communicare - Faculdade Cásper Líbero

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communicare - Faculdade Cásper Líbero
Revista do Centro Interdisciplinar de Pesquisa — Faculdade Cásper Líbero
Faculdade Cásper Líbero
Av. Paulista, 900 - 6º Andar
01310-940 - São Paulo (SP) - Brasil
Tel.: (0xx11) 3170-5878
[email protected]
revista communicare
Centro Interdisciplinar de Pesquisa — Faculdade Cásper Líbero
Volume 11 – Edição 1 – 1º Semestre de 2011
communicare
Nesta edição:
Entrevista com Ignácio Ramonet • Cadernos de
1844: crítica originária de Marx à economia política • Estudo
da telenovela brasileira: questões de método • Emissoras
e teles: esferas de disputa de um terreno convergente •
Pesquisa qualitativa – caminho para uma análise complexa
da comunicação organizacional • Dossiê Comunicação e
política na era digital • Entrevista com Lourival Sant’anna
• Fatodifusores digitais e os novos modos de produção
jornalística • Capital, habitus e as redes no ciberespaço •
Volume 11
Edição 1
Iniciação Científica • Da leitura crítica dos meios de
1º Semestre de 2011
a influência no Twitter • Resenhas • Webjornalismo - Magaly
ISSN 1676-3475
www.casperlibero.edu.br
comunicação à Educomunicação no Brasil • A popularidade e
Prado • The big picture: money and power in Hollywood
- Edward Jay Epstein • Relações Públicas Estratégicas:
Técnicas, conceitos e instrumentos - Luiz Alberto de Farias
revista
communicare
Volume 11 – Edição 1
1º Semestre de 2011
ISSN 1676-3475
www.facasper.com.br/cip
revista
communicare
Faculdade Cásper Líbero
Fundação Cásper Líbero
Presidente da Fundação Cásper Líbero: Paulo Camarda
Superintendente Geral: Sérgio Felipe dos Santos
Diretor da Faculdade: Tereza Cristina Vitali
Vice-Diretor: Welington Andrade
Centro Interdisciplinar de Pesquisa
Coordenadora Geral do CIP: Maria Goreti Juvencio Sobrinho
Monitoria do CIP: Avana França Salles, Gabriela Soutello Mendonça Ferreira e Maria Cortez Salviano.
Revista Communicare
Faculdade Cásper Líbero
Editora: Maria Goreti Juvencio Sobrinho
Conselho Consultivo:
Adriano Duarte Rodrigues (Universidade Nova de Lisboa), Alessandra Meleiro (UFF e CEBRAP), Alfredo Dias D’Almeida (FAPSP),
Ana Maria Camargo Figueiredo (PUC-SP), Beatriz Dornelles (PUC-RS), Claudia Braga (UFSJ/UNICAMP), Cláudio Novaes Pinto
Coelho (FCL), Cristiano Ferraz (UFPE), Dimas Antonio Künsch (FCL), Eneus Trindade (USP), Ernani Ferraz (PUC-Rio), Ivone
Lourdes de Oliveira (PUC-MG), Joana Puntel (Sepac), João Alegria (PUC-Rio), Liana Gottlieb (FCL), Lucilene Cury (USP), Luiz
Carlos Assis Iasbeck (UPIS-DF e UCB-DF), Magda Rodrigues da Cunha (PUC-RS), Manuel Dutra (UFPA), Marcus Bastos (PUCSP), Maria Aparecida Baccega (USP e ESPM), Maria Helena Weber (UFGRS), Mauro de Souza Ventura (UNESP), Monica Mata
Machado de Castro (UFMG), Monica Rebecca Nunes (FAAP), Roseli Fígaro (USP), Sueli Galego de Carvalho (MACK) Teresinha
Maria de Carvalho Cruz Pires (PUC-MG), Umberto de Andrade (UNIFESP), Walter Lima (FCL) e Wilson da Costa Bueno (UMESP).
Communicare: revista de pesquisa / Centro Interdisciplinar de Pesquisa,
Faculdade Cásper Líbero. —
v. 11, nº1 (2011). — São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2011.
Semestral
ISSN 1976-3475
1. Comunicação social periódicos I. Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade
Cásper Líbero
CDD 302.2
Pesquisadores do CIP que colaboraram para a esta edição:
Bruno Hingst, Caio Dib, Daniela Osvald Ramos, Else Lemos Inácio Pereira, Gilberto Maringoni de Oliveira, Igor Fuser, Liráucio
Girardi Jr, Mariana Pascutti, Maurício Marra, Pedro Ortiz, Rodrigo Esteves de Lima Lopes e Sônia Breitenwieser Castino.
Professores e pesquisadores que colaboraram como pareceristas ad hoc desta edição:
Ninho Moraes (FCL) e Sandro Assêncio (FSA, ECA).
Comissão Editorial desta edição:
Versão para o inglês: Rodrigo Esteves de Lima Lopes.
Versão para o espanhol: Antón Castro Míguez e Avana Salles.
Revisão: Else Lemos Inácio Pereira e Sônia Breitenwieser Castino.
Projeto gráfico: Danilo Braga
Arte e Editoração: Núcleo Editorial Cásper Líbero / Renan Goulart, Petrus Lee e Mariana Alves
Tiragem: 1.000 exemplares.
