Revista Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011

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Revista Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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SCRIPTA UNIANDRADE
Volume 9 Número 1 Jan. - Jun. 2011
ISSN 1679-5520
Publicação Semestral da Pós-Graduação em Letras
UNIANDRADE
Reitor: Prof. José Campos de Andrade
Vice-Reitora: Prof. Maria Campos de Andrade
Pró-Reitora Financeira: Prof. Lázara Campos de Andrade
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão:
Prof. M.Sc. José Campos de Andrade Filho
Pró-Reitora de Planejamento: Prof. Alice Campos de Andrade Lima
Pró-Reitora de Graduação: Prof. M.Sc. Mari Elen Campos de Andrade
Pró-Reitor Administrativo: Prof. M.Sc. Anderson José Campos de Andrade
Editoras: Brunilda T. Reichmann e Anna Stegh Camati
CORPO EDITORIAL
Anna Stegh Camati, Brunilda T. Reichmann
Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo
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Dahglian (UNESP), Prof. Dra. Laura Izarra (USP), Prof. Dra. Clarissa Menezes Jordão
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Oliveira (UFMG), Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Prof. Dra.
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Dra. Simone Regina Dias (UNIVALI), Prof. Dra. Claus Clüver (Indiana University),
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Projeto gráfico, capa e diagramação eletrônica: Brunilda T. Reichmann
Revisão: Anna S. Camati, Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo,
Brunilda T. Reichmann
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Scripta Uniandrade / Brunilda T. Reichmann / Anna Stegh
Camati – v. 9 - n. 1 – jan.-jun. 2011
Curitiba: UNIANDRADE, 2011
Publicação semestral
ISSN 1679-5520
1. Linguística, Letras e Artes – Periódicos
I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
– Programa de Pós-Graduação em Letras
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SUMÁRIO
Apresentação
06
DOSSIÊ TEMÁTICO: INTERTEXTOS / INTERARTES / INTERMÍDIAS I
Literaturas, artes e mídias: que se entende por arte, hoje?
10
Solange Ribeiro de Oliveira
Hipertextualidade x hipermidialidade: a viagem de "O balanço"
28
Thaïs Flores Nogueira Diniz
A pele, o corpo, o corte: suporte e temática para literatura, cinema
e outras mídias
45
Maria Angélica Amâncio Santos
Referências intermidiáticas em Invertendo os papéis, de David Lodge
57
André Soares Vieira
O sensível cinemático: notas sobre eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato
68
João Guilherme Dayrell
Música e poesia em Mário de Andrade: ainda o caso Paulicéia desvairada
81
Flávio Barbeitas
Diálogos interartes na Pauliceia: melopoética e polifonia cultural
em Mário de Andrade
96
André Luís Gomes
Gravuras prolépticas: um diálogo midiático entre o prólogo
e a diegese do filme Os outros
120
Brunilda T. Reichmnann
O salto de Alice em transposição intersemiótica e intertextual: das ilustrações de
John Tenniel à releitura de Margaret Atwood
142
Sigrid Renaux
Texto, performance e filme: uma leitura intermidiática
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
4
de Trono de sangue/Macbeth, de Antunes Filho
Da pintura ao texto teatral: discursos intermidiáticos em
Quando despertamos de entre os mortos, de Henrik Ibsen
167
Liana de Camargo Leão
Mail Marques de Azevedo
187
Anna Stegh Camati
Dossiês temáticos das próximas edições
200
Normas para apresentação de trabalhos
201
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Apresentação
Este número da Scripta Uniandrade inaugura uma nova fase da revista:
de anual passa a ser semestral, com publicação em julho e em dezembro de
cada ano. Oferecemos, portanto, aos nossos colaboradores e leitores a
primeira da série de revistas semestrais a serem publicadas.
O dossiê da Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011, Intertextos /
Interartes / Intermídias I, reune contribuições de especialistas que se
destacam nessas áreas de saber, assim como artigos de pesquisadores que,
fascinados pela hibridização de linguagens em produções plurimidiáticas,
voltam-se para esse campo de estudos.
O artigo de abertura da revista, intitulado “Literaturas, artes e mídias:
o que se entende por arte hoje?”, de Solange Ribeiro de Oliveira, introduz
a polêmica sobre a dificuldade de se conceituar arte, sobretudo na
contemporaneidade, bem como o embate subjacente ao uso da expressão
“Estudos de Intermidialidade” em substituição a “Estudos Interartes”. De
acordo com a autora, a nova nomenclatura contorna o problema da
definição: pode-se questionar o status artístico de certas manifestações culturais
da pós-modernidade, mas não o fato de serem produtos midiáticos, o que
comprova o acerto do termo “intermidialidade” para o estudo das relações
entre artes e mídias. Nesse sentido, o artigo discute a distinção entre objeto
artístico e não-artístico, segundo a proposta do crítico e filósofo Arthur C.
Danto. O artigo seguinte, intitulado “Hipertextualidade x hipermidialidade:
a viagem de ‘O balanço’”, de Thaïs Flores Nogueira Diniz, amplia o
conceito de hipertexto, termo cunhado por Gérard Genette, e se propõe a
analisar a cadeia semiótica que une obras pictóricas, literárias e
cinematográficas dos séculos XVIII, XIX e XX a uma instalação/escultura
contemporânea. Trata-se de um processo de variação sobre um mesmo
tema que a autora define como transm(e/i)dialização. O terceiro artigo, que
versa sobre intermidialidade em sentido amplo, intitulado “A pele, o corpo,
o corte: suporte e temática para literatura, cinema e outras mídias”, de
Maria Angélica Amâncio Santos, reflete sobre as diferentes óticas e
entrecruzamentos de leitura do corpo e da pele como suporte e tema para
as várias mídias, considerando-se desde tatuagens, pergaminhos até obras
que levam essa temática ao extremo, como castigos e “dermografias”. O
corpus do artigo inclui essencialmente o filme O livro de cabeceira, de Peter
Greenaway, e o conto “Les suaires de Véronique”, de Michel Tournier,
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além de incluir breves considerações críticas sobre o trabalho da artista
plástica Nicola Constantino e os textos A alma encantadora das ruas, de João
do Rio, e Na colônia penal, de Franz Kafka.
Quatro ensaios discutem criações de textos intermidiáticas na
interface dos múltiplos meios de construtividade. O artigo de André Soares
Vieira, intitulado “Referências intermidiáticas em Invertendo os papéis, de David
Lodge”, explora o entrecruzamento de mídias em um texto, como o
emprego de técnicas do cinema e de outros gêneros literários (romance
epistolar) e extraliterários (notícias de jornal, panfletos e manifestos). Segundo
o autor, o emprego das mais diferentes técnicas oriundas da cultura midiática,
aliado ao uso de gêneros já consagrados pela tradição, faz do romance de
David Lodge um grande mosaico de referências intermidiáticas. O trabalho
objetiva, portanto, mapear o modo como essas referências implicam um
cruzamento de fronteiras genéricas e discursivas que descentram o próprio
fazer artístico ao permitirem a inserção de ligações e arranjos inesperados
entre componentes narrativos distintos. O segundo artigo, de João
Guilherme Dayrell, intitulado “O sensível cinemático: notas sobre eles eram
muitos cavalos, de Luiz Ruffato”, busca delimitar, no romance de Ruffato, o
que resta da mediação pelo cinema, das imagens que compõem o sensível
contemporâneo. Dayrell atenta para o contexto no qual se insere o referido
texto – a cidade de São Paulo no ano de 2000 – para a descrição da vida
abjeta e para a composição do texto em 70 fragmentos, que se organizam
como um rizoma e que intercalam a abordagem de uma situação social,
enunciados recortados de jornal e variados simulacros. O ensaio de Flávio
Barbeitas, intitulado “Música e poesia em Mário de Andrade: ainda o caso
da Pauliceia desvairada”, demonstra como a música e a noção de musicalidade
têm lugar de destaque na teorização poética de Mário de Andrade. Segundo
o autor, estudos aprofundados e mais especificamente voltados para a relação
entre música e palavra tonaram-se cada vez mais raros na apreciação crítica
da obra de Mário de Andrade que, quase sempre, se detêm na descrição
das ideias deste autor. Este texto procura ocupar aquela lacuna, buscando,
por meio de exemplos colhidos na Paulicéia desvairada, iluminar a poesia de
Mário de Andrade com um foco eminentemente musical. O artigo, escrito
por Beatriz Lopes e André Luís Gomes, intitulado “Diálogos interartes
na Pauliceia: melopoética e polifonia cultural em Mário de Andrade”, voltase, também, para a obra de Mário de Andrade. O estudo objetiva mapear
as interações culturais entre a literatura e outras linguagens artísticas, a partir
de textos críticos, anotações e crônicas jornalísticas de Mário de Andrade
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que se fundaram não só nas relações entre Cultura e Espaço, ou seja, de sua
íntima interação com a cidade de São Paulo e com o processo de
modernização no início do século, mas também em sua “escuta aberta”
singular e crítica das diversas manifestações artísticas da época, em particular,
da música popular brasileira, em suas pesquisas.
A interrelação entre narrativas e gravuras é abordada pelos artigos
de Brunilda T. Reichmann e Sigrid Renaux. O primeiro, intitulado
“Gravuras prolépticas: um diálogo midiático entre o prólogo e a diegese
do filme Os outros”, estabelece um diálogo midiático entre a abertura de Os
outros (2001), de Alejandro Amenábar, com o desenrolar dos acontecimentos
no filme. Segundo a autora, Os outros recria e subverte as características das
“histórias de fantasmas”, enquanto capta a ressonância do filme Os inocentes
(1961), de Jack Clayton, adaptação da monumental novela A volta do parafuso
(1898), de Henry James. Este artigo limita-se, no entanto, a analisar as duas
cenas e as oito gravuras da abertura do filme de Amenábar (sobre as quais
são projetados os créditos) que prenunciam o desenvolvimento do filme,
dialogam com a atmosfera e a diegese e estabelecem uma relação especular
com as mesmas. O segundo artigo, de Sigrid Renaux, intitulado “O salto de
Alice em transposição intersemiótica e intertextual: das ilustrações de John
Tenniel à releitura de Margaret Atwood”, a partir das abordagens teóricas
de Clüver, Moser e Genette, apresenta uma leitura intersemiótica do salto
de Alice, ao passar do mundo da realidade para dentro do mundo do
espelho, como descrito por Carroll e ilustrado por John Tenniel. O artigo
também discute a releitura que Margaret Atwood faz do mesmo episódio,
em Negotiating with the Dead (2002). Segundo a autora, a contraposição dessas
duas artes e visões de mundo confirma a inesgotável politextualidade do
texto-fonte e, como o ato de interpretação e reação crítica, é moldado
através das respectivas convenções de recepção vigentes.
Os dois últimos ensaios tratam de processos intermidiáticos em
uma produção cênica e um texto teatral, respectivamente. Liana de
Camargo Leão e Mail Marques Azevedo, em “Texto, performance e filme:
uma leitura intermidiática de Trono de sangue/Macbeth, de Antunes Filho”,
focalizam as relações intermidiáticas entre texto, performance e filme na
produção Trono de sangue/Macbeth, levada à cena pelo Centro de Pesquisa
Teatral, em 1993, com direção de Antunes Filho. A referência óbvia ao
texto-fonte e ao celebrado filme de Akira Kurosawa (e, ulteriormente, ao
teatro Noh japonês) sugere a abordagem analítica: examinar o produto de
mídias diferentes, com base em determinado trabalho individual, de acordo
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com seus meios específicos (RAJEWSKI, 2006). Estabelecem-se paralelismos
entre os três tipos de mídia quanto a técnicas de ambientação (cenários,
figurinos e máscaras) e de performance. As autoras enfatizam o estreito
relacionamento de Antunes Filho com o cinema e, em particular, com a
obra de Kurosawa, fruto de sua admiração pela cultura japonesa. O artigo
de Anna Stegh Camati, intitulado “Da pintura ao texto teatral: discursos
intermidiáticos em Quando despertarmos de entre os mortos, de Henrik Ibsen”,
discute a apropriação, do dramaturgo norueguês, de imagens simbólicas
do quadro Esfinge – Três estágios da mulher (1894), de Edvard Munch, para
explorar a natureza contraditória das personagens e a dinâmica das relações
afetivas entre elas em sua última peça. Segundo a autora, nesse texto, de
cunho autobiográfico, Ibsen cria um alter ego, o escultor Arnold Rubek,
com o intuito de lançar luz sobre a sua própria procura por linguagens para
a representação do novo sujeito da modernidade que emerge no limiar do
século XX. Camati explicita como a linguagem visual assume funções
estético-temáticas e torna-se o impulso gerador da criação artística.
Neste número da revista, procurou-se privilegiar textos
representativos sobre os fenômenos da intertextualidade, interartialidade e
intermidialidade, observados sob diversas óticas e abordagens, para se
repensar os estudos literários na contemporaneidade. No número 2 do
volume 9, outros artigos sobre essas áreas de estudo serão publicados.
Nesse sentido, espera-se que o espaço de discussão da Scripta Uniandrade
estabeleça um frutífero diálogo entre artes, mídias e múltiplos saberes.
As editoras
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LITERATURAS, ARTES E MÍDIAS:
QUE SE ENTENDE POR ARTE, HOJE?
Solange Ribeiro de Oliveira
[email protected]
Resumo: O texto comenta a dificuldade
de se conceituar arte, sobretudo no
período contemporâneo, bem como o
uso da expressão “Estudos de
Intermidialidade” em substituição a
“Estudos Interartes”. A nova nomenclatura contorna o problema da definição:
pode-se questionar o status artístico de
certos produtos culturais da pósmodernidade, mas não o fato de que
utilizam mídias, o que demonstra a
conveniência do termo “intermidialidade”
para o estudo das relações entre artes e
mídias. No mesmo sentido, o artigo
discute a distinção entre objeto artístico e
não-artístico, segundo a proposta do
crítico e filósofo Arthur C. Danto. Chegase, finalmente, à sugestão do poeta/
crítico Ferreira Gullar: podemos estar
testemunhando o nascimento de uma
nova arte que é o cinema.
Abstract: The text comments on the
difficulty of defining art – especially in
the contemporary period – which
underlies the substitution of the
expression “Studies of Intermediality”
for “Interart Studies”. The new
nomenclature evades the problem of
definition: one can, in fact, question the
artistic status of certain postmodern
cultural products, but never that they
involve the use of media, hence the
suitability of the word “intermediality”
for the study of the relations between
arts and media. In the same line, the paper
discusses the distinction between artistic
and non-artistic objects, as proposed by
the critic and philosopher Arthur C.
Danto, and ends up with the suggestion
of the Brazilian poet/critic Ferreira Gullar:
we may be witnessing the birth of a new
art, the cinema.
Palavras-chave: Conceito de arte. Estudos Interartes. Estudos de Intermidialidade.
Key words: The concept of art. Interart Studies. Studies of Intermediality.
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apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo.
Paulo Leminski
No período contemporâneo a simples enunciação da palavra “arte”
representa um desafio, dada a crescente dificuldade em conceituar esse termo.
Como decorrência, um número apreciável de teóricos, entre os quais Claus
Clüver (1997, p. 37-55), vem adotando a expressão “Estudos de Intermidialidade”, ou “Estudos Intermidiáticos”. Criada para substituir o nome atribuído
à área de pesquisa antes denominada “Estudos Interartes”, ou “Literatura e
as outras artes”, a nova nomenclatura contorna o problema da definição,
substituindo a palavra “arte” pelo termo incontroverso, “mídia”. Isso porque
o estudo da intermidialidade privilegia a análise de uma vasta produção –
sobretudo a realizada a partir dos anos 1960 – rotineiramente rotulada
como “arte”, mas que alguns críticos hesitam em aceitar como tal. Nesse
contexto, escreve Clüver (2001, p. 338-339):
Enquanto se considerar que a distinção entre “arte” e “não arte” ainda tem
alguma função, o melhor será definir uma “obra de arte” como um texto,
composto de acordo com um determinado sistema sígnico, que a
comunidade interpretativa autoriza ou nos obriga a ler como uma “obra de
arte”. Esta concepção é uma aplicação mais ampla da consciência de que o
estatuto de “literário” não é inerente a certos textos ou classes de textos
verbais, mas lhes é conferido pelos seus leitores. Uma das peças de arte mais
discutidas no nosso século é o urinol, datado, “assinado” (com o nome do
fabricante) e exibido por Marcel Duchamp em 1917 como Fountain. Depois
da fase inicial de ridicularização e rejeição, a discussão em torno do objeto
tem sido dominada pela questão do que realmente faz dela uma obra de
arte: o próprio objecto exibido, (...) o gesto de seleccionar, assinar e exibir o
objecto numa mostra de arte, ou a proposta e aceitação do próprio conceito
de “ready-made”. Um discurso sobre (as) arte(s) só pode ser viável e vital se
for capaz de acomodar, também, fenômenos contemporâneos. A existência
de “textos achados”, oferecidos e aceites como “arte” demonstra como se
tornou difícil definir o objecto de tal discurso.
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Como se vê, tudo gira em torno da conceituação de arte, hoje
mais que nunca problemática1. Nesse sentido, a propósito da produção
atual, lembro os comentários pouco lisonjeiros do crítico Jorge Coli, sobre
a Bienal de Veneza de 2005:
A arte, tal como é concebida hoje, depende das instituições e de um discurso
autorizado que, num passe de mágica, podem atribuir a qualquer objeto,
gesto, ou mesmo ao nada, a categoria artística. É verdade que, num museu
ou numa galeria, tudo isso começa a emitir novos sentidos. A caixa de
sabão em pó, a roda de bicicleta, adquirem então poderes misteriosos...
(COLI, 2005, p. 4)
As palavras de Coli poderiam aplicar-se a um sem número de
criações contemporâneas. Elas deixam perplexa boa parte do público,
especialmente os amantes da arte criada até o Modernismo. Não são poucos
os partidários da opinião de Coli, inclusive o crítico Robert Hughes, para
quem a arte existe primordialmente para deliciar os olhos e o espírito. Não
seria fácil reconhecer esses objetivos em certos objetos apresentados como
artísticos, exemplificados, por exemplo, pela arte abjeta, pela body art, ou
por determinadas performances (OLIVEIRA, 2006, p. 143-158). Por mais
que seus cultores lhes atribuam funções retóricas relevantes – geralmente a
denúncia a aspectos indesejáveis da cultura contemporânea – inúmeras
criações atuais continuam desafiando o gosto tradicional. Na literatura, saltam
à mente exemplos da arte abjeta, ou da produção voltada para a exploração
da dor e da violência. Lembro aqui a poesia de Alexandre O’Neill, autor
português, e do brasileiro Glauco Mattoso, auto-intitulado “podólatra”,
memorável, entre outras razões, pelo culto à sujeira. Ocorrem-me também
títulos sintomáticos, como Monturo, revista paulista na qual colaboram os
poetas Tarso de Melo, Kleber Montovani e Fabiano Calixto. Na literatura
dramática de expressão inglesa, lembro a produção de Edward Bond,
especialmente sua peça Saved, que inclui uma cena de apedrejamento de um
bebê.
Nas artes visuais mostra-se ainda mais fácil encontrar exemplos
de criações duvidosas, às vezes banais. Parece-me ser esse o caso de Little
Lights (Luzinhas), de Jac Leirner, artista brasileiro, com obras no MoMa,
Guggenheim, Hishorn e Walker Art Center. Exibida na Bienal de 2006, a
instalação constava de 4 quilômetros de fio de cobre para acender uma
única lâmpada de 100 watts. Não faltam, por outro lado, criações bizarras,
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como El cardenal demuestra que es simplemente humano (2000), de Andrés Serrano,
representação de um cardeal em pose grotesca, com o manto levantado,
em pleno ato de defecar. Lembro ainda certos happenings e performances
violentos, envolvendo corpos reais, vivos, visando flagrar ou simbolizar o
traumático. Nessa linha, em uma de suas performances, o australiano Stelarc
exibiu o próprio corpo nu, suspenso, mantido no ar apenas por enormes
anzóis enfiados na pele e atados a fios amarrados no teto de uma galeria de
arte. Indubitavelmente, tais obras apresentam aspectos traumatizantes, sem,
pelos critérios tradicionais, incluir atributos que poderiam justificá-las como
arte: transcender o objeto imediato, atingir o âmago de nossa sensibilidade
e conduzir a um conhecimento mais profundo de nossa natureza.
Para avaliar essas e outras espécies de criações atuais, negando-lhes
ou conferindo-lhes a categoria de arte, há quem recorra ainda ao estético,
sujeito a constante redefinição. Entretanto, na pós-modernidade, o estético,
tradicionalmente ligado à relevância, à transcendência poética, e ao apuro
formal, vem sendo veementemente questionado. A possibilidade de se
usarem suportes tecnológicos associa-se ao fim de artesanato nas artes
(SANTAELLA, 2003, p. 152). O fato vem suscitando intermináveis debates,
como, por exemplo, no curso intitulado Art and Incompetence (Arte e
Incompetência) realizado em 2005 na Tate Gallery de Londres. Coordenada
pelo músico e escritor Seth Kim-Cohen, a série de palestras discutiu a negação
da técnica na arte contemporânea. O site da instituição, indicando a
competência, o “saber fazer” artístico, como tema do curso, situou-o na
raiz de todas as questões sobre o valor estético:
Que acontece quando os artistas dão as costas à técnica e abraçam a
incompetência? O curso oferece uma versão da história da arte moderna e
das práticas contemporâneas – nas artes visuais, na literatura e no cinema –
a qual pode ser lida como uma guerra entre a postura “certa” e a “errada” (...)
incluindo a discussão dos pressupostos teóricos subjacentes às abordagens
que descartam a necessidade da competência...2
Dispensada a competência, tampouco se requer que o artefato
encarne um significado profundo, e, menos ainda, que seja belo, em qualquer
sentido desse termo controverso. Para os adeptos da nova arte, chega a ser
suspeito esperar que o trabalho fale à emoção ou produza uma espécie de
revelação. Segundo certos teóricos, essa visão tradicional tem hoje um
significado meramente histórico: a arte, como a conhecemos no passado,
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morreu. Já o declarara Hegel em 1817, por julgar que o sentimento e a
intuição, então associados à noção de arte, não propiciam acesso ao
conhecimento, só alcançável através de conceitos. Um século depois, em
1920, um pôster de autoria de Raoul Hausmann, Hearfield e Gosz retomava
a proclamação de Hegel, exibindo os dizeres: “A arte morreu”.
A propósito, argumentou-se que decretar a morte da arte foi apenas
uma tática de guerra contra a hegemonia da pintura e da escultura. Para os
partidários dessa opinião, os seguidores de Hegel pretendiam apenas
demonstrar que, considerada outrora a arte visual por excelência, a pintura
não vai além de imagem, um dos tipos de mediação possíveis. Para outros,
a arte teria morrido, sim, mas por suas próprias mãos, num suicídio cometido
pelas vanguardas do início do século XX. Elas abriram caminho para a
crise da representação, o fim das posturas e valores estéticos legados pelo
Renascimento. Radicalizava-se, desse modo, uma prática antecipada por
vários artistas. Na pintura, Van Gogh (1853-1890) já se libertara da fidelidade
às cores dos objetos. Em 1918, o quadrado branco sobre fundo branco,
pintado por Kasimir Malevich, marca uma espécie de grau zero da pintura,
seu fim como arte da representação. Especialmente a partir de 1917, quando
Marcel Duchamp apresenta à Sociedade de Artistas Independentes o
mictório de bar que denominou Fonte, os ready-mades trazem objetos banais
para o mundo da arte.
Mais tarde, em meados da década de 80, paradoxalmente, no
momento em que a pintura, no seio da neo-vanguarda, ressurgia triunfante
graças à explosão do mercado financeiro nos Estados Unidos, Hans Belting
dedica um livro inteiro à indagação: O fim da história da arte? (2006). Dez
anos depois, como se a pergunta já tivesse sido respondida afirmativamente,
Belting publica uma edição ampliada de seu livro e retira o ponto de
interrogação do título. Também nos anos 80, Berel Lang organiza uma
coletânea com respostas de vários autores a um ensaio denominado “O
fim da arte” (1984). O artigo foi assinado por Arthur Danto, filósofo e
crítico contemporâneo, autor de trilogia constituída pelos volumes
sugestivamente intitulados, The Transfiguration of the Commonplace (A
transfiguração do prosaico), After the End of Art (Após o fim da arte) e The Abuse of
Beauty (O insulto à beleza). Esses textos discutem o final do modernismo nos
anos 60 e a emergência de outra etapa, o pós-modernismo, marcado pela
falta de unidade estilística e pela falência de critérios estéticos.
Entretanto, decorrido quase um século após o gesto inaugural de
Duchamp, não se pode dizer que a pintura e a arte tenham morrido.
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Morreram (ou arrefeceram) o paradigma artesanal, a grande narrativa
iniciada com a publicação, em 1550, de Vida de pintores, de Giorgio Vasari,
que iniciou a história da sucessão de estilos visando a diferentes formas de
representação do mundo concebido pelo artista. Fica no ar a pergunta
formulada por Benedito Nunes: “É ela [a arte] ainda uma necessidade para
nós? Ou um momento já passado do desenvolvimento humano?” (NUNES,
1989, p. 107). O próprio Nunes responde:
A nova sociedade burguesa, leiga e moderna, não estimula uma concepção
harmoniosa e unificadora do mundo. (...) Nesta sociedade a técnica não só
prepondera, como se reconhece em constante e vertiginosa transformação,
(...) Porém não me parece razoável, neste contexto de transformação histórica
e estética, afirmar a morte da arte, quer entendendo-a como “sucedânea da
religião”, como diz Hans Sedlmayr, ou superada por esta, como acredita
Hegel. O que é ultrapassado é todo um mundo precedente, talvez
harmônico, prenhe de certezas, mas já agora obsoleto para ser vivido.
Culturalmente, em nossos dias, fica desacreditada a idéia de uma verdade
absoluta, ou de um centro regulador da história. (...) Como diria o poeta,
“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar. E que o ar do
copo busca ocupar o lugar do vinho”. Talvez não tenhamos mais o vinho
da certeza. Em contrapartida estamos mergulhados na embriaguez do
mistério, fonte de toda a criação. (NUNES, 1989, p. 188)
Vivemos, ademais, um momento de total pluralismo. A arte pode
trilhar incontáveis caminhos, nenhum deles privilegiado ou capaz de ser
resumido numa definição. Faculta-se ao artista revisitar o passado, usá-lo
como repertório apropriável, disponível para infindáveis transcriações. Sob
a forma de pastiche ou paródia, estimula-se a utilização de velhos
paradigmas, numa tolerância irrestrita, que nada exclui. Exemplar dessa
tendência, a obra de Mimmo Paladino, exemplificada pelo óleo Sobre a orla
da tarde, e analisada por Ricardo Fabrini (2002, p. 29 ss.), combina, às vezes,
num só quadro, diferentes referências à arte do passado, como estilemas de
Picasso, de Brancusi e dos expressionistas alemães. Optando pelo caminho
oposto, o artista pode explorar formas novas, o vídeo, a holografia, a arte
computacional, a instalação, a performance, a body art, o pop e a op art, a land
art, a sky art, o minimalismo, a arte concreta e neoconcreta, a arte povera, a
arte comportamental e processual, a bioarte, a nova escultura, o conceptualismo,
a arte espacial... A respeito do caráter efêmero de algumas dessas formas e
de seus corolários artísticos, Haroldo de Campos (1975) comenta:
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A arte contemporânea, emancipada (...) das pressuposições do naturalismo
(...) produzida no quadro de uma civilização eminentemente técnica, em
constante e vertiginosa transformação, parece ter incorporado o relativo e o
transitório como dimensão mesma de seu ser. (...) Este novo paradigma
abre espaços (...) para o questionamento da perspectiva e da figuratividade
na pintura, o advento da música atonal, o fim da proporção verossímil na
escultura, para, na literatura, o surgimento do romance polifônico, a
carnavalização dos gêneros, o estilhaçamento do tema e a relativização do
tempo, Enfim, a arte questiona seus próprios princípios. ( p. 15, 187)
Retomando o tema da morte da arte, Arthur Danto, em After the
End of Art (1997), propõe substituí-lo pela ideia de fim, não da arte em si,
mas da “Idade da Arte”. Endossando-a, cita a argumentação de Hans Belting.
Em seu livro Likeness and Presence: A History of the Image before the Era
of Art (1966), Belting sustenta que, de fins do império romano até cerca de
1400 D.C., quando o conceito de arte ainda não emergira na consciência
coletiva do ocidente cristão, as imagens sacras hoje encontradas em museus
não desempenhavam uma função estética, mas apenas religiosa, a serviço
do culto. Só na Renascença, quando A vida dos pintores, de Vasari, inaugura
sua história, cristaliza-se a ideia de arte. Isso não significa, é claro, que a era
da arte tenha começado abruptamente em 1400, data do texto de Vasari.
Nem que se tenham confirmado as profecias a respeito e a arte morrido
subitamente em meados dos anos 80 do século XX, quando teóricos radicais
começam a falar da morte da pintura. Para Danto, esse é apenas um
julgamento crítico. Não desaparece a arte, apenas declinam algumas práticas
e certo tipo de discurso sobre ela, já que as grandes narrativas mestras, que
definiram a arte tradicional, não se sustentam na contemporaneidade.
Diante desse panorama, a conceituação de arte torna-se a tal ponto
problemática que, para evitá-la, como já mencionamos, a denominação
“Estudos Interartes” vem sendo substituída por “Estudos de Intermidialidade”.
Estes não exigem que os textos analisados sejam lidos como obras de arte.
Podem ser tomados simplesmente como produtos culturais, desprovidos
de atributos intrínsecos, sempre sujeitos a leituras mutáveis, em função da
passagem do tempo ou da subjetividade do observador. Refuncionalizados,
retirados de seu contexto, artefatos dificilmente distinguíveis dos objetos
mais prosaicos exibem-se em galerias de arte, pouco importando os artefatos
em si, em favor do processo e dos conceitos a eles associados. Aos readymades de Duchamp sucedem-se, a partir dos anos 1960, as caixas de bombril
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de Andy Warhol e infindáveis obras semelhantes. Em manifesto de 1965,
George Maciunas, líder do movimento Fluxus, que postula o fim da distinção
entre arte e vida, propõe excluir do conceito de arte quase todos os atributos
tradicionais: técnica, originalidade, relevância, inspiração, complexidade,
profundidade, permanência... Na música, John Cage busca eliminar a
oposição entre ruído e som musical. Na dança, Yvonne Rainer, coreógrafa
do Judson Dance Group, rejeita o espetáculo, a virtuosidade, o glamour, a
imagem da estrela, o efeito de algo mágico, transformador.
No fim da década de 1960, com o advento da arte conceitual, já
nem se julga necessária a existência ou permanência de um objeto material.
Pois, mesmo quando existe, ele é menos importante que o conceito evocado:
pode ser descartável, como em inúmeras instalações, ou até constituir-se
apenas de fugazes pontos de luz, fluxos e refluxos instáveis de energia, na
arte eletrônica. Em 1969, no artigo “A arte depois da filosofia”, texto básico
da arte conceitual, Joseph Kosuth leva ao limite o postulado da dissolução
do objeto, ao afirmar que “a arte é a definição da arte”.
A arte confunde-se, pois, com sua própria filosofia. A postura está
implícita até nos catálogos das exposições, como revela o material oferecido
ao público em certos eventos: o catálogo do Show de Informação, realizado
em 1970 no Museu de Arte Moderna de Nova York, incluiu uma lista de
textos teóricos sobre o pluralismo e a dificuldade de conceituação da
produção contemporânea.
Eliminados os antigos critérios de avaliação e seleção tradicionais,
proliferam situações outrora inimagináveis. A Bienal do Whitney Museum de
Nova York, por exemplo, abrigou em 2002 uma performance do grupo
Práxis, que oferecia ao público abraços, lava-pés, notas de dólar, fixação de
adesivos e beijos. Entre as “obras” mais populares disponibilizou-se uma
gravação feita em 1999 com os ruídos do furacão Floyd no exterior do
91º andar da Torre 1 do World Trade Center. Segundo Arthur Danto, essa
abertura radical do sentido de “arte”, incluindo “criações” indistinguíveis
de atos do cotidiano, poderia qualificar de performance a tentativa de
assassinato praticada por Valerie Solanas contra Andy Warhol em 1968. A
alegação não seria muito diferente da do compositor Karlheinz Stockhausen,
que considerou o ataque terrorista ao World Trade Center, em 11 de
setembro de 2001, “a maior obra de arte jamais vista”.
Atingimos um estágio de frouxidão conceitual compatível com a
postura radical de Joseph Beuys. Para o artista alemão (1921-1986), a
sociedade constitui um vasto bloco, onde todos somos artistas. Esvaziada a
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questão conceitual, pode-se igualmente argumentar que, descartada a
especificidade do artista, ninguém o é. É o que conclui Ferreira Gullar: “A
arte democratizou-se, isto é, ninguém é artista” (2003, p. 124). Independentemente da qualidade do trabalho, torna-se possível considerar obra de arte
qualquer texto que a comunidade artística aceite como tal. Na prática, a
aceitação acaba dependendo de um grupo ou instituição socialmente
autorizados a validá-la, donde o imenso poder conferido ao curador,
sucessor, mutatis mutandis, dos antigos mecenas. Emerge aí a questão do
poder, que nunca esteve ausente do mundo da arte, mas cujo eixo se desloca,
do trono ou do altar, para as grandes instituições. Paradoxalmente, sendo
essas instituições manipuladas pelas elites, desafia-se o princípio
aparentemente democrático de que “todo mundo é artista”.
Nenhuma dessas considerações elimina os problemas vinculados
à existência da nova arte. “Em cada obra de arte que se produz está em
jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a matá-la ou
fazê-la existir”, afirma Benedito Nunes (1989, p. 120). Resta, sobretudo, a
dificuldade de distinguir o objeto artístico do não-artístico. A questão
continua a impor-se aos teóricos, entre os quais destaco Arthur Danto. O
filósofo rememora o apagamento da distinção entre arte e não-arte,
especialmente a partir de 1917, com a apresentação da Fonte de Marcel
Duchamp. Não sem razão, em 2004, por ocasião da concessão do prêmio
Turner em Londres, um grupo de 500 especialistas elegeu Fonte a obra de
arte mais influente de todos os tempos. A partir dela, permanece a
possibilidade de se apresentarem como arte os objetos mais variados, às
vezes relativos a grupos culturais distintos. Esse tipo de criação é discutido
por Danto (1997), que, a respeito, cita o evento denominado Cultura em
Ação, realizado em 1993, no Instituto de Arte de Chicago. Nessa ocasião
cada grupo, ao reivindicar seu direito à diferença, apresentava sua própria
arte (“an art of their own”). Em tais casos, o público mais diretamente
visado constitui-se de uma comunidade definida por interesses ligados a
questões raciais, econômicas, religiosas, étnicas, nacionais ou de gênero. Por
essa razão, a produção artística pode alojar-se num museu de um tipo
particular, voltado para um público específico. Assim se apresentam o Jewish
Museum (Museu Judaico) de Nova York e o National Museum of Women in the
Arts (Museu Nacional de Mulheres Artistas), de Washington. Segundo seus
entusiastas, esses espaços opõem-se à instituição tradicional, afinada com as
classes dominantes. Não se pode, entretanto, deixar de notar que a existência
desses mesmos museus continua dependendo do aval dos detentores do
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poder – um dos paradoxos que sempre rondaram a arte subversiva. Ela
não escapa aos esquemas internacionais de galerias de arte, revistas de arte,
bienais, envolvendo os mais variados interesses – algo definido por Ferreira
Gullar como “concorrência estético-comercial”, responsável pelo que o
poeta denomina de “desgovernada carreira vanguardista” (2003, p. 125).
Há que considerar aqui outro aspecto da criação contemporânea:
diversamente de toda arte criada entre 1400 e o Modernismo, seu espaço,
como nas performances, já não é primordialmente o museu, que,
alegadamente, não oferece o desejado contato direto e imediato com o
público. Um exemplo bem ilustrativo dessa tendência foi a exposição da
bienal do Whitney Museum em 1993. Tendo apresentado a obra de apenas
sete pintores, foi realizada fora do edifício. Exemplifica-se, assim, uma tripla
transformação: na criação do objeto, nas instituições dedicadas à arte e no
público-alvo.
Continua, entretanto, em suspenso a definição de obra de arte.
Contrariando pressupostos de teóricos radicais, Danto (1997) tenta apontar
condições mínimas para distinguir o objeto artístico do não-artístico.
Contestando os que, como Deleuze, negam a necessidade de um sentido,
em favor da pura visualidade do objeto artístico, o filósofo cita a exigência
de um conteúdo semântico, encarnado num objeto material, que ligue esse
objeto a seu contexto. Assim, o que faz de um texto uma obra de arte é
externo a ele. Danto exemplifica sua distinção com Untitled ou Perfect Lovers
(Amantes perfeitos), criada em 1991 por Felix Gonzáles-Torres, em memória
do amante morto. A obra consiste em dois relógios idênticos (o objeto
material), mostrando a mesma hora. São relógios comuns, fabricados em
série, semelhantes aos usados em cozinhas ou salas de aula contemporâneas.
Chamam a atenção pelo título, “Amantes perfeitos”, que vincula o objeto
material a um conteúdo semântico. Segundo Danto, Gonzalez-Torres criou
uma espécie de vanitas, que induz uma meditação sobre a brevidade da
vida e as inevitáveis perdas trazidas pela morte: tal como dois relógios,
mesmo idênticos, provavelmente pararão em momentos diferentes, assim
também todos os amantes estão condenados a separar-se, já que um deles
precederá o parceiro no enfrentamento do fim.
Segundo Danto (1997), Perfect Lovers (1991), em contraste com
artefatos banais, define-se como obra de arte em razão desse conteúdo
semântico, e também de sua relação com o contexto, a biografia do autor.
Danto acrescenta que, pondo em cheque a atemporalidade da arte, postulada
no passado, a constituição do objeto depende do contexto histórico: a
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vanitas de Gonzalez-Torres seria impossível antes da fabricação do tipo de
relógio utilizado e dificilmente interpretável sem conhecimento da vida
amorosa do autor. Retomamos, então, a pergunta: morreu a arte, ou apenas
assistimos à dissolução dos cânones clássicos, de tal forma que, em vez de
objeto de contemplação, o objeto artístico torna-se hoje objeto de
pensamento?
Por outro lado, não se pode deixar de notar que a definição de
obra de arte proposta por Danto (1997) só se distingue de outra bem mais
antiga – oferecida pelos formalistas russos – pelo fato de o filósofo
acrescentar que o objeto artístico pode, à primeira vista, ser indistinguível
de um artefato banal. Sob outros aspectos, não vejo grande diferença entre
a conceituação de Danto e a do formalista russo Jan Mukarovsky. Já em
seu ensaio “Art as a Semiotic Fact” (“A arte como fato semiótico”), o teórico
checo, em outras palavras, aponta traços equivalentes aos definidos pelo
filósofo norte-americano. Segundo Mukarovsky, a obra de arte consiste de
um objeto material (o signifiant de Saussure), que funciona como símbolo e
encarna um significado – o objeto estético – constituído por elementos
comuns (estados subjetivos despertados nos membros de uma comunidade),
ficando esse significado sujeito a mudanças no espaço e no tempo
(MUKAROVSKÝ, 1977, p. 83)3. Como se vê, essa definição apóia-se em
elementos igualmente apontados por Danto: um objeto material, um sentido,
e um contexto, cuja variação altera igualmente o sentido da obra.
Em meio à sua argumentação, Danto (1997) deixa escapar certo
desencanto, visível em sua reflexão a respeito da indagação “Mas isso é
arte?” Danto formula essa pergunta em relação a The Candy of their Dreams
(O bombom de seus sonhos), gigantesco bombom exibido como arte durante o
evento Cultura em Ação, realizado em 1993 no Instituto de Arte de Chicago.
Danto parte da afirmação de Joseph Beuys (“todo mundo é artista”) para
argumentar:
(...) um bombom que é obra de arte nem precisa ser especialmente bom.
Basta ter sido produzido com a intenção de constituir arte. É fácil verificar
que, segundo Beuys, a arte nada tem a ver com qualidade. Aquilo a que
almejam as multidões, a que almejamos todos nós, é um sentido – o
sentido outrora oferecido pela religião, pela filosofia, ou pela arte. (...) Que
o bombom gigante seja arte, e não uma simples barra de chocolate, só é
possível após o fim da arte, liberado com esse objetivo por poderosas
teorias políticas que surgiram nos anos 1970, segundo as quais tudo pode
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ser obra de arte e todo mundo é artista. Que seja arte comunitária, e não
obra de um único indivíduo, é conseqüência de certas teorias políticas
libertárias para as quais grupos de indivíduos que supostamente não
encontram sentido na arte dos museus não devem ser privados do sentido
que a arte poderia conferir a suas vidas. A simples possibilidade disso mais
do que justifica colocar o bombom no museu, visando preservar para as
gerações futuras a lembrança de todos esses homens e mulheres, distanciados
da comunidade artística, a cuja vida esse tipo de arte trouxe sentido. (DANTO,
1997, p. 184-189)4
Como se vê, Danto enfatiza a motivação política por trás da
teorização sobre a arte: descartando juízos de valor, fundamenta-se na
concepção alegadamente democrática de que todo mundo é artista.
Prosseguindo em sua reflexão, o filósofo declara que “estamos para sempre
exilados da pátria estética” e, como Umberto Eco, afirma que só como
citação, e com ironia, podemos revisitar a arte do passado. Em relação ao
presente, Danto lembra a reflexão de Hegel sobre a comédia:
Estamos para sempre exilados da pátria estética. Só podemos participar do
mundo artístico atual e pintar como Rembrandt se (...) o fizermos como
citação, e como piada. (...) Os verdadeiros heróis do período pós histórico
são os artistas que dominam todos os estilos sem ter absolutamente
qualquer estilo pictórico (…) e cujo temperamento é previsto por Hegel ao
discutir a comédia: “[s]ua tônica é o bom humor, a alegria confiante e
despreocupada (...), a exuberância e a audácia de uma loucura basicamente
feliz...” Não é essencial que a comédia seja engraçada, apenas que seja feliz. É
totalmente compatível com o tipo de comédia representada pelo fim da arte
o fato de ela poder expressar-se de forma trágica sobre a tragédia, à moda de
Gerhardt Richter que, tendo se apropriado de fotos de má qualidade,
embaçadas, pinta sobre elas as mortes violentas dos líderes do BaaderMeinhof – pois a comédia reside na forma e não no tema. (...) Com toda
essa felicidade, seria ótimo se esta fosse uma Idade de Ouro da arte, mas
provavelmente as condições da comédia são a garantia da tragédia se
significarem que esta não é uma Idade de Ouro. Não se pode ter tudo!
(DANTO, 1997, p. 216-217)5
Descontado esse comentário, Danto assume certo distanciamento
da espinhosa questão levantada. Esquiva-se a emitir julgamentos de valor,
algo, como lembra Ferreira Gullar, temido pelos críticos, depois que o
famoso Salão parisiense de 1872 recusou as primeiras telas dos
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Impressionistas, consagradas pouco tempo depois. Nem todos, entretanto,
expressam-se de forma tão ambígua quanto Danto ou tentam evitar
julgamentos de valor. Entre as vozes mais veementes, levanta-se a de Robert
Hughes, considerado o mais famoso crítico de arte vivo. Autor de textos
seminais sobre a arte contemporânea como The Shock of the New (1980,
1991), Hughes, em entrevista concedida em 2007 a Marcelo Martins da
revista Veja, em razão de seu ceticismo sobre o valor da criação
contemporânea, declara ter se aposentado como crítico:
O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito a golpes de
marketing (...). Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor
que suas obras atingem – como se fosse o orçamento milionário de um
filme. Ou então por sua popularidade – como se fosse o índice de audiência
de um programa. (...) [B]ienais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham
(...) hoje têm relevância apenas para os negociantes de arte. Por baixo da
fachada novidadeira, a maioria desse eventos se transformou em feiras
vulgares. (MARTINS, 2007, p. 15)
As ácidas observações de Hughes não poupam ícones contemporâneos
como Andy Warhol e Marcel Duchamp:
Apesar de ter produzido coisas relevantes no início dos anos 60, Warhol
tem a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX. A
influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi libertadora, mas
também catastrófica. (...) [S]em ele não haveria as chamadas instalações,
essas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e
outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o
artista quis dizer. (MARTINS, 2007, p. 14)
Ainda na avaliação de Hughes, o caráter revolucionário de artistas
contemporâneos não passa de uma falácia; não chega aos pés da real ousadia
de artistas do passado: Damien Hirst, o mais incensado artista inglês atual,
e outros de sua geração, “fazem do escândalo uma arma de marketing.
Mas um renascentista como Piero della Francesca conseguiu ser radical
num nível que ele [Hirst] nunca passou nem perto de alcançar”. Nessas
circunstâncias, conclui Hugues, “prefiro me concentrar em alguns artistas
cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para
inflar as cotações alheias” (MARTINS, 2007, p. 15).
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O panorama aqui esboçado não deixa de retratar uma espécie de
vale-tudo: para os adeptos mais fervorosos da crítica cultural, a simples
reivindicação da condição de arte parece bastar para validá-la. Além dos
autores citados, e de clássicos como Guy Debord em Sociedade do espetáculo
(1967), e Adorno em Teoria estética (1970), esse ponto de vista encontra
opositores eloquentes. É aqui citação obrigatória a Argumentação contra a
morte da arte (2003), de Ferreira Gullar. O autor não nega sua apreciação de
criações contemporâneas, como os móbiles de Alexander Calder, mas batese contra o que considera “a liquidação dos gêneros artísticos, das técnicas,
dos materiais... todo o métier do pintor, do escultor, do gravador”. Deplora
também a substituição da escrita crítica pelo “texto profético, hermético,
apologético, para iniciados” (p. 123-4). Contudo, Ferreira Gullar é
suficientemente otimista para acreditar que estamos ultrapassando esse
momento: “Passou o tempo da grande badalação e do show, de que, aliás,
os grandes criadores não participavam. (...) Criam-se condições para que o
artista se volte mais detidamente para o seu trabalho, para os problemas
complexos da criação artística” (p. 125).
Estaríamos, então, prontos para voltar à obra de arte como a
concebe Ferreira Gullar, “fruto do apuro formal, de aprofundamento dos
significados plásticos e pictóricos, de reflexão e de pesquisa”? (p. 9). Tal
retorno já teria ocorrido nas outras artes. A literatura de ficção, afirma o
poeta-crítico, não enveredou pelo caminho apontado por Finnegans Wake,
escapou à autodestruição implícita nesse texto de Joyce. Possibilitou-se, assim,
o aparecimento das obras de William Faulkner, Angel Astúrias, Garcia Marques,
Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e tantos outros.
Na pintura e nas artes artesanais, estaríamos, pois, como quer
Ferreira Gullar (2003, p. 11), “no compasso de espera de uma outra arte,
mais ajustada aos novos tempos?” É o que parece pensar outro poetacrítico, Paulo Henriques Britto. Em entrevista ao jornal Estado de Minas, por
ocasião do recebimento do Prêmio Portugal Telecom, Britto lamenta a
necessidade, vivenciada pelo artista a partir da primeira metade do século
XX, de estar o tempo todo rompendo com as tradições, conduzindo a seu
isolamento do público. O modelo do rompimento transformou-se numa
tradição, resultando em acomodação. Hoje, afirma Britto (2004, p. 5),
“estamos ainda deglutindo as experimentações, mas começamos a sair um
pouco daquele período de vanguarda. O momento, para a poesia em
particular, é de parar para refletir sobre tudo de novo que aconteceu no
século XX”.
