Edy star:

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Edy star:
Beatbrasilis
Nº 9 #dez/2012
UMA AVENTURA SENSUAL NOS CORDÕES DAS CALÇADAS DE FIDEL
ALDOUS HUXLEY, O VELHO QUE VIAJAVA NO LSD
ON THE ROAD EM FAMÍLIA
BODEGAS E CITRÖENS NA ARGENTINA
DOLORES, A MARETRIZ QUE ATRACOU NO BRASIL
SOLIDÃO E O SONHO DO FUSCA VERDE
Edy star:
A LENDA ABRE O CORAÇÃO em
ENTREVISTA EXCLUSIVA PARA BEATBRASILIS
REVISTA 1  BEATBRASILIS
REVISTA 2  BEATBRASILIS
EDITORIAL
O vento quente se deve ao calor que levanta do asfalto que até a pouco queimava sob um sol amarelo.
Mas meu bem, teremos a chuva muito em breve! Aguente!
E nem mesmo o cinza que tomou conta do céu ameniza essa temperatura que nos faz suar.
Força no teu polegar erguido lânguido, cansado, erótico — um pequenino santo que é parte de teu
O Vagabundo Iluminado, o Herói do Imaginário Coletivo, cutuca algumas pedras com suas botas
corpo — um santo pedindo ajuda às margens dessas rodovias!
enquanto espera alguma próxima carona.
Pindabat de piche!
Assim como nós, ele não sabe ao certo o que virá depois se o depois chegar.
Mendicância pelo mínimo de asfalto necessário!
Como nós ele recolhe sua vontade do acostamento e a carrega em suas costas suadas.
Nossos joelhos são fortes e farão a diferença, eu bem sei.
As árvores balançam com o sopro úmido do Universo que nos ensina a dançar.
E nem preciso lhes lembrar da chuva que lavará nossos problemas, caindo sobre a estrada e beijando o
Um calor dos infernos! É isso o que faz agora, quase nos fazendo desistir da estrada.
chão como letras no papel virgem.
Um calor dos infernos que aumenta com os anos, que desgasta, que desbota, que agrada apenas aos diabos.
REVISTA 3  BEATBRASILIS
Fabrício Busnello
Beatbrasilis
#Número 9
(Dezembro de 2012)
Colaboraram nesta Edição:
Cícero Bezerra; Daniel Caldas; Fabrício Busnello; Gabriel Megracko; Guilherme Rocha; Jim Duran; Julieta Puy; Keila Costa;
Leandro Durazzo; Marcus Vinicius Marcelini; Mateus Marcelini; Mauro Cass; Sânzio Barreto; Véio China; Vitor Souza
Conselho Editorial:
Fabrício Busnello; Gerald Iensen; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Durazzo; Mauro Cass; Vitor Souza
Diagramação:
Taly Procópio e Vitor Souza
Sobre:
Beatbrasilis é um coletivo cultural.
Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e quase sazonal.
Contato:
[email protected]
http://beatbrasilis.wordpress.com
Reprodução:
Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir
qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima.
REVISTA 4  BEATBRASILIS
ENTREVISTA
EDY STAR
Por JIM DURAN
Edy Star é mesmo uma figura incrível. Um dínamo divertido que possui uma verborragia contagiante e um propósito claro: continuar. Eu o assisti em
cena na Virada Cultural Paulista de 2010, ele com o show “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão Das Dez” e participação especial de
Sylvio Passos encarnando Jorginho Maneiro e Rodrigo Titarelli dando vida a Dr. Paxeco. No show ao lado de meu amigo/irmão Wander Killer revivi a
nossa adolescência curtindo um Raul arretado numa vitrolinha. Edy pulava, cantava e mexia com a massa raulseixista em pleno Anhangabaú, as
músicas do disco do início de carreira de Raul, Sérgio Sampaio, Mirian Batucada e Edy “Bofélia” Star.
Reencontrei Edy em 22 de agosto de 2011 na loja “Baratos Afins”, do Luiz Calanca, lá na Galeria do Rock. Iria fazer uma entrevista especial
com Sylvio Passos, com o Calanca e, é claro, com o próprio Edy, que arrancou risos da equipe e contou sua história de caminhada, brilho,
música e muita personalidade. Revemo-nos por acaso em março deste ano na mesma loja da galeria de onde trouxe uma das poucas
cópias que ainda estavam disponíveis do cd “Sweet Edy”, reedição do LP lançado pelo cantor em 1974, que conta com letras e
músicas especialmente feitas para ele por um time composto por Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Leno, Galvão e Moraes Moreira, Jorge Mautner, Renato Piauí e Sergio Natureza, além dele próprio. Depois de muitos
anos morando na Espanha, Edy retornou ao Brasil e segue com agenda lotada em
diversos shows e projetos.
Edivaldo Souza nasceu em Juazeiro, Bahia, em 1938. É um
cantor, ator, dançarino, produtor teatral e artista
plástico brasileiro. Em 1975 estrelou a primeira
montagem brasileira da peça Rocky Horror
Show, produzida por Guilherme
Araújo. Ele não para e me disse
uma vez: “eu já vivi mais do
que irei viver, o que vier é
lucro”. Isso pode caber
para o Edivaldo,
mas para o Edy
não, afinal ele
é Star.
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Beatbrasilis: Desde o seu retorno ao Brasil você não tem parado, né?
EDY STAR: Bem, tenho que me virar, pois tenho contas a pagar y
presentes a dar... y não tenho empresário, luto sozinho, né?
Beatbrasilis: São quantos projetos em andamento?
EDY STAR: Depois do show do lançamento do meu CD Sweet Edy, no
Theatro Municipal, durante a Virada Cultural 2012, me dediquei ao atual ‘O
Último Kavernista Canta Raul!’, que é o que venho apresentando
atualmente. Mas estou prenho de projetos: musicalmente quero fazer algo
sobre os anos 60: ‘Rocks, Boleros y Cha-cha-chas...’, gostaria de trabalhar a
obra de Zé Rodrix, y tenho mais um outro. Mas também tenho que realizar
alguma coisa em teatro y voltar a pintar... y arranjar um companheiro.
Beatbrasilis: Como surgiu o convite para a Virada Cultural Paulista de
2010 (Edy foi um dos convidados do palco RAUL SEIXAS)?
EDY STAR: Você quer dizer de 2009, né? O pessoal da Séc de Cultura
ligou pra minha casa em Madrid para me convidar. Cheguei a pensar que era
trote! Mas vim até São Paulo y acertamos tudo, eu já tinha aquele show na
cabeça, y era para um teatro, com os efeitos de luz, marcações, etc... Ali não
deu pra fazer, era muito precário. Mas foi o rebu naquele palco, y assim me
chamaram a repetir O MESMO SHOW no ano seguinte... Num palco bem
melhor localizado, mas entrei as 5 horas da manhã y mesmo assim tive o
maior publico!, y num palco onde também estiveram Flora Purim, Ayrton
Moreira...
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Beatbrasilis: Como foi
ser recebido pelos fãs de Raul
Seixas? Como foi esse
contato? A amizade surgiu
fácil?
EDY STAR: Estive aqui em
2008, foi quando fiz contato
com o movimento raulseixista
y todo povo que eu só
conhecia de papo pelo orkut.
Marcamos um encontro numa
barraca de bebidas, frente a
Estação da Barra Funda. Foi
fantástico! Muita gente, muito
carinho, muita risada... como
velhos amigos! Estive em casa de alguns deles... Uma festa! Sou muito grato
a toda essa gente, aliás a TODOS os raulseixistas de todo o Brasil... Y
retribuo tudo isso, visitando sempre o túmulo do de Raul em Salvador.
Mister Bofelia... mas nunca tomei por pejorativo, era mais de carinho, de
amizade mesmo.
Beatbrasilis: Você curte literatura?
EDY STAR: SIM! Cresci lendo muito, não havia TV nem internet... aos 18
anos já havia lido toda a literatura de Dickens, Jorge Amado, Érico
Veríssimo, José de Alencar, Alexandre Dumas, Victor Hugo y
principalmente Monteiro Lobato (infantil y adulta), y muita poesia.
Aprendíamos cultura nos livros y todos queriam mostrar conhecimento.
Beatbrasilis: Te surpreendeu o fato de seu cd Sweet Edy ter se
esgotado pouco tempo depois de ter sido relançado?
EDY STAR: MUITISSIMO! Eu sempre quis lançar em CD, y quando o Zé
Pedro y o Thiago Marques Luiz se prontificaram a isso, fiquei muito
contente y confiante. Mas só vi o produto depois de pronto: com aquele
livreto, etc. Y sabe que foi o CD que a (gravadora) Jóia Moderna vendeu
mais rapidamente y o que mais deu retorno publicitário? Coisas de Star
(risos). No mercado livre da internet já se encontra com preços bem altos!
Beatbrasilis: De onde veio o apelido “Bofélia”?
Beatbrasilis: Tem previsão de lançamento de algum cd de inéditas?
EDY STAR: ‘Bofe’, na Salvador antiga, significava ‘macho’, ‘homem’, y
como eu era uma bicha maluca porradeira, brigava, etc, me colocaram esse
apelido dizendo que eu era a ‘bicha mais macho’ dali. Y creio que o Raul,
por intermédio de Waldir Serrão, soube disso, porque perto da casa de
Waldir, na Av. Luiz Tarquínio, tinha um garotão que ganhou esse apelido
porque dei porrada nele. Então, na CBS, Raul y Sergio me chamavam assim:
EDY STAR: Por mim, já teria entrado em estúdio y gravado algo novo. EU
PRECISO! Tem gente ainda escrevendo musicas pra mim, tenho umas
coisinhas minhas, y umas outras que gostaria de dar a minha versão,
inclusive algumas espanholas. Nesse disco novo, deverei ter quatro cantores
amigos como convidados, y já poderei ir descansar na Ilha de Itaparica,
olhando o mar.
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Beatbrasilis: Como foi o começo de tudo no mundo da música?
EDY STAR: Desde pequeno fui envolvido pelo ambiente musical das
Rádios. Aos 14 anos ingressei num programa infanto-juvenil na Radio
Sociedade da Bahia y não parei mais... a dizer tenho 60 anos de carreira, né?
Beatbrasilis: O que você anda ouvindo de bom?
EDY STAR: Continuo ouvindo muitos clássicos, muita ópera y muita salsa
caribeña. Muita MPB velha, pois pouca coisa contemporânea me atrai, ando
numa fase de fastio y desencanto com tanta besteira, tanta coisa ruim, em
todos os segmentos, mas ainda consigo descobrir jóias como o grupo
Sambô ou o Zeca Baleiro.
Beatbrasilis: Como foi assumir a homossexualidade em uma época em
que tudo era reprimido ou muito bem escondido?
EDY STAR: A mim foi muito natural y nada proposital. Lidava y vivia num
meio artístico, onde praticamente esse ‘problema’ não existe tão
acintosamente. Afora minha fase colegial de bulling, nunca sofri restrições
por ser gay... a grande repressão vinha mesmo da polícia com seus abusos
machistas, não era bem da ditadura. Mas sempre se driblava o cerco, y todo
mundo fazia suas bacanais, concursos de misses, festinhas de embalo... Bons
tempos, pois apesar de tudo, não havia AIDS nem o execrável
‘politicamente correto’, y uma maior liberdade y liberalidade quanto aos
costumes sexuais.
Beatbrasilis: Como foi a sua ida pra Espanha?
2011 — EdyREVISTA
Star, Jim8
Duran
e Silvio Passos na Galeria do Rock
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EDY STAR: A situação de trabalho estava muito ruim... eu que sempre
trabalhei nos cabarés, onde já não havia conjuntos nem musica ao vivo, y
antes que morresse de fome, resolvi ir conhecer o país que mais admirava y
depois me suicidaria. Mas três dias depois de chegar em Madrid já estava
trabalhando num cabaré... y fui ficando, ficando... 19 anos!
Beatbrasilis: Você trabalhou muitos anos em cabarés. Como era a vida
nessa época?
