticas que dão sentido às elites imperiais – e,
ao mesmo tempo, seguir os dogmas cristãos? É um problema que se apresenta
fulcral para as elites, uma vez que a vida pública nas cidades impõe uma série
de comportamentos e práticas conectados com os cultos tradicionais do
paganismo. Logo, como um magistrado ou um prefeito de Roma, por exemplo,
pode ser cristão e, ao mesmo tempo, afirmar-se romano? A presente comunicação pretende discutir o sentido de ser romano e romanidade nos tempos do
Império Tardio (séc. IV e V) em progressiva expansão do cristianismo e de suas
Igrejas. A abordagem será desenvolvida principalmente a partir de fontes materiais do período, em especial as imagens provenientes de variados suportes:
afrescos, sarcófagos, moedas, medalhões e dípticos de mármore.
Palavras-chave: Cristianismo – Iconografia – Arqueologia da Imagem – Arte Paleocristã – Elites romanas.
G
reg Woolf, em artigo sobre a natureza
do Império “inventado” por Roma na
Antiguidade, afirma que a característica comum
aos impérios antigos é “representarem uma
entidade política geograficamente extensa, controlada por elites localizadas em um centro, cujo
poder era limitado pelos níveis de excedente de
produção locais e pelas comunicações pré-industriais” (Wolff 2001: 311). Logo, tais elites centrais articulavam negociações com elites locais,
a fim de poder manter sua dominação sobre tão
vasta realidade geográfica.
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial – LARP.
<[email protected]>
Mas, o que seria então o “Império” no
vocabulário dos antigos romanos? Segundo
Champion, os romanos possuíam o conceito de
imperium, cujo significado era extremamente
importante, pois imperare significa “comandar” e
imperium “o poder de comandar e, por extensão,
a área geográfica onde tal comando seria obedecido” (Champion; Eckstein 2004: 3). Portanto, a
realidade geográfica estabelecida pelos romanos
na antiguidade por meio das guerras de conquista e diversos interesses, pode ser pensada como
imperium. No entanto, as realidades que o compuseram ao longo do tempo, os interesses que o
administraram e suas diversas populações constituintes, transformam esta entidade geográfica, à
qual se atribui o nome de Império Romano, em
algo dinâmico e heterogêneo.
109
Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.
O Império, portanto, apoiando-se numa
perspectiva pós-moderna, não pode ser concebido como Estado-Nação, cuja existência assegurava homogeneidade frente à tendência oscilante
de fragmentação. Uma realidade geográfica tão
extensa e, ao mesmo tempo, heterogênea demandou ações diferentes ao longo tempo, tanto
do centro, quanto das realidades locais, por isso
faz-se necessário evitar compreender o Império
por meio da oposição clássica entre romanos e
“dominados”. A natureza das trocas e das negociações fazia-se tão necessária quanto a coerção
por meio do exército imperial.
Para as elites locais, a experiência imperial
romana delimitava um campo privilegiado de
atuação para contatos entre grupos aristocráticos,
algo que já ocorria no Mediterrâneo antigo desde
o período arcaico. Líderes de clãs das mais diversas
localidades possuíam chances reais de influenciar
o processo de decisão. Os grupos nobres provinciais combinavam o papel de liderança quase feudal em suas localidades, enquanto apresentavam-se
como negociadores cosmopolitas na capital e nas
cidades do Império (Terrenato 2005: 69).
Se chegarmos à conclusão de que o Império
Romano é uma entidade político-geográfica
heterogênea, marcada por experiências diversas,
podemos compreendê-lo como um império
de elites comunicantes. Os centros de decisão
possuem seus grupos aristocráticos, os quais dependem, para garantir seus interesses, da negociação com os líderes locais, estabelecendo redes
de longa-distância, burocracias administrativas
e diferentes formas de apreensão de excedentes.
Portanto, as elites do Império são necessárias
para garantir a própria existência do mesmo.
No âmbito do Império ocidental os códigos
de conduta das elites dos centros de decisão, seus
valores e aceitações expandiram-se gradualmente
para as províncias, sendo que, por volta do século
III, aristocratas da Hispânia e da África, por
exemplo, podiam ser identificados como compartilhadores de valores muito próximos, assim
como estilos de vida bastante similares (Salzman
2004: 19). Para a arqueóloga britância Louise
Revell, ao invés de se localizar no registro arqueológico evidências de romanização e imperialismo,
seja das elites, seja de grupos inferiores, uma melhor compreensão do Império e sua dinâmica de
110
contatos estariam na busca por indícios de “romanidade”, ou seja, ideias partilhadas, ideologias
que possam de alguma forma ser diagnosticadas
como “romanas” (Revell 2009: 5). Seguindo o
pensamento de Revell, o urbanismo, a figura do
imperador e prática religiosa, além de ideologias
do comer e beber e de atividades econômicas e
lúdicas, reproduziam-se nas diversas ações cotidianas dos mais variados grupos do Império. Embora não fossem idênticas no tempo e no espaço, a
variabilidade dessas ideologias exploravam várias
maneiras de ser romano no Império, ainda que
privilegiassem certos aspectos de identidade, especificamente o homem adulto, livre e abastado
(Revell 2009: 5). Portanto, ao se analisar as elites
do Império pode-se confirmar que há estruturas
ideológicas partilhadas por esses grupos que os
faziam reconhecerem-se como pares.
No Império Tardio, após os rearranjos políticos e sociais do século III, os “bem nascidos” estipulam formas de intercâmbio pessoal com seus
pares na cidade. Há um controle da linguagem e
da postura, traços de comportamento, os quais
formam uma barreia entre as elites e os inferiores. O clarissimus, além de possuir rendimentos,
é moldado por uma educação longa e por uma
pressão constante de seus pares, pois a aceitação
por outros membros dessa elite era o mais importante critério de honra e distinção (Brown 1991:
231; Salzman 2004: 20). Após as intempéries do
século III, o Império reorganiza-se e, com ele,
as elites. A classe superior reestrutura-se para
usufruir os excedentes. Os poderosos (potentes)
administram as cidades em nome do imperador
distante em uma sociedade “dominada explicitamente por uma aliança entre os servidores do
imperador e os grandes proprietários de terras
que colaboram para controlar os camponeses
sujeitos ao imposto e para impor a lei e a ordem
nas cidades” (Brown 1991: 262).
A religião, por sua vez, era parte essencial
da cultura das elites. Tanto em Roma, como nas
províncias, por centenas de anos, magistrados e
sacerdotes desempenhavam rituais a fim de assegurar o bem-estar do Império. Os cultos politeístas ofereciam diversas oportunidades para os
aristocratas ganharem prestígio e notabilidade.
Como sacerdotes, tomavam parte na dedicação
aos templos e serviam como conselheiros e
Alessandro Mortaio Gregori
orientadores nos conselhos locais, ou no Senado sobre assuntos de culto. Os aristocratas
também ganhavam notabilidade ao patrocinar
cultos específicos, rituais e festivais (Salzman
2004: 61-63). Portanto, para as elites do Império
Tardio, a filiação religiosa era uma forma segura
de aumentar o status e honra.
Apresentaria o cristianismo um tipo de problema para as elites, a partir do momento em que
a conversão a este culto exigia a filiação a um grupo
exclusivista, que recriminava os jogos, os sacrifícios e
os festivais – elementos que por séculos permitiram
aos aristocratas a arena na qual podiam demonstrar
e aumentar sua honra? Quanto à Igreja cristã, esta
era um novo tipo de realidade, uma nova comunidade pública, cuja elite, os bispos, estava, ainda em
inícios do século IV, sob desconfiança por parte dos
pagãos mais tradicionais.
A grande polêmica intelectual do século IV
era a natureza do cristianismo, o porquê de sua
superioridade frente aos cultos politeístas. Segundo Veyne, “diferentemente dos deuses pagãos, ele
[Jesus, o Cristo] era ‘real’ e até mesmo humano”
(Veyne 2010: 43). Nova forma de relacionar-se
com Deus e com as figuras do cristianismo, o culto que atraía o imperador passou a atrair também
as elites do Império. Na Antiguidade romana, religião e política estavam intimamente conectadas,
entretanto, nenhum imperador podia governar
nos séculos IV e V como um autocrata, assim
como nenhum bispo cristão poderia controlar o
rebanho de fiéis sem o suporte das elites senatoriais, civis e burocráticas do Império.
Os cultos públicos e as tradições cívicas do
politeísmo forneciam uma justificativa à romanidade. A participação e financiamento de jogos,
festivais e sacrifícios eram elementos de identidade social das elites. Quando o cristianismo,
contudo, torna-se a religião protegida pelo imperador e, portanto, um traço “romano”, como
controlar o paradoxo de afastar-se dos cultos
pagãos, dos jogos, dos sacrifícios – elementos
que por séculos garantiram a romanidade das
elites – e ser praticante de um culto exclusivista,
sem sacrifícios e de forte compromisso moral?
A análise das imagens, numa perspectiva arqueológica, pode fornecer indícios ao pesquisador
de uma nova romanidade nascente, agora, contudo, cristã. A Arqueologia da Imagem é uma área
que pretende, por meio da imagética antiga, interpretar aspectos cognitivos, sociais, políticos, econômicos e religiosos em determinada sociedade produtora de imagens. Desenvolvida principalmente
por arqueólogos franceses a partir dos anos 1970, a
Arqueologia da Imagem pauta-se pelo formalismo
descritivo e pelo estruturalismo, sob influência
dos estudos linguísticos e semióticos (Aldrovandi
2009: 39). Segundo Flannery e Marcus (apud Bars
2010: 23), quando arqueólogos utilizam o termo
“iconografia”, referem-se geralmente a uma análise
do modo como os povos antigos representavam
conceitos ligados à religião, à política, à cosmologia
ou a ideologia vigentes, através de sua arte. Assim,
a análise iconográfica em arqueologia é de extrema
importância na investigação da sociedade antiga
como um todo.
Iniciemos, aqui, a investigação das imagens
e a relação entre as elites e o cristianismo a partir
da imagem do “camafeu de Constâncio II e sua
esposa, c. 335 (Fig. 1a) – iniciemos, portanto,
pelas figuras imperais. O ponto de viragem na
história do cristianismo e da própria Igreja de
Roma é o aparecimento de Constantino e sua
ascensão ao poder. Começava uma nova era para
a Igreja. Constantino favoreceria o cristianismo
entre os vários cultos existentes no Império. Ao
longo do século IV, todos os imperadores seriam
cristãos, com exceção de Juliano, o apóstata
(355-363). Os imperadores tardios adotam um
estilo de “Senhor e Deus” – Dominus et Deus –,
vestindo-se em seda e ouro e utilizando diadema
de pérolas. O retrato imperial de Constâncio II
carrega o monograma cristão Chi-Rho, identificando o poder do imperador com o cristianismo
e sua difusão entre as artes visuais acontece,
inevitavelmente, pela casa imperial. O monograma designa o nome de Cristo em grego das
duas primeiras letras de seu nome, sobrepostas
e cruzadas. A imagem discreta do cristograma
sobre a coroa imperial toma o cristianismo como
um culto de elite, dos membros da casa imperial.
Este símbolo reproduz-se, ainda, sobre as moedas,
objetos de circulação e propaganda dos poderosos. Desde Constantino (Fig. 1b), passando por
outras figuras imperiais, as moedas passam a trazer o monograma cristão, e depois a cruz, mesmo
conjunto com outros símbolos e referências dos
cultos tradicionais. (Figs. 1c, 1d, 1e).
111
Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.
Adentrando o mundo privado das elites, a
análise das imagens presentes num sarcófago do
século IV auxilia na compreensão do nascimento de uma nova “romanidade”, agora cristã, que
se constrói pelo Império tardio. Os sarcófagos
são elementos próprios do ritual de inumação.
As ideias cristãs sobre a intangibilidade do cadáver auxiliaram na expansão deste tipo de ritual,
entretanto o uso de sarcófagos no Ocidente
latino já era uma prática bastante difundida
na época dos severos (192 – 235 d.C.), quando
aparecem sarcófagos de cenas mitológicas com
medalhões ao centro contendo a imagem do
falecido e, eventualmente, de algum membro de
sua família (García y Bellido 1972: 325). Deve-se
pressupor que os sarcófagos ricamente adornados faziam parte dos artefatos mortuários de
uma elite, visto que o custo de produção e transporte só poderia ser sustentado pelos abastados.