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Não é difícil sugerir que, “no compasso de espera de uma outra
arte” (p. 11), como quer Ferreira Gullar, talvez seja uma boa ideia debruçarnos sobre uma segunda pergunta do autor de Poema Sujo: “Nascerá esta
nova arte ou ela já nasceu? Não será ela, de fato, o cinema?” (p. 5). Instigante
questão. Na tentativa de discuti-la, já se acumulam bibliotecas, exigindo
outros e complexos percursos para nossa reflexão.
Notas
Vale lembrar que já no fim do século XIX e início do XX repetia-se a pergunta “Mas
isso é arte?” A propósito, Mônica Sette Lopes (2006, p. 105) rememora o processo
judicial Whistler X Ruskin. O objeto do litígio foi estabelecer se o quadro de Whistler,
Nocturne in Black and Gold, de 1878, poderia ser considerado arte. No mesmo sentido,
a autora lembra o caso de uma escultura de Brancusi, exportada para os Estados
Unidos em 1926, quando um funcionário da Alfândega questionou sua condição de
obra de arte, isenta de tributação. Transposta para a esfera judicial, a questão foi
encerrada com o veredito contrário ao parecer inicial.
1
Versão em inglês: “What does it mean when artists turn their backs on technique
and embrace incompetence? This course offers a version of the history of modern
and contemporary artistic practices – visual art, music, literature and film – which
reads as a battle between the ‘right’ way and the ‘wrong’ way. (…) The course also
includes discussion of the theoretical underpinnings of approaches which ignore the
instruction manual…. Art and Incompetence.” Disponível em: http://www.tate.org.uk/
modern/. Acesso em: 15 set. 2005. (Nessa, como em todas as citações de textos em
línguas estrangeiras, a tradução é da autora deste artigo.)
2
Versão em inglês: “The work of art cannot be reduced to this ‘work-thing’ (…) since
this work-thing happens to change completely in appearance and internal structure
through temporal or spatial shifts (…) The work-thing functions, then, only as an
external symbol (the signifiant according to Saussure´s terminology) to which
corresponds in the social consciousness a meaning (sometimes called the “aesthetic
object”) consisting of what the subjective states of consciousness in the members of
a certain collectivity have in common” (Mukarovsky, 1977, p. 83).
3
Versão em inglês: “A candy bar that is a work of art need not be a especially good
candy bar. It just has to be a candy bar produced with the intention that it be art (...)
It is easy to see that “quality” has nothing to do with being art under Beuysian
considerations (…) What [the millions] thirst for (...) what we all thirst for, is meaning:
the kind of meaning that religion was capable of providing, or philosophy, or,
finally, art (…) That [The Candy of their Dreams] should be a work of art and not a
mere bar of chocolate is possible only after the end of art, enfranchised as such by
4
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certain powerful political theories which emerged in the 1970´s to the effect that
anything can be a work of art and everyone is an artist. Its being “community based”
art rather than the work of a single individual is the achievement of certain enfranchising
political theories which held (…) that groups of individuals alleged to find no meaning
in the art of museums should not be deprived of the meaning art might confer
upon their lives (…) They [people in the future] should be made to think of all those
men and women, far from the art world, thinking of what gave meaning to their
lives. The mere possibility of that more than justifies putting the work in the
museum.” (DANTO, 1997, p. 185-189).
Versão em inglês: “We are forever exiled from the aesthetic motherland (…) One can
be part of the present art world and paint like Rembrandt only if (…) one does so
from the perspective of mention rather than of use, and in the spirit of the joke. (…)
The true heroes of the post-historical period are the artists who are masters of every
style without having a painterly style at all (...) whose temperament is anticipated by
Hegel in his discussion of comedy: ‘The keynote is good humour, assured and
careless gaiety, (…) exuberance and the audacity of a fundamentally happy craziness
(…)’. It is not essential to comedy that it be funny, only that it be happy. It is wholly
consistent that the kind of comedy in which the end of art consists can express itself
on tragedy tragically, as Gerhardt Richter does when he paints, in the appropriated
blur of bad photographs, the violent deaths of the Baader-Meinhof leaders, for the
comedy is in the means, not the subject. (…) With all this happiness, it would be
wonderful if this were a Golden Age of art, but probably the conditions of comedy
are the guarantee of tragedy, if the latter means that our age is not a Golden Age. You
cannot have everything!” (DANTO, 1997, p. 216-217).
5
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Solange Ribeiro de OLIVEIRA
Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais. Livre-docente da
Universidade de Londres. Docente aposentada da Universidade Federal de Minhas
Gerais e da Universidade de Ouro Preto.
Artigo recebido em 31 de abril de 2011.
Aceito em 04 de maio de 2011.
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HIPERTEXTUALIDADE X HIPERMIDIALIDADE:
A VIAGEM DE “O BALANÇO”∗
Thaïs Flores Nogueira Diniz
[email protected]
Resumo: Ampliando o conceito de
hipertexto, este artigo se propõe a
analisar a cadeia semiótica que une
obras pictóricas, literárias,
cinematográficas dos séculos XVIII,
XIX e XX a uma instalação/escultura
contemporânea, todas com o
mesmo tema. Trata-se de um
processo aqui definido como
transm(e/i)dialização.
Abstract: Amplifying the concept
of hypertext, this article aims at
analysing the semiotic chain that
connects some pictorial, literary and
cinematographic works from 18th, 19th
and 20th Centuries to a contemporary
installation/sculpture, all of them
bearing on the same theme. The
relation between them illustrates the
process that can be defined as
transmedialization.
Palavras-chave: Hipertexto. Hipermidia. Transm(e/i)dialização.
Key words: Hypertext. Hypermedia. Transmedialization.
∗
Este texto é resultado parcial do projeto financiado pelo CNPq intitulado “A
intermidialidade em produções contemporâneas”. Uma versão reduzida, em inglês,
foi apresentada oralmente no Ninth Conference of the Nordic Society for Intermedial
Studies, em Aarhus, Dinamarca, em outubro de 2009 e posteriormente, em português,
no II Encontro memorial do ICHS, em Mariana, em novembro de 2009.
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I
Qualquer criança hoje, com acesso a um computador ligado à
internet, é capaz de lidar com aquela forma de apresentação no monitor de
vídeo, na qual algum elemento (palavra, expressão ou imagem) é destacado
e, quando acionado, geralmente mediante um clique do mouse, provoca a
exibição de um novo texto – o hipertexto – com informações relativas ao
referido elemento.
A essa forma de apresentação, ou melhor, a essa espécie de relação
entre os textos, damos o nome de hipertextualidade. O termo foi cunhado
por Gérard Genette em seu livro Palimpsests: Literature in the Second Degree,
no qual ele defende que “o objeto da poética não é o texto (literário) mas
sua transcendência textual, suas ligações textuais com outros textos”
(PRINCE, 1997, p. ix).
Para Genette, a relação transtextual pode se dar de várias maneiras,
cada qual constituindo um aspecto da textualidade, ou ainda, um tipo de
transtextualidade. Entre esses tipos, destacamos a hipertextualidade, “toda relação
que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que,
naturalmente chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a
do comentário” (GENETTE, 1997, p. 5)1. Porém, é o próprio Genette que
declara não serem estas categorias absolutas, havendo sempre entre elas um
contato ou superposição recíproca. Embora se relacionem de muitas e variadas
maneiras, alguns textos se apresentam mais hipertextuais do que outros, ou
melhor dizendo, são mais visível, massiva e explicitamente hipertextuais. Mas,
em cada obra, é possível seguir os ecos – sejam eles locais, fugazes ou parciais
– de outra obra, seja ela anterior ou posterior. Como o conceito de texto não
se restringe apenas a formas verbais, podemos ainda dizer que, ao nos
relacionarmos com um texto, esta relação se dá pela configuração de uma
mídia, cuja performance emite signos (configurados por essa mídia). Essa
definição expande o nosso conceito de hipertexto, para abranger também textos
concebidos em outras mídias. Em analogia, portanto, chegamos a um novo
conceito, o de hipermidialidade, definido como a relação que une o texto
hipermidiático a um texto anterior, o texto hipomidiático, do qual ele brota, de uma
forma que não é a do comentário. Assim, ao considerar textos como algo
concebido em qualquer sistema semiótico, podemos dizer que um filme
adaptado de uma obra literária ou uma instalação derivada de uma obra pictórica
sejam ambos textos hipermidiáticos ou simplesmente hipertextos, já que a
intermidialidade é sempre intertextual.
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II
Intermidialidade é “um termo relativamente recente para um
fenômeno encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana
como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’” (CLÜVER,
2009, p. 9). Como conceito, intermidialidade implica as interrelações e
interações entre as mídias; “intermidiático”, portanto, designaria aquelas
configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as
mídias e que, por isso, podem ser diferenciadas dos fenômenos
intramidiáticos (dentro de uma mesma mídia) e também dos fenômenos
transmidiáticos (por exemplo, o aparecimento de um certo motivo, estética
ou discurso em uma variedade de mídias diferentes)2. Como ferramenta,
intermidialidade pode se definir como uma categoria crítica para a análise
concreta de produtos ou configurações de mídias individuais e específicas,
uma categoria para a análise concreta de textos ou de outros produtos das
mídias, desde que essas configurações manifestem alguma estratégia
intermidiática ou elemento ou condição constitutiva.
A arte e a literatura contemporâneas estão marcadas por um intenso
interesse “intermidial”, havendo uma crescente quantidade de pesquisa neste
campo, tendo ou não o termo “intermidiático” atrelado a ela, dentro, fora
e nos limites das instituições dedicadas à “arte”. Este tipo de pesquisa vem
sendo desenvolvido graças à onda de interesse renovado na mistura de
gêneros e mídias. Qualquer estudioso neste campo já aceita o fato de que o
tempo das produções artísticas isoladas já passou e também de que não se
pode mais separar estudos de arte dos estudos de mídias.
Obras literárias, poemas e contos, derivados de obras pictóricas
são comuns desde a Antiguidade, haja vista a descrição do escudo de Aquiles,
considerada como o primeiro exemplo de ecfrase, definida por Claus Clüver
como “uma representação verbal de um texto real ou fictício, composto
em um sistema de signos não-verbal”(CLÜVER, 1997, p. 26 ). Mas o que
dizer de obras compostas em sistemas não-verbais derivadas de obras
literárias? Como seria denominado um filme que fosse transformado em
romance? Segundo Irina Rajewsky, este hipertexto (o romance) derivado de
um filme (o hipotexto) seria o resultado de um processo denominado de
romantização.
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As artes icônicas, por serem capazes de, como a linguagem, gerar
descrições do mundo ficcional, permitem, segundo Eli Rozik, traduções
midiáticas desse mundo, traduzindo-o para uma outra mídia, realizando
assim uma transmedialização (ROZIK, 2007, p. 395-396). Já Karin Wenz,
em seu artigo “Transmedialization: An Interart Transfer”, define a
transmedialização como o processo de transferência de um texto
configurado em uma mídia para outra mídia. Para ela, esse processo seria
um tipo de “remediação”, termo criado por Bolter e Grusin, para descrever
uma transformação que acontece no momento em que uma nova mídia é
criada a partir de uma preexistente. Porém, a autora reduz o termo a uma
relação mais específica, limitando o processo a determinados textos, mas
aceitando também sua contribuição na evolução do texto fonte.
Neste trabalho, pretendo analisar algumas obras criadas em
diferentes mídias e que podem ser classificadas como hipertextos, derivados
de textos anteriores, por meio de transformação ou de imitação3. Como
os textos a serem analisados pertencem a diversas mídias, a teoria de Genette
será adaptada para servir aos estudos sobre intermidialidade. Os exemplos
contidos neste trabalho ilustram casos de transformação interartística, que
aqui denominamos transmedialização. Neste texto, uso propositadamente
o termo “transm(e/i)dialização”, para definir o processo que envolve tanto
o local onde este se realiza (dentro das mídias), como o próprio ato de
mediar4 (de um texto para outro).
III
Muitas pinturas impressionistas sugerem o prazer experimentado
por um fim de semana no campo; descrevem passeios de barco, piqueniques,
pescarias e tantas outras atividades que corporificariam o desejo dos que
anseiam por um descanso. Os quadros Remadores em Chatou, de Pierre Auguste
Renoir (Fig. 1); O barco em Giverny, de Claude Monet (Fig. 2) e Desjejum sobre
a relva, de Édouard Manet (Fig. 3) descrevem esta realidade. Por isso, tais
pinturas poderiam ser categorizadas como um segundo passo de um
processo que se iniciou com aquela realidade (a necessidade de lazer) e
continua com sua tradução em um outro meio (a pintura). São exemplos
de transm(e/i)dialização em seu sentido mais amplo.
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Fig. 1 – Remadores em Chatou, de Pierre Auguste Renoir.
Fig. 2 – O barco em Giverny, de Claude Monet.
Fig. 3 – Desjejum sobre a relva, de Édouard Manet.
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Além dos piqueniques na relva e dos passeios de barco, uma jovem a
balançar-se caracterizar-se-ia como uma das atividades mais bucólicas de
um dia no campo. O balanço, e mais especificamente, uma jovem no balanço,
tem sido o tema preferido de artistas, em seu desejo de retratar o lazer. É
um tema que aparece em pinturas e estátuas desde a Grécia antiga, porém
nunca tão brilhantemente tratado como na França no século XVIII. A
pintura de Pierre-Auguste Renoir, O balanço, constitui um bom exemplo da
recorrência deste tema (Fig. 4). Renoir tentou retratar, através de luz e cores
brilhantes, momentos da vida real. Usando pinceladas multicores, ele evocou,
neste quadro, a vibração da atmosfera, o efeito vivo da folhagem e,
principalmente, a luminosidade da pele da jovem ao ar livre.
Fig. 4 – O balanço, de Pierre-Auguste Renoir.
Em 1881, Guy de Maupassant escreveu um conto intitulado “Une
Partie de Campagne” (traduzido como “Um passeio ao campo”), cuja
história envolve amor, sedução e desilusão. Os Dufour (pai, mãe, avó, a
filha Henriette e seu noivo Anatole), uma família burguesa de Paris, decide
passar o domingo no campo. Dirigem-se a um local para fazer sua refeição
ao ar livre. Dois pescadores/barqueiros, Rodolfo e Henrique, espiam os
recém chegados e planejam seduzir as mulheres da família, no que são bem
sucedidos. Anos mais tarde, Henrique volta ao local onde ele e Henriette
haviam feito amor. Esta, já casada, lá está com marido. Os dois amantes
trocam alguns olhares e palavras, e se separam.
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Considera-se que o quadro de Pierre-Renoir acima descrito serviu
de inspiração para este conto, o que pode ser comprovado pela sugestão
contida na ilustração da capa de uma das edições da obra (Fig. 5). Neste
sentido, o conto pode ser analisado como um passo adiante no processo
de transm(e/i)dialização, uma vez que representa uma tradução, para a
literatura, da pintura impressionista, podendo, portanto, ser classificado
como uma ecfrase.
Fig. 5 – Capa de uma das edições dos contos de Guy de Maupassant.
Um pequeno trecho do conto chama nossa atenção:
De pé, a rapariga tentava balançar-se sozinha, não conseguindo dar
impulso suficiente. Era uma bela moça de dezoito ou vinte anos, uma
dessas mulheres que provocam um súbito desejo ao homem que
encontram na rua, deixando-o num desassossego vago e de sentidos
revoltos todo o dia. Era alta, magra, mas de ancas largas. Tinha a pele
muito morena, os olhos muito grandes e os cabelos muito pretos. O
vestido desenhava-lhe nitidamente as formas plenas e firmes do corpo,
que se acentuavam ainda mais com o movimento de rins que fazia para se
elevar.
Com os braços tensos, segurava as cordas acima da cabeça, de forma
que o peito sobressaía, sem estremecer, a cada impulso. O chapéu tinha
caído atrás dela levado por uma rabanada de vento, e o baloiço ia subindo
pouco a pouco, revelando-lhe, a cada balanço, as finas pernas até o
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joelho, lançando à cara dos dois homens, que a observavam a rir, o ar
perfumado das saias, mais inebriante que os vapores do vinho.
(MAUPASSANT, s/d, p. 10-11, minha ênfase)
Embora o texto de Guy de Maupassant não seja explicitamente
erótico, nesta passagem percebem-se sinais de um certo erotismo (sugerido
pelas palavras em negrito), com a ingenuidade da moça servindo de pretexto
para os olhares voluptuosos dos dois rapazes. A sensualidade da moça ao
balanço é tema de Posner, em artigo que analisa algumas pinturas e gravuras
com o tema do balanço.
Aludindo ao clima de sensualidade da obra de Maupassant, o cineasta
francês, Jean Renoir, em 1936, imortalizou este conto em seu filme, traduzido
para o português como Um dia no campo. A capa de uma outra edição do
livro, tendo como ilustração um fotograma do filme de Renoir, sugere a
ligação entre as duas obras (Fig. 6). O filme se apresenta, pois, como um
exemplo de tradução, ou transposição intersemiótica, do texto escrito para
o cinema.
Alguns episódios da estória foram enfatizados no filme, entre eles,
a fuga dos dois casais para a ilha no meio da floresta e a cena de amor entre
Henrique e Henriette, ao sabor do canto do rouxinol.
Fig. 6 – Capa de uma outra edição do livro de Guy de Maupassant, onde aparecem
Sylvia Bataille (Henriette) e Georges D’Arnoux (Henri).
Segundo Robert Webster, a realização/produção do filme se
caracterizou como uma obra de família: a equipe reunia muitos familiares,
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amigos e colaboradores. Como Jean Renoir estava comprometido com
outros trabalhos e o roteiro pedia dias ensolarados numa estação em que
chovia continuamente, o cineasta o adaptou e filmou o que foi possível,
deixando a película inacabada. Mesmo sem a finalização, Um dia no campo
foi editado e lançado em 1946 (WEBSTER, 1991, p. 487).
Entre as cenas do filme, destacamos aquela em que Rodolfo se
pendura na janela como se articulasse o próprio desejo da plateia pela moça
no balanço, enquadrada ao fundo em profundidade de foco (Fig. 7). O
personagem é o elo de ligação entre a plateia e o objeto de desejo – a moça
ao balanço. Ao debruçar-se, ele aproxima os dois grupos de pessoas: a
plateia e o grupo familiar. Esta cena nos permite detectar dois aspectos sob
os quais a obra desse cineasta pode ser classificada: como um filme popular
– que preenche o desejo dos espectadores pelo prazer visual, trazendo
gratificação emocional com a narrativa – e como um “filme de arte” – um
cinema estruturado para uma plateia que anseia por um cinema sério, com
temas importantes e com a revelação do personagem e de suas motivações
construída cuidadosamente por meio de detalhes do diálogo e do
comportamento dos atores. Na cena, Henriette, ao centro, vai se tornar a
fonte do prazer visual e cinético, tanto para os espectadores quanto para os
personagens. Já Henrique pertence ao espaço do “filme de arte” pelo modo
como seu personagem é construído.
Fig. 7 – Um dia no campo, de Jean Renoir (fotograma).
A pintura de Renoir, O balanço, anteriormente mencionada, também
é frequentemente considerada a origem da cena acima, porém, por diferentes
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razões, uma outra pintura, mais antiga, parece ter se aproximado mais desta
cena, quando “traduzida” para o cinema. É o quadro O balanço, também
conhecido como O balanço: os acidentes felizes do balanço, de Jean-Honoré
de Fragonard (1767) que, de acordo com outros autores, poderia ter
inspirado esta cena do filme (Fig. 8).
Fig. 8 – O balanço: os acidentes felizes do balanço, de Jean-Honoré de Fragonard.
Este e outros quadros5 cujo tema é o balanço são analisados por
Posner em seu artigo, “The Swinging Women of Watteau and Fragonard”.
Entre as associações sugeridas, estão a inconstância feminina em assuntos
do coração; capricho e leviandade no jogo do amor e os sentimentos
românticos e, ao mesmo tempo, eróticos.
O quadro de Fragonard, cuja análise empreendida por Posner se
mostra rica em detalhes e associações, alcançou grande sucesso, não apenas
por sua excelente técnica, mas também pelo escândalo que causou. A história
por detrás dessa obra já seria uma pista para o erotismo suscitado. O pintor
teria sido comissionado para executar uma obra em que um bispo – amante
da jovem – seria retratado empurrando a rapariga no balanço, enquanto o
jovem da nobreza – também seu amante – colocar-se-ia em uma posição
estratégica para se beneficiar da “paisagem” que se descortinaria. Desde
então, este quadro se transformou na imagem universal de uma sexualidade
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feliz e descuidada. O tema é o do amor e o da onda de paixão, sugerido
pelo grupo na parte central inferior do quadro: os golfinhos, guiados por
Cupido, puxando o carro de Vênus, simbolizando o amor impaciente.
Bem embaixo da moça, escondido num arbusto, está o jovem amante,
suspirando antecipadamente. Neste espaço privado, fechado por uma cerca,
o jovem, com o chapéu na mão,6 aprecia a visão que lhe é oferecida. A
jovem, deixando à mostra as pernas, entre os babados e rendas da anágua,
lança ao ar o sapato, que se perde7. Todas as pistas de sensualidade sugeridas
pelo quadro se encontram realizadas tanto no conto de Maupassant como
no filme de Renoir.
Em 1963, o escritor português Jorge de Sena compôs um poema,
explicitamente derivado da pintura de Fragonard, intitulado “‘O Balouço’,
de Fragonard”, transcrito abaixo.
Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não vê o que indiscreto se reclina
no gozo do escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se empenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviezado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais! (SENA, 1988, p. 106-107)
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“‘O balouço’, de Fragonard” é uma representação verbal da pintura,
porém, não se propõe a substitui-la. Como no conto e no filme, também
aqui encontramos alguns vestígios do erotismo proveniente da pintura de
Fragonard, nas várias expressões contidas no texto, desta vez mais explícitas:
“rendas a rasgar”, “gesto obsceno”, “jardim de volúpia”, “saias lânguidas e
indiscretas”, “roupas constrangindo o sexo e os seios”, etc. “A sensualidade
não se cristaliza apenas nas figuras humanas, mas contamina todos os
elementos do meio envolvente. [. . .] Assim o jardim luxuriante participa no
erotismo da cena e adensa-o. A personificação, ‘palpitar de entranhas na
folhagem’ [. . .] e a metáfora ‘Como um jardim se emprenha de volúpia’
dão bem conta disso”(PINTO).
É possível que a pintura de Fragonard tenha servido de inspiração
para o filme, porém, no poema de Jorge de Sena, a referência é explícita.
Segundo Robert Stam, a pintura seria considerada um hipotexto que,
transformado, resultaria tanto no conto de Maupassant e no filme de Renoir,
como também no poema de Sena, aqui definido como um hipertexto.8
IV
Ao analisar as obras acima, somos convidados a nos referir a uma
outra que também se deixaria classificar como hipertexto: uma instalação
escultural do africano Yinka Shonibare, que também ilustra os processos
de tradução/transm(e/i)dialização e de metareferência (Fig. 9).
Fig. 9 – O balanço (a partir de Fragonard), de Yinka Shonibare.
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Esta obra, O balanço (a partir de Fragonard), também se reveste da
atmosfera característica da pintura do artista francês: o erotismo, pois retrata
o abandono sensual de uma mulher jovem e rica em seu lazer. A escultura/
instalação é composta por um balanço, uma guirlanda de folhagem artificial
e um manequim em tamanho natural, vestido com um tecido de algodão
estampado – o batique. A obra imita as roupas e costumes europeus, a
partir do quadro europeu do século XVIII que simboliza o espírito frívolo
e a moral decadente da aristocracia francesa da época imediatamente anterior
à revolução. Mas não se resume a uma paródia do original. A figura humana
conserva a vestimenta ornada e a pose do original, mas está isolada e acéfala.
Em vez das sedas de cor pastel, seu vestido é composto de pinturas no
algodão contrastando com o padrão usado hoje na África, porém alterado
para incluir alguns logotipos europeus, como o da Chanel (Fig. 10). Embora
a escultura exiba uma jovem comum em seu simples lazer balançando-se,
ela levanta questões sobre sua raça, situação econômica e identidade.
Fig. 10 – Detalhe do tecido usado por Yinka Shonibare em suas obras. À esquerda
e à direita, o logotipo da Chanel.
Seu autor, Yinka Shonibare (1962), nasceu em Londres e mudouse para a capital da Nigéria aos 3 anos de idade. Crescendo entre Lagos e
Londres, ele se proclamou “um híbrido pós-cultural”(ELIZ). Deste lugar,
ele explora, por meio de mídias como a fotografia, a escultura e a instalação,
questões de identidade cultural, raça e autenticidade. Joga com esterótipos,
subverte-os e identifica tropos culturais ricos e complexos como o batique
africano. Ele também se considera verdadeiramente bi-cultural e tenta abrir
debates sobre questões políticas, culturais e sociais que dão forma à nossa
história e constroem nossas identidades. Tornou-se conhecido por suas
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instalações culturais em que continua a usar os tecidos africanos para
subverter as leituras convencionais de identidade cultural como se vê em
suas exposições no museu em Rotterdam e em suas performances-solo
em Londres.
Em O balanço (a partir de Fragonard), suas preocupações parecem tomar
como ponto de partida seu background bicultural que sinaliza para o póscolonialismo e apaga os limites entre as Belas Artes ocidentais e a visão
tradicional da Arte africana. O artista joga com esses limites ao recriar um
célebre quadro europeu do século XVIII: uma jovem, enquanto se balança,
mostra as pernas que emergem das anáguas rendadas, e perde um dos
sapatos que voa pelos ares. Como espectadores, fazemos o papel de voyeurs,
mas a obra claramente oferece muito mais do que uma chance de apreciar
a saia que se levanta. Embora o estilo das roupas seja europeu oitocentista,
as cores e padrões de seus metros de saia não o são. A relação estabelecida
entre classe, raça e estruturas de poder se faz através do batique, tecido
muito popular na África e considerado de origem africana, porém, na
realidade, uma imitação. Foi criado na Holanda no século XIX e fabricado
na Inglaterra para ser vendido à Indonésia (colônia holandesa) mas, não
tendo encontrado consumidores aí, devido à alta qualidade do produto
local, foi então vendido para a África ocidental.
Nesta obra, o corpo é acéfalo – como todas as outras esculturas
de Shonibare – e o conjunto formado pela decapitação e profusão de
roupas torna o modelo atemporal. O uso de padrões coloridos e do batique
funciona como uma metáfora que permite ao artista tratar questões de
origem e autenticidade e fazer uma crítica veemente ao excesso e exploração
colonial.
Para analisar esta obra, é preciso procurar o que há por trás de
toda reescrita. Aquele que faz literatura em segundo grau – e, em analogia,
aquele que produz arte em segundo grau – o faz com segundas intenções.
Shonibare procurou, com este trabalho, mostrar que o acúmulo de riqueza
e poder, personificado pelo lazer é, sem dúvida, um produto da exploração
do outro. Esta obra contemporânea, portanto, além de se revestir de
significados próprios, como a crítica ao colonialismo e as questões de
autenticidade, ainda faz referência a outra obra de arte anterior, parodiandoa, o que lhe dá um significado a mais.
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V
O grande número de obras com o tema do balanço nos remete à
noção de hipertexto e de hipermídia. Assim como o artista Shonibare se
moveu entre continentes – da Europa para a África e vice-versa – o batique
também viajou da Europa para a Ásia e daí para a África, recebendo, a
cada momento, um significado diferente. Do mesmo modo, o tema do
balanço com suas inúmeras conotações também vem fazendo sua viagem
pelo tempo e pelo espaço. A cada concretização, ou melhor, a cada
configuração em uma determinada mídia, ele gera um hipotexto que, por
meio de operações como imitação, superposição, incorporação, citação e
modificação, é subvertido, ampliado e transformado em vários hipertextos.
Cada um deles, por sua vez, é configurado em uma outra mídia, tornandose um outro hipertexto que, novamente na função de hipotexto, vai gerar
outros hipertextos, e assim indefinidamente.
Notas
A tradução deste e de alguns outros textos da obra de Genette é de Luciene Guimarães
e Maria Antônia Ramos Coutinho em GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de
segunda mão. Extratos traduzidos por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos
Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006.
1
Um exemplo disto é a estética do futurismo, que foi percebida em diferentes mídias
(texto, pintura, escultura) com os meios formais específicos de cada mídia. A realização
concreta dessa estética é, em cada caso, necessariamente específica da mídia, mas por si
mesma ela não é, contudo, limitada a uma mídia específica. Até certo ponto, ela é
possível e realizável de forma transmidiática, isto é, possível e realizável em um
cruzamento de fronteiras entre as mídias. De forma similar, alguém pode falar em
uma narratologia transmidiática, referindo-se às abordagens narratológicas que podem
ser aplicadas a diferentes mídias, ao invés de apenas a uma única mídia.
2
Aqui estou usando a nomenclatura de Genette, que classifica as transformações em
transformação simples e imitação.
3
4
Como este termo ainda não está dicionarizado, fica aqui a sugestão.
Entre as pinturas e gravuras analisadas por Posner, destacamos The Swing , de
Hubert Hughes; The Swing, The Shepherds e The Pleasures of Summer de Jean-Antoine
Watteau e The Swing, Blindman’s Buff e The Seesaw, de Jean-Honoré Fragonard.
5
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Um chapéu na imagem erótica do século XVIII servia para cobrir não só a cabeça,
mas outra parte do corpo masculino quando fosse exposta inadvertidamente.
6
Um pé descalço e um sapato perdido, no século XVIII, simbolizavam a virgindade
perdida.
7
Robert Stam utilizou-se dos termos de Genette – hipotexto e hipertexto – para
analisar adaptações fílmicas. Para ele, o hipertexto tem a ver com um texto anterior –
o hipotexto – que ele transforma, modifica, elabora e estende. Essa transformação se
realiza por meio de operações de seleção, ampliação, concretização e atualização.
8
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Thaïs Flores Nogueira DINIZ
Doutora em Literatura Comparada pela Univesidade Federal de Minas Gerais/Indiana
University, Bloomington, EUA. Professor associado da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais. Financiamento: CNPq e FAPEMIG.
Artigo recebido em 06 de novembro de 2010.
Aceito em 28 de fevereiro de 2011.
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A PELE, O CORPO, O CORTE:
SUPORTE E TEMÁTICA PARA LITERATURA,
CINEMA E OUTRAS MÍDIAS
Maria Angélica Amâncio Santos
[email protected]
Resumo: O ensaio pretende refletir
sobre as diferentes leituras – bem
como os entrecruzamentos de
leitura – do corpo e da pele como
suporte e tema para as várias mídias,
pensando-se desde as tatuagens, os
pergaminhos até as obras que levam
essa temática ao extremo – como
em castigos e “dermografias”. O
corpus do trabalho inclui essencialmente
o filme O livro de cabeceira, de Peter
Greenaway, o conto “Les suaires de
Véronique”, de Michel Tournier,
além da menção a outras
experiências, como o trabalho da
artista plástica Nicola Constantino e
os textos A alma encantadora das ruas,
de João do Rio, e Na colônia penal,
de Franz Kafka.
Abstract: This essay intends to
discuss the different interpretations
– and also intersections of
interpretations – of the body and
the skin as materialization and theme
for several types of media. The
discussion includes tatoos,
parchments and works that overdeal
with this subject – as in punishments,
re-creations and “dermographies”.
For this study, we use mainly the film
The Pillow Book, directed by Peter
Greenaway, and the short story “Les
suaires de Véronique”, written by
Michel Tournier, besides other
experiences, such as the works of
the visual artist Nicola Constantino,
and texts like A alma encantadora das
ruas, by João do Rio, and In der
Strafkolonie, by Franz Kafka.
Palavras-chave: Intermidialidade. Leituras. Dermografia.
Key words: Intermediality. Readings. Dermography.
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Na pele
“Quer marcar?”, pergunta o jovem tatuador ambulante em crônica
de João do Rio, no livro A alma encantadora das ruas. Munido de três agulhas
amarradas e um pé de cálix com fuligem, o menino percorre as ruas do
Rio de Janeiro no século XX, oferecendo seus serviços aos passantes, que,
em muito movidos pelo ócio, acabam optando por marcar o corpo com
traços que, em geral, variam entre uma coroa, um coração, um Cristo, um
nome próprio.
A palavra “tatuagem”, originária da Polinésia (tatou ou to tahou),
significa “desenho”. Porém, desde os tempos mais remotos, o termo
extrapola a categoria de simples adorno e constitui-se em
(...) distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre
outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe
para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas
da Oceania, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente,
baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra
universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe
aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é
só por si um problema na psicologia do atavismo. (RIO, 2007, p. 47)
No Rio de Janeiro do cronista, a incidência da tatuagem
predominaria entre os negros, os turcos religiosos e o bando das meretrizes,
dos rufiões e dos humildes, que se marcariam por crime ou por ociosidade.
Por meio dela seria possível realizar um estudo de crendices, reconstruir a
vida amorosa e social da classe humilde, conhecer suas aspirações, suas
horas de ócio e a crença na eternidade dos sentimentos. A tatuagem seria,
portanto, “a exteriorização da alma de quem [a] traz” (RIO, 2007, p. 47).
Não é por acaso que “os tatuadores” – título da crônica em questão
– levassem também o nome de “marcadores”: os traços inseridos na pele
– quer por picada, incisão ou queimadura subepidérmica – perdem a
inocência do reles “desenho”; tornam-se marcas reais, símbolos, confissões.
Ou seja, embora o signo escolhido esteja dotado, evidentemente, de um
significado particular para o indivíduo que o carrega, o que intensifica esse
valor e o remete à poderosa categoria de “exteriorização da alma” é, em
primeiro lugar, a superfície, a pele.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Anne-Marie Christin (2006), ao refletir sobre a origem da escrita,
desenvolve um “pensamento de tela” que privilegia, antes de mais nada, o
suporte na análise da imagem. Segundo a autora:
É preciso reconhecer (...) que se o homem pôde ter a ideia de combinar
figuras-símbolos sobre uma superfície, e isto de tal maneira que seu
espectador pudesse compreender que elas formavam, em conjunto, um
sentido, ele teve necessariamente que conceber previamente, isto é, antes de
as escolher e até mesmo de as imaginar, o suporte do qual iria fazê-las surgir
e ordenar sua distribuição. (p. 65)
De acordo com esse pensamento, o “intervalo” tem a função de
estabelecer entre os elementos de uma imagem “efeitos de vizinhança”,
diálogos, interrogações, completude; ele é o princípio motor da associação
de suas figuras. Imprimindo nelas suas mãos, homens da pré-história
homenageavam as paredes inspiradoras sobre as quais pintavam; a
experiência fundadora da escrita chinesa seria também a do “vazio” e não
a do traço; seriam os suportes – rolos ou livros – os testemunhos da religião
cristã e dos fundamentos de sua fé.
Assim, o fato de ser a pele humana a superfície da tatuagem muito
revela sobre seu significado, especialmente porque a marca invade o suporte,
perfura-o, colorindo-o em permanência. A pele é o tecido que cobre todo
o corpo humano, escondendo a crueza de seus músculos, ossos e veias.
Diferentemente dos outros animais, cuja pele é quase totalmente coberta
por penas, escamas ou pelos, a pele humana é consideravelmente mais
exposta, sugerindo maior fragilidade. É, sem dúvida, resistente, porém
extremamente sensível ao frio e ao calor, ao toque, da violência à carícia. A
pele humana é, assim, sincera: manifesta emoções, arrepia-se, adoece,
envelhece.
É, certamente, por esse caráter tão vivo da pele que as obras da
artista plástica argentina, Nicola Constantino, geram tanta polêmica,
percorrendo o caminho do fascínio à repulsa. Objetos de material sintético
idênticos ao tecido humano revestem acessórios como bolsas e sapatos,
assemelhando-se a seios, nádegas, braços. São apenas imitações, mas a
simples ideia de se reutilizar a pele alheia, e o gesto de reproduzi-la, perfurála, marcá-la, tudo remete a uma sensação de crueldade, sadismo, abuso.
Talvez seja justamente com esse objetivo que, em Na colônia penal, de Franz
Kafka – obra que critica o instituto da pena, o despotismo e a justiça
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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arbitrária – um antigo oficial desenvolva um instrumento de tortura que
escreve lentamente sobre a pele do condenado, com agulhas de vidro, a
sentença do crime que, muitas vezes, ele sequer cometeu. A primeira punição
é, portanto – e a exemplo dos antigos samurais –, a eterna lembrança,
inseparável companheira do criminoso condenado, exposta na pele.
À cabeceira, o corpo
O castigo é uma das diversas conotações que recebe a escrita sobre
o corpo no filme O livro de cabeceira (1996), de Peter Greenaway.1 Em
primeiro lugar, é interessante pensar o título: livro de cabeceira é, a priori,
aquele do qual não se separa, o livro que se busca todas as noites antes de
dormir, o livro diário, que acaba por se tornar a marca de uma personalidade.
E é justamente de uma espécie de diário íntimo que parte o cineasta
britânico: trata-se de um clássico da literatura japonesa do século X, O livro
de cabeceira, de Sei Shonagon. Composto de 164 listas de coisas agradáveis,
irritantes, esplêndidas, o livro, precursor de um gênero tipicamente japonês
conhecido como zuihitsu (escritos ocasionais), apresenta também observações
sobre plantas, pássaros, insetos, etc., em uma prosa ágil, que observa e
registra o transitório, o circunstancial. É o que observa Maria Esther Maciel
(2004):
Pode-se dizer que Greenaway aproveitou toda essa atmosfera em seu filme,
não apenas ao inserir a personagem principal, de nome Nagiko (não por
acaso o mesmo primeiro nome da escritora japonesa) no mundo up to date
das passarelas da moda e dos centros urbanos de Tóquio e Hong Kong no
fim do século XX, mas sobretudo ao potencializar visualmente – através de
citações de trechos ou páginas inteiras do diário – as listas líricas e insólitas
de Shonagon. Os ideogramas da escrita oriental são apresentados na tela
como metáforas vivas, corporais, seja através da reprodução do texto sobre/
sob as imagens desdobradas em diferentes planos, seja a partir da exploração
da analogia (convertida em imagem concreta) entre corpo e livro, pele e
papel. Tudo, com a finalidade de evocar visualmente o que no seu diário
Shonagon elege como sendo os dois princípios fundamentais da vida: os
prazeres do corpo e os deleites da poesia, experimentados a um só tempo.
(p. 213)
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Influenciado pela visualidade ideogramática de Serguei Eisenstein,
e pela exploração do tecido sensorial da linguagem (cinemática e literária)
experienciada por Alain Robbe-Grillet e Alain Resnais em O ano passado em
Marienbad (1961), Greenaway – que sempre se insurgiu contra o que chama
de “compulsão ilustrativa do cinema contemporâneo” – utilizou-se de vários
recursos tecnológicos para transcriar o texto literário japonês. Utilizando-se
da multiplicação de telas e da sobreposição de planos, pela subdivisão
estratégica de enquadramentos, nas “janelas” que se abrem em diferentes
proporções, o cineasta entrelaça várias linguagens estéticas e referências
culturais, explorando ao máximo essa obra transmedial ou de “transposição
de arte” que, segundo Leo Hoek (2006), “consiste em passar de um modo
de expressão estética a outro” (p. 44).
De fato, Greenaway se aproveita dessa possibilidade trans-midiática
verificável na arte cinematográfica, e, em especial, no modo como se dá no
filme em questão. O cineasta extrai cinematicamente efeitos poéticos da
leitura oral de trechos do diário de Shonagon pelas modulações da voz do
leitor, em conjunção com as imagens e com a dimensão táctil (pele/tela)
em que estão escritas. Ou seja, Peter Greenaway não apenas se utiliza dos
aspectos visuais predominantes no cinema, como também explora os outros
sentidos na experiência de transposição intersemiótica.
(...) faz bastante sentido abordar como transposições intersemióticas os
muitos exemplos nos quais os aspectos visuais dos textos verbais têm sido
intensificados por operações visuais adicionais. Essas são as obras
intermidiáticas nas quais o texto verbal tem sido incorporado ao novo signo.
(CLÜVER, 2006, p. 152)
Outro fator de destaque em O livro de cabeceira é a escrita
ideogramática, que tanto se aproxima da prática da pintura e que explicita a
dependência de um contexto, espaço físico, instrumento e superfície. O
ideograma “caracterizado por sua flexibilidade visual e verbal, em oposição
à escrita alfabética” (ARBEX, 2006, p. 19) amplia ainda mais a
intercomunicação e a justaposição das artes nessa obra fílmica que conjuga,
em um mesmo espaço, “2000 anos de caligrafia oriental com 10 anos de
invenção da visualidade computadorizada e um século de vocabulário
cinematográfico” (MACIEL, 2004, p. 215).
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Na trama, a menina Nagiko recebe do pai, em todos os seus
aniversários, uma inscrição sobre a pele do rosto e da nuca de palavras
acerca da criação do homem por Deus, e sobre a importância da escrita
para a memorização do nome de cada um dos seres. No quarto aniversário,
somam-se a essa experiência a leitura, por sua tia, das primeiras páginas de
O livro de cabeceira, de Sei Shonagon, e o flagrante em que seu pai, um escritor,
submete-se ao assédio homossexual do editor, em troca da publicação de
seus livros. Quando adulta, Nagiko pede a seus amantes que escrevam em
seu corpo, procurando conjugar o prazer sexual ao sensorial e ao plástico,
tornando-se ao mesmo tempo carne e papel, ou – o que se manifesta pela
flexibilidade entre o verbal e o não verbal do ideograma – página e tela.
Em uma de suas inúmeras experiências na busca de um habilidoso
calígrafo que seja também um habilidoso amante, a protagonista conhece o
tradutor Jerome. O nome do personagem é uma referência a São Jerônimo,
santo da Igreja Católica, dono de uma das mais célebres bibliotecas do
mundo antigo, que transpôs pela primeira vez para o latim o original hebraico
do Antigo Testamento. Para isso, foi-lhe necessário recriar uma sintaxe, um
estilo, uma língua enfim que fosse tanto nobre quanto popular.
Hebraizar o latim, inscrever a diferença no mesmo, reconfigurar uma
língua a partir da estranheza da outra, desviar-se da literalidade e arriscarse na interpretação dos sentidos do texto foram algumas das diretrizes
da obra de Jerônimo. Como um bom precursor dos modernos, ousou
na invenção de neologismos, reimaginou metáforas, recusou as regras e
os artifícios da retórica do tempo, experimentou novas dicções, aliou o
rigor à transparência do dizer. (...) Como Novalis, ele encontrava no
poético a via mais genuína para a expressão do que considerava o mais
verdadeiro. (MACIEL, 2004, p. 63)
A alusão a São Jerônimo conjuga-se ao caráter babélico do filme –
foram usadas sete línguas em registros orais e escritos –, e à homenagem
implícita do diretor ao poeta e orientalista inglês Arthur Waley, o primeiro
a transpor para a língua inglesa, no início do século XX, os principais clássicos
da literatura japonesa, entre eles O livro de cabeceira.2 Tais escolhas vão ao
encontro da experiência realizada no filme de uma tradução intersemiótica,
que, como qualquer tipo de transmutação, precisa ser preparada para
“recriar” o texto-fonte, buscando, para isso, utilizar-se das particularidades
da linguagem em que se espera enquadrar o texto-alvo.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Além disso, Greenaway manipula muito bem o que seriam
considerações teóricas, referências e homenagens à fluência da história: assim
como São Jerônimo e Waley, ao trazerem para o Ocidente a estranheza
oriental, interferiram na produção poética ocidental, também o personagem
Jerome catalisa decisivas mudanças na vida de Nagiko e em sua relação
com a escrita e com a tradição paterna. É ele quem lhe sugere que cubra seu
corpo com os ideogramas que lhe são tão caros, que seja também escritora
e calígrafa, que seja o pincel e faça dele o seu livro. A princípio, Nagiko se
recusa; porém, ao saber das relações entre Jerome e o mesmo editor que
publicava as obras de seu pai, a protagonista resolve aceitar a proposta de
Jerome, fazendo dele o mensageiro de seus treze livros. Ocorre, contudo, a
interferência das paixões, dos ciúmes, do desejo, das inseguranças, do
interesse. Quando Nagiko elege outro mensageiro para um de seus livros,
Jerome tem um ataque de fúria, em que se queixa: “Ele estava coberto de
tinta... A tinta para o meu corpo.”
Evidentemente, a tinta a que se refere Jerome difere a princípio
daquela utilizada nas tatuagens, não apenas pela substância, mas especialmente
pelo instrumento e por seu tipo de contato com a pele. Roland Barthes, em
Variações sobre a escrita (1994, p. 238) aponta duas espécies de escrita: a da
punção e a do pincel, “a mão que força e a mão que acaricia”. A primeira,
cujos modelos são a escrita cuneiforme e a hieroglífica, “ins-creveria” – ou
seja, traçaria no “interior” –, sugerindo uma irreversibilidade, uma ordenação
sólida; enquanto a segunda, que é essencialmente a escrita ideográfica, seria
uma “de-scrição”, da mão deitada, do desenho descido, pousado. “Dois
gestos (duas civilizações): penetrar o segredo, racionalizar, ou expor o
significante, fazê-lo revir: a eternidade ou o retorno, o singular definitivo ou
o plural recorrente” (p. 239). O autor diferencia ainda Ocidente e Oriente,
atribuindo à escrita do primeiro a intenção de “domar o corpo (e por
conseguinte emancipá-lo)”, e à do segundo o dom de “dominá-lo (e por
conseguinte de refinar seu gozo)” (p. 234).
A ideia do gozo, do prazer, da sensualidade na leveza do pincel
sobre a pele, perpassa todo o filme, está em cada traço, vertical e horizontal,
de cada ideograma. Em O livro de cabeceira, pele e papel se misturam, seus
aromas são comparados a todo o instante, os prazeres do corpo e os
deleites da poesia são experimentados a um só tempo. Mas também as
dores e as vilanias. O texto a ser publicado é também o corpo que se
submete à vontade do mais forte: o escritor se humilha diante do editor –
precisando, antes, para isso, do auxílio de um tradutor/mensageiro – e ora
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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se deleita nessa humilhação, ora a repudia, assim como os amantes em suas
provocações, traições e preferências.
O desfecho da trama é ainda mais visceral: Jerome se suicida,
Nagiko escreve sobre o corpo dele “O livro do amante” e o envia ao
editor, que, num procedimento cirúrgico, retira a pele do tradutor, de que
serão feitas literalmente as páginas do livro. Tal livro será a moeda de troca
para os outros escritos de Nagiko e que a conduzirá à aspirada vingança
com a morte do editor.
Rasgando a pele
O ser humano consumido por um ideal doentio de perfeição
artística é também o tema de “Les suaires de Véronique” (1978)3, de Michel
Tournier. No conto, o narrador-testemunha conhece o casal Hector e
Véronique em um encontro internacional de fotografia. Chama-lhe a atenção
a beleza mediterrânea do modelo que posa para os fotógrafos, em sua
nudez “soberba e generosa”. Mais tarde, ouvindo a conversa do casal, o
narrador se interessa por um dente de tigre que o rapaz traz consigo,
acreditando tratar-se de um amuleto especialmente eficaz contra a ferocidade
e o apetite desses grandes felinos.
Um ano depois, o narrador visita o casal, e se surpreende ao
encontrar o que ele chama de “sala de operação” ou “quarto de tortura”:
um cômodo destinado apenas à prática de atividades físicas, as quais,
segundo Véronique, Hector executa intensamente por três horas todos os
dias. Aos poucos, a fotógrafa vai revelando o rigoroso programa de
exercícios, alimentação, sono a que vem submetendo Hector, a fim de tornálo um modelo ideal para suas fotografias. Ela revela também um estranho
fascínio por dissecações, necrotérios, feitiçaria e estudos de anatomia em
seres humanos vivos. Antes de se despedir, o narrador pede para ver Hector.
Véronique o conduz ao quarto onde ele repousa, um lugar de paredes
nuas, branco até na cor das cortinas, semelhante a um ovo – como se ali se
gerasse um novo Hector, um novo homem, obra sua: “Véronique pousou
sobre ele um olhar possessivo, depois ela me olhou com um ar de triunfo.