EDY STAR: No Rio, sempre trabalhei na noite, em cabarés... Durante
minha juventude conheci y me preparei para trabalhar em teatro musical
brasileiro, o famoso teatro de revistas, mas aquilo estava acabando, y peguei
os últimos resquícios nos cabarés da Praça Mauá y tomei gosto. Fiz também
teatros, mas gosto mesmo é de cabaré: trabalhar com as putas y todo aquele
mundo: é algo fantástico. Elas são mães dedicadas, amigas incríveis, y todas
tem uma historia de vida sofrida y desigual. Era para mim um trabalho
como outro qualquer, cheguei a fazer 6 shows por noite, correndo com meu
fusca entre a Praça Mauá, Lapa y Copacabana... Ao chegar na Espanha
calhou de também trabalhar no mais famoso cabaré do centro de Madrid:
‘Chelsea II’, y ali fiquei por 18 anos... Dirigindo 36 mulheres internacionais,
devo ser bom, né?
Beatbrasilis: Sente falta da Espanha??
EDY STAR: Não tanto quanto eu gostaria... sou muito camaleônico: me
adapto com muita facilidade aos lugares ou situações. Mas, me faz falta a
organização, a cultura y principalmente a educação, não só da Espanha, mas
da Europa, pois conheço outros países... Tive que me ‘deseducar’ para me
1989 — Edy entre Raul Seixas e Marcelo Nova
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readaptar ao BraZil. Sinto falta do meu apartamento quase em frente ao
Palacio Real, das ‘niñas’ do Chelsea, da música flamenca, dos museus, das
tardes de toros (touradas), y da facilidade para encontrar coisas de países
vizinhos... Sinto falta de uma certa segurança y da maneira como
administram a corrupção: lá não se faz pizza politica!
Beatbrasilis: E o artista plástico Edy Star? Pensa em expor seus
trabalhos?
EDY STAR: Precisa ser reativado urgentemente. Agora que tenho lugar y
luz, tenho que voltar a pintar, y naturalmente mostrar o que sei y posso
fazer... Em parte é também uma necessidade de realização pessoal. Nem só
de música vive o homem... ou não?
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O VELHO E ADMIRÁVEL
ALDOUS
Fabrício Busnello
“O medo elimina a
inteligência, elimina a
bondade, elimina todo
pensamento de beleza e
verdade. Só persiste o
desespero mudo ou
forçadamente jovial de
quem pressente a
obscena presença no
canto do quarto e sabe
que a porta está trancada,
que não há janelas.”
- Aldous Huxley (1894-1963),
em O Macaco e a Essência.
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S
e você, em alguma conversa num grupo de convivas, disser que curte
Aldous Huxley, existe uma grande probabilidade de algum gaiato,
exultante e faceiramente, lhe contar o quanto ele gostou d'As Portas da
Percepção (1954), complementando, quase mijando nas calças de êxtase a essa
altura, que foi o livro que deu origem à banda de rock norte-americana The
Doors. Se não isso, alguma outra figura lhe lembrará, de forma mais
intelectual e comedida – talvez acendendo um cachimbo - que Huxley é
muito mais autor em Admirável Mundo Novo (1932) que no livro
anteriormente citado. E ele não estará, de forma alguma, equivocado.
Equivocado mesmo, penso eu, é o fato da maioria das pessoas começar e
terminar suas experiências huxleianas nestes dois livros, quando o universo
literário deste recatado autor inglês é muito mais rico do que nos permitem
imaginar estas duas obras – ou bem permitem sim, o que torna mais difícil
de entender o porquê do limite ser normalmente restrito a estes parcos
títulos.
‘Mas o cara é chato pra caralho, Fabrício!’. Não... não é, velho! Tal e qual
alguns outros grandes escritores como Joyce, Pound ou Saramago, é
preciso, com Huxley, sacar qual é a dele, ter paciência. E a dele, babe, é se
tocar que atrás de todos aqueles bons modos, toda aquela distinção e
fidalguia, está um gênio que reclama abertamente a cruzada de cada Homem
em busca do ápice de sua consciência, e também um crítico ácido da
humanidade e de suas escolhas pelo caminho que ela trilhou; e ele te contará
isso em voz baixa, com calma pausada, tomando um chá num jardim de
inverno. É assim em Contraponto (1928), um romance absurdo em que
cheguei a cogitar do velho Huxley ser esquizofrênico, tamanha a
profundidade das suas personagens, cada uma com uma personalidade dife-
REVISTA 13  BEATBRASILIS
Úteros artificiais no “Admirável Mundo Novo" de Huxley
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rente da outra, e todas sólidas, completas, influentes! Ou então nas bizarras
situações contidas em Também o Cisne Morre (1939), onde um doutor maluco
se presta a pagar caro pela busca da imortalidade. Falarei então de um outro
exemplo que mostra um Aldous mais explícito e desesperançado, colocando
a crítica à nossa raça no limite em O Macaco e a Essência (1949): um romance
pós-apocalíptico escrito em forma de roteiro de cinema que nos mostra um
mundo destruído pela bomba atômica e uma nova Califórnia habitada por
babuínos que levam cientistas pra passear presos em coleiras (e que devem
juntar seus cocôs em saquinhos, por certo).
aquele dia, às 17 horas dum 22 de novembro de 1963. Mesclou a morte com
uma viagem colorida, e deve ser mesmo isso o que nos aguarda depois do
último piscar de nossos olhos abestalhados!
Huxley não é chato, viu? Era isso que eu queria te mostrar! Posso mais um?
Ok. Então espera só até eu te contar um pouquinho d’A Ilha (1962), seu
canto do cisne, seu livro-testamento, a sua obra-prima em que ele nos fala
de uma sociedade idealizada que se contrapõe ao sinistro futuro sombrio
que lemos em Admirável Mundo Novo, escrito 30 anos antes: a civilização
da Ilha de Huxley busca com calma e equilíbrio uma existência plena e feliz
– e consegue. (destaque para as viagens de cogumelo das personagens em
determinado momento... de verter lágrimas, lhes juro).
E já que tocamos em cogumelos e como uma coisa liga a outra e também
por que esse texto tem que terminar como tudo nessa vida, vou contar, pra
quem ainda não sabe, quais foram as últimas palavras que escreveu o velho
Aldous, já fatalmente doente em um leito de hospital: impossibilitado de
falar, escreveu ele à sua mulher num pedacinho de papel: “100 microgramas
de LSD, aplicação intramuscular”. Depois de 69 anos e 47 lindos livros
cerebrais, era assim que se despedia o nobre bretão. Duas doses lisérgicas e
algumas horas depois de atendido seu desejo, ele morreria quase junto com
REVISTA 15  BEATBRASILIS
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SEM FIM: UM
POUCO SOBRE
ON THE ROAD
Keila Costa
Em que lugar vai dar aquela estrada sem fim, de curvas pouco sinuosas,
declives e aclives suaves a penetrar a vegetação árida, por vezes nevada sem
deixar nunca a aridez? Seria na verdade a secura da alma a verter toda sorte
de encontros imprevistos, de digestivas indigestas substâncias alucinógenas?
De amizades e amores parcos e loucos por anunciarem sempre o fim, ainda
que houvesse sempre um trago a mais que sorver, o final do fluido ou o
início quem sabe, na dúvida permanente do copo pela metade; prestes a
acabar ou a ser preenchido? Um novo encontro, embora sempre velho.
O livro On The Road, de Jack Kerouac, pareceu-me assim, mas
diferentemente do filme recentemente visto ao lado da minha mãe, traz uma
compulsividade infinitamente mais frenética, uma loucura imanente e
iminente, enquanto o filme resumiu-se a retratar crises, pequenos clímax do
REVISTA 17  BEATBRASILIS
livro diante da estrada sem fim, quando, é claro, a imagem pudesse render
algum tipo de assombro ou exotismo, sem exageros, devo admitir. Asseguro
que minha mãe manteve-se aparentemente com o olhar fixo na tela; penso
que queria perscrutar a próxima curva, onde ia dar, para depois me dizer se
alguma chegada valeu. O manuscrito é como uma montanha russa; uma
monotonia sórdida, natural da vida de qualquer um, e uma súbita busca
indeterminada, do incompreendido apenas para alguns, os mais ousados ou
porque não dizer alucinados categóricos, ilegais. Curioso é como os lugares
retornam e são sempre obrigatórias passagens ou chegadas triunfais, repletas
de expectativas. Os lugares tem vida, os personagens querem viver ainda
que custe a morte. Esqueçamos da alucinação alienada, legal, mas sem
esquecê-la totalmente. O mundo ‘paralelo’ do ‘autor’ e seus ‘comparsas’
nem mesmo hoje soa como natural, pelo menos para os conservadores, para
não dizer a maioria que nos rondam. E aonde fica a sobriedade que
resguarda a sobrevivência digna, ainda que indignamente tristonha? Como
encontrar em meio à realidade de dentro e de fora essa alucinação legal,
saudável e asséptica? São essas perguntas que KerouaC fez nas entrelinhas.
O diretor Walter Salles deu seu recado, dada as limitações da adaptação para
uma obra tão repleta de movimento; ou ficava na estrada ou ficava nos
lugares ou ficava nas pessoas. Precisou fazer os três e perdeu a
profundidade até mesmo da superficialidade em alguns momentos. O
tempo exíguo deixou o manuscrito sem grande expressão na tela, mas
digestivo. Bonita fotografia, jazz, bop, blues; negros fabulosos, virtuosos na
voz, no toque instrumental, na dança. Menos que no livro, é claro. Não deu
tempo para tanto sexo, drogas e rock n’roll. Mamãe não teceu grandes
comentários. Adolescente nos anos 70, nem de longe soube o que
significava beat, hippie. Foi apenas uma moça interiorana com rebeldia
escondida. Acho que continua rebelde latente.
Penso que ela não acharia mal ir pela estrada sem fim.
REVISTA 18  BEATBRASILIS
UM TURISMO SEM PRESSA PELAS
BODEGAS ARGENTINAS
Mauro Cassane
REVISTA 19  BEATBRASILIS
carro é só o barulho do vento, do motorzinho ronc ronc e toma bate papo.
Lá fomos nós num "on the road" etílico.
Primeiro vamos conhecer este antológico automóvel. Não é bonito mas é
simpático, equipado com um motor pequeno, tímido, bicilíndrico,
refrigerado a ar e com pouco mais que 30 cavalos de potência. Muitos já o
viram por aí, particularmente quem já passeou pelas ruas de Paris ou, mais
perto de nossa realidade, por Buenos Aires, na capital argentina, muitas
vezes em estado deplorável.
O carrinho, para os argentinos bem mais clássico e tradicional que o Fusca é
para nós, brasileiros, é o Citroën 3CV. Lançado nos tempos das vacas
magras do Pós-Guerra, na França, em 1948, o carro, de concepção muito
simples, e forte apelo popular, rapidamente conquistou o gosto, e o bolso,
dos trabalhadores que começavam a flertar, e a sonhar, em ingressar na
classe média da maneira que todos, ainda hoje, sonham: motorizados.
Eu sei que dirigir não combina com bebida alcoólica, mas para tocar um
Citröen 3CV, vá lá, abra-se uma exceção. E além do mais é vinho! O
carrinho, como um calhambeque, não passa de 60 km por hora. E lá em
Mendoza, na terra do Malbec, eles alugam este carro pra gente passear pelas
bodegas instaladas ao pé da Cordilheira dos Andes.
Fui com meu amigo Marça, que é jornalista de turismo. Nos convidaram
para mostrar este novo serviço em Mendoza, que é o aluguel de carros
antigos impecavelmente recuperados. Na verdade, não há opção, só tem
mesmo o Citröen 3CV. E a estrutura É roots mesmo. Você pega o carrinho
no aeroporto e se vira. Vai curtir o mundo dos vinhos. Não tem som: no
Se não dava para comprar aqueles carrões dos endinheirados como Aston
Martin, Oldsmobile 88, Cadillac, Jaguar ou o desejado Studebaker
Champion, com o lançamento do Citröen 3CV o povão ao menos
vislumbrou ser possível, feito os magnatas, também desfilar pelas ruas
dirigindo um legítimo automóvel. Ok, não era exatamente um carrão de
luxo, muito pelo contrário, era pequeno e ordinariamente simples, também
não tinha no design seu ponto mais forte, muitos o apelidaram de "patinho
feio", mas, enfim, era um automóvel e não uma carroça puxada por
jumentos.
