O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais on

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O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais on
O belo e o sublime românticos nas paisagens
de mundos virtuais on-line
M a r t h a We r n e c k
Visitados por milhões de usuários, os mundos virtuais on-line de temática
fantástico-medieval são constituídos por ambiências que carregam consigo séculos
da tradição paisagística ocidental. As paisagens desses mundos apresentam-se
como uma colagem de elementos sígnicos já estabelecidos na história das artes
visuais e recorrem a outros tantos de origem literária. Temos no romantismo o ponto
de ligação entre a Idade Média a que tais paisagens aludem e as significações que
proporcionam a quem as frui.
M u n d o s v i r t u a i s on-line , fantasia mediev al, paisagem, ro mantismo .
Visitados por milhões de usuários desde sua
implementação na Internet, os mundos virtuais
on-line1 de temática fantástico-medieval são
jogos que representam diferentes formas de
vivência em outro tempo-lugar. No presente
artigo analisaremos a estética das paisagens que
compõem esses mundos, buscando observar
como os campos simbólicos do medievo foram
transformados até se converter no que
denominamos ambiências de fantasia-medieval
nos mundos virtuais on-line.
O que sobretudo motivou a pesquisa foi o
paradoxo existente entre o aparato tecnológico
de ponta que veicula essas imagens – o
computador pessoal – e o que elas evocam,
que é exatamente um tempo análogo ao tempo
medieval, em que as tecnologias da informação
inexistem e a indústria e o capitalismo ainda não
despontaram. Essas paisagens trazem em sua
linguagem uma interessante bricolagem de
elementos e códigos de representação que
sobreviveram durante séculos na cultura
ocidental, constituindo um espaço imaterial – o
ciberespaço – onde pessoas podem viver por
meio da virtualização de seus corpos em outro
nível de realidade.
Com o nascimento da realidade virtual e dos
programas 3D, pelos quais essas paisagens são
geradas, há uma máxima eficácia quanto à
reprodução da perspectiva renascentista
enquanto modelo de construção, aproximando
as paisagens virtuais da tradição paisagística
ocidental. No entanto, devemos observar outro
aspecto interessante dessas imagens, que reside
no fato de ultrapassarem o referencial, passando
a ser auto-referentes, informantes de uma
dimensão singular de realidade mediante um
dispositivo interativo.
Observando os Roleplaying Games2 – vulgos
RPGs – que originaram os mundos virtuais online de temática fantástico-medieval, é possível
verificarmos as fortes relações entre o primeiro
jogo desse gênero, o Dungeons and Dragons, e
o universo da obra do escritor Tolkien, autor da
famosa trilogia O Senhor dos Anéis. Em ambos
encontramos presentes elementos dos mitos,
das fábulas medievais, dos romances de
cavalaria, da cultura celta e anglo-saxônica, além
de conexões com o gênero literário romântico
de origem inglesa denominado fantasia medieval,
do qual se destaca o famoso artista e escritor
William Morris.
Assim, a literatura romântica foi um ponto de
partida para a pesquisa da estética e da ideologia
dos séculos 18 e 19. Especialmente pelo
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passadismo ou restitucionismo romântico
inglês, que tinha como característica essencial o
anticapitalismo – segundo Löwy e Sayre,3
ponto nevrálgico da questão romântica –,
podemos estabelecer uma ponte entre as
imagens pesquisadas e o período medieval ao
qual aludem. O profundo desejo de retorno ao
passado do homem romântico deve-se à
grande insatisfação com o presente e à
constante crítica à modernidade. Mesmo sem
saber ao certo o mundo ideal a ser vivenciado,
há a idealização de um mundo de ficção que
muitas vezes se refere ao passado medieval no
que diz respeito aos modos de vida, ao contato
com a natureza e à proximidade das raízes
culturais, já que o romântico vive uma dolorosa
e melancólica convicção de que sofreu a
alienação de certos valores fundamentais para
sua condição humana.
Nas paisagens virtuais analisadas existem
elementos recorrentes com os quais
estabelecemos uma analogia com a pintura
romântica de paisagem. A estética romântica4
figura como o ponto intermediário entre as
paisagens virtuais e o universo do maravilhoso
medieval. Sendo assim, observamos nas
paisagens virtuais a presença dos conceitos
românticos do belo e do sublime,5 que
podemos resumir da seguinte forma: o belo é
o que traz o prazer simples da contemplação.