Portanto, os sarcófagos de notável qualidade
estética tornam-se objetos de luxo.
O sarcófago do século IV denominado
“Dogmático” (Fig.2) fornece elementos de análise para se pensar a cristianização das elites ao
longo do Império Tardio. Construído sobre um
friso duplo, adornado com cenas das escrituras
do Antigo e Novo Testamento, o medalhão central é seu elemento de destaque. Seguindo uma
tradição já presente nos sarcófagos romanos, o
medalhão apresenta o nobre falecido, acompanhado de sua esposa. Vestido como membro da
elite, o homem segura um rolo de pergaminho,
atestando sua supremacia intelectual, enquanto
um gesto de sabedoria e eloquência com a outra
mão afirma seu status. Posteriormente, este gesto será absorvido nas representações do próprio
Cristo. A esposa o observa e segura seu braço,
reforçando a unidade do casal. Uma dupla de
pequenos putti adorna o medalhão e imagens
cristãs complementam-no. A criação, Adão e
Fig. 1. Retratos imperiais. 1a. Camafeu em ouro e
marfim. Constantinopla c.335. Musée du Louvre, Paris
Fonte: Beckwith 1979: fig. 32. 1b. Moeda em bronze
de Constantino c. 327 Fonte: Spier 2007: cat. 29. 1c.
Moeda de Magnêncio c. 353 Fonte: Spier 2007: cat. 30.
1d. Moeda de Galla Placídia. c. 425-435 Fonte: Spier
2007: cat. 31. 1e. Solidus de Justa Grata Honória, irmã
de Valentiano III c. 430–445 Fonte: Spier 2007: cat. 32.
112
Alessandro Mortaio Gregori
Eva, os milagres de Jesus, sua prisão, a anunciação dos reis magos, Daniel na cova dos leões,
Jesus pregando aos discípulos e a prisão de
Pedro, são elementos de passagens bíblicas que
reforçam a crença do casal. Não há incompatibilidade em ser um nobre romano e morrer sob
os auspícios do cristianismo. Uma forte coesão
entre a moralidade cristã e o status do casal dá
sentido ao conjunto de imagens, o qual se apoia
em uma longa tradição dos ateliês romanos em
produzir peças sarcofágicas para as elites.
Na catacumba de Domitila, encontra-se
uma referência iconográfica (do século IV) de
uma nobre denominada Veneranda (Fig. 3a),
vestida como membro da elite, introduzida
ao céu pela mártir santa Petronília, sepultada
no mesmo cemitério. Imagens de aristocratas
levados ao Paraíso por figuras ou entidades
condutoras não é uma exclusividade cristã. Por
volta do mesmo período, final do século III
inícios do IV, o hipogeu pagão de Víbia, outra
nobre romana, decora-se com imagens da falecida sendo levada a um lugar paradisíaco pelo
angelus bonus (Fig. 3b). Veneranda e Víbia, são
nobres romanas, vestem-se segundo seu status e
o destaque de suas figuras nas pinturas parietais
indica sua importância no meio social. Uma
adaptação de ideias e de anseios espirituais da
elite junto ao cristianismo tornava mais fácil a
aceitabilidade do culto cristão.
É possível notar por estas cenas a presença
de ideais aristocráticos influindo nos ideais cristãos. A nobre de moral elevado é conduzida por
entidades bondosas, seja um angelus, seja um
santo-mártir, para uma realidade paradisíaca,
outra vida de prazeres. Embora não fique muito
claro na pintura de Veneranda (Fig. 3a), no
mausoléu de Víbia observamos que no paraíso
idealizado pelo artista outros nobres participam
de um banquete sagrado, representado no formato dos banquetes romanos de elite. No mesmo período, aparecem imagens nas catacumbas
cristãs enfatizando o banquete sagrado, entretanto, como parte do culto cristão, a divisão dos
pães (fractio panis Figs. 3c, 3d).
Outro elemento presente nas imagens do
período tardo-antigo são as figuras da nobreza
de serviço presentes em dípticos e painéis de
mármore: uma arte para exaltar os poderosos
e sua honra. O homem público, o potens,
abandona a toga drapeada em favor de uma
roupa concebida como heráldica. As novas
indumentárias dos séculos IV e V “escalonam
da ondulante veste de seda dos senadores e da
roupa, próxima do uniforme, dos servidores do
imperador, bordada de motivos que destacam a
posição oficial” (Brown 1991: 270).
Comparando o díptico de mármore que comemora o consulado de Flávio Felix, 426 (Fig.
3e), com o mosaico-retrato de santo Ambrósio,
poderoso bispo de Milão (início do século V)
(Fig. 3f), percebe-se a importância adquirida no
período por esses “funcionários”
da Igreja e sua proximidade com
as formas públicas de poder. O
bispo cristão é um intelectual
oriundo das elites. As ideias do
mundo dos abastados adentra
a Igreja cristã. O bem-nascido,
culto e de moral elevado, pode
tornar-se bispo, confluindo muito bem suas distinções sociais
com a vida cristã. Mais do que
uma questão puramente espiritual, as imagens tardo-antigas
nos apontam para pequenos
detalhes, os quais formaram
discretamente e progressivamente uma elite romana a serviço do
Fig. 2. Roma, Vaticano. Sarcófago dito “Dogmático” metade do século
imperador e a serviço da Igreja.
IV. Fonte: Grabar 1966, plate 268.
113
Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.
Fig. 3. Retratos das elites do Império tardio. 3a. “Veneranda introduzida ao céu por santa Petronília”, fins s. III.
Fonte: Grabar 1966, plate 123. 3b. “Víbia introduzida ao paraíso”, fins s. III Fonte: Grabar 1966, plate 124. 3c.
Fractio Panis, ou o banquete eucarístico; fins s. III. Fonte: Grabar 1966, plate 68. 3d. Fractio Panis, ou o banquete
eucarístico; fins s. IV. Fonte: Grabar 1966, plate 70. 3e. Parte de um díptico de mármore, 426. Flávio Félix, cônsul.
Fonte: Brown 1991, p. 271.3f. Mosaico- retrato de santo Ambrósio, Séc. V. Milão, Igreja de santo Ambrósio. Fonte:
Brown 1991, p. 271.
114
Alessandro Mortaio Gregori
Conclusão
Pelo percurso aqui apresentado, observa-se
pelas imagens tardo-antigas que os séculos IV e
V são momentos de grande expansão do cristianismo e as elites “romanas” de várias localidades
do Império produzem imagens que aproximam
seu status do cristianismo. Imagens são testemunhas mudas do passado. Possuem mensagens
a comunicar, contudo é difícil ao pesquisador
do presente compreendê-las em plenitude.
Uma análise apurada dos detalhes, o confronto
com imagens de estilo semelhante e do mesmo
período podem render bons frutos no momento de interpretá-las. O poder da imagem está
justamente na comunicação visual que possibilita e o inconsciente que pretende acessar.
Observa-se no período traços de romanidade,
como apontados por Revell – como proximidade do imperador e religião – ainda presentes do
Império tardo-antigo, porém agora relacionados
ao cristianismo.
Pode-se afirmar que para essa elite a “romanidade” não é incompatível com o “ser cristão”.
Os séculos IV e V são períodos de formação do
credo oficial, de disputas entre diferentes “cristianismos”. Nesse longo processo, a influência
das elites imperiais e seu contato com a Igreja
dão sentido a uma elite cristianizada, cuja nova
religião não negaria sua estima, nem solaparia as
instituições sobre as quais repousava sua posição
social. Alguns traços do mundo clássico sobrevivem na Igreja cristã. A caridade e a ajuda aos
pobres, por exemplo, serão interpretadas como
“paternalismo” pelos ricos, formulando em essência uma cristandade aristocratizada (Salzman
2007: 212).
As artes visuais são uma ferramenta essencial na promoção dos novos valores, pois transmitem mensagens e estímulos metafóricos que
levam à progressiva aceitação da realidade dos
novos tempos. Para Zanker, as alterações da arte
na Antiguidade Tardia são reflexos de uma mudança de mentalidade (2008: 187). A mudança
do mundo romano nos séculos IV e V não é
apenas de ordem política, há o acompanhamento de mudanças sociais. O desejo das classes
urbanas pela autopromoção nos primeiros dois
séculos do Império levou a uma proliferação de
estátuas honoríficas e monumentos funerários
pelas províncias. A partir do século III, o desejo
por honras cívicas e reconhecimento diminui.
As estátuas que permeiam o espaço público passam a ser a dos altos oficiais. Não são mais companheiros urbanos, mas sim funcionários da
alta burocracia imperial. As imagens funerárias,
por sua vez, carregam novos contornos, principalmente um interesse pela autocompreensão.
As imagens de tumbas e sarcófagos transmitem
a ideia de paraíso idílico, uma felicidade despreocupada fora do ambiente urbano. Embora a
ideia não fosse nova nos círculos filosóficos, na
expressão visual é uma novidade.
É inegável a participação dos bispos neste
processo de cristianização das elites, seus escritos e confrontos intelectuais com os pagãos, a
fim de sustentar a supremacia do cristianismo
frente aos cultos politeístas. No entanto, as imagens nos permitem acessar traços sutis, privados
e simbólicos, cujo texto, muitas vezes, não pode
alcançar. Assim, as imagens aqui arroladas são
documentos, cujo conteúdo imagético possibilita acompanhar a cristianização próxima dos
indivíduos que viviam os dilemas que tentamos
enxergar no passado.
Por fim, houve uma adaptação da “romanidade” ao cristianismo ou o cristianismo tornou-se “romano”? Certamente a influência aristocrática forneceu o contorno esperado pela Igreja
para sair da obscuridade. Ser romano e ser
cristão não são opostos no Império tardio, mas
sim, complementos de uma nova ideologia de
elite, pois a mensagem cristã foi reinterpretada e
adaptada aos horizontes da aristocracia imperial.
115
Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.
GREGORI, A.M. Archaeology and Image: the christinization of Roman elites (IVth and
Vth centuries). R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 109-117, 2014.
Abstract: When Christianity reaches the sphere of Roman elites a problem sets in this group: can it be Roman – considering this romanity a set of
practices that give meaning to the imperial elites – and at the same time follow
Christian dogmas? This is a problem that appears central to the elites, since
public urban life imposes a series of behaviors and practices connected with
traditional pagan worship. Therefore, as a magistrate, or mayor of Rome, for
example, can he be Christian and at the same time, assert himself as Roman?
This communication discusses the meaning of being Roman and Roman-ness
in the times of Late Empire (IVth and Vth centuries) in progressive expansion of Christianity and its churches. The approach will be developed mainly
from material sources of the period, in particular images from various media:
frescoes, sarcophagi, coins, medallions and marble diptychs.
Keywords: Christianism – Iconography – Archaeology of Image – Paleochristian
Art, Roman elites.
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Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio
Uiran Gebara da Silva*
SILVA, U.G. Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio. R.
Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 119-125, 2014.
Resumo: Esta apresentação busca esboçar uma problematização inicial sobre algumas das mudanças que vêm acontecendo na caracterização das regiões
rurais do norte da Gália na Antiguidade Tardia, entre os séculos III e V d.C.
Tais mudanças são em parte resultado de formas novas de análise da documentação textual e também dos avanços da arqueologia sobre essas regiões. Essas
mudanças têm tido um importante impacto nas pesquisas sobre a Gália do
Império Romano tardio, resultando na desconstrução dos modelos antigos de
interpretação das relações sociais das zonas rurais dessa região e modificando
certas ideias tradicionais da historiografia como o colonato, a patronagem
rural, o abandono de terras, a centralidade das villae, e até mesmo a definição
identitária dos habitantes.
Palavras-chave: Gália romana – Campesinato – Colonato – Patronagem rural
– Arqueologia sub-villa.
A minha pesquisa de doutorado foi um
estudo sobre revoltas camponesas do Império
Romano tardio e há basicamente dois conjuntos
de ações revoltosas nesse período: as que aconteceram no norte da África, cujos rebeldes são
denominados circunceliões na documentação
escrita, e as que aconteceram na Gália, cujos
rebeldes são denominados bagaudas. Uma
investigação fundamental que essa pesquisa
demandava era acerca do problema da configuração das relações sociais nas regiões rurais onde
aconteceram as revoltas. E foi essa investigação
que me levou a descobrir as mudanças que
(*) Doutor pelo Programa de História Social do Departamento
de História da Universidade de São Paulo, com auxílio regular
Fapesp, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello.