REVISTA 20  BEATBRASILIS
O Citröen 3CV foi fabricado por 42 anos. O último modelo saiu de linha de
montagem, em Portugal, em 1990. Assim como seu conterrâneo Fusca,
manteve heroicamente sua carinha simples e pouco simétrica, com formas
arredondadas e nem sempre harmoniosas. Ainda é possível encontrar alguns
pela Europa e, na América do Sul, se vê aos montes na Argentina, muitas
vezes judiado pelos anos. Mas um empresário de Mendoza, terra dos
grandes vinhos Malbec argentinos, com misto de visão empreendedora e
poética, resolveu ousar e alçar o Citöen 3CV, outrora carro de proletário, a
uma categoria muito mais nobre: o símbolo de um estilo de vida onde o
importante não é a pressa ou a ostentação, mas sim a calma e a
contemplação.
Ramiro Marquesini criou a empresa SlowKar com uma proposta ao mesmo
tempo criativa e inusitada. A ideia é oferecer aos turistas que visitam a
região de Mendoza a experiência de conhecer as diversas vinícolas e
excepcionais restaurantes a bordo de um Citröen 3CV, impecavelmente
reformado, com todos os detalhes de como foi originalmente concebido
recuperados. O aluguel da diária do carro não fica muito diferente do que se
paga em um automóvel mediano nas locadoras convencionais. O valor da
diária gira em torno de cem dólares e pode cair caso se aumente o número
de dias com o veículo. O único equipamento de alta tecnologia embarcado
no Citröen 3CV da SlowKar é o GPS, indispensável, que te ajuda a chegar
REVISTA 21  BEATBRASILIS
às principais atrações turísticas de Mendoza: bodegas, restaurantes, museus
e monumentos. Os melhores roteiros ficam inseridos na memória do GPS.
DICAS
O carro, com muito esforço, chega a 60 km/h. O som é de calhambeque. O
que falta de conforto e potência, sobra em charme e elegância. Com o
Citröen 3CV você, sem dúvida, protagoniza um jeito descolado de fazer
turismo. Diferente das grandes cidades brasileiras, onde os motoristas
parecem ter pouca paciência com carros menos favorecidos em potência,
em Mendoza o pequeno e lento francês não só é respeitado como admirado
por todos os motoristas. Os carros dão farol, motociclistas acenam e
caminhoneiros buzinam cumprimentando. Todos vão te passar, fique certo
disto. Mas o fazem com todo cuidado e muito respeito. O fato é que, com o
carro, você tem a prazerosa sensação de, além de estar fazendo turismo ser,
você mesmo, uma atração turística.
• Para curtir o clima de inverno e a Cordilheira dos Andes com boa
cobertura de neve prefira os meses de abril, maio, junho, julho e agosto.
E se os entendidos na arte de apreciar o bom vinho sabem harmonizar a
nobre bebida dos deuses com os mais diversificados pratos da alta culinária,
agora também é possível conjugar vinho à graça de um clássico dos carros
populares, um Citröen 3CV, safra 1980. A SlowKar, atualmente, tem seis
unidades para locação e os interessados podem fazer a reserva no site da
empresa: http://www.slowkar.com.
• Faça passeios de, no máximo, 120 quilômetros, mais do que isso a
viagem se torna cansativa e você pode ter que, no retorno, trafegar a noite
pelas autoestradas.
• Caso opte por ver as uvas nos pés, bem como a colheita, o melhor é ir
entre novembro e fevereiro (neste caso esqueça a neve).
• Prefira fazer os passeios das 8h às 18h no inverno (pois amanhece tarde e
anoitece cedo) ou das 7h às 20h no verão (dias mais longos). A noite opte
pelos serviços de táxi para ir aos restaurantes mais distantes ou faça uma
caminhada por Mendoza que é sempre muito agradável. O Citröen 3CV
oferecido pela SlowKar é excelente, tudo funciona perfeitamente bem, mas
o carro, por ser lento e por ter pouca iluminação, não oferece muita
segurança a noite.
• Visite o restaurante Urban O.Fornier para jantar e a Bodega Fornier, do
mesmo proprietário, para conhecer o processo de fabricação de vinho e
apreciar um almoço com um incrível visual para as Cordilheiras dos
Andes. Ambos restaurantes foram considerados como "O melhor da
Argentina " e o vinho que leva a mesma marca é de primorosa qualidade.
Mas fique atento ao GPS, restaurante e bodega ficam em lugares distintos.
• Se você realmente aprecia bons vinhos coloque em seu roteiro uma visita
à Bodega AVE, do italiano Lacopo di Bugno, que produz um vinho com
identidade de Mendonza, mas com personalidade de Toscana.
REVISTA 22  BEATBRASILIS
( CAPA )
A BOMBA SEXUAL
Guilherme Rocha
REVISTA 23  BEATBRASILIS
Ato I
Após
uma
perambulação
etílica
pela
ilha
revolucionária de Cuba, com direito a encontros e
desencontros com representantes da mais voluptuosa
casta de mulheres cubanas, estou em casa, relembrando
as nebulosas experiências e determinado a chegar a
uma conclusão sobre o que vem a ser a “vida e
formação” destas que virei a chamar, para efeitos
pseudo-sociológicos, de “a bomba sexual cubana”.
Permita-me apontar minha sofisticada hipótese — não é
fácil ser uma bomba sexual! Especialmente uma bomba
sexual que caminha confiantemente pelas preguiçosas
ruelas de Havana com uma bunda grande e saltitante.
Não é fácil. Machos se achegam às fêmeas proferindo
dizeres como “safada”, “cachorra” ou “vou encher-te
de leite”. Não é fácil ser o foco de todos os olhares
da rua quando, inconscientemente, o vestido que já é
curto vai subindo e, de repente, a bolsa cai no chão
e não resta opção senão se agachar para recolhê-la.
Não, não é nada fácil. Os homens se alteram. Param
tudo, urram, martelam os peitos.
Não posso afirmar que é uma realidade exclusiva de
Cuba. Pode até ser que o mesmo ocorra na Finlândia,
na Tailândia ou na Polinésia Francesa, mas duvido
muito. Duvido muito que em Moscou haja bairros como o
da Yéssica, em que homens ociosos se sentam em
muretas, entrando em transes ejaculatórios quando
vêem uma bomba sexual passar.
REVISTA 24  BEATBRASILIS
Conheci Yéssica com as melhores das más intenções. A
idéia era simplesmente convencê-la a sair comigo para
que eu pudesse conquistá-la e levá-la ao meu quarto
de hotel. Entretanto, meu encontro com ela se tornou
premissa para investigação sociológica quando durante
a conversa ela disse: “não consigo imaginar uma vida
em que eu não chame a atenção dos homens, mas, vou te
falar a verdade—se é difícil ser uma bomba sexual,
mais difícil ainda deve ser ter que se conter perto
de uma”.
Ao comentar a frase com amigos (e mostrar a eles uma
foto de Yéssica), estes foram unânimes em dizer que
eu tinha que aprender a reconhecer os momentos certos
para bancar o intelectual. "Ela estava apenas te
dando carta branca para martelar o peito e partir
para o ataque". Provavelmente, mas não tive como
resistir ao estímulo. A partir daquele momento iria
explorar o que ela acabara de dizer.
Que ordem
social é essa em que bombas sexuais são elevadas a
níveis de semi-deusas?
Yéssica é graduada com honras pela Universidade de
Havana, mas me explica que prefere sair com tipos
vulgares, que passam a mão na sua bunda em público e
que a abordam sem pudor. Fascinante. “Porque tipos
vulgares
quando,
claramente,
você
tem
amplas
possibilidades de escolha? Por que não sai com
doutores, empresários, velhos ricos, europeus?”.
“Já
tentei,
REVISTA 25  BEATBRASILIS
mas
não
adianta.
Gente
sofisticada
simplesmente não me faz gozar. Prefiro o trato rude,
as obscenidades no pé do ouvido. Gosto de mordidas,
puxões de cabelo. Quero coisas apegadas ao solo,
coisas que me asseguram que estou viva. Estou pouco
me fudendo para vinhos importados e caviar russo,
casas decoradas com originais de Picasso, esculturas
no estilo Botero; esses ambientes doces e perfumados,
quartos com cama d’água e incensos de mirra ao lado
do televisor LED. Foda-se tudo, nada disso me serve.
Gosto de coisas que me fazem sentir viva, tipo quando
cortam a eletricidade e os mosquitos começam a picar
e azucrinar meu sono, ou, sei lá, quando chove tanto
que a casa inunda. Esse tipo de coisa.”
“O primeiro que uma bomba sexual deseja é ser
empurrada contra uma parede descascada, seguido de
uma mordida bem dada. Não quer concessões ou
tratamento especial. Prefere sua transa em um quarto
sujo, cheio de mofo, numa cama roída por cupins e com
buracos nas paredes para que os vizinhos assistam.
Gosta de mostrar tudo de maneira obscena, vulgar.
Quer abrir as pernas e tragar o mundo. Quer ser
penetradas em camas que se desfazem durante o
orgasmo; quer insultos; quer sangue.”
Desde pequena, Yéssica sai para a rua sentindo uma
enxurrada de olhares sedentos. Jovens que querem
brincar de marido ciumento e que se tocam, golpeiam,
dizendo coisas como “veja que linda, quando crescer
vai ser cachorra”. Ou a mãe que lhe cobria de roupas
REVISTA 26  BEATBRASILIS
tentando esconder suas protuberâncias, porque “sua
filha não vai ser qualquer uma”. Ou então o pai que
pertencia ao Partido Comunista e ainda acredita que o
socialismo é uma percepção estática de uma utopia
onde indivíduos são rígidos e perfeitos (quando se
supõe
que
um
socialista,
ou
ao
menos
um
revolucionário, deveria ser uma pessoa que crê
firmemente em uma mudança integral no mundo, que vê
mais além dos dogmas e que, por isso, crê no respeito
e na diversidade do ser humano).
Meu ponto é, caros leitores, que ser uma bomba sexual
é um chamado, é um estilo de vida. Não se escolhe ser
assim. É o resultado de um conjunto de fórmulas e
predisposições unidas a uma equação de caráter e
hábitos. E quando se percebe o que aconteceu, já não
há mais volta.
A formação de bombas sexuais é distinta nos bairros
nobres de Havana (ou em qualquer outro lugar do mundo
onde não se falta água e não se cozinha a luz de
velas). A bomba sexual deve ser crua e orgânica, um
produto de seu meio. Algumas mulheres optam por essa
vida adotando uma ficção. Usam bolsas D&G, peitos de
silicone,
vestidos
desenhados
em
Paris
e
têm
conversas tipo “ohh, meu Fusca 21078 ontem fez um
brum brum brum estranho e agora não tenho opção senão
comprar um carro moderno, um Audi ou talvez um
Nissan.” Essas mulheres são fraudes. Usam saias
curtas, blusas transparentes, mas não buscam uma
REVISTA 27  BEATBRASILIS
profunda
penetração
anal,
senão
estratosféricas pelas butiques de Havana,
Miami, café da manhã em restaurantes cinco
unhas falsas, Chihuauas trazidos do México
sei lá o quê com o rabinho e blá blá blá, a
tem fim.
compras
férias em
estrelas,
que fazem
lista não
Ato II
Às 8h15 em ponto Yéssica está no lugar combinado,
apetitosa, esperando por mim. Caminho confiante. Nada
de camisa passada, calças sofisticadas, sapatos
finos, nada disso. Apenas uma calça rasgada, um boné
velho e um pulôver apertado definindo os peitorais.
Ela está vestindo uma blusa decotada e uma saia
curta, mas nos meus olhos ela sabe que eu já estou a
vendo nua. “Estás linda, mamita” e ela sabe que quero
dizer que “não vejo a hora de te comer gostoso”.
Enquanto avançamos pela rua, desconhecidos aparecem do
nada e me felicitam. “Aê, mano, tás arrasando, hein?”;
“boa, bróder, se garantiu bonito!”, ou “se liga maluco,
essa mulher vai fazer uma macumba nos teus culhões!”