Era sua obra, uma conquista magnífica, indiscutivelmente, aquela massa
escultural e dourada, atirada ao fundo daquela cela ovoide” (TOURNIER,
1978, p. 164).
Destaca-se, aqui, uma antiga paixão de Michel Tournier: a fotografia.
Ela é colocada no centro da diegese, desde o princípio. A Véronique –
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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personagem que, de acordo com Monique Pinthon, é dotada de caráter
diabólico e atua em extrema oposição a seu homônimo bíblico, como um
“negativo” da Verônica que limpa o rosto de Jesus a caminho da crucificação
–, Hector interessa apenas como imagem, corpo e ângulo, para ser
fotografado. Toda a obra, aliás – a começar pela escolha do narradortestemunha, que em nada interfere, apenas observa e reproduz – conduz à
reflexão acerca do olhar, do icônico, do caráter sagrado e profano no gesto do
fotógrafo, na obra fotográfica: “O conto como um todo funciona como
metáfora da fotografia, como revelador de sua essência, tão frequentemente
ocultada pela sociedade que se dedica, tanto quanto possível, a usá-la de dois
modos que parecem opostos, mas que são, contudo, convergentes: sua
banalização pela difusão ou seu status de arte” (PINTHON, 1996, p. 147).
A protagonista traz à tona um incômodo presente nessa dicotomia,
que é o de como encontrar da fotografia a essência, como situá-la em uma
posição que a reviva, que não faça dela outro dos tantos clichês da arte.
A resposta está, na narrativa, na autenticidade da “dermografia”, a
prática final, que envolve o modelo em um tecido fotossensível, de maneira
dilaceradamente realista: algum tempo depois da visita do narrador, Hector
tenta deixar Véronique, atribuindo a culpa à anormalidade do seu
comportamento: ela fizera vinte e duas mil, duzentas e trinta e nove fotografias
da imagem dele. Véronique sofre. Porém, cerca de um ano mais tarde, o
narrador percorre uma exposição denominada “Les Suaires de Véronique”.
Ali, pelas paredes, estão estranhas silhuetas esmagadas, uma projeção plana
do corpo de Hector, semelhantes – escrevia Véronique em sua apresentação
da obra – “ao que restou, sobre certas paredes de Hiroshima, dos japoneses
fulminados e desintegrados pela bomba atômica” (1978, p. 169).
Por todos os lados, na sala de exposição, em cima, embaixo, à
direita e à esquerda, o espectro de um corpo aplainado, esticado, enrolado,
desenrolado, reproduzido em um friso fúnebre, em todas as posições.
“Imaginava-se uma série de peles humanas arrancadas, depois estendidas
como se tratando de diversos troféus bárbaros” (1978, p. 171), descreve o
narrador. Era Hector, sacrificado em um processo denominado “fotografia
direta”. Era ele, nos “sudários de Véronique”, exposto em uma igreja, em
nova referência ao culto (a Cristo? à fotografia? ao artista?). E ela, ao redor
do pescoço, trazia o dente do tigre de Bengala – representando,
simbolicamente, o Hector indefeso e desprotegido, a quem como uma
espécie de tigresa, havia reduzido à pele exposta naquelas paredes fúnebres.
Afinal, a foto mais realista do corpo é a própria pele em tela.
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Considerações finais
Neste ensaio, procurou-se apresentar uma série de obras que se
apropriam do corpo e, mais especificamente da pele, como suporte de
criação e recriação, como temática e como possibilidade de entrecruzamentos
midiáticos. Tais experiências artísticas extrapolam as leituras tradicionais do
corpo – animalizado pelas escolas literárias naturalistas ou erotizado por
uma lista infindável de produções –, assim como engendram a reflexão
acerca dos mais conhecidos suportes para a pintura e a literatura, a saber, a
tela e o papel.
Nesse sentido, destaca-se a contribuição de Anne-Marie Christin
acerca da origem da escrita, no que chamou de “pensamento de tela”, além
das considerações sobre intermidialidade, de teóricos como Leo Hoek e
Claus Clüver.
Vale ressaltar a habilidade das obras aqui em estudo – especialmente
o filme O livro de cabeceira e o conto “Les suaires de Véronique” – de se
utilizarem do diálogo com outras mídias não somente na articulação e
construção interna de sentido, como também na reflexão acerca dessas
mídias em suas relações mais profundas com o homem, com a vida, sob e
sobre a pele.
A pele: alvo de desejo, fonte de carícia e de calor. O maior órgão
do corpo humano. A pele que respira, que se arrepia, que envelhece. A pele
que intriga e desconforta nos objetos de Nicola Constantino, que seduz no
Livro de cabeceira, que se oferece como suporte para a agulha e a tinta das
tatuagens – sejam elas adornos, castigos, recordações. A pele que faz os
pergaminhos. Que é sudário e mortalha. A pele que é página e tela, que não
poderia deixar de ser pensada, utilizada, recriada nas artes – com toda a
beleza e todo o tato.
Notas
O trecho do ensaio desenvolve ideias já debatidas por Maria Ester Maciel, em “São
Jerônimo em tradução: Júlio Bressane, Peter Greenaway e Haroldo de Campos” e
“Poesia à flor da tela”.
1
Greenaway admite, em entrevista, que a beleza da tradução feita por Waley muito
influiu na composição do filme (GREENAWAY, 1997, p. 81).
2
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A palavra francesa “suaire” pode ser traduzida, em português, como “sudário” ou
“mortalha”. As traduções são minhas.
3
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Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Maria Angélica Amâncio SANTOS
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutoranda em Literatura Comparada pela mesma instituição.
Bolsista da Capes.
Artigo recebido em 28 de abril de 2011.
Aceito em 02 de maio de 2011.
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Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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REFERÊNCIAS INTERMIDIÁTICAS
EM INVERTENDO OS PAPÉIS, DE DAVID LODGE
André Soares Vieira
[email protected]
Resumo: O romance Invertendo os papéis
(Changing Places, 1975), de David Lodge,
reúne em sua técnica de composição o
entrecruzamento de mídias, como o
cinema, com outros gêneros literários
(romance epistolar) e extraliterários (notícias
de jornal, panfletos e manifestos). O
emprego das mais diferentes técnicas
oriundas da cultura midiática, aliado ao
uso de gêneros já consagrados pela
tradição, faz do romance de David Lodge
um grande mosaico de referências
intermidiáticas. A partir desse contexto,
o presente trabalho objetiva mapear o
modo como essas referências implicam
um cruzamento de fronteiras genéricas e
discursivas que descentram o próprio
fazer artístico ao permitirem a inserção
de ligações e arranjos inesperados entre
componentes narrativos distintos.
Résumé: Le roman Changement de décor
(Changing Places, 1975), de David Lodge,
présente, dans sa technique narrative, le
croisement des médias, comme le cinéma,
avec d’autres genres littéraires et non
littéraires. L’utilisation de différentes
techniques provenant de la culture
médiatique, combinées avec des genres
déjà consacrés par la tradition, comme
le récit epistolaire, fait du roman de
Lodge une mosaique de références
inter-médiatiques. A partir de ce
contexte, cet article analyse comment ces
références impliquent un croisement de
frontières génériques et des discours
entre élements narratifs hétérogènes.
Palavras-chave: Intermidialidade. Referências intermidiáticas. David Lodge.
Mots-clès: Intermédialité. Références intermédiatiques. David Lodge.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
57
Segundo Irina Rajewsky, existem três categorias individuais de
intermidialidade. Em primeiro lugar, Rajewsky propõe o conceito de
intermidialidade em um sentido mais restrito de transposição midiática
(adaptações fílmicas, novelizações, etc.). Estamos perante um modo de
criação de um produto, com a transformação de um determinado produto
de mídia – texto, filme, etc. – ou de seu substrato, em uma outra mídia.
Trata-se, portanto, de uma concepção de intermidialidade voltada para os
processos genéticos de produção: o texto ou o filme originais são a fonte
do novo produto de mídia, cuja formação é baseada em um processo de
transformação específico da mídia e, obrigatoriamente, intermidiático.
A segunda categoria proposta por Rajewsky diz respeito à
intermidialidade no sentido também estrito de combinação de mídias, como
é o caso de óperas, filmes, teatro, performances, instalações em computador,
quadrinhos, etc. Com efeito, tais mídias apresentam-se como produtos
híbridos ao combinarem mídias diferentes em sua constituição. No caso de
um filme, imagem, som e diálogos; em uma ópera, canto, música, teatro;
em uma performance, dança, música e teatro; nos quadrinhos, imagem e
texto. Estamos, portanto, perante os chamados fenômenos multimídia,
mixmídia e intermídia, nos quais a intermidialidade é um conceito semióticocomunicativo, baseado na combinação de, pelo menos, duas formas
midiáticas de articulação.
No entanto, é a terceira categoria apontada por Rajewsky que aqui
será privilegiada para exemplificar alguns dos processos que envolvem a
presença da linguagem cinematográfica na composição do romance Invertendo
os papéis (1998), de David Lodge. Nessa categoria, teremos a intermidialidade
em um sentido restrito de referências intermidiáticas, como é o caso de um
texto literário que faz referências a um filme ao evocar e ou imitar
procedimentos e técnicas cinematográficas como tomadas em zoom,
dissolvências, fades, efeitos de montagem, linguagem do roteiro, etc. Da
mesma forma, podemos pensar em fenômenos como a musicalização da
literatura, a transposição de arte e as referências a quadros em filmes. O
produto dessas referências intermidiáticas se constitui, portanto, em relação
à obra ou sistema a que se refere. Aqui teríamos, a rigor, apenas uma mídia,
ou seja, a mídia de referência, em oposição à mídia a que se refere, e que
está presente materialmente. Em vez de combinar diferentes formas de
articulação de mídias, esse produto tematiza, evoca ou ainda imita elementos
ou estruturas de outra mídia convencionalmente distinta através do uso de
seus próprios meios específicos.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Desta forma, o romance de David Lodge se apresenta como um
produto que faz referências a outras mídias ao imitar procedimentos da
liguagem do roteiro cinematográfico, além de mimetizar práticas oriundas
de outras ordens discursivas ao inserir cartas trocadas entre as personagens
e recortes de notícias e panfletos em sua composição. Estamos, portanto,
perante uma categoria que se constitui a partir daquilo que Rajewsky
denomina de caráter “como se” das referências intermidiáticas, uma vez
que uma única mídia – o livro – faz referência a outras mídias como o
roteiro de cinema, as cartas e os anúncios e notícias de jornal sem deixar de
ser um livro que apresenta uma história em forma de romance. Com efeito,
um produto de mídia não pode fazer uso ou reproduzir verdadeiramente
elementos ou procedimentos de outro sistema midiático, podendo apenas
evocá-los ou imitá-los.
É nessa perspectiva que o presente trabalho se configura ao tentar
analisar o modo como um romance pode integrar a forma de um roteiro
cinematográfico em seu último capítulo. Nesse caso, a noção de
intermidialidade se mostra particularmente útil para tentar definir o estatuto
do roteiro no romance, uma vez que estamos perante uma obra na qual o
conteúdo reflete uma forma de escritura que, desde o começo do último
capítulo de Invertendo os papéis, reivindica um conceito preciso, a ideia de um
filme. Com o romance de David Lodge estaríamos, então, entre duas
concepções de roteiro: de um lado a que o considera como um mero
objeto de transição entre o texto e o filme; de outro, a que lhe confere o
status de uma obra acabada e autônoma.
Um roteiro fictício
O romance Invertendo os papéis (Changing Places, A Tale of two Campuses,
1975), do escritor e crítico inglês David Lodge, apresenta uma história
simples. Numa espécie de homenagem a um de seus mestres, o autor aqui
retoma a ideia desenvolvida por Charles Dickens em Um conto de duas cidades
(A Tale of Two Cities) para demonstrar de maneira irônica as diferenças
culturais não mais entre Londres e Paris, mas entre dois países, a Inglaterra
e os Estados Unidos, mais especificamente entre os campi de duas
universidades: a inglesa Rummidge e a americana Euforia. Philip Swallow é
um professor de literatura inglesa da fictícia universidade de Rumidge, nos
arredores de Londres. Morris Zapp é também professor de literatura inglesa
na Universidade de Euforia, na Califórnia. Ambos participam de um
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
59
programa de intercâmbio entre as duas universidades que prevê a troca de
seus postos durante seis meses. Deixam, portanto, suas esposas
(respectivamente Hilary e Désirée) e partem rumo a seus destinos.
Segundo o próprio David Lodge, o romance trata da história dos
dois acadêmicos que, depois de trocarem de emprego no ano de 1969,
passam a se relacionar com a esposa um do outro. No decorrer da história,
trocam diversas outras coisas, como experiências, valores, atitudes e
linguagens numa trama altamente simétrica, em que todos os acontecimentos
em um lugar têm algum equivalente ou reflexo no outro.
O romance é dividido em seis capítulos. O primeiro, chamado de O
voo, mostra as viagens dos dois professores: o avião de Philip atravessando
o Oceano Atlântico em direção ao leste, enquanto que o de Morris voa
para o Oeste. Os dois aviões por pouco não se chocam. Aqui já nos
deparamos com uma mudança quase imperceptível: a narrativa passa do
tempo presente no capítulo I para o tempo passado no capítulo II, intitulado
A adaptação, em que cada um se familiariza com seu novo habitat. O terceiro
capítulo, A correspondência, é apresentado como um romance epistolar por
meio de uma série de cartas trocadas por Philip e Hilary, de um lado, e por
Morris e Désirée, de outro. O capítulo IV, A leitura, consiste de trechos de
jornais e de outros documentos lidos pelas personagens: artigos jornalísticos
locais que descrevem ou relatam as implicações político-sociais dos dois
acadêmicos em seus novos meios de atuação. O capítulo V, A mudança, é
escrito segundo um estilo mais tradicional, mas se afasta do padrão de
alternância usado nos capítulos anteriores e apresenta as experiências interligadas
de Philip com Désirée, esposa de Morris, e de Morris com Hilary, esposa
de Phillip. Finalmente, o sexto e último capítulo, O final, surpreende pela
forma assumida pela narrativa: a de um roteiro cinematográfico.
O capítulo se abre com palavras de natureza codificada, remetendo
às didascálias típicas que introduzem um texto roteirístico: Exterior, esquerda
para a direita, trilha sonora, enquadrar, plano sobre... Aos poucos, as
personagens voltam a aparecer, primeiramente nas indicações de cena e de
ação das didascálias, e, em seguida, nas passagens dialogadas agora
apresentadas na forma de discurso direto e precedidas por seus nomes em
itálico e centralizado.
Na verdade, não estamos tão distantes da forma como o capítulo
precedente terminou. Ao final do capítulo 5, Hilary recebe um telefonema
de Désirée. Ela vai até Morris, que está saindo do banho, e lhe conta o que
conversou com sua esposa. Désirée revela que estava tendo um caso com
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Philip, o que faz com que Hilary igualmente lhe diga que ela faz o mesmo
com Morris. Em diálogo direto, Hilary comunica então a Morris que, ao
saber disso, Désirée havia proposto um encontro dos dois casais para que
discutissem a situação. Tal encontro, espécie de conferência, acaba se
realizando em Nova York, a meio caminho entre a Califórnia e o Reino
Unido, durante o qual os quatro protagonistas deveriam discutir e resolver
seus problemas matrimoniais e, por extensão metalinguística, a possível
resolução (dénouement) de sua história; ou seja, a história que vem sendo
narrada em Invertendo os papéis.
Evidentemente, um roteiro não pode ser lido como um romance.
No entanto, ao apresentar-se como a continuação do capítulo 5,
eminentemente dialogado, o último capítulo de Invertendo os papéis causa
menos impacto ao leitor, pois os diálogos lá estarão, sendo novamente
trocados pelas personagens do romance. Excetuando-se os diálogos, a
diferença entre romance e roteiro mostra-se em seu aspecto formal.
Primeiramente, a escrita romanesca permite a descrição exaustiva de uma
ação, podendo inclusive exprimir o pensamento de uma ou mais personagens.
Já em um roteiro, enunciados como “ele pensa que” tornam-se inconcebíveis.
Conforme percebeu Chistophe Gauthier,
Se ele (o enunciado) não está inscrito em uma réplica, não tem direito à
existência; não tem, por assim dizer, nenhum valor cinematográfico. O
roteirista deve então buscar alternativas se quiser expressar o sentimento
exterior de uma personagem: pode recorrer à voz em off, ao flashback ou ao
flashforward. (GAUTHIER, 1999, p. 42, minha tradução)
Em segundo lugar, o formato particular do roteiro, com seu
vocabulário técnico, pouco tem a ver com os modos de escritura do
romance. Essa é a grande diferença que salta aos olhos do leitor ao se
deparar com o último capítulo do romance de Lodge, o que vem a exigir
um esforço suplementar de leitura.
David Lodge propõe, portanto, ao leitor de seu romance, um texto
que remeta a um roteiro de cinema não apenas para concluir sua obra, mas
igualmente para discutir a relação entre literatura e cinema, em uma visada
declaradamente metalinguística. Dispostos a elaborar roteiros os mais
incongruentes para suas próprias vidas, depois dos acontecimentos decisivos
que viveram em solo estrangeiro, Morris e Philip tentam, por conseguinte,
dar um fim à história do romance. Philip acredita que, em sua geração,
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61
ainda se crê na integridade do “eu”, tal como ensinada pela velha doutrina
liberal, base de toda a ficção realista e tema de todos os romances. Na
oposição estabelecida entre o público e o privado, responsável pela distância
entre as gerações, a vida privada estaria em primeiro plano, com a história
retumbando como canhões, ao longe, nos bastidores. O romance, então,
estaria morrendo, e com ele, todos nós, pois tratar-se-ia de uma mídia
contra a natureza, sobretudo para os alunos, pois nada teria a ver com suas
experiências. Para Philip, os jovens vivem um filme, e não um romance:
“Escrever um roteiro consiste, para o escritor, em se aproximar
simbolicamente do cinema e da imagem, afastando-se, do mesmo modo,
do romance. Se o roteiro não faz um filme, faz, pelo menos, pensar em um
filme, um filme para ser vivido pelas personagens do roteiro” (GAUTHIER,
1999, p. 45, minha tradução).
Reunidos, então, para discutir seus destinos cruzados ao longo dos
últimos seis meses, quando cada um dos acadêmicos envolvera-se com a
esposa do outro, Morris, Philip, Hilary e Désirée passam a discutir não
apenas o destino de suas vidas, como também o desenlace da própria
obra. Sintomaticamente denominado de O final, o último capítulo de Invertendo
os papéis coloca em confronto o cinema e o romance no que respeita à
previsibilidade do fim. Segundo a intepretação de Philip, o leitor prevê
com maior facilidade a aproximação do final do livro pelas poucas páginas
que se acumulam entre seus dedos da mão direita. Trata-se de uma prova
física irrefutável que anunciaria o fim próximo do romance. Algo que remete,
portanto, a um caráter espacial. Por sua vez, o filme nada deixa prever ao
seu espectador que o mesmo se aproxima do final, a menos, é claro, que
tenhamos verificado a duração do mesmo na coluna de programação de
cinema de algum jornal ou internet. De um modo geral, no entanto, o
realizador cinematográfico encerra sua narrativa de maneira inadvertida,
sobre uma imagem qualquer por ele escolhida. É o que ocorre em Invertendo
os papéis: o fim do romance, do roteiro e do filme se dá na imagem congelada
de Philip dando de ombros após dizer a palavra FIM. Nenhuma decisão é
tomada pelas personagens, configurando um final em aberto, característico
de filmes sobretudo europeus. Um final cinematográfico para um romance,
mas um final que na verdade não conclui. Ou estaríamos diante de um final
literário, romanesco para um filme, sem a necessidade de um happy end ou
de, pelo menos, um final totalizador/tranquilizador/organizador do caos?
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
62
A ideia de escrever o sexto e último capítulo de seu romance como
um roteiro de cinema representou uma altenativa para seu autor equacionar
dois problemas que então se lhe apresentavam. Segundo o próprio Lodge,
à medida que escrevia o romance, percebia a necessidade de escrever um
final satisfatório seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista
narrativo. No que dizia respeito especificamente ao ponto de vista narrativo,
o autor relutava em tomar uma decisão em favor de um ou de outro casal,
o que, implicitamente, determinaria optar também por uma das duas culturas
(a inglesa ou a norte-americana). O apelo a um capítulo “roteirizado” parecia,
portanto, resolver todos esses impasses de uma só vez:
Para começar, o formato preenchia o requisito de subverter o discurso ficcional
“normal”. Além do mais, eu, como autor, me via livre da obrigação de
julgar e arbitrar as vontades dos quatro protagonistas, pois não há resquícios
textuais da voz autoral em um roteiro, uma vez que consiste apenas de
diálogos e descrições objetivas e impessoais do comportamento visível das
personagens. (LODGE, 2009, p. 235)
Com efeito, o uso de procedimentos de apresentação baseados
em técnicas de roteirização mostrou-se particularmente eficaz por parte
dos chamados escritores do novo romance francês. Marguerite Duras e
Alain Robbe-Grillet lançaram mão de expedientes semelhantes com o intuito
de neutralizarem a presença do narrador em suas obras literárias. A escrita
breve, objetiva do roteiro, que segue de perto a estrutura do texto dramático,
mostrou-se muitas vezes eficaz para os experimentos com a linguagem
literária. Texto ambíguo e de caráter transitório, o roteiro normalmente foi
utilizado por escritores preocupados com a experimentação. Ao mesmo
tempo que se aproximava da linguagem do cinema, o roteiro permitia a
ilusão de uma narrativa que se contava por si mesma, independente de um
narrador, sonho antigo perseguido desde Flaubert.
Ao se ficcionalizar, o roteiro perde seu caráter funcional de texto
de passagem para o cinema, não mais reivindicando os códigos do teatro
ou do romance, mas tão-somente o status de litetatura. Roteiro fictício:
jamais se tornará um filme e, no entanto, contenta-se com suas marcas e
índices do cinema.
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Heterogeneidade génerico-discursiva e referências intermidiáticas
O emprego das mais diferentes técnicas oriundas da cultura midiática
(cinema, notícias de jornal, panfletos e manifestos), aliado ao uso de gêneros
já consagrados pela tradição, como as cartas, faz do romance de David
Lodge um grande mosaico que, ao misturar os vários registros e discursos,
vem confirmar as ideias de Ítalo Calvino sobre a necessidade em se mapear
os processos de produção e de recepção do texto literário como rede de
conexões que vê o mundo como um “sistema de sistemas”. É justamente
na multiplicidade enquanto valor que cada sistema particular condiciona os
demais, ao mesmo tempo em que é condicionado por eles. A simultaneidade
dos mais heterogêneos elementos concorre, assim, para a determinação de
cada evento, confirmando a tese da literatura como “método de
conhecimento e, principalmente, como rede de conexões entre os fatos,
entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (CALVINO, 2002, p. 121).
No espaço narrativo de Invertendo os papéis, percebe-se, com efeito,
o apelo aos diferentes discursos e gêneros na construção de novas formas
de representação de uma realidade multifacetada, fragmentária e múltipla,
na qual os registros mais distintos encontram-se emaranhados. Neste
processo, vislumbra-se o imbricamento de gêneros e mídias, com a
consequente diluição de suas fronteiras. Além disso, cumpre observar que
o texto de Lodge descentra o próprio fazer artístico, ao permitir a inserção
de ligações e arranjos inesperados entre componentes narrativos distintos.
Cada uma das formas assumidas pelo romance de David Lodge
(cartas, avisos, notícias de jornal, roteiro) desempenha um papel simbólico
e informativo. Sua diversidade, no entanto, não impede que as mesmas
sejam “digeridas” pela forma e gênero romanescos. Trata-se, antes, de
digressões a que o romance se permite de modo natural. Segundo Gauthier,
“a escritura de David Lodge passa de um sistema de signos a outro, mas
no interior de um sistema de signos dominante: o romance” (GAUTHIER,
1999, p. 48).
A percepção do mundo, bem como suas representações, vêm sendo
alteradas com base em uma lógica cultural urbana que enfatiza os processos
midiáticos como mediação (vale a redundância) entre o olhar do homem e
a realidade. Assim, a apropriação do real passa necessariamente pela tela do
cinema, da televisão, da página do jornal ou da internet em uma dinâmica
que altera igualmente nossa percepção do mundo através, sobretudo, de
simulacros. Como resultado, o real tende a dissolver-se em uma colagem
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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de signos, o que vem definir a nova sensibilidade contemporânea, manifesta
no modo como o homem se situa frente ao imaginário da cultura midiática.
O romance, nesse viés, problematiza a nova ordem de forma
contundente ao fazer referências explícitas a outras mídias e discursos. Tais
referências são normalmente discutidas e teorizadas a partir do conceito de
inter-textualidade. Segundo Irina Rajewsky, existe, de fato, uma relação
estreita entre as referências intermidiáticas e intertextuais se pensarmos essa
relação em seu sentido restrito, o que inclui as evocações ou imitações de
certas técnicas de outras mídias em uma mídia específica.
Considerações finais
As referências intermidiáticas implicam, por definição, um
cruzamento de fronteiras de mídias, propiciando o surgimento do caráter
“como se” de tais referências. Assim, ao inserir na estrutura de Invertendo os
papéis o roteiro de um filme ou os recortes de jornal e panfletos, David
Lodge permanece dentro de sua mídia primeira, o livro, evocando e/ou
imitando, no entanto, expedientes formais de apresentação do jornal e do
cinema, “como se” fosse o roteiro de um filme ou um texto jornalístico.
De fato, uma mídia não pode reproduzir genuinamente elementos ou
técnicas de outro sistema midiático através de seus próprios meios específicos
de mídia, mas apenas evocá-los ou imitá-los.
Além disso, tal diferença midiática pode também fazer surgir uma
qualidade específica e capaz de dar forma à ilusão da mídia que é inerente
às referências. É precisamente essa ilusão que detém o poder de provocar
no leitor do romance de Lodge a sensação de uma presença visual oferecida
pelo cinema ou pela leitura de jornais, panfletos ou cartas.
Em seu romance, David Lodge apela para um mosaico de signos,
passeando com desenvoltura de um sistema sígnico a outro, indo do
romance ao cinema e passando pelas cartas, pelo estilo jornalístico, etc.
Trata-se, bem entendido, de uma vasta rede de relações não apenas
intertextuais e intersemióticas, mas, sobretudo de relações intermidiáticas.
Tendo isso em vista, nas referências intermidiáticas, segundo a leitura
de Irina Rajewsky, apenas uma mídia distinta participa de sua própria
materialidade e midialidade específicas, pois seu aspecto intermidiático
definitivo não se refere às manifestações materiais de duas ou mais mídias
diferentes. Em obras como Invertendo os papéis, as referências intermidiáticas
dizem respeito à própria referência que um produto de mídia (texto, filme,
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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etc) faz a um produto individual, um sistema ou subsistema de uma mídia
diferente. Logo, a significação desse produto da mídia constitui-se em relação
ao produto da mídia ou ao sistema ao qual se refere, sendo essa referência
de natureza intermidiática. Ainda que o romance de Lodge mantenha-se
nos limites de seu aparato verbal, o caráter “como se” de sua estrutura
apela para a ilusão referencial moderna, calcada na imitação/evocação de
outras mídias e discursos.
Ao discorrer sobre as práticas de novelização (adaptações romanceadas
de filmes), Jan Baetens afirma que, de um modo geral, as relações entre literatura
e cinema não podem mais considerar livros e filmes como pertencendo a
dois sistemas culturais distintos e autônomos, com seus códigos e convenções
específicos. Cada vez mais temos a impressão de que as práticas artísticas
misturam-se entre si. As mídias, em geral – definidas pelo autor como
campos relacionais entre três dimensões: o suporte material, um determinado
tipo de signo e um conteúdo particular – transformam-se continuamente,
mas ao invés de apresentarem-se isoladas, aparecem e funcionam sempre
em redes intermidiáticas. Esta pluralidade de mídias, ligadas elas mesmas a
outras mídias com as quais estabelecem relações variadas, abrem, assim,
novas e diversificadas perspectivas de pesquisa.
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cinéma fait à la littérature (et réciproquement) ». Fabula LHT (Littérature, histoire, théorie),
n°2, 1 décembre 2006. Disponível em: http://www.fabula.org/lht/2/Baetens.html.
Acesso em: 23 abr. 2011.
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Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Perspective on Intermediality. In: DESPOIX, Phillipe et SPIELMANN, Yvonne
(Orgs). Intermédialités, Rémedier, nº 6, 2005, p. 43-64.
André Soares VIEIRA
Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor em
Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor
adjunto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Artigo recebido em 30 de maio de 2011.
Aceito em 24 de junho de 2011.
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Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
67
O SENSÍVEL CINEMÁTICO:
NOTAS SOBRE ELES ERAM MUITOS CAVALOS,
DE LUIZ RUFFATO
João Guilherme Dayrell
[email protected]
Resumo: Este artigo busca delimitar
em eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato, o que resta da mediação
pela máquina – que aqui chamamos
de cinema – das imagens que
compõem o sensível contemporâneo. Atenta-se para o contexto
no qual se insere o referido texto,
qual seja, a cidade de São Paulo no
ano de 2000, para descrição da vida
abjeta, e, por fim, para a composição
do texto em 70 fragmentos – que não
se organizam como uma amálgama,
mas como um rizoma – que
intercalam a abordagem de uma
situação social, enunciados recortados
de jornal e variados simulacros.
Abstract: This article intends to
delimitate in eles eram muitos cavalos,
by Luiz Ruffato, what is left of the
mediation done by the machine – that
here we call cinema – of the images
that compose the contemporary
sensitive. We must be aware of the
context in which the referred text is
inserted, which is the city of São
Paulo in the year 2000, the
description of the abject life, and
finally, the composition of the text
in 70 fragments – which are not
organized as an amalgam, but as a
rhizome – that interpose the approach
of a social situation, enunciated pieces
of newspaper and various
simulacra.
Palavras-chave: eles eram muitos cavalos. Sensível cinemático. Cinema.
Key words: eles eram muitos cavalos. Cinematic sensitive. Cinema.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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A começar pelo título: eles eram muitos cavalos (RUFFATO, 2001). O
corte desagrega o texto e destaca o contexto, espaço no qual as
temporalidades se imbricam, citando e ex-citando (COMPAGNON, 2007)
a história: os cavalos que sucumbiram juntos aos cavaleiros da inconfidência
mineira, que faz Cecília Meireles (1972) trazer as impossíveis testemunhas
da barbárie. A peça de teatro O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade1,
que contemporaneamente a Walter Benjamin, anunciava a guerra como
ponto mais alto da fusão homem-máquina: os cavalos aqui como encarnação
da máquina fascista, carregando Hitler dentro de si, provocando a nostalgia
das meninas soviéticas que relembram do tempo em que eram animais
dóceis (2005). Do mesmo Oswald, o capítulo denominado “A sociedade
da anestesia”, presente na peça A morta2, onde suicidas que, apesar de mortos,
instauram um diálogo entre si. O vodu haitiano no ritual dos Loa observado
por Alfred Métraux (1958): o homem que monta no cavalo como
encarnação, instauração do transe no qual o indivíduo se ausenta de si por
meio da montaria (1958). Os cavalos de Clarice Lispector (1992), que
subvertem a domesticação com um inesperado safanão com a cabeça. Ou
mesmo o momento descrito pela escritora em que todos os cavalos se
tornam imóveis com as patas erguidas, configurando “um instante
imobilizado como por uma máquina fotográfica que tivesse captado alguma
coisa que jamais as palavras dirão” (LISPECTOR, 1992, p. 52). Um sopro
indistinto (FÉDIDA, 1996) “de algo que existe sobre um objeto”, como
diz Emanuele Coccia (2010), ou seja, uma imagem.
Entretanto, antes do desmonte, é preciso montar a história. O
tempo, ainda que não seja possível estar absolutamente certo, seria o ano de
2000, o espaço, a cidade de São Paulo. Este é desmontado em setenta
fragmentos, a partir dos quais nos é permitido inferir que uma suposta
câmera-olho, ao percorrer o espaço citadino, transmitindo-nos momentos
triviais – por vezes escatológicos – das vidas abjetas que na metrópole
residem, é interrompida, por sua vez, por outras câmeras. Destacamos: o
meio usado para “informar” o que se passa na cidade retrata não somente
outros “retratos”, vá dizer, outras transmissões, como fragmentos de jornais,
de programas televisivos, por exemplo, outrossim toda sorte de objetos
discursivos: pedaços de cartas, recados em secretárias eletrônicas, lista de
livros, de recomendações para obter sorte na vida, oferendas, serviço
meteorológico, entre outros. A inversão da cultura em natureza – mito –
que se transforma, no contemporâneo, em pensamento mítico, idioleto
(BARTHES, 2004), conjunto de estereótipos; cartazes, anúncios, recortes
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de jornais, textos achados no lixo. Sim, aqui é indiscernível a lógica
bífida que Barthes apontava: linguagem interior e conversação, artigo
de imprensa e sermão político, romance e imagem publicitária
(BARTHES, 2004, p. 80).
Contudo, o tempo atual – no qual eles eram muitos cavalos encontra-se
imerso – não se descentraliza por completo: o acúmulo perdura como
meta, tendo o seu dispêndio canalizado não somente por meio da guerra
explícita, mas, também, naquela interiorizada, nomos do contemporâneo
(BATAILLE, 1975). À lógica linear pela qual escoa a economia de mercado,
ou seja, o tempo concebido como linha reta progressiva sob a tutela
messiânica do desenvolvimento econômico se coaduna, por sua vez, a
circularidade das mercadorias, a partir da qual tudo é posto como moeda
de troca, impossibilitando, finalmente, a dádiva (DERRIDA, 1995). Os
tempos, portanto, coexistem no mundo pós-68, que traz, contudo, em seu
cerne, a multiplicação infinita dos dispositivos3, o que nos leva a constatar:
em eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, a pobreza não é mais da falta,
mas, sim, do excesso. Destarte, a contrapartida, na obra, da captura pelos
dispositivos – que, no contexto do capitalismo, não visam provocar
subjetividade específica, mas somente fazer a economia girar – é a interrupção
dos depoimentos das personagens: jesuscristinho (RUFFATO, 2001, p. 18),
cujo depoimento é censurado pela verborragia irracional do fragmento, ou
Humberto (RUFFATO, 2001, p. 126), da passagem intitulada “noite”, que
presencia seu desabafo ser agressivamente interrompido pelos enunciados
da cidade, que, por sua vez, emergem repentinamente no corpo da narrativa,
ou, por fim, o anônimo do fragmento “trabalho” que “rouba uns trocados
da bolsa da esposa e sai de fininho dia inteiro bundando no parque ibirapuera
olhando (...) nuvens que se formam e se desmancham, à espera de que o
dia se desmorone” (RUFFATO, 2001, p. 46). A narrativa, em eles eram muitos
cavalos, abarca o que está fora da linha progressiva composta pelos fatos de
grande importância, aqueles que compõem a história oficial, privilegiando,
em seu trabalho, o ruído. O iníquo de todo excesso contemporâneo não é
decupado, e não se estabelece a saída para as personagens no que concerne
à expropriação de seus poderes de decisão e ação, ou seja, de suas respectivas
autonomias, como aquela já apontada em relação as estratégias textuais
correlativas à captura pelos dispositivos. O anônimo no parque Ibirapuera,
ao contrário do estrangeiro do poema de Charles Baudelaire, que fixa sua
paixão no devir das nuvens no céu4, só espera que o dia desmorone.
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70
A opção pela leitura citadina por meio de fragmentos numerados
até o número 69 – quando o livro é interrompido por páginas negras
procedidas de um último flash não numerado –, nos faz evocar a São Paulo
experimentada na década de vinte por João Miramar, de Oswald de
Andrade, em 163 passagens (ANDRADE, 1973), igualmente disponíveis
em ordenação numérica. O estilo telegráfico de Miramar, tal qual destaca
Haroldo de Campos (2008), entretanto, é elevado, no texto de Ruffato, ao
fuzil cronofotográfico – arma de guerra –, tão adequado ao cinema, como
destacava Paul Virilio (2005). Valendo-se da sintaxe analógica do cinema
eisensteiniano (CAMPOS, 2008), Oswald propõe uma amálgama – partes
que formam um todo – de imagens de um Miramar que é criança, cresce,
casa, viaja à Europa, assina suas cartas de despedidas, entre outros. Em eles
eram muitos cavalos, as cartas apócrifas interrompem a descrição da barbárie,
e como presenciamos no fragmento “a caminho”, o sujeito da condição
de direcionamento a um lugar qualquer é o neon, que “vaga veloz por sobre
o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências,
costelas seixos, negra nesga na noite negra” (RUFFATO, 2001, p. 11).
Como forma mais abrupta de contrapartida da dessubjetivação
das vidas, ou seja, da subsunção de suas autonomias e da impossibilidade
de se remontar uma subjetividade em uma suposta totalidade – tal qual
fazia Oswald com João Miramar –, as personagens centrais do especificado
texto de Ruffato passam a ser as máquinas, confluindo na imensa máquina
da metrópole. Este, por sua vez, é o espaço no qual se constitui, por
excelência, aquilo que Adolf Hitler, trazido por Giorgio Agamben, definia
como espaço sem povo, sobre o qual “os povos se transmutam em
população e as populações em muçulmanos” (AGAMBEN, 2002, p. 90).
A figura do judeu no campo de extermínio que atingia o grau máximo de
indiferença em relação à vida, por ser colocado defronte as mais absurdas
e extremas experiências físicas e psicológicas, remete-nos ao máximo grau
de expropriação da vida no âmbito da soberania, levando a indescibilidade
de um não-homem que sobrevive ao homem, ou um homem que sobrevive
a um não homem (AGAMBEN, 2008).
A cidade, então, nos demarca não apenas a brecha que se abre no
tempo entre um projeto e um programa, como coloca Jean-François
Lyotard (1997), mas a zona de anomia entre bio e tanato política, molde e
modulação, disciplina e controle (DELEUZE, 1992, p. 219). No Brasil, tal
configuração encontra sua diferença como retorno do idêntico (DELEUZE,
2006) na barbárie normatizada, nos inumeráveis massacres que compõe a
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nossa história: da escravidão à chacina do Carandiru, da Candelária às ruas
do centro de São Paulo, por onde a vida matável, porém insacrificável
(AGAMBEN, 2002), “em sonhos de crack torrou, carvão indigente”
(RUFFATO, 2001, p. 21), tal qual descreve eles eram muitos cavalos. Se o
muçulmano resta como testemunha justamente por ser uma testemunha
impossível (AGAMBEN, 2008), no referido texto de Ruffato, a partilha da
experiência se dá de forma análoga a que descrevia Jean Luc Nancy ao
abordar a poesia, ou seja, “segundo as leis de uma incomunicabilidade das
suas ordens sensíveis” (NANCY, 2005, p. 40): procedimento que abre a
narrativa do campo discursivo para o dialógico (FLUSSER, 2007), como
um arquivo aberto ao futuro (DERRIDA, 2001). Os fragmentos aqui
passam, então, de uma amálgama para um rizoma (DELEUZE;
GUATTARI, 2007), o que quer dizer que a possibilidade de se conectarem
uns com os outros é a mesma impossibilidade de que um deles se complete
e forme um sentido inteiro, totalizante, confortável consigo. O panorama
descrito se potencializa pela anomia das personagens, assim como pela
pouca explicação acerca das passagens que compõe a obra, tornando a
fantasmagoria marca conspícua do texto. De tal sorte, eles eram muitos cavalos
nos aparece como uma pletora de gestos anônimos que emergem a partir
das inúmeras interrupções que sofrem os relatos, como, por exemplo, o
das crianças que dormem ao lado de ratos, que durante a descrição de suas
vidas abjetas – lembrando que Júlia Kristeva (1980) apontava o abjeto nem
como sujeito nem como objeto, ou seja, a morte do eu – testemunham a
sobrevinda de enunciados apócrifos que, por sua vez, impedem, silenciam
a exposição (RUFFATO, 2001, p. 20-21). Tal panorama encontra, por fim,
seu correlato na experiência do cinema.
De acordo com Susan Buck-Morss (2010), um ambiente
“tecnologicamente alterado expõe o aparato sensorial humano a choques
físicos que tem correspondente em choques psíquicos” (p. 30), expropriando
mesmo os traços não-civilizáveis próprios do sensível, tornando-os nulos.
De tal forma, os estímulos das “percepções que antes suscitavam reflexos
conscientes” se coadunam em “fonte de impulsos de choques dos quais a
consciência se deve esquivar” (p. 30). E é por meio do cinema, – ou da
câmera, ou melhor, da máquina – que o olho chega onde jamais poderia,
assiste a cabeças cortadas e a fantasmagoria de pessoas que não estão mais
lá, às mais eróticas provocações e aos mais absurdos atos de violência “e
não fazemos nada”, cortando-se “a continuidade entre ação e cognição”, o
que produz a “neutralização da sensação, um entorpecimento do sistema
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nervoso que é equivalente a uma anestesia corpórea” (BUCK-MORSS,
1996, p. 14). Tal condição polariza o sensível na matéria obliterando a
memória, já que não podemos responder a todos os choques aos quais
somos submetidos. A mediação do sensível pelo aparato tecnológico – tão
comum na guerra –, tendo em vista que chamamos de sensível as imagens
que se formam precisamente entre a matéria e a memória, como coloca
Emanuele Coccia (2010), torna aguda a seguinte polarização: de um lado,
temos no homem moderno a fascinação, a impressão “narcisista do controle
total”, na qual o fascismo faz sua morada, o que apenas intensifica, na outra
ponta, a absurda fantasmagoria desta imagem do ego intacto que se reflete
no espelho, a fratura radical, ou seja, caráter explícito de sua ilusão, de sua
descontinuidade por ser, enfim, uma imagem (BUCK-MORSS, 2010).
E, se como anunciava Paul Virílio (2005), “a guerra é o cinema e o
cinema é a guerra”, o cinema é absurda fantasmagoria de um real que se
torna absurdo, ou seja, que, como afirmava Gilles Deleuze (1985), não é a
vida que imita um filme, mas o mundo que se nos apresenta como um
filme ruim. Mas o que se joga de forma profícua aqui não é o que é cortado,
expropriado, mas, sobretudo, como se corta. Se, para Agamben (2005),
montagem se define por corte e repetição, ainda para o autor, existiriam
duas formas para este procedimento: uma o corte ele mesmo, ou seja, uma
potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do
poder narrativo para expô-la enquanto tal. A outra é aquela que propõe a
expropriação da experiência sem permitir ver que ela fora capturada pela
câmera, e aí acredita-se receber uma imagem especular na qual teríamos o
tempo cronológico, imagem do inteiro, do totalizável. De tal forma, é com
o advento do cinema, assim como da montagem cinemática, que somos
bombardeados com a impressão da visualização completa das multidões e
das metrópoles, que se tornam tão grandes e monstruosas que Walter
Benjamin, no seu trabalho “Passagens” (2009), ou Edgar Allan Poe, no
conto “Homem na multidão” (1999), não cansam de ressaltar a sua
fantasmagoria.
Todavia, a montagem cinemática não se destaca por juntar
fragmentos ou por sobrepor imagens, isto a poesia sempre fez. Muito
menos por, como afirma Georges Didi-Huberman (2008) e como vemos
nos filmes de Andrei Tarkovsky por meio dos longos planos sequência,
propor a coexistência de temporalidades heterogêneas em um mesmo
espaço, requerendo uma montagem. A literatura já nos fornecia o mesmo.
O que a montagem cinematográfica inaugura é um novo estágio do sensível,
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em que prefigura um absurdo “ganho” – alucinação? – cognitivo, cujo
preço que se paga – tendo em vista que se trata de uma falsa produção de
presença – é exatamente aquilo que Guy Debord (1997) chamou de
“sociedade do espetáculo”, ou seja, uma seleção das imagens que compõe
o sensível.
Em consonância com a leitura deleuziana do cinema neo-realista
italiano, em eles eram muitos cavalos, as personagens se tornam espectadoras
(DELEUZE, 1985). Ou seja, elas apenas assistem, registram imóveis tudo
o que se passa tornando inativo o princípio de resposta e ação, causa e
efeito. De forma similar presenciamos a revolução impossível como nos
trazia Glauber Rocha em Terra em transe, que sabia, bem como nos lembra
o próprio Deleuze (1985), que o povo era algo que faltava. Se o diretor
baiano produzia um documentário sobre uma ópera, como coloca Ivana
Bentes (1997), em eles eram muitos cavalos teríamos um livro de reportagem
acerca de um anúncio qualquer de jornal. O transe, a montaria, surge a
partir da crença onde o pensamento é arrebatado pela sua exterioridade
(BENTES, 1997). Mas o transe, o êxtase, é o momento no qual o sujeito
não se coincide consigo, ou seja, ele está lá onde não mais está (AGAMBEN,
2005, p. 91). Daí que o povo em Glauber não está mais onde está,
configurando, assim, uma massa por vir, que não, entretanto, chegará um
dia, mas que não cessa de chegar. Isto nos chama a atenção para a confluência
que se instaura entre biopolítica e cinema. Benjamin dizia:
A difusão se torna obrigatória porque a produção de um filme é tão cara que
um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode
mais pagar um filme. [...] Em 1927 calculou-se que um filme de longa
metragem, para ser rentável, precisaria atingir um público de nove milhões
de pessoas. (BENJAMIN, 1996, p. 172)
Deleuze também notava o dinheiro como principal dispositivo da
arte do cinema, declarando que “filmes sobre dinheiro já são, embora
implicitamente, filmes dentro do filme ou filmes sobre o filme”
(DELEUZE, 1985, p. 98). Porém, como possível forma de desarticulação
deste dispositivo, o filósofo citava a película Oito e meio, de Fellini, em que
“quando não houver mais dinheiro, o filme acaba” (DELEUZE, 1985),
propondo o que o próprio Benjamin já ressaltava, ou seja: a passagem
pelos dispositivos. O cinema pressupõe, de tal forma, um povo transfigurado
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em números, população, ou como dizia Buck-Morss (2010), a audiência
do cinema não é um conjunto de espectadores individuais, mas um
espectador, infinitamente reproduzido. Daí o brusco abandono das
personagens de Luiz Ruffato pela própria narrativa como contrapartida da
política “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2002). Ou seja, é
Humberto que grita por Marina e é interrompido pelos enunciados da
cidade (RUFFATO, 2001, p.126), o velho anônimo que habita o “cubículo
cevando ódio” (RUFFATO, 2001, p. 68), com suas costelas à mostra, se
esvaindo no turbilhão da narrativa, e as demais vidas que surgem em frases
esparsas, sempre obliteradas pela máquina.
No fragmento de eles eram muitos cavalos intitulado “Slow Motion”
(RUFFATO, 2001, p. 117) vemos uma mesma cena – na qual uma latinha
de cerveja é arremessada em um jogo de futebol – cambiando em pontos
de vistas distintos, fazendo flutuar o foco narrativo em um discurso indireto
livre que alterna entre um narrador situado fora da ação e os pensamentos
das personagens. A simultaneidade usada para trazer a massa ao estádio de
futebol através de algumas personagens anônimas faz, no entanto, com que
a voz das protagonistas surja como um sopro, como gestos, que produz
nada mais que o destaque do texto ele mesmo (AGAMBEN, 2000). De tal
forma, o meio, em eles eram muitos cavalos, é posto enquanto tal. Mas qual o
meio? Aqui tudo se joga no ponto em que a linguagem enquanto coisa
conscientemente expropriada no ímpeto de se trabalhar sua potência se
confunde com a expropriação forçada e centralizadora do poder. Ou seja,
se há algo expropriado, a montagem corta para que ele possa ser expropriado
no sentido de ser retomado ao uso: um desvio, detournement (DEBORD,
1956). Como as nuvens do Ibirapuera cortam a vida anestesiada no anônimo
permitindo que ela possa, talvez, ser vida novamente, ou seja, acaso, devir.