Nele o homem está integrado a uma natureza
de características acolhedoras e sente-se à
vontade como parte dela, pois a domina e
integra-se a seu ambiente natural. Portanto,
nessa poética pode ser verificada forte vertente
iluminista, diferente do que acontece com a
vertente do sublime que, por sua vez,
representa a relação do homem com uma
natureza que lhe desperta temor, magnificência
e todas as modalidades de emoções que passam
pelo sentimento do sublime – tanto em Kant,
que leva em conta suas características metafísicas e
reconhece uma “presença” no âmago da
natureza, quanto em Burke, cuja obra inspirou
Kant. A natureza representada pela poética do
sublime é aquela na qual o ambiente hostil
desenvolve no homem o sentimento de solidão,
de individualidade e até mesmo do sentido trágico
da existência, arrebatando-o e remetendo-o à
vastidão, ao desconhecido, mas que o fazem
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perceber-se como parte de algo grandioso, como
parte de uma natureza indomável.
Thomas Gainsborough, um dos primeiros
pintores ingleses de paisagem, traz em suas
pinturas da segunda metade do século 18 o
desejo romântico de viver no seio da floresta
como o homem simples, porém feliz e pacífico,
estereótipo esse que exercia fascínio nos
ingleses. A natureza bela e frondosa de
Gainsborough está presente no ambiente
idealizado e acolhedor da floresta, em que a
antagonismo em relação à industrialização por
não possuir vínculos com a época em que foi
realizada, quando as florestas inglesas já eram
vistas com um paraíso perdido, e a
industrialização e o capitalismo tidos pelos
românticos como ameaças constantes. Nas
pinturas de Constable a natureza mostra-se bela
e tranqüila, sendo o homem apenas um
ingrediente do todo, figurando nas composições
de forma bastante secundária. Podemos notar
no primeiro par de imagens, no qual figuram
uma pasiagem de Constable (Figura 4) e uma
paisagem do mundo virtual The Lord Of The
Rings (Figura 5), como as paisagens virtuais
captam de forma bastante evidente o clima do
romantismo presente nas obras do pintor, sendo
a natureza habitada e cultivada pelo homem a
principal vedete. Nesse exemplo, a amplidão do
espaço é dada pelas nuvens nas duas imagens.
Os animais domesticados que aparecem em
primeiro plano atestam a presença do homem
num ambiente idealizado. Nas duas imagens
uma vila de camponeses aparece em último
plano. Alguns detalhes do screenshot6 analisado,
como o moinho – que remete às paisagens
holandesas – e as roupas estendidas em um
varal à esquerda da composição, em plano
intermediário, contribuem para tornar a cena
extremamente familiar e feliz.
Nos séculos 18 e 19 o medievo foi trazido à
tona como a Idade de Ouro, e com isso
multiplicaram-se os temas para a pintura de
paisagem. Castelos e ruínas medievais já
louvados nas pinturas holandesas, como as de
Jacob van Ruisdael, começam a figurar nas obras
de Turner e Girtin.
pequena cabana do lenhador se confunde com a
paisagem. Essa natureza serena da qual o
homem é parte mostra-se como a bela natureza
à qual se refere Burke. Nas paisagens virtuais
que estabelecem uma dialética com trabalhos de
Gainsborough podem ser observados
elementos e composições bastante similares,
invocando os mesmos valores simbólicos aos
quais o pintor deu atenção.
Já a paisagem de Constable apresenta um
mundo ideal, autônomo, constituindo um
Enquanto em Constable havia uma exploração
gradual que buscava fidelidade em suas
representações da natureza, Turner procurava
aspectos comoventes e dramáticos que dela
proviessem. Sendo assim, ambos eram
românticos; no entanto, possuíam poéticas
diferentes: enquanto Constable pretendia
alcançar o belo pacífico que provinha da
simplicidade e da calma da natureza, exprimindo
emoções que giravam em torno da afeição
entre o homem e o mundo que habitava,
Turner buscava seus efeitos, colorações e
movimentos, traduzindo os sentimentos que
despertam o sublime, que em sua obra alcança
a máxima potência.
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O espaço de Turner é mutável, vaporoso e
cósmico. Como Constable, também ele
trabalhava com a mancha, mas sua mancha era
o vapor, a fusão, enquanto a mancha de
Constable representa a concretude e a definição
da luz. Para Turner a extensão do espaço é
infinita, o mundo é tragado pelo próprio ar e
pela luz, que se movimentam incessantemente.
Assim, tanto Constable quanto Turner
transmitem sentimentos por suas pinturas: as
emoções de Constable traduzem o belo, as de
Turner, o sublime.