Pois bem, não estou tirando isso do nada, mas em que
outro país do mundo se pode contemplar uma cena dessas?
Estou convencido que no Vietnã isso aconteceria de uma
outra maneira.
Passamos por uma rua onde jovens sem camisa jogam fute-
REVISTA 28  BEATBRASILIS
bol. Quando vêem Yéssica passar, tocam os testículos,
mordem os lábios, gesticulam, falam besteiras.
Ela
não parece se espantar.
Eu finjo que já vi coisas
piores. O importante é me concentrar no papel que
decidi interpretar, o do destruidor de tanques de
guerra,
o
do
bárbaro
mastigador
de
granadas
antiaéreas.
Chegamos a uma casa em um beco sem saída. Está cheia
de gente inquieta, suada. A música é irreconhecível.
Não tem melodia. É puro ritmo. Invita movimentos da
pélvis e pegadas por trás. É disso que ela gosta.
Sirvo a ela um gole de meu rum. Dançamos. Ela está em
ebulição, começa a dançar sensualmente, como toda
bomba sexual que se preza. Rebola como se possuída.
Bunda pra lá, bunda pra cá. Homens e mulheres desviam
seus
olhares.
Copos
são
virados,
cigarros
se
ascendem. A saia vai subindo deixando a calcinha a
mostra. Sua blusa adere aos peitos duros. Mulheres
olham com ódio a seus machos, põem as mãos na
cintura.
Opto por menor exposição e, como o bom reptiliano que
decidi ser, eu a agarro pelo braço e a tiro da pista
de dança. A massa protesta. “Deixa ela dançar, mano.
Ela está se divertindo”. Mas não quero saber. Ajeito
sua saia e mando todos à merda. “Não seja um babaca”,
diz um deles ao me empurrar levemente.
Tudo vai de mal a pior. O grupo que implicou comigo
REVISTA 29  BEATBRASILIS
continua protestando efusivamente, mas outros me
defendem e, em pouco tempo, pessoas de todos os tipos
se metem na confusão. Vejo Yéssica de relance. Ela
parece hipnotizada, presa na cena como se sentindo um
perverso êxtase. Afinal, ela havia inspirado toda a
selvageria. De repente ouço o cair de uma garrafa de
vidro e sinto um forte empurrão. Revido com outro
empurrão e pouco depois sou socado por um troglodita
que estava atrás de mim. Giro e acerto uma direita
bem no seu olho. Ele põe as mãos à cara e eu o
empurro pra longe. Esbarra em quem deve ser a
namorada de um mulatão com cara de mau. Agora é ele
que se envolve, socando geral. Mulheres gritam.
Cachaça voa. Já ninguém sabe como tudo começou. O
reggaetón toca enquanto os mais despreocupados
continuam dançando. Desvio agressões enquanto busco
uma saída do rebuliço. Encontro Yéssica. Ela está com
uma cara de fascínio, como se pensando: “esse
encontro está saindo melhor que imaginava”.
Vou até ela. Ela me encara com olhar de predadora. Me
puxa pelo braço e para fora da festa. Não sei para
onde está me levando. Atravessamos a rua e entramos
em um quartinho cuja propriedade não me interessa.
Tem um colchão velho no piso sujo. Na parede uma
reprodução do girassol de Van Gogh. Sobre a mesa um
rádio velho e oxidado. No teto um ventilador
barulhento. Olho para Yéssica. Sei bem o que ela
quer. Arranco meu pulôver rasgado. Beijo seus lábios.
REVISTA 30  BEATBRASILIS
Sinto sangue na minha boca, sinto meu olho inchado, mas
é assim mesmo que ela gosta.
Ela me empurra contra o colchão e me desnuda por
completo. Pega meu membro e enfia na boca. Deleita-se.
Revido. Pego ela pela cintura e forço seu corpo contra
o meu. Mordo seu pescoço, arranco sua roupa de qualquer
maneira. Ponho seus peitos em minha boca, engasgo,
tusso, ponho de volta. Lambo-a de cima a baixo,
deixando-a em um nível de expectativa e total entrega.
Pede pra meter e eu a penetro feito bicho, como se
temendo pelo fim de um sonho imprevisto. Bato. Aperto.
Aumento a velocidade. Sinto fúria. “Goza, cachorra”.
Ao princípio tento me conter, evitar o catastrófico
fim, mas depois o instinto é de deixar ser levado. Logo
vem a inevitável explosão e o caos de sangue, órgãos e
ossos disseminados por todo o quarto. Minha cabeça cai
em frente à velha televisora, meus braços debaixo da
cama, minhas pernas na entrada do banheiro, junto aos
restos do que em vida foi Yéssica.
E com este fim me lembro do que ela havia me dito
enquanto contemplávamos o mar. “A vida bem vivida deve
ser atroz, porém harmônica. Deve ser um deleite
pitoresco. Nada dá um sentido de vida mais intenso do
que, depois de nos estraçalharmos todos, termos que
recolher a desordem e começar tudo de novo”.
E assim seguimos, munidos de nada mais que sonhos e
bravura, despertando todos os dias para eternos
recomeços.
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I - A Espanhola
Cumbica. Antes, porém, é necessário procurar o fio nesse novelo
emaranhado.
 Vem aqui cabron! Quiero cincuenta reales entre los pechos de su
Dolores, ahora!  Ela ordena.
Gosto disso. Gosto desse seu jeito de cobra e da hora imprevista do bote.
Portanto, sabendo que vai me pegar de um momento para outro, é que
coloco a nota entre seus seios e adentro o seu pequeno quarto, sua caverna
que fede à perfume e cigarro barato.
Sim, meus senhores! Apresento-lhes Dolores, a “Espanhola”.
É uma história tanto complicada. Dela só sei que veio da Espanha, região
basca propriamente dita e está há pelo menos dois anos aportada no Brasil.
Não, não! Não chegou ao nosso país atrás das folclóricas festas dos bois
amazonenses ou dos badalados desfiles das escolas de samba na Marques de
Sapucaí. Ela pisou o nosso território à custa dum casamento prometido
numa louca história de Internet. Confidências suas e que apesar do pouco
tempo de nossa convivência fez questão que eu soubesse.
Não, Dolores não é mulher de chorar o leite derramado apesar dos seus
momentos de fragilidade. E sei disso, pois certamente sou um dos seus
melhores e privilegiados clientes. Enfim, é uma melancólica e arrebatadora
história de uma mulher que se apaixonou e que acalantou durante um
tempo o grande sonho da felicidade. Felicidade que virou pesadelo a partir
do dia que pisou o par de calçado 39 no Aeroporto Internacional de
REVISTA 33  BEATBRASILIS
Bingo! Daí para frente foi fácil. O canalha a convenceu de que fizesse em
seu nome uma ordem de pagamento. O dinheiro veio dar numa agência
dum banco na Avenida da Liberdade. Óbvio, tudo frio, nome, conta,
documentos, menos o banco e o dinheiro sacado, claro.
II - O Golpe Vagabundo
(O Brasil envolvido)
 Dodô!  Sussurrou com voz adocicada (era assim que o vagabundo
chamava a Dolores)  Depois de pequena pausa continuou:
 Sabe amor, de nada vai adiantar você trazer esse tanto de dinheiro ao
Brasil já que é quase certo que a Federal vai confiscar a sua grana assim que
pisar no aeroporto...
Dolores a tudo ouvia. Ela estava prestes a embarcar para o Brasil e o seu
coração estava apertado e as dúvidas corroendo suas certezas. Contudo o
que ela jamais poderia imaginar era que estava diante dum sujeito que, além
de boa pinta, era frio, calculista, um verdadeiro artista na arte de atuar e
ludibriar.
 E outra, amor! Aqui os federais são uns ratos! Esses caras da lei
vasculham tudo, inclusive a genitália para ver se abriga drogas nas entranhas.
É um terror!  O malandro dramatizou naquela última conversa diante de
webcams.
O homem percebia que causara a aflição da mulher. Agora quase não havia
mais dúvida; O ardil seguia em bom caminho:
 Sí, mi amor. Entonces, qué podemos hacer? Puede usted decirme?
REVISTA 34  BEATBRASILIS
III - A Espanha invade a Coréia
não poderia ser outro, afinal, até o telefone para o qual esporadicamente
ligava estava impresso na placa indicativa da atividade comercial.
 Dónde está el descarado Eustógio? Quiero hablar com ese hijo de puta!
 Ela irrompeu o local em altos brados enquanto que batia os pés e
balançava as duas mãos nos quadris.
Finalmente, depois de muito olhar para o letreiro, ela entrou e sabemos
agora o desenrolar da parte inicial da história. Porém, somando-se todos os
infortúnios, ainda mantinha-se distante da compreensão da espanhola o fato
de ali ninguém conhecê-lo, saber do seu paradeiro, ou de qualquer detalhe
que a levasse à presença do indivíduo.
Depois de algum tempo o perplexo coreano pateticamente protestou.
 A senhola só pode tá lôca, dona! Aqui tem Istógio nenhum! Aqui é loja
de internet, lugar de ganha pão de Dong Hwan! Vá ploculá a sua tulma, vá!
Sim, Dong Hwan fora pego de bermudas justas, literalmente, diante da
intempestividade da mulher de corpo farto e encapetado como o próprio
demônio.
Claro que não houvera nada no aeroporto conforme o combinado: o amado
juntamente dum buquê de flores para festejar o seu desembarque. E isso ela
só foi dar conta após duas cansativas horas de espera no saguão sem que
algum sujeito com cara de apaixonado desse as caras e dissesse:  Meu
amor, é você? Que felicidade!”  Por fim, acabou desistindo de
permanecer ali. Depois disso só restou a esperança de algum contratempo
além das malas e um endereço num pedaço de papel no qual foi deixada
pelo taxi. Com o trio de malas na calçada ainda conferiu por duas ou três
vezes o endereço e confirmou ser aquele o local que certa vez o homem
mencionando ao acaso a aflorada premonição mandou guardar. E o lugar
REVISTA 35  BEATBRASILIS
A pendenga perdurava e o coreano tentava convencê-la. E ela por mais que
se esforçasse não o entendia e muito menos se fazia entender. De certo só a
persistente afirmação do coreano que dizia desconhecer o tal "Eustógio".
apenas que o cliente fornecesse para ele o número de quem faria a ligação e
ele a transferiria para a cabine assim que fosse identificado no aparelho.
 Ta pecebendo minha senhola?
E era esse o motivo que a deixava incontrolável.
 Mi San Antonio, usted no entiende, hombre de Dios! Pero este fue el
número de telefono e o local que Eustógio me dice! Está a cá! 
Gesticulava ela mostrando o pedaço de papel.
Somente com a ajuda de um moço que acabara de adentrar a loja e que
mantinha parco conhecimento da língua espanhola é que o coreano tomou
ciência do que pretendia a mulher.
IV - A Coréia contra-ataca e a
Espanha bate a retirada
 Ah, sim! Agora entende, mas Dong Hwan tem nada a ver com isso! E
esse telefone é de lanhouse e não desse pessoa. Hwang às vezes emplesta
telefone pra fleguês! Só isso!
Foi então que a seu modo tentou explicar para a espanhola que era um
serviço a mais que prestava aos seus clientes. E para isso era necessário
REVISTA 36  BEATBRASILIS
Ele tentava mostrar como as coisas funcionavam apontando para um
caderninho onde fazia as anotações dos números e depois para o moderno
aparelho telefônico com o identificador de chamadas e transferência de
ramais. Para que não houvesse margem de dúvida ainda a levou para uma
das cabines e lá mostrou o interfone que só se prestava para receber as
chamadas. Ela, por sua vez, insistia na leitura dos lábios do coreano e às
explicações do recém chegado, porém compreendia porcamente o que dizia
um e o outro. Por fim, extenuada, desistiu de tudo e também daquele
coreano maluco que dera de mostrar aparelhos e sistemas que ela jamais
conhecera. Trágica, apenas persistia olhando o ambiente e pras máquinas
diabólicas manejadas por garotos que jogavam game em rede e que
berravam tão medonhos quanto furiosos gorilas. E se não bastasse, os seus
gritos se juntavam aos ensurdecedores tiros de metralhadoras, às explosões
de bombas e minas terrestres, estrondos tão dilacerantes que mais davam a
sensação de que seria ali o próprio inferno. Foi então que suas lágrimas
rolaram pelas faces; Agora ela compreendia tudo; jamais encontraria o
patife.