A máquina, por fim, se apresenta em seu desmonte: é a latinha de
cerveja que vem de algum lugar, alguém que conta sobre seu trajeto, uma
voz que emerge, o seu percurso visto de outro ponto de vista (RUFFATO,
2001, p. 117). Ou seja, a exterioridade do dispositivo é filmar o filme. Ao
fim de eles eram muitos cavalos, temos as páginas negras que precedem o
último fragmento do texto, suspendendo o ordenamento proposto pela
enumeração das passagens que, por sua vez, nos remontava à cidade como
um inventário, uma coleção. As páginas/telas escuras se colocam como a
categoria L, tal qual a emprega Jorge Luís Borges em “O idioma analítico
de John Wilkins”: o que está antes do fim da lista, mas acena para o infinito.
Como destaca Maria Ester Maciel (2010): o topos por excelência do
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inclassificável e, por extensão, a categoria que falta a todos os sistemas
taxonômicos em geral.
Alertando para a impossibilidade da classificação, tais páginas
instauram o dispêndio infinito do significado, no entanto, abdicando das
palavras. Aqui, o texto traz as escuras telas, como fazia Guy Debord nas
palavras de Giorgio Agamben (1995), mostrando que por de trás de todo
turbilhão não há nada a ser visto, este “sem-imagem”, que insere o objeto
no tempo, mostrando que não há nada por detrás da linguagem. Todavia,
todo este dispêndio, que nos joga de cara com a morte, aqui se estabelece
nos fazendo atentar para outro aspecto. Lembramos do filme O sétimo
continente, de Michel Haneke, no momento em que a personagem resolve se
matar ingerindo uma dose letal de veneno. A protagonista, com os lábios
brancos, o rosto completamente destituído de expressão, prefigurando um
estágio indescidível entre vivo e morto, está sentada em frente à televisão. O
momento de sua morte é precisamente o alternar de imagens entre seu
rosto e a tela da televisão. Sua morte, por fim, é uma TV fora do ar, que
perde a conexão. Esta é a redução mais radical que experimenta o sensível
no contemporâneo.
Em Ruffato, são as imagens de segunda mão que protagonizam
a narrativa. A escrita evoca uma imagem, como um fade out de um filme, o
escurecer entre a superposição de imagens, para enunciar o fim. É, contudo,
uma imagem da TV, do cinema, do jornal, como os anúncios de prostituição
no fragmento “na ponta do dedo” (RUFFATO, 2001, p. 137). Ou seja,
não se trata no texto de abordar a situação das prostitutas, ele não se ocupa
diretamente desta condição. O que temos é antes uma imagem já capturada
pela máquina – um estereótipo – que aqui é colocado sem créditos. Ou
mesmo o anúncio de vendas em que temos o nome da empresa e o telefone
(RUFFATO, 2001), ressaltando que não somente a falsificação aqui prefigura,
mas o saque, o roubo, que coloca os enunciados numa zona de
indeterminação: tudo ali é falso, tudo ali é verdadeiro. Desta forma o outro
entra, ou seja, seu depoimento como a eterna potência do falso de uma
imagem, no estranhamento do texto consigo. Isto quer dizer, por outro
lado, que não se postula aqui uma exceção que deveria ser contraposta à
exceção real que encontramos no Brasil de agora. Somente que se constata
que o esvair de uma vida corresponde a uma TV fora do ar, a um pedaço
de jornal jogado no lixo, ou seja, o estágio deste sensível expropriado pelos
dispositivos. De tal maneira, o que interessa, então, é o que brota no interior
desta máquina, ou seja, que a preocupação maior de eles eram muitos cavalos é
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colocar um tamanco de madeira em sua engrenagem e fazê-la inoperar,
sabotando-a. Assim, poderíamos trazer as imagens ao uso novamente,
profanando-as (AGAMBEN, 2007), instaurando uma montagem infinita:
como o já citado anônimo que rouba alguns centavos da bolsa de sua
esposa para ir “bundar” no Ibirapuera vendo as nuvens no céu. É a sua
possibilidade de trazer o sensível novamente ao uso, pois o desejo, como
diz Deleuze e Guattari (1966), não conhece a troca, somente a dádiva e o
roubo.
Notas
1
ANDRADE, 2005. Texto publicado pela primeira vez em 1934.
ANDRADE, 2005. Texto de 1937. Coadunando-se à peça O rei da vela, ambos os
texto de Oswald destacados aqui compõe a “Trilogia da devoração”, composta por
Oswald para o teatro.
2
AGAMBEN, 2009, p. 41. Giorgio Agamben nos conceitua o termo: “(...) chamarei
literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as
prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas,
as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas
também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação,
os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que
talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um
primata – provavelmente sem se dar conta das conseqüências que se seguiram – teve
a inconsciência de se deixar capturar. Recapitulando, temos assim duas grandes classes,
os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro,
os sujeitos. Chamo de sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a
corpo entre os viventes e os dispositivos.”
3
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João Guilherme DAYRELL
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Artigo recebido em 18 de abril de 2011.
Aceito em 03 de junho de 2011.
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MÚSICA E POESIA EM MÁRIO DE ANDRADE:
AINDA O CASO PAULICÉIA DESVAIRADA
Flávio Barbeitas
[email protected]
Resumo: A música e a noção de
musicalidade têm lugar de destaque
na teorização poética de Mário de
Andrade, embora um exame
aprofundado e mais especificamente
voltado para a relação entre música
e palavra é praticamente inexistente
na apreciação crítica de sua obra que,
quase sempre, se detém na descrição
das ideias do autor. Etapa preliminar
a uma reflexão mais geral sobre a
representação da palavra poética, o
texto a seguir detecta e procura
ocupar essa lacuna, buscando ao
mesmo tempo, por meio de
exemplos colhidos na Paulicéia
desvairada, iluminar a poesia de Mário
de Andrade com um foco eminentemente musical.
Abstract: The notions of music and
musicality have a prominent place in
the poetic theory of Mário de
Andrade, although a thorough
examination of the relationship
between music and word is almost
inexistent in the critical appreciation
of his work which almost always is
limited to the mere description of
the author’s ideas. As a preliminary
step to a more general discussion on
the representation of the poetic
word, the text then detects and tries
to fill this gap by examining
examples collected in Paulicéia
desvairada in order to illuminate the
poetry of Mário de Andrade with
an eminently musical focus.
Palavras chave: Poética. Música e palavra. Verso melódico. Intermidialidade.
Keywords: Poetics. Music and word. Melodic verse. Intermediality.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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A proposta deste trabalho é jogar nova luz sobre a noção de música
e sua utilização na chamada primeira poética de Mário de Andrade, mais
especificamente em Paulicéia desvairada e no ensaio A escrava que não é Isaura.
Em que pese a aparente inatualidade do tema, a abordagem que irá se
seguir – uma análise crítica da argumentação principal do autor em torno
do tema – na realidade prepara o terreno para uma discussão de maior
envergadura sobre a questão da representação da palavra poética. Contudo,
os limites deste texto me impõem a redução do alcance da discussão para
uma etapa intermediária e que diz respeito mais especificamente à própria
poesia de Mário de Andrade. Pode-se formulá-la, como indagação, nos
seguintes termos: apresentada, a princípio, como mero modelo para uma
determinada técnica de versificação, a noção de música pode se revelar útil
para ampliar a compreensão da poesia de Mário de Andrade? Pode também
alterar, ligeiramente que seja, os juízos críticos já consagrados a seu respeito?
Como primeiro passo, retomo brevemente à lição do poeta exposta
em seu célebre Prefácio interessantíssimo à Paulicéia desvairada. A sua “engenhosa”
teoria pode ser aqui resumida como uma proposta de transporte para o
poema do raciocínio harmônico/polifônico da música ocidental que, pelo
menos desde a Idade Média, teria superado o procedimento exclusivamente
melódico – ou seja, unilinear, sucessivo, horizontal – em proveito da
simultaneidade sonora e da noção de verticalidade e plurilinearidade que
dela decorrem. Nesse sentido mais geral, a harmonia, para Mário, teria
representado um processo de enriquecimento da música ocidental, pois
com os acordes, com os contracantos, com a perspectiva polifônica advinda
da simultaneidade, aumentaram os recursos e as possibilidades de expressão
artística. A hipótese, vista de certo ângulo e a despeito de inegável
etnocentrismo, aparenta possuir algum fundamento: uma melodia, ou seja,
uma organização sucessiva de sons pode ter seu sentido musical intrínseco
radicalmente transformado pelo acompanhamento harmônico ou mesmo
pela simples introdução de uma nova e simultânea linha melódica. Em
outras palavras, diferentes harmonizações podem agir sobre uma melodia,
seja enfatizando um suposto sentido prévio que já lhe seria próprio ou, por
outro lado, traindo esse mesmo sentido, frustrando-o, desviando-o para
rumos talvez impensados.
Para Mário, tudo se passa como se a entrada em cena dos variados
processos de harmonização tivesse ampliado a rede potencial de sentido
que, antes, era acionada tão somente pela simples melodia. Ora, o que o
poeta parece almejar é que um recurso semelhante se instaure na poesia.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Sua luta é contra o império do que ele denomina verso melódico, ou seja,
daquele que contém um pensamento inteligível, lógico, capaz de veicular
uma significação segura.1 A simples melodia, tanto na música quanto na
poesia, é identificada como uma estrutura resistente à ambiguidade, unívoca,
objetiva, portadora de uma mensagem indiscutível, ao passo que a
introdução da harmonia, de certa maneira, desestabiliza esse efeito já na
raiz ao acrescentar outras possibilidades de configuração do sentido.2 No
caso do poema, a “harmonização” ou a “polifonia”,3 por abrirem a rede
de significação, passam a requisitar, muito mais que na “melodia”, a
participação do leitor.
Mas não adiantemos. Por ora convém analisar mais detidamente a
função que a música, com Mário, desempenha no âmbito da teoria da
poesia. Como se sabe, a tradição poética costumava referir-se às influências
musicais vislumbrando no horizonte o ritmo, os efeitos fônicos, a
instrumentalização sonora do verso. Falar em melodia aplicada ao poema,
por exemplo, significava, invariavelmente, a alusão a certo efeito suave e
cantante, a um especial enlevo que a música seria capaz de proporcionar;
em suma, à melopeia das palavras. Bem outra, como já vimos, é a intenção
de Mário de Andrade com a metáfora do “verso melódico”. A questão,
aqui, passa ao largo de uma eventual eufonia, de um suposto contorno
musical, para visar ao resultado semântico ele mesmo.
Mas é fato que o nosso poeta não inova totalmente. Aproximações
mais indiretas com a música, sejam metafóricas ou de algum modo alusivas
à estruturação da obra, já povoavam a teorização poética de e sobre autores
então já consagrados, como Baudelaire, Mallarmé e Poe. É que a comparação
com a música permite pensar na poesia moderna como uma espécie de
logos do qual, retirada a preponderância imperial do significado da mensagem,
resta a força de presença do discurso ele mesmo. Poderíamos ainda dizer
de outro modo: permanece o logos, mas sai de cena o valor de uma
“visualidade” clara que sempre o caracterizara na metafísica e que se
confundia com o plano do significado.4 Em se tratando de palavras, não se
consegue nunca, é verdade, transformá-las em puros sons, completamente
desvinculados de uma significação; eis aí, talvez, a fronteira infranqueável
que permite discernir música e linguagem verbal, pois é também um fato
que da pura sonoridade é impossível alcançar aquele específico sentido que
só a palavra produz. Seja como for, trata-se de um limiar fugidio,
“essencialmente móvel e instável”, e que traduz justamente o desafio acolhido
com devoção tanto pela poesia moderna quanto pela chamada “música
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contemporânea”. Em ambas as experiências, a palavra, fruto da voz (phoné
semantiké aristotélica), é valorizada mais pelo que tem de sonoro do que de
semântico, ainda que no caso da poesia, quando tomada apenas em sua
dimensão escrita, o sonoro venha entendido também metaforicamente.5
Assim, uma determinada maneira de conceber-se a separação entre
som e palavra consentiu a valorização da música de um modo diverso
daquele proposto pela filosofia romântica de um Hegel ou de um
Schopenhauer. A música passa a polo de transcendência da poesia, como
se representasse uma espécie de dimensão superior à qual naturalmente
tenderia a palavra poética. Ou seja: a música supera a palavra não tanto
porque, a seu modo, aquela representaria o que esta não consegue revelar;
mas porque, desbastada da sua ligação com o real, a palavra reencontra sua
vocação sonora e sua própria materialidade. Assim, penso, é possível entender
frases como esta de Mallarmé: “a poesia próxima da idéia é música por
excelência...” (Citado em NUNES, 1998, p. 79). Ou ainda esta, do compositor
alemão Richard Wagner:
O arranjo rítmico e o ornato (quase musical) da rima são para o poeta meios
de assegurar ao verso, à frase, um poder que cativa como que por encanto e
governa à sua vontade o sentimento. Essencial ao poeta, essa tendência o
conduz até o limite de sua arte, limite que toca imediatamente a música, e,
por conseqüência, a obra mais completa do poeta deveria ser aquela que, no
seu último acabamento, fosse uma perfeita música. (Citado em
BAUDELAIRE, 1995, p. 922)
Ao lado do aspecto formal, ou melhor, imbricado com ele, a
noção de musicalidade na poesia moderna compreende um caráter de
ambiguidade que deriva da própria quebra do pacto mimético, do
descolamento do significante em relação ao significado, do desgaste de um
uso apenas contratual e direto da palavra e, portanto, das contínuas
experimentações com a linguagem. Se, num sentido geral, a ambiguidade
poética se relaciona com a música pelo fato de que esta nada significa de
seguro, o processo se torna ainda mais claro por conta de aproximações
estruturais e pelo uso deliberado de procedimentos característicos da música
na composição do poema.
Aqui o exemplo ideal é Mallarmé, cujos recursos inovadores
tiveram explícita inspiração musical e, sem dúvida, objetivaram a ruptura
da ordem clássica e linear do discurso. Entre eles: a analogia entre palavras
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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e sons musicais para fins de tratamento sintático, atenuando a vinculação
costumeira entre uma palavra e outra com o intuito de oferecer-lhes maior
liberdade; a aproximação dos termos por meio de noções, como
sonoridade e colorido, que dão ensejo a relações insólitas e completamente
inesperadas. Além desses recursos, vale citar o uso do contraponto, isto é, a
presença no texto de um entrelaçamento de duas ou mais linhas diferentes
de pensamento, de tal modo que elas possam ressoar simultaneamente. A
resultante de uma elaboração como essa é um movimento sintético geral
que se sobrepõe a cada linha, tomada individualmente. O contraponto,
técnica musical por excelência, é explorado por Mallarmé, nas prosas de
Divagations, como identifica Hugo Friedrich (1978, p. 117-118), mas acabou
se incorporando, como uma noção genérica, ao repertório de recursos
poéticos dos mais variados autores.
Reencontramos aqui o raciocínio musical da primeira poética de
Mário de Andrade que, contudo, vem alimentado por considerações
históricas e estéticas mais pessoais, ainda que ecoasse concepções de certo
romantismo. É que na concepção do autor, a música teria alcançado o ideal
estético da Arte Pura, desinteressada, e isso muito antes das demais artes. A
razão para tal é a de ter se emancipado da palavra e, por conseguinte, do
esclarecimento e da inteligibilidade que lhe são inerentes: “Libertada da
palavra, [a música] em parte pelo aparecimento da notação medida, em
parte pelo desenvolvimento dos instrumentos solistas, conseguiu enfim tornarse MÚSICA PURA, ARTE, nada mais” (ANDRADE, 1972a, p. 157).
Já por essas coordenadas, pela associação da música a um campo
em que o poder objetivante da palavra é limitado ou nulo e pela indicação
de que aí estaria a possibilidade de concretização do ideal artístico, vê-se
que Mário trabalha com a ideia de que a referência à realidade objetiva é
um caminho pouco promissor para a arte. Acentua essa perspectiva, o fato
de o autor explorar a dissociação entre arte e natureza. Em sua teorização,
o Belo natural, entendido como “imutável e objetivo”, representa mesmo
uma espécie de anti-modelo, algo de que o Belo artístico – arbitrário,
convencional, subjetivo – deve se afastar. Nesse sistema, o fato de a música
surgir como parâmetro principal tem lógica por tratar-se, em princípio, de
uma linguagem não-representativa, sem referentes imediatos, sobretudo se
considerada no seu estado puro e autônomo, isto é, dissociada de práticas
religiosas, de fins utilitários, de programas ou de textos literários. Distante
da natureza e do mundo dos objetos pela incapacidade de a eles referir-se,
a música, pensada dentro dos limites impostos por um rígido esquema
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dualista, só poderia mesmo, por exclusão, incorporar-se ao pólo subjetivo
e transformar-se em porta-voz de uma idealização livre, potencialmente
criadora e insubmissa à defeituosa percepção sensível (ANDRADE, 1972b,
p. 20). Velha tese que Mário de Andrade acolhe com grande entusiasmo,
mas que reforça por meio de uma reflexão paralela e mais moderna, capaz
de identificar o desenvolvimento da fotografia e, principalmente, da
emergência do cinema, como fatores que obrigaram a uma mudança de
perspectiva nas artes. É que com essas novas técnicas a questão da
representação do real teria encontrado uma solução superior a anteriormente
dada tanto pela literatura quanto pelas artes plásticas ou pelo teatro. Apenas
a música, naquela sua original incapacidade representativa, agora transmutada
em sua grande força, teria realizado, muito tempo antes de o cinema
evidenciá-lo, esse ideal de arte pura. É assim que a música reluz, na teoria
andradeana, como depositária da essência artística, da verdade antes oculta
às demais artes: um autêntico refúgio do humano, uma forma de expressão
inatingível até para as modernas potencialidades da técnica.
Mas, embora parta de uma teorização estética que já estava colocada
naqueles moldes desde Schopenhauer, o passo decisivamente moderno de
Mário de Andrade na comparação de música e poesia reside numa
elaboração que realmente o aproxima de um Poe ou de um Mallarmé:
como termo da comparação, a música não mais se reduz ao efeito sonoro
nem ao vago deleite, passando a desempenhar relevante papel estrutural,
modelo de configuração do sentido poético. A questão, até onde pudemos
perceber, não mereceu grande consideração da crítica, muito mais interessada
na denúncia do psicologismo tanto na teoria como na prática poética de
Mário, um fruto dos resquícios passadistas que marcariam presença em sua
obra. Em meio a esse panorama geral, Antonio Manoel dos Santos Silva,
num ensaio bastante interessante, parece ser um dos poucos estudiosos a
abordar o tema com a profundidade devida (DAGHLIAN, 1985, p. 1548). Apoiando-se na classificação estética de Etienne Souriau – que separa
as artes em dois grandes grupos, um reunindo as chamadas artes do primeiro
grau (arabesco, arquitetura, pintura pura, música) cuja estrutura assenta-se
na organização de seus próprios elementos sensíveis, o outro as artes do
segundo grau (desenho, escultura, pintura figurativa, literatura, etc.) que se
caracterizam pela projeção ou instauração de seres distintos dos elementos
que as formam – o crítico aponta exatamente a diferenciação de Mário
frente à tradição. Esta era capaz de relacionar apenas as formas de primeiro
grau de ambas as artes, ou seja, o som musical com o som das palavras
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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poéticas. Já Mário pretendeu relacionar o que “essencialmente” caracterizaria
as duas manifestações: na música, não tanto o som isolado quanto a
organização sonora; na poesia, aquilo que é evocado ou projetado (ou
ainda, representado) pelo discurso. Dito de outra maneira, o poeta tencionou
criar uma “relação entre as formas de conteúdo poético (a construção do
sentido) e as formas de sintaxe musical” (DAGHLIAN, 1985, p. 33).
Fundamentalmente, com Mário, o aproveitamento da noção de música
para a poesia distancia-se da metafísica simbolista – que elegera a arte dos
sons como caminho do conhecimento do além das coisas – em benefício
de uma investigação sobre como transfigurar artisticamente a realidade
concreta.
Pouco acima, falei do desacordo de Mário com a preponderância
do verso melódico. Não se tratava apenas de uma divergência de gosto
estético. O poeta acusava a inadequação do tempo controlado e ditado
pelas regras do discurso verbal – sucessivo, linear – com a velocidade das
transformações do mundo moderno, com o ritmo apressado dos
acontecimentos cotidianos, com a redução das distâncias geográficas, com
as mudanças na percepção:
A simultaneidade originar-se-ia tanto da vida actual como da observação
do nosso ser interior. (Falo de simultaneidade como processo artístico).
Por esses dois lados foi descoberta.
A vida de hoje torna-nos vivedores simultâneos de todas as terras do
universo. A facilidade de locomoção faz com que possamos palmilhar
asfaltos de Tóquio, Nova York, Paris e Roma no mesmo Abril. (...)
Por seu lado a psicologia verifica a simultaneidade. A sensação complexa
que nos dá por exemplo uma sala de baile nada mais é que uma
simultaneidade de sensações. (ANDRADE, 1972a, p. 265-267)
Se a simultaneidade, consequência da velocidade do mundo e de
um sujeito multiplicado, estava na ordem do dia, o que entra em questão é
a impermeabilidade do verso tradicional (melódico) a esse estado de coisas,
preso que estava a um papel de tradutor fiel do pensamento lógico e
inteligível. Mário, em resumo, acusa o descompasso entre a tradicional
linguagem poética e a realidade moderna, buscando corrigi-lo ao indicar a
música como modelo estético. E não deixa de ser curioso notar que
justamente aquela arte que o Ocidente já de há muito considerava abstrata,
descolada da realidade pela sua aversão à representação, incapaz de dar a
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conhecer pela evasão do circundante que causava no sujeito ouvinte,
justamente aquela arte é agora invocada por Mário de Andrade para captar
uma espécie de densidade do real que vinha falseada pela organização clássica
do discurso verbal. Para o poeta, nos tempos modernos é a própria palavra,
quando presa pelas amarras da sintaxe, que se revela vã em sua tarefa
representativa. É preciso, então, liberá-la, deixar que irradie todas as suas
possíveis significações, permitir-lhe a ambiguidade, pois somente assim ela
consegue entrar em consonância com – eu não diria mais expressar e muito
menos representar – a realidade polimorfa que a circunda.
Do que foi exposto até aqui, pode-se afirmar que o modelo musical
andradeano apresenta duas faces aparentemente contraditórias: uma,
subjetiva, na medida em que se encontra o mais afastado possível do “Belo
Natural” e conduz o sujeito à criação de realidades ideais, as únicas onde
germina a beleza artística; outra, objetiva, pelo fato de o modelo musical
polifônico ser o mais indicado para a apreensão da justaposição de realidades
que caracteriza o mundo moderno. Ora canal de expressão do lirismo, do
mundo interior e subjetivo, inconfundível com a realidade externa; ora
referencial estético para o trabalho com a linguagem e para o relacionamento
com o mundo objetivo – é assim que a música cobre, na teoria de Mário
de Andrade, um amplo leque de justificativas para os procedimentos
poéticos, podendo credenciar-se como relevante instrumento de
interpretação apesar de sua ambiguidade ou, talvez, até mesmo devido a
ela. Essa ambiguidade da noção de música, a bem da verdade, soma-se à
vacilação do autor frente aos tantos dualismos expressos em sua poética da
juventude tais como inconsciente/consciente; lirismo/técnica; psicologia/
estética, vacilação que foi muito tematizada pela crítica literária, a ponto de
se produzirem, a respeito, interpretações radicalmente divergentes. Uma
parte foi incisiva na denúncia de que o psicologismo assumia no poeta o
ponto mais alto da hierarquia e subjugava o trabalho estético, resvalando
num desprezo pela própria linguagem6. Os impulsos do subconsciente
comandariam as ações da escrita, cabendo à linguagem poética o papel
secundário de fornecer um retrato fiel do momento lírico e de expressar os
gritos do eu profundo. Em outra direção, alguns estudiosos – como João
Luiz Lafetá, em 1930 – A crítica e o modernismo – interpretam a vacilação
como fruto da própria tensão implicada naqueles binarismos, a qual,
apresentando-se como permanente, impede o surgimento de uma síntese
tranquilizadora e sinaliza um caráter apenas provisório à preponderância
eventual de um ou outro pólo da relação. Para essa corrente, se por vezes o
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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psicologismo ganhava evidência e a elaboração teórica de Mário mirava
uma verdade lírica que a poesia deveria apenas registrar, em diversas
passagens do Prefácio, e sobretudo da Escrava, o papel da técnica e a
consciência da linguagem tornam-se elementos decisivos e não só na correção
de eventuais excessos do lirismo, mas na gênese mesma do poema. É então
que cabe perguntar: como as menções à música atuam nesse esquema?
Constituem-se num elemento relevante para a análise? Corroboram uma
ou outra opinião?
Como dissemos acima, à exceção do trabalho de Antonio Manoel
dos Santos Silva, a referência musical na poética da juventude de Mário de
Andrade não mereceu da crítica uma observação correspondente à
importância que ela desempenha na argumentação do poeta. Por outro
lado, se aquele citado ensaio tem inúmeros méritos, entre eles o de levar a
sério a ideia do polifonismo, demonstrando como ela comanda as demais
leis estéticas que Mário define para a poesia moderna, ele não representa
mais do que um pontapé inicial para a discussão, apontando explicitamente
ou não os caminhos pelos quais ela pode seguir. Um deles, me parece, é o
exame mais aprofundado da oscilação da música entre o subjetivo e o
objetivo, entre ser veículo das livres idealizações do eu lírico e prover uma
técnica linguística de apreensão do mundo externo.
Em outra oportunidade será importante seguir o fio da estética de
Mário de Andrade, a fim de melhor fundamentar a base das suas concepções
sobre música. Para o que aqui interessa, porém, prefiro restringir-me à
análise de ao menos um dos poemas da Paulicéia desvairada no qual seja
possível flagrar, do ponto de vista musical, a ambiguidade já abordada pela
crítica literária. Opto por Nocturno que, a seguir, é transcrito na íntegra:
Luzes do Cambuci pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...
Gingam os bondes como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
cuspindo um orifício na treva cor de cal...
Num perfume de heliotrópios e de poças
gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan;
e traz olheiras que escurecem almas...
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Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
nos oscilantes de Ribeirão Preto...
– Batat’assat’ô furnn!...
Luzes do Cambuci pelas noites de crime!...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...
Um mulato cor de oiro,
com uma cabeleira feita de alianças polidas...
Violão! “Quando eu morrer...” Um cheiro pesado de baunilhas
oscila, tomba e rola no chão...
Ondula no ar a nostalgia das Baías...
E os bondes passam como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
ferindo um orifício na treva cor de cal...
– Batat’assat’ô furnn!...
Calor!... Os diabos andam no ar
corpos de nuas carregando...
As lassitudes dos sempres imprevistos!
e as almas acordando às mão dos enlaçados!
Idílios sob os plátanos!...
E o ciúme universal às fanfarras gloriosas
de saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!...
Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas
para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguém, ninguém, ninguém se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
enquanto as travessas do Cambuci nos livres
da liberdade dos lábios entreabertos!...
Arlequinal! Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
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feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
o estelário delira em carnagens de luz,
e meu céu é todo um rojão de lágrimas!...
E os bondes passam como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
jorrando um orifício na treva cor de cal...
– Batat’assat’ô furnn!...
A cena noturna da cidade moderna tem como eixo a prostituição.
As noites de crime, porém, não roubam a ação, não se sobrepõem a outros
eventos, não constituem nenhuma exceção ao cotidiano (“Ninguém se
importa!”). Pelo contrário, o meretrício chega mesmo a organizar o vaivem da rua (“as lassitudes dos sempres imprevistos”), a animar o comércio
ambulante (“Batat’assat’ô furnn”), a instituir a boêmia (“Violão! “Quando
eu morrer...”). Nas noites do Cambuci, pululam as personagens (as
“mariposas”/meretrizes, a “flor-do-mal”, “o mulato”, as “Iracemas”), mas
nenhuma ascende a protagonista, todas concorrem anonimamente para a
montagem de um espetáculo que se apresenta em vários planos. A fim de
expressar essa justaposição, o poema procede por cortes, numa técnica que
se pode dizer, a princípio, cinematográfica: em cada estrofe praticamente
um motivo autônomo. Entretanto isso ainda não basta para caracterizar a
simultaneidade. Ela poderia se verificar, no bojo das especulações musicais
do autor, também na estrutura interna de algumas estrofes, como, de fato,
ocorre na inicial, em que o segundo verso se coloca em contraponto com
o precedente. “Calor!...” não dá sequência lógica a “Luzes do Cambuci
(...)”, mas amplia-lhe o significado pela sua ambivalência, uma vez que tanto
pode inserir-se como um dado a mais da descrição do cenário, quanto,
figuradamente, associar-se ao tom geral de erotismo evocado pelo contexto,
sobretudo se considerados os versos seguintes. Eis um exemplo do que,
mais acima, afirmei ser a participação do leitor na construção do sentido
poético.
Todavia, apenas a polifonia de “Calor!...”, embora expressiva, não
bastaria para tornar Nocturno um caso da musicalidade andradeana na Paulicéia.
Em outras situações predomina o verso melódico (“Gingam os bondes
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como um fogo de artifício...”) ou então ocorre de o sentido geral da situação
retratada amenizar o choque e a diferença de uma polifonia mais radical
(“Idílios sob os plátanos!...”/“E o ciúme universal...”). Somente na sexta
estrofe podemos encontrar novo exemplo de versos polifônicos (“Um
cheiro pesado de baunilhas”/“oscila, tomba e rola no chão...”/“Ondula
no ar a nostalgia das Baías...”), mas também ali o contexto da significação
atua no sentido de reduzir bastante as ambiguidades. Ora, é o caso de
perguntar, então: se o verso polifônico, principal referência musical
trabalhada no Prefácio interessantíssimo, rareia, como falar de musicalidade
nesse Nocturno? De duas maneiras, arrisco-me a dizer. Tecnicamente,
alargando o procedimento polifônico até encontrar a simultaneidade
cinematográfica mencionada pouco atrás. É que no poema não está em
jogo apenas o corte de uma cena para outra; há que se levar em conta
também a recorrência dos motivos (“Batat’assat’ô furnn!...;” “E os bondes
passam...”; “Nuvens baixas muito grossas...”; aparecem três vezes na
composição) e sua variação (cite-se o deslocamento de “Calor!...”, e as
alusões aos bondes que ora cospem, ora ferem, ora jorram, ora passam,
ora gingam), práticas tipicamente musicais que, a seu modo, retomam a
ideia de algo que permanece vibrando à espera de um elemento que venha
fechar o curso da significação... “e que não vem” (ANDRADE, 1972b, p.
23). Além disso, tal como ocorre em obras musicais polifônicas em que a
retomada de um motivo ou tema se dá constantemente em mudança (com
alteração do ritmo, da tonalidade etc.), também no caso desse poema não
se pode falar numa identidade excessivamente marcada ao estilo de um
refrão tradicional. Embora repetido sem alteração, “Batat’assat’ô furnn!...”,
por exemplo, certamente não é ouvido da mesma forma da primeira e da
última vez: a sua expressividade é outra, modifica-se em virtude do conteúdo
das estrofes que o cercam. Nesse sentido, trata-se de um caso muito diferente
de Domingo, outro poema da Paulicéia desvairada em que o refrão “Futilidade,
civilização...” atua sobre as estrofes com poder de império, como um juízo
moralizante à parte das cenas descritas e que, em última análise, impede que
o sentido advenha do próprio jogo da linguagem, de dentro do poema,
por assim dizer. Naquele caso, o refrão tem o papel explícito de veicular a
voz e a interpretação do eu poético.
Além do aspecto técnico, a outra maneira de acusar a presença da
música no Nocturno faz sentido apenas se tivermos em mente a própria
dicotomia sujeito/objeto que a enreda na teoria de Mário de Andrade. Se
em virtude da relação que nosso autor traça entre o modelo musical e a
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
92
linguagem poética já não era possível querer identificar a presença, por
assim dizer, concreta da música no poema, agora a referência musical que
podemos apontar adquire uma abstração ainda maior. É que a própria
vacilação que Mário tem diante da música, ora tomando-a como canal de
expressão da subjetividade, ora como técnica de apreensão da realidade
objetiva, está implicitamente tematizada nesse Nocturno; e de tal modo que
o pólo “objetivo” assume o pleno domínio. De fato, o eu do poema se
confronta com um quadro que ele é incapaz de controlar e que consegue
apenas descrever. Nas duas oportunidades em que tenta exprimir-se, o eu
vacila e limita-se praticamente a balbuciar, como que reconhecendo a
existência de um abismo insuperável que o afasta do mundo. As grades em
girândolas de jasmins confessam a condição isolada, pura, abstrata e estática
do poeta frente a um real dinâmico, sensualizado, autônomo. De que valem
as “idealizações livres e musicais”, a identificação da arte com a subjetividade,
se o artista já deixou de ser porta-voz da coletividade, se já não dá conta de
oferecer uma síntese crível do real? Uma certa resignação diante dessa
questão, sem dúvida acompanhada de melancolia, coloca o Nocturno em
contraponto com a quase totalidade da Paulicéia. Se o poeta, ainda que aos
gritos, ainda que em delírios, buscara em outros poemas um vínculo tal
com a cidade que lhe permitisse a conservação da própria voz, no Nocturno
vence definitivamente o silêncio como forma contraditória de expressão.
O silêncio do eu permitirá entregar incondicionalmente à linguagem, aqui
musicalmente organizada, a tarefa da arte. Todavia, e esse é o ponto capital,
não mais uma linguagem representativa no sentido estrito dessa palavra,
não mais um simples instrumento de esclarecimento ou de expressão da
realidade, mas uma linguagem em consonância com a multiplicidade e por
isso mesmo incapaz de chegar à palavra final. Uma linguagem que parece,
então, reencontrar com a música uma conexão profunda.
Notas
1
O exemplo dado por Mário de Andrade para verso melódico é de Olavo Bilac:
“Mnezarete, a divina, a pálida Phrynea/ Comparece ante a austera e rígida assembléia/
Do Areópago supremo...” (ANDRADE, 1972, p. 23).
Com um exemplo do próprio autor, vemos que o verso harmônico é formado por
palavras que não se ligam diretamente, formando, cada uma, uma frase, um “período
elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico”: “Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
2
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93
O verso polifônico era definido no Prefácio em termos de uma expansão do verso
harmônico: em lugar de palavras isoladas que não se conectavam diretamente, na
polifonia haveria frases com aquele mesmo grau de independência. Mas n’A escrava
que não é Isaura, Mário de Andrade descarta essa distinção triádica, preferindo reunir os
versos harmônico e polifônico sob o rótulo único de Polifonismo. Daqui para frente,
adotaremos o mesmo procedimento.
3
4
Sobre a essência visual do logos e sua relação com a constituição da metafísica ocidental,
recomendo a leitura de Adriana CAVARERO, Vozes Plurais (detalhes nas referências
bibliográficas).
São tantos os exemplos de compositores que a partir do século XX exploraram,
acima de tudo, a sonoridade e o lado primordialmente musical das palavras que
qualquer lista que se dê será extremamente parcial. Pode-se, no entanto, citar o caso de
Arnold Schönberg, como exemplo, talvez extremado, do modo como a palavra se
transforma para a música dita contemporânea em uma espécie de anotação sonora. O
compositor austríaco se dizia estimulado a compor seus Lieder (canções) “pelo som
inicial das primeiras palavras do texto”, sem se preocupar minimamente com o
significado delas nem com o sentido geral do poema que lhe servia de base (Cf.
DAHLHAUS, 2004, p. 47). Some-se a isso o que o próprio Schönberg diz no prefácio
ao Pierrot Lunaire, obra vocal marcante para a produção musical do século XX: “Aqui,
jamais cabe aos executantes a tarefa de dar forma à disposição e ao caráter de uma peça
particular a partir do sentido das palavras, mas sempre exclusivamente a partir da música.
Tudo quanto pareceu relevante ao autor para a apresentação plástico-sonora dos
acontecimentos ou sensações do texto encontra-se, de resto, na música” (Citado em
CAMPOS, 1998, p. 47).
5
É o caso tanto de Luiz Costa Lima, em Lira e antilira, e de Roberto Schwarz, em A
sereia e o desconfiado.
6
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Obra imatura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL,
1972a.
______. Poesias completas. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL, 1972b.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1995.
CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Signos/
Música, 5)
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94
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte:
UFMG, 2011.
DAGHLIAN, Carlos (org.). Poesia e música. São Paulo: Perspectiva, 1985. (Debates,
195)
DAHLHAUS, Carl; EGGEBRECHT, Hans H. Che cos’è la musica. Bologna: Il Mulino,
2004.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
LAFETÁ, João Luiz. 1930 – a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2000. (Coleção Espírito Crítico)
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2ª ed. revista. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1995.
NUNES, Benedito. Crivo de papel. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.
SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
Flavio BARBEITAS
Bacharel e Mestre em Música (UFRJ). Doutor em Estudos Literários (UFMG/UNIBO).
Professor da Escola de Música da UFMG.
Artigo recebido em 24 de abril de 2011.
Aceito em 3 de junho de 2011.
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DIÁLOGOS INTERARTES NA PAULICEIA:
MELOPOÉTICA E POLIFONIA CULTURAL
EM MÁRIO DE ANDRADE
Beatriz Lopes
[email protected]
André Luís Gomes
[email protected]
Resumo: O presente trabalho tem como
objetivo o estudo das interações culturais
entre a literatura e outras linguagens
artísticas, a partir de textos críticos,
anotações e crônicas jornalísticas de Mário
de Andrade que se fundaram não só nas
relações entre Cultura e Espaço, ou seja,
de sua íntima interação com a cidade de
São Paulo 1 e com o processo de
modernização no início do século, bem
como em sua “escuta aberta”2, singular e
crítica das diversas manifestações artísticas
da época, em particular, da música
popular brasileira, em suas pesquisas e,
sobretudo, em sua vitrola. Para tanto, à
luz das contribuições teóricas de Mikhail
Bakhtin e de Solange Ribeiro de Oliveira,
o recorte em estudo se propõe a
identificar e a analisar, nos referidos
textos, com base nos possíveis e criativos
processos lítero-musicais – a melopoética
e a polifonia–, as marcas desses diálogos,
que compõem a polifonia cultural em
Mário de Andrade.
Abstract: This paper aims to study the
cultural interactions between literature
and other artistic forms, from critical
texts, annotations and journalistic
chronicles by Mário de Andrade, which
originated not only in relations between
culture and space of his close interaction
with the city of São Paulo and its
modernization at the beginning of the
century, but also in his unique, critical and
“open listening” of the several artistic
expressions of the time, particularly
Brazilian popular music, in his research
and especially in his phonograph.
According to this perspective, in light of
the theoretical contributions of Mikhail
Bakhtin and Solange Ribeiro de Oliveira,
the study aims to identify and analyze, in
the texts mentioned, based on possible
and creative literary-musical processes,
such as melopoetics and polyphony, the
markers of these dialogues, which
constitute Mário de Andrade’s cultural
poliphony.
Palavras-chave: Interações culturais. Melopoética. Polifonia cultural. Mário de
Andrade.
Keywords: Cultural interactions. Melopoetics. Cultural polyphony. Mário de Andrade.
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Considerações iniciais: um acorde3 teórico-metodológico de um
estudo interartes
Musicalidade da poesia, poética musical, frase musical, poema
sinfônico, música de palavras, texto musical, sintaxe melódica. Vários são
os termos que procuram aproximar os dois sistemas de signos: a música e
a literatura. Isto parece comprovar que as artes, embora contendo
especificidades diferenciadas, comunicam-se e se complementam.
As aproximações entre as artes sempre fascinaram os estudiosos
do fenômeno estético. Solange Ribeiro de Oliveira, em seu livro Literatura
e música, refaz a trajetória do antigo interesse em que, da antiguidade a nossos
dias, compêndios e estudos críticos recorrem continuamente a referências
mútuas entre as artes. Da necessidade de delinear o campo da melopoética,
a autora propõe, a partir da adaptação do esquema de Steven Sher e de
outros pesquisadores, três divisões básicas para a melopoética: estudos que
contemplam a música e a literatura, criações mistas; estudos focalizando a
literatura na música, que utilizam procedimentos da crítica literária na análise
musical e, finalmente, estudos músico-literários, de maior interesse para a literatura,
também indicados pela expressão música na literatura (OLIVEIRA, 2004).
Assim, na abordagem que ora empreendemos, destacamos as
referências em que predominam a tipologia descrita pela autora como música
na literatura ou melopoética músico-literária, explorando nesse percurso a interface
entre a crônica e a crítica literária e musicológica, bem como as instigantes
contribuições filosóficas e teóricas de Mikhail Bakhtin aos estudos literários,
sobretudo a articulação dialógica como pressuposto básico de qualquer
produção cultural e a polifonia, sua força suprema, visto que as categorias
presentes na arquitetura do discurso crítico ou literário, tanto enriquecem a
análise das relações entre cultura e espaço, bem como potencializam as
interações entre a música e a literatura nos textos de Mário de Andrade.
Segundo Nicolau Sevcenko, a trajetória da música no séc. XX é
das mais surpreendentes e o seu legado para o séc. XXI é sumamente
inspirador. O divisor de águas da mudança em relação ao código musical,
que sai do tradicionalismo de uma escala temperada para a valorização de
ritmos variados, foi a turbulenta sessão inaugural da “Sagração da Primavera”
de Stravinski, em Paris, no ano de 1913, às vésperas da Primeira Guerra
Mundial que, mesmo catalisando mudanças que já estavam em curso,
praticamente constituiu um novo ponto de partida nas artes musicais e
também na dança.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Entretanto, por mais prodigiosa que tenha sido essa aventura criativa
da música no âmbito da cultura das elites, foi na esfera popular que se deu
a grande transformação. Ela foi promovida pelo advento da indústria
fonográfica, do rádio, do cinema e da TV, os quais propiciaram, pela
primeira vez, tanto o acesso direto e irrestrito das pessoas comuns à fruição
musical, como o salto das tradições populares para o primeiro plano da
cultura, embaralhando irremediavelmente a distinção convencional entre o
popular e o erudito. Nesse contexto começam a preponderar os repertórios
populares, músicas originadas nas comunidades negras, entre elas,
especialmente o jazz e, em nosso caso, o samba (SEVCENCO, 2004).
Isto posto, outro aspecto importante a ser destacado é que os
benefícios trazidos pela modernidade estavam desigualmente distribuídos
pelo conjunto da sociedade, mas eram uma aspiração de todos. Nesse
sentido, as classes populares vislumbravam na modernidade algumas brechas
que lhes oferecessem oportunidades de ascensão social, e vão, aos poucos,
se apercebendo de que é possível dispor de elementos dessa modernidade
para reforçar o jogo de reajustamentos constantes em face das novas políticas
de controle, segregação e cerceamento das cidades planejadas.
Assim, por meio das artes, em especial da música, as classes
populares negociam sua inserção na era moderna e na ainda incipiente cultura
de massas. Tal processo é marcado pela cisão na sensibilidade estética das
elites que as faz oscilarem entre o elogio e o repúdio à cultura popular.
Neste jogo de forças desigual e ambíguo, as classes populares ganham espaço,
passam a figurar e a ser representadas no cenário artístico e musical,
desenvolvendo-se, assim, uma nova forma de sociabilidade entre os atores
sociais, cuja moeda de troca é a arte.
Para arrematar esse acorde destaquemos as considerações de Mário
de Andrade sobre as influências das inovações da modernidade e do
experimentalismo estético nas manifestações culturais da época e como
esse fenômeno afetava a função social da arte musical.
[...] Com a peça sonorizada, Schoenberg criou uma das obras mais
importantes da atualidade, o ‘Pierrot Lunaire’ [...] Instrumentos novos
tentam aparecer também. Os futuristas lançaram os Barulhadores... [...] o
Serrote, sai da mão do serralheiro vai para o jazz, surge nos concertos... [...]
Emanuel Moor, lançou um piano com dois teclados... [...] por outro lado
Hope Jones modernizou o Órgão [...] Diante dos progressos do Gramofone
e das possibilidades reais de expansão, a música tem atualmente nele e na
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
98
Radiofonia dois instrumentos poderosos que já está modificando bastante
a manifestação social dela. [...] Interesse ou desinteresse melódico? Interesse
ou desinteresse polifônico? Interesse ou desinteresse harmônico, rítmico,
formalístico, sinfônico?...A única resposta possível: interesse formidável
pela... Música. [...] Todo o derrotismo aparente, de Melodia, Instrumentação,
Harmonia, Forma, da fase contemporânea, indica apenas interesse mais
completo pela música. Jamais não se inventou tanta música. [...] Mudado o
conceito de música, esses vícios modernos se tornam lógicos. E de fato: é a
maneira de conceber a música que se modificou talvez profundamente. [...]
Existe polifonia, como existe harmonia, como existe tudo na música de
agora. É a fusão absoluta disso tudo, ‘a maior intimidade entre a forma e o
conteúdo’ pra me utilizar da frase de Wellesz, que implica destruição do
espaço e suas principais circunstâncias e fenômenos, e faz da música atual,
nas suas manifestações mais características o livre jorro sonoro no tempo
que julgo ver nela e por onde a compreendo e quero bem. (ANDRADE,
1987, p. 196-205)
Mário de Andrade, um polígrafo de destaque na literatura e na
cultura brasileira, possui uma vasta produção crítica e literária que se estende
da segunda metade da década de 1910 a fevereiro de 1945. A riqueza e a
diversidade de sua obra têm estimulado inesgotáveis possibilidades de
investigação. Os textos trazidos à luz nesse estudo foram reunidos nas obras:
De São Paulo – cinco crônicas de Mário de Andrade de 1920-1921 e A música
popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, organizadas, respectivamente,
por Telê Ancona Lopez e Flávia Camargo Toni.
É importante destacar que o presente trabalho se insere no contexto
de um estudo interartes, entrelaça o enfoque dialógico mais amplo com as
diversas produções culturais e as marcas da melopoética, tanto temática
como formal, a fim de identificar e analisar as inter-relações entre as artes
como um processo dinâmico ora expresso, ora subjacente, mas sempre
pulsante na polifonia cultural de Mário de Andrade.
Na cadência4 da cidade: melopoética e polifonia cultural em De São
Paulo
A obra em estudo reúne textos de uma fase de “amadurecimento”
em que ainda se mesclam um estilo atrelado a certa erudição da linguagem
com traços reveladores do autor que se consagraria como um dos
construtores e líderes do movimento modernista. As crônicas De São Paulo
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
99
são cartas/crônicas escritas para a revista carioca Ilustração Brasileira e
evidenciam, já a partir do título e da apresentação, a intensa relação do
autor com a cidade, transmitindo os acontecimentos com uma soma de
sensações e impressões, por meio da enumeração, o dinamismo urbano
que fascina o cronista. São textos de um apaixonado que não ignora os
problemas de ordem cultural da cidade e se inserem na intensa militância
jornalística do autor que, como cronista do modernismo brasileiro, no
contexto de seus primórdios, juntamente com outros intelectuais e artistas,
empenha-se em prol da renovação artística da época.
Em De São Paulo I, nº 3 da revista, assim como nas demais, a
crônica combina o relato irônico com a análise crítica: noticia e narra a
história com o objetivo de promover a cidade moderna e as novas ideias.
São Paulo toda se agita com a aproximação do Centenário. Germinam
monumentos numa floração de gestos heróicos; as alamedas riscam o solo
em largas toalhas verdes e os jardins se congregam em formosos jogos
florais de poesia e perfume. [...] São Paulo quer tornar-se bela e apreciada.
Finalmente, a cidade espertou num desejo de agradar. E era preciso que
assim fosse...