<[email protected]>
aconteceram nas últimas décadas nos modelos
de compreensão dessas relações sociais rurais,
não só para a África e Gália, mas para o Império Romano como um todo. O meu foco na
apresentação de hoje é em apenas um pequeno
recorte espacial do universo total ligado a esse
problema: o norte da Gália entre os séculos III
e V d.C. E mesmo esse recorte mais restrito não
permite que eu apresente taxativamente quais
eram as condições sociais da vida no campo
nessa região, contudo, ele permite apresentar
cuidadosamente algumas das inúmeras questões
e incertezas que essas mudanças têm suscitado.
É um lugar-comum na literatura sobre a
Gália romana a apresentação desse território
como sendo dotado de um desenvolvimento
desigual entre norte e sul. Uso propositalmente
a palavra desenvolvimento, porque isso permite
chamar atenção para a lógica narrativa por trás
119
Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 119-125, 2014.
desse lugar-comum. O sul da Gália romana
é geralmente descrito como uma região mais
urbanizada e na qual as estruturas de propriedade e gestão da terra, a circulação e produção de
mercadorias e os hábitos de consumo de luxo
dos romanos se assentou antes, enquanto o
norte é apresentado como uma região mais atrasada, isso é, menos urbanizada, com uma menor
presença das estruturas associadas aos romanos.
Essa menor presença não é uma ausência, e
assim, para os primeiros séculos de dominação
romana, é possível encontrar as evidências da
existência de grandes propriedades do tipo
romano (as villae, relativamente abundantes no
sul). A visão de que no norte da Gália desenvolveu-se uma aristocracia regional poderosíssima e
essas poucas villae dominariam a paisagem rural
antes e depois da passagem dos romanos é uma
das ideias de “longa duração” na historiografia
sobre a região (Wightman 1978; Whittaker
1993[1980]: 73-99; Galliou 1984; Drinkwater
1989).
Essa visão do norte da Gália romana estava
necessariamente ligada a um modelo de interpretação das relações rurais do Império Romano
tardio que até 30 anos atrás era quase incontestável. Tão incontestável que acredito que se
possa até pensá-lo em termos de um paradigma
historiográfico. Contudo, depois dos anos 80,
tal modelo vem sendo posto em contestação e
hoje está longe de ser consensual.
O campesinato provincial do alto Império era um dado pouco problematizado desse
modelo (não só para a Gália, mas para todo o
Império), o que pode ser imputado em primeiro
lugar à sua pouca visibilidade na documentação
escrita (Garnsey & Woolf 1989), mas também
a uma visão inercial da dominação aristocrática
rural, da pré-história à revolução francesa (Weber 1983 [1896]; Bloch 1947; Dockes 1982; Finley 1999 [1975]; Jones 1992 [1964]; Ste. Croix
1998; Whittaker 1993 [1978]: 331-362).
A visão dividida e desigual da Gália persistia para a historiografia do Império Romano
tardio. Assim, a Gália romana seria uma região
caracterizada por uma duradoura crise social,
do III ao V, com uma frágil estabilização no IV,
uma estabilização baseada em um governo autocrático e de um Estado hipertrofiado resultantes
120
das reformas de Diocleciano e Constantino.
Nesse período de crise, o desenvolvimento
desigual entre norte e sul persistiria e se aprofundaria. No sul haveria uma persistência dos
modelos romanos de apropriação da terra e de
influência imperial, enquanto que no norte
haveria o abandono ou empobrecimento das
grandes propriedades, com a fuga da população para cidades. Ali a presença do Império se
restringiria à presença do exército e dos fortes
militares, mas o campo setentrional (incluindo
os camponeses) seria paulatinamente tomado
pelas hordas de bárbaros invasores (Wightman
1978; Galliou 1984; Van Dam 1985; Drinkwater 1989; Drinkwater 1992).
Essa visão da Gália se desenvolvia em articulação com algumas categorias historiográficas
constitutivas daquele modelo: a patronagem
rural, o “colonato tardo-romano” e as crises dos
séculos III e V.
A ideia de patronagem rural está na base
da persistência dessa visão, e consiste fundamentalmente na transposição dos modelos de
clientelismo da cidade de Roma para as relações
entre as elites agrárias e os camponeses livres e
também na ideia de que tais relações de patronagem teriam se fortalecido no período romano
tardio (Wittaker 1993 [1987]: 89-120). Contudo, em tempos recentes, essa perspectiva passou a ser problematizada e refinada, de forma
que hoje se tem mais consciência da operação
de projeção que a historiografia realizava das
relações urbanas para o contexto rural (Krause
1987; Garnsey 2010: 33-54). Além disso, parte
da produção atual se questiona se houve efetivamente um fortalecimento da patronagem, ou se
isso é uma ilusão criada pelo aparecimento de
uma documentação legal que tenta regular uma
prática social em crise (Carrié 1976; Grey 2011:
5-7; 206-212).
O assim chamado colonato tardo-romano,
por sua vez, consiste na perspectiva historiográfica que propõe que, como resposta à decadência da escravidão rural, o Império tardio teria
legalmente vinculado todo o campesinato à
terra, aprofundando a dominação aristocrática
no campo e rebaixando as condições de vida
dos camponeses a uma forma de semiescravidão (Weber 1983 [1896]; Clausing 1925; Jones
Uiran Gebara da Silva
1958; Finley 1999[1975]; Finley 1991; Whittaker
1993 [1987]: 89-120; Ste. Croix 1998). Essa
perspectiva, que se baseia fundamentalmente na
existência de um conjunto de leis nos códigos
de Teodosiano e Justiniano, era anteriormente
criticada por alguns historiadores que acreditavam que se poderia antecipar essa prática
para o alto Império, e que o que a legislação
apresentava era apenas uma vontade de pôr no
papel relações já estabelecidas no costume. Ela,
porém, passou por uma severa releitura a partir
da intervenção de Jean Michel-Carrié no debate,
que, tomando como ponto de partida a inexistência de decadência da escravidão no Império
tardio e, portanto da falta de necessidade social
da vinculação do campesinato à terra, a desconstruiu em duas frentes. Em primeiro lugar
demonstrou como a construção do colonato na
historiografia depende de uma projeção, operada principalmente por Fustel de Coulanges, das
relações de servidão feudais para o período da
Antiguidade Tardia. Em segundo lugar, demonstrou que as leis não são coerentes entre si e não
tratam de situações homogêneas, e que a única
coisa que realmente as une não é a subordinação do campesinato, mas a preocupação com o
controle da cobrança de impostos e a punição
para aqueles que os sonegassem (Carrié 1982;
Carrié 1983). Mesmo que não se concorde com
a proposta de Carrié, é forçoso reconhecer que
a sua intervenção estremeceu um modelo há
muito tempo estabelecido e o debate que se
desenvolve há 30 anos não voltou a nenhum
patamar consensual (Marcone 1985; Marcone
1988; Martino 1993; Marcone 1993; Mirković
1997; Lo Cascio 1997; Vera 1998; Giliberti
1999; Scheidel 2000; Sirks 2001; Grey 2007a,
2007b; Grey 2011: 15-18; 181-189).
E por fim, a ideia de que o fim do domínio
romano seria o resultado de uma prolongada
crise entre os séculos III e V, articulando um
processo de decadência social em todo o Império à destruição causada pela presença dos
povos bárbaros dentro das fronteiras. O desenvolvimento do Estado hipertrofiado, o aumento
da presença militar e a redução do estatuto
dos camponeses à semiescravidão seriam expressão dessa crise, que teria como resultado
um processo de “desromanização” da Gália,
novamente, com ritmos diferenciados no sul,
mais lentamente, e no norte, mais rapidamente (Jullian 1926; Lot 1982[1927]; Jones 1992
[1964]; Anderson 2000 [1975]). Desse ponto de
vista, no norte, as transformações nas regiões
rurais expressariam inicialmente o renascimento
de uma cultura gaulesa entre as elites, e logo em
seguida, o início do processo de dominação das
elites germânicas, como substitutos dos antigos
poderosos galo-romanos e a transposição de todas as estruturas de dominação do campesinato
para o cenário pós-romano. A ideia de uma crise
social prolongada, por sua vez, foi duramente
revista com o desenvolvimento dos estudos em
torno de uma Antiguidade Tardia, de forma que
não é possível mais asseverar de forma indiscutível nem que houve uma crise social ao longo
do século III, nem que a ação dos bárbaros foi
violenta, ou nem mesmo que o Império Romano caiu em 476 (Cameron 1996: 33; Cameron
& Garnsey 1998; Ward-Perkins 2005: 13-31).
No que diz respeito à Gália, essas revisões
historiográficas tiveram um grande impacto, e
parte da historiografia não vê mais o século IV
como um interregno entre duas crises, mas um
período de crescimento econômico e ascensão
política (Leveau 2007; Février 1993; Tuffi 1993;
Bowden & Lavan 2004; Chavarría & Levit
2004; para a Itália como exceção:Vera 1986).
No que concerne às relações sociais nas regiões
rurais, o paradigma de dominação aristocrática
inercial ainda persiste, mas não mais com a mesma força de antes. Um dos campos onde essa
mudança no paradigma tem sido libertadora é
na investigação arqueológica das regiões rurais
do norte da Gália (Ouzolias & Van Ossel 1997;
Ouzolias 2001; Van Ossel 1992, 2006; Peytremann 2003; Leveau et al. 2009; especificamente
sobre a cerâmica: Redknap 1988 e Bayard 1998).
Anteriormente, tal paradigma impunha aos
arqueólogos que trabalharam com as villae do
norte da Gália uma narrativa de crise, invasão
militar e empobrecimento regional. A própria
concentração das pesquisas nas grandes construções da elite do norte acabava por confirmar
essa narrativa, uma vez que as villae diminuíam
em número e suas técnicas de construção passavam a usar cada vez mais madeira em lugar
de pedras e tijolos (Wells 2001; Van Ossel
121
Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 119-125, 2014.
2006). A investigação arqueológica das regiões
rurais da Gália para o período romano tardio
se desenvolveu bastante no final do século XX,
mas ainda assim, em um primeiro momento, a
leitura dos vestígios materiais era profundamente influenciada pela narrativa de crise e decadência oriunda daquele paradigma dominante
na historiografia. Essa expansão da investigação,
contudo, contribuiu para o aumento de contradições internas do paradigma, de forma que
paulatinamente o material descoberto permitia
interpretações diferentes e em oposição à ideia
de uma Gália romana em crise. Teve um grande papel nisso o uso cada vez mais frequente
da survey archaeology, levando a uma melhor
compreensão do quadro geral da ocupação rural
do norte da Gália no período, principalmente
porque permitiu uma ampliação do foco para
além das villae, incluindo muitos assentamentos
sub-villa e invisíveis anteriormente (Ouzolias &
Van Ossel 1997, 2003; Dyson 2003, Wickham
2005: 466-481).
Esses assentamentos menores apresentavam uma ocupação dispersa no território rural,
característica já presente no período do Alto
Império, e eles sofriam apenas uma pequena
queda em quantidade no século III e voltavam
a quase o mesmo patamar anterior no IV (Van
Ossel 2006). O que haveria de novidade nesse
período era a presença de alguns deslocamentos,
que pouco alteravam na quantidade geral dos
assentamentos. Inicialmente, a combinação da
diminuição das villae com a descoberta da continuidade da ocupação dispersa nas regiões rurais
foi interpretada como uma clara evidência do
processo de concentração de propriedade nas
mãos daquela elite agrária galo-romana, desenhando uma sociedade radicalmente dividida
em dois polos: comunidades rurais empobrecidas e potentados poderosíssimos morando em
núcleos urbanos fortalecidos (ideia baseada na
evidência de vici transformados em civitates muradas a partir do século III, cf. Wightman 1978).