V - A Meretriz da Espanha em terras
brasileiras
 Que gran desgraciado fueste usted, Eustógio!  Bradou ferida de morte
ao abandonar a Lan House sem ao menos se despedir do coreano.
E foi desta forma, naquela fria e melancólica segunda feira, que Dolores
descobriu que havia sido mais uma vítima dos golpes virtuais.
REVISTA 37  BEATBRASILIS
 Cómo pude ser tan ingenua e estúpida?  Por coincidência foram
aquelas as recordações que fizeram-na interromper num sofrível portunhol
a nossa "espanhola" de 50 pratas que estava em pleno andamento. O
movimento brusco e irritadiço do seu tórax fez escapulir o meu pau do
meio dos seus peitos.
 Sua rameira catalã! Não é meu pau que é pequeno, e sim os teus peitos
que são descomunais!  Devolvi furioso. Antes de tudo teria que saber que
eu não era flor que se cheirasse.
 Ah mi encantador Pujol... como soy tonta e abestada!  Ela me olha e
se desarvora no lamento. Óbvio, irrito-me; tinha que haver maior
profissionalismo.
Sim, confesso; era o amor próprio atingido. Porém eu tive que atacar aquele
indescritível par de seios, dono de um sutiã cujo número nem mesmo sabia
como calcular. Todavia a mera insinuação que os seus peitos pudessem se
assemelhar aos da vaca leiteira, foi demais. Dolores ainda não acabara
comigo.
 Ei, ei, Manolita! Que merda que é essa? Não tenho nada a ver com esse
teu lance. Eu paguei 50 pratas antecipadas pra ter o meu bibelô no meio das
tuas tetas! Portanto... faça o serviço bem feito!
 No, no! No puedes quejarte jamás, Oscar! O que me pagas és
unicamente la miesma proporción de tamaño de su “pingulim”: Ou
seja, nada! Usted me recuerda a un toro... Un toro capado, Oscar!
Não foi um bom momento de esfregar-lhe nas fuças o quanto fora
imbecil. Senti isso em seu olhar rude, estranho, daqueles que não gostam de
levar desaforos para casa.
 Oscar, yo sempre me pregunto; cuando su pequeño “pipi” se convierte
en uno de un hombre de verdad?  Ela diz com pouco caso.
Claro, era chacota com o tamanho do meu pênis. Era sua forma de se
vingar. Mas, quem era ela pra ferir o orgulho de um homem? O que a
espanhola pretendia provar com a galhofa fora de hora? Pretendia que eu
broxasse? Pois bem, espere!
REVISTA 38  BEATBRASILIS
VI - O Brasil rendidO a “Fúria”
Espanhola
Furiosa como o touro estocado de morte ela se levanta e recoloca a calcinha
de rendas amarelas com pequeno furo numa das nádegas. Continuo olhando
enquanto Dolores abotoa o sutiã lilás. Fixo-me na região do colo e sou
capaz de apostar a vida que naqueles bojos caberiam tranquilamente duas
ótimas bolas de boliche. Depois a vejo dirigir-se à penteadeira, uma peça
antiga que abriga um espelho com algumas ranhuras e marcas do tempo.
E lá ela senta e chora. No início um choro contido, calmo como as mansas
ondas depois do vento sul. Insisto o olhar no espelho e no reflexo da sua
imagem percebo que nela ainda se emoldura algo da nobreza de outrora.
Fidalguia da qual ela se desfaz a cada visita dos nossos hermanos
brazilianos. Visitas que pagam seus favores sexuais, que permitem a sua
subsistência e o pagamento do aluguel dum obscuro quarto de pensão onde
se esconde.
E ela apenas persiste chorando baixinho, sem estardalhaço, e isso me faz
supor as tantas ilusões e mentiras que se fartam nesse meio virtual. E as
coisas tomam formas e cores tão dramáticas que me fazem crer que neste
mesmo momento outras pessoas estão sendo enganadas, lesadas, passando
por situações parecidas ou bem piores que a dela. Ainda penso nisso
quando me levanto da cama e visto a calça, abotôo a camisa e ajeito os
cabelos com os dedos. A noite para nós está irremediavelmente perdida.
Agora o momento era outro; o da necessária solidão para chorar feridas e o
pavor de sair deportada do Brasil. Mais que ninguém, Dolores sabia da
necessidade de voltar para casa. Mas ela é altiva, orgulhosa, não é bandida,
portanto não pretende sair daqui algemada e muito menos pela ação da sua
embaixada  "Prefiro ter essa vida de cão a sujeitar-me aos olhares de
desdém dos meus compatriotas"  Ela disse ao sair de lá quando lá esteve
numa vez pedindo ajuda para retornar. Óbvio, tinham percebido que ela se
prostituía. E isso a preocupa; eles são orgulhosos, preferem dedurar à
migração brasileira os próprios compatriotas que estejam nessa situação.
Antes que eu saia Dolores já está em pé e veste um robe de cetim rosa onde
notamos visíveis manchas de gordura. Eu insisto com os olhos na sua figura
e percebo que ainda há beleza em seus olhos negros, olhos que
provavelmente já reluziram mais que hoje. Assim que me coloco à saída ela
vem em minha direção com a nota de 50, e enfiando a mão em meu bolso
se livra dela. Faço menção de protestar, de dizer que não quero o dinheiro,
porém ela refuta. E quando Dolores refuta nada a faz retornar. Ao sair ela
beija a minha boca e eu sinto um gosto acre como se ela tivesse degustado
uma salada de alho misturada ao atum. Momentaneamente sinto-me
nauseado e engulo a saliva e fabrico outra na esperança que o gosto se
dissipe ou que amenize.
Ouço o bater da porta e a sua sombra desaparece pela fresta da soleira.
Agora sozinho aguardo alguns segundos e retiro do mesmo bolso duas
notas de 50 e as coloco juntas e as empurro pelo mesmo vão.
REVISTA 39  BEATBRASILIS
La dentro as luzes já estão apagadas, o que me faz crer que Dolores deságua
a dor da saudade com a mesma dolorida frieza dum oceano contaminado
pelo vazamento das petroleiras.
 Hasta la vista, baby!  Digo ao lançar um beijo na direção da casa 
Juro que não sei o porquê, mas gosto de você!  Sussurro ao sair pelo
portão e dirigir-me ao ponto de ônibus mais próximo.
Assim que o coletivo estaciona, subo os degraus encapados por uma grossa
borracha negra e acomodo-me no banco ao fundo. O ônibus está
completamente vazio e ainda há em mim um resquício do gosto do alho e
do atum. Abro e olho pela janela e as ruas se desfazem das luzes das casas.
Já é noite quase alta e as pessoas se preparam para descansar no aguardo da
ferocidade do leão diário. No primeiro semáforo vermelho o veículo faz a
parada obrigatória e eu me esforço para fabricar mais uma pequena porção
de saliva.
Ainda continuava nauseado.
REVISTA 40  BEATBRASILIS
Sânzio Barreto
REVISTA 41  BEATBRASILIS
De noite eu ainda a ouvi arrastando os chinelos até o banheiro.
Eu ia me aninhando na sua intimidade a fim de dar aquela tradicional
trepada matinal, quando notei que estava morta. A mulher da minha vida,
personagem principal dos meus sonhos, capítulos inteiros da minha
biografia, desviveu nos meus braços antes mesmo que pudéssemos dizer
que tivemos alguma coisa. Deixou para trás dois filhos, um carro velho,
meia dúzia de carnês e um rastro de sofrimento em todo mundo que tentou
ser inquilino do seu coração.
A gente começou a se ver poucos dias antes. Duas cervejas e uma carona
inocente acabaram em dias inteiros de cama e isolamento do mundo. Não
ousei questionar se não ia voltar para a família, para o trabalho ou mesmo
para suas roupas limpas. Veio com uma malinha simples e se instalou no
apartamento como se a ele pertencesse. Não reclamo. Adorava suas risadas
entremeadas por crises de choro e ataques enfurecidos a geladeira. Resolvia
tudo por telefone. Administrou com quem as crianças ficariam, revezandose com seus respectivos pais, avós paternos, maternos e quem quer que
pudesse se responsabilizar por eles. Em duas ligações, extinguiu duas
relações afetivas que mantinha a época.
Trouxe também uma bolsa cheia de comprimidos, destino inevitável de
quem faz escolhas erradas na vida. Não perguntei nada. Só agora, buscando
explicar o fato, percebo que trazia consigo doses de desenstristecedor
suficiente para matar uma nação. Também havia muito do que a levou desse
mundo. Misturando tudo, acidentalmente teve uma longa overdose de
remédios para dor.
Deixou para mim o encargo de explicar tudo para o mundo. Legou-me a
dura tarefa de dissipar as suspeitas que recairiam sobre mim. Ninguém diria
que não tive culpa nisso tudo. Seria mais fácil pensar que eu a teria matado
por tê-la forçado a assumir meu estilo de vida. Enquanto vasculho seus
pertences, vou imaginando para quem devo ligar primeiro.
Não vou esconder que segurei sua cabeça no meu colo e passei as mãos em
seus cabelos e chorei muito. Chorei por mim. Chorei por ela, tão delicada e
linda naquele momento. Cada dia da sua vida contribuindo para o
acontecido. Acho que nunca encontrou satisfação embora essa fosse sua
busca desenfreada. Foi a única pessoa que amei. Fui o único que ela não
destruiu a vida.
As 3x4 na sua carteira contam um pouco dessa trajetória curta e dolorida. Se
bem me lembro, este moço é aquele namorado que se matou pouco depois
que ela o deixou para ficar com aquele gringo, de quem ela engravidou da
primeira vez. Foi numa época em que ela tinha percebido que só se daria
bem na vida dando para alguém endinheirado. Aos poucos, o príncipe
encantado virou um cobrador de postura e fidelidade. Na confusão de uma
excursão para a praia, ela deixou o empresário bem-sucedido e foi
amanhecer no muquifo do riponga francês. Sentiu o golpe, sentiu a
desaprovação geral quando teve que voltar para casa, grávida, cheia de
tatuagens e sem um centavo no bolso. Aí já era tarde. O moço da fotografia
deixou uma carta declarando que o motivo era ela antes de jogar o carro
contra a mureta do viaduto.
Ainda muito nova, atraente e misteriosa o suficiente para não ter passado,
achou logo alguém para ser pai do primeiro filho. É esse cara da outra
REVISTA 42  BEATBRASILIS
fotografia, barbudão. É dele que também recebia pensão. O documento de
acordo extrajudicial confirma. Esse eu conheci de porres pela noite da
cidade. Muito antes de ela cruzar seu caminho, era divertido, músico
talentoso e absoluto senhor de si e de sua vida amorosa. Foi um
conquistador de fãs, sempre compositor de doces canções para as
namoradas. Os poucos anos que viveram juntos, pareceram uma família
transbordando felicidade. Parecia que ela ia se redimir da desgraceira que
provocava, parecia que ele não precisava de mais nada na vida exceto a
companhia dela. Foi aí que veio o golpe sob a forma de um “cansei” em
plena noite de natal. Pegou o filho, os trapos e sumiu mais uma vez.
Aqueles que o acompanham de perto, que tiveram coragem de visitá-lo nas
diversas internações de desintoxicação, sabem que seu alcoolismo é oitenta
por cento oriundo desse rompimento. A mim ela alegava que ele não era
mais o mesmo, que ela não aguentava mais a bebida. Conhecendo os dois,
sei que a bebida, dentre outras coisas, era o que os uniu. De repente ele não
servia mais porque bebia. Virou um verme. Hoje sei que precisa de ajuda até
para ir ao banheiro. Nunca mais pisou num palco, seu ganha-pão.
Daí em diante, foram tantos desacertos que nem vale a pena contar. Sei de
um golpe da barriga, de outros golpes e uma migração cansativa por camas e
carteiras risonhas, relacionamentos vazios e lucrativos. Viveu anos com a
convicção de que nascera com um passaporte universal entre as pernas. Sem
pudor me contou essas coisas me abraçando, dormindo de conchinha, me
beijando, parecendo um ser humano.