Redação
Faculdade Cásper Líbero
Av. Paulista, 900 - 6º andar - São Paulo - SP - CEP: 01310-940
Telefax: (11) 3170-5878
E-mail: [email protected] / [email protected]
www.casperlibero.edu.br
Pesquisadores do Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) e projetos
em desenvolvimento durante 2011
Pesquisadores docentes
Pesquisadores discentes
Andréa Florentino Barletta
O não dito nas imagens da campanha presidencial de 2010
- Um estudo dos veículos Carta Capital e Veja durante a
campanha política
Magaly Parreira do Prado
Publicidade no Rádio – Mapeamento e investigação do
processo de produção e criação das peças de áudio comerciais
Bruno Hingst
Um panorama da trajetória do filme de gênero histórico
no Brasil
Mauricio Luis Marra
Crise de Confiança: as Relações Públicas (re)construindo
imagem e reputação no mercado de capitais e nas relações
com investidores
Daniela Osvald Ramos
Portal da Faculdade Cásper Líbero: Gestão de Conteúdo
Digital
Newton Duarte Molon
Eleições presidenciais de 2010 e as novas mídias
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Dirce Escaramai da Silva
Correlações entre a tipologia psicológica do aluno de graduação em Relações Públicas e as exigências do mercado
de trabalho
Contemporâneo
Pedro Henrique Falco Ortiz
Documentário telejornalismo – interações e diálogos possíveis nas narrativas das grandes reportagens para a TV
Else Lemos Inácio Pereira
Faculdade Cásper Líbero e o professor do futuro: Estudo
sobre a formação inicial do professor para cursos de graduação em comunicação.
Ethel Shiraishi Pereira
Megaeventos esportivos no Brasil e seu comprometimento com a sustentabilidade
Genilda Alves de Sousa
A Publicação dos resultados de pesquisas eleitorais e sua
influência na intenção de voto para as eleições presidenciais de 2010
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Gilberto Maringoni de Oliveira
Comunicações na América Latina: avanço técnico, difusão e concentração de capital (1870-2010) 2ª. Parte
Igor Fuser
Os movimentos sociais em favor da “democratização dos
meios de comunicação”: atores, objetivos e estratégias.
Irineu Guerrini Junior
A obra do Túlio de Lemos no rádio paulista: consciência
social e refinamento estético
Liráucio Girardi Junior
A política de rede/política em rede (contribuições para a
construção de um observatório de mídias sociais)
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Rodrigo Esteves de Lima Lopes
A questão da multimodalidade em vídeos distribuídos via
internet.
Sabina Reggiani Anzuategui
Teatro, telenovela, política: 1969-1980
Sandra Lucia Goulart
O Tema das Drogas na Mídia Escrita Brasileira
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Sonia Breitenwieser A. S. Castino
A literatura brasileira vista pela imprensa alemã
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Felipe Bianchi
Controle, poder e democracia na sociedade informacional
Pedro Veríssimo Fernandes
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Isabella Carrera Alves
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Talles Braga
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Isabella Maria dos Santos Oliveira Rosa
Editores de Imagem no Fotojornalismo: A influência do
Photoshop na mídia
Talula Silva Mel
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Jeferson Ulir Hirt
Saia Justa, mas do tamanho ideal: estudo acerca do perfil
do público do programa Saia Justa
Letícia Dongo
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Lucas Campacci
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Lucas Lazarini Reginato
Observatório de Mídia Cásper Líbero
Luis Felipe da Silva
A homogeneização dos portais de internet no Brasil
Marcela Aparecida de Marcos
SARAVIRTUAR: A contribuição das Redes Sociais para a
Umbanda
Natália Alves
A Produção Cultural da TV Pública: uma análise da
programação jovem da TV Cultura de São Paulo
Paulo Barros do Bem
Desterritorialização da informação: computação em
nuvem e a nuvem pública
Pedro Debs
O campo da Educomunicação no Brasil e sua configuração
no ciberespaço
Sumário
8
16
Apresentação: Editorial
Maria Goreti Juvencio Sobrinho
Entrevista: Ignácio Ramonet
Daniela Osvald Ramos e Igor Fuser
Artigos
Comunicação, tecnologia e política
27
Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à
economia política
Ivan Cotrim
Dossiê
Comunicação e política na era digital
Entrevista: Lourival Sant’Anna Ecossistema de mídias na primavera digital
Daniela Osvald Ramos
85
Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
95
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
Liráucio Girardi Jr
113
Iniciação Científica
Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
127
A popularidade e a influência no Twitter
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
143
Comunicação, meios e mensagens
45
Estudo da telenovela brasileira:
questões de método
Sabina Reggiani Anzuategui
Comunicação e Mercado
57
71
Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
Chalini T. Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rosetto
Pesquisa qualitativa – caminho para uma análise complexa da
comunicação organizacional
Marlene Sólio
Resenhas
Jornalismo Mutante
Webjornalismo
Daniela Osvald Ramos
161
O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood
The big picture: money and power in Hollywood
Bruno Hingst
165
Relações Públicas Estratégicas
Técnicas, conceitos e instrumentos
Maurício Luis Marra
169
Maria Goreti Juvencio Sobrinho
Apresentação
Comunicação e política na era digital e os novos
desafios para o mundo acadêmico
Editorial
Maria Goreti Juvencio Sobrinho
Docente e Coordenadora Geral do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero e
doutoranda no curso de Ciências Sociais da PUC/SP.