Ocorre que, da mesma forma que essa visão
começou a deixar de ser consensual na historiografia, ela começou a ser contestada também a
partir da observação dos vestígios materiais. No
contexto desses assentamentos dos séculos III
122
e IV, é comum encontrar objetos que apontam
para uma bem maior diversidade social do que
a concepção anterior. Assim, de assentamento
para assentamento, há uma perceptível variação
no tamanho das habitações e na qualidade dos
objetos encontrados em contexto funerário
(Van Ossel 2006). Em paralelo, há também um
reconhecimento cada vez maior do aumento
da presença de monetarização e da produção
artesanal seriada, mesmo que de baixa qualidade, nessas regiões: moedas de bronze e objetos
produzidos em oficinas de cerâmica regionais
não atestados para os séculos I e II a.C. (Redknap 1988; Bayard 1998; Louis 2004).
Acredito que seja importante ressaltar que
não somente a descoberta de novos materiais e
dados foi importante para essas mudanças, mas
também, a forma com a qual se olhou para eles.
Um conjunto de orientações propostas por Paul
Van Ossel é revelador desse esforço: a) o esforço
em observar os sistemas locais de organização
dos assentamentos, e da distribuição dos objetos antes de fazer comparações com períodos
anteriores e posteriores; b) evitar generalizações
apenas a partir da mudança de tipos de materiais de construção e arquitetura; c) buscar
entender que a relação entre a cultura material e
“identidade étnica”, como romano e não romano, passa antes pela relação desta com padrões
regionais de comportamento e diferenciação de
classes; d) as dificuldades ou mesmo impossibilidade de se identificar relações de propriedade a
partir da arqueologia (Van Ossel 2006).
Para concluir, portanto, a partir da mudança
na historiografia, da intensificação das investigações nas regiões rurais e da mudança na forma de
leitura dos achados, tem sido possível propor a
existência de uma sociedade rural bem mais complexa, dotada de mais níveis sociais, distribuição
de riqueza e complexidade econômica, do que se
supunha para o norte da Gália do período romano tardio. A mais importante implicação disso é
a insuficiência daquele modelo de que no norte
houve “na longa duração” uma sociedade rural
simples cuja única articulação eram as relações
de patronagem direta entre camponeses passivos
e aristocracias locais, primeiro gaulesas, depois
galo-romanas, depois germânicas.
Uiran Gebara da Silva
SILVA, U.G. The peasants and the land of northern Gaul in the Late Roman Empire.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 119-125, 2014.
Abstract: This paper presents an initial drawing of some of the changes
that are happening with the historical characterization of late ancient northern
Gaul, from the third to the fifth centuries AD. Such changes are the result of
the development of new modes of analysis of the textual documentation as well
of the progress of archaeological research in this region. These changes have
had a deep impact on the study of the Gauls of the late Roman Empire, resulting on the deconstruction of old models for the social relationships on the
rural areas, and altering some traditional ideas of the historiography, such as
the Roman colonate, the ruralpatronage, the agri deserti, the centrality of the
villae, and even the identity definitions of the inhabitants.
Keywords: Roman Gaul, Peasants, colonate, rural patronage, sub-villa
archaeology.
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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.
Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local
dentro de um espaço de poder tipicamente imperial
Irmina Doneux Santos*
SANTOS, I.D. Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro
de um espaço de poder tipicamente imperial. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo,
n.18: 127-134, 2014.
Resumo: Segundo Louise Revell (2009), a conquista romana da Europa
Ocidental trouxe uma série de novas formas de vivenciar a “romanidade” entre
as populações locais, formas estas que, apesar de serem estabelecidas dentro
de padrões romanos de política, administração e religião, apresentam diferenças locais de adaptação. As representações das identidades individuais e dos
grupos dentro das novas cidades romanas estabelecidas nas províncias variavam
entre as comunidades e entre os diferentes grupos locais. O que interessa neste
trabalho é tentar perceber se e como essas diferenças locais – e as semelhanças
entre diferentes comunidades – aparecem no registro arqueológico, especificamente nos edifícios públicos de maior prestígio nas cidades romanas: os fóruns
provinciais.
Palavras-chave: Fóruns romanos – Lusitania – Cidades provinciais – Ebora
Liberalitas Iulia.
Introdução
A
s pesquisas históricas e arqueológicas
já há algum tempo buscam encontrar,
nas comunidades que passaram a pertencer ao
Império Romano, o que pode ser considerado
autóctone, indígena ou local, dentro do novo
sistema de domínio imperial. O principal motivador desta busca, se assim o podemos chamar,
tem fortes motivações nacionalistas. Essas motivações nacionalistas tornaram-se especialmente
evidentes a partir de dois momentos históricos
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia DA Universidade de
São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial.
<[email protected]>
recentes: o período pós Segunda Guerra Mundial, quando os países europeus buscavam,
grosso modo, se recuperar das invasões alemãs;
e mais recentemente com a formação da União
Europeia, momento em que as fronteiras se tornaram mais fluidas e os deslocamentos internos
mais fáceis.
No caso da arqueologia, normalmente os
pesquisadores buscam esses traços e aspectos
autóctones – que reforçariam uma identidade
nacional – em espaços onde possam aparecer
com mais força – ou probabilidade – especialmente porque as características romanas são
menos influentes. Por exemplo, nos espaços
domésticos, nos assentamentos periféricos ou de
menor importância administrativa – como vici
ou oppida – ou espaços funerários.
127
Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.
Podemos citar, como exemplo, as cerâmicas
de uso comum (domésticas), onde as características
tradicionais pré-romanas normalmente apresentam uma permanência em período romano imperial ou mesmo o retorno de padrões indígenas no
final do Império, quando mesmo após a presença
romana, são mantidas características pré-romanas,
apesar da mudança nas cadeias operatórias
(Fleming 2010). Outros exemplos, para a Gália,
podem ser encontrados em I. D. Santos (2010).
Na epigrafia, vemos a presença de nomes
locais com grafia latina, a mistura de nomes
locais com romanos e, também, a adoção de
formas nominais romanas. Há um movimento
de integração contínua das elites locais dentro
de um sistema cada vez mais romanizado.
Nas residências, busca-se entender como
os moradores utilizavam os diferentes espaços
domésticos dentro de uma moradia com aspecto
romano. Também os vestígios da transformação
de moradias, por exemplo, do tipo castrejo para
romanas, com cômodos quadrangulares ao redor de átrios. As residências podem apresentar
também uma mistura de técnicas e materiais,
mas há uma adoção muito maior de técnicas e
elementos romanos nas residências das elites.
Entretanto, no caso das cidades implantadas
ou modificadas a partir do Principado na Península Ibérica em geral e na Lusitania em particular, as
características autóctones tornam-se, no decorrer
do tempo, cada vez menos evidentes. Quando
voltamos o foco do estudo para um elemento
fundamental das cidades romanas, seus fóruns – o
espaço urbano mais representativo do poder romano nas províncias –, os elementos pré-romanos
se tornam praticamente inexistentes, até onde
podemos afirmar a partir dos dados arqueológicos
disponíveis. Na verdade, a presença romana é mais
forte nos elementos representativos do poder,
como o fórum, e as mudanças nas formas arquitetônicas parecem que nunca são realizadas a ponto
de surgir um elemento que não seja completamente adequado a uma estrutura forense romana.1
(1) A bem da verdade, ao que tudo indica, a forma tripartida
do fórum não surgiu em Roma, mas nas províncias, e foi
levada para Roma. Mas esta questão deve ser relativizada,
pois, embora tenha surgido fora de Roma, o esquema era
128
Dado este quadro sucinto, permanece a
questão: seria possível encontrar, nos fóruns
provinciais, elementos tipicamente indígenas,
locais, nesses ambientes tão caracteristicamente
romanos?
Cidades provinciais romanas
As cidades eram vistas, desde o início das
conquistas romanas, como parte essencial da
estratégia militar e imperial romana. Os centros
urbanos eram utilizados como meio de ocupação e de controle do território, além de transformarem a paisagem política da região. “Na
época imperial, as instituições através das quais
o império era administrado estavam fundamentalmente colocadas nas cidades, reforçando a
importância delas” (Revell 2009: 49).
As cidades romanas introduzidas na Península Itálica e posteriormente nas províncias
ocidentais representavam uma consciente e deliberada quebra na tradição local, mas apresentavam um estilo que em pouco tempo se tornou
reconhecível como romano pelos povos que entraram em contato com essas cidades. Muralhas,
planejamento ortogonal, centro monumental
com fórum, templos, termas, teatros e anfiteatros, arcos; todas são construções romanas – não
necessariamente criadas pelos romanos, mas
adotadas e transformadas por eles – que sempre deveriam existir no esquema urbano que
tornavam as cidades provinciais imediatamente
reconhecíveis como “romanas”.
As cidades deveriam intencionalmente
seguir um modelo físico estabelecido por Roma
para abrigar os elementos administrativos,
jurídicos e sociais romanos. E tal urbanismo
previa um centro monumental, o fórum, com
os edifícios destinados a essas funções. Embora
a cidade provincial também fosse uma unidade
cívica independente, organizando e administrando seus próprios negócios e território, seu
tão romano que foi adotado pela Vrbs. Ou seja, foi uma
"novidade" que surgiu em um contexto provincial romano.
Ver Santos 2008.
Irmina Doneux Santos
centro cívico-religioso, o fórum, não possuía –
ao menos a primeira vista – elementos autóctones. Havia alterações, adaptações e variações do
esquema geral, mas tais mudanças eram principalmente físicas, não ideológicas e/ou funcionais. A romanização, para Zanker (2000) não é
apenas a cópia das estruturas físicas visíveis de
uma cidade, mas também algo abstrato e idealizado, a noção de como um romano imaginava
que a cidade ideal deveria ser.
Esse distinto complexo capitólio-fórum
central se desenvolverá em vários tipos particulares e variações individuais, mas em praticamente
todos eles há o progressivo isolamento da praça
com relação às ruas que a circundam.
Um dos modelos principais de fórum é o
denominado “fórum tripartido” (ou em bloco),
que apresenta uma “união” de funções religiosas, econômicas, políticas e jurídicas: a praça
fechada, circundada por pórticos que restringem o acesso a ela, com a basílica em um dos
extremos da praça e o principal templo estatal
no outro, todo o conjunto denotando um forte
sentido axial e hierárquico.
Posteriormente, após o período flaviano, a
tendência é que os fóruns cada vez mais se tornem espaços de representação imperial religiosa,
um grande témenos isolado do resto da cidade,
com grandes pórticos e, especialmente, o templo de culto imperial em posição mais elevada.
Havia um padrão, uma homogeneidade,
dentro da variedade de fóruns encontrados nas
cidades provinciais, pois representam o mesmo
esquema político-administrativo que abrangia
todo o ocidente romano. Apesar da flexibilidade de adaptações do modelo tipicamente
romano às situações particulares – localização
geográfica, importância e/ou prestígio da cidade, riqueza, relação com o poder central, matéria-prima disponível etc. –, os esquemas eram
sempre impostos pelo poder central dentro de
limites topográficos naturalmente aceitáveis.
Mantinha-se sempre o equilíbrio arquitetônico
do centro da cidade, com um fórum onde se
destacam o templo e a basílica (com a cúria),
ou seja, a religião oficial e a administração do
Estado.
Portanto, não é a variedade dos esquemas
forenses que deve surpreender, mas exatamente
sua homogeneidade; a manutenção de uma
tipologia e de uma funcionalidade, apesar das
diferenças regionais, que levavam à manutenção
de um típico plano urbanístico romano em
meio a tanta diversidade local.
Identidades romanas locais
Para Louise Revell, na obra Roman Imperialism and Local Identities (2009), devemos buscar no espaço público as diferentes formas como
os diferentes grupos sociais utilizam os edifícios
públicos e religiosos romanos, exatamente para
tentar entender outras experiências sociais. Ela
buscou, nos diferentes usos dos espaços urbanos, as diferentes identidades sociais agindo e
se fazendo representar nas cidades; seu uso e
transformação do espaço refletindo as diferentes
identidades e se fazendo representar no contexto social, político e religioso. Para Revell (2009:
150), o poder romano era reproduzido pelas comunidades urbanas localmente e o discurso de
uma identidade compartilhada estava instalado
na malha da cidade. Para ela, “embora houvesse
um nível geral de similaridade entre as várias
cidades, o modo como as estruturas sociais
eram reproduzidas era, em cada caso, levemente diferente. Desse modo, a compreensão do
que era ser romano variava sutilmente entre as
comunidades”. Para a autora, a cultura material
de uma cidade provincial, mais especificamente
a sua arquitetura pública, podia ser utilizada
na reprodução de poder imperial ao mesmo
tempo em que na articulação das hierarquias e
identidades locais. Mas sempre entendendo as
diferentes identidades locais tendo como base a
“romanidade” (Roman-ess).