A urbe de Amador Bueno é agressiva e misteriosa como os seus heróis;
suas belezas recônditas; raro o estrangeiro que alcança levantar um pouco o
pesado manto de segredo em que se embuça. Num orgulho tradicional ela
sempre se guardou rudemente, medievalmente, como certas igrejas da Itália,
que sob uma feição esquipática e bisonha ocultam a severa doçura dum
Cimabue, dum Piero della Francesca ou dos arco-íres dos mosaicos
bizantinos. E no entanto ela é curiosa, viva, singular; e para o paulistano
inveterado, que a ama e contempla, tem sugestões inéditas como os versos
de Mallarmé. Dizem-na fria... Dizem-na tristonha, escura... Mas no
momento em que escrevo, novembro anda lá fora desvairado de odores e
colorações. Eu sei de parques em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda
por que pesadamente bailam os rosais. Eu sei de coisas lindas, singulares,
que a Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe
admiro o temperamento hermafrodita [...]. Procurarei desvendar-lhe
aspectos, gestos, para que a observem e entendam. Talvez não muito consiga.
Ponho-me a pensar que a minha terra é como as estrelas de Olavo... difícil de
entender... (ANDRADE citado em LOPEZ 2004, p. 73)
Ancorado na alusão dos sugestivos versos de Mallarmé – poeta
simbolista francês, renovador da linguagem, cuja conferência, presente em
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100
sua estante – “La musique et les lettres, Mário teria encontrado matéria grata
ao forte vínculo entre a poesia e a música que cultiva e cultivará em toda sua
poesia” (LOPEZ, 2004, p. 73), o cronista associa diversos recursos
sinestésicos de odores, cores, sons que se mesclam à imagem poética,
pictórica e musical da cidade. Polissemicamente desvairada sua poética deságua
na metáfora musical “em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por
que pesadamente bailam os rosais”, explora a melopoética revelada no
lirismo de contemplação amorosa da enigmática cidade que se entrelaça
polifonicamente com a voz de Olavo, paródia dos versos de Bilac, do
soneto Via Láctea, em que seu empenho amoroso consolida o grande tema
da literatura do início do século XX: a cidade. Para Mário, a gênese de sua
Pauliceia desvairada.
Com efeito, no decorrer da crônica se manifestam os entrelaçados
vínculos entre cultura e espaço na construção dos diálogos interartes entre
literatura e pintura, escultura, arquitetura; diálogos do poeta, do ficcionista,
do cronista, enfim, de todos os rumos que esse nosso polígrafo tomou,
materializados na múltipla polifonia estética e sociocultural, identificadas não
só nas interações pessoais e artísticas do autor com vários intelectuais e
artistas de seu tempo e de diversas épocas e lugares, mas, sobretudo, quando
retrata e analisa as fragilidades e as grandezas da diversidade sociocultural
da cidade e de suas expressões artísticas, referendando-as no próprio fazer
literário em que se mesclam o crítico e o artista em pleno domínio de seus
recursos de estilo. Assim é que evidenciando embasado conhecimento da
arte, do pensamento renascentista e da arte contemporânea, ironiza, na
arquitetura da cidade, as influências importadas do decorativismo
ultrapassado de seus monumentos contrapondo a isso o trunfo dos
modernistas, o escultor ítalo-paulistano Victor Brecheret e seu Monumento às
bandeiras, projeto valorizado em prosa e verso pelos modernistas, além de
bem evidenciar a polifonia cultural em comparações estéticas de épocas e
artistas diferentes – ao vincular os escultores do barroco brasileiro a expoentes
da escultura moderna: o francês Émile Antoine Bouderlle, o alemão Wilhelm
Lembruck, o sueco Carl Millès e o iuguslavo Ivan Mestrovisc. Forma
inteligente de enaltecer as riquezas artísticas de nossa tradição cultural e suas
potencialidades de renovação.
Em De São Paulo II, nº 4 da revista, de forma bem humorada, o
cronista lida com acontecimentos da cidade filtrados pelas impressões, para
persuadir, fazer propaganda paulistana, pregar a renovação das artes e da
literatura como um compromisso explícito. Nesse contexto, a Paulicéia,
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
101
antropomorfizada, reverbera vozes e comportamentos de seus habitantes;
se constitui não só um locus sociocultural em que o cronista se propõe a
mostrar a diversidade de sua cultura e de sua gente, mas, sobretudo, é
ponto de referência de uma trajetória evolutiva de sua visão sobre a
metrópole que lhe coube viver em seu deslumbramento com o século XX,
“modernolatria” cheia de orgulho paulista, metáfora e lugar de
contemplação (LOPEZ, 2004).
[...] A cidade palpita um esto incessante de progresso e civilização. Nela
formiga um povo multifário, internacional. Tudo são contrastes e
neologismos. Os habitantes movem-se ágeis, a língua é mole, saboreada.
Audácias e pasmaceiras... Pauliceia é como brasileirinha nascida nessa idade–
média em que uma parte de Minas adormeceu: alonga os babados da saia
escura para fechar no segredo a volta sensual do tornozelo, mas traz nos
lábios a rosa provocante das espanholas. [...] Em literatura, em arte há
tradicionalistas a covejar agouros, como há futuristas em fúria. (ANDRADE
citado em LOPEZ, 2004, p. 81-82)
Sua postura irônica, aludindo à critica da sociedade, vai se delineando
em suas observações a respeito de uma cidade que se moderniza
desvairadamente quando na interface entre a literatura e as artes visuais, liga o
jovem desenhista a Rops e Toulouse-Lautrec e distingue a representação
estilizada da morte, do macabro, assim como o filão da sátira e do grotesco,
marcas do ilustrador e caricaturista Di Cavalcanti em que nos Fantoches da
meia-noite retrata as vidas reificadas e a alienação, em meio às efervescências
da urbe (LOPEZ, 2004).
[...] agora é Di Cavalcanti que mostra os seus Fantoches, onde como um
novo Rops ou Lautrec, irônico e brutal observa o dia dos que vivem ... de
noite (os passeístas berram) [...] Já se sente que de novo a cidade gera ideias
e escolas, reatando uma tradição quase murcha, quase ofuscada pelo brilho
do Rio. [...] Mas, no meio de tanta efervescência, Pauliceia tiritou de frio.
Depois do verão florido em que se escancarou na última quinzena de
outubro, novamente se regalava com a abertura do mês da República. Pleno
inverno. (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 83-87)
Ora, se aceitarmos a ideia, que se tornou consenso, de que a cidade
se tornou lugar privilegiado da polifonia, temos a considerar que do ponto
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102
de vista do dialogismo, essa polifonia resulta de gêneros discursivos (da
cultura letrada, dos discursos do cotidiano, verbais, não-verbais, imagens,
sonoridades) num contexto enunciativo que acolhe uma diversidade muito
ampla de manifestações, inclusive as interações artísticas. Da mesma forma
como a cultura é atravessada por deslocamentos e transformações, as formas
discursivas também são suscetíveis de modificações. As possibilidades
discursivas num diálogo são tão infinitas quanto as possibilidades
comunicativas do uso da língua. Os gêneros discursivos criam elos entre os
elementos heterogêneos. Nesse sentido, Bakhtin afirma:
A riqueza e diversidade dos gêneros dos discursos são infinitas porque
são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e
porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de
gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN,
2010 p. 262)
É possível, então, analisar as crônicas dessa série como gênero
discursivo que, expressando a polifonia da cidade, ecoa a polifonia cultural
resultante não só do diálogo interartes no discurso crítico e literário do
cronista como artista, bem como no diálogo mais amplo entre diversas
culturas que reverberam em sua atividade como intelectual.
A respeito da polifonia, interessante destacar, ainda, é que na mesma
época em que Bakhtin desenvolvia seus estudos e postulados sobre o
romance polifônico, Mário de Andrade desenvolvia aqui um conceito
análogo, através da metáfora musical de “polifonia”, evocando uma situação
de “harmonia complexa” nas artes: justaposição, contraponto, variação,
simultaneidade, enfim, uma interação no âmbito das ideias, dos estilos e da
renovação artística.
É na arte que De São Paulo seleciona seu instrumento de combate e
de interatividade com o público, articulando o diálogo entre as artes,
vinculado à natureza multifacetada de seu tempo-espaço, e à realidade
sociocultural circundante. Assim, na gênese de uma polifonia poética mais
elaborada em obras posteriores – Pauliceia Desvairada, Losango Cáqui e Clã do
Jabuti – avulta-se nas crônicas, definidas como “cartas” para a Ilustração
Brasileira, o que se pode chamar de polifonia cultural fundada não só nas interrelações entre as artes como tema, bem como em associações intersemióticas
(combinação e fusão de códigos, ekphrasis, melopoética, metáforas musicais
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103
e pictóricas) em sua expressão crítica e literária. Incorporando-se a esse
processo de criação tem-se o entrelaçar de informações, estudos, interações
culturais com diversos grupos sociais, com diversos artistas e intelectuais,
em variados espaços da cidade, notícias que apresentam para “este
larguíssimo Brasil”, através da revista carioca, o seu propósito de “explicar
a enigmática cidade” e o que nela se produz de cultura, na difusão do
movimento modernista que pretende expandir por todo o Brasil.
Enquanto narração epistolar dos acontecimentos, essas cartas
paulistanas encerram o desejo de ampliar o alcance das mensagens, de
provocar outras mensagens, de interagir por meio dos diálogos filosóficos, artísticos
e socioculturais que as atravessam e as constituem.
Em fevereiro de 1921, nº 6 da revista, De São Paulos III, o texto de
Mário se reconhece como crônica e, paralelamente, usa a carta como veículo
de uma reflexão sobre a arquitetura brasileira, aproveitando acontecimento
da cidade para reiterar ideias externadas em “A arte religiosa no Brasil” e
sua adesão pelo estilo neocolonial, lançada por Ricardo Severo para o Brasil:
a arquitetura neocolonial.
Mas o que há de mais glorioso para nós é o novo estilo neocolonial, que um
grupo de arquitetos nacionais e portugueses, com o Sr. Ricardo Severo à
frente, procura lançar. [...] O neocolonial que aqui se discute é infinitamente
mais audaz e de maior alcance. [...] São Paulo será fonte dum estilo brasileiro.
Estou convencido de que não, mas creio firme e gostosamente que sim. [...]
Quero crer que São Paulo será o berço duma fórmula de arte brasileira
porque é bom acreditar em alguma coisa. Não sou crítico, nem filósofo: sou
cronista. Ah! Deixem-me sonhar. Deixem-me crer que, embora perturbado
pela diversidade das raças que nele avultam, pela facilidade de comunicação
com os outros povos, pela vontade de ser atual, europeu e futurista, o meu
estado vai dar um estilo arquitetônico ao meu Brasil. Ah! Deixem-me sonhar!
(ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 95-98)
Em seu admirável estilo de cronista crítico, Mário, esse inquieto
pensador, narra os acontecimentos da cidade, noticia os eventos culturais,
fala dos amigos da Paulicéia, Menotti, Di Cavalcante, Guilherme de Almeida,
Oswald de Andrade; e, como um flâneur percorre os espaços da cidade
moderna, destacando com admiração e crítica as ambivalências que a
compõem: o Trianon, “lugar de serenatas inconfessáveis” e que também,
“É o cardápio, e como todos os cardápios, desilusório da ágape social da
cidade”, e a Villa Kyrial “como contraponto a tanta indigência, é magnífico”
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“no salão que Freitas Vale preside [...] há vida, há lutas, há discussões, há
estímulos e rivalidades”. Com efeito, nessas duas crônicas finais, as múltiplas
relações entre cultura e espaço, potencializam dialogicamente não só o viés
crítico do cronista, como também vão configurar a gestação do movimento
modernista que se articula em diálogos interartes, em diálogos culturais,
para catalisar a interação criativa dos vários discursos artísticos veiculados
na polifonia cultural, metáfora da polifonia musical, tão íntima e afim nas
concepções artísticas de Mário de Andrade.
Em De São Paulo IV, nº 7 da série, a crônica reporta-se ao
lançamento, em almoço no Trianon, da edição de luxo de As máscaras,
prosa poética de Menotti Del Picchia. O banquete entroniza o retrato do
poeta – Máscara –, obra de Brecheret em bronze, e no decurso da festa, a
surpresa: o lançamento público do modernismo. A saudação de Oswald
de Andrade ao homenageado, conhecida como Manifesto do Trianon
(LOPEZ, 2004).
No recente processo de modernização da cidade, o Trianon, de
mirante isolado em meio ao parque, passara a restaurante da moda.
Há certos edifícios, certos passeios, às vezes mesmo certas portas, árvores,
bancos, lugares enfim que são perseguidos por uma felicidade muito especial.
[...] Haja vista o Trianon. A princípio nada mais era que um terraço onde
um ou outro passeante da Avenida Paulista iria empoeirar os cotovelos em
parapeitos desertos [...] Lugar de serenatas inconfessáveis... Comovidamente
ousaram fazer do local habitações de pombos mais que simbólicos.. Mas
logo abrolhou a idéia dum restaurante... [...] É que todas as urbs progressistas
e que se orgulham de o ser almejam proporcionar, não écoglas, mas... paraísos
artificiais. Fez-se o restaurante. [...] O Trianon é hoje uma instituição. É o
cardápio e, como todos os cardápios, desilusório do ágape social da cidade.
(ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 101-102)
Isto é, o Trianon é um importante espaço público de interação. À
luz do que nos oferece a abordagem de Bakhtin, do ponto de vista da
esfera comunicativa, dialógica da cultura, tudo reverbera em tudo, uma vez
que nela as formas culturais vivem sob fronteiras: “lugar de serenatas
inconfessáveis”. Assim destacam-se também as formulações fora dos limites
[do romance], nos espaços públicos, os parques, a rua, a praça, a feira, os
espetáculos, as festas, o jornalismo, a arte.
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Bakhtin nos chama a atenção à construção de enunciações em que
a linguagem é explorada em função da performance vocal, visual, gestual e do
próprio espaço; diríamos que o ambiente é a condição sem a qual o diálogo
simplesmente não acontece. A dialogia de um performer numa feira, numa
festa, ou como no caso, num banquete de homenagem num restaurante em
meio ao parque da cidade, acontece entre signos que ele, o regente das
vozes, manipula para interagir com seus interlocutores ou espectadores,
que por mais silenciosos que estejam, estão produzindo respostas que por
sua vez, alimentam o circuito da respondibilidade: a polifonia se realiza. Quer
dizer que do ponto de vista do dialogismo, essa polifonia resulta de gêneros
discursivos num contexto enunciativo que acolhe uma diversidade muito
ampla de manifestações (BAKHTIN, 2010). Além da comunicação visual
primeira – a área do parque primitiva, “um terraço onde um ou outro raro
passeante da avenida Paulista ia empoeirar os cotovelos em parapeitos
diversos”, outras esferas do discurso urbano foram introduzidas “logo
abrolhou a idéia de um restaurante [...] porque todas as urbs progressistas e
que se orgulham de o ser almejam proporcionar, não écoglas, mas paraísos
artificiais. Fez-se o restaurante”, evidenciando que as múltiplas relações entre
cultura e espaço desdobram-se em diálogos e polifonias socialmente
determinados. E, inserindo-os no pressuposto bakhtiniano de que “a
literatura não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura
de uma época” (BAKHTIN, 2010, p. 360), podemos compreender melhor
os limites e os desafios dos vanguardistas da Paulicéia. Enaltecendo o
anfitrião, o cronista permeia com a própria crítica (por justaposição das
ideias) o senso crítico do amigo, capta as contradições na diversidade dos
convidados, salientando o grotesco da festa. Na linguagem, a irreverência,
a frase telegráfica ainda se aliam com vocábulos preciosos e com a
altissonância no torneio das frases, marcas de um tempo de transição (LOPES,
2004). A convivência dessa linguagem contrastante como expressão de um
tempo de amadurecimento reflete a índole inacabável do dialogo polifônico,
visto que o dialogismo, no sentido mais amplo, opera em qualquer produção
cultural, seja ela da tradição literária ou de enunciados convencionalmente
não-modelares; se refere a todas as práticas discursivas de uma cultura,
toda matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado
(BAKHTIN, 2010).
Mário que, em sua estratégia de modernista, procede à louvação
do correligionário, compraz-se em trabalhar a musicalidade das palavras,
explorar a melopoética em sua crônica não só no elogio ao poeta
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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homenageado, como também no recurso de sua escrita aliterativa e musical.
Nesse sentido, as palavras se ligam umas às outras menos pelo sentido do
que pela sonoridade. Isto tudo gera uma harmonia, pois o som de uma
palavra fica reverberando na outra: um efeito pouco comum, já que não
são possíveis sons simultâneos na escrita [poética], porém, a técnica possibilita
quase que uma verticalização sonora (na música nomeia-se este elemento
de harmonia).
Menotti Del Picchia respondeu a cada um dos inúmeros oradores, como
era de esperar a bondade acolhedora do seu espírito. E disse coisas lindas
também, num prosar músico de raríssimo fulgor. Estou que o artista do
Moisés maneja com maior perfeição a prosa do que o verso [...] Sai-lhe a frase
em melodia flexuosa. Coroa-a de finais que espraiam largos, lentos, lânguidos
como as maretas nas marés mortas de janeiro... E um ritmo estonteante,
sempre vário, sempre original... É na sua prosa que Menotti cantou os seus
melhores versos – aqueles que sua poética não permitiu ainda,
enclausurada na prisão das regras alexandrinas. (ANDRADE citado em
LOPEZ, 2004, p. 105)
Ampliando um pouco mais a análise, reveladoras, ainda, nos
parecem as observações postuladas por Bakhtin quanto à prosificação da
cultura, em tudo semelhante à concepção da estética modernista à época,
quando defende a aproximação entre a linguagem literária, especialmente a
da poesia, e a linguagem da prosa, do falar prosaico do cotidiano, presentes
já nessas crônicas de Mário que na transição em que vive deixa as marcas da
“modernidade alardeada, a irreverência, frases telegráficas, frases sem
verbos abertas nas reticências, a descoberta da fala brasileira [...]”
(LOPEZ, 2004, p. 30).
Para Bakhtin, a variedade e a mobilidade discursivas da comunicação
interativa em suas combinações favoreceram o avanço da cultura prosaica
de valorização das ações cotidianas dos homens comuns e de suas enunciações
ordinárias, e promoveram a prosificação da cultura. A prosa tanto está na
voz, na poesia, quanto na littera. Na verdade, a prosa é uma potencialidade
manifesta como fenômeno de mediação, que age por contaminação,
migrando de uma dimensão a outra. Assim, para ele a prosificação da
cultura letrada pode ser considerada um processo altamente transgressor,
de desestabilização de uma ordem cultural que parecia inabalável. Trata-se
da instauração de um campo de luta, da arena discursiva onde é possível
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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discutir ideias e construir pontos de vistas sobre o mundo, inclusive códigos
culturais emergentes (BAKHTIN, 2010).
Ora, não seria esta uma das bandeiras da renovação modernista
desfraldada por Mário de Andrade?
A última crônica, De São Paulo V, nº 9 da revista, retrata o ciclo de
conferências do salão de Freitas Vale, Villa Kyrial, um espaço de grande
importância sociocultural, ponto de encontro da intelectualidade da época.
Aqui, como em tantos outros escritos de Mário, as relações entre cultura e
espaço estimulam as interações sociais, amálgama do diálogo polifônico. O
relato, antecedido de uma forte sátira à futilidade no lazer da burguesia da
cidade, alheio às manifestações culturais e a conversas mais consistentes,
retrata bem os hábitos sociais das metrópoles no início do século e a mania
das conferências.
O tom satírico contrapõe-se ao apologético que o sucede, para
valorizar a burguesia culta assídua no único salão literário e artístico paulistano,
no qual o mecenas José de Freitas Vale, que é também o poeta simbolista
Jacques d’Avray, organiza ciclos de conferências. Assim, o jovem crítico,
ávido de bons frutos do pensamento, através da escuta apurada dos temas,
de sua escuta aberta às “forças poderosas da cultura”, ainda que, neste caso,
de uma cultura da elite intelectual, traz à luz em sua crônica, a convivência das
diversas correntes artísticas nesse oásis polifônico para os sedentos do saber.
Põe-se, então, no historiar da crônica, a divulgar a programação
eclética de Freitas Vale. Mesmo omitindo sua própria participação que,
segundo registros em seu arquivo, fez a quinta conferência – “Debussy e o
impressionismo” –, evidencia a interface entre o cronista, o crítico de arte e
o musicólogo (LOPES, 2004).
E encerra a crônica, louvando o empreendimento cultural no estilo
musical e sonoro da melopoética simbolista, em metáfora musical,
combinando aliteração e assonância.
E, por último, um pormenor sublime: dança-se na Villa Kyrial! Entre os
artistas gesticulantes e entusiasmados há sílfides que vivem valsando a valsa
maravilhosa da inteligência e da graça... [...] E, com a imaculada paz de seu
espírito silencioso, a rainha de tantos feudatários, a senhorinha Leilah de
Freitas Vale – que é como um som longínquo e longo de trompa numa
tarde lenta, muito lenta... (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 115)
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Com efeito, nas crônicas da série De São Paulo para a Ilustração
Brasileira o cronista evidencia os espaços da Paulicéia como espaços de uma
cidade que se moderniza, como espaços artísticos e socioculturais, lugares
privilegiados tanto de fruição estética e intelectual como de projeção
identitária de um movimento de renovação cultural. Na Pauliceia de Mário,
as confluências entre a literatura e as outras artes revelam que os valores artísticos
dialogam sempre e estão em constante interação com os substratos culturais
implícitos na dimensão simbólica e alegórica tanto da linguagem do cotidiano
como nas linguagens artísticas da literatura, da música, das artes plásticas,
enfim, da cultura.
A melopoética e a polifonia cultural na vitrola de Mário de Andrade
Mário de Andrade amava a Música. Vivia a Música. Amava a
Literatura. Vivia a Literatura. Amava a Cultura. Vivia a Cultura. Com efeito,
talvez possa parecer redundante falar das relações entre a Música e a
Literatura, a melopoética, em suas obras; identificar o dinamismo e a
profundidade de suas concepções sobre Cultura, sobre Cultura brasileira, a
polifonia cultural, transbordante em suas produções críticas ou artísticas,
inseparáveis em sua essência, mas o fato que se avulta nas leituras é que sua
obra ainda é fonte de ensinamentos e surpresas. E como diz sabiamente
José Ramos Tinhorão, “quando se trata de estudos de cultura popular no
Brasil, por mais que se saiba, sempre há o que aprender com o pioneiro
Mário de Andrade” (citado em TONI, 2004, p. 11).
A obra, A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade,
organizada por Flávia Camargo Toni, está inserida no conjunto de pesquisas
que investiga e revela ao púbico as riquezas inesgotáveis do acervo de Mário
de Andrade: objetos de arte, documentos, anotações, registros, esboços e
obras que ainda surpreendem estudiosos e deleitam os amantes da cultura
e das artes em geral, tal é a fecundidade do escritor, do artista, do crítico, do
intelectual, enfim, de um dos maiores pensadores brasileiros do século XX.
Segundo José Ramos Tinhorão, em sua apresentação da referida
obra, a ideia de organizar, em livro, o catálogo dos 161 discos de música
popular brasileira da coleção pessoal de Mário de Andrade, acompanhados
das anotações encontradas nas capas de “cartolina lisa” que os revestiam,
resulta na comprovação do pioneirismo do grande estudioso no uso de
produtos da indústria do lazer internacional como documento para o estudo
do processo cultural brasileiro. E para nós, nesse pequeno estudo, mais
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uma prova do caráter polifônico, antropofágico (o artista de uma cultura
dominada não pode ignorar a presença estrangeira; é preciso que dialogue
com ela, que a engula e a recicle de acordo com os objetivos nacionais) e
renovador do grande pesquisador brasileiro que, com sua “escuta aberta”
e seu “ouvido crítico”, se apropria desse recurso para consolidar sua posição
teórico-nacionalista nos estudos da cultura popular brasileira.
A opção metodológica da organizadora, utilizada para a seleção
dos 161 discos dentre os 544 colecionados por Mário de Andrade5, se
motiva pela forma, escolhida pelo colecionador, de ouvir e contemplar a
produção nacional popular-urbana e folclórica, anotando nas capas dos
discos suas impressões de audição das obras e dos intérpretes. Além disso,
o interesse por esse recorte se amplia em face dos desdobramentos desse
processo que, fruto de suas análises, vão permear certos artigos e ensaios, na
interface entre a literatura, a crítica e a musicologia, isto é, um diálogo interartes:
Mário de Andrade escutava de tudo – das milongas ao jazz, de Francisco
Mignone a Arnold Schoenberg –, embora aqui estejam apenas os discos de
musica popular brasileira. [...] a capa dos discos eram incômodas para o
fichamento. Logo substitui os invólucros que vinham com as propagandas
das fábricas, sem fichas técnicas, por outros de cartolina lisa que mandava
fazer e, nessas novas capas, com letra miúda, a lápis ou tinta, escrevia à
vontade. Essas notas muitas vezes foram rascunhos ou primeiros manuscritos da redação de críticas jornalísticas e ensaios (TONI, 2004, p. 13-14)
As anotações do autor nas capas dos discos e as referências na
literatura musical de Mário de Andrade refletem em tudo um diálogo íntimo
entre o escritor e o musicólogo, como bem aponta Flávia Camargo Toni:
“pontos que unem a literatura e a música, fios que tecem um só Mário de
Andrade” (2004, p. 22), observação na qual parece ecoar as considerações
de Bakhtin quando questiona a tendência de se dar particular atenção à
especificidade da literatura, sem estabelecer o vínculo mais estreito com a história
da cultura, relegando suas potencialidades dialógicas como produção cultural:
Em função do envolvimento com especificações, ignoravam-se as questões
da relação mútua e da interdependência entre os diversos campos da cultura;
esquecia-se frequentemente que as fronteiras desses campos não são
absolutas, que variam em diferentes épocas, não se levava em conta que a
vida mais intensa e produtiva da cultura transcorre precisamente nas fronteiras
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de campos particulares dela e não onde e quando essas fronteiras se fecham
em sua especificidade [...]. (2010, p. 361)
Ancorados, então, nessas observações, podemos identificar que a
relação de Mário de Andrade com a “discação nacional” se manifesta sob
três aspectos: como criação literária, fonte de pesquisa ou, apenas, fruição
pessoal. Como criação literária, nas imagens poéticas (melopoéticas) que se
realizam em seus escritos; como fonte de pesquisa que vai alimentar seus
artigos, conferências e crônicas críticas (também fonte de melopoética); e
como deleite pessoal do musicólogo.
Os discos mais antigos do arquivo de Mário de Andrade, segundo
registros, pertencem à fase da gravação elétrica, iniciada no Brasil em 1927,
e incluem discos lançados ou gravados entre 1927 e 1945. Também a
referência mais antiga ao conteúdo de um disco, em texto de próprio punho,
deve datar de 1927, como afirma Flávia C. Toni:
Cronologicamente, a referência mais antiga de Mário de Andrade ao conteúdo
de um disco, em texto de própiro punho, deve datar também de 1927,
quando organiza os dados que Pixinguinha lhe oferecera sobre a macumba
do Rio de Janeiro [...] As informações obtidas são transcritas em folhas
destacadas de uma caderneta de bolso e confrontada como os versos de
Dona Clara, ao analisar as cantorias do culto. (TONI, 2004, p. 27)
Essas informações de Pixinguinha e a música de Donga, Dona Clara,
segundo diversos registros, deságuam no capítulo “Macumba” de Macunaíma
e na conferência literária Música de feitiçaria no Brasil, escrita para a Associação
Brasileira de Música e posteriormente, junto com outros documentos afins
fará parte da obra homônima, organizada por Oneyda Alvarenga. Assim,
sua audição crítica e suas anotações sobre as músicas e os intérpretes, nas
capas, não só vão motivar outros estudos críticos como também vão rechear
suas criações literárias e os temas de sua extensa correspondência pessoal.
A “discação nacional” como fonte de criação artística em Mário de
Andrade
A internacionalização, industrialização e comercialização de bens
culturais foram sem dúvida aspectos que instigaram a criação artística
modernista. Na “escuta aberta”, singular e critica em que sempre se pautou
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a postura intelectual de Mário de Andrade, não se tem notícia precisa de
quando o musicólogo começa a colecionar discos e ampliar, com a música
mecânica, seu conhecimento musical. A música popular registrada em discos,
assim como outras obras da música universal, constituíram um grande foco
de sua atenção como estudioso da nossa cultura. Os discos eram valorizados
por ele não só para fruição, mas também como instrumento de trabalho,
suporte para suas pesquisas. Em seu acervo discográfico registra-se uma
variedade de música popular e de concerto de nossa cultura musical e, em
seus artigos na imprensa e nas conferências que realiza, aconselha, além das
edições de partituras, a leitura dos catálogos da Colúmbia, Odeon e Vitor
que já ouvira em sua vitrola. Em suas colaborações tanto para a imprensa
nacional como para a estrangeira, elenca discos representativos de cururu,
cateretê, toré, samba, jongo, macumba, batuque, modinha, moda e embolada
(TONI, 2004).
Considerando os limites do presente estudo, da seção “Catálogo”
do livro organizado por Flávia Camargo Toni, dentre o rico material da
“discação” de Mário, destacamos duas referências a fim de identificar e
analisar os processos da melopoética como forma de diálogos interartes
na polifonia cultural em Mário de Andrade.
Discos lançados ou gravados em 1929
LADO A
PRAZERES, Heitor dos. Vai mesmo: Samba.
Mário Reis com Orquestra Pan American
LADO B
SILVA, J. B. da (Sinhô). Carga de burro.
Samba. Mário Reis com Orquestra Pan American
DISCO ODEON 10387
Notas de Mário de Andrade
Na capa
289= O. B.10387
“O Samba de Sinhô foi célebre um tempo. Aqui, está realizado num ambiente
orquestral muito influenciado de rumba.”
Referência na Literatura Musical de Mário de Andrade
Sobre Sinhô6: “Sinhô é poeta e músico. Do Brasil? Me dá uma angústia
atualmente imaginar em Brasil... É uma entidade creio que simbólica este
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país. Realidade, não me parece que seja não e, quanto mais estudo e viajo as
manifestações concretas do mito, mais me desnorteio e, entristecer, não
posso garantir que me entristeço: me assombro. Na verdade, na verdade
este nosso país inda pode dar esperança de si... Mas é simplesmente porque
arromba toda concepção que a gente faça dele.
Porém, Sinhô, senão é brasileiro, é carioca. Pouco me incomoda de saber
onde nasceu. Sinhô é carioca na música e na poesia dele.
Possui nos textos incomensuráveis que inventa aquela safadice pura com
que o carioca fala em “catedrais do amor” Agora já estou querendo me
afastar do assunto mais uma vez porque minha experiência está gritando
aqui dentro: – O carioca não existe ou é o Brasil!
Essas maneiras sintéticas da experiência gritar são as mais das vezes muito
falsificadoras. De fato o carioca existe como entidade psicológica, muito
embora de fato, sejam no geral muito menos cariocas os seres nascidos no
Distrito Federal, que os brasileiros e estrangeiros atraídos pelo Rio de Janeiro.
São estes os que deixaram a consciência e o caráter e tudo na ilha de Marapatá,
os que fazem a entidade psicológica bem merecedora do qualitativo ‘carioca’
[...]”. (ANDRADE citado em TONI, 2004, p. 80-81)
Como se pode observar, Mário de Andrade faz referência, na
crônica acima, a uma das figuras mais emblemáticas do samba carioca: J. B.
Silva, conhecido como Sinhô, inspiradora de admiração e mote para muitos
cronistas modernos.
Pode-se constatar que, na relação entre disco, música e crônica,
realizam-se diversas metáforas e alusões musicais, a melopoética. Afinal, como
ouvinte da música e como crítico, Mário fala de suas impressões do disco,
tece pequena consideração sobre o músico, suas qualidades musicais e,
extrapolando pelo processo de transposição para linguagem literária,
deságua nas reflexões sobre a identidade do “mito” Brasil, na gênese do
jeito e do estilo carioca. Assim, polifonia entra na arquitetura do texto quando
estabelece o embate entre a sua “experiência que grita aqui dentro” e outros
sujeitos, ecos de diversas “consciências” que perpassam a visão critica do autor.
É interessante observar, também, a conexão crítica entre o sintético
registro do musicólogo sobre o disco, feito na capa, destacando a influência
nociva do estrangeirismo no ambiente orquestral numa composição de um
músico popular: “Aqui, está realizado num ambiente orquestral muito
influenciado de rumba”. Além disso, há uma crítica cultural na medida em
que Mário questiona a ambiguidade da identidade nacional, ao afirmar que
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“pouco me incomodo de saber onde ele [Sinhô] nasceu” e concluir,
exclamando, que “o carioca não existe ou é o Brasil!”.
Assim, os efeitos do entrelaçamento entre a melopoética e a
polifonia, por sua índole dialógica, vão se desdobrar em um fenômeno mais
amplo nas produções critica, literária e musical de Mário de Andrade, ou
seja, a polifonia cultural.
Outra referência de destaque nas apreciações musicais da discação
de Mário de Andrade é o músico popular Pixinguinha e sua mestria como
instrumentista e, embora não tenha dedicado a ele nenhum estudo específico,
as informações dadas pelo músico sobre a Macumba no Rio de Janeiro
vão servir como fonte de criação para o escritor.
Discos lançados ou gravados em 1929
LADO A
VIANA, Alfredo. Vem cá! Não vou!: Choro orquestral.
Orquestra Victor Brasileira.
LADO B
VIANA, Alfredo. Urubatã:
Choro orquestral. Orquestra Victor Brasileira
DISCO VICTOR nº 33.204
NOTAS DE MÁRIO DE ANDRADE
Na capa
“26= V.33204”
“Disco admirável. Riqueza e beleza de combinações instrumentais. Alfredo
Viana é o próprio Pixinguinha. O titulo Urubatã é digno de nota. Urubatã
é um deus do Catimbó, cuja melodia registrei no nordeste. Pixinguinha,
macumbeiro contumaz carioca, denominando uma obra sua com nome de
Catimbó... A melodia recolhida por mim é completamente outra.”
Referências na Literatura Musical de Mário de Andrade
Informações sobre a macumba, no Rio de Janeiro, transmitida a Mário de
Andrade por Pixinguinha.7
Cerimônias de Macumba (Pixinguinha)
Pais-de-santo são os feiticeiros-mores, em cujas casas se realizam as
macumbas. São obrigados a realizá-las nos dias exatos, como por exemplo
8 de dezembro, dia de Inhançã, N. S. da Conceição. Também são obrigados
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conforme o dia do santo a matar um carneiro, um caritó, um porco, etc. Não
perguntei se os macumbeiros comem toda essa carne gostosa.
Naturalmente. Às vezes a fama de certos pais – de santo se espalha. Uma
das mais recentes mães-de-santo (pois que podem ser também mulheres)
famosas foi tia Ciata, mulher também turuna da música dizem [...].
Também se evoca o diabo sob a denominação de Exu. Aliás, um maxixe do
Donga o prova quando diz: ‘Fui em Dona Clara – numa macumba – com
Exu falar, fazer um feitiço – pra cima de ti, pra você me deixar.’
O canto inicial das macumbas é o salvamento dos santos e expulsão de
Exu. É uã melopéia monótona, verdadeira litania em que repete
infindavelmente o coro: “Vamo saravá”
[....] O informante crente pio me confessou margurado que é uma vergonha
certas macumbas de porcaria em que santo aparece por dá cá aquela palha. O
anúncio de que o santo vai chegar dá um frêmito de terror adorante nos
assistentes. A pessoa em que o santo vai entrar se torna atenção de todos.
De repente, ele começa a puxar um canto a que todos os assistentes fazem
coro. O santo chegou. [...] Canta a pessoa em que o santo entrou, já
inteiramente possessa e o coro faz adoração ao santo. Depois então
principiam os pedidos pro santo, que os dá ou não. [...] O canto dos santos
encarnados são na infinita maioria incompreensíveis pros negros do Brasil.
Ou em línguas africanas ou puramente mágicos em palavras onomatopaicas
ou não, porém de sentido oculto. Ou nenhum sentido...[...] No maxixe
‘Não te quero mais’ que citei o macumbeiro pede ao diabo pra que uã
amante o deixe. E...
‘Uma nega velha/ De cachimbo torto/ Que tinha na boca/ etc/
Pegou três pauzinhos,/ jogou para o alto/ Fez encruzilhada./ Nhonhô
vai-se embora/ Me disse em segredo,/ A mulher está amarrada/ Feitiço
não te pegar/ Os santos vão te amarrar/etc.
E diz na estrofe seguinte:
Vou pedir a Ogum/ Pra falar com Xangô/ Pra você sofrer’ [...]. (ANDRADE
citado em TONI, 2004, p. 87-90)
Para Mário, Pixinguinha era uma fonte ligada às manifestações afro–
brasileiras, o “informante” e o “fadista de profissão” que o levou às
pesquisas, que redundaram na conferência Música de feitiçaria e no capítulo
“Macumba”, de Macunaíma. Nesse capítulo, observa-se a mobilidade como
processo constitutivo da criação literária, na medida em que, a partir das
informações dadas pelo músico, o narrador descreve o ritual e constrói a
representação de Pixinguinha como Ogã, o “Ogum Bexiguento”, além de
inserir Tia Ciata e Polaca no capítulo.
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Em “Macumba” a liberdade da linguagem literária (alegoria) e o
contexto ficcional permitem a Mário de Andrade explorar a melopoética
na alusão às formas musicais, por meio de formas populares de composição,
como suíte e variação8 e da obra como rapsódia9, bem como representar e, de
certa forma, questionar os vários elementos que surgiam e se perdiam no
ambiente sonoro da cultura popular.
Desse modo, graças a sua “ordenada sistematização musical”, Mário
de Andrade encontrava na coleção de discos elementos que o ajudavam a
buscar variantes e constâncias melódicas brasileiras, atentando sempre para
o ruído da influência internacional, como bem aponta Mauricio de Carvalho
Teixeira:
Naquele projeto estético, era a partir da quebra desses limites, pesquisada
entre as sociedades ágrafas, que se deveriam multiplicar as músicas modernas.
A composição de Macunaíma escrito como se fosse música, quis dar um
exemplo de realização criativa dessa nova arte baseada numa identidade
étnica da nação e na contramão das modas internacionais. (citado em TONI,
2004, p. 69)
A ironia dirigida por Mário a Pixinguinha por nomear a música
deste de Urubatã, um deus do Catimbó, cuja melodia era bem diferente
do seu choro orquestral, ritmo essencialmente urbano, reforça a premissa
de que o ruído da influência internacional contaminava a cultura popular.
Considerações finais
Como se pôde observar pelos recortes apresentados, a estética de
Mário de Andrade é engendrada através de um processo altamente dialógico,
em que artistas e teóricos das Letras, da Música e da Pintura são resgatados
ou apresentados e compõem, simultaneamente, as interações com seu
tempo-espaço, agregando valores estéticos, sociais e culturais ao seu fazer
artístico, tanto da tradição como das vanguardas. Essas marcas dialógicas
servem à legitimação de suas concepções como intelectual que, inserido
nos dilemas da modernidade, estava sempre preocupado em propor
caminhos para o estudo do processo cultural brasileiro e para uma produção
artística ao mesmo tempo modernista e nacional.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
116
Neste sentido, a polifonia cultural e os inumeráveis diálogos inteartes
que se estabelecem na produção crítica e literária de Mário de Andrade
constituem, na verdade, parte de um processo criativo e intelectual
socialmente determinado de sua orquestração polifônica em que gêneros e estilos,
marcas estéticas, sociais e culturais iluminam-se mutuamente, relativizandose uns aos outros. Essa polifonia cultural implica, ao mesmo tempo, um
confronto entre práticas e discursos sociais mais amplos e, é, através desse
confronto, que o autor exprime as contradições da época, mas não se fecha
nelas, pois “a literatura como unidade diferenciada da cultura de uma época
é uma unidade aberta, sua plenitude só se revela no grande tempo” (BAKHTIN,
2010, p. 365).
Notas
Essas relações serão analisadas a partir das indicações e textos presentes nos livros De
São Paulo – cinco crônicas de Mário de Andrade de 1920-1921, organizado por Telê
Ancona Lopes, e A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, organizado
por Flávia Camargo Toni.
1
A escuta como um fenômeno psicossocial vem sendo estudada por diversas áreas
do conhecimento, tais como a acústica, a fenomenologia e antropologia sonora. A
expressão “escuta aberta” é utilizada aqui, por transposição para os estudos literários,
como uma postura estética, uma forma criativa e inovadora de agregar sentidos ao
processo de criação artística, a partir de experiências diversas, sonoras ou não,
considerando que a escuta não se reduz a uma capacidade fisiológica e não se dá num
vácuo social. O crítico Theodor W. Adorno foi um dos primeiros autores a discutir a
escuta moderna em trabalhos como “Sobre jazz” (1936) “Sobre o caráter fetichista da
música e a regressão da audição” (1938) e “Sobre música popular” (1940-1941). Além
de Adorno, Murray Shafer em O ouvido pensante (1991) denomina de “paisagem sonora”
o que, em certo sentido, seria o substrato a partir do qual se desenvolvem os imaginários
sonoros de diferentes épocas e sociedades. Virgínia de Almeida Bessa, na introdução
da obra A escuta singular de Pixinguinha: história e música popular dos anos 1920-1930
faz interessantes considerações sobre o tema.
2
Combinação de duas ou mais notas que soam simultaneamente (ANDRADE,
1989, p. 8).
3
Cadência – Procedimento harmônico de encadeamento de acordes para a finalização
de uma obra, seção ou frase (ANDRADE, 1989, p. 79).
4
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117
A coleção de discos do escritor integra, hoje, seu Arquivo como patrimônio do
IEB/USP.
5
6
Mário de Andrade, “Sinhô”, em Taxi e crônicas no Diário Nacional, p.103
Informações recriadas literariamente no capítulo “Macumba” de Macunaíma, p. 7382, e reproduzidas em parte na Conferência Literária : Música de feitiçaria no Brasil, lida
na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, em outubro de 1933, provavelmente
no dia 3, segundo registros encontrados por Oneyda Alvarenga, e acolhidas na obra
homônima Música de feitiçaria no Brasil, p. 154-156.
7
Suíte – forma musical composta por uma sequência de diferentes danças escritas na
mesma tonalidade e para o mesmo instrumento ou conjunto instrumental. Segundo
Mário de Andrade, “a suíte é antiguíssima e a gente encontra a base dela na música
popular. É muito comum, no povo, a união de peças musicais distintas, todas de
caráter coreográfico, para formar obras complexas e maiores (ANDRADE, 1989, p.
490) Variação – O princípio da variação consiste em repetir uma melodia dada,
mudando, a cada repetição, um ou mais elementos constitutivos dela, de forma que
apresentando uma fisionomia nova , ela permaneça sempre reconhecível na sua
personalidade (ANDRADE, 1989, p. 550).
8
Rapsódia – Forma livre de composição musical, peça característica, sem conteúdo
programático (ANDRADE, 1989, p. 427).
9
REFERÊNCIAS
Obras de Mário de Andrade
ANDRADE, Mário. Macunaíma. São Paulo: Livraria Martins, 1976.
______. A música de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília:
INL, 1983.
______. Pequena história da música. São Paulo: Editora Itatiaia, 1987
______. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga e Flávia
Camargo Toni. Editora Itatiaia Limitada, 1989.
______. De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921.
Organização, introdução e notas de Tele Ancona Lopez. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2004.
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TONI, Flávia Camargo (org.). A música popular brasileira na vitrola de Mário de
Andrade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
Obras sobre Estudos Interartes
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e musica. São Paulo: Perspectiva,
2002.
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanharussa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Beatriz LOPES
Mestranda do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de
Brasília (UnB).
André Luís GOMES
Professor Doutor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade
de Brasília (UnB).
Artigo recebido em 31 de maio de 2011.
Aceito em 30 de junho de 2011.
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119
GRAVURAS PROLÉPTICAS:
UM DIÁLOGO MIDIÁTICO ENTRE O PRÓLOGO
E A DIEGESE DO FILME OS OUTROS
Brunilda T. Reichmann
[email protected]
Resumo: Este artigo promove um
diálogo midiático entre o prólogo e
o desenrolar dos acontecimentos em
Os outros (2001), de Alejandro
Amenábar. O filme recria e subverte
as características das “histórias de
fantasmas”, enquanto capta a
ressonância de Os inocentes (1961), de
Jack Clayton, adaptação fílmica da
novela fantástica A volta do parafuso
(1898), de Henry James. Este trabalho
limita-se, no entanto, a analisar as duas
cenas e as oito gravuras da abertura
do filme de Amenábar, sobre as quais
são projetados os créditos, que
prenunciam o desenvolvimento da
narrativa, dialogam com a atmosfera
e estabelecem uma relação especular
com a diegese do filme.
Abstract: This article presents a
mediatic dialogue between the
prologue and the events in The Others
(2001), by Alejandro Amenábar. The
film recreates and subverts “ghost
stories”, while capturing the
resonance of The Innocents (1961), by
Jack Clayton, filmic adaptation of
the fantastic narrative The Turn of the
Screw (1898), by Henry James. This
paper, however, limits itself to the
analysis of the two scenes and the
eight drawings of the opening of
the film by Amenábar, on which the
credits are projected, that foreshadow
the development of the narrative,
dialogue with the atmosphere and
establish a mirror relationship with
the diegesis of the film.
Palavras-chave: Amenábar. Histórias de fantasmas. Gravuras. Relação
midiática.
Key words: Amenábar. Ghost stories. Drawings. Mediatic relation.
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120
Introdução
Com The Others (2001) [Os outros], primeiro filme em língua inglesa
de Alejandro Amenábar, nascido no Chile em 1972 e radicado na Espanha
desde a infância, o cineasta espanhol projeta-se universalmente como um
dos grandes artistas da contemporaneidade. Amenábar já havia atraído a
atenção de um grande número de espectadores com seus dois primeiros
longa metragens. O primeiro, intitulado Tese, (1996) [Thesis: morte ao vivo], é
um filme de suspense e assassinato; Abre los ojos (1999) [Preso na escuridão], o
segundo, trata de assuntos polêmicos como a realidade virtual e a criogênese.
O quarto filme, dirigido depois de Os outros, é a sensível produção sobre a
eutanásia Mar adentro (2005) [Mar adentro], vencedor do Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro em 2005, de dois prêmios no European Film Awards
(2004) e de 14 prêmios no Goya em 2005. Essa breve descrição dos filmes
de Amenábar deixa claro que sua preferência recai sobre assuntos polêmicos,
que vão desde o suspense hitchcockiano até os limites das controvertidas
tecnologia e ciência contemporâneas.
Filme com história, ambientação, atmosfera e tensão semelhantes,
Os outros estabelece um diálogo “intertextual” com The Innocents (1961) [Os
inocentes], adaptação fílmica da novela de Henry James (1843-1916), The
Turn of the Screw (1898) [A volta do parafuso]. Os dois filmes – Os inocentes e Os
outros – possuem características góticas marcantes: subvertem a noção de
realidade empírica ao introduzirem a possibilidade de um mundo
sobrenatural; as histórias são ambientadas em local isolado; em cada história
há duas crianças com capacidade de entrar em contato com o mundo dos
“outros”; as protagonistas femininas vivem situações limítrofes e seus
comportamentos beiram a histeria; a expressão dos olhos dessas
protagonistas é objeto de constante focalização. Em Os outros há, no entanto,
uma potencialização da subversão no que diz respeito ao suspense e ao
final do filme. Essa e outras características serão mencionadas à medida
que as duas cenas e as gravuras usadas como pano de fundo para a abertura
do filme forem discutidas.
O prólogo ou incipit insere o espectador imediatamente na diegese
do filme Os outros, pois a “câmera subjetiva” sugere um espectador primeiro
acompanhando, com a câmera na mão, uma mulher que sobe os degraus
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
121
da escada de uma maneira determinada, cortando para a segunda cena na
qual as personagens estão aparentemente posando para uma foto, e depois,
com uma vela na mão, iluminando e observando minuciosamente as
gravuras, sob o bruxulear da chama, em um ambiente totalmente envolvido
pela escuridão.