No segundo par de imagens, no qual podemos
visualizar uma pintura de Turner (Figura 6) e
uma paisagem do mundo virtual Guild Wars
(Figura 7), observamos ao longe uma construção
– um castelo na paisagem de Turner, uma
muralha medieval na paisagem virtual de Guild
Wars. As nuvens e a coloração luminosa do céu
transmitem amplidão e uma atmosfera agitada.
Em ambas as paisagens o código cromático
utilizado é praticamente igual. A mensagem
presente é de que a natureza é maior do que
qualquer obra humana. O mistério e a
antigüidade dessas construções medievais
parecem submersos pelo tempo. Elas
conotam resistência e coragem através da
rocha com a qual são construídas,
sobrevivendo a todas as intempéries.
Em diversas pinturas de Girtin, pintor e
aquarelista companheiro de Turner, figuram
ruínas medievais que evocam o sublime por
meio da destruição causada pelo agente
temporal e da grandiosidade das estruturas
deterioradas. As ruínas de Girtin relacionam-se
ao valor da grandiosidade da pedra e ao modo
como, depois de arruinada, a construção volta a
fundir-se com a natureza e suas forças brutas. É
na ruína que a pedra retorna ao lugar de onde
um dia foi retirada para ser lapidada por mãos
humanas. Girtin não escolhe as ruínas romanas
para representar, mas uma catedral do período
gótico, ou um castelo medieval no topo de uma
pedreira. É uma forma de aludir aos velhos
tempos, uma forma de saudar o que no século
19 já se encontrava em um passado longínquo,
mas cada dia mais idealizado. As ruínas
medievais como parte da paisagem estão
presentes também nos mundos virtuais on-line.
Também gigantescas, são curiosamente imagens
construídas para representar algo que nunca
existiu. Em Guild Wars (Figura 3) as ruínas de
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uma catedral encontram-se num ambiente
selvagem, no qual a organicidade da catedral
funde-se à da floresta, conferindo à
construção um aspecto grandioso e sombrio,
misterioso e terrível. Em The Lord of The
Rings (Figura 1) arcos góticos em ruínas são
refletidos por um lago fabuloso e um
personagem contempla a paisagem..
A atitude contemplativa romântica é muitas
vezes representada nas paisagens virtuais. Nelas
o sentimento de sublimidade é despertado pela
vastidão do mundo em contraposição à
pequenez do ser humano. Além disso, a
natureza é reverenciada no romantismo, e a
contemplação possui o valor do misticismo, de
uma secreta adoração transferida para o
ambiente natural.
O fascínio que as montanhas exerciam sobre
os românticos pode ser verificado como parte
do imaginário da época, em escritores do
século 18, como Walpole e Gray, pelos
sentimentos abissais que evocavam o sublime e
o terrível. Relacionada ao caos, à ruína, à
catástrofe, a idéia de montanha para os
românticos também pode ser relacionada aos
abismos das paisagens virtuais quando
comparamos as pinturas de Cozens com as
paisagens de Guild Wars (Figura 2).
Com esses poucos exemplos já podemos
perceber como as paisagens virtuais analisadas
trazem para quem as frui um universo medieval
traduzido por valores românticos que, por sua
vez, são relidos pela contemporaneidade,
relegados ao universo ficcional e ao imediatismo.
Elas constituem o resultado de uma colagem
de elementos transformados e idealizados pela
estética romântica, que nos mundos virtuais
adquirem propósitos de evasão atualizados, já
que deixam de ser uma ideologia e passam a
configurar-se apenas como lazer. Desse modo
o espaço virtual passa a representar valores
que o homem quer vivenciar. A visualidade
neles presente irá instaurar para gerações
futuras a percepção estética da natureza, dada
pelo viés cultural.
Por meio das paisagens virtuais, em que há
idealização da Idade Média e da natureza,
muitos usuários buscam o acolhimento e a
vastidão, o espaço que lhes é negado quando
obrigados a viver em minúsculos apartamentos,
em centros urbanos sufocantes. No entanto,
sem a ideologia do romântico, que se sente
alijado e se revolta com sua condição, o homem
contemporâneo apenas sente-se impotente
diante do sistema que ao mesmo tempo o
aprisiona e o consola. Ele busca companhia e
novas vivências em espaços alternativos, assim
como violência e revolução em outras esferas
da realidade. No entanto os mundos virtuais online são dotados de características como a
interatividade, a comunicação e a construção.
Eles correspondem a um happening, possibilitam
a vivência e a criação de seus participantes pela
ação, pelo improviso, potencializando a
criatividade e a comunicação, e não só a
recepção e doutrinação destituídas de reflexão.