Minha proposta é tentar encontrar elementos – arquitetônicos e decorativos – que possam
ser identificados, ou sejam indicadores, de uma
identidade romana moldada localmente, isto é,
que apresentem ou demonstrem características
que poderíamos entender como autóctones
dentro de espaços ideológica e fisicamente
edificados como romanos: os fóruns. Para isto,
baseio-me no estudo do fórum romano de Ebora
Liberalitas Iulia (Évora, no Alentejo, Portugal),
pertencente ao Conuentus Pacensis.
129
Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.
Quando estudamos os fóruns – romanos
e provinciais – percebemos a presença de elementos do programa de renovação cultural
iniciado com Otaviano (Zanker 1992: 123 ss.).
Seu programa ideológico destacava a pietas, com
reforma de templos, renovação e retomada de
cultos; a publica magnificentia, a restauração,
construção e embelezamento dos edifícios públicos; a adoção do estilo coríntio, especialmente
para a arquitetura religiosa, transformando-se na
ordem cívica da arquitetura sacra; a restauração
da virtus romana, cujo símbolo foi a retomada
das insígnias romanas dos partas, em 20 a.C.;
e, por fim, leis de renovação moral (de 18 a.C.),
concluindo o saneamento interior (este último
ponto, segundo Zanker, teve um efeito mais
simbólico do que real, prático). Assim, nada se
oporia ao início da “Idade de Ouro”.
Da Évora romana, uma cidade construída
de raiz, conhecemos basicamente o traçado do
aqueduto romano, um edifício termal, o complexo forense com o teatro a sul, parte do seu
plano de ruas e das muralhas. A estrutura mais
conservada do fórum romano é o templo, que
permanece in situ.2 O fórum foi minuciosamente estudado pelo Instituto de Arqueologia
Alemão (entre 1989 e 1995), o que propiciou
aos pesquisadores a possibilidade de contar com
uma confiável reconstituição (o que é raro em se
tratando dos fóruns lusitanos).
Theodor Hauschild (2009: 27-36), ao
estudar o templo e o fórum romano de Ebora
baseando-se nas intervenções arqueológicas realizadas pelo Instituto de Arqueologia Alemão,
percebeu as várias fases de intervenções, sendo
que a marmorização ocorreu em época flávia,
mas abrangeu principalmente a praça forense.
Para Hauschild, o complexo era dedicado ao culto imperial. E, com base nas escavações possíveis
realizadas no entorno do templo, foi possível
estabelecer parte da planta do fórum, que seguia
o modelo canônico de fórum tripartido, ou em
(2) Permanece in situ a estrutura do pódio que elevava o espaço
sagrado do templo, vários capitéis e bases de mármore e os
fustes das colunas, em granito. As colunas de granito eram
revestidas com estuque e pintadas. O pódio, com estrutura
de opus caementicium, era revestido por paramento pétreo.
130
bloco: um setor dedicado ao templo de culto
imperial, cercado por pórticos e mais elevado,
como um témenos; uma separação física entre
esta parte sacra e a parte secular; e uma grande
praça cercada por pórticos, possuindo uma
basílica (cuja localização, neste caso, é incerta)
e tabernae. A praça forense era preenchida por
monumentos honoríficos, estátuas e inscrições.
Luís Jorge Gonçalves e Panagiotis Sarantopoulos (2009) tentaram reconstituir, através dos
escassos vestígios materiais conhecidos oriundos
do fórum de Évora (esculturas públicas e elementos arquitetônicos), o seu programa iconográfico. De especial interesse é o friso dórico
com elementos iconográficos de bucrâneos
descarnados, paterae e tríglifos alternados (Fig.
1, n° 1) e os capitéis coríntios (in situ). Entre as
estátuas, todas em mármore, os vestígios remetem a estátuas colossais no fórum ou até mesmo
no templo.
Com Augusto, as imagens públicas dos
fóruns passaram a ter uma carga política programada, com a promoção dos novos valores
ideológicos imperiais. Foi traçada uma associação entre a gens Iulia e um passado heroico
divinizado, a promoção do Princeps e de sua
família e sua estreita associação ao próprio Império. Exaltou-se, também, a Pax Romana, mas
sem deixar de evidenciar o poder de subjugar
os inimigos através da força, a abundância e a
glorificação do triunfo e da missão de domínio
romana, que podia ser clemente com os que
se submetiam, mas implacável com os que se
revoltavam.
O Fórum de Augusto, a Ara Pacis e o
templo de Apolo no Palatino são os maiores
ícones, em Roma, dessa nova ideologia. Nas
cidades provinciais do Império, os fóruns eram
os espaços por excelência desse discurso, proferido através das imagens. As capitais provinciais,
especialmente no início do Império, eram as
principais difusoras dessa ideologia imperial
augustana.
No fórum de Évora, a apologia à Pax Romana e a sua consequente prosperidade e a entronização do Princeps estão representadas pelo
friso dórico: os bucrâneos são símbolos da Pax
Romana augustana, mas uma Pax baseada na
superioridade bélica romana; a entronização do
Irmina Doneux Santos
Princeps aparece no torso heroico e nos membros superiores, semelhantes aos grupos escultóricos de togados e outros elementos divinizados.
A decoração arquitetônica – cornija com
mísulas – segue os padrões metropolitanos e
mesmo da capital provincial, embora com desenho mais simplificado e esquemático.
Segundo Gonçalves e Sarantopoulos, não
foram encontrados, em Évora, a iconografia
relativa à gênese mítica de Roma e à glorificação
do triunfo e a humilhação dos vencidos, que
estão presentes em Augusta Emerita.
Para os autores, os habitantes de Évora
parecem ter investido no programa iconográfico
que estava não apenas dentro de suas disponibilidades, como também que transmitiam a mensagem que lhes interessava, ou seja, mostrar sua
adesão ao Princeps, à Pax Romana e à Abundantia, mas não à humilhação dos vencidos e a
glorificação do triunfo.
E concluem:
“Este parece ser o modelo iconográfico de outras cidades da Lusitânia Ocidental, casos de Conimbriga, Aeminium,
Pax Iulia e Salacia, onde os vestígios
dos programas iconográficos nos fazem
remeter para o mesmo tipo de discurso
ideológico” (Gonçalves e Sarantopoulos
2009: 42).
Conclusão
Não podemos deixar de ressaltar a escassez
de vestígios arquitetônicos decorativos encontrados em Évora, o que poderia indicar, na verdade,
não a sua inexistência, mas especialmente o seu
desaparecimento ao longo do tempo. Portanto,
seria irresponsável afirmar que o “elemento local”
deva ser buscado no que não aparece representado no fórum. Em Ebora, foram encontrados
elementos iconográficos referentes a determinados aspectos da ideologia imperial, mas não de
todos. E não podemos determinar se a escolha de
determinados elementos em detrimento a outros
foi ou não intencional e se transmitiriam uma
mensagem “identitária local”.
Mas outro elemento construtivo tem características confirmadamente locais: os materiais
de construção utilizados. Apesar de existir um
costume generalizado na arqueologia romana
de buscar o suposto momento de marmorização
urbana, como uma fase em que os monumentos
públicos passam por um processo de embelezamento, isto é apenas parcialmente válido para a
Lusitania. Apenas onde existem jazidas marmóreas próximas é que se percebe uma marmorização, e apenas em alguns monumentos ou em
partes deles. Isto ficou evidenciado em Ebora,
que está próxima a uma jazida de mármore, e
em Augusta Emerita, por ser a capital da Lusitania.
Mas o mais usual era a utilização do granito
local estucado. Os lusitanos tinham grande
habilidade e perícia no trabalho em granito,
uma tradição que vinha da Idade do Ferro.
São demonstrações dessa arte, por exemplo,
as esculturas dos guerreiros castrejos, como
também capitéis coríntios lavrados em granito
cuja elegância exige uma longa tradição na arte
escultórica, como encontrados, por exemplo,
em Conimbriga, Braga (Bracara Augusta)3
(respectivamente Figs. 2a e 2b), ou em outros
ornamentos, como vimos em Ebora (Fig. 1) e
também em Beja (Pax Iulia) (Fig. 3).
(3) Bracara Augusta, apesar de hoje ser a cidade portuguesa
de Braga, não pertencia à Lusitania, mas sim a Prouincia Tarraconensis. Mas faz parte do mesmo contexto arqueológico
pré-romano do NE de Portugal que o norte da Lusitania.
131
Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.
Fig. 1. Vestígios do programa decorativo e iconográfico do Fórum de Ebora. O friso dórico (1), executado em material
local, alterna elementos iconográficos da apologia da Pax Romana augustana: tríglifos, paterae e, especialmente, os
bucrâneos descarnados. Demais elementos da imagem: (a) localização do fórum na malha urbana, no ponto mais
alto da colina; (b) planta do templo; (2) fragmento da arquitrave e solfito; (3) fragmento de cornija com mísulas;
(4 e 5) capitéis compósitos de pilastras; (6) mão direita de estátua colossal segurando patera; (7) mão esquerda de
estátua colossal segurando bastão; (8) fragmento de mão segurando uma pyxis; (9) fragmento de dedo polegar; (10)
fragmento de dedo; (11) fragmento de retrato provavelmente do período júlio-cláudio; e (12) fragmento de torso
de estátua heroica (Gonçalves e Sarantopoulos 2009: 43).
132
Irmina Doneux Santos
Fig. 2a. Capitel em granito do pórtico da praça de fórum
de Conimbriga. Museu Monográfico de Conimbriga,
inv. 66.371 (Foto I. Doneux 2012; acervo LARP).
Fig. 2b. Capitel coríntio em granito, de época romana,
encontrado em Bracara Augusta. Museu Regional de
Arqueologia D. Diogo de Sousa, Braga (Foto I. Doneux
2012; acervo LARP).
Fig. 3. Fragmento de cornija em granito encontrada em Beja (Pax Iulia).
Museu Regional Rainha D. Leonor (Foto I. Doneux 2012; acervo LARP).
Agradecimentos
À Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino
Fleming, que me orientou e apoiou ao longo de
minha formação. À Profa. Dra. Helena Car-
valho, da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, por me mostrar um ângulo
inusitado de interpretação. Ao Prof. Dr. Carlos
Fabião, da Uniarq, Universidade de Lisboa, por
me apontar o caminho.
133
Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.
SANTOS, I.D. The Roman provincial fora: local identity representation inside a typically
imperial place of power. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 127-134, 2014.
Abstract: According to Louise Revell (2009), the Roman conquest of Western
Europe brought a number of new ways to experience the “Roman-ness” among
local populations, forms that, although established within Roman standards policy,
administration and religion, have local different adaptations. Representations of
individual and group identities within the new Roman cities established in the
provinces were different between communities and between different local groups.
What matters in this paper is to try to understand if and how these local
differences – and the similarities between diverse communities – appear in the
archaeological record, specifically in the most prestigious public buildings in
Roman cities: the provincial fora.
Keywords: Roman fora – Lusitania – Provincial cities – Ebora Liberalitas Iulia.
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2000: 25-41. (Journal of Roman Archaeology; suppl. series; 38).
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.
ROMA 360 e DOMUS:
os projetos tridimensionais interativos do LARP
Alex da Silva Martire*
MARTIRE, A.S. ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do
LARP. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 135-140, 2014.
Resumo: Esta comunicação tem por objetivo apresentar os dois projetos de
interatividade tridimensional que foram produzidos pelo LARP durante este
ano. Unindo modelagem geométrica 3D e motor gráfico de alto desempenho,
ROMA 360 e DOMUS são aplicativos online de proposta didática que unem
Arqueologia e Educação. Durante a apresentação serão mostrados os caminhos
percorridos para a produção de ambos os aplicativos, bem como as propostas
que serão desenvolvidas pelo laboratório no futuro.
Palavras-chave: Ciberarqueologia – Realidade Virtual – Modelagem 3D –
Interatividade.