Recriação e subversão
A leitura das “histórias de fantasmas” (expressão usada por Todorov),
criadas por Henry James, sugere uma imagem complexa e de difícil captação.
De 1868 a 1908, o romancista dedica-se a narrativas fantásticas: a primeira
sendo De Grey: A Romance (1868) e a última The Jolly Corner (1908). A volta do
parafuso (1898) permanece, no entanto, como uma das mais instigantes, “onde
a ambiguidade é mantida ao longo de todo o texto e onde ela representa
um papel dominante” (TODOROV, 2003, p. 185). Essa manutenção da
ambiguidade traz o leitor de volta ao texto repetidas vezes em uma tentativa
frustrada de “resolver” o mistério que permeia a narrativa. Nelson de Oliveira
(2008), colunista do Jornal de Literatura do Brasil, assim descreve a ambiguidade
em Henry James
Aí está o fantástico clássico: entre o mundo real e o mundo sobrenatural.
Ele se fundamenta na hesitação do narrador e do leitor, que não sabem,
nem têm como saber, qual seria a verdadeira explicação dos acontecimentos
que vão passando diante de seus olhos. Quando as evidências parecem
apontar para determinada direção – o plano de uma mente criminosa ou a
loucura do protagonista ou o mundo sobrenatural – novos acontecimentos
vêm mudar o rumo da história e confundir o narrador e o leitor. É o que
acontece, por exemplo, no romance A volta do parafuso, de Henry James, no
qual até mesmo no desenlace o discurso do narrador não permite que o
leitor saiba se os fantasmas existem mesmo ou se tudo não passa de
alucinações da protagonista. Aí a ambigüidade jamais desaparece.
Ao escrever narrativas “de fantasmas”, Henry James transgride as
leis da realidade empírica e abre espaço para outras esferas de existência
cujos habitantes não são seres “reais”. Essas narrativas transgressoras
abordam assuntos que transcendem nossa realidade empírica. Com
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
122
Amenábar essa transgressão – a presença de mortos ou fantasmas – é
elevada à segunda potência no filme Os outros, pois o mistério e a existência
de seres sobrenaturais sofrem um revés no final do filme, intensificando o
suspense e introduzindo um elemento surpresa contundente. A crença na
possibilidade da existência de fantasmas vai aos poucos tomando corpo
no filme, principalmente pelo acesso da menina Anne [Alakina Mann] e da
governanta, Sra. Mills [Fionnula Flanagan], aos dois mundos e
posteriormente pelo acesso ao mundo dos mortos pela própria mãe, Grace
[Nicole Kidman]. A grande subversão, no entanto, dá-se mais para o final.
Desestabilizado ao longo do filme pela instabilidade emocional da
protagonista, pela tensão e suspense criados pela atmosfera, o espectador
tem suas expectativas, não frustradas, mas novamente intensificadas ao
descobrir que os protagonistas e os empregados da casa, personagens que
atuaram o tempo todo como pessoas da nossa “realidade”, são fantasmas.
O espectador, neste momento de impacto, necessita refazer sua trajetória
de leitura e restabelecer seu vínculo com a “realidade” do filme, pois esta
acaba de escapar-lhe.
O medo infantil é o fio condutor de Amenábar, ao conceber a
produção, como revelado nas Notas de Produção do filme (DVD 2):
Sobre Os outros, [Amenábar] diz que “sempre quis fazer um filme repleto de
corredores longos e escuros, um tributo a estes seres sempre mascarados
que assombram dos meus pesadelos de infância.”
“Minha infância foi povoada por diversos medos – medo do escuro, medo
de portas entreabertas, medo de armários, e de uma maneira mais geral,
medo de qualquer coisa que pudesse esconder alguém ou alguma coisa,”
recorda. “Sendo assim, não é nenhuma surpresa o fato de eu ser avidamente
dedicado ao cinema do oculto.”
A percepção que estamos em um mundo que dá abertura a outros mundos
começa a delinear-se de modo muito sutil e sem efeitos artificiais ou
superficiais.
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123
O diálogo entre o prólogo e o filme
O prólogo ou incipit, como mencionado, contém duas cenas e e
oito gravuras filmadas. A primeira cena, com uma montagem que remete a
Eisenstein, estabelece o conflito: linhas verticais cortam um fundo criado
por linhas horizontais. Os degraus da escada, definidos por marcante luz e
sombra, são cortados pelas pernas de uma mulher, com vestido escuro e
austero e sapatos pretos, com gáspea alta e tacões pesados, que sobe a
escada. O som dos passos assemelha-se a estampidos que conduzem o
espectador escada acima, quando uma nova cena nos introduz a um mundo
onde seres “estranhos” entre pessoas de uma aparente realidade empírica
encaram a câmera – que supostamente está sendo segurada pelo espectador
– como se estivessem posando para uma foto, estabelecendo assim um
diálogo com as fotos dos mortos encontradas na mansão. Essas duas cenas
curtas nos remetem a um dos temas do filme: a existência de mundos
paralelos – o natural e o sobrenatural. Logo após essas tomadas, tendo
como fundo uma tela totalmente escura, escuta-se, em voice-over, uma breve
história sobre a criação do mundo, baseada no relato bíblico, narrada por
voz de mulher. Ela diz:
Muito bem, crianças, estão sentadas confortavelmente? Então vou começar.
“Esta história começou a milhares de anos, mas acabou em sete dias. Há
muito tempo, nenhuma das coisas que vemos agora... o sol, a lua, as estrelas,
a terra, os animais e as plantas... nada disso existia. Só Deus existia e só Ele
poderia tê-las criado. E Ele as criou.” (0:20-0:50)
À medida que a narradora conta essa história, a ilustração da criação
do mundo, com o sol no centro vai sendo filmada, tendo como iluminação
a luz de vela. A chama incide primeiro na parte central da ilustração, a que
está sendo focada, como se o espectador a estivesse iluminando com uma
vela na mão. Eliminando-se o espaço onde a luz incide, o resto da tela é
escuridão. A seguir outras gravuras, estáticas, todas em PB, com traços
complexos e ângulos normais, são filmadas e compõem o pano de fundo
do incipit do filme.
Após essas duas cenas iniciais e o início da história da versão bíblica
da criação do mundo, as oito gravuras1 são filmadas e dialogam com a
atmosfera e a diegese do filme.
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124
Primeira gravura (Figs. 1, 2 e 3): Para falarmos sobre esta gravura (e algumas
outras que seguem), temos que fragmentá-la, pois a iluminação se desloca
para diferentes pontos da gravura, mostrando imagens distintas. O desenho
como um todo parece mostrar a criação do mundo, possivelmente
remetendo à narrativa da Sra. Mills, a governanta. No início uma luz tênue
ilumina o centro, um nascer do sol. Os detalhes laterais da gravura não
podem ser observados pelo espectador porque a iluminação não os alcança.
A iluminação passa então para o lado direito da gravura onde vemos animais,
seguido de um travelling da câmera para o lado esquerdo no qual se vê um
menino e uma menina de costas, de mãos dadas, observando o que se
encontra à frente, o nascer do sol. As crianças remetem aos dois personagens
do filme, Anne e Nicholas [James Bentley], observando as imagens da
história da criação do mundo que lhes é narrada pela Sra. Mills. Os nomes
da atriz principal – Nicole Kidman – e dos demais participantes e realizadores
do filme são projetados sobre as gravuras escuras usadas como pano de
fundo dos créditos.
Fig. 1 – Primeira parte da primeira gravura.
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Fig. 2 – Segunda parte da primeira gravura.
Fig. 3 – Terceira parte da primeira gravura.
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126
Segunda gravura (Figs. 4 e 5): O movimento da luz e do travelling é diferente
nesta segunda gravura. A tomada tem início nos primeiros degraus da escada,
seguida de movimento ascendente, acompanhando a curvatura onde se
encontram duas crianças sentadas nos degraus lado a lado; elas observam o
que acontece abaixo, por entre os balaústres. À semelhança da primeira
gravura, duas crianças estão presentes, remetendo novamente às personagens
infantis do filme, Anne e a Nicholas. Esta referência é ainda mais incisiva,
pois o desenho da escada assemelha-se à escada da mansão onde moram.
A escada passa a representar o entre-lugar. Um lugar ironicamente de
proteção entre duas ameaças: as crises da mãe no andar de baixo e os seres
sobrenaturais no andar de cima, ou pelo menos é isso que o espectador
imagina no início do filme. O movimento ascendente parece indicar que
um dia as personagens terão que enfrentar os “moradores” do andar de
cima. No momento, entretanto, as crianças refugiam-se, juntas, do inferno
abaixo e do inferno acima. Como na primeira gravura, não temos a visão
do todo, temos que acompanhar a luz que ilumina partes das gravuras e o
travelling ascendente da câmera. Em várias ocasiões durante o filme as crianças
refugiam-se na escada, mas, além de ser um lugar de refúgio, é também o
espaço onde Anne tem que cumprir os castigos impetrados pela mãe, devido,
segundo ela, ao caráter “fantasioso” da imaginação e ao comportamento
agressivo da filha. O espectador começa a entender, ao ouvir a afirmação
de Anne de que ela sabe o que aconteceu “aquele dia”, que a história deles
esconde algo sinistro. No final do filme, saber-se-á qual a gravidade do
comportamento da mãe, sua causa, justificável ou não, e as consequências
de suas ações para os filhos. A austeridade da mãe, a ausência do marido, a
dificuldade de criar duas crianças fotossensíveis, a solidão e o desespero
que vivencia com o abandono dos antigos criados, de certa forma explicam
a atrocidade que a personagem é levada a cometer contra seus filhos. O
“desconhecimento” de Grace e do espectador sobre o ato cometido por
ela, não faz com que a filha o ignore e deixe de mencionar, com amargura,
a expressão “naquele dia” várias vezes ao longo do filme. Os empregados
atuais, devido ao caráter especial de suas existências, sentem-se na obrigação
de fazer a “dona da casa” reconhecer a ignorância da situação em que vive.
Eles aparentemente vêm trabalhar na casa para fazê-la reconhecer seu estado
e conduta lastimáveis.
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127
Fig. 4 – Primeira parte da segunda gravura.
Fig. 5 – Segunda parte da segunda gravura.
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128
Terceira gravura (Figs. 6 e 7): um menino brincando no chão ao lado
esquerdo de uma poltrona onde uma senhora está sentada com um livro
aberto no colo. Ela conversa com uma menina à direita. Esta posição do
menino, aparentemente alheio ao que está sendo feito ou dito, encontra
desdobramento ao longo do filme. Nicholas é muito jovem, frágil e
amedrontado, cercado por mulheres fortes, inclusive sua própria irmã, apenas
alguns anos mais velha do que ele, mas amadurecida pelas circunstâncias da
vida e ciente do que acontece ao seu redor. Nicholas, apesar de parecer
alheio aos acontecimentos, é influenciado pelos relatos da irmã sobre Victor
[Alexander Vince], o suposto menino-fantasma que assombra a casa, e pelo
conhecimento, aventado pela irmã, que a mãe é responsável por algo terrível
que aconteceu no passado. Repetidas vezes Anne afirma que Victor não é
um fantasma porque não está coberto por lençol branco nem arrasta
correntes. Estas afirmações, aparentemente ingênuas, remetem à revelação
final do filme. Entre seu amor e temor pelas duas mulheres, e depois também
pela Sra. Mills, Nicholas é uma criança atormentada e perturbada. O lado
direito da gravura mostra um diálogo entre uma menina e a senhora e
remete à relação que se estabelece entre Anne e a Sra. Mills no filme. Elas se
reconhecem como seres que têm acesso a outro plano de existência,
veementemente negado pela mãe, uma religiosa fervorosa e austera. Na
ausência do pai, Anne recorre a Sra. Mills quando é assolada por medos e
dúvidas, mas encara a existência de Victor com destemor. Anne vê, além de
Victor, vários seres perambulando pela mansão, principalmente no andar
de cima. Mais tarde, quando a mãe não pode mais ignorar a existência de
“intrusos” na casa, Anne desenha os seres que viu e escreve o número de
vezes que os viu. Quando o pai “retorna” para casa, a filha revela o seu
sofrimento e do irmão a ele, demonstrando assim sua afinidade com o pai.
A conversa entre eles enfurece a mãe que a culpa pelo distanciamento do
seu marido. A gravura pode resgatar também o momento em que a Sra.
Mills conta para as crianças a história da criação do mundo. Este seria um
momento de pausa na narrativa, pois ela descansa o livro no colo e conversa
com a menina que está ao seu lado. As duas estabelecem uma cumplicidade
cada vez mais profunda, intensificando a atmosfera de mistério. Assim o
espectador será mantido sob suspense do início ao final do filme, pois
nada é claro, nada é explícito, nada é falado abertamente, nada é revelado.
No final, o espectador possivelmente fica estupefato diante da ingenuidade
de sua leitura do filme.
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Fig. 6 – Primeira parte da terceira gravura.
Fig. 7 – Segunda parte da terceira gravura.
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Quarta gravura: (Figs. 8 e 9) mão direita segura um castiçal tosco com
uma vela acesa, mão esquerda prestes a introduzir uma chave em uma
fechadura. No filme, este é um dos turning points da diegese e antecipa um
momento de grande suspense na narrativa. Grace, a mãe, escuta, durante a
noite, sons que vêm do piano no andar de baixo da mansão. Todos da casa
estão proibidos de tocar piano ou mesmo de tocar nas teclas do piano
devido à enxaqueca de Grace. Durante a noite, ela escuta o som do piano,
pega uma vela e uma espingarda, desce as escadas e introduz a chave na
fechadura da sala de música, destrancando assim a fechadura que sempre
mantém chaveada, mas quando abre a porta não vê ninguém nem escuta
qualquer som. Fecha então o piano à chave e coloca a mesma no bolso do
seu penhoar, em uma tentativa de impossibilitar que alguém abra novamente
o piano. Assim que se afasta da sala, não é apenas jogada ao chão pela
violenta batida da porta, como ao entrar novamente na sala vê o piano
aberto. Com esses acontecimentos, o suspense e mistério vão se intensificando,
pois Grace, totalmente religiosa e avessa a “fantasias”, expressão que usa
para qualificar as visões de Anne, realmente começa a acreditar que a casa
está sendo invadida por “intrusos” que ela não consegue ver. Ela se desespera
e diz que, se durante a guerra, ela foi capaz de manter os invasores à distância,
não seria agora que permitiria que pessoas estranhas invadissem o lugar.
Não lhe passa pela cabeça, no entanto, acreditar na existência de “fantasmas”,
mas abre-se à perspectiva de questionar a filha, na cena seguinte, sobre os
estranhos que tem visto. Lembremo-nos do fato de que quando Grace
escuta Anne falar sobre a existência de pessoas estranhas na casa, Grace a
castiga por ter uma “imaginação fantasiosa”. O castigo imposto a Anne, é
a leitura da Bíblia em voz alta na escada até que ela se retrate. Por três dias
Anne é punida. Sentada na escada durante o dia, ela lê a Bíblia, no entanto,
não muda sua versão de que há seres estranhos na mansão. Depois da noite
do piano, Grace pela primeira vez conversa com a filha e, ao lhe ser mostrado
um desenho no qual estão retratados os seres que a filha viu e os números
indicando quantas vezes os viu, a mãe encaminha-se ao sótão com uma
espingarda em busca deles entre os móveis e estátuas cobertos por lençóis
brancos. O uso da espingarda deixa claro que, para Grace, os estranhos são
seres humanos que devem ser expulsos à bala. Ao procurar pelos invasores,
Grace puxa histericamente os lençóis brancos que cobrem os objetos. A
busca, no entanto, é infrutífera. Ela não encontra qualquer intruso no sótão.
Segundo conversa entre a Sra. Mills e Anne, Grace ainda não está pronta
para lidar com a “verdade”.
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Fig. 8 – Primeira parte da quarta gravura.
Fig. 9 – Segunda parte da quarta gravura.
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132
Quinta gravura (Fig. 10): menina sentada na escada indica com a mão um
espaço acima à sua direita; mulher de costas segurando, com a mão direita,
o castiçal com a vela acesa, fala com a menina. Esta gravura é contígua à
anterior. Grace já sabe da existência de estranhos na casa, porém ainda não
sabe quem e quantos são. Quando questiona Anne sobre onde estariam,
Anne aponta para o sótão e mostra o papel com vários desenhos de pessoas:
um menino, uma velha, um homem e uma mulher. Ao lado de cada uma
dessas figuras ela tinha anotado o número de vezes que ela os vira. Mãe e
filha nesse momento conectam-se pela primeira vez, o que leva Grace,
naquela noite, a aproximar-se da filha na cama e pedir-lhe desculpas por
não ter-lhe dado ouvidos e pelos castigos aplicados. Anne finge dormir
para não ter que interagir com a mãe. Ela pode ter conversado com a mãe
algum tempo antes, mas isso não implica que a tenha perdoado pelo que
“acontecera naquele dia” e pela falta de credibilidade demonstrada. O rancor
de Anne não será facilmente aplacado.
Fig. 10 – Quinta gravura.
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133
Sexta gravura (Figs. 11 e 12): vulto alongado na janela estende a mão para
um menino com expressão apavorada, deitado na cama com o rosto sobre
o travesseiro. Nicholas, o personagem mais jovem, sensível e dependente,
supostamente o menino que aparece nas gravuras, é incluído nas mesmas
sempre em posição inferior aos outros, quer seja em relação à governanta
e à irmã, quer seja em relação ao aparente fantasma ou à pessoa cuja mão
manipula a marionete. Na terceira ilustração, um menino, possivelmente
Nicholas, está ajoelhado, absorto, brincando de trenzinho no chão ao lado
da Sra. Mills e da irmã. Na sétima, está pendurado pelos fios como se fosse
uma marionete. Nesta sexta gravura, o menino está deitado na cama, de
costas para a janela, apavorado com a sombra de alguém que estende a
mão para agarrá-lo. Percebemos, ao assistir o filme, que Nicholas é o único
personagem inocente e puro na narrativa. Grace, a mãe, carrega um fardo
insuportável com a ausência do marido, a falta de ajudantes e a doença dos
filhos, e tem atitudes extremas ao recriminar, punir e libertar-se do fardo
que carrega de modo violento. Anne, perspicaz e madura para sua idade,
cerca de nove anos, tem consciência do que a mãe fez no passado e, por
causa disso, a hostiliza, recrimina e agride. Anne é a criança-adulta que vive
entre os dois mundos – o mundo dos vivos e o dos mortos. A Sra. Mills e
os outros dois empregados não pertencem ao mundo dos vivos, mas isso
só é revelado quando Grace acha uma foto dos três empregados mortos.
Alguns dias antes de ver a foto, ao encontrar outras fotos estranhas, Grace
pergunta à Sra. Mills do que se trata, e esta explica que era costume fotografarse os mortos tempos atrás. Os empregados mortos vêm até a casa para
que Grace possa tomar consciência de seu estado. Nicholas vive entre as
três “mulheres”: Anne, a menina que já deixara de ser criança e diversas
vezes relata ao irmão sobre presença de seres estranhos na casa; a mãe que,
de forma histérica, repressora e assassina, há muito deixara de ser a pessoa
cristã que pretende ser e vive em um mundo repleto de regras, recriminações
e punições; e a Sra. Mills, que tem consciência de tudo que está acontecendo
e acontecera na casa. Mais do que qualquer outro residente da casa, a ela
demonstra uma compreensão e aceitação da vida como ela é e da morte
como uma extensão da vida. Acordar Grace para essa consciência parece
ser seu grande objetivo ao voltar à casa onde trabalhara tempos atrás, quando
falecera.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Fig. 11 – Primeira parte da sexta gravura.
Fig. 12 – Segunda parte da sexta gravura.
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135
Sétima gravura (Figs. 13 e 14): mão de alguém segura a guia da marionete:
um “menino” de pele clara e cabelos escuros, com a asas de anjo. A penúltima
ilustração é uma das mais intrigantes da abertura, pois a marionete – esse
“menino” com asas de anjo e com a cabeça caída para o lado, semelhante
a um enforcado –, novamente remete a Nicholas. Essa gravura parece
sugerir que a preservação da inocência não é possível em um mundo onde
as crianças são marionetes nas mãos dos adultos ou os seres humanos, nas
mãos do Criador. A sugestão parece bem clara, a vida de Nicholas é de
certa forma manipulada por todos os outros personagens, até pela
“aparição”, como vimos na gravura anterior. Sua tenra idade, sua
personalidade sensível e seu receio, associado ao fato de que, como a irmã,
não pode se expor à luz do dia, faz dele uma criança tímida, medrosa e
instável. Marionetes são bastante enfatizadas no filme, pois há um teatro de
“bonecos” no quarto das crianças. Além disso, em um momento crítico do
filme, quando Grace retorna, depois de ter permitido que Anne ficasse um
pouco mais de tempo com o vestido branco da primeira comunhão que
está provando, a mãe nota que a filha, agora de costas para ela, está brincando
com marionetes, mas a mão que segura a guia é envelhecida. Ao aproximarse, não vê a filha, mas uma velha com mãos deformadas e rosto assustador.
A mãe tem uma crise, agarra a velha pelos ombros e a sacode, enquanto
chama pela filha. Grace é trazida de volta à realidade ao ouvir os gritos de
Anne, que diz que a mãe a está machucando. Este incidente intensifica o
rancor que Anne sente pela mãe, pois sabe que Grace praticara um ato
violento “naquele dia”. A velha é uma das figuras no desenho que Anne
mostra à mãe quando ela lhe pergunta sobre os intrusos, depois do incidente
do piano. Nesse desenho, Anne deixa claro que a velha era o ser que mais
aparecera. Há uma anotação ao lado da figura: “8” [vezes]. A cena da
marionete parece sugerir que a velha encontra na menina um “veículo”
para meterializar-se. O final do filme, no entanto, esclarece que elas
compartilham o mesmo espaço e que nenhuma delas pertence ao mundo
da matéria. Mas o desenho da velha pode, por outro lado, remeter também
à médium cega do final do filme, personagem que faz com que Grace
reconheça seu estado, conhecimento que será negado logo a seguir. No
final, o espectador fica estarrecido ao reconhecer que Victor, o suposto
fantasma, é um menino “real”, assim como seus pais, os donos da mansão.
Outros são os outros.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Fig. 13 – Primeira parte da sétima gravura.
Fig. 14 – Segunda parte da sétima gravura.
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Oitava e última gravura (Fig. 15): a mansão e seu reflexo no lago à frente.
Essa ilustração é uma vista panorâmica da casa onde moram Grace, a mãe,
Anne, a filha mais velha, e Nicholas, o filho com cerca de sete anos. Lê-se
na tela: Jersey, the Channel Islands, 1945. No início do filme, estes são os
únicos personagens que vivem na mansão, além dos seres vistos apenas por
Anne. Com a chegada de três pessoas procurando por trabalho, entre elas
a Sra. Mills, a mansão passa a ter seis habitantes, aparentemente “reais”. A
imagem da mansão e seu reflexo invertido no lago são sugestivos dos
mundos paralelos que iremos encontrar no filme. O espectador, a princípio,
estaria inclinado a associar a mansão com o mundo dos “vivos”, mas esse
mundo mostrar-se-á ilusório e irreal. Aqueles que à primeira vista parecem
pertencer a um mundo sobrenatural (como Victor e outras personagens) –
o mundo do andar de cima – seria representado pelo reflexo invertido. No
final do filme sabemos, no entanto, que o andar de cima é habitado por
seres reais (a mansão na gravura), enquanto que os seres que habitam a
parte de baixo da mansão são seres sobrenaturais (o reflexo invertido). O
que parece ser real é irreal e pertence ao sobrenatural, o que parece ser irreal
é parte da realidade empírica. O equívoco ao interpretar as aparições como
parte do mundo sobrenatural resulta principalmente de nossa ingenuidade
em acreditar que o que vemos é “real”.
Fig. 15 – Oitava gravura.
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138
Há ainda alguns detalhes importantes a serem observados nessas
ilustrações. Com relação ao movimento da câmera, apenas a primeira e a
última têm a iluminação centrada nas gravuras, seguido de zoom-out ou
distanciamento entre a câmera e o objeto. Nas outras ilustrações, o
movimento é sempre em diagonal. O travelling em diagonal cria uma sensação
de instabilidade e desequilíbrio. A luz bruxuleante da vela intensifica a
instabilidade provocada pelo mistério e pelo desejo de desvendá-lo,
sentimento que prevalecerá até o final do filme. Já neste primeiro momento,
o uso da luz da vela abre espaço para a já mencionada inversão ou subversão
trabalhada no filme. Outros aspectos são comuns a algumas gravuras: quando
a gravura inclui a escada da casa, o movimento da câmera é sempre
ascendente. Esse movimento ascendente vem ao encontro de outras posições
de agressão por seres que estão acima (fantasmas) e abaixo das crianças (a mãe).
Voltando-nos para os estudos da intermidialidade, parece que existe
mais de uma relação entre as mídias no filme: à primeira vista, se falarmos
apenas nas gravuras de abertura, haveria “a relação que Rajewsky denomina
intramidiática, isto é, relação entre elementos de uma mesma mídia, no
caso, o cinema” (OLIVEIRA, texto inédito) ou, em outras palavras, podemos
perceber a relação como intramidiática, pois apesar de serem manifestações
de mídias diferentes elas coexistem no filme: as gravuras são filmadas como
qualquer outro objeto. Existe também uma relação de “intermidialidade
oculta ou coberta” (Claus Clüver) ou “intermidialidade grau zero” (Brunilda
Reichmann) com a narrativa A volta do parafuso, de Henry James, e sua
adaptação fílmica Os inocentes, de Jack Clayton. Ela só pode ser percebida se
o texto e o filme fizerem parte do “léxico cultural” (Umberto Eco) do
espectador. Terceiro, há ainda uma relação multimidial entre as gravuras e
os outros componentes da abertura do filme, quando a fusão (entre a
imagem e a história da criação do mundo por Deus) não se realiza
necessariamente, podendo cada um dos elementos existir separadamente
sem perda substancial. A relação mais significativa, no entanto, parece
acontecer entre as gravuras e o que existe antes e fora do filme – o imaginário
infantil, povoado de mistérios e segredos, de longos corredores escuros,
de portas trancadas, de fantasmas e monstros. O incipit estabelece essa relação,
ao colocar o espectador diante de ilustrações semelhantes às de livros infantis
de histórias de terror.
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Considerações finais
Do diálogo entre as gravuras e o filme, parece prevalecer, primeiro,
um alerta para o olhar. Na tentativa de acompanharmos um trajeto iluminado
pela chama trêmula da vela, na maioria das vezes traçando uma linha oblíqua,
Amenábar possivelmente esteja querendo alertar o leitor/espectador sobre
a importância desse olhar e sobre a percepção de que ao iluminarmos e
focarmos um trajeto não perceberemos nada que se encontra ao redor.
Mesmo o próprio trajeto é mal iluminado, impossibilitando uma visão
nítida e segura do que está à nossa frente. Pouco nos é dado conhecer além
de uma realidade “mal iluminada”. A segunda, e possivelmente a mais
importante, levando em consideração a citação de Amenábar nos Extras
do DVD, é a de levar o espectador de volta ao universo dos medos e
pavores infantis, preparando-o emocionalmente, através da estética do
impacto, para adentrar o universo de suspense do filme. Instala-se um grande
desconforto e estranhamento com a filmagem das gravuras semelhantes às
de livros infantis que evocam mistérios e uma pletora de medos no
espectador.
REFERÊNCIAS
AMENÁBAR, Alejandro. The Others (2001). Miramax Internacional/Dimension
Films.
ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo
Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de
Letras da UFMG, 2006.
CLAYTON, Jack. The Innocents (1961). Twentieth Century Fox Film Corporation.
CLÜVER, Claus. Estudos interartes: introdução crítica. Floresta encantada: novos
caminhos da literatura comparada. Ed. Helena Buescu, João Ferreira Duarte, e Manuel
Gusmão. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 333- 362.
HOEK, Leo H. A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática. In:
ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo
Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de
Letras da UFMG, 2006, p. 167-189.
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140
JAMES, Henry. A volta do parafuso. Trad. Francisco Carlos Lopes. São Paulo : Editora
Landmark, 2004.
OLIVEIRA, Nelson. « Fantasmas, fantoches, fantasias. Disponível em : <http://rascunho.rpc.
com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=1082&
semlimite=todos>. Acesso : 7 jun. 2008.
Brunilda T. REICHMANN
PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade de Nebraska em Lincoln
(UNL). Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal do
Paraná (UFPR – aposentada). Professora do Mestrado em Teoria Literária do Centro
Universitário Campos de Andrade (Uniandrade). Fundadora e editora da revista Scripta
Uniandrade.
Artigo recebido em 27 de maio de 2011.
Aceito em 21 de junho de 2011.
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O SALTO DE ALICE EM TRANSPOSIÇÃO
INTERSEMIÓTICA E INTERTEXTUAL:
DAS ILUSTRAÇÕES DE JOHN TENNIEL À
RELEITURA DE MARGARET ATWOOD
Sigrid Renaux
[email protected]
Resumo: A obra Through the Looking
Glass (1871), de Lewis Carroll, foi e
continua sendo passível de recepção em
várias mídias: versões musicais, teatrais,
fílmicas, além de ópera e televisão.
Partindo das teorias de Clüver, Moser e
Genette, este artigo apresenta uma leitura
intersemiótica do salto de Alice, ao ela
passar do mundo da realidade para
dentro do mundo do espelho, como
descrito por Carroll e ilustrado por John
Tenniel; complementando, discute a
releitura que Margaret Atwood faz do
mesmo episódio, em Negociando com os
mortos (2004). A contraposição dessas
duas artes e visões de mundo confirma a
inesgotável politextualidade do textofonte e como o ato de interpretação e
reação crítica é moldado através das
respectivas convenções de recepção
vigentes.
Abstract: Lewis Carroll’s Through the
Looking Glass (1871) continues to be
open to cross-media transfer: musicals,
drama, film, besides opera and television.
Based on Clüver’s, Moser’s and Genette’s
theories, this work presents an
intersemiotic reading of Alice’s jump, as
she passes from the world of reality into
the world of the mirror, as described by
Carroll and illustrated by John Tenniel;
it then discusses Margaret Atwood’s rereading of the same episode, in
Negotiating with the Dead (2002). The
counterposing of these two distinct arts
and world views confirms the endless
politextuality of the original text, and
how the act of interpretation and critical
reaction is shaped by current reception
conventions.
Palavras-chave: Lewis Carroll. John Tenniel. Margaret Atwood. Intermidialidade
Key words: Lewis Carroll. John Tenniel. Margaret Atwood. Intermediality.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
142
A abordagem fundamental e predominantemente
estética na análise de qualquer arte não pode ser
substituída por nenhuma outra, a menos que se prive
a arte de seu próprio caráter. (...) Ela deve ser completada
por aquilo que alguns chamaram de Geistesgeschichte,
ou “História das Idéias”, se se quiser entender os
problemas estéticos.
Hatzfeld
Introdução
Ao debruçar-se sobre o ato de escrever, no cap. II de Negociando
com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos, Margaret Atwood discute
a duplicidade do escritor como escritor, perguntando-se, ao longo do texto:
“Qual é a relação entre as duas entidades que juntamos sob um nome, o
do ‘escritor’?”; “De onde vem esta idéia de que o eu escritor (...) não é o
mesmo que o de carne e osso?”; “E quem é o ‘Eu’ que escreve? Uma mão
precisa segurar a caneta ou digitar, mas quem controla aquela mão no
momento da escrita?”; “Qual é a natureza do momento crítico – o
momento em que a escrita ocorre?” (2004, p. 65-86, minha ênfase).
Atwood conclui o capítulo retornando a Through the Looking-Glass,
“sempre tão útil em questões de construção de mundos alternativos”, a fim
de dar sua versão de “quem faz o quê no que concerne à escrita em si”:
No início da história, Alice está de um lado do espelho – o lado da “vida”
(...) – e a anti-Alice, sua imagem e duplo reverso, está do outro lado, ou o da
“arte”. (...) Alice gosta de se mirar no espelho: o lado da “vida” está olhando
para dentro; o da “arte”, para fora. Mas, em vez de (...) descartar o lado da
“arte” e escolher o da “vida”, duro e iluminado, condenando assim o lado
da “arte” a morrer, Alice faz o contrário. Atravessa o espelho, e então há
apenas uma Alice, ou apenas uma a quem podemos seguir. Em lugar de
destruir o seu duplo, a Alice “real” se funde à outra Alice – a Alice imaginária,
a Alice sonhada, a Alice que não existe em parte alguma. E quando o lado da
“vida” de Alice retorna ao mundo que está acordado, ela leva consigo a
história do mundo do espelho e começa a contá-la ao gato. (2004, p. 87-88,
minha ênfase)
Como a escritora prossegue – e é este o ponto que desejamos enfatizar –,
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
143
Claro que isto é uma falsa analogia, porque Alice não é a escritora da
história sobre ela. Contudo vou dar o meu palpite sobre escritores e
seus duplos esquivos e a questão de quem faz o quê no que concerne à
escrita em si. O ato de escrever ocorre no momento em que Alice
atravessa o espelho. Neste exato instante, a barreira de vidro entre os
duplos se dissolve e Alice não está nem aqui nem lá, nem arte nem
vida, nem uma coisa nem outra, embora ao mesmo tempo ela seja
tudo isso de uma só vez. Naquele momento o próprio tempo pára, e
também se alonga, e ambos, o escritor e o leitor, têm todo o tempo
fora do mundo. (2004, p. 88)
Nossa pesquisa inicia-se, portanto, a partir desta argumentação,
pois é este instante mágico – a imagem de Alice atravessando o espelho e
saltando para dentro de um mundo alternativo – que Atwood conseguiu
captar e interpretar como o momento em que ocorre o ato de escrever,
que pretendemos explorar.
Primeiramente, retornando ao texto-fonte de Lewis Carroll –
Through the Looking Glass, and What Alice Found There (1875) – pois se trata
aqui da “primazia do texto” que se encontra na origem da imagem (HOEK,
2006, p. 177). Concomitantemente, contrapondo ao texto as ilustrações de
John Tenniel, encomendadas pelo próprio Carroll, para verificar:
– quais detalhes do texto-fonte foram transpostos e reconstituídos nas
ilustrações (CLÜVER, 2006, p. 146) e,
– considerando-se que “a relação de uma ilustração com o seu texto-fonte
verbal pode ser tão variada quanto a relação de um poema ekfrástico com
a obra visual que ele evoca” (CLÜVER, 2006, p. 140), que relações podem
ser estabelecidas entre o texto verbal e o não verbal?
Lembrando-nos de que as “ilustrações de livro são feitas para serem
publicadas ao lado de seus textos fontes”, essas ilustrações, realizadas no
interior de uma só obra, seriam “simples traduções intersemióticas” ou
viriam a ser “transposições intersemióticas autônomas”? (HOEK, 2006,
p.146 e 178).
Em seguida, comparamos o texto-fonte com a leitura intertextual
de Atwood, a fim de investigar qual a função das relações transtextuais
genettianas estabelecidas.
Finalmente, contrastando a leitura intersemiótica de Tenniel com a
intertextual de Atwood, a fim de verificar como um ilustrador vitoriano
trabalhando em conjunto com o autor, e uma escritora inserida na pós-
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
144
modernidade, com linguagens e visões de mundo distintas e, portanto, com
concepções diferentes de arte e literatura, visualizaram e transpuseram a
passagem de um mundo “real” para um mundo alternativo. Pois é
exatamente o fato de, em ambos os casos, não termos “intenções expressivas
comparáveis e poéticas comparáveis, de par com meios técnicos correlatos”
(PRAZ, 1982, p. 19) que nos estimula a investigar o assunto, e assim, talvez,
conseguir mostrar como Tenniel e Atwood ultrapassaram os limites da
advertência de Lessing, de “ser o espaço o campo da pintura e o tempo o
da poesia” (citado em PRAZ, 1982, p. 23).
Esta contraposição daria uma nova dimensão ao significado e
fascínio que a travessia de Alice ainda mantém no mundo atual, pois, como
objeto estético, a obra também foi e continua sendo passível de recepção
em várias mídias, através de traduções para numerosos idiomas e múltiplas
adaptações e transposições em versões musicais, teatrais, fílmicas, além de
ópera e televisão, tanto isoladamente1 como em conjunto com Alice’s
Adventures in Wonderland.
Do texto-fonte de Lewis Carroll às ilustrações de John Tenniel
Como é de conhecimento geral, o versátil Lewis Carroll (18321898), além de escritor, foi também matemático, lógico, diácono anglicano
e fotógrafo. Como professor de matemática em Christ Church, futura
Universidade de Oxford, tornou-se muito próximo das filhas do diácono
Liddel, principalmente de Alice. A partir de uma história contada às meninas
Liddel, quando Alice tinha quatro anos, Carroll escreveu Alice’s Adventures in
Wonderland (1865) e, em seguida, Through the Looking-Glass, and What Alice
Found There (1871). Apaixonado por crianças, Carroll elaborou as duas
narrativas como um contraponto às histórias edificantes e moralistas que
eram lidas para as crianças na Inglaterra vitoriana. Ambas demonstraram,
entretanto, ser muito mais do que histórias infantis, pois são obras-primas
da literatura universal, para leitores de todas as idades.
Apesar de Carroll ter sido o primeiro ilustrador de Alice’s Adventures
in Wonderland, sua ineptidão artistica, além de outros problemas, atrasaram
a publicação da obra. Como Carroll já conhecia a obra de John Tenniel
como ilustrador da revista Punch, ele o procurou e Tenniel, após conversar
longamente com Carroll, ilustrou a primeira edição da obra. Em seguida,
ilustrou Through the Looking-Glass. No total, Tenniel fez noventa e duas
ilustrações em preto e branco para ambos os livros – gravadas em blocos
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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de madeira pelos irmãos Dalziel, para serem impressas em xilografia.2 Foi
apenas em 1911, portanto, mais de quarenta anos após as originais, que
Tenniel colore à mão oito das primeiras ilustrações de Alice: loura, com
vestido azul e avental branco com debrum vermelho.3 Este visual foi o que
se tornou clássico e foi o adotado em adaptações posteriores.
Segundo Gil Stoker, novas ilustrações nunca pararam de aparecer,
mas é significativo que elas não conseguiram superar as ilustrações de Tenniel,
que nunca deixaram de ser publicadas e continuam constando até hoje
entre as mais famosas ilustrações literárias já feitas não apenas por sua
combinação mágica de fantasia e desenho, mas também pela constante
fonte de inspiração que a história e sua iconografia proporcionaram, e ainda
proporcionam, a novos artistas.4
Concentrando, doravante, a análise no capítulo I de Through the
Looking-Glass, no qual ocorre a travessia do mundo real para o fantástico,
levantaremos as seguintes questões: que elementos do texto de Carroll
antecedem e portanto preparam o leitor para travessia de Alice? De que
modo esses elementos também já antecipam alguns dos objetos que serão
vistos no mundo do espelho? Como Carroll manipulou imagens, ações e
falas para criar um clima propício à entrada num mundo fantástico?
Lembrando-nos que “a indefinição significativa é a marca dos símbolos”
(VRIES, 1976, s/p) que associações simbólicas contribuem para esta
transição?
Through the Looking-Glass principia com um poema de Carroll
dedicado a Alice, no qual ele menciona diversas vezes tratar-se de um “conto
de fadas”, deste modo já colocando o leitor no mundo da fantasia. A
narrativa propriamente dita inicia-se no capítulo “Looking-Glass House”:
estamos na sala de visitas da casa de Alice – o termo “(with)drawing-room”
denotando o local para onde as senhoras se retiram após o jantar. É numa
sala, portanto, com conotações simbólicas5 de individualidade, privacidade
de corpo e pensamento, isolamento – complementando o sentido de
withdraw –, que iremos achar Alice, como que se preparando, em sua
“privacidade de corpo e pensamento”, para as aventuras imaginárias na
Casa do Espelho. As associações da casa como abrigo e segurança, ainda
confirmam e ampliam o significado desta sala.
O mundo da fantasia se inicia com Dinah, a gata de Alice, cuidando
de um de seus filhotes – Snowdrop, a gatinha branca – enquanto Alice
estava aconchegada numa poltrona, falando consigo mesma e meio
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adormecida. O outro filhote – a gatinha preta, Kitty – aproveita a ocasião
para brincar e emaranhar um novelo com lã que Alice estivera tentando
enrolar e o espalha no tapete em frente à lareira: “But the black kitten had
been finished with earlier in the afternoon, and so, while Alice was sitting
curled up in a corner of the great arm-chair, half talking to herself and half
asleep, the kitten had been having a grand game of romps with the ball of
worsted” (CARROLL, 1975, p. 175-6).
Aparentemente apenas lúdica, esta cena na realidade já se torna
significativa para a travessia a um mundo alternativo pelas conotações
simbólicas do gato com liberdade e travessuras, concretizadas nos atos de
Kitty, que aproveita sua liberdade para desenrolar o novelo de lã. Lembrando
a expressão “to spin a yarn”, o novelo corrobora as conotações simbólicas
do estambre como uma história comprida de aventuras, invencionice,
reforçando uma vez mais a relação que se estabelece entre esses dois elementos
da história – o gato e o novelo de lã – como antecipadores e propiciadores
da travessia de Alice, pois sugerem que a história que irá se desenrolar será
também “livre” e cheia de travessuras (Fig. 1).
Fig. 1 – O gato e o novelo de lã.
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A primeira ilustração de Tenniel ao texto concretiza exatamente
esse momento antecipador: Kitty brincando com o novelo de lã. O fato de
tocá-lo com a patinha como se pudesse manejá-lo, desenrolando-o e
enredando-se nele, confirma a relação entre as associações simbólicas do
gato e do novelo de lã – liberdade e travessuras numa longa história inventada.
No canto esquerdo observam-se ainda as iniciais do ilustrador, John Tenniel
e, no meio, a assinatura dos irmãos Dalziel, os gravadores da madeira.
O fato de Alice estar aconchegada numa grande cadeira de braços
estofada – a cadeira simbolizando pausa, descanso – contribui igualmente
para enfatizar o estado de sonolência em que ela se encontra. E, pelas
associações da cadeira de braços com trono e autoridade, ela é assim
configurada para ressaltar o tom autoritário, mesmo que brincalhão, com
que Alice conversa com a gatinha. Além disso, é subindo numa cadeira de
braços que Alice irá alcançar o consolo da lareira, mesmo que não soubesse
como chegou lá, como afirma o narrador onisciente intruso.
A ilustração desta cena por Tenniel (Fig. 2) – retratando Alice na
cadeira de braços, com a gatinha ao colo tentando ajudar a menina a enrolar
novamente o novelo de lã – confirma a intimidade entre ambas e a atmosfera
lúdica em que Alice e a gata se encontram, fatores que também propiciam
o diálogo que Alice mantém com a gatinha e o mundo do faz-de-conta
que ela cria. O tamanho da cadeira de braços – pertencente ao mundo dos
adultos – além de acentuar a delicadeza da figura de Alice, bem como a
pequenez da gatinha, também põe em evidência, pela posição frontal em
relação ao espectador, o uso sutil que Tenniel faz de técnicas de emoldurar.6
Esta posição ressalta, por sua vez, não só o fato de Alice estar como que
emoldurada pelo mundo “real” dos adultos, mas também sua postura
oblíqua na cadeira, prestes a adormecer, como que em desacordo com as
normas de etiqueta para crianças e, portanto, também, prestes a deixar as
normas de realidade dos adultos.
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Fig. 2 – Alice na cadeira de braços, com a gatinha ao colo.
O estado de sonolência de Alice, por sua vez, nos prepara para a
travessia da menina, ao nos remeter às associações simbólicas do sono.
Primeiramente como fornecedor de sonhos proféticos, visto que, após
suas aventuras no mundo do espelho e no capítulo final da história “Which
Dreamed It?”, Alice acorda e diz para a gatinha, após esfregar os olhos:
“You woke me out of oh! such a nice dream. And you’ve been along with
me, Kitty – all through the Looking-Glass world. Did you know it, dear?”(p.
341). A afirmação “You woke me out of oh! such a nice dream” também
intensifica as conotações simbólicas do sonho, pois no sonho a alma está
ausente, trabalha ou vê coisas longe de onde o corpo está no momento. A
própria etimologia de “to dream” (trügen = enganar), confirma o fato de
que as aventuras de Alice na Casa do Espelho não aconteceram na realidade:
no cap. XI “Waking” – que se resume a um comentário do narrador: “ –
and it really was a kitten, after all” – Alice acorda segurando a gatinha preta.
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O sonho também está relacionado com fadas e anões, o que consolida a
atmosfera de “contos de fadas” da história que será contada, anunciada no
poema inicial.
Em segundo lugar, o sono é simbólico de criatividade, ou seja, do
estado sagrado em que se encontra Alice, prestes a iniciar uma aventura
imaginária. É, também, um estado perigoso, pois se durante o sono a alma
deixa o corpo para caminhar fora – retomando o simbolismo do sonho –,
Alice estaria exposta aos perigos que suas aventuras poderiam lhe ocasionar.
Alice continua conversando longamente com Kitty, repetindo
diversas vezes sua “frase favorita”: “Let’s pretend”. Esta frase, que já sugere
não haver separação entre o mundo real e o da fantasia para a menina, será
a grande propiciadora para entrar no mundo de faz-de-conta do espelho.
Pois é no instante em que Alice, segurando a gatinha em frente ao espelho,
ameaça colocá-la dentro dele, que chegamos finalmente à menção do
Espelho e da Casa do Espelho, a grande metáfora que levará à transposição
da menina do mundo da realidade ao mundo da fantasia: “So, to punish it,
she held it up to the Looking-glass, that it might see how sulky it was – and
if you’re not good directly,’ she added, ‘I’ll put you through into Lookingglass House. How would you like that?’” (p. 180). A partir do próprio
título do livro, portanto, o espelho é o elemento-chave da história de Carroll,
como o será também das duas ilustrações de Tenniel, nas quais ele retrata
esta transposição.
O espelho é objeto decorativo tradicional da sala de visitas vitoriana
(Fig. 3) – como pode ser visto no quadro a guache de Henry Treffry Dunn
mostrando Dante Gabriel Rossetti lendo provas impressas dos Sonnets and
Ballads para Theodore Watts Dunton (Londres, 1882): neste quadro, o
espelho pode ser observado com outros elementos que fazem parte da
composição de um drawing-room, como a lareira acesa, as cadeiras de braços,
o relógio, os quadros, todos descritos por Carroll, facilitando assim nossa
visualização da sala na qual Alice se encontra.
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Fig. 3 – PAINTING: Dante Gabriel Rossetti reading proofs of Sonnets and Ballads
to Theodore Watts Dunton in the drawing room at 16 Cheyne Walk, London;
gouache 1882.
O título, entretanto, já sugere um paradoxo: através do espelho,
visto que o espelho, como vidro polido e estanhado que reflete a imagem
dos objetos, seria impermeável. De que modo Carroll trabalha este paradoxo
e aproveita o motivo do reflexo no espelho para criar um conto de fadas?
O Espelho, como símbolo, tem as mesmas características do
espelho como reflexo do mundo real: é símbolo da imaginação em sua
capacidade de refletir a realidade formal do mundo visível; está relacionado
com o pensamento como instrumento de auto-contemplação e também
como reflexo do universo. Desde os tempos primitivos, o espelho é visto
como ambivalente: é uma superfície que reproduz imagens e também as
contém e absorve. Nas lendas e folclore, está investido com uma qualidade
mágica: serve para invocar aparições ou anular distâncias. Às vezes, o espelho
toma a forma mítica de uma porta através da qual a alma pode se libertar
“passando” ao outro lado, ideia reproduzida por Carroll em Through the
Looking Glass. O simbolismo do espelho, portanto, condiz com o do sono
e do sonho, pois é através desse estado sagrado, como fornecedor de sonhos
proféticos e criatividade, que Alice consegue transpor as barreiras da realidade.