Queria que tivesse sido diferente. Queria que ela pudesse ao menos ter
remorso, mas ela aceitava sua vida e as decisões que tomou como naturais.
Às vezes ela fingia que sofria para me agradar. Aquilo era só na casca. Por
dentro não sentia nada.
Dois dias antes, um telefonema do então namorado, me deu uma medida do
que ela era. Tratava-se de um recado longo deixado na secretária do celular.
Ela foi até o corredor para ouvir. Do quarto pude escutar meia hora de
desespero, de pranto, de arrancar pena em qualquer um. A luz tinha
acabado por causa da tempestade e, entre um clarão e outro dos
relâmpagos, ouvia-se porquês um atrás do outro. Ela desligou, voltou para
os lençóis com um único comentário:
 É um frango mesmo.
Vasculhando sua agenda, não me decido para quem dar a notícia. Pensando
bem, vou deixar ela ai. Vou assistir e gravar ela apodrecendo. Escrota.
REVISTA 43  BEATBRASILIS
UMA
Qualquer*
MERDINHA
VITOR SOUZA
“Porra, é o João Napoleão Victor?”
“Sei lá, é uma merdinha dessas aí, uma merdinha qualquer...”
“Caralho, essa merdinha é filho de rico, cacete!”
“Mas é uma porrinha de sete anos... olha aí, nem sangra direito...”
“Não sangra, mas é gente importante, porra!”
“Importante só porque é filho de rico?”
“Claro que é só porque é filho de rico! Tu é muito burro mesmo!”
“Tá, tudo bem, vacilei... mas foda-se! O que a gente faz agora?”
“Agora? Pensa você, porra, não fui eu quem matou o moleque!”
“Tá, vou limpar tudo então, me ajuda aí, pega pelas pernas...”
“Pega sozinho, seu mané!”
“Eu vou me sujar pra caralho!”
“E daí? Tu tá fodido mesmo!”
“Fodido é o cacete! Pega logo pelas pernas aí, vai...”
“Tá, peguei, vamos carregar pra onde?”
“Pra trás da moita. Mais tarde eu jogo no rio.”
“E você acha que até lá ninguém vai dar falta do moleque? Que isso aqui
não vai estar cheio de polícia revirando o sítio todo?”
REVISTA 44  BEATBRASILIS
“Olha só... o pai é viado, tá lá no barracão chupando o pau do caseiro. A
mãe tá na seca, eu vi um garotão arrastando ela pro canil. E tá cheio de
outros merdinhas que nem esse por aqui, correndo, berrando... Não vão dar
falta dele tão cedo!”
“É... até que agora você usou a cabeça, porque é isso mesmo que rola: os
pais ficam trancados lá na casa do patrão e a gurizada largada aqui fora... E
se você ficar parado ali no canteiro, dá pra ouvir as mulheres gemendo e os
maridos se punhetando, dando ordens pros gogo-boys que eles contrataram
enrabarem com bastante força as suas esposinhas...”
“São uns babacas mesmo! Se eu tivesse o dinheiro que esses caras têm,
estaria fazendo programa com a Bruna Surfistinha ou com a Valeska
Popozuda, e não contratando musculoso pra comer minha mulher, não
fode!”
“É, esses ricos são uns depravados mesmo, gente sem moral!”
“Totalmente degenerados, pecadores do caralho!”
“Pode crer...”
“Tá. Agora chega de papo e vamos levar o corpo desse merdinha daqui.
Quero dar mais uma enrabada no cuzinho dele antes de me lavar.”
REVISTA 45  BEATBRASILIS
* Antes que alguém resolva encher a paciência do autor
pelo tom politicamente incorreto do texto, é necessário
esclarecer que “Uma merdinha qualquer” é um
miniconto que se propõe apenas a denunciar a
HIPOCRISIA, mostrando dois degenerados fazendo juízo
de valor dos outros, cujas práticas sexuais não estão de
acordo com o conceito de “moral” deles. Ou seja, é a
velha história do “sujo” falando do “mal-lavado”.
Apenas isso!
new beats on
the block
LEANDRO DURAZZO
Os tempos são novos, os trampos são árduos, a grana é curta. Com sorte,
hoje, a roda se monta em torno de um vidro, de uns tubos, de um fumo.
Amassam-se as baganas e se acende o narguile – narguíle, narguilê, narguilé,
qual seja. Flower Power é passado, não transa mais nada. A onda agora é
Flavor Power, aquele gosto artificial que finge ser um aroma, mas na verdade
não é merda nenhuma.
Dedão na estrada não pega carona, mais. Na estrada, os carros pegam os
dedões, e decepam. O mundo é uma selva de pedra. O mundo é uma bola
de pedra voando pelo espaço, e ninguém acha isso estranho. Ê, volta do
mundo, camará.
Abaixo as estéticas clássicas, abaixo as mágicas, abaixo os cimos, as rimas,
os metros. Abaixo os tetos, e que todos andem engatinhando. Abaixo Dadá,
Dodô e Didi. Abaixo Mussum e Zacarias, mas deixemos uma oferenda a
eles, no jardim.
REVISTA 46  BEATBRASILIS
Fora daqui, já, todos os que se pretendem cult, beats ou intelectuais. Inclusive
eu. Fora aos que sonham, que gritam, que dormem, que morrem; aos que
escrevem merda e aos que escrevem muito. Fora aos que escrevem muita
merda.
O que passou, passou, não volta mais. O que não veio não vai vir, também,
e deixemos de esperanças. O aqui e agora não é nada, só Gil Gomes num
canal de subnível. Perucas, plumas e paetês. Patês de olhos de garça, garças
de canal, de esgoto, urubus de ratos mortos e cachorros dos com sarna.
Presunto de Parma.
Coloquem as velhas imagens num caixão, e as enterrem. Coloquem o
enterro num cartão, de crédito, em 7 vezes sem juros. Eu juro. Mas a mão
na Bíblia não significa mais nada. Fora aos futuristas, aos cubistas, aos
impressionistas e aos impressionáveis. Fora às energias não-renováveis, e à
falta de energia. Viagra de cu é rola. De rola é cu. Ou uma buceta.
Viva o verde, a Vale e a vulva. Por uma energia verde e pornográfica. Por
uma pornografia nacional. Abaixo aos políticos, mas não muito para que
não mostrem os ânus gordos e senhumanidade.
Fora, já, os que estão dentro. E dentro, agora, os que estão fora. Pela perda
de noção, de bom-senso e de eleição. Fora daqui, porra! Diretos já, pra casa
das mães. Ou pra zona. Tanto faz, que eu não vou junto.
Pelo aborto melancólico da melancolia saudosista. Pela morte da melancolia
mal-nascida. Não há nada aqui, nem haverá. Que se matem as fortunas
críticas. Que se peçam tesouros críticos. Que se tenham tesouras críticas. E
que o poder supremo do mundo todo seja afiado feito foice.
E que os fetos nasçam com mais sorte.
REVISTA 47  BEATBRASILIS
Fabrício Busnello
havia sido uma daquelas trepadas inesperadas e enriquecedoras como devem
ser as melhores trepadas. estávamos então fumando um pós coitum:
— (...) e veio um cheiro de café na madrugada - disse ela - e era ele
incrivelmente surreal, por estarem ali dispostos sobre a mesa tantos outros
meios pra se manter insone.
— um mais delicioso do que o outro?
— sim. um mais delicioso do que o outro. e eram muitos. e eu tinha muito
tempo.
suguei da alma um catarro preto inflacionado.
me levantei e me vesti e acendi outro cigarro.
— vou cagar, eu disse.
e nunca mais voltei pr'aquela cama.
REVISTA 48  BEATBRASILIS
Fabrício Busnello
de vidro os disponho de forma errada.
essa letra torta derrama sobre a minha
essa é a sina do vencido!:
vida uma conotação estranha de realidade.
saber de coração que não existe vencedor!
sou eu aquele que me confronta!
é minha essa idade fora do tempo que
(seca teus olhos lindos, minha vida:
me inquieta e machuca!
eis a manga da camisa mais bonita!
sei pra quem veio esse passado confuso
mancha o cetim com tua tristeza!
que há de embriagar ainda
me corta o pulso com esta fina alegria!).
quatro gerações de loucos
e sei onde esta meu filho querido e
assassinado dentro do teu corpo,
pois embalo cansado em meu colo uma canção de
vida que não dorme nunca.
em minha rede repousa uma meia-lua
inquieta de inverno que se recusa a encher
e sobre a minha cama a própria noite
abre as pernas e me mostra a umidade do amor;
e entao eu escorrego lânguido e frouxo e
olhos semicerrados. sou um cárcere estúpido
de mim mesmo e ali eu permaneço num escuro adocicado.
embaralho sonhos com mãos suadas e sobre a mesa
REVISTA 49  BEATBRASILIS
Daniel Caldas
mi barrio a cavallo.
me vuelvo a Lanús. aunque a mi me falte un diente. El dolor uno no lo
siente.
Yo lo hablo en fiestas con chicas y mesas puestas. Jodido. Callado. no
le doy un pedo. Ellos solo me lo dan una yapa.
Y incluso! Hay una Feria. Donde las monjas se encuentran. Las dos son
abogadas. De una crises injusta. Pero sus polleras me hacen ver cosas
lindas. Lo que sienten ustedes? Los vagos que mienten. La Lentidón que
a mi me alcanza trás una de las suyas. Acá te veo cargándome.
Sobrevivirte. No, me duele a la panza. !Que tema de mierda! À las
siete te espero. Sé que Ustedes hablan el inglés. En una Londres
pobrezita! Y igual ahora los diários son vários. Eso es Lanús el de la
Recoleta. Cartoneàndome estoy... al parador nocturno me voy!
REVISTA 50  BEATBRASILIS
O NORDESTE DA
MINHA VIDA
Cícero Bezerra
Aqui nesta manhã cinzenta e chuvosa
Feliz contemplando os trovões e relâmpagos
Dessa nossa natureza maravilhosa
Do meu quarto solitário ouço emocionado
O som da chuva batendo e escorrendo
Por todo o telhado até cair no chão
O cheiro da terra molhada invadindo
Por completo a mim e toda a vastidão
Aqui estou de volta ao nordeste da minha vida
As lembranças prazerosas da minha infância linda
E aos meus velhos amigos cultos, bêbados e chapados
Aos meus velhos amigos loucos, vagabundos iluminados
E as inúmeras recordações felizes e tristes preenchidas
Por nossas histórias cheias de sorrisos e gargalhadas
E a saudade eterna que fica de quem jamais voltou
Mas dentro de cada um de nós o que sentimos nunca mudou
REVISTA 51  BEATBRASILIS
JEFFERSON AIRPLANE
Marcus Vinícius Marcelini
I found her in the alley
the desolation road.
Ela é formada em letras
e dá aula em cursinhos de inglês,
o mundo manda um rugido a todo momento
e não sei como a vida me fez,
esse moleque diz que já viu tudo
no auge dos seus treze anos
cospe com um cachimbo na mão.
Ela dá aulas de inglês
e guarda a cerveja preta que lhe dei,
ouço seus passos ainda na chuva
pernas pelo bar,
esse moleque que viu tudo
diz que a viu passar,
tenho três palavras que não me saem da cabeça
e uma intangibilidade em pronunciá-las
quero essa cerveja preta
essa minha preta
preta
beijando um hash ao luar.
REVISTA 52  BEATBRASILIS
SOLIDÃO
Mateus Marcelini
cinco da matina. chego em casa sozinho, sento no sofá, acendo um cigarro. as
luzes apagadas. as pernas dela ainda estão marcadas no
fundo dos meus olhos, e pra onde quer que eu olhe lá
elas estão, a se cruzar, chegando à divisão da bunda
coberta pelo short jeans, do tamanho da mão. eu sei
que ela é como eu, como você, e nesse momento deve
estar em sua cama, sozinha, agarrada ao cobertor, ou
abraçada ao travesseiro, sonhando com alguma coisa.
eu só precisava saber com o que. eu só precisava dizer
alguma coisa. eu só precisava me aproximar lentamente
de sua boca. a mão puxando pelo braço. a outra no
rosto, talvez. e meus amigos com suas namoradas, seus
casos de alguns dias, suas putas, ou suas garrafas na
mão. o cachorro do estacionamento atrás do prédio não
pára de latir, ele não tem culpa, todas as noites latindo
sem fim, é só o que se ouve na rua deserta, seu latido
sem fim, até que alguém jogue pelo portão sua última
refeição, e na noite seguinte não se ouça mais o latido
solitário do cachorro sem fim. os homens querem
silêncio em seu sono descanso merecido. pois que
tenham seu silêncio, e que façam sua refeição pela
manhã, enxaguem o rosto, coloquem aquela roupa de
trabalho, e façam o que tiverem de fazer, sejam senhor
sejam escravo, sejam patrão ou funcionário. as pernas
dela eram brancas quase rosadas, e minha fome cresce a
cada dia. minha vida some a cada instante, nos pêlos
que crescem no meu rosto e em tudo o que eu planejo
um dia fazer. incluindo todas as pernas que já estiveram deitadas em minha cama,
pelas quais meus dedos corriam de madrugada. eu nunca consegui dormir ao lado
de uma mulher. você pode imaginar os motivos. eu nunca fiz psicanálise. mas
como sonham essas mulheres. como respiram fundo, com seus peitos de variados
tamanhos se expandindo e retrocedendo, seus narizes de formatos diversos
soltando e puxando ar, assoviando em tons agudos. os olhos fechados. como são
belas as mulheres quando dormem. e até no momento em que acordam, serenas e
calmas, complacentes, a beleza do sono ainda resta em
seus olhos semi-abertos e em seus movimentos lentos.
depois do sexo, parecem esquecer suas angústias de
mulher e simplesmente respirar. mas a solidão nos chama
de volta como a mulher mais fiel e a primeira, mítica
companheira. tão sutil, tão rasteira, ela não bate na porta,
não liga nem manda mensagens. quando você menos
espera, ela está deitada ao seu lado, com as pernas
cruzadas, e você não consegue parar de olhar para elas. as
pernas brancas no fundo dos olhos. as pernas brancas que
já foram morenas, que já foram bundas, cabelos, bocetas,
bocas e olhos, já foram pés delicados. cinturas e vozes.
pescoço quente com cheiro de criança. e ela estava me
esperando aquela noite, numa encruzilhada, eu vi, mas
não foi dessa vez. ela até se vestiu com a roupa que eu
gosto, aquele vestido preto curto, mas não foi dessa vez.
ela espera o dia que eu seja só dela, mas não foi dessa vez.
eu ainda resisto, respirando, e ela deitada com a cabeça
sobre as minhas pernas, me olhando nos olhos, as pernas
brancas cruzadas ao longo do sofá, mas ela sabe que
amanhã eu posso me dar bem, e posso não voltar. ela
sabe, e deve ter colocado alguma coisa no meu copo, pra
me fazer dormir, me puxando pelo colarinho, me
beijando no rosto, eu me deito sem medo, e sei que ela
não vai me deixar ir pro trabalho... que se dane. hoje a
noite é dela.
REVISTA 53  BEATBRASILIS
Ela passou e sorriu. Poxa vida, que sorriso maravilhoso.
Que sorriso maravilhoso, escreveu.
Não, não era isso. Ela passou voltando e ele escreveu então:
Nunca ansiei uma mulher muito bonita
Ou farta de talentos corporais
(nádegas, peitos ou coxas)
Mas aquela mulher era demais.
Seria isso ou o que se escondia nas entrelinhas? O não dito? E assim pegou
seu copo e entrou em casa, encheu-o de um suco de saudades, denso como
um pirão mal cozido. Era assim que se sentia, um pirão mal cozido. O que
significaria isso? Então escreveu a ficção, a ficção que não era nada além do
real:
Marcus Vinícius Marcelini
“Mulher que máquina és que só me tens desesperado”
(Vinícius de Moraes)
Tem um poema que não se declama, só com o pensamento fica-se
atordoado por certo tempo, como um cão uivando pra lua. Era uma dessas
que ele estava procurando, sentado na varanda de uma casa alugada no
calçadão de Caraguatatuba ao lado de um bar boa pinta. Tentando
desmistificar a poesia, ou melhor, o fazer poético, que se tornara tão
banalizado em livros comerciais e blogs de lirismo comedido. Não, não
tinha nenhum interesse nisso.
Os passos se arrastavam pelo chão
no soar das velhas botinas
caminhando, frias, até o balcão.
- Uma dose, por favor.
Dois copos são enchidos até a boca,
ele me empurra o meu e vira o dele.
- Dia duro? – me pergunta.
- Mulheres. – respondo e viro minha dose.
Quem sabe a ordem dos fatos não tenha sido bem essa ou a folha branca
nunca tenha estado sem palavras. Quem sabe ela nem tenha passado
novamente, mas passou.
REVISTA 54  BEATBRASILIS
Ei, garota! Isso é seu, de qualquer maneira.
Ela sorriu.
Que sorriso maravilhoso. Era tão maravilhoso que só foi reconhecer as
demais formas do rosto dela três dias depois. Tão maravilhoso que não
achava mais o sorriso algo supervalorizado. Mas tampouco sorria. Ela o
conduziu para um lugar estranho, o vento balançava tudo, uma fumaça
característica não deixava a cabeça no lugar, talvez depois disso ele nunca
mais conseguisse colocar a cabeça de volta no lugar. Beijou-a de leve.
Depois com furor. Depois pediu sua calcinha. Era linda. Mas seu sorriso era
mais lindo ainda. Ele preferiu o sorriso.
sorrisos. Sorrisos despretensiosos. Foi tudo assim. Dois ou três sorrisos.
Quinze poemas de amor manchados de café. Ele com cabeça estourando
num sol qualquer que nunca desejou permanecer, sempre tentando fugir de
casa sem realmente fugir de casa. Existiram outros sorrisos, assim como
outros poemas. Nada muito interessante. Afinal, quase nada é.
Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e
disca para algo chamado amor.
Tem pensamentos que dissolvem conexões neuronais e todo o sentido é
perdido pelo caminho, toda a gênese de patologias não orgânicas.
Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e
disca pra ela. Ninguém atende. Veja bem, a vida é pra valer.
Por que os abraços são a deixa da separação? Os abraços apertados, o
coração disparando contra os peitos fartos. Realmente a cabeça dele nunca
voltaria ao mesmo lugar, a poesia, de tão atormentada, se misturaria à prosa
e seria para ele já tão indistinguível qualquer tipo de escrita que nenhum
sentido o interessaria. Apenas o sem sentido.
Ei, garota. Que sorriso lindo. Deixe-me vê-lo novamente.
Não. Não há mais sorrisos.
Tampouco há poesia.
Quinze folhas em branco estão crescendo sobre a escrivaninha. Ninguém
mais sabe escrever poesia. Poesia do corpo. Ninguém mais sabe dar
REVISTA 55  BEATBRASILIS
ELA PEQUEI
Julieta Puy
REVISTA 56  BEATBRASILIS
Afinal de contas, pra que conjugar o personagem em terceira pessoa se o
personagem sou eu mesma?
Eu, que acreditava na verdade da monogamia. Que acreditava que a
conquista do autocontrole brilhava mais do que ouro, eu acreditava no
pecado contido na maçã.
De repente, como um rio tranqüilo que não espera a tempestade, a
tempestade acontece. O rio acontece. (não posso deixar de notar como
tenho sempre a previsível necessidade de usar metáforas meteorológicas
para fazer certas associações).
Mas enfim, eu estava falando do que mesmo? Ah, do quanto eu gosto de
ouvi-lo cantar. E de como a voz dele é como um mês de junho na selva
tropical, então eu me chovo toda. Tempestades são involuntárias, naturais e,
portanto, maravilhosas.
Sucede que minha vida quase se converte numa versão tupiniquim de Jules
et Jim, maravilhosa película de François Truffaut. Algumas coisas ditas
naquele filme não me saem da cabeça. Aliás, coisas perturbadoras, assim
como aqueles fios de cabelo de fogo, não têm me saído da cabeça
ultimamente. A personagem Catherine, bastante chegada num frisson, se
apaixona por dois amigos. Adoram-se, os amigos. A adoram, os amigos. Ela
adora os amigos. Mas toda metamorfose é dolorosa, se não fosse assim a
palavra metamorfose não teria tantas letras, nem um r antes do f, é mesmo
estranha. E processo? Processo é uma palavra dessas que chegam a ter um
cê e dois esses, tal a complicação do sentido, tal a profundidade do mar do
autoconhecimento. Querer mudar sem risco é em vão, mas eu diria que
mais em vão ainda é tentar mudar sem ter a certeza da incerteza e
reconhecer em si e nos dois amados almas que se querem, que querem estar
vivas. Começando por aí talvez se chegue mais fácil a uma visão mais justa
(ou mais conveniente - me esforçarei para não ser muito hipócrita).
Trata-se do famoso trio amoroso, um verdadeiro power trio.
A culpa não existe se entendemos que o egoísmo é o que move o mundo.
Enquanto eu não tiver meus girassóis floridos, de nada me servirá um dedo
REVISTA 57  BEATBRASILIS
Como pode, a posse? E por causa da société, chego a considerar que, ao
pensar no "outro", o affair (franceses são poligâmicos), estou tendo que tirar
tempo da conta do meu marido pra depositar na conta do amante.
Tempo, cabeça, coração, camisinha, telefonemas inapropriados; tudo acaba
indo pra mesma panela, aquela que cozinha amor com a chama alta.
É uma linda situação de merda esta
Linda, porque abunda em paixão e dúvida e seria um roteiro quente pra
qualquer arte
E de merda, porque é um campo minado
Há que se ter cuidado ao pisar, e pensar se à hora é mesmo a de pisar ou de
levitar pra longe. Ou se a hora é de não pensar. Mas como não dar
importância ao coração, que é quem decide o que tem importância?
verde, pois eu não conseguiria fazer florescer os girassóis de mais ninguém
se não soubesse amar a minha própria botânica.
Mas existe uma coisa, coisa essa que eu prefiro dizer em francês: la société.
E desde que me entendo por gente, la société me diz que o coração deve ser
de um por vez, tal qual catraca de metrô. E que deve ser de alguém, a posse.
Talvez por ser tantas, eu não consiga amar um só. Se tantas Evas mal cabem
em mim, preciso levá-las pra passear, pra modo de eu arejar as janelas de
minh'alma
Não é que procure sarna pra me coçar
É que eu tenho muito amor pra dar
Mcdonalds ama muito tudo isso, pois eu amo muito todos eles
E detesto tudo isso
Tudo isso que reprime, que não come com casca, todas as seringas de moral
que me injetaram a vida toda, você que fuma e não traga.
E a société me abandona agora nessa rua sem saída
REVISTA 58  BEATBRASILIS
Eles se completam, eles me completam. E nessa completição toda, existe o
medo de ferir, o medo do fim de algo, o medo de não saber bem o que é
amor.
Este texto não é a necessidade de contar nada a vocês
É a necessidade de explicar algo pra mim mesma
Artaud disse que viver é arder em perguntas
Logo, posso afirmar que estou vivendo muitíssimo,
Meu suspiro deve estar vagando pela cidade agora
Vou tentar não pensar em não ter que pensar no que me tenta
Fica a vontade, ficamos na vontade
Pra que tanto falar sobre
Melhor beijar sobre
Mas isso implica em dementes jogos da mente
Nem a mentira se atreve mais.
Porque penso que agora mesmo, ao invés de estar aqui, a teorizar sobre algo
que contém todo o teor da anti-teoria,
Eu poderia estar vendo espetáculos de luz enquanto esse sol de fim de
inverno queima os cabelos daquele
Ou poderia estar catando esperança na cesta dos negros e infinitos olhos do
outro
O fato é que nenhum dos dois está aqui
E é nessa hora que os amo mais
Ainda;
Quando os vejo com certa distância
E se é bem verdade que a distância dá casa, comida roupa lavada às
idealizações,
Também é verdade que ela define, ao separar dois corpos e duas
consciências: longe, sabemos que cada um é um, é algo que não se
questiona, pois se vê. Ou não.
E juntos nem sempre temos esta certeza
Os corpos se confundem, se fundem, se unem. Um.
Esta mulher aqui não quer mais ter que fingir que está lembrando que
amanha tem que pagar o aluguel quando estiver pensando no entrefechar
dos olhos do amante quando lhe agarrou as bochechas da bunda, na
REVISTA 59  BEATBRASILIS
Que fica úmido e metafórico
Querendo entender comigo esse labirinto (é muito brega usar labirinto para
se referir a questões amorosas?)
Esse triangulo pode ser visto de vários ângulos
Por se tratar de um triângulo mais amoroso, já que tem amor em todas as
direções
Mas com algumas fronteiras burocráticas, isso sim
Lampejo de felicidade:
é fantástico saber que se é a fantasia de alguém
Mexo com ele, mexo com meu ego
Será porque que estamos no mês de Egosto?
sacanagem sacramentada numa cama que não é a minha, que não preciso
chamar de minha.
Como raulzito
Que queria tocar fogo no inferno
A agonia egolescente
De querer saber quando de novo
- E de novo, quando hein?
Mas tudo fica muito tranqüilo do ponto de vista deste Chopin, um pianito
sempre embala qualquer quarta-feira
E assim tomo meu café melancólico
Lampejo de tesão:
é assim, somos hormônios e outras coisas invisivelmente inexplicáveis
Queremos, queremos e queremos agora
Queremos tudo, o marido, o amante, o feijão com arroz e a lagosta de cada
dia
Se não fosse por essa cãibra de euforia entre as pernas
Por rir sozinha no meio da farmácia
Os olhos e as covinhas denunciam que algo de extraordinário andou
acontecendo
E me golpeia essa saudade de algo tão sem sentido
Tão descolocado
Que concluo que é justamente essa falta de propósito
REVISTA 60  BEATBRASILIS
O que faz com que amantes tenham uma relação natural, orgânica mesmo
Amantes se amam
Se encantam
Não se burocratizam
E se separam sempre querendo não ter que voltar pra casa
Querendo andar loucamente na garupa do outro e se derramar cerveja no
banheiro.
Mas Eva é desapegada e ainda culpas os astros, que a fizeram nascer neste
interminável aquário de amor
E a fazem incompreendida por só querer saber de blues, velas e banhos
masturbados
E fuma como nunca, a pobre Eva
E pensa em como a física separa as pessoas
Maldita física, Eva sempre a detestou
E já está a culpar alguém de novo, nem a pobre e digna física se salvou
Foi a própria société que criou os moralismos
E códigos ávidos por obediência
Ora, se sou parte da sociedade, então cabe a mim mudar tais códigos
Pelo menos dentro de mim
Beatniks querendo me levar por algum caminho
On the road, any road
Se é bom ou mau, é tudo uma questão de ponto de vista e de espelho
retrovisor
Os livros me confundem mais
Ou me inspiram tanto que saio decidindo coisas
A arte a serviço do impulso
Raul Seixas me diz cada coisa
Tudo é interpretável, associável e identificável
Pois interpreto, associo e identifico
Não tem Pepsi - Cola que sacie, não tem
Truffaut me diz coisas
Todo mundo me diz coisas
Meu coração então, não cala mais a boca
Simone de Beauvoir nasceu em 1908
E fez confissões que clitóris nenhum da época sonhava em tremer sobre
Cento e quatro anos depois, cá estou, cá estamos, na mesma repressão
Falo por mim, não posso falar por outras,
Não estou a levantar bandeira de nada
Não sou feminista
Sou serista
Só quero ser
E como quero tanto,
Me pergunto se não haverá mais gente nesta situação medonha
De se estranhar por não entender como cabe tanto sonho
REVISTA 61  BEATBRASILIS
A BORBOLETA
TRANSPARENTE
Gabriel Megracko
REVISTA 62  BEATBRASILIS
Certo dia, no meio da tarde, havia saído da casa da minha namorada, na rua
Frederico Abranches, e estava entrando nas dependências da estação Santa
Cecília, do metrô. Quando me aproximava da catraca, em meio a uma
aglomeração densa mas fluida de pessoas, avistei algo voando. Passou na
minha frente, perto do chão e desviou das pessoas habilidosamente, o que
provava que tinha uma direção independente do ar. Curioso foi que logo que a
avistei me acometeu a sensação de que, apesar de eu nunca ter visto aquilo
antes e nem ouvido falar, estava vendo exatamente o que imaginava. Saí, meio
como ela, mas à moda humana, desviando das pessoas, que desviavam de nós
dois com gestos parecidos, salvo as proporções dos dois corpos.
Desvencilhei-me das pessoas e a segui. Ela havia pousado em um lugar onde
não passavam pessoas, próximo de uma parede que perto fazia vértice com
outra, formando meio cubo retangular, fazendo-se obsoleto na disposição da
coisa toda; o palco perfeito para o meu público alumbramento. Me agachei
perto dela, mas não muito para não espantá-la, murmurei alto "Cara, é uma
borboleta transparente mesmo!" e sorri. Tinha um contorno preto
arredondado em torno das asas, tão transparentes que dava pra reconhecer as
sistemáticas saliências arredondadas do chão preto emborrachado. As linhas
eram grossas e duas delas saíam de onde suas asas se ligavam ao corpo e iam
em curvas suaves terminar nas costas das asas. Observei seu desenho por coisa
de um minuto ou menos, porque um sujeito estava vindo na minha direção, e
falava comigo. Tentei ignorá-lo por medo de que viesse e espantasse a
borboleta, mas ele continuou vindo. Quando chegou mais perto entendi o que
estava me dizendo. Me perguntava se eu estava passando mal. Disse pra ele
que estava olhando uma borboleta transparente. Ele pareceu não ter ouvido e
chegou à minha frente. Eu dizia pra ele tomar cuidado com a borboleta, mas
ele sequer olhou para onde eu apontava. Seu pé parou a uns dez centímetros
da borboleta, que para ele era idêntica ao chão onde estava pisando. Tudo não
tinha demorado mais de dois minutos, e eu estava já muito afetado pela
situação. Enquanto ainda agachado apontava para a borboleta e falava com o
sujeito, que ignorava o que eu estava dizendo como se estivesse vendo uma
alucinação, um velho também se aproximava. Entendi rápido o que dizia.
— Olha a borboleta aí, você vai pisar nela! Aí no seu pé - disse o velho pro
outro. Aí me levantei. Como se duas pessoas dizendo a mesma coisa tornasse a
coisa real de repente, o imbecil finalmente olhou para a borboleta.
— Olha, é verdade! Olha a borboleta aqui! — disse — Eu achei que você
estava doido, cara, ou passando mal, não tinha visto a borboleta --, abaixou,
pegou a borboleta pelas asas e levantou. Eu sentia uma aflição aguda pela
dissolução tão rápida de evento tão inédito pra mim.
— Cara, cuidado com a borboleta! Olha o que você tá fazendo — eu disse.
Não lembro o que aconteceu com o velho. Não lembro o que me respondeu o
sujeito, na hora. Sei que ele soltou a borboleta, ela saiu voando e foi embora.
Entre o meu desejo de ver cada milésimo da vida daquele ser e o impulso de
assassinar o mentecapto, ele disse que a borboleta estava transparente porque
estava mudando de pigmentação. Pela primeira vez prestei atenção no homem.
Percebi que ele me olhava como eu olho pra uma mulher e entendi então a
cena toda. Ainda dizia alguma coisa sobre a pigmentação da borboleta
enquanto se distanciava.
Como a borboleta não estava mais lá, eu estava atrasado para o trabalho e com
vontade de cometer um homicídio, me dirigi para a catraca, encostei o cartão
no negócio de encostar o cartão e girei a roleta.
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A VIDA DE CARLOS
Vitor Souza
REVISTA 64  BEATBRASILIS
Quando o despertador toca, ainda está escuro. Carlos levanta sem muita
dificuldade e caminha até a janela noroeste do pequeno chalé de madeira. Há
poucas nuvens ao alcance da vista e uma brisa suave impõe movimento aos
cumes das árvores mais altas. Mas o que lhe chama a atenção mesmo é a
imponência da mesma lua cheia que na noite anterior ele admirou por trinta
minutos antes de ir dormir, acompanhado de um cigarro de palha e uma cerveja
quente. Ver o astro radiante “morrendo” por trás da serra e iluminando todo o
vale é uma ótima forma de começar o dia. Dia que encerra mais uma semana de
trabalho na reserva florestal que Carlos ajuda a monitorar. É sexta-feira e só para
não perder o hábito, ele murmura um “vamos lá” antes de dar as costas à
paisagem e sair para sua higiene matinal.
Toma seu café da manhã ouvindo um som maneiro, do velho Raul, na vitrola
carcomida pelos cupins. Ele até possui computador portátil conectado a um
moderno e compacto sistema de amplificação, mas o som chiado e estalado de
radinho de pilha que vem do aparelhinho marrom possui charme e mil
quinhentos e trinta e seis significados para Carlos.
Ao sair do chalé com sua mochila e caderno de campo, o dia já está mais que
ofuscante. Carlos abre as portas laterais da van e confere todo o material de
análise de que vai precisar. Também verifica o estado dos equipamentos de
proteção individual que irão cobri-lo ao longo do dia. Depois dirige por uma
estrada de terra por meia hora e entra sorrateiro no escritório de administração
da reserva. Os demais funcionários ainda não chegaram. Ele deixa um farnel frio
ao lado do vigia que dorme profundamente, bate seu ponto e sai.
Durante parte da manhã, Carlos coleta e faz análises de amostras de solo e água.
Um riacho e um pequeno lago são os corpos hídricos que ele monitora. O lago é
o mais crítico, pois está situado em uma das extremidades do parque e já sofre as
consequências da especulação imobiliária que sem fiscalização instalou-se ao
redor daquela Unidade de Conservação. O riacho tem sua nascente na área onde
A outra metade da manhã ele dedica ao levantamento de fauna que pretende
citar no relatório anual a ser encaminhado ao Instituto. Para isso confere as
memórias das armadilhas fotográficas que instalou em pontos aleatórios da mata.
Descarregar aquelas imagens no tablet virou momento ultra expectativa para
Carlos, pois ele nunca sabe o que elas irão mostrar...
Às treze horas, Carlos está de volta ao seu abrigo. Devora feijão com soja
enquanto assiste o telejornal do almoço, bebericando uma dose de conhaque.
Depois liga o barulhento ventilador de teto e se esparrama na cama rústica a fim
de fazer sua cesta. O despertador o levanta às quinze horas. Hora de redigir
relatórios e enviá-los à administração da reserva via conexão weireless. Hora
também de responder e-mails, navegar pelas redes sociais das quais participa,
atualizar seu blog e estudar as coisas sacais que seu ofício exige que ele estude.
Quando termina, a noite já está alta. Ele coloca um traje riponga e caminha por
trinta minutos em meio ao breu a fim de ter com os amigos do Coletivo Pataxó.
Carlos proseia animado, toma cachacinha com garapa em simpáticos copos de
bambu, batuca num bongô, expele fumaças ilícitas e troca olhares com uma
inglesinha que está ali fazendo intercâmbio e não fala vinte palavras em
português, sendo que ele não fala dez em inglês.
À meia-noite, Carlos está novamente sozinho no pequeno chalé de madeira onde
tem vivido os últimos vinte anos da sua vida. Dos parentes não tem mais notícias
e apesar dos seus quarenta de idade, não constituiu família. Uma pessoa sensata
diria que Carlos deve ser um sujeito muito solitário e infeliz, mas ela estaria por
certo enganada. Na verdade Carlos é um homem quase realizado, pois sente que
está fazendo exatamente o que deveria fazer. Só falta agora comprar o seu “fusca
verde”, colocá-lo pra funcionar com algum biocombustível feito em casa e
compartilhar em seu blog, sob licença livre, a solução química que encontrou.
Esse com certeza será um grande dia para ele.
Enfim, essa é a vida de Carlos.
a mata atlântica apresenta-se em sua forma mais preservada, ou seja, no alto da
serra. Então não há o que se falar em grande influência antropogênica. REVISTA 65  BEATBRASILIS
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