D
urante o ano de 2013, o Laboratório
de Arqueologia Romana Provincial
desenvolveu seus aplicativos ROMA 360 e DOMUS. Com o objetivo de permitir aos usuários
a interação com modelos tridimensionais a fim
de auxiliar no processo cognitivo sobre a história romana, os aplicativos foram elaborados pela
equipe de pesquisadores do LARP e disponibilizados gratuitamente no site do laboratório
(www.larp.mae.usp.br/rv).
A seguir, serão pormenorizados os processos
de produção de ambos os aplicativos. Intenta-se,
desse modo, colaborar com os demais pesquisadores da área arqueológica, oferecendo nossa
experiência no desenvolvimento dos programas
para que os colegas de profissão possam conhecer
com mais profundidade o trabalho envolvido no
diálogo entre Arqueologia e Realidade Virtual.
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial-LARP.
<[email protected]>
ROMA 360
A proposta do aplicativo web ROMA 360 é a
de apresentar o mapa da capital do Império no século IV d.C. A escolha pela data acontece pelo fato
de a maioria dos monumentos ainda presentes na
paisagem de Roma serem do período tardio imperial, facilitando a consulta às referências fotográficas
e imagéticas disponíveis atualmente. Sendo assim,
tomou-se por base o mapa datado de 365 d.C.
existente na obra de William R. Shepherd, Historical
Atlas (New York: Henry Holt and Company, 1923),
que auxiliou a disposição espacial dos monumentos
no traçado de ruas da cidade na época.
Para não tornar o processo demorado e,
principalmente, pesado demais para ser visto nos
computadores, optou-se por uma versão estilizada
dos edifícios, sendo modeladas no software Autodesk
Maya geometrias simples, acrescentando um número
aceitável de polígonos à cena final. As texturas dos
modelos, por sua vez, foram todas manipuladas digitalmente no software Photoshop para terem as cores
transformadas em preto e branco: a homogeneidade
135
ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.
das cores no aplicativo é fundamental para que haja o destaque das
cores durante a sobreposição do
ponteiro do mouse nos modelos.
Após a modelagem dos
edifícios, todos foram exportados do Autodesk Maya para
a versão gratuita do software
Unity: que vem sendo utilizado, cada vez mais, em todos
os ramos das Ciências, não
ficando restrito apenas aos
jogos eletrônicos (videogames).
Sendo um motor gráfico (engine), o Unity é o responsável
por permitir toda a elaboração
de interatividades desejadas
no aplicativo: nele, foram
escolhidos os monumentos
Fig. 1. ROMA 360 rodando direto no navegador de internet.
que ganhariam destaque
colorido, foram colocadas
as legendas sobre os edifícios e também foi
game ou um serious game – acaba por se enquafeita a movimentação da câmera. A escolha
drar no processo de desenvolvimento de jogos
do Unity para a produção de aplicativos para
eletrônicos. Segundo Liliane Machado et al.
quaisquer áreas se mostra acertada uma vez
(2009), todo game divide-se em dois caminhos
que o software permite uma grande variedade
distintos: 1) Criação artística – elementos
de linguagens de programação: no caso do
usados para a montagem do jogo, tais como
ROMA 360, foram utilizados apenas scripts
modelos 3D, texturas, sons, trilhas sonoras
escritos em JavaScript. Outro destaque é a caetc.; 2) Programação – utilização de um engine
pacidade de exportar o aplicativo diretamente
(motor gráfico) para a renderização gráfica e
para a internet, com plugin próprio e formacoordenação de tarefas, além da integração
tado em linguagem HTML.
dos elementos artísticos: em outras palavras,
Uma vez rodando o aplicativo, o usuário
o momento em que a interação é programapode visualizar o mapa da cidade de Roma em
da. Porém, tal como nos jogos eletrônicos,
360°. Os monumentos em destaque foram divia Ciberarqueologia (ou seja, o diálogo entre
didos em três categorias: azuis para edifícios reliArqueologia e a Realidade Virtual) requer um
giosos; vermelhos para edifícios de lazer; verdes
levantamento prévio de dados para a avaliapara edifícios políticos. Para facilitar o uso do
ção do que estará presente no aplicativo e
aplicativo aos usuários que não desejam despencomo será apresentado. Sendo assim, a metoder muito tempo à procura dos monumentos,
dologia empregada no DOMUS consistiu em
foi criada a opção de se esconder a camada das
três etapas:
insulae pressionando a tecla i : assim, apenas os
1. Estudo arqueológico, bibliográfico e
edifícios principais ficam à mostra (Fig. 1).
imagético sobre o assunto em questão (uma casa romana grande, ou
seja, domus, no latim);
DOMUS
Por ser um aplicativo tridimensional
virtual, o DOMUS – embora não sendo um
136
2. Criação artística;
3. Programação.
Alex da Silva Martire
• Etapa 1
Temos de, primeiramente, escolher um objeto de estudo, ou seja, necessitamos responder
à questão: O que fazer?
O DOMUS apareceu como a possibilidade
de se apresentar ao público leigo (e aos arqueólogos da área também) uma casa pertencente às pessoas mais abastadas que viveram na Roma Antiga. Uma domus era uma representação em menor
escala de uma parte significativa do mundo
romano, onde vida pública e vida particular estavam mescladas. Nas domus também trabalhavam
escravos, libertos e cidadãos assalariados: havia,
em muitos casos, lojas que estavam fisicamente
atreladas às casas, auxiliando a movimentação da
economia no período romano. Dentro de uma
domus, o chefe da casa recebia seus clientes em
seu escritório (tablinum) para tratar de assuntos
políticos que não tivessem sido terminados em
praça pública, senado ou outra instituição de
igual poder. Ao mesmo tempo, a domus era um
feito de engenharia impressionante, com água da
chuva captada por abertura no telhado e banheiras com água aquecida no subsolo. Desse modo,
a escolha por desenvolver uma reconstrução-simulação de uma domus foi realizada pelo LARP
a fim de se mostrar ao público a complexidade da
sociedade romana a partir de um dos seus mais
imponentes vestígios: as casas térreas.
Definido o objeto de trabalho, é necessário
traçar seus objetivos. Essa parte de desenvolvimento é uma das mais trabalhosas e que consomem mais tempo, pois é nela que respondemos
à questão: Por que fazer?
DOMUS foi pensado como um aplicativo
educativo desde o seu início. Sendo assim,
ele foi desenvolvido porque desejávamos que
escolas públicas e particulares (além de faculdades e pessoas interessadas) tivessem acesso a um
conteúdo que não é muito trabalhado em salas
de aula: a Antiguidade Romana. Sabemos que
aulas sobre Antiguidade Clássica fazem parte
do currículo das instituições básicas de ensino
no país, contudo, é um tema que nem sempre
é possível de ser aprofundado em sala de aula
devido às particularidades do próprio programa
que a escola adota. Outro tópico relevante para
a definição de DOMUS como um aplicativo
educativo é o fato de a arqueologia praticamente
não ser estudada em salas de aula: nos livros
de História, geralmente a cultura material é
relegada ao plano de coadjuvante dos textos,
ilustrando aquilo que está escrito. A proposta de
se ter um ambiente virtual tridimensional que
simule uma domus produzido exclusivamente
por arqueólogos especializados em Roma Antiga é o diferencial no aplicativo DOMUS: sem
intermediadores, todo o conteúdo é feito por
arqueólogos e chega diretamente aos professores
e alunos, possibilitando novas abordagens de
ensino que não fiquem atreladas aos livros didáticos (que, geralmente, são escritos por historiadores ou pedagogos, não arqueólogos).
Os objetivos do DOMUS, então, foram
definidos do seguinte modo:
1. Possuir navegação livre dentro da casa;
2. Oferecer textos que surjam na tela de
acordo com o local em que o usuário se encontre (textos-triggers);
3. Oferecer textos de apoio;
4. Estabelecer um comparativo entre
o tridimensional modelado e os
vestígios arqueológicos por meio de
uma Galeria de Imagens;
5. Ter acesso online gratuito e irrestrito.
A última questão a ser posta na etapa 1 de
desenvolvimento acaba sendo também a única
pergunta das etapas 2 e 3: Como fazer?
Primeiramente, é preciso estabelecer qual
a região territorial que melhor fornece vestígios
arqueológicos do objeto em questão. Em nosso
caso, foi a cidade de Pompeia, na Itália. Soterrada pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., o sítio
arqueológico da cidade é um dos mais ímpares
do mundo, contando com estruturas muito bem
conservadas de todos os ambientes romanos da
época. Naturalmente, para a construção 3D de
um modelo de domus, Pompeia forneceu dados
fotográficos e bibliográficos inigualáveis. Foram
feitos levantamentos em livros, acervos pessoais
de fotos, plantas e imagens na internet que formaram a base para o desenvolvimento artístico
posterior. É imprescindível também deixar claro
137
ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.
se a reconstrução 3D é baseada em um vestígio
singular (por exemplo, uma domus em específico) ou se pertencerá a uma generalização:
no caso do DOMUS, foi feita a opção por um
modelo genérico de casa romana baseada em
vestígios de diversas domus – essa escolha reflete
o objetivo didático/educativo do aplicativo,
pois assim tivemos a liberdade de modificar os
ambientes internos a fim de se enquadrarem ao
propósito explicativo dos textos-triggers (como
no caso dos afrescos e mosaicos).
Após a consolidação do banco de dados
sobre as domus, o trabalho de produção foi desenvolvido simultaneamente em duas frentes: 1)
produção dos textos-triggers e textos de apoio – a
partir do material bibliográfico; e 2) criação artística (etapa 2)/programação (etapa 3) – a partir
do material imagético. Todos os textos de apoio,
depois de revistos e corrigidos, foram formatados
de acordo com o layout discutido em reuniões e
salvos em formato PDF para livre impressão.
• Etapa 2
Esta etapa é a responsável por quase tudo o
que veremos na tela do computador quando o
aplicativo rodar. A criação artística é um processo em que o tempo empregado dependerá diretamente da pessoa (ou pessoas) responsável(eis)
pela modelagem e texturização tridimensional.
O DOMUS foi totalmente modelado com
o software Autodesk Maya. Uma das principais
ferramentas disponíveis no mercado, o Autodesk Maya possui interface amigável que facilita
a rapidez da produção de modelos 3D e exporta
arquivos já texturizados no formato .FBX – que
é aceito sem problemas por engines (motores gráficos). Os objetos tridimensionais do DOMUS
foram modelados separadamente (casa e demais
itens) e depois exportados – também separadamente – para o motor gráfico.
É importante fazer todo o planejamento
prático do aplicativo nesta etapa: será decisivo
para a qualidade final quando os modelos forem
trabalhados dentro do engine. Assim sendo, é
imprescindível ter em mente que:
- um aplicativo em tempo real é diferente de
uma animação 3D, pois há limite de número má-
138
ximo de polígonos que podem aparecer na tela:
vértices em demasia significam maior necessidade
de processamento computacional e, consequentemente, lentidão na visualização (pois ocorre
queda na taxa de quadros por segundo).
Como evitar esse problema?
- utilizar o menor número de polígonos
possível durante a modelagem;
- resolver a questão de detalhes de objetos
por meio de texturização ao invés de modelagem;
- ter o maior número possível de objetos
pertencentes a uma mesma textura no mesmo
mapeamento UV;
• Etapa 3
A última etapa de desenvolvimento é
aquela que estabelecerá, de fato, a ligação entre
o usuário e o ambiente virtual tridimensional.
Nela, toda a interação é programada, bem como
a adição de menus, sons e trilhas sonoras. É
importante haver um planejamento prévio consistente de como o usuário vai navegar por esse
ambiente a fim de que a interface seja intuitiva
para pessoas de todas as idades.
Para o DOMUS, foi escolhido o motor gráfico Unity. O motor gráfico é uma biblioteca que
possui funcionalidades pré-programadas a fim de
se facilitar o desenvolvimento de um aplicativo (ou
jogo) a partir do zero. Em nosso caso, o Unity foi a
ferramenta que mais se mostrou apropriada para o
uso, uma vez que possui amplo material disponível
em livros e na internet, além de possuir uma curva
de aprendizado relativamente curta para quem já
tem conhecimentos de softwares 3D.
A produção do aplicativo DOMUS começou
na versão gratuita do Unity. O desenvolvedor (pesquisador Alex da Silva Martire) importou todos os
arquivos .FBX produzidos no Autodesk Maya para
a área de trabalho do Unity e os distribuiu espacialmente. Com todos os modelos em cena, começou
o processo de criação da interação.