A expressão cunhada por Alice – Looking-Glass House – demonstra
o quanto a menina já devia ter refletido sobre o assunto, para apresentá-lo
com tanta naturalidade à gatinha. “House” confirma o fato de que Alice, na
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sala de visitas de sua casa, veria de qualquer maneira esta sala ao contrário,
quando olhasse para dentro do espelho, a mesma reversão devendo acontecer
com as associações da casa com segurança e abrigo, pois ela estará exposta
a aventuras inconcebíveis ao penetrar no mundo da fantasia.
Assim, como numa antecipação da narrativa que irá se “desenrolar”
dentro do mundo do espelho, Alice conta à gatinha tudo que imaginava a
respeito dessa Casa do Espelho:
Now, if you’ll only attend, Kitty, and not talk so much, I’ll tell you all my
ideas about Looking-glass House. First, there’s the room you can see through
the glass – that’s just the same as our drawing room, only the things go the
other way. I can see all of it when I get upon a chair – all but the bit behind
the fireplace. Oh! I do so wish I could see that bit! I want so much to know
whether they’ve a fire in the winter: you never can tell, you know, unless our
fire smokes, and then smoke comes up in that room too – but that may be
only pretence, just to make it look as if they had a fire. Well then, the books
are something like our books, only the words go the wrong way; I know
that, because I’ve held up one of our books to the glass, and then they hold
up one in the other room. (p. 180-181)
As ideias expostas por Alice já demonstram sua criatividade ao
mencionar que a sala que se vê através do vidro é a mesma da sala de visitas
em que está, mas as coisas estão ao contrário.7 O vidro, simbólico de
abstração e de revelação, confirma o simbolismo do espelho, pois está também
sujeito a se tornar uma abstração ao perder sua solidez, como será visto.
A lareira, como o local mais sagrado de uma casa, tem suas
associações simbólicas de lar, vida, hospitalidade, santuário, ainda
confirmadas pelo simbolismo do fogo. Como essência da vida e energia
espiritual, o fogo está relacionado com a lareira como centro do lar e com
o inverno (estação em que ocorre a história), enquanto suas associações
com as “línguas ardentes” da inspiração, como mediador entre formas que
aparecem e desaparecem, novamente aproximam a lareira acesa não só à
travessia de Alice como também à interpretação de Atwood de a travessia
ser o momento em que ocorre o ato de escrever. O fato de o fogo, na sala
do espelho, estar “blazing away as brightly as the one she had left behind”,
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reforça todas essas conotações simbólicas. Além disso, a preocupação de
Alice em saber se na sala do espelho haveria um fogo aceso no inverno,
pois “you never can tell, you know, unless our fire smokes, and then smoke
comes up in that room too” – (p. 181), acrescenta ainda ao fogo o simbolismo
da fumaça – evanescência, a alma deixando o corpo – e confirma a
transitoriedade da aventura e da passagem de um estado a outro.
O último item mencionado por Alice são os livros. Relacionados
com sabedoria, conhecimento esotérico e exotérico, memória, mágica, esses
livros terão sua significação alterada no momento em que Alice confia à
gatinha que as palavras vão no sentido contrário. Ela própria já o havia
testado, ao segurar um de seus livros em frente ao espelho e “alguém”
mostrar um livro na outra sala. Se lembrarmos que a “palavra”, como
Logos, simboliza emanação criativa e destrutiva de uma deidade suprema,
uma razão imanente no mundo e que geralmente as palavras numa língua
são representadas como um todo orgânico, esta razão é invertida no mundo
do espelho, o que novamente antecipa os estranhos acontecimentos,
personagens e falas que irão compor as aventuras de Alice na Casa do
Espelho.
Ao perguntar à gatinha se ela gostaria de morar na Casa do Espelho,
Alice percebe de repente, no espelho, uma passagem que permite vislumbrar
a Casa do Espelho se a porta da sala de visitas ficasse bem aberta:
How would you like to live in Looking-glass House, Kitty? I wonder if
they’d give you milk in there? (…) – But oh, Kitty! now we come to the
passage. You can just see a little peep of the passage in Looking-glass
House, if you leave the door of our drawing-room wide open: and it’s very
like our passage as far as you can see, only you know it may be quite different
on beyond. (p. 181)
É esta porta – associada à ideia de casa, pátria, mundo, simbolizando, como o umbral, aquilo que leva de um estado ao outro, o que
condiz com o simbolismo do espelho como porta – que permite a Alice
vislumbrar este outro “estado” de ser, pois se a porta fechada é uma barreira
ao mistério, o fato de a porta da sala de visitas estar bem aberta faz com
que ela se torne um umbral, revelando a passagem para este outro mundo,
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muito semelhante à passagem da sala de visitas do mundo real, mas que
pode se tornar “bem diferente”, ao penetrarmos nela.
Surge então, para a menina, a ideia de transpor o espelho e penetrar
na casa, atraída como está pela suposta beleza do mundo imaginário que a
aguarda: “Oh, Kitty! how nice it would be if we could only get through
into Looking-glass House! I’m sure it’s got, oh! such beautiful things in it!”
(p. 181). E a frase preferida de Alice, “Let’s pretend” – que nos remete ao
ato de escrever ficção, também um faz-de-conta, antecipando assim a
interpretação de Atwood –, age como uma fórmula mágica de penetração
neste mundo encantado:
‘Let’s pretend there’s a way of getting through into it, somehow, Kitty.
Let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can get through.’
Why, it’s turning into a sort of mist now, I declare! It’ll be easy enough to
get through – She was up on the chimney-piece while she said this, though
she hardly knew how she had got there. And certainly the glass was beginning
to melt away, just like a bright silvery mist. (p. 181-182)
Pois, ao repetir “let’s pretend there’s a way of getting through into it,
somehow”, “let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can
get through”, o vidro amolece como gaze, como névoa fina (gauze = gaze).
Assim, ao dizer “Why, it’s turning into a sort of mist, I declare!”, a gaze já se
transformou em névoa. Simbólica de coisas indeterminadas e do
apagamento dos contornos, a névoa como processo de indeterminação
inicia assim a transição para um outro mundo, pois Alice percebe que “It’ll
be easy to get through” (repetida três vezes, além de remeter ao título).
O narrador ainda compara a liquefação/desintegração do espelho
a “a bright silvery mist” – explicada pela condensação da umidade do ar na
superfície fria do vidro, propiciada pelo calor do fogo –, acrescentando
assim a cor brilhante da prata a essa indeterminação da névoa, o que explicao
espanto de Alice diante dessa transformação (turning into) do vidro em
névoa prateada e brilhante.
Assim, ao subir no consolo da lareira, Alice já está impregnada
pelo simbolismo do fogo, da lareira e da névoa brilhante e prateada em
que se transformou o espelho, sugerindo que o mundo do fantástico está
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penetrável. Como consequência, Alice atravessa o vidro e salta suavemente
para dentro da sala do espelho, completando assim seu movimento ascensional
ao subir na cadeira com um movimento descensional ao saltar para dentro da
sala do espelho: “In another moment Alice was through the glass, and had
jumped lightly down into the Looking-glass room” (p. 181-184).
Esta travessia será transposta por Tenniel em duas ilustrações: a
primeira mostrando Alice na iminência de atravessar o espelho (Fig. 4); a
segunda, retratando Alice ao surgir do outro lado do espelho, após ter
atravessado o vidro (Fig. 5). Ao compararmos as duas ilustrações,
perceberemos que as ambas são uma o reverso da outra. Como confirma
Gill Stoker, as duas ilustrações aparecem em lados opostos da mesma página
de modo que a ilusão de sua transferência de um mundo para outro é
criada ao se virar a página (se bem que a paginação nem sempre é seguida
em edições posteriores). Como toque realista, e também como brincadeira
visual, Tenniel acrescentou suas iniciais ao contrário na segunda ilustração,
sugerindo que ele também está dentro do mundo do espelho, mas não
inverteu a assinatura dos irmãos Dalziel.8
Fig. 4 – Alice na iminência de atravessar
o espelho
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Fig. 5 – Alice ao surgir do outro
lado do espelho.
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Na primeira ilustração, Tenniel recriou, através de elementos
espaciais, todas as características fornecidas por Carroll da sala vitoriana
em que Alice se encontra: o espelho, a lareira com o consolo enfeitado com
uma faixa de berloques, os quadros, o relógio e o vaso. Em primeiro plano,
Alice, de costas, ajoelhada sobre uma perna no consolo da lareira, com o
braço direito apoiado sobre a superfície do espelho. Este braço, iluminado
e bem visível, será apenas sugerido na ilustração seguinte, na qual o braço
oculto irá aparecer iluminado, enquanto que a perna sobre a qual está
ajoelhada será ocultada na seguinte. Significativamente, o rosto de Alice,
oculto na primeira ilustração por estar de costas, tornar-se-á visível apenas
na segunda, sugerindo ser ela agora uma figura dentro do mundo do espelho,
ou da “arte”. A mesma reversão irá acontecer com os objetos que a ladeiam:
em cima do consolo, um relógio e um vaso de flores, ambos dentro de
campânulas de vidro, e, na parede do lado esquerdo, um quadro, enquanto
do lado direito está outro quadro, já refletido dentro do espelho. Deste
modo, Alice se encontra emoldurada na ilustração tanto por objetos
pertencentes ao mundo “real”, como por um objeto já dentro do mundo
da “arte” – como Atwood o denomina –, apontando para a travessia. A
sombra de Alice, refletida no espelho, também sugere e confirma a
permeabilidade do mesmo. O monograma de Tenniel, por sua vez, está
bem visível do lado direito da ilustração e a dos irmãos Dalziel, do lado
esquerdo da lareira. O único detalhe acrescentado por Tenniel que não
consta em Carroll é o vaso de flores artificiais na lareira. Como comenta
Martin Gardner, era costume vitoriano colocar flores artificiais e também
relógios sob campânulas de vidro em cima da lareira (GARDNER, 1975,
p. 186) e, portanto, o vaso de flores está condizente com o ambiente, além
de complementar visualmente o relógio, ambos emoldurando Alice.
O ato de atravessar o espelho nos remete primeiramente ao
simbolismo da travessia, que, como o passo e a peregrinação, são formas
diversas de expressar o mesmo – o avanço de um estado natural a um
estado de consciência por meio de uma etapa em que a travessia simboliza
justamente o esforço de superação e a consciência que o acompanha –
confirmando assim o esforço criativo da imaginação de Alice ao repetir
“Vamos fazer de conta”, a fim de poder entrar no mundo imaginário do
espelho. Ao mesmo tempo, confirma “o palpite” de Atwood de que “o
ato de escrever ocorre no momento em que Alice atravessa o espelho”,
quando as duas entidades, o homem e o escritor, se fundem neste esforço
de superação consciente.
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Esta travessia também está relacionada com o simbolismo da
viagem, pois a viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço,
mas a expressão de um desejo urgente de descoberta e mudança que subjaz
à experiência real de viajar. Assim, estudar, inquirir, procurar ou viver com
intensidade através de novas e profundas experiências são todos modos de
viajar, ou equivalentes espirituais e simbólicos da viagem. Os heróis são
sempre viajantes, pelo fato de serem espíritos inquietos. Voar, nadar e correr
são outras atividades que igualam a viagem como também sonhar, sonhar
acordado e imaginar.
Percebemos então que Alice, como heroina, a partir do início do
livro, irá encarnar as características deste herói: ao repetir “vamos fazer-deconta” já revela seu desejo de descoberta e mudança, que a leva a imaginar
o mundo alternativo que a aguarda do outro lado do espelho. O fato de ter
sonhado todas essas experiências pelas quais passou durante a viagem pela
casa do espelho, apenas confirma a travessia não ser apenas uma passagem
através do espaço do mundo do espelho, mas ser simultaneamente a
realização do desejo de descobertas e mudanças.
É este também o momento que Atwood recontextualizou, ao
comparar a travessia de Alice com o (já citado) ato de escrever, “que ocorre
no momento em que Alice atravessa o espelho. Nesse exato instante, a
barreira de vidro entre os duplos se dissolve e Alice não está nem aqui nem
lá, nem arte nem vida, nem uma coisa nem outra embora ao mesmo tempo
ela seja tudo isso de uma só vez”. Esta recontextualização joga uma nova
luz sobre o texto de Carroll, pois confirma, de nossa perspectiva do século
XXI, a atualidade dessa experiência e a procura incessante dos escritores
em captar esse momento de transição entre realidade e fantasia, fazendo
seus limites se tornarem cada vez mais flexíveis e/ou permeáveis.
O fato de Alice saltar para dentro da sala do espelho, além de
confirmar as conotações simbólicas da travessia, acrescenta a elas as do
salto: façanha guerreira entre os celtas, fazendo parte dos jogos que o herói
é capaz de executar, para escapar do adversário ou para abatê-lo. Portanto,
mesmo estando num mundo lúdico, o salto de Alice ainda retém esta
qualidade de façanha, pois ela escapou do mundo da realidade e penetrou
num mundo imaginário, em busca de novas aventuras. Igualmente, o salto
de Alice antecipa os obstáculos que terá de sobrepujar, como no jogo de
xadrês que subjaz à ação do livro.
Na segunda ilustração, já dentro da casa do espelho, versão refletida
de sua própria casa, ela percebe, pelo fato de ter atravessado o vidro, que
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os outros podem vê-la, mas não alcançá-la: – “Oh, what fun it’ll be, when
they see me through the glass in here, and can’t get at me!”, descoberta que
demonstra como o imaginário infantil, o faz-de-conta, não pode ser tocado,
mas apenas vislumbrado pelo mundo adulto, assim como Alice vislumbrou
o mundo do espelho através da passagem refletida no vidro. Percebe,
também, que os quadros perto da lareira “parecem” estar vivos e que até o
relógio da lareira adquiriu o rosto risonho de um velho. Isto é, os objetos
que na vida real não têm vida, no mundo da arte adquirem vida, concedida
pela imaginação do artista: o mundo da arte, onde se encontra Alice, é
portanto “tão diferente quanto possível” do mundo da realidade:
Then she began looking about, and noticed that what could be seen from
the old room was quite common and uninteresting, but that all the rest
was a different as possible. For instance, the pictures on the wall next the
fire seemed to be all alive, and the very clock on the chimney-piece (you
know you can only see the back of it in the Looking-glass) had got the face
of a little old man, and grinned at her. (p. 185-186)
Esses quadros, ao se tornarem animados, prefiguram a
antropomorfização e animação do relógio, do vaso e dos outros objetos
com os quais Alice irá interagir. Por sua vez, o velhinho que ri para Alice no
lado de trás do relógio – como o narrador enfatiza, no espelho só podemos
ver este lado do relógio –, parodia a figura de Father Time, pois o Pai Tempo é
representado como um velho barbudo, com um manto e carregando uma
foice ou ampulheta apontando a passagem do tempo, enquanto a figura
representada no relógio lembra a de um clown. O fato de o relógio simbolizar
a existência cíclica do homem, a escravidão do homem em relação ao
tempo e ao destino, nos faz perceber como no mundo do espelho também
essas conotações são invertidas: o rosto risonho do velhinho sugere a inversão
da ordem normal do tempo, ou seja, Alice está fora do tempo cronológico.
Deste modo, poderíamos sugerir que Tenniel também conseguiu,
através do expediente do relógio invertido, ultrapassar os limites da
advertência de Lessing, citada acima, de ser o espaço o campo da pintura e
o tempo o da poesia, ao retratar conforme o texto-fonte de Carroll. Como
Atwood também intuiu e enfatizou, em relação a nós, leitores: “Naquele
momento [da travessia de Alice] o próprio tempo pára, e também se alonga,
e ambos, o escritor e o leitor, têm todo o tempo fora do mundo.”
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Alice, após ter observado que a sala do espelho não estava tão
“bem arrumada” quanto a da vida real – indicando, talvez, que o mundo
da arte tem sua própria organização, que não corresponde necessariamente
à da vida real – e que as peças de xadrez entre as cinzas da lareira se
locomoviam em pares, como reflexos num espelho, ela própria, ao contrário
dos objetos que adquirem vida no mundo do espelho, percebe que está
ficando não apenas invisível, mas também que não podem ouvi-la.
Por sua vez, o livro que Alice acha na mesa tem a impressão ao
contrário e, portanto, ela só o consegue lê-lo se o segurar diante do espelho:
“Why, it’s a Looking-glass book, of course! And, if I hold it up to a glass, the words
will all go the right way again” (p. 191). Como comenta Gardner, o fato de a
impressão aparecer ao contrário para Alice é evidência de que ela própria
não foi revertida ao passar através do espelho (GARDNER, 1975, p. 190).
Ou seja, dentro da analogia de Atwood, o escritor continua sendo o que é
– não vira personagem. Em seguida, após ter lido o poema “Jabberwocky” e
refletido sobre a dificuldade em entendê-lo, Alice, receosa de ter de voltar
através do espelho antes de ter visto o resto da casa, decide dar uma olhada
no jardim. É portanto a partir do capítulo II que se iniciam suas aventuras
no mundo do espelho.
Retomando portanto as questões propostas no início, percebemos
que em relação aos elementos do texto de Carroll que antecedem e preparam
o leitor para a travessia, as associações simbólicas da própria sala de visitas
em que Alice se encontra, da cadeira de braços na qual está aconchegada,
da gatinha brincando com o novelo de lã, o fato de Alice estar sonolenta,
falando consigo mesma e com a gatinha, criam um clima propício para a
entrada num mundo de fantasia; simultaneamente, esta atmosfera lúdica,
complementada com a frase “vamos fazer de conta”, quase como uma
fórmula mágica, corroboram este clima propício e a facilidade com que irá
atravessar o vidro, além de antecipar o que irá encontrar no mundo do
espelho: a mesma sala de visitas, mas com os objetos funcionando ao contrário,
isto é, os quadros estão vivos, o tempo cronológico está abolido, as peças de
xadrez caminham, os livros estão escritos ao contrário e Alice, uma personagem
“real”, torna-se invisível e inaudível para as personagens que irá encontrar.
Lembrando-nos que as ilustrações de Tenniel foram feitas em
colaboração estreita com Carroll, para quem, como mencionado, “nenhum
detalhe era insignificante demais para sua crítica minuciosa”, as relações
heteroplásmicas entre o texto-fonte e as quatro ilustrações analisadas parecem
ser simples traduções intersemióticas, pelo fato de Tenniel ter reproduzido
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fielmente o texto verbal. Como argumenta Hoeck, “a leitura do texto
ilustrado é indispensável para compreender a significação da imagem que o
ilustra”, e, na transposição intersemiótica, o “discurso primário” – o texto
de Carroll – “funciona (...) com frequência, injustamente, como norma de
avaliação absoluta em relação ao discurso secundário”, já que “o leitor tem
uma tendência natural a julgar a ilustração a partir da sua fidelidade ao texto”.
Assim, “quanto mais o discurso secundário se aproxima do discurso primário,
mais ele corre o risco de ser considerado uma simples tradução intersemiótica,
e não uma transposição intersemiótica autônoma” (HOECK, 2006, p. 178).
Entretanto, essas ilustrações, com as imagens colocadas fora do
texto e, portanto, numa superfície dividida, por mais límpidas, claras e fiéis
em seu diálogo com o original – mantendo, para o leitor juvenil, o
componente lúdico das imagens e confirmando, para o adulto, o ambiente
típico de uma sala vitoriana (visualizada no quadro de Henry Treffry Dunn)
– carregam consigo toda a carga simbólica que os objetos e cenas descritos
no texto-fonte contêm: desde a gatinha brincando com o novelo, Alice na
cadeira de braços com a gatinha e o novelo e, em seguida, no ato de
atravessar o espelho, em duas ilustrações, nas quais a primeira já antecipa a
segunda e a segunda por ser o reverso exato da primeira, criando-se assim
visualmente a ilusão do ato de atravessar o vidro. Acreditamos, portanto,
que, juntamente com os detalhes invertidos e antropomorfizados do relógio
e do vaso e da inversão do monograma de Tenniel na Casa do Espelho, o
ilustrador tenha se aproximado do que poderia ser considerado uma
“transposição intersemiótica autônoma”.
Do texto-fonte de Carroll à releitura de Atwood
Ao retornarmos ao texto atwoodiano citado, e, em especial, ao
“palpite” de Atwood de que “ o ato de escrever ocorre no momento em
que Alice atravessa o espelho”, passamos da transposição intersemiótica à
intertextual. Partindo da definição de Gérard Genette, de que o objeto da
poética não é a arquitextualidade, mas a transtextualidade ou transcendência
textual do texto: “tudo o que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com
outros textos” – fica evidente que, no caso de Atwood, a transcendência textual
de Through the Looking Glass é manifesta, tanto através da intertextualidade, com
a presença efetiva do texto de Carroll em Atwood, como também da
metatextualidade, da relação de comentário que une um texto ao outro de que
ele fala. Esta relação crítica se apresenta em dois momentos consecutivos:
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1. O primeiro, no qual Atwood relê o texto de Carroll em si
mesmo, ou seja, Alice como personagem: no início da história ela está do
lado da “vida”, olhando para dentro do espelho, onde mira sua imagem
ou duplo reverso, que está do lado da “arte”. O fato de mencionar que o
lado da “vida” está olhando para “dentro” e o lado da “arte” para “fora”
torna-se assim já emblemático do olhar interior do artista ao sonhar com/
imaginar um mundo alternativo – como as conotações simbólicas do sonho
confirmam: no sonho, a alma está ausente, trabalha ou vê coisas longe de
onde o corpo está no momento. Por outro lado, o olhar da arte para
“fora”, torna-se emblemático da mimese ou do vínculo necessário com a
vida, ao refletir as convenções da realidade do mundo no qual foi criada,
seja a do século XIX ou XXI, para que a obra de arte seja reconhecida pelo
leitor/apreciador. O “salto” de Atwood inicia-se exatamente aqui, ao afirmar
que Alice – assim como o escritor, na “falsa” analogia que Atwood irá
propor – em vez de descartar o lado da arte, como os não-artistas fazem,
pois preferimos o lado “ duro e iluminado” da vida, Alice irá atravessar a
barreira de vidro que separa a realidade da fantasia e irá se “fundir” à outra
Alice, à Alice imaginada, ou seja: o escritor se funde com seu “duplo esquivo”
artístico tornando-se um só ser. Esta travessia, propiciada pela tripla repetição
da “fórmula mágica” de Alice, mesmo que não citada por Atwood, subjaz
à sua interpretação, pois “let’s pretend”, é, por extensão, o que o escritor
faz com o leitor, quando escreve, como o texto de Atwood deixa entrever.
2. O segundo momento, preparado pelo primeiro, no qual
Atwood, com sua “falsa” analogia, interpreta a travessia de Alice como
metafórica do próprio ato de escrever, ou seja, no instante da travessia – o
termo through do título, tão simbólico do esforço de superação e da
consciência que o acompanha – é que se dá o ato de escrever no qual vida
e arte se fundem, assim como o tempo pára e se alonga –, a fim de dar ao
escritor e ao leitor, “todo o tempo fora do mundo”. E é no momento em
que Alice retorna ao mundo da “vida”, trazendo consigo a história do
mundo do espelho, que percebemos a missão/função do escritor/artista,
ao devolver ao lado da “vida” o mundo da “arte” que sua obra criou.
Fica evidente, portanto, que Atwood, de sua perspectiva
contemporânea, encontrou significados novos na “construção de mundos
alternativos” proposta pelo texto de Carroll:
1. Em relação ao primeiro momento, ao interpretar o mundo
“real” de Alice como o mundo da vida e o mundo dentro do espelho
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161
como o mundo da arte, em vez de simplesmente um mundo fantástico,
deste modo opondo, mas também justapondo e fundindo ambos, ao Alice
se fundir com a “anti-Alice”.
2. Em relação ao segundo momento, ao interpretar o ato de escrever
como ocorrendo no momento em que Alice atravessa o espelho, ou seja, o
momento de transição entre realidade/vida e fantasia/arte, o escritor levando
o lado da “vida” consigo, ao atravessar o umbral, a fim de se fundir com
seu duplo esquivo, no lado da arte. Sua volta, porém, como a de Alice, será
imprescindível, a fim de que o leitor possa igualmente usufruir desse tempo
alongado que o escritor criou, enquanto estava do lado da “arte”.
Considerações finais
Retomando os pontos principais de nossa argumentação, ao
passarmos da “primazia do texto” de Carroll para as ilustrações de Tenniel,
destacamos, primeiramente, alguns dados contextuais da relação escritorilustrador, a fim de podermos avaliar melhor este diálogo que se criou
entre duas artes diferentes e verificar que detalhes do texto verbal foram
transpostos e reconstituídos nas ilustrações e que relações intermidiáticas
foram estabelecidas entre o texto-fonte e as ilustrações. Considerando-se
que – partindo do texto atwoodiano – nosso principal “objeto de
percepção” (CLÜVER, 2006, p. 148) seria Alice no ato de atravessar o
espelho, instante que Tenniel apresenta por meio de duas ilustrações, não
podíamos deixar de examinar, também, as duas ilustrações que antecedem
as da travessia, pois elas preparam o leitor para a transição, antecipam alguns
dos objetos que serão vistos, e criam, por suas associações simbólicas, uma
atmosfera propícia à entrada num mundo fantástico.
As conexões pictóricas que se podem estabelecer entre as quatro
primeiras ilustrações da obra demonstram como há uma continuidade
ficcional entre elas, a partir da gatinha brincando com o novelo e Alice na
cadeira de braços segurando o novelo com a gatinha no colo, ambas as
gravuras antecipando as duas principais – Alice diante do espelho e no ato
de atravessar o espelho, esta última já visualizada pelo leitor como se ele
estivesse também dentro da casa do espelho. Assim, mesmo mantendo a
simplicidade das ilustrações, tornando-as acessíveis às crianças, a arte de
Tenniel consegue transcender esta cristalinidade lúdica ao captar, seguindo
Carroll, a atmosfera de faz-de-conta que permite e favorece a transposição
do mundo ficcional real para o mundo ficcional imaginário sonhado por
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162
Alice. Simultaneamente, os detalhes dessas ilustrações refletem as características
do mundo vitoriano em que viveram e atuaram autor e ilustrador como também
a personagem Alice, com seu vestido tipicamente vitoriano.
Igualmente, em relação à interpretação do salto de Alice por
Atwood, sua “falsa analogia” não deixa de ser extremamente criativa, ao
nos fazer visualizar o momento em que ocorre o ato de escrever, ou seja, o
da criação artística, em que o escritor em vez de se despojar de sua realidade,
a traz consigo para dentro do mundo imaginário, atemporal e utópico da
arte. Como ela própria ainda comenta, ao considerar “a natureza do público”
em relação ao romancista e ao contador de histórias, “um livro pode
sobreviver a seu autor, e viaja também, e pode-se dizer que também muda
– mas não o modo de narrar. Muda o modo de ler. Como observaram
muitos comentaristas, as obras literárias são recriadas a cada geração de
leitores, que as renovam encontrando nelas novos significados. (...) A leitura
de um texto é como executar uma música e ao mesmo tempo ouvi-la e o
leitor torna-se o seu intérprete” (ATWOOD, 2004, p. 81).
Deste modo, o comentário de Praz sobre a relação entre literatura
e artes visuais
Toda estimativa estética representa o encontro de duas sensibilidades, a
sensibilidade do autor da obra de arte e a do intérprete. Aquilo a que
chamamos interpretação é, por outras palavras, o resultado da filtragem da
expressão de outrem pela nossa própria personalidade. (...) Pelo fato de a
interpretação de uma obra de arte consistir de dois elementos, o original
propiciado pelo artista do passado e o outro que lhe é acrescentado pelo
intérprete ulterior, tem-se de esperar até que este último elemento pertença
também ao passado a fim de poder vê-lo aflorar (...). Os contemporâneos,
via de regra, não se dão conta desse elemento sobreposto, porque é a maneira
comum de sentir da época (...). Mas deixem-se passar alguns anos (...) e o
ponto de vista muda (...) a investigação histórica e filológica altera os dados
de um problema (...). (1982, p. 33)
se aplica não apenas ao diálogo intermidiático estabelecido entre Carroll e
Tenniel, e ao fato de que este último filtrou a expressão de Carroll pelo viés
de sua própria personalidade, mesmo que ambos tenham vivido num
mesmo contexto cultural. Aplica-se, também, ao diálogo metatextual
estabelecido entre Carroll e Atwood, ao esta recriar o texto de Carroll em
sua época, renovando-o assim para nós, para fazer-nos vislumbrar, no salto
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de Alice, uma nova interpretação criativa já latente no texto de Carroll, mas
que precisava vir à tona através da sensibilidade da interpretação atwoodiana.
Notas
As adaptações de No mundo do espelho incluem musicais ao vivo e televisivos, além de
versões animadas: o filme mudo dirigido por Walter Lang, Alice Through the Looking
Glass, 1928; as versões musicais incluem o TV musical de 1966, com canções de
Moose Charlap, e Judi Rolin no papel de Alice; uma adaptação multimedia natalina
de 2007, dirigida por Andy Burden, e a ópera Through the Looking Glass, de Alan
John, de 2008. As versões televisivas incluem um filme de TV da BBC Through the
Looking Glass, de 1974, com Sarah Sutton no papel de Alice; um filme soviético de
1982, dirigido por Yefrem Pruzhanskiy; um filme de TV animado de 1987, e um
filme do Canal 4, de 1988, com Kate Beckinsale no papel de Alice.
1
Processo e técnica de gravura em relevo sobre madeira que permite a impressão
tipográfica de figura(s) ou texto(s), cujos caracteres (não móveis) são entalhados na
prancha de suporte.
2
Em todos seus livros, Dodgson era meticuloso a respeito da diagramação do texto
e das ilustrações e esmerava-se para garantir as melhores combinações possíveis. Em
relação a Looking-Glass, algumas mudanças ocorreram durante a preparação: cinco
ilustrações retratando Alice com a Rainha foram alteradas porque Dodgson não gostara
do estilo de vestido que Tenniel havia dado a ela. Como comenta Collingwood: “O
Sr. Dodgson não era pessoa fácil de se lidar: nenhum detalhe era insignificante demais
para sua crítica minuciosa. ‘Não ponha tanta crinolina na Alice’ ele escrevia, ou ‘O
cavaleiro branco não pode ter costeletas; ele não pode parecer velho’ – eram ordens
que ele dava constantemente.” Tenniel então redesenhou Alice num vestido
tipicamente vitoriano para senhoritas, o que obviamente agradou a Dodgson.
Disponível em: <http://www.squidoo.com/john Tenniel>. Acesso em: 21 set. 2010.
3
4
Disponível em: www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010.
Todas as conotações simbólicas apresentadas provêm dos dicionários citados nas
referências bibliográficas.
5
6
Disponível em: http://www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010.
Segundo Martin Gardner, o tema do espelho parece ter sido um acréscimo posterior
à história, segundo depoimento da própria Alice Liddel. Num espelho, todos os
objetos assimétricos vão para o outro lado. Há muitas referências no livro a tais
7
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164
reversões esquerda-direita. Se estendermos o tema do reflexo no espelho para incluir
a inversão de qualquer relação assimétrica, tocamos num ponto que domina toda a
história. Por ex.: para se aproximar da Rainha, Alice caminha para trás. O mundo
habitual está virado de cabeça para baixo e de trás para diante; torna-se um mundo no
qual as coisas vão numa direção qualquer menos na direção em que deveriam ir. Os
temas da inversão ocorrem em todas as obras “nonsense” de Carroll. Na vida real
Carroll explorava a noção de inversões o quanto podia para divertir suas amigas
crianças. Escrevia cartas em frente ao espelho que precisavam ser lidas em frente ao
espelho, e ou cartas que tinham de ser lidas começando com a última palavra e daí ler
até a primeira, etc. Mesmo nos momentos sérios a mente de Carroll parecia funcionar
melhor quando via as coisas de cabeça para baixo. Intimamente relacionado com seu
humor de inversão é seu humor de contradição lógica. Ex.: Alice corre quanto pode
para ficar no mesmo lugar (GARDNER, 1975, p. 180-83).
8
STOKER. Disponível em: www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010.
REFERÊNCIAS
ATWOOD, Margaret. Negociando com os mortos: a escritora fala sobre seus escritos. Rio
de Janeiro: Rocco, 2004.
CARROLL, Lewis. The Annotated Alice. Ed. GARDNER, Martin. Harmondsworth:
Penguin Books, 1975.
CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles. 4 vols. Paris:
Seghers, 1973.
CIRLOT, Juan Eduardo. Diccionario de símbolos. Barcelona: Editorial Labor, 1969.
CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, Marcia. Org. Poéticas
do visível. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
GENETTE, Gérard. Palimpsests. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.
HOECK, Leo. “A transposição intersemiótica”. In: ARBEX, Marcia (org.). Poéticas do
visível. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
PRAZ, Mario. Literatura e artes visuais. São Paulo: Cultrix, 1982.
STOKER, Gil. Referências de fonte eletrônica. Disponível em < www.alice-inwonderland.net> Acesso em: 21 set. 2010.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
165
TENNIEL, John. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://
www.squidoo.com/John Tenniel. Acesso em: 23 set. 2010.
VRIES, Ad de. Dictionary of Symbols and Imagery. Amsterdam: North Holland, 1976.
Sigrid RENAUX
Pós-Doutora em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de Chicago,
EUA. Doutora em Língua Inglesa, Literatura Inglesa e Literatura Norte-Americana
pela USP. Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada).
Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Artigo recebido em 25 de maio de 2011.
Aceito em 27 de junho de 2011.
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166
TEXTO, PERFORMANCE E FILME:
UMA LEITURA INTERMIDIÁTICA
DE TRONO DE SANGUE/MACBETH,
DE ANTUNES FILHO*
Liana de Camargo Leão
[email protected]
Mail Marques de Azevedo
[email protected]
Resumo: Este artigo focaliza as relações
intermidiáticas entre texto, performance e
filme na produção Trono de sangue/
Macbeth, levada à cena no Centro de
Pesquisa Teatral, em 1993, pelo diretor
Antunes Filho. A referência óbvia ao
texto-fonte e ao celebrado filme de Akira
Kurosawa – e, ulteriormente, ao teatro
Noh japonês – sugeriu a abordagem
analítica: examinar o produto de mídias
diferentes, com base em determinado
trabalho individual, de acordo com seus
meios específicos (RAJEWSKY, 2006).
Estabelecem-se paralelismos entre os três
tipos de mídia quanto a técnicas de
ambientação – cenários, figurinos e
máscaras – e de performance. Enfatiza-se
o estreito relacionamento de Antunes
Filho com o cinema e, em particular, com
a obra de Kurosawa, fruto de sua
admiração pela cultura japonesa.
Abstract: This article examines the
intermedial relationship among text,
performance and film in the production
Trono de sangue/Macbeth, staged by the
Brazilian director Antunes Filho, at the
Centro de Pesquisa Teatral, in 1993. The
obvious reference to the Shakespearean
source-text and to Akira Kurosawa’s
celebrated film – and ultimately to the
Japanese Noh theater – have suggested
the analytical approach: the study of the
results produced by different media
based on an individual work, using their
own media-specific means (RAJEWSKY,
2006). Parallelisms among the three types
of media are focused on details of setting
– scenery, costumes, and masks – and
performance. Special notice is given to the
director’s close relationship with cinema
and, specifically, with Kurosawa’s work,
due to his admiration for Japanese culture.
Palavras-chave: Intermidialidade. Kurosawa. Antunes Filho.
Keywords: Intermediality. Kurosawa. Antunes Filho.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
167
Shakespeare´s plays, with their inherently flexible
structure and openness of style, positively invite
distinctive re-interpretation on performance.
John Russell Brown
Trono de sangue/Macbeth, o título dado pelo diretor Antunes Filho à
sua montagem da tragédia shakespeariana, faz referência explícita ao filme
de Akira Kurosawa – um clássico para aficionados –, o que põe em relevo
o caráter intermidiático da sua leitura. Vem de longa data a devoção de
Antunes ao cinema, evidente no trabalho de estruturação do CPT, – Centro
de Pesquisa Teatral –, onde a peça foi produzida em 1993. A atuação do
diretor paulista à frente do CPT incutiu no grupo o espírito de pesquisa
extensiva na estética do espetáculo, o que Antunes reputa indispensável para
a formação de atores, dramaturgos, desenhistas e de todo o pessoal ligado
à performance teatral, nos cursos oferecidos pelo Centro. Assim, o uso do
filme como fonte tornou-se prática costumeira no CPT.
Decorre daí o objetivo deste trabalho: estudar na encenação de
Trono de sangue/Macbeth, dirigida por Antunes Filho, as referências ao filme
de Kurosawa, especificamente a utilização de técnicas fílmicas de
ambientação – cenários, figurino e máscaras – e de performance que, por sua
vez, estabelecem relações intermidiáticas com o teatro Noh japonês. A análise
desses elementos é precedida de um breve retrospecto da carreira variegada
do diretor no teatro e da discussão de como “o produto da mídia usa seus
meios específicos para se referir a um determinado trabalho individual
produzido em meio diferente” (RAJEWSKY, 2006, p. 44).
A metamorfose de José Alves – nome artístico do aspirante a ator
– em Antunes Filho, o metteur-en-scène, deve ter sido recebida com alegria
por críticos e plateias teatrais, que puderam trocar um performer medíocre
pelo hoje internacionalmente famoso “poeta da cena”. Ligado desde o
princípio a novas tendências artísticas, a atitude predominante de Antunes
Filho sempre foi de rebeldia e liberdade de criação.
Desrespeito a leis e regras não é nada de novo na vida de Antunes
Filho, o menino familiarizado com as ruas de uma São Paulo provinciana,
envolvido em brigas e disputas, suportando sem pestanejar olhos roxos e
ossos quebrados. E que – segundo nos informa Sebastião Milaré – adorava
cinema quase tanto quanto futebol; era apaixonado pelo circo e, influenciado
pela mãe, desenvolveu paixão de uma vida inteira por tudo o que se relaciona
com textos dramáticos e performance teatral (MILARÉ, 2011).
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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Um primeiro emprego na prefeitura, onde veio a conhecer Osmar
Rodrigues Cruz, tornou-se um trampolim para o mergulho no mundo do
teatro. A recepção fria de sua atuação em Adeus, mocidade, dirigida por Cruz
no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, despertou-lhe dúvidas
sobre sua capacidade de representar, mas não abateu em nada seu entusiasmo
pelo teatro. Tinha encontrado sua verdadeira vocação.
São Paulo, na época, fervilhava com atividades teatrais amadoras,
tais como o Grupo Experimental de Alfredo Mesquita; o Grupo da
Universidade, fundado por Décio de Almeida Prado, na Universidade de
São Paulo, e o Grupo de Artistas Amadores de Paulo Autran. A criação do
TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, em 1948, como sede dos três grupos,
foi um primeiro passo rumo à profissionalização, impulsionada pela
contratação dos diretores italianos Luciano Salce, Adolfo Celi, Flamínio
Bollini Cerri, Ruggero Jacobbi, além do renomado diretor polonês
Zigbiniew Ziembinski. O jovem José Alves esteve sempre em contato muito
próximo com todos esses movimentos e tendências.
Empolgado pela pujança do cenário teatral, faz mais uma tentativa
de se tornar ator, mas não tem sucesso: é rejeitado na seleção para o elenco
da peça Nossa cidade, a ser dirigida pelo amigo Osmar Cruz (o que deu
origem a muitas brincadeiras no meio teatral) e volta-se definitivamente
para a carreira de diretor. Toda a força da energia e coragem da juventude
é, então, canalizada para a realização de seus objetivos artísticos na montagem
teatral.
Começou de maneira modesta com a fundação de grupos
amadores que, no entanto, chamaram atenção para o seu trabalho e o levaram
para o TBC como diretor-assistente dos mestres italianos. A partir daí seu
currículo foi marcado por sucessos retumbantes (apesar de alguns fracassos
igualmente rumorosos), como resultado de sua determinação “de tentar
algo de ambição e envergadura”, mesmo que se expusesse à rejeição de
crítica e de público.
Sua versão de A megera domada, em 1965, faz uma reflexão sobre o
conhecimento da vida social acumulado ao logo dos séculos – a
emancipação da mulher, o novo papel do homem mais como provedor
financeiro do que pater famílias – e põe em evidência sua compreensão dos
personagens de Shakespeare como protótipos do homem moderno. A
introdução de detalhes do contemporâneo, como garrafas de Coca-Cola,
um jogo de rugby e um coro de canções dos Beatles contribuiu,
evidentemente, para o tremendo sucesso da peça.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
169
Em contraste, a produção de Júlio César foi uma pedra de tropeço
na ascensão do prestígio do diretor. Local inapropriado, falta de unidade
na representação e outras circunstâncias, como a visão chocante de um
Júlio César nu, em um caixão no palco, receberam vaias e apupos das
galerias e da plateia, apesar dos nomes famosos no elenco.
As tentativas seguintes de Antunes Filho no teatro comercial, no
cinema e na TV foram degraus de acesso à criação de um curso para atores
que deu origem à produção de Macunaíma, de Mário de Andrade, e que
levou à instituição do CPT. O artesão voltara ao material básico de sua arte
– o espírito humano –, mas levando na bagagem ideias e experiências
valiosas colhidas ao longo do caminho.
A escolha do título Trono de sangue/Macbeth, além de fazer referência
explícita ao filme de Akira Kurosawa, ilustra a devoção de Antunes Filho
pelo cinema: “Oh, essas duas coisas, teatro e cinema. A expressão dramática
sempre me impressionou. A aventura humana sempre me tocou
profundamente” (ANTUNES, 1996). “Expressão dramática” no teatro
difere necessariamente de expressão dramática na tela e a análise de uma
relação intermidiática entre ambas, estabelecida por artistas que gozam de
trânsito livre em ambos os meios, é desafiadora.
Seguindo em princípio a percepção de Irina Rajewsky sobre
intermidialidade como categoria para a análise concreta de textos ou de
outros tipos de produtos da mídia, este artigo se estrutura em linhas bastante
convencionais: basicamente a análise de tema, espaço cênico, ritmo da ação
e performance dos atores, contra um fundo de diálogo entre artes,
especificamente a encenação de Antunes Filho (1993) e o filme de Kurosawa
(1957), referidos a partir deste ponto como Trono de sangue e The Castle of the
Spider´s Web, respectivamente. O termo “re-mediação”, como utilizado por
Rajewsky, descreve com propriedade a relação intermidiática entre as versões
de Kurosawa e de Antunes Filho de Macbeth, bem como entre suas referências
a outras artes. Embora separadas por quase meio século, as leituras cinemática
e teatral da tragédia shakespeariana têm características surpreendentemente
semelhantes.
O estudo extensivo das atividades artísticas de Antunes Filho,
desenvolvidos por Sebastião Milaré, ressaltam dois aspectos de especial
relevância para esta análise: a empatia do encenador com a cultura japonesa
e a utilização de fontes literárias para suas produções. Estas são, na realidade,
recriação mais que adaptação pura e simples. A apropriação de Macbeth,
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
170
por exemplo, não é mera transposição, mas encenação dramática mediada
pela cultura japonesa, mais especificamente pelo filme de Akira Kurosawa
The Castle of the Spider´s Web, em si uma transescritura da tragédia de
Shakespeare.
A influência japonesa na concepção de Trono de sangue/Macbeth, –
homenagem à genialidade de Kurosawa – confere simultaneamente à peça
um senso do exótico e do universal, por não ser a produção brasileira
cópia do filme japonês nem montagem pseudobritânica, mas sim um
retrabalhar de influências e tradições.
Não é objetivo deste trabalho explorar os paralelos óbvios entre
The Castle of the Spider´s Web e o teatro Noh, objeto de centenas de
comentaristas abalizados. Apenas alguns aspectos da adaptação de Kurosawa
são analisados em contraponto com a leitura de Antunes.
Enquanto Kurosawa evita a linguagem verbal em favor de imagens
e da ação propriamente dita – imagens visuais, ação, gestos e rituais do
teatro Noh substituem os famosos diálogos e solilóquios de Shakespeare –
o texto de Macbeth retém lugar proeminente na produção brasileira. A autoria
da tragédia é destacada no programa, sem referência a um possível tradutor
do texto. O projeto como um todo faz menções recorrentes a Shakespeare,
e estabelece Antunes como o responsável pela adaptação. Além disso, é
inegável que a encenação do drama conta a conhecida história de Macbeth e
de seus personagens, reconhecíveis ao espectador, apesar da condensação
radical do texto – o tempo da encenação ultrapassa em pouco uma hora e
quarenta minutos. Antunes provavelmente valeu-se de várias traduções
brasileiras para construir seu texto, todo ele em prosa.
Reconhecer o filme de Kurosawa como adaptação da tragédia
Macbeth, a menos que explicitamente apresentado nos créditos, no entanto,
requer conhecimento da fábula da peça, uma vez que os personagens
recebem nomes diferentes, de acordo com o background histórico e a tradição
cultural japonesa. Já no inicio da narrativa fílmica, no entanto, temas
semelhantes aos que inspiram Macbeth vêm à tona, basicamente os efeitos
maléficos da ambição pelo poder até mesmo sobre o mais nobre e bravo
dos homens, adaptado à situação de guerra civil no Japão medieval.
A possibilidade de se encaixar à perfeição o texto shakespeariano
em diversas circunstâncias da história da humanidade diz de sua vocação
política inerente.
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
171
Vocação política de Macbeth
Macbeth é a única peça escocesa de Shakespeare, encenada pela
primeira vez em Hampton Court, diante do também único rei escocês a
ocupar o trono inglês – Jaime IV da Escócia e Jaime I da Inglaterra – ele
próprio patrono do grupo de atores, The King´s Men. Há referências sobre
acontecimentos contemporâneos no texto: os julgamentos de mulheres
acusadas de feitiçaria, o tratado sobre Demonologia escrito pelo rei (1597); a
conspiração de Guy Fawkes; a genealogia dos reis descendentes de Banquo
e a isenção da culpa desse último que, de cúmplice de Macbeth no assassinato
de Duncan nos relatos históricos, passa a ser inimigo mortal do protagonista
na peça, recurso certamente utilizado por Shakespeare com a intenção de
agradar a Jaime I.
A vocação política da peça vem-se afirmando em séculos de
adaptações que retratam o panorama político de diferentes países e estados.
O background da produção de Orson Welles para o palco, em 1936, por
exemplo, é a revolução no Caribe; já na versão do diretor para o cinema,
em 1948, não é o Haiti, mas o fascismo a chave política do filme. A versão
fílmica de Roman Polanski (1970) é associada à violência da Segunda Guerra
Mundial e da Guerra Fria. Kurosawa transfere a ação para um Japão
medieval assolado pela guerra civil no século XVI.
Trono de sangue/Macbeth lança luz sobre a realidade política brasileira
nos anos 90, quando a esperança do povo por democracia e o desejo da
intelligentsia por liberdade de expressão foram rudemente abalados pela
corrupção do governo de Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente
a ser eleito diretamente pelo povo, depois de vinte anos de domínio militar.
Collor foi forçado a renunciar à presidência em agosto de 1992,
formalmente acusado de crimes e contravenções. Não se trata de uma
produção tópica, embora o espectador atento aos acontecimentos possa
facilmente traçar paralelos entre a peça e o cenário político brasileiro: se um
povo consegue emergir de um sombrio período de ditadura, ao eleger seu
Presidente, pode muito bem produzir um drama que condena um tirano.
O bem e o mal
“Oráculos ambíguos que, por se realizarem literalmente, enganam
os que neles confiam” fazem com que Macbeth se enrede “nos laços
armados no inferno”. Os comentários críticos de Samuel Coleridge, porém,
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172
ignoram a inexorabilidade do destino como princípio propulsor da tragédia
de Shakespeare. A seu ver, “o poeta deseja mostrar que o conflito entre o
bem e o mal, neste mundo, acontece apenas com a permissão da
Providência, que converte a maldição, que o indivíduo mortal faz cair sobre
a própria cabeça, em benção para os demais” (COLERIDGE citado em
STAUNTON, 1972, p. 2049).