Pioneira no ensino de jornalismo na América Latina e tradicional na área da Comunicação, no Brasil, a Faculdade Cásper Líbero vem se notabilizando pela promoção
da excelência acadêmica, ao fomentar, desde 2001, o Centro Interdisciplinar de Pesquisa, CIP, voltado para a produção científica e interlocução dos professores e alunos dos
cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Rádio e TV. Ao
longo desses dez anos, os pesquisadores docentes e discentes do CIP têm desenvolvido
seus projetos de pesquisa em diversos campos da comunicação e áreas afins; promovido, ao lado dos programas de pós-graduação e mestrado da Instituição, os Fóruns de
Pesquisa Cásper Líbero; organizado Mesas Redondas em torno de temas candentes da
realidade nacional e Oficinas de Iniciação Científica que estimulam o corpo discente a
trilhar o caminho da pesquisa científica. Durante o último biênio, o CIP empreendeu
atividades de pesquisa que resultarão, em breve, na criação do Observatório de Mídia
Cásper Líbero.
Com esta edição, a Revista Communicare também completa dez anos de existência, como um dos principais veículos de difusão das pesquisas desenvolvidas no Centro
Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero e como espaço de diálogo com
os pesquisadores das demais instituições de ensino.
A busca do aperfeiçoamento e consolidação desse espaço de pesquisa deve ser
uma constante, a fim de evitar o caminho do alheamento da vida social que tem trilhado
a maioria das universidades privadas no país.
Como foi assinalado em outros momentos1, é preciso levar em conta as vicissitudes por que passa o capitalismo mundial e, especialmente, o brasileiro, que, notadamente nos últimos vinte anos, atravessa uma intensa e contraditória internacionalização
de suas formas de existência, renovando seus padrões de produção e de consumo e
mesmo o seu patrimônio cultural e científico; renovação essa que, todavia, mostra-se
insuficiente ante a concorrência global e a ampliação das carências sociais. Nesse período, a educação superior no Brasil passou por grandes transformações que resultaram,
basicamente, em dois modelos institucionais: um voltado para ensino de massa e outro
voltado para a educação com excelência na qualidade. A necessidade imperiosa para o
futuro das instituições de ensino no país é a da renovação com qualidade, que pressupõe
investimentos na qualificação docente e discente. A opção por investimento em pesquisa científica não é, portanto, do ponto de vista institucional, uma escolha de natureza
1. Conforme Editorial da coordenação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa, de fevereiro de 2009 e artigo
de coautoria, COELHO, C. Juvencio Sobrinho, M. G. “O Fórum de Pesquisa Cásper Líbero e os Desafios da
Pesquisa em Comunicação na Era do Capitalismo Global”, Líbero (FACASPER), v. XIII, p. 9-20, 2010.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
09
Apresentação: Editorial
ética e moral apenas. Trata-se de um imperativo para a sobrevivência dessas instituições
no cenário global.
Todavia, os desafios e imposições sociais para o mundo acadêmico não são somente esses. O recrudescimento do movimento contraditório da globalização do capital, a recente crise de acumulação mundial, os levantes e movimentos sociais no Oriente
Médio, Europa, América Latina, entre outros, atestam a urgência de empreender, rigorosamente, o saber do mundo e o saber de si.2
Sob a lógica da globalização do capital, força esta propulsora e contraditória do
desenvolvimento histórico dos últimos seis séculos, assiste-se à universalização da exclusão social e, ao mesmo tempo, o aumento da potência do trabalho, objetivada no
inaudito desenvolvimento das forças produtivas (sinônimo da capacidade humana de
objetivação material do mundo e plataforma para produção de si) demonstradas, por
exemplo, nas múltiplas potencialidades da tecnologia digital e da cultura de rede, exploradas recentemente pelos movimentos de jovens e de outros agrupamentos nas praças
de Trípoli, Londres, Damasco, Cairo, Atenas, Tel-Aviv, Madri, Santiago. A apreensão
das determinações e alcances desses movimentos em curso apenas começou; a sua efetivação dependerá, evidentemente, da maturação desses processos, em cada situação
específica, como também dos instrumentais teóricos utilizados para a empreitada, porém, desde já, aflora o fato de que jamais estiveram disponíveis, para os homens, tantas
formas de conexão com o mundo. Não se trata de atribuir a determinação desses movimentos às novas tecnologias da comunicação, tampouco abstraí-las da complexidade
do que está em jogo. Todos esses movimentos expressam, de alguma maneira, a lógica
da globalização do capital; e a multiplicidade de formas de conexão com o mundo permite o compartilhamento das ideias que se formam em meio às experiências reais e
específicas dessa tendência mundial.3
Alguns aspectos desse ambiente contraditório da comunicação e da política na era
digital, o qual, inclusive, é tema do pequeno dossiê desta edição, são abordados ou, ao
menos, tangenciados por boa parte dos artigos e entrevistas das seções que compõem a
presente publicação, ainda que guiados por diferentes preocupações e examinados sob
ângulos de análise diversos.
A partir da edição 9.2, em 2009, a Revista Communicare iniciou a construção de
um novo projeto gráfico e também editorial, cujos norteamentos foram delineados no
editorial da edição 10.1. Foi criada a seção Dossiê, a fim de estimular a ampliação do
campo de reflexão da Comunicação, abordando temas específicos de diversas áreas do
conhecimento.
A presente edição dá continuidade a esse processo de reformulação, ao lançar
2. Chasin, J. Poder e miséria do homem contemporâneo, 1999.
3. Como assinalou a socióloga Saskia Sassen, em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo,
13/8/11.
10
Revista Communicare
Maria Goreti Juvencio Sobrinho
mais uma seção, Iniciação científica, especialmente voltada para a publicação das pesquisas discentes desenvolvidas no âmbito do CIP.
Em entrevista publicada na abertura desta edição, o ex-diretor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, detentor de larga experiência jornalística e como militante,
revela alguns resultados de suas recentes pesquisas acerca do impacto das novas tecnologias da comunicação sobre o jornalismo e fala sobre a emergência de uma nova imprensa,
que, a seus olhos, dá passos importantes para a construção de um “quinto poder”.
A redução do número de jornais no mundo, a migração dos sobreviventes para a
internet, que, por sua vez, não forneceu, conforme Ramonet, “nenhum modelo econômico rentável”, e outras tendências da sociedade fizeram com que surgisse uma imprensa que pode produzir “informação de grande qualidade, sem depender demasiadamente
da publicidade, porque pode viver da contribuição dos cidadãos”, como atesta a experiência norte-americana, sem fins lucrativos, ProPublica. Segundo o jornalista, há várias
experiências desse gênero sinalizando que, diferentemente dos anos noventa, em que
mesmo a internet estava sob o jugo dos grandes grupos midiáticos, começa a emergir
uma nova realidade no campo da comunicação e da sociedade, posto que houve uma
implosão da tecnologia digital num movimento caracterizado, por ele, de “enxame de
informação”. Essas e outras experiências, não somente no campo da comunicação, chamam especialmente atenção por estarem diretamente relacionadas ao novo patamar de
desenvolvimento das forças produtivas e às novas relações e atividades humanas correlatas, e parecem reforçar a ideia de que estamos diante de um saber e de formas de sua
apropriação que prescindem da mediação produtiva da propriedade privada. Formas
de apropriações sociais da riqueza social que seguem em contradição com as relações
sociais mediadas pela propriedade privada.
Ao estimular a ampliação da reflexão no campo da comunicação, abrindo espaço
para as diferentes vertentes do pensamento social, da comunicação e de áreas afins, o
artigo da seção Comunicação, tecnologia e Política, de Ivan Cotrim, “Cadernos de 1844:
crítica originária de Marx à economia política”, traz à tona um texto marxiano pouco
pesquisado e, dessa forma, colabora para a apreensão de um pensador que muitas vezes
é evocado no campo da comunicação por meio da chamada Escola de Frankfurt.
Na seção Comunicação, meios e mensagens, Sabina Anzuategui detecta vários
óbices quando se busca empreender uma investigação das telenovelas brasileiras, em
especial as chamadas produções alternativas ou experimentais da década de setenta, a
exemplo de “O grito”, de Jorge Andrade. Um dos graves problemas com que a autora se
depara, e que passou ao largo em boa parte das publicações que tentaram historiar o
tema, é a ausência de uma análise propriamente do objeto telenovelas, pois poucos estudos, diz Anzuategui, “passaram à etapa de análise do objeto, imprescindível para o estudo de um trabalho audiovisual: observação, descrição e compreensão da obra em sua
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11
Apresentação: Editorial
materialidade (texto, som e imagem)”. Todavia, como informa a autora, os pesquisadores
preocupados com essa questão se deparam com a dificuldade, entre outras, de acesso aos
arquivos do conteúdo completo das telenovelas pertencentes às emissoras privadas.
No artigo da seção Comunicação e Mercado, “Emissoras e teles: esferas de disputa
de um terreno convergente”, as autoras Chalini T. Gonçalves de Barros e Graça Penha
do Nascimento Rosetto também abordam problemas decorrentes da era da comunicação digital, em torno do fenômeno da convergência, e atualizam o leitor interessado nos
recentes embates entre as empresas de radiodifusão e de telecomunicações no Brasil.
Esta seção é encerrada com texto “Pesquisa qualitativa; caminho para a uma análise
complexa da comunicação organizacional” de Marlene Branca Sólio, que sugere uma
nova abordagem da comunicação organizacional”.
Outra entrevista inicia a seção Dossiê – Comunicação e política na era digital.
Desta vez com o correspondente internacional Lourival Sant’Anna, que discorre sobre
as suas recentes experiências no Egito, Tunísia e Síria. Sant’Anna aponta inúmeros aspectos e problemas relativos aos meios de comunicação nesses países, e também certos
condicionantes sociais e políticos de cada um deles. O jornalista lembra episódios que
atestam que, ao contrário do que é difundido na mídia, “a revolução egípcia é um fenômeno anterior ao tunisiano”. Sant’Anna não ignora o potencial das redes sociais nesses
levantes, mas enfatiza: “as coisas nascem no mundo real”.
No artigo, “‘Fatodifusores digitais’ e os novos modos de produção jornalística”, as
autoras Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reulle avaliam a circulação de notícias
nos novos formatos de autopublicação e de redes sociais; destacam, ainda, o problema
da credibilidade, também abordado na entrevista de Ignacio Ramonet.