Contudo, com o projeto finalizado, alguns
problemas foram observados dentro da versão
gratuita do Unity:
- a ausência de sombras prejudicava o grau
de realismo pretendido pelo aplicativo, bem
Alex da Silva Martire
como a textura estática aplicada para simular a
água no impluvium e balneum;
- em diversos momentos havia queda na
taxa de quadros por segundo (frames per second –
fps), chegando, em alguns casos, a 9 fps (quando
o ideal é 30 fps ou mais).
Para solucionar essas questões, foi adquirida
a versão Pro do aplicativo Unity. A migração
para esta versão trouxe melhorias significativas
ao produto final:
- com a utilização de Occlusion Culling, a
renderização em tempo real da domus só ocorre
nos lugares onde a câmera está posicionada,
diminuindo o número de draw calls (“desenho”
dos objetos) na tela ao ter a opção static batching selecionada e aumentando a quantidade de quadros
por segundo (variando, agora, entre 25 e 90 fps);
- com a utilização de Lightmapping, toda a
iluminação deixou de ser feita em tempo real
(consumindo recursos de processamento) e
passou a fazer parte da texturização da casa,
tornando o sombreamento suave e realista;
- a água presente no impluvium e balneum
foi substituída pelos prefabs de água próprios
da versão Pro do Unity, tornando-se dinâmica e
refletindo o ambiente ao redor;
- foram aplicados efeitos especiais de câmera, trazendo luz ambiente etérea e agregando
valor artístico ao aplicativo antes totalmente
técnico.
Finalizando o desenvolvimento do DOMUS, o aplicativo foi exportado para plataforma Web, tornando-se passível de ser acessado
online no website do LARP através de linguagem
HTML. (Fig. 2)
Futuros projetos
Novos aplicativos estão sendo estudados
pela equipe de pesquisadores do LARP a fim de
serem desenvolvidos nos próximos meses. Uma
das vertentes a serem exploradas nessa nova
produção é a da Realidade Aumentada. Sendo
assim, deseja-se desenvolver um aplicativo para a
plataforma Android que permita ao usuário visualizar informações quando direcionar seu smartphone ou tablete para um marcador impresso
em papel. Primeiros testes com o DOMUS em
realidade aumentada estão sendo realizados
e mostrando-se profícuos. Do mesmo modo,
pretende-se elaborar uma aplicação de realidade
virtual com alto grau de imersão, provavelmente
utilizando-se óculos estereoscópicos específicos.
Fig. 2. DOMUS rodando no navegador de internet: texto-trigger ativado.
139
ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.
MARTIRE, A.S.ROMA 360 and DOMUS: LARP’s three-dimensional interactive projects. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 135-140, 2014.
Abstract: This communication aims to present two three-dimensional projects developed by the LARP during this year. Putting together 3D geometric
modelling and high-performance engine, ROMA 360 and DOMUS are online
apps that combine Archaeology and Education. During this presentation will
be shown the paths taken for the production of both applications as well as
proposals that will be developed by the laboratory in the future.
Keywords: Cyberarchaeology – Virtual Reality – 3D Modelling – Interactivity.
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2007 O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São
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2009 Serious games para saúde e treinamento
imersivo. In: Nunes, F.L.S.; Machado,
L.S.; Pinho, M.S.; Kirner, C. (Orgs.)
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Aumentada. Porto Alegre, SBC: 31-60.
SHERMAN, W.R.; CRAIG, A.B.
2003 Understanding virtual reality. Interface, application, and design. San Francisco: Morgan
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2010 Educação sem distância. As tecnologias
interativas na redução de distâncias em ensino
e aprendizagem. São Paulo: Editora Senac.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.
“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da
Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa*
Airan dos Santos Borges**
BORGES, A.S. “Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da
Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo,
n.18: 141, 2014.
Resumo: Este ensaio está vinculado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “Entre espaços, representações e
agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”, cujo objetivo
geral consiste em analisar a formação da paisagem imperial na província da
Lusitânia, através da reflexão sobre os processos de criação da convivência entre
os romanos e as comunidades conquistadas.
Palavras-chave: Império Romano – Augusta Emérita – Espaço social.
E
ste ensaio está vinculado ao projeto
de pesquisa em desenvolvimento
junto ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro sob a orientação da
Profa. Dra. Norma Musco Mendes, intitulado “Entre espaços, representações e agentes:
a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”. O objetivo geral consiste em
analisar a formação da paisagem imperial na
província da Lusitânia, através da reflexão
sobre os processos de criação da convivência entre os romanos e as comunidades
conquistadas.
(*) Registro aqui meus sinceros agradecimentos à comissão organizadora, principalmente à Profa. Dra. Maria Isabel D Agostino Fleming, aos doutorandos Tatiana Bina e Alex Martire.
(**) Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC (bolsista CAPES). <[email protected]>
Parte-se do pressuposto geral de que, após a
tensão da conquista, a pluralidade dos processos
de colonização que modificou as comunidades
subjugadas, deu início a variadas formas de interação social e cultural entre grupos de pessoas,
cuja ação possibilitou tanto a constante recriação e definição do Império Romano, como do
ideal de ser romano. Deste modo, a pesquisa se
baseia na conexão entre poder e cultura com
o intuito de compreender a atuação das elites
locais na apropriação, releitura, redefinição,
financiamento e circulação dos elementos urbanísticos e arquitetônicos próprios dos padrões
romanos.
Frente à amplitude da questão, o recorte
documental definido consiste na produção
epigráfica (incluindo a urbanístico-arquitetônica) localizada nos espaços públicos das cidades
e, em especial, àqueles relacionados à prática do
“culto imperial”. Objetiva-se o estudo da atuação dos agentes imperiais nos espaços públicos,
141
“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.
em especial nas cidades: Pax Iulia, Augusta Emerita, Ammaia, Beja e Olisipo.
Têm-se, portanto, dois níveis de estudos:
(1) Provincial, no qual observar-se-ão a estrutura
administrativa provincial/imperial, seus agentes
fundamentais, isto é, governadores e magistraturas superiores, e as vias de interligação regional
e inter-regional. (2) Local, com o olhar ajustado
nas experiências das cidades recortadas, tanto
no planejamento urbanístico arquitetônico
quanto nos agentes coloniais que financiaram as
construções.
I. Entre o espaço social e a paisagem cultural:
possibilidades teóricas para pensar o espaço
romano-provincial
O presente estudo teve como ponto de partida os pressupostos teóricos de Henri Lefebvre
(1991) a respeito do espaço social. Tal teoria é
construída sob a argumentação de que o ‘espaço
social’ inclui o espaço físico-natural, assim como
também as projeções, os projetos, os símbolos
e utopias, característicos da sociedade que o
formulou. Esta interpretação é redimensionada
pela compreensão do espaço como produto
social, na qual as sociedades produzem o seu de
acordo e em consoante às próprias concepções
de mundo.
Nesses termos, os estudos de Denis Cosgrove (1984) ganham destaque ao compreender
o termo paisagem referindo-se tanto aos processos naturais quanto sociais, isto é, compreendendo-o como o resultado da ação humana
que transforma o mundo material. Por outras
palavras, o termo paisagem é entendido em
suas interlocuções simultâneas entre o espaço
natural e cultural. Desse modo, seu estudo
inclui a observação dos locais transformados
em espaços de comunicação, sendo um dos
eixos de trabalho a identificação dos aspectos
simbólicos e das estratégias de representação
dos esquemas culturais que definem um espaço enquanto uma paisagem cultural. Nessa
leitura, os processos de representação podem
ser vistos como ferramentas de integração simbólica de lugares em uma construção cultural
global (Torre 2008).
142
Na presente pesquisa, as posturas teóricas
supracitadas auxiliaram na problematização
dos espaços das cidades provinciais segundo
outro caminho de investigação que não o
tradicional, isto é, para além das cidades provinciais como espaços que emulam a cultura
romana. De outro modo, ganha destaque
a observação das cidades provinciais como
experiências distintas ao resguardar as especificidades de cada caso. Compreendemos
que relações entre os indivíduos e a vivência
urbana são imersas em um complexo dinamismo cotidiano que envolve um conjunto de
elementos que norteiam as visões, tanto do
mundo em que vivem quanto da sua própria
identidade. Faz-nos pensar que a análise de
qualquer conjunto estrutural urbano não
deve se restringir apenas aos seus aspectos
urbanístico-arquitetônicos. Por outro lado,
devemos lançar um olhar que inclua os caracteres que atuam na mediação entre o “eu” e o
espaço em que se vive, o identificando como
um lugar seu, expresso nos aspectos simbólicos que atribuem sentido aos espaços urbanos
e os transformam em espaços sociais.
Frente a isso, torna-se pertinente observar
o equilíbrio entre a funcionalidade e as representações nas análises do espaço nas investigações. Em se tratando do estudo das cidades
romano-provinciais, duas possibilidades de
leitura ganham destaque: (1) uma que enfoca a
identificação das estruturas e funcionalidades
urbanas e outra, paralela, (2) que dá um passo
adiante e preconiza o estudo da dinâmica da
cidade, tanto em relação ao seu desenvolvimento ao longo do tempo, quanto no tocante às
relações sociais que a definem enquanto um
espaço social.
Nesses termos, aos aspectos urbanísticos e
arquitetônicos, a questão da vivência do espaço
se destacou como um elemento importante, ao
apontar para a possibilidade de pensar a cidade
como um elemento dinâmico, vivo e pulsante,
locus privilegiado do diálogo entre a cultura
romana e as comunidades locais. As inscrições
epigráficas imperiais vinculadas aos atos de
benemerência (tomadas conjuntamente com
as construções arquitetônicas) se transformam
em ferramentas de alto potencial analítico,
Airan dos Santos Borges
uma vez que permite observar, resguardadas
suas inevitáveis limitações, a inserção de alguns
indivíduos no espaço urbano, seja em sua
construção, adaptação ou ressignificação, além
de apontar para a importância das relações de
patronato nas relações de poder entre as comunidades locais e a administração romana.
Para nós, a prática da benemerência se
constrói como uma expressão visível da ação dos
grupos locais no espaço urbano, dando corpo
ao processo de construção das cidades. Dado
os limites desse trabalho, nos restringimos à
definição do fenômeno benemerente proposto
por J. Ferrer Maestro (1991) o qual compreende
(via liberalitates) a construção e financiamento
privado de obras públicas nas cidades, cujo
desenvolvimento não se restringiu às províncias,
mas esteve presente também no centro do poder
romano e nas cidades da Itália. Como já sinalizado por Melchor Gil (1994: 78), o fenômeno
pode ser pensado como uma forma de conduta
social desenvolvida no nível das comunidades
cívicas impulsionadas por fatores ideológicos e
baseadas em um sistema econômico que tendia
a concentrar a riqueza em poucas mãos.
Além da construção da imagem pública
dos agentes, os atos benemerentes de caráter
pessoal (ou de grupo), especialmente os de
tipologia edilícia, agiam como formas de dinamização da economia local ao gerar empregos
diversos e proporcionar a ação dos mercadores
que traficavam a matéria-prima e demais produtos. Desse modo, a prática da benemerência
liberou as cidades de muitos gastos ao financiar
a construção de templos, aquedutos, fóruns,
espaços de ócio (termas, teatros, anfiteatros e
circo), favorecendo, assim, seu desenvolvimento
urbanístico- monumental. Em outro nível de
atuação, seja na dedicação de estátuas ou na
construção de epígrafes votivas em homenagem
à domus imperial ou a indivíduos específicos, a
honra adquirida mediante a realização dos atos
benemerentes conferia aos seus idealizadores a
possibilidade de ingresso na memória cívica da
cidade que poderia ser empregado pelo benemerente ou seus familiares nas ações políticas a
nível municipal e/ou imperial.
A seguir, a título de amostragem, apresentaremos o estudo de caso em uma das cidades que
compõem nosso recorte espacial de estudos, a
saber, a colônia de Augusta Emérita.
II. Epigrafia e Poder: um estudo sobre as inscrições imperiais na colônia Augusta Emerita
no Alto Império
A colônia de Augusta Emérita foi fundada
no curso médio do extenso vale do rio Anas
(atual rio Guadiana), em sua margem direita.