Qualquer que seja a interpretação atribuída à transformação de
Macbeth, de guerreiro valoroso em assassino cruel, é a insana luta interior
entre o bem e o mal que fornece as linhas mestras da caracterização do
herói e comanda o dénouement de sua tragédia. Em que pese seu tormento,
entretanto, fica evidente que a ambição prevalece e a decisão de assassinar
Duncan é um ato de livre arbítrio.
A encenação de Antunes Filho enfatiza a queda compulsiva de
Macbeth em um mundo de sombras e escuridão, a começar do momento
em que presta ouvidos às profecias das bruxas até a morte nas mãos de
Macduff. Como no texto de Shakespeare, Macbeth trava uma batalha perdida
contra a escuridão interior, feita de remorso pelo assassinato do rei e do propósito
cruel de trair, enganar e matar quem lhe frustrar a ânsia pelo poder.
Reflexões sobre o bem e o mal não são um tópico isolado na
produção cênica de Antunes. No livro Hierofania: o teatro segundo Antunes
Filho (2010), Sebastião Milaré inclui uma análise de Trono de sangue, no capítulo
intitulado “Sinergia do mal”, em que agrupa a peça com duas outras
produções do diretor – Velha nova estória e Vereda da salvação – que exploram
a centralidade do mal. Milaré vê a continuidade dessa fase na produção de
Gilgamesh e Drácula e outros vampiros, centradas na poética da imortalidade e
que se utilizam do mito da árvore da vida. Em conjunto, as cinco peças
representam uma meditação sobre a condição humana como percebida
no final do século XX.
A familiaridade de Antunes com filosofias orientais, que vêem os
conceitos de bem e mal como complementares – o bem não existe sem o
mal e o mal não existe sem o bem – acrescenta outro ponto em comum
com a leitura feita por Kurosawa do texto de Shakespeare. É tarefa do
homem aprender a lidar tanto com o bem como com o mal. Coerente
com esses princípios, o propósito de Antunes é “discutir o homem em
seus limites” na encenação de Macbeth. [...] “O grande mal, o grande bem
...” [...] e especialmente estar consciente da sedução, “temer a sedução; toda
sedução é perigosa, particularmente a sedução da política” (ANTUNES,
1996).
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173
“Discutir o homem em seus limites” é a preocupação central do
diretor e o motivo por que valoriza o ator como eixo da encenação.
Máscaras
Na produção de The Castle of the Spider´s Web, Kurosawa não reproduz
a linguagem verbal de Shakespeare, nem mesmo para ajudar seus atores a
construir personagens. Ao invés disso, utiliza-se de máscaras Noh como
modelo, a fim de causar impacto sobre os atores e levá-los a expressar
sentimentos contraditórios de medo e raiva, exaltação e desespero, que
ameaçam destroçar corpo e alma.
Para a composição de Lord Washizu, Kurosawa apresentou a Toshiro
Mifune, ator principal de seus filmes, a máscara de Heida, o guerreiro; a
atriz que desempenha o papel de Lady Asaji foi apresentada à máscara de
Shakumi, uma linda mulher, já madura, à beira da loucura; para compor o
Espírito do Mal, utilizou a máscara Yamanba; para compor Mik, a máscara de
Chujô, o nobre (KUROSAWA citado em CARDULLO, 2008, p. 65, 103).
O esquema abaixo ajuda a visualização da estratégia de Kurosawa:
Fig. 1– Máscaras tradicionais do teatro Noh e seus correspondentes em
The Castle of the Spider´s Web.
A barba negra e a expressão selvagem de Toshiro Mifune
acrescentam calor e vida à reprodução extremamente fiel da máscara Noh,
na encarnação do guerreiro selvagem, Lord Washizu. A simbiose completa
de Isuzu Yamada Sakaji – Lady Asaji – é mais uma evidência da habilidade
do diretor japonês. A frieza imperturbável de Lady Asaji (Lady Macbeth),
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174
construída por Yamada, contrasta com a performance apaixonada e intensa
de Mifune e enfatiza o impacto dramático da influência da mulher sobre o
guerreiro.
Percebem-se referências às máscaras Noh, na produção de Antunes,
na maquiagem pesada de Luiz Melo: os bigodes e as sobrancelhas negras e
marcadas, os cabelos longos cobertos pelo elmo ou pela coroa que se
assemelham aos traços de seu correspondente no filme, um samurai no
Japão feudal. Na composição de Lady Macbeth, – a brancura doentia da
pele em contraste com as sobrancelhas grossas e negras –, Samantha
Monteiro está ainda mais próxima da concepção de Kurosawa das
personagens shakespearianas.
Nos comentários à produção de Antunes, Lilian Lopondo dá
destaque especial à performance de Samantha Monteiro: “Caminhando
lentamente como no teatro Noh, sem gestos, a imobilidade do rosto de
Lady Macbeth encobre seu espírito determinado, manifesto no poder e
impacto da voz, que parece jorrar-lhe das entranhas” (LOPONDO, 1993).
De fato, a caracterização de Lady Macbeth em Trono de sangue é
exemplo modelar dos métodos do diretor, centrados principalmente no
trabalho com o ator. Exige deste consciência absoluta do espaço, não
somente da mise-en-scène física concreta, mas da peça como um todo, tanto
no aspecto externo visível da progressão dramática como no significado
profundo. Ademais, procura levar o ator à percepção do personagem através
de seu próprio corpo e de suas próprias emoções. Sebastião Milaré vê o
ator como o veículo de que Antunes se utiliza para sondar a natureza do
teatro. No que diz respeito ao espaço físico da performance, o palco é o
domínio do ator e a consciência desse espaço, o fator determinante da
geometria de seus movimentos.
Assim, a função-chave dos detalhes concretos de cenário, iluminação
e figurino é fornecer suporte ao trabalho do ator, que se utiliza do concreto
para atingir a transcendência. Como mencionado anteriormente, as
referências intermidiáticas ao filme de Kurosawa, em Trono de sangue, têm a
ver primariamente com detalhes de ambientação – cenário, figurino e
máscaras – e a influência decorrente sobre a performance dos atores. O figurino
é um aspecto especialmente proeminente como uma das “estratégias
constituintes que contribuem para o significado amplo do produto da mídia”,
no caso em que “o produto da mídia se serve de seus próprios meios
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específicos [...] para fazer referência a um trabalho individual específico
produzido em outro meio” (RAJEWSKY, 2006, p. 52).
Figurino
Desenhados pelo artista Romero Lima, os trajes são feitos de
retalhos recortados de cortinas de veludo; o uso de espadas e capacetes
dos samurais confirma o cunho japonês da produção. Como “estratégias
constituintes”, trajes e atitudes dos personagens têm significado especial em
Trono de sangue. O mensageiro vestido de trapos, portador de más notícias,
ajoelhado em atitude subserviente diante de Macbeth, escapa por um fio
de ser estrangulado, na explosão de ira do chefe. Em outra cena, a posição
igualmente servil de um soldado vestido com o traje completo dos samurais,
– flechas se destacando das costas da armadura –, ressoa fortemente na
recriação peculiar do texto de Shakespeare, pois na terra dos thanes escoceses
não existe lugar para o servilismo. Atores, como também espectadores,
são levados a buscar o significado de tais discrepâncias, o que de fato constitui
o objetivo principal da mise-en-scène de Antunes Filho, bem como de toda a
sua concepção de Trono de sangue.
Figs. 2 e 3: Detalhes de figurino, na tela e no palco.
O trabalho de Lima é descrito pela historiadora e figurinista Luciana
Buarque como “nem roupas nem props, são figuras completas, esculturas
vivas que parecem saídas de antigos livros de fábulas, fórmulas religiosas,
cartas de tarô”. Buarque sugere, ainda, que os personagens criados por
Rogério Lima “não são tipos, mas arquétipos. Macbeth não é um Rei, mas
todos os Reis com todo o peso e a sedução trazidos pelo poder. Lady
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Macbeth não é apenas uma Rainha má, ela é a serpente do Paraíso, a Medusa”
(BUARQUE, 1993, p. 25). Na composição de Lady Macbeth por Samantha
Monteiro, como a serpente que tenta o herói, os longos cabelos trançados
da atriz – também referência intermidiática à cultura japonesa e ao filme de
Kurosawa – se tornam ícone visual da perfídia da serpente.
Figs. 4 e 5 – Samantha Monteiro como a serpente traiçoeira na montagem de Antunes
Filho. Isuzu Yamada Sakaji como Lady Asaji, a Lady Macbeth de Kurosawa.
A semelhança marcante entre as imagens da interpretação teatral e
fílmica de Lady Macbeth acrescenta outras evidências da relação
intermidiática entre a peça de Antunes Filho e o filme de Kurosawa.
Espaço cênico
O espaço cênico em Trono de sangue foi concebido por um dos
cenógrafos mais influentes do Brasil, J. C. Serroni, cuja ideia básica foi a de
“um palco livre para os atores” e “uma moldura cenográfica”, um espaço
limitado por grossas paredes que têm a função de sugerir um clima de
opressão e encarceramento – seres humanos presos como animais em uma
jaula e, como tais, privados de racionalidade. Ao invés de um local particular
reproduzido fielmente, Serroni pretendia criar um espaço múltiplo e
ambíguo, que convidasse o público a imaginar universos variados.
Esta é exatamente a grande realização do desenho cênico de Serroni,
que lembra a forma de um castelo medieval japonês, como no filme de
Kurosawa: pesadas portas dão acesso a grandes espaços vazios de forma
quadrangular. As duas figuras abaixo ilustram a semelhança notável entre o
castelo senhorial no filme de Kurosawa (Fig. 6) e o cenário de Serroni (Fig. 7).
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Figs. 6 e 7 – Há semelhanças evidentes entre as habitações senhoriais no filme de
Kurosawa e na montagem de Antunes Filho.
Além da referência intermidiática ao filme de Kurosawa e,
consequentemente, ao cenário despojado do teatro Noh, Serroni presta
tributo ao teatro do tempo de Shakespeare ao reproduzir traços da
arquitetura dos inn-yards e do teatro elisabetano propriamente dito. As
referências múltiplas a outras palcos, espaços e épocas livram a peça de
qualquer especificidade cultural e liberam a imaginação do espectador, por
imprimir cunho universal à ação.
O palco vazio permite rápidas mudanças de cena e confere
flexibilidade à peça: pessoas entram e saem quase que simultaneamente,
através de portas à direita e à esquerda do palco, e de uma porta central.
Uma versão ampliada do balcão shakespeariano fornece dois outros meios
para entrar e sair, através de portas que ladeiam quatro grandes janelas, de
frente para a plateia. Estas funcionam como molduras para a intervenção
de aparições sobrenaturais assustadoras que lembram a Macbeth os seus
pecados. À direita, uma escada de mão dá acesso ao piso superior. Em
dois momentos cruciais da ação, o ator que faz o papel de Macbeth desce
até o chão por uma corda pendente do teto.
Depois do assassinato de Duncan, o palco nu, de paredes cinzentas
depojadas, funciona como prisão invisível, ou, referindo-se especificamente
à imagem criada por Kurosawa, como labirinto impenetrável, onde Lady
Macbeth e, particularmente, Macbeth, perseguidos por pensamentos
aterrorizantes, correm de parede a parede como em um pesadelo.
O piso do palco, pintado de vermelho, é a única mancha de cor
em todo o cenário, em contraste violento com as paredes acinzentadas. O
vermelho, obviamente, se refere ao título da peça, mas também sublinha o
motivo do sangue: as batalhas que abrem e fecham a peça e o assassinato
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violento do Rei Duncan, seguidos do massacre impiedoso de quem se
interpusesse entre Macbeth e o trono.
Iluminação
Inegávelmente, The Castle of the Spider´s Web possui caráter pictórico.
É de conhecimento comum que, na juventude, Kurosawa aspirava a se
tornar pintor e, mais tarde, como diretor cinematográfico, utilizou-se de
técnicas da pintura, equilibrando cenas como composição pictórica
demonstrativa de grande compreensão de contrastes. O designer do filme,
Yoshiro Muraki, revela que neblina e névoa foram usadas para contrastar
com as muralhas negras fortificadas e com o escuro solo vulcânico, tudo
contribuindo para o efeito suiboku-ga ou sumi-e (MURAKI citado em RICHIE,
1991, nossa tradução). Em sua avaliação, Richard Prince faz igualmente
conexão da estética do filme com o sumi-e: “o vazio notável dos espaços –
os céus, a neblina densa que encobre montanhas e planícies – é uma
representação cinemática da composição sumi-e. Como valor positivo, esse
vazio pictórico é posto em contraste com o mundo humano de vaidade,
ambição e violência” (PRINCE, 2003, nossa tradução).
A justaposição de luz e sombra como elemento básico na montagem
de Antunes segue ainda o modelo de Kurosawa: cenografia, figurino,
maquiagem e iluminação imprimem à produção brasileira a percepção em
preto e branco do espetáculo, com exceção única do piso vermelho, símbolo
visual do caráter sangrento da tragédia. Via de regra, introduz-se cor em
cenas com seres sobrenaturais, a exemplo da luz verde e da luz das velas, na
cena do banquete, que destacam o fantasma de Banquo. Na segunda cena
das bruxas, uma luz azul difusa forma um halo à volta das três feiticeiras,
enquanto fachos de luz verde destacam fantasmas e aparições, emoldurados
nas janelas do balcão.
A concepção das três irmãs fantasmagóricas é tomada de
empréstimo à mitologia grega, em que as três Moiras ou Fados, – as Parcas
na mitologia latina – Cloto, Láquesis e Átropos, mulheres lúgubres, de longas
vestes brancas, comandam o destino dos seres humanos. Tecem
constantemente o fio do destino, que é cortado por Átropos quando a vida
humana chega ao término.
Antunes faz com que as bruxas desçam dos céus em um mecano
para anunciar a sina que aguarda Macbeth. Dois atores fazem o papel das
irmãs, sendo a terceira representada por um boneco que, à primeira vista,
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dificilmente se distingue dos atores em carne e osso. Como recurso técnico,
evita-se sobrecarga ao elenco, a que se acrescenta a referência implícita à
função da terceira irmã de fazer calar o homem. Ao enfatizar o aspecto
agressivamente masculino dos atores que encarnam as feiticeiras, Antunes
se curva à prática do teatro elisabetano, em que homens fazem papéis
femininos e, talvez prioritariamente, concretiza a descrição que Banquo faz
das feiticeiras:
[...] Tão secas e tão loucas no vestir,
Que não parecem habitar a terra
Mas ’stão aqui. ’Stão vivas? São capazes
De responder? Parecem compreender.
Pelo gesto que fazem com os dedinhos
Nos lábios secos. Parecem mulheres,
Mas as barbas proíbem que eu afirme
Que o são. (SHAKESPEARE, 2004, p. 26)
Kurosawa condensa as três irmãs da mitologia numa só imagem, a
de uma velha fiandeira que gira incessantemente a roca, tecendo o destino
de Lord Washizu como futuro senhor do “Castelo da Teia de Aranha”. A
ambiguidade de gênero do espírito maléfico da floresta, que também se
encaixa na descrição de Banquo, é posta em relevo no filme pelo tom
masculino de sua voz computadorizada.
Fig. 8 – Imagem da velha fiandeira em Kurosawa.
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Fig. 9 – Imagem das três bruxas de Antunes Filho.
Intermidialidade e performance
Robert Stam aponta que enquanto “o instrumento de expressão
da literatura são as palavras, e apenas as palavras, a linguagem do cinema é
múltipla, em virtude de seus meios de expressão diversos e, assim, ‘herda’
todas as formas de arte associadas com esses meios de expressão” (2000,
p. 35). A narrativa fílmica tem, de fato, a capacidade de absorver qualquer
tipo de discurso ou expressão pré-existente. A riqueza da arte altamente
valorizada de Kurosawa está precisamente na exploração do cinema como
mídia de caminhos múltiplos. Assim, sua transposição do texto de
Shakespeare para a tela não é mera tradução, mas profunda transformação
do texto-fonte no mundo selvagem do Japão medieval. A alternância entre
cenas épicas de batalhas, próprias do cinema, e momentos intimistas,
província das grandes performances teatrais, forma um todo coerente, que
Antunes Filho consegue igualmente atingir em Trono de sangue/Macbeth, pela
hábil manipulação dos recursos específicos da encenação teatral.
Para concluir, a análise de duas passagens do texto de Shakespeare,
no dénouement da tragédia, justapostas à encenação de Antunes Filho e ao
filme de Kurosawa, recupera os traços característicos das três mídias. Na
última cena, Macduff apresenta a cabeça de Macbeth a Malcolm e seu
exército vitorioso:
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Macduff:
Salve, Rei, pois o sois. Olhai aqui
A cabeça maldita do tirano:
O tempo agora é livre. E eu vos vejo
Cercado pelas pérolas do reino –
De cuja saudação eu sou a voz:
Mas cujas vozes quero junto à minha
Pra gritar alto “Salve, Rei da Escócia”!
(SHAKESPEARE, 2004, p. 142-43)
A palavra impressa, “a matéria de expressão da literatura” é um
meio abstrato flexível que abre caminhos para a significação. Assim, a palavra
“pérola” pode ser a representação metafórica da nobreza da Escócia, ou o
termo metonímico para “coroa”. De qualquer forma, o poeta escolhe
palavras que indicam a restauração da ordem política.
O filme de Kurosawa, ao contrário, não traz solução definitiva
para a instabilidade política reinante. Um ciclo interminável de violência
seguir-se-á, sem dúvida, ao assassinato de Washizu, no interior do castelo,
por seus próprios homens, ato que subverte diametralmente a ordem social.
Com a obliteração das distinções definidoras da cultura pelo desrespeito às
fronteiras que separam o rei de seus vassalos, uma teia de desconfiança,
traição e violência virá substituir a vida harmoniosa do grupo social. Assim,
o trono, como símbolo do poder, está irremediavelmente manchado de
sangue.
A figura abaixo, que mostra Toshiro Mifune atingido por “cerca
de uma centena de flechas”, traduz o impacto visual da cena, duplamente
impactante do filme, em virtude do acompanhamento sonoro da chuva de
flechas sibilantes. São necessários todos os recursos do cinema como meio
artístico, – movimento, som sincronizado, close-ups e tomadas panorâmicas
–, para construir efetivamente a imagem da derrota irremediável e
humilhante do temido guerreiro.
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Fig. 10 – Cena final da derrota de Lord Washizu.
Na encenação de Antunes Filho, a plateia acompanha os
movimentos espásticos de Macbeth, encarnado por Luís Melo, na agonia
cruel que antecede a morte. O corpo do protagonista é arrastado no palco
por uma corda, à semelhança de uma vítima sacrificial. O som estridente e
áspero da banda heavy-metal, Kreator, acompanha o arremedo de ritual. O
mal ainda está à solta, como indelével mancha de sangue no próprio Estado
e, como indica o título da montagem, sobre seu símbolo, o trono, agora
permanentemente manchado de sangue.
Nota
*Este artigo é o resultado da aproximação entre professores universitários e a prática
teatral. Tomamos como ponto de partida cuidadosa análise do vídeo da encenação de
Trono de sangue/Macbeth (Arquivo Digital Brasileiro, MIT), das notas contidas no
programa do espetáculo e das críticas sobre a montagem, generosamente fornecidas
por Rodrigo Audi, do CTP, a quem devemos agradecimentos. Devemos especial
penhor de gratidão a Sebastião Milaré por ter colocado à nossa disposição partes de
sua pesquisa sobre Antunes Filho, ainda não publicada, bem como partilhado ideias
e comentários valiosos sobre a encenação de Trono de sangue/Macbeth.
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183
REFERÊNCIAS
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RAJEWSKY, Irina. “Intermediality, Intertextuality and Remediation: a Literary
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STAUNTON, Howard (ed.).The Globe Illustrated Shakespeare. The Complete Works.
Annotated. New York: Gramercy Books, 1972.
Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô). Direção de Akira Kurosowa. Tóquio: Kurosowa
films, 1960. DVD, 151 minutos, preto e branco.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. 1 – Máscaras tradicionais do teatro Noh e seus correspondentes em Trono de sangue.
Disponível em: http://thestuffyougottawatch.com/tblood.html.
Fig. 2 – Detalhes de figurino na tela. Disponível em: http://cantarapeledelontra.
blogspot.com/2010/02/galeria-akira-kurosawa-trono-manchado_26.html .
Fig. 3 – Detalhes de figurino no palco. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/
sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11.
Fig. 4 – Samantha Monteiro como a serpente traiçoeira. Disponível em: http://
stephenesherman.com/discussions/throne-of-blood.html.
Fig. 5 – Isuzu Yamada Sakaji-Lady Asaji, a Lady Macbeth de Kurosawa. Disponível
em: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11.
Fig. 6 – Habitações senhoriais. Imagem do filme. Disponível em: http://
stephenesherman.com/discussions/throne-of-blood.html.
Fig. 7 – Habitações senhoriais. Imagem da montagem. Disponível em: http://
www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11.
Fig. 8 – Imagem da velha fiandeira em Kurosawa. Disponível em: http://
www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11.
Fig. 9 – Imagem das três bruxas de Antunes. Disponível em: http://
www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11.
Fig. 10 – Cena final da derrota de Lord Washizu. Disponível em: http://
www.culturalprofiles.net/japan/Directories/Japan_Cultural_Profile/-13243.html.
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Liana de Camargo LEÃO
Pós-Doutora pela UFMG. Doutora em Literatura Comparada pela USP. Membro do
Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh) e da International Shakespeare Association
(ISA).
Mail Marques de AZEVEDO
Doutora em Estudos Linguísticos e literários em Inglês pela USP. Professora da UFPR
(aposentada). Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Artigo recebido em 31 de maio de 2011.
Aceito em 07 de julho de 2011.
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DA PINTURA AO TEXTO TEATRAL:
DISCURSOS INTERMIDIÁTICOS EM
QUANDO DESPERTARMOS DE ENTRE OS MORTOS,
DE HENRIK IBSEN
Anna Stegh Camati
[email protected]
Resumo: A produção literária de Henrik
Ibsen (1828-1906) foi uma das fontes de
inspiração do pintor simbolista Edvard
Munch (1863-1944), precursor da arte
expressionista. Por outro lado, diversas
peças de Ibsen incorporam marcadores
que remetem às artes plásticas. Em seu
epílogo dramático, Quando despertarmos de
entre os mortos (1899), o dramaturgo
norueguês se apropria de imagens
simbólicas do quadro Esfinge – Três
estágios da mulher (1894), de Munch, para
explorar a natureza contraditória das
personagens e a dinâmica das relações
afetivas entre elas. Nesse texto, de cunho
autobiográfico, Ibsen cria um alter-ego,
o escultor Arnold Rubek, com o intuito
de lançar luz sobre a sua própria procura
por linguagens para a representação do
novo sujeito da modernidade que emerge
no limiar do século XX. A linguagem
visual assume funções estético-temáticas
e torna-se o impulso gerador da criação
artística. Os discursos intermidiáticos e
ecfrásticos que permeiam a peça serão
discutidos à luz das considerações críticas
de Claus Clüver, Liliane Louvel, Peter
Wagner e outros.
Abstract: The literary output of Henrik
Ibsen (1828-1906) inspired the symbolist
painter Edvard Munch (1863-1944),
forerunner of expressionistic art.
Conversely, several plays by Ibsen include
markers that evoke the visual arts. In his
dramatic epilogue, When We Dead Awaken
(1899), the Norwegian playwright
appropriates symbolic images from the
painting Sphinx – Three Stages of Woman
(1894), by Munch, to explore the
contradictory nature of the characters and
the dynamics of their relationship. In this
text, which displays autobiographical
traces, Ibsen creates an alter-ego, the
sculptor Arnold Rubek, aiming at
highlighting his own search for strategies
to represent the new subject of
modernity emerging at the turn of the
20th century. Visual language assumes
aesthetic and thematic functions and
constitutes the generative impulse for
artistic creation. The intermedial and
ekphrastic discourses that permeate the
text will be discussed in the light of the
critical perspectives by Claus Clüver,
Liliane Louvel, Peter Wagner and others.
Palavras-chave: Henrik Ibsen. Nova subjetividade. Artes plásticas. Simbolismo.
Intermidialidade.
Key words: Henrik Ibsen. New subjectivity. Visual arts. Symbolism. Intermediality.
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RUBEK: Não tens uma idéia clara do que seja um
artista por dentro.
MAJA: (sorrindo e meneando a cabeça) Pois se nem
mesmo sei o que sou... vista por dentro, como dizes.
Henrik Ibsen
Introdução
Além de ser considerado o pai do drama moderno e ter renovado
as artes cênicas, Henrik Ibsen (1828-1906) foi apontado, por Malcolm
Bradbury (1989, p. 61), como sendo “o dramaturgo que, mais do que
qualquer outro escritor, dominou o início do movimento modernista”. Na
modernidade, a representação de diferentes formas de subjetivação tornase uma das principais fronteiras expressivas e, nesse sentido, Ibsen promove
uma reflexão sobre a nova subjetividade que aflora no limiar do século
XX. Com o intuito de revelar, no espaço da escritura dramática, a paisagem
interna das personagens que se deparam com anseios e desejos que, muitas
vezes, elas mesmas não compreendem, Ibsen se envolveu com todos os
movimentos artísticos de seu tempo, desde o simbolismo até o
expressionismo e surrealismo, cujos representantes investigavam as
profundezas da psique a partir de ideias difundidas por Kierkegaard,
Nietzsche e Freud.
Em sua fase simbolista (1890-1899), Ibsen explora a natureza
ambígua e contraditória da subjetividade humana por meio de referências
psicoanalíticas, pictóricas e míticas, destacando-se na representação de
aspectos difíceis de serem traduzidos em palavras. Nesse sentido, a linguagem
visual configura-se em importante subtexto para a revelação das
subjetividades das personagens.
Em sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos (1899),
Ibsen rompe totalmente com as convenções dramáticas da peça-bemconstruída ou peça de intriga, criando um drama inspirado em mitos gregos
e imagens simbólicas. A ação é substituída pela revelação das subjetividades
das personagens que “não são pessoas reais do mundo cotidiano”, mas
podem ser consideradas arquétipos ou “símbolos da visão poética do
dramaturgo” (MENEZES, 2006, p. 63), seres que tentam entender e nomear
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os afetos que os movem. A peça também pode ser lida como o retrato do
artista em sua desenfreada busca por novas linguagens para expressar o
novo Zeitgeist em efervescência na virada do século XX.
Este ensaio propõe-se a discutir as descrições ecfrásticas de duas
esculturas, enunciadas por Arnold Rubek, que aludem ao seu afastamento
da fase juvenil romântica para se tornar um artista moderno, e investigar a
produção de sentido gerada pela manipulação de referências pictóricas
simbolistas que remetem ao quadro de Edvard Munch, Esfinge – Três estágios
da mulher (1894), principalmente em relação às três personagens femininas
Irene, Maja e a Diaconisa e/ou às três fases da vida de Irene, a musa
inspiradora do escultor.
1 Considerações teóricas sobre as relações entre a literatura e a pintura
A comparação entre as artes se insere em uma longa tradição que,
segundo Platão, remontaria a Simônides de Ceos que empreendeu reflexões
sobre a maneira como as artes se relacionam ao sentido da visão ou da
audição. Esses postulados teóricos foram retomados por Horácio que, no
século I, em sua Epístola aos Pisãos, discute e compara as impressões visuais
e auditivas. O mote de Horácio, retomado pelos teóricos do Renascimento,
está na origem da doutrina do ut pictura poesis. Na frase de Horácio, ut pictura
poesis erit, “um poema existe tal como um quadro”, a pintura constitui o
referencial da comparação, sugerindo assim a superioridade da imagem
sobre a linguagem. Os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da
comparação: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo
comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem. A enunciação de
Horácio passou a ser entendida como ut poesis pictura, “a pintura é como
um poema”, e essa inversão de sentido prevaleceu e disseminou-se através
dos séculos até ser questionada e reconfigurada, no século XVIII, por
Gotthold Ephraim Lessing (LICHTENSTEIN, 2004, p. 9-11).
A mudança de entendimento da máxima de Horácio, por outro
lado, foi um dos meios que modificou o estatuto da pintura, conferindolhe a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja,
de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das
rivalidades, foram chamadas de artes irmãs, relacionadas em múltiplos
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189
aspectos: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a
narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos
revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN,
2004, p. 13).
A comparação entre as artes que, desde o início, se estabeleceu na
forma de uma controvérsia que discutia a superioridade da linguagem ou
da imagem, foi retomada sob perspectivas diferentes no século XVIII.
Em 1766, em Laokoon, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Lessing
propõe-se a discutir a poesia e a pintura, tomando como base a midialidade
específica dessas artes ao invés da estética, ou seja, a materialidade ou meio
físico, que é determinante no momento da criação, resultando em diferentes
modalidades representativas, podendo produzir ou não o mesmo efeito
(MOSER, 2007, p. 44-45). A teoria de Lessing sobre as diferentes
especificidades das duas artes, a espacialidade da pintura e a temporalidade
da literatura, lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de
intermidialidade.
Sabe-se, hoje, que a heterogeneidade, produzida no processo de
transmidialização, é inevitável por se tratar de mídias com especificidades
diferentes. Liliane Louvel, por exemplo, no ensaio “A descrição ‘pictural’:
por uma poética do iconotexto”, postula que no deslocamento de um
substrato narrativo, de um suporte para outro, a relação de identidade é
impossível, mesmo porque, nesse jogo intermidiático, toda espécie de
manipulação é permitida:
A relação de analogia não se reduz jamais a uma relação de identidade.
Estabeleçamos que uma descrição será dita ‘pictural’ quando a predominância
de ‘marcadores’ da picturalidade, aquilo que faz com que a imagem seja
artística, seja um artefato, seja irrefutável [...] Pelo menos, teremos uma
emulsão, jamais uma fusão total, seja um iconotexto. Haverá sempre um
traço, o vestígio de um no outro. [...] Falaremos de ‘tradução’ ou, antes, de
‘translação’, como a ação de passar de um lugar a outro, de uma linguagem
a outra, de um código semiológico a outro. Tratar-se-á de observar os modos
de funcionamento desta ‘translação’, de recuperar os traços de
heterogeneidade causada pela presença de um medium estranho no medium
suporte, graças a marcadores textuais. (LOUVEL, 2006, p. 195-96)
Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011
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A definição restritiva de ecfrase1, que nasceu sob os auspícios do ut
pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade
e teve seu âmbito ampliado. Laura M. Sager Eidt, em Writing and Filming the
Painting: Ekphrasis in Literature and Film, investiga o tratamento ecfrástico
ao qual são submetidos quadros específicos em diversos textos narrativos e
filmes, ressaltando que “enquanto a tradição restringia a ecfrase a poemas
que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito
e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o
ensaio” (EIDT, 2008, p. 9, minha tradução)2, além do cinema, o objeto de
estudo da pesquisadora na obra mencionada.
Em um ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal
Representations of Non-Verbal Texts”, Claus Clüver também se manifesta
a favor da expansão do conceito de ecfrase, quando inclui em seu âmbito
não apenas textos visuais que abarcam as artes plásticas, mas também textos
não visuais como danças e composições musicais. Em seu conceito ampliado,
Clüver não faz distinção entre obras de arte reais ou imaginárias, postulando
que as verbalizações de textos visuais completamente fictícios e/ou não
identificados pelos críticos, mas passíveis de existir, são tão válidas quanto
aquelas baseadas em textualidades de existência comprovada (CLÜVER,
2009, p. 26)3.
2 O diálogo intermidiático entre o quadro de Munch e a peça de
Ibsen
As relações dialógicas entre a arte simbolista do pintor norueguês
Edvard Munch e a dramaturgia de Henrik Ibsen têm sido objeto de muita
especulação e controvérsia. Sem dúvida, o universo imaginativo de Ibsen
foi uma das principais fontes de inspiração de Munch na produção de mais
de 500 gravuras, desenhos e pinturas que podem ser consideradas leituras
das peças de Ibsen ou ilustrações de cenários para montagens, como os
desenhos de Peer Gynt, as pinturas a óleo de Fantasmas e John Gabriel Borkman,
dentre outros. Por outro lado, o predomínio da linguagem visual que se
configura em importante subtexto para a revelação das subjetividades, e a
inserção de personagens pintores e escultores na tessitura dramática, atestam
o pendor de Ibsen pelas artes plásticas.
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No entanto, há divergências a respeito da suposta influência direta
do quadro Esfinge – Três estágios da mulher (1894), de Munch, sobre Quando
despertarmos de entre os mortos (1899), a última obra escrita por Ibsen. Sobre
essa questão, a opinião da crítica se divide em vozes contraditórias. Enquanto
Daniel Haakonsen (citado em LANGSLET, 2007) acredita que Ibsen se
inspirou na pintura de Munch, porque há diversas correspondências entre o
quadro e a peça, Joan Templeton (2000) argumenta tratar-se de um mito
nascido de conjeturas diversas geradas a partir de afirmações de Munch.
Vale mencionar que Munch não escondia sua predileção por
motivos literários – sua representação pictórica do amor, do sentido da
vida e da morte tem parentesco não somente com Ibsen, mas também
com o ideário estético de Maurice Maeterlinck (1862-1949), expoente do
movimento simbolista francês. A água, por exemplo, símbolo recorrente
utilizado por Munch na representação das mulheres e do amor, apresenta
ligações misteriosas com as heroínas Rebecca West (Rosmersholm – 1886) e
Ellida (A dama do mar – 1888) de Ibsen, e com Mélisande (Pélleas et Mélisande
– 1892), de Maeterlinck (PRIDEAUX, 2007, p. 159).
Segundo Munch, a pintura Esfinge – Três estágios da mulher, cujo título
alude à natureza misteriosa do feminino e faz parte de um conjunto de
quadros denominado Frisa da vida (Frieze of Life)4, exerceu particular fascínio
sobre Ibsen, quando este último visitou uma das exposições do pintor em
Cristiania, onde teria se demorado longamente na contemplação dessa obra.
Na ocasião, Munch teria feito breves comentários sobre as referências
simbólicas tematizadas no quadro, tais como: a mulher com vestes escuras
entre as árvores é a freira, ou seja, uma sombra de mulher que representa a
dor e a morte; a mulher nua é a encarnação da alegria de viver e, ao lado
delas, a mulher loira, de cabelos longos, vestida de branco que caminha em
direção ao mar é a virgem, a mulher cheia de sonhos. Na extrema direita,
quase encoberto pelos troncos das árvores, se encontra um homem perplexo
e em estado de sofrimento por sua incapacidade de compreender as mulheres
(PRIDEAUX, 2007, p. 158).
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Fig. 1 – Esfinge – Três estágios da mulher (1894)5
Munch tinha convicção de que Ibsen inspirou-se nessa pintura (Fig. 1)
para a criação das três personagens femininas de sua última peça: Irene,
vestida de branco, sonhando com o amor; Maja, a mulher sensual que
representa as pulsões e os desejos; e a Diaconisa, uma espécie de sombra
de Irene, vestida de preto e silenciosa.
Acredito, no entanto, que o simbolismo evocado no quadro de
Munch, transcriado na peça de Ibsen, também pode ser lido como uma
representação de três fases da vida da mesma mulher, ou seja: Irene,
apaixonada e sonhadora na primeira fase, quando posou como modelo
para Rubek; desiludida e revoltada, entregando seu corpo a muitos homens
na segunda fase; e uma sombra ou morta-viva na terceira fase, quando
reencontra o escultor que não consegue compreender o discurso enigmático
de sua musa inspiradora.
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3 A representação do artista em busca de novas linguagens
Em seu epílogo dramático, Ibsen cria uma espécie de alter-ego, o
escultor Arnold Rubek que após ter vivido muitos anos no exílio, retorna à
Noruega, onde passa o verão em uma estação balneária com sua esposa
Maja, uma mulher que não o satisfaz por não ter sensibilidade artística.
Quando Rubek a acusa de ser incapaz de ter “uma idéia clara do que seja
um artista por dentro” (IBSEN, s/d, p. 428), Maja, com espantosa lucidez,
responde não ter clareza nem mesmo sobre seus próprios sentimentos e
afetos, conforme diálogo transcrito em epígrafe.
Apesar da fama e do sucesso alcançado, Rubek sente uma enorme
frustração. Chega à conclusão que, ao abrir mão do amor e da vida, acabou
traindo a sua arte. Imbuído do sentimento trágico de ter sacrificado tudo
em nome de um ideal, reencontra Irene, a mulher que lhe serviu de modelo
e inspiração para a criação de uma escultura que batizou de O dia da
ressurreição, considerada uma obra prima pelos críticos. Após a conclusão
desse trabalho, Irene se afasta de Rubek por não sentir-se correspondida
em sua afeição que havia nascido ao desnudar o corpo e a alma para ele. A
partir da ausência de Irene, Rubek se desespera, porque acredita ter perdido
seu dom, a criatividade artística.
Quando Rubek reencontra Irene na estação balneária, ela o acusa
de ter roubado sua alma e sugado sua energia vital. Argumenta que as
palavras proferidas pelo escultor ao término de sua obra prima, “Obrigado!
Irene. Do fundo do coração, obrigado! Isso foi, para mim, um episódio
bendito” (IBSEN, s/d, p. 434), foram fatais para ela: a partir desse momento
tornou-se uma morta-viva.
Rubek tenta justificar-se; relata que seu idealismo juvenil não permitiu
que se envolvesse fisicamente com ela – ele temia profanar a sua arte:
RUBEK: Eu era artista, Irene. [...] Artista antes de tudo... Doente pelo
desejo de criar a grande obra de minha vida... (Mergulha nas próprias
recordações.) Devia chamar-se “O Dia da Ressurreição” e revestir o aspecto
de uma mulher moça que desperta do sono da morte. [...] E essa mulher
que se despertava devia reunir em si tudo que há de nobre, de altivo, de ideal
sobre a terra... Encontrei-te. Tinhas tudo do que precisava. E te prestaste
tão completamente, tão alegremente às minhas intenções! E abandonaste a
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família, o lar, para seguir-me! [...] Era exatamente isso que te tornava tão
preciosa para mim... Preciosa e única!... A meus olhos te tornaste uma
criatura sagrada que não se devia tocar, nem de leve a não ser pelo
pensamento... e com unção. Nesse tempo, eu era moço Irene. E habitavame a idéia supersticiosa de que o menor desejo sensual que sentisse por ti,
profanaria minha alma e me impediria alcançar o fim sonhado... [...] Graças
a ti, Irene!... Sim. Realizei meu ideal. Eu queria criar a mulher pura, tal como
ela devia despertar no dia da Ressurreição; não intranqüila pelo
pressentimento de coisas novas, imprecisas, desconhecidas... mas serena...
depois de um longo sono sem sonhos, na santa alegria de tornar a encontrarse em sua pureza original. [...] não eras um modelo para mim: eras a própria
fonte da minha criação. (IBSEN, s/d, p. 421)
As falas de Rubek, transcritas acima, são descrições ecfrásticas. Em
termos de construtividade textual, trata-se de uma escultura fictícia imaginada
por Ibsen, inspirada (ou não) na figura da mulher virgem do quadro de
Munch.
No segundo ato da peça, quando encontra Irene perto de uma
fonte e ela quer saber mais detalhes sobre como estaria representada na
escultura, Rubek, após uma breve rememoração de seu ideal romântico,
inicia uma descrição ecfrástica de como, a partir de uma nova ótica e novas
impressões a respeito da vida, transformou O dia da ressurreição em uma
obra de arte moderna:
RUBEK: Eu era moço, ignorava a vida, pensava que não se pudesse dar à
Ressurreição uma aparência mais bela, mais radiosa do que a de uma moça
intacta – Virgem das coisas da Terra – despertando para a luz, para a alegria
triunfal, sem ter de despojar-se de qualquer fealdade, de qualquer impureza
que fosse.
IRENE: (com vivacidade) Sim...? E é assim que eu apareço na nossa obra?
RUBEK: (hesitante) Não completamente, Irene. [...] Aprendi a conhecer a
vida durante os anos que se seguiram à tua partida, Irene. “O Dia da
Ressurreição” tornou-se, no meu espírito, uma coisa mais... complicada. O
pequeno pedestal sobre o qual se erguia a tua imagem esbelta e solitária, esse
pedestal não bastava mais para sustentar o meu novo sonho. [...] Era um
sonho feito do que me impressionava os olhos, no mundo que me cercava.
Eu precisava, Irene, introduzir essas impressões na minha obra. Não podia
me abster disso... Amplei o pedestal. Ficou com uma vasta superfície, sobre
a qual coloquei um fragmento do globo, inflado e entreabrindo-se. Pelas
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fissuras dessa terra em gestação, vêem-se agora surgir miríades de seres,
homens e mulheres, com feições de animais dissimuladas por trás das
máscaras, tais como a vida me as havia mostrado. (IBSEN, s/d, p. 432-433)
Quando Irene indaga que lugar a sua figura ocupou nessa
trasformação da escultura, ele confessa que ficou convencido da necessidade
de deslocar a imagem da “virgem imaculada” do centro, em virtude do
efeito de conjunto, e que ela havia se tornado uma espécie de “figura
intermediária”. Diante da decepção de Irene, Rubek revela como idealizou
a representação de si mesmo:
[...] Mas ouve, como eu me representei, a mim mesmo, no grupo. No
primeiro plano está um homem sentado junto a uma fonte como estou
neste momento: curvado ao peso de uma falta, não se pode desprender da
crosta terrestre. Chamo esta figura “Arrependimento de uma vida destruída”.
Ele alí está, mergulhando os dedos na água que corre, a fim de lavar a
nódoa... torturado pela certeza de que jamais o conseguirá. E a eternidade
vai passando sem que ele atinja plenamente a ressurreição, sem que se possa
desprender do inferno onde está fixado. (IBSEN, s/d, p. 433)
O conjunto de falas de Rubek, transcritas acima, evidenciam o
tratamento ecfrástico que Ibsen utilizou em seu texto para representar
verbalmente duas esculturas fictícias que ilustram a transformação da
escultura de Rubek, inicialmente de configuração romântica, em uma obra
de arte moderna. Este aspecto temático levou muitos críticos a lerem a
peça como uma reflexão autobiográfica de Ibsen sobre sua própria
produção artística que também passa por fases diversas: do romantismo
juvenil ao realismo e simbolismo.
Considerações finais
Inúmeras técnicas são utilizadas na mediação de substratos narrativos
de uma mídia para outra. O empréstimo de motivos, códigos e convenções
das artes plásticas para fins temáticos e estéticos em textos literários (poesia,
ficção, drama, etc.) é uma prática recorrente que constitui importante impulso
gerador para a caracterização de personagens, descrição da ambientação,
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196
configuração da narrativa, dentre outros. Evidentemente, nesse processo
de inserção pictural, o texto verbal assume diferentes contornos e feições,
visto que toda espécie de transformação e manipulação é permitida,
conforme postulam Clüver, Louvel e outros críticos.
O texto Quando despertarmos de entre os mortos, de Ibsen, enriquecido
com descrições de duas esculturas que, apesar de fictícias, podem ser
consideradas ecfrásticas, no entanto, não é uma construção ecfrástica se
examinado como um todo, ou seja, não é uma descrição ou representação
do quadro de Munch por meio de signos verbais. Trata-se de um processo
de apropriação e reconfiguração da temática simbolista do quadro Esfinge
– Três estágios da mulher, utilizada como matéria ou substrato para a
representação das três mulheres ou para a criação de Irene em três fases de
sua vida ou, ainda, para a caracterização de Rubek que não consegue
compreender as atitudes enigmáticas das mulheres. Como argumenta Claus
Clüver, para detectar a permutação de ideias ou motivos (Stoff) de uma
mídia para outra, é preciso que o leitor esteja familiarizado com o modelo,
caso contrário as referências intermidiáticas não serão detectadas (CLÜVER,
2006, p. 142-143).
Evidentemente, não podemos saber se Ibsen de fato inspirou-se
no quadro do jovem pintor norueguês para criar as personagens femininas
e suas relações com o escultor Rubek em sua última peça. Sabemos que, na
juventude, o dramaturgo visitou inúmeras galerias de arte em suas andanças
pela Europa, porque ambicionava tornar-se um pintor e que o rico
simbolismo que permeia seus textos evidencia sua familiaridade com as
artes plásticas. No entanto, em face da profusão de marcadores picturais
que remetem a esse quadro específico de Munch, encontrados na
caracterização das mulheres ou, segundo a minha leitura, na representação
de Irene em diversas fases de sua vida, é válido considerar ambas as hipóteses
dignas de nota – a que afirma e a que nega a influência de Munch sobre
Ibsen.
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Notas
Segundo Peter Wagner, ecfrase é um recurso poético ou retórico antigo que está
sendo retomado e redefinido pelos críticos da contemporaneidade. O vocábulo é
formado pelo prefixo “ek” ou “ec” que significa “originário de” ou “dentre”, e a raiz
phrasis, um sinônimo do grego lexis ou hermeneia, e do latim dictio e elocutio (o verbo
phrazein significa “contar, declarar, pronunciar”). Originariamente, o termo significava
“uma descrição completa e vívida” e apareceu, pela primeira vez, nos escritos retóricos
atribuídos a Dionísio de Halicarnasso, tornando-se, em seguida, um exercício retórico
praticado nas escolas (WAGNER, 1996, p. 11-12, minha tradução).
1
Na versão em inglês: “Whereas traditionally ekphrasis was confined to poems that
describe or analyze works of art, it is now generally accepted and used as a term that
applies to all literary genres, that is, novel, drama, as well as essay”.
2
Dois dos mais famosos exemplos de ecfrase literária que descreve objetos fictícios
ou pinturas imaginárias são a descrição do escudo de Aquiles, no 18º livro da Ilíada e
o retrato metamórfico de Dorian Gray, da obra ficcional de Oscar Wilde, intitulada O
retrato de Dorian Gray.
3
Na última década do século XIX, Munch pintou uma série de quadros com motivos
recorrentes, tais como representações da vida, do amor e da morte, ou seja, múltiplos
olhares sobre os mesmos temas à maneira das frisas pintadas nas paredes de antigos
templos e palácios.
4
Disponível em: < http://www.abcgallery.com/M/munch/munch29.html> Acesso
em: 6 maio 2011.
5
REFERÊNCIAS
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Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans; HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics:
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EIDT, Laura M. Sager. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and
Film. Amsterdam and New York, Rodopi, 2008.
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Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo: Ediouro, s.d., p. 409-444.
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paralelo entre as artes. Vol. 7. Coordenação da trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora
34, 2005, p. 9-16.
LOUVEL, Liliane. A descrição ‘pictural’: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX,
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MENEZES, Tereza. Ibsen e o novo sujeito da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade.
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PRIDEAUX, Sue. Edvard Munch: Behind the Scream. New Haven: Yale University
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TEMPLETON, Joan. The Munch-Ibsen Connection: Exposing a Critical Myth (2000).
Disponível em: http://depts.washington.edu/scand/isa/review/138/The_MunchIbsen_Connection_Exposing_a_Critical_Myth. Acesso em: 06 maio 2011.
Anna Stegh CAMATI
Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Língua
Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora Titular do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Editora da
revista Scripta Uniandrade.
Artigo recebido em 31 de maio de 2011.
Aceito em 30 de junho de 2011.
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DOSSIÊS TEMÁTICOS DAS PRÓXIMAS EDIÇÕES
2012, v. 10, n. 1: Escrituras femininas brasileiras
2012, v. 10, n. 2: Escrituras femininas de expressão inglesa
2013, v. 11, n. 1: Representações do sujeito pós-moderno
2013, v. 11, n. 2: Representações de alteridades
2014, v. 12, n. 1: Textualidades memorialísticas
2014, v. 12, n. 2: Releituras contemporâneas do gótico
Datas de submissão de trabalhos
número 1: 30 de maio
número 2: 30 de setembro
Endereços eletrônicos para envio de trabalhos
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Endereço para correspondência
Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
Cidade Universitária
Mestrado em Teoria Literária
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depois da conclusão do texto.
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Acesso em: 21 set. 2006.
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