Fecha o dossiê o texto “Capital, habitus e as redes no ciberespaço”, de autoria do
pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa, Liráucio Girardi Jr, que, com base
no instrumental teórico do sociólogo francês Pierre Bourdieu, entre outros, discorre
sobre algumas questões relacionadas aos “mitos da construção do self”- subjetividade
– no chamado ciberespaço.
Os dois artigos que inauguram a seção Iniciação Científica são resultado das pesquisas dos alunos da graduação, Caio Dib e Mariana Pascutti Zacarias. Ao submeterem
os seus artigos à revista, esses alunos contaram com a supervisão dos professores doutores Pedro Ortiz e Luís Mauro S. Martino, respectivamente, e tiveram a anuência para
publicação do conselho consultivo desta Revista.
Em “Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil”,
Caio Dib oferece um bom roteiro para uma aproximação com a trajetória intelectual e
prática da chamada educomunicação. Remonta algumas experiências e proposituras do
célebre educador Paulo Freire e das Comunidades eclesiais de base, no contexto social
das décadas de sessenta e setenta, e ainda destaca recentes experiências com os meios
12
Revista Communicare
Maria Goreti Juvencio Sobrinho
de comunicação vividas em alguns colégios da cidade de São Paulo. A questão que pode
ser suscitada em estudos da chamada educomunicação é a de como e até que ponto as
diversas formas de utilização dos novos meios de comunicação contribuem para uma
ação transformadora não apenas no campo da educação, mas da sociedade.
As redes sociais estiveram no centro da “Primavera árabe”, como instrumento de
organização e mobilização das massas, ao passo que a busca por prestígio pessoal, notoriedade ou publicidade foi o mote para outro contingente de usuários do Twiter. É sobre
essa forma de utilização das ferramentas do Twiter (que já conta com mais de trezentos
milhões de usuários no mundo) realizada por algumas personalidades que se debruça
Mariana Pascutti Zacarias em seu artigo “A popularidade e a influência no Twiter”.
O Centro Interdisciplinar de Pesquisa e a Communicare agradecem a todos que
colaboraram para esta edição e convida o leitor a contribuir com as próximas publicações que manterão a interlocução e o diálogo com o mundo acadêmico e com aqueles
interessados a abraçar o trabalho, cada vez mais coletivo, de entender efetivamente o
mundo e buscar respostas para as suas contradições.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Entrevista
“Acabou-se o tempo em que a
informação era monopólio dos
jornalistas”
Entrevista com Ignacio Ramonet
Por Daniela Osvald Ramos e Igor Fuser
Entrevista
Ignacio Ramonet
Professor de Sociologia na Universidade Dennis Diderot (Paris VII), o semiólogo e jornalista Ignacio Ramonet é uma das principais referências no debate mundial sobre a
mercantilização dos meios de comunicação e a submissão da imprensa aos interesses do
capitalismo global. Suas principais ideias sobre o assunto estão sistematizadas no livro
A Tirania da Comunicação (Vozes, 1999). Como diretor de redação do Le Monde Diplomatique entre 1990 e 2008, Ramonet denunciou o papel de domesticador das consciências que a mídia desempenhou no período do auge das reformas neoliberais – uma
prática que entrava em absoluta contradição com o conceito de “quarto poder”, presente
no senso-comum. Em um famoso editorial, escrito em janeiro de 1995, ele cunhou o
termo “pensamento único”, para denunciar o desaparecimento da diversidade ideológica sob a hegemonia liberal-conservadora. Nesse período, engajou-se ativamente no
movimento contra a globalização neoliberal e destacou-se como um dos organizadores
do Fórum Social Mundial. Tornou-se conhecido também pelo livro de entrevistas Fidel
Castro: Uma Biografia a Duas Vozes, a obra mais importante sobre a trajetória política
e o pensamento do líder cubano. Nos últimos três anos, Ramonet tem se voltado para
a análise do fenômeno das mídias digitais e seu impacto sobre a cena política e os movimentos sociais. Esse é o tema do seu novo livro, A Explosão do Jornalismo, lançado
recentemente na França e que será publicado no Brasil pela Editora da UNESP. Em
entrevista concedida por telefone a Communicare, ele expõe as principais ideias desenvolvidas nessa obra.
Communicare — No seu novo livro, você compara o impacto da internet sobre o
jornalismo ao meteoro que, segundo algumas teorias, fez desaparecerem os dinossauros. No seu ponto de vista, a internet significa o fim do jornalismo tal como o
conhecemos nos últimos duzentos anos?
Ignacio Ramonet - Sim, esse jornalismo está próximo de terminar o seu ciclo de existência como jornalismo de massas, tal como se desenvolveu a partir do final do século
XIX. Ele será totalmente transformado, não tanto em consequência da internet em si
mesma, mas principalmente como efeito das redes sociais do tipo Facebook e Twitter, do
Google , do Youtube, da telefonia 3G – os telefones inteligentes. Tudo isso está transformando radicalmente a maneira de fazer jornalismo, porque hoje o jornalista já não tem
o monopólio da informação. Na atualidade, um cidadão comum, com acesso a tecnologias relativamente leves e baratas, possui um equipamento semelhante ao que a CNN
tinha há 15 anos. Ou seja, com seu telefone inteligente ele pode captar as imagens em
vídeo, escrever textos e enviar seus textos e imagens ao outro lado do mundo.
Communicare — Podemos dizer que a principal diferença entre o momento atual
e as épocas anteriores é o fato de que hoje assistimos a uma explosão de dados, ou
16
Revista Communicare
seja, temos acesso a um volume de informações incomparavelmente maior do que
antes?
IR — Existe uma explosão de dados, sem dúvida, mas a novidade mais importante é que
hoje as informações existentes estão sob o controle de toda uma massa de cidadãos que
podemos definir como web-atores. Ou seja, a informação evidentemente vai circular,
mas muitas pessoas hoje podem corrigi-la, complementá-la, prolongá-la e até contestá-la. Por isso, o jornalista já não é mais o dono da informação, ao mesmo tempo em que
passa a se integrar a todo um trabalho de colaboração coletiva em torno da tarefa de
informar. Por outro lado, a singularidade do trabalho do jornalista está em oferecer
uma garantia para essa informação. Uma informação verificada, aquela que pode ser
apresentada ao cidadão como verdadeira, é a que passou antes por um processo de verificação para garantir que o que está sendo transmitido está desprovido de erro. Mas,
como a informação hoje tem a dimensão da urgência, ou seja, o imediatismo do fato, o
papel do jornalista em garantir que algo é verdade já não aparece tão forte quanto antes.
O jornalista já não pode assegurar que a informação que ele mesmo está difundindo seja
uma informação verificada. O resultado é que estamos agora em um sistema em que o
jornalista não perde apenas o monopólio da informação, mas perde também a confiabilidade, a credibilidade que conquistou ao longo dos últimos cem anos.
Communicare — Se qualquer pessoa pode assumir funções tradicionais do jornalismo, qual será o futuro da profissão de jornalista?
IR — Esta pergunta indica bem a perda de identidade desse profissional. Se todo mundo
é jornalista, o que um jornalista faz? Hoje não se sabe exatamente para que serve essa
profissão. Entretanto, a sociedade evidentemente precisa do jornalista. Nós sabemos
que as democracias modernas funcionam com quatro poderes: os três poderes tradicionais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e o quarto poder, que é a imprensa, os meios
de comunicação. São eles que criam a opinião pública. E a opinião pública é hoje em dia
um dos poderes que garantem o bom funcionamento da democracia. Por isso, se o jornalismo não funciona, a democracia também não funciona. Essa é a raiz da grande crise
atual do jornalismo, que não é necessariamente uma crise da informação. Trata-se de
uma profissão que está em crise e que precisa adaptar-se à informação em um contexto
no qual existe mais informação do que nunca. O problema é que nós nunca estamos
seguros de que essa é uma informação de boa qualidade. Hoje em dia os cidadãos vivem
em um estado de insegurança informacional, uma situação de incerteza. Quando recebem uma informação, não estão seguros de que ela é verdadeira, confiável, de que está
verificada. Essa certeza não existe.
Communicare — Neste contexto de hiper-abundância de informação, como seria
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
17
Entrevista
Ignacio Ramonet
possível oferecer essa garantia? Você já ouviu falar no papel de curador da informação?
IR — A novidade importante é que o jornalista precisa trabalhar em colaboração com
os web-atores. Estou convencido de que um meio de comunicação hoje em dia deve
fazer parte desse novo ecossistema em que estamos. E nesse novo ecossistema os cidadãos informadores exercem um papel muito importante. Por isso é necessário contar
com a colaboração deles. O jornalista não pode ter a arrogância de dizer que ele sabe e
que os demais não sabem. Como eu disse antes, esse monopólio já foi perdido. Antes, na
relação de informação, havia um emissor ativo e um receptor que era um cidadão passivo. Essa situação mudou. Hoje em dia os dois são ativos. Os cidadãos são, ao mesmo
tempo, receptores passivos e também produtores ativos da informação. É necessário
integrar essa dimensão à realidade do trabalho jornalístico. A prova de que o novo sistema é capaz de informar de uma maneira mais completa do que a anterior – embora
não sempre, mas em algumas situações, sim – é o caso do WikiLeaks, que eu estudo
no meu livro. Até recentemente, nós pensávamos que estávamos muito bem informados, em um sistema muito sofisticado, tecnológico, com um jornalismo de investigação
muito importante. Mas, na realidade, não sabíamos nada do que estava acontecendo.
Ignorávamos o tipo de informação que circulava pelas embaixadas dos Estados Unidos.
Ou seja, o WikiLeaks demonstrou que existiam continentes inteiros de informação aos
quais nós não tínhamos acesso. O WikiLeaks funciona porque existem cidadãos que lhe
fornecem essa informação e esse tipo de colaboração entre um meio de comunicação
e os cidadãos é um fenômeno que deve ser estudado para que se possa entender como
se estabelece a articulação. Não tenho dúvidas de que isso modifica o funcionamento
geral da informação.
Communicare — Você mencionou a atual crise de credibilidade dos meios de informação, mas vivemos também em um tempo de crise econômica muito intensa, principalmente na Europa. Em uma situação de crise, a responsabilidade da
imprensa e do jornalismo são maiores do que nos tempos considerados normais.
Como você avalia a credibilidade da mídia realmente existente neste tempo de crise econômica?
IR — A mídia encontra-se atualmente sob o domínio de grupos econômicos muito importantes, tanto na escala nacional ou continental quanto na escala global. Esses grupos
midiáticos dominantes atuam, em minha opinião, como ferramentas ideológicas da globalização. Eles são o braço ideológico do poder financeiro que domina o mundo de hoje.
Por isso é necessário analisar com muita atenção o seu papel na atual crise financeira
global. Essa crise é mais importante do que a de 1929, porque tem uma natureza totalmente diferente. Nesse contexto, a imprensa dominante, ou seja, aquela que pertence a
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Revista Communicare
esses grupos, não está ajudando os cidadãos a tomarem consciência do problema. Ao
contrário, está fazendo com que os cidadãos acreditem que, em definitivo, esta é uma
situação que está controlada e que vai permitir a construção de uma “melhor economia”,
entre aspas. A informação que se difunde sobre a crise é uma informação confusa, manipulativa e, muitas vezes, errada.
Communicare — Então a imprensa está deixando de cumprir o seu papel como
quarto poder?
IR — Trata-se de um quarto poder que passou a atuar como aliado do poder econômico
e isso tornou necessária, hoje em dia, a criação de um quinto poder. Esse é o poder dos
cidadãos que criticam os meios de comunicação para construir um sistema midiático
mais justo, no qual o setor público tenha um papel muito importante, do mesmo modo
que os veículos de informação mais sérios e mais críticos.
Communicare — Você poderia desenvolver essa ideia? Concretamente, você já
consegue vislumbrar sinais dessa nova imprensa destinada a cumprir o papel de
quinto poder?
IR — Sim. Isso está acontecendo em muitos países da América Latina onde existia um
monopólio da imprensa privada ou algo que se pode chamar de uma hegemonia dos latifúndios midiáticos. Hoje em dia os governos de vários países, como Argentina, e estou
chegando agora de Buenos Aires, Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil, estão facilitando
a criação ou a consolidação, dependendo do país, de um importante setor público da
informação. O surgimento desse setor público é indispensável para introduzir um elemento de pluralidade na informação, a partir da ideia de que os veículos de comunicação não devem pertencer unicamente a uns quantos grupos privados. Sem a presença
de um setor público não se pode garantir a existência de outro tipo de aproximação à informação. No atual momento, é necessário reconhecer que em diversos países da América Latina esse setor público tem funcionado apenas como uma mídia governamental
que não favorece a objetividade e o rigor da informação. Trata-se de meios públicos que
se limitam a expressar a opinião do governo, contra a opinião dos grupos financeiros
que se expressam pelos meios privados. Mas, apesar dessas práticas distorcidas, estou
convencido de que a criação de serviços públicos midiáticos, em particular no campo
da televisão e do rádio, é um passo muito importante. Acredito que, pouco a pouco,
sairemos da fase atual de confronto para construir um setor público que será realmente
estatal e não governamental e, portanto, será gerido a partir de critérios profissionais
dos jornalistas e não em função da ação governamental. Outro aspecto importante na
América Latina é que neste continente inteiro está ocorrendo uma tomada de consciência coletiva de que é necessário que os cidadãos se interessem pelo funcionamento
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Entrevista
Ignacio Ramonet
midiático. Isso significa que os cidadãos, através dos observatórios de mídia e de outros
instrumentos de estudo e de ação coletiva, estão procurando entender como funcionam
os veículos de comunicação e denunciar o fato de que muitos veículos privados estão
apenas a serviço dos seus proprietários ou dos grupos financeiros dominantes, e não a
serviço da cidadania em geral. Dessa maneira, com o setor público e a ação dos cidadãos, vai se configurando esse quinto poder que é importante para que nas democracias
exista uma opinião pública não manipulada, uma opinião pública consciente, livre, crítica, capaz de participar do debate democrático com, digamos, uma maior possibilidade
de enriquecer esse debate.
Communicare — Há quem diga que os cidadãos precisam se alfabetizar para as
mídias. Você concorda? E como seria essa alfabetização voltada para ler e criticar
os meios de informação?
IR — Sim, creio que isso é indispensável. Efetivamente, hoje em dia é necessária uma
educação para o funcionamento dos meios, como parte de educação cidadã. Se os cidadãos são educados para entender, digamos, o funcionamento da história, da filosofia,
das ciências, da natureza, também é importante dar a eles uma educação específica
para que possam se proteger das manipulações da mídia. Essa é uma questão de higiene
mental, e é única maneira de proteger-se contra a manipulação ideológica, contra a
introdução nos nossos cérebros de ideias tóxicas que vão contra a nossa saúde mental e
intelectual. Do mesmo modo que os cidadãos precisam conhecer as leis da higiene normal que nos protegem contra as bactérias e os vírus, e da mesma maneira que é preciso
ensinar as crianças a lavarem as mãos antes de comer, é necessário que os cidadãos,
antes de ligarem a televisão, conheçam o funcionamento dos meios de comunicação.
Communicare — Mas como é possível, fora do setor público, existir uma outra
imprensa que tenha viabilidade econômica sem depender da publicidade?
IR — Essa é uma questão teórica importante. Na prática, neste exato momento, os
veículos de comunicação estão em crise econômica no mundo inteiro. Há uma forte
queda da publicidade, que ocorre não só em função da crise, mas também devido ao
ingresso da internet no mercado publicitário. O resultado é que hoje em dia o modelo
econômico midiático já não funciona mais, nem mesmo para os veículos tradicionais.
Ou, se vocês preferirem, funciona pior do que antes e vai passar a funcionar pior a cada
dia. Já falamos aqui do desaparecimento dos dinossauros e, neste momento, estão desaparecendo dezenas e dezenas e dezenas de publicações da imprensa em papel. Nos
Estados Unidos, nos últimos três anos, desapareceram 120 jornais, alguns deles muito
importantes, com mais de um século de existência. As publicações sobreviventes estão
se transferindo para o setor imaterial, ou seja, a internet. E na internet ainda não existe
20
Revista Communicare
nenhum modelo econômico rentável. Esse é o problema que temos hoje. O resultado é
que hoje qualquer grupo de jornalistas pode criar na internet, sem muito capital, uma
imprensa que produza informação de grande qualidade, sem depender demasiadamente da publicidade, porque pode contar com a contribuição dos cidadãos. No meu livro,
que brevemente será publicado também em português, dou muitos exemplos dessas
soluções já existentes. Nos Estados Unidos, está se desenvolvendo em grande escala o
que se chama de jornalismo sem fins lucrativos, ou seja, um jornalismo que não busca
gerar lucros, mas apenas se autossustentar. Existe, em especial, uma instituição que se
chama Pro Publica. Qualquer pessoa pode ter acesso aos seus conteúdos por meio do
Google. A Pro Publica recebe doações de fundações de direita e de esquerda, de republicanos e de democratas, para financiar investigações jornalísticas feitas por profissionais
que não sofrem a pressão da publicidade nem, tampouco, a pressão política dos poderes
públicos. Dessa maneira, podem fazer as apurações necessárias, que são imediatamente
publicadas. Esse material é difundido gratuitamente, por que é necessário para o bom
funcionamento da democracia. A Pro Publica existe há apenas quatro anos e já ganhou
dois prêmios Pullitzer nos Estados Unidos.
Communicare — Ignacio, pode-se perceber um tom otimista na sua fala. Eu li o
seu livro A Tirania da Comunicação e lá você dizia que mídias eletrônicas que naquela época ainda eram novas, como a internet, cairiam também sob o controle
dos grandes grupos empresariais, como já acontece com a televisão e com a imprensa escrita. No seu novo livro, porém, há uma visão mais otimista da mídia
digital, como um instrumento que aumenta a pluralidade de atores no campo comunicacional. Você poderia nos contar o que o levou a mudar seu ponto de vista
sobre os novos meios de comunicação?
IR — O atual fenômeno é recente. Estamos falando de algo que começou em 2003.
Quando eu escrevi A Tirania da Comunicação, no final da década de 1990, a internet
ainda estava bastante concentrada. O suporte tecnológico ainda não estava tão desenvolvido e não existiam esses instrumentos sobre os quais vínhamos falando antes, as
redes sociais, os telefones inteligentes. Naquela fase inicial, a internet estava, mesmo,
nas mãos dos grandes grupos midiáticos. Quem já dominava a informação, dominava
também a internet, em qualquer país. No Brasil, por exemplo, quem detinha o site de
informação mais frequentado era a Rede Globo. Acontece que hoje em dia essa tecnologia se espraiou por setores muito amplos da sociedade, produzindo uma explosão,
como eu digo no meu novo livro. Em consequência, hoje existem probabilidades muito
maiores de que se constitua o que podemos chamar de enxame. Vocês sabem o que é
um enxame, certo?
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Entrevista
Ignacio Ramonet
Communicare — As abelhas…
IR — As abelhas, exatamente. Cada indivíduo com seu blog ou site de informação pode
contribuir para constituir um enxame de informação que é muito mais importante que
o meio dominante. O Huffington Post começou como uma aglomeração de 600 blogs
de personalidades e existe somente na web. E se transformou no jornal digital mais
influente dos Estados Unidos. Hoje muitos jornais estão fechando, sobretudo aqueles
impressos em papel e pagos, mas há muitas oportunidades para a sociedade emitir e receber informações, que estão sendo, ao mesmo tempo, postas à prova a todo momento.
Dou muitos exemplos no meu novo livro.
Communicare — O que você diria para os jovens jornalistas que estão começando
a trabalhar neste novo cenário de informação? Quais são as qualidades que eles
precisam desenvolver?
IR — Primeiramente, eu diria que eles têm muita sorte, porque é um momento de oportunidades que não existiam no jornalismo há muito tempo. Digamos que as oportunidades que havia antes eram do tipo político. Quando cai uma ditadura, há muitas
oportunidades para os jornalistas porque se criam muitos jornais. Agora não se trata de
um acontecimento político, mas sim tecnológico; um novo sistema tecnológico está se
desenvolvendo em detrimento de um antigo. Então, é importante que os jovens encontrem as possibilidades que esse novo sistema oferece, que são muitas. Hoje se necessita
de menos capital para se desenvolver. Segundo, é importante ser produtor de informação nova e não somente reproduzir, algo que a internet fornece. Nesse sentido, os jovens
precisam retomar as qualidades do jornalismo tradicional. Um jornalista é uma pessoa
que produz informação porque sai em busca dela.
Communicare — Muito foi dito do papel das novas mídias nos recentes protestos
e revoltas populares no mundo árabe e também na Europa. O que você pensa da
influência dos novos meios nesses