Na região escolhida, a corrente do rio, suavizada
pelo vale, oferece uma pequena ilha que divide
o leito e facilita a passagem (Almagro-Basch
1976: 191). Logo no período de fundação, esta
geografia viabilizou a construção da ponte que
venceu o rio e teve um papel fundamental na
interligação da região com as áreas vizinhas,
sobretudo na integração do comércio entre o sul
e o norte peninsular (Álvarez Martinéz 1988).
Isto é, através das estradas agora interligadas,
chegava-se à desembocadura do Rio Guadalquivir na antiga Hispalis; a Itálica, primeira fundação romana na Hispania em 207 a.C., e ainda ao
porto de Cádiz, porta do Mar Mediterrâneo.
Nesses termos, a fundação da colônia está
circunscrita ao início do território da Lusitânia
Extremenha, constituindo-se em elo intermediário entre a oficialidade romana e o meio
indígena do sudoeste peninsular. Seu estabelecimento foi ordenado pelo Imperador Augusto no
ano 25 a.C. (729 de Roma), ao final da guerra
contra os Cântabros e Ástures1 cujo término
contribuiu para a pacificação do território, a
intensificação da exploração de importantes minas de ouro e para a submissão total da região
ao domínio romano. Através das cunhagens
monetárias emitidas por Publio Carisio, lugar
tenente de Augusto e fundador da colônia,2
sabe-se que na nova cidade foram assentados os
(1) Dião Cassio, 54, 23, 7. A passagem foi exaustivamente
analisada por Giovanni Forni (1982).
(2) Recomenda-se observar as cunhagens publicadas em Burnett, Amandry, Ripollès (1992, parte II, Indexes and Plates):
são as moedas de número 1 ao 50. Ainda sobre o assunto,
outro importante (e recente) manual foi editado por Howgego,
Heuchert e Burnett (2005).
143
“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.
soldados veteranos das legiões3 IV Macedonica, V
Alaudae, X Gemina.4
Em meio às demais civitates que compunham a província da Lusitânia, Augusta Emérita
se destaca pelo caráter monumental de seu
urbanismo desde a fundação. A colônia é um
exemplo emblemático, uma vez que o próprio
nome pressagia e proclama a ideia de que a força militar já se revelava desnecessária nessa parte
do mundo, já imersa na Pax Augusta e amparada
por ela (Trillmich 1998: 165). Desde os primeiros anos, a colônia foi dotada de uma infraestrutura urbanística constituída por muralhas,
muros de contenção do rio, duas pontes (sobre
o Guadiana e o Alvarengas), inclusive edifícios
dedicados ao ócio, como o teatro e o anfiteatro,
(3) Sobre este assunto, Faria (1998) aponta os posicionamentos
de Keppie (1983: 83, n. 146), para o qual: “[t]hree veterans of a
legion XX are attested at Emerita within the Augustan period
(CIL II 22, 662, 719). These cannot be colonists of 25 B.C.,
who were drawn from legions V and X, but could document
a later reinforcement”. No entanto, Faria ressalta que esta
mesma hipótese já fora aventada por Wiegels (1976: 272),
que, paralelamente não deixou de contemplar a eventualidade
de um pequeno contingente de licenciados da legião XX ter
participado na fundação da colônia em 25 a.C. ao lado dos
veteranos das legiões V e X. Vide: Dion Cassio (História de
Roma 53: 25, 2).
(4) Alguns pesquisadores ainda incluem a XX Victrix.
144
doados por Augusto e Agripa em finais do século I a.C. Trata-se de construções que, espalhadas
pela cidade, manifestaram a política urbanística
adotada pelas cidades a partir de Augusto.
Aqui se torna interessante observar Augusta
Emérita como um exemplo da atuação benemerente do próprio Imperador na região da futura
província da Lusitânia, o que confere um caso
peculiar à cidade: as grandes construções públicas não são financiadas por particulares. A ação
ou os atos benemerentes, nesse sentido, ficaram
resguardados a pequenas intervenções como a
ereção de estátuas e placas votivas em diversos
espaços. A seguir, apresentaremos os casos de
duas epígrafes que compõem nossos corpora
documentais em análise:
Airan dos Santos Borges
Fig. 1. Epígrafe I
Características do suporte
Fonte: SÁBADA, L. Catálogo de las inscripciones
imperiales de Augusta Emerita – cuadernos emeritenses 21. MNAR/Fundación de Estudios
Romanos: Mérida, 2003: 52.
Tipologia: pedestal paralelepípedo de mármore
de 12 cm x (39) x 31
Local do achado e paradeiro: foi redescoberta
em 1943, durante as obras do esgoto das Escuelas Nacionales, em uma área que foi palácio dos
Condes de la Roca – vinculado a D. Fernando
de Vera. A peça foi depositada pela Corporação
Municipal no MNAR de Mérida.
Inscrições:
Inscrição (Edmondson 1997)
Transcrição
Divo.Augusto [.et.Divae.Aug]
Albinus Albui.f.flamen D[ivi Augusti et]
Divae Aug. Provinciae Lusitan[iae dedicavit]
Aos divino Augusto e divina Lívia, Albinus Albui,
flâmine do divino Augusto e da diva augusta, da
Província da Lusitânia, dedicou
Interpretação: na análise da inscrição, concordamos com a análise de Sábada (2003: 53-55) nas
seguintes proposições:
Texto Epigráfico
Transcrição
DIVO AVGVSTO [.et.Divae.Avg]
Divino Augusto e divina Lívia
- No registro, Augusto e Lívia já
aparecem divinizados.
Albinus Albui
- Provavelmente Albinus pertencia
à elite local, dada a sua fórmula
onomástica tendo somente o
cognomem, e a filiação paterna
também utilizando o cognomem
único do pai.
F. flamen D[ivi AugAvsti et]
Flâmine do divino Augusto
- Referência à organização provincial do culto imperial, a partir do
registro do cargo do flaminato,
dedicado a personagens da classe
dirigente citadina (de alto nível).
Divae AVg
e da divina Augusta
- Faz referência a Lívia como
Augusta e já divinizada.
ALBINVS ALBVI
Interpretação
A partir das informações propostas, concordamos com a datação da inscrição entre os anos de 42-54 d.C.
145
“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.
Fig. 2. Epígrafe 2
Características do suporte
- Fonte: SÁBADA, L. Catálogo de las inscripciones imperiales de Augusta Emerita – cuadernos emeritenses 21. MNAR/Fundacion de
Estudios Romanos: Mérida, 2003: 58.
- Tipologia: Pequeno pedestal de mármore de
32 cm x 19/19,5 x 11/11,5, com base e moldura
(superior, de arremate do pedestal, edifício) pro-
eminentes por seus quatro lados. Carece de decoração lateral, mas tem entradas de molduras
nas partes superior e inferior. No dorso possui
uma perfuração para fixá-la na parede (segundo
Hübner 1894). Tem outra na superfície superior
para receber um retrato do imperador ou uma
palma.
- Local do achado e paradeiro: Não foi fornecido em nenhuma obra consultada ou existente.
146
Airan dos Santos Borges
- Inscrições:
Inscrição
Transcrição
T(ito). Caesari. Aug(usti). F(ilio)
Vespasiano. Pontif(ici)
Imp(eratori). XII. Trib(unicia). Pote(state). VII
Co(n)s(uli),VI
5Província.Lusitania
C(aio) Arruntio.Catellio
Celere.leg(ato).Aug(usti).pro.pr(aetore)
.
L(ucio). Iunio Latrone
.
Conimbrige(n)se.flamine
.
Provinc<i>ae.Lusitanieae
.
10Ex.auri.p(ondo) V
A Tito Cesar Augusto, filho de Vespasiano,
Pontífice Imperador, XII vezes Tribuno, VII
vezes cônsul da província da Lusitânia. Caio
Arruntio Catellio Celere, legado de Augusto e
propretor; Lucio, servidor de Juno, flâmine de
Conimbriga [...]
Província da Lusitânia
De 5 pesos de ouro.
Interpretação:
de Cláudio. Nessa ocasião, as dedicatórias só
eram feitas a imperadores divinizados, enquanto
na época flávia recebiam estas honras em vida.
Na análise da inscrição, concordamos com
a análise de Sábada (2003: 58-61) ao considerar
que a inscrição proporciona informações sobre
o funcionamento político do momento dado
às características da dedicação assistir ao governador da província e ao flâmine provincial. O
governador é um personagem conhecido cujo
nome completo era L. Pompeius Vopiscus C.
Arruntius Catellus Celer, cônsul designado em
julho do ano 77 e fráter do Colégio dos Arvais
durante os anos 75-91. Precisamente estes dados
nos permitem datar a cronologia do pedestal.
O flâmine provincial não deixou menção
de sua tribo, o que limita nossos conhecimentos
sobre a função de Conimbriga. Como utilizam
Etiènne et alii (1976: 49-51) não se pode saber se
L Iunius Latro possuía a cidadania há tempos ou
se havia sido concedida pelos flávios. De acordo
com o cargo que ocupava tinha uma distinção
pessoal ou recebeu por meio de Conimbriga.
Paralelamente a isso, o pedestal completa o conhecimento sobre o desenvolvimento e funcionamento do culto imperial na Lusitânia. Como
sugere Fishwick (1981: 96 apud Sábada 2003)
seguramente Vespasiano estava incluído na dedicação (Tito era coregente) e com ele se havia
produzido uma mudança a respeito do reinado
III. Conclusões preliminares
Como vimos do ponto de vista territorial,
as transformações da região interagiram com a
reorganização provincial realizada por Augusto
– de caráter político e administrativo. Com a
divisão da antiga província da Hispania Ulterior
e a criação das províncias da Lusitânia e Bética
(27 - 16 a.C.), Augusto reestruturou o território,
modificando a paisagem indígena. A fundação
de Emérita, em 25 a.C., se insere nessa política
ao ser criada para ser o centro nuclear da área
e substituir a antiga intercessão viária local. A
nova colônia herdou o papel que Metellinum
exerceu como base para as lutas entre Metelo,
Sertório e os Lusitanos, passando a ser o núcleo central da presença romana em um ponto
estratégico do rio Anas. Sua fundação estava
diretamente ligada ao programa de fundações
que Augusto desenvolveu na península; em
etapas progressivas, tendo como meta essencial
planejar a organização administrativa e a ampliação das redes de comunicações e defesa do
território.
147
“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa.
R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.
Concordamos com Giovanni Forni (1982:
73), seguido por Manuel Salinas de Faria (1998:
161-167) e Patrick Le Roux (2004: 263-265),
ao considerarmos que embora Emerita fosse
fundada pelos veterani emeriti de Augusto, os
soldados vitoriosos do Imperador, a presença
de veteranos na região não atribuía à colônia
uma vocação militar. Simbolizava claramente,
pela manutenção de longos tempos de paz, um
diálogo intenso com a representação imperial
formulada por Augusto, esta sim, fundamentada
e baseada na vitória e no triunfo de Roma. Sua
criação em meio a uma região que fora palco de
inúmeros conflitos militares, seria um marco
testemunhal da glória romana.
A análise das inscrições epigráficas imperiais nos permite observar tanto as expectativas
de poder dos grupos locais, quanto as funções
públicas desempenhadas pelos indivíduos,
os vínculos estabelecidos entre as famílias e
os vínculos e as formas de relação entre as
municipalidades. Nessa lógica, as ações benemerentes podem ser vistas como uma forma
dinâmica de criar, reforçar e ampliar a imagem
pública dos agentes e de afiançar suas aspirações
no jogo político local (regional) e imperial (global); ao mesmo tempo em que contribuem para
a integração das elites municipais no sistema
social imperial romano, e para a inserção das
mesmas no suporte ideológico imperial.
BORGES, A.S. “Among spaces, representations and agents: the imperial landscape in
cities of the Roman Lusitania”: a research proposal. R. Museu Arq. Etn. Supl., São
Paulo, n.18: 141-149, 2014.
Abstract: This essay is linked to the research project in development by the
Graduate Program in Comparative History of the Federal University of Rio de
Janeiro, titled “Among spaces, representations and agents: the imperial landscape in cities of the Roman Lusitania” whose overall objective is to analyze
the formation of imperial landscape in the province of Lusitania, through
reflection on the processes of creation of conviviality among the Romans and
conquered communities.
Keywords: Roman Empire, Emerita Augusta, social space.
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