Assim, é também por meio da estética desses
mundos e do que eles proporcionam que os
sentimentos poderão ser compartilhados.
Neste artigo trabalharemos apenas com dois deles: os
significativos Guild Wars e The Lord of The Rings,, por
ambos possuírem aspectos e elementos pertinentes a
todos os demais.
2
Roleplaying Games são jogos narrativos inventados na década
de 1970, apresentados em forma de livro, em que o
jogar se desenvolve por meio de ações realizadas em um
mundo de fantasia, inventado pelos próprios jogadores.
Baseados em regras e descrições verbais, os jogadores
desenvolvem ações por intermédio de personagens por
eles assumidos.
3
Löwy, Michael; Sayre, Robert. Revolta e melancolia. O
romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1995.
4
Considera-se neste trabalho a expressão estética do
romantismo a determinação de uma tendência e uma
orientação de gosto que, absolutamente, não se
compreende em um delimitado espaço temporal, já que
se pode perceber sua sobrevivência nos dias de hoje na
própria cultura de massa.
4
Tais conceitos foram desenvolvidos inicialmente em 1757
pelo inglês Edmund Burke para definir esses tipos de
sentimentos, vinculados em especial à natureza. Sete
anos mais tarde Kant tem acesso à obra de Burke e
escreve Observações sobre o belo e o sublime, tomada
como referência por muitos românticos. No entanto, em
Kant existe uma tonalidade metafísica que reveste a
contemplação, que é também um modo de apreender a
natureza. Para ele, ao contrário de Hegel, a arte nunca
poderia rivalizar com a natureza. Foi a partir do
pensamento de Kant e Hegel que Schelling, entre outros
pensadores alemães românticos do século 18, disse
querer voltar a fruir e explorar a natureza. A natureza
para esses românticos não pode ser reduzida apenas aos
estados de espírito do homem, já que possui alma
própria, sendo nela reconhecido um valor místico. O
belo e a verdade coexistem na natureza sendo ambos,
como no medievo, um reflexo da divindade. No
entanto, para os românticos não é a verdade que institui
a beleza, mas o contrário. Eles se voltam para a beleza
natural como um local de refúgio, resgatando a unidade
do homem com a natureza por meio da arte, que
serviria como ligação entre um e outro. Assim, a
natureza e o misticismo nela investido, mais que um
fundamento para a arte seria um modo de acessar o
absoluto. As definições do belo e do sublime relidas pelas
teorizações da estética alemã e ligadas à arte, em especial
à pintura de paisagem, retornam à Inglaterra resgatadas
por Coleridge e Wordsworth, que travaram contato com
a cultura alemã do período.
6
Screenshot: captura de tela disponibilizada pela produtora do
mundo virtual online.
Martha Werneck é mestre em Artes Visuais pelo Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Este artigo resume parte de sua dissertação
de mestrado, intitulada Fantasia, romantismo e medievo nas paisagens de
mundos virtuais online, defendida em março de 2006 sob orientação do
professor doutor. Rogério Medeiros, da linha de pesquisa Imagem e
Cultura.
Notas
1
Os mundos virtuais online, mais exatamente os MMORPGs,
sigla que quer dizer massively multiplayer online roleplaying
games, são jogos para computadores pessoais,
constituindo versões eletrônicas derivadas dos chamados
Roleplaying Games. Para a realização deste trabalho foram
escolhidos mundos virtuais online com as seguintes
características: temática fantástico-medieval, tecnologia de
ponta com bons gráficos em 3D, produtoras com bom
histórico no mercado ou nas quais se perceba boa
equipe de criação, possibilidade de jogá-los no Brasil –
mesmo que por meio de servidores piratas. Dos web
sites oficiais desses jogos foram colhidas cerca de 800
imagens entre julho de 2003 e janeiro de 2006, estas
disponibilizadas como screenshots, ou seja, capturas de
telas que funcionam como propagandas, como cartõespostais dos mundos virtuais. Nessas imagens podem ser
notadas paisagens capturadas por um olhar de fotógrafo,
através das quais as produtoras visam transmitir um teor
de aventura, mistério, magia e deleite estético para os
futuros jogadores. Foram pesquisados para a dissertação
os seguintes jogos: Dark Age of Camelot; Darkfall;
EverQuest II; Guild Wars; Line Age II; Sphere; World of
WarCraft e The Lord of The Rings baseado na obra de
Tolkien e em versão beta, ou seja, em fase de teste,
embora disponibilize screenshots online desde 2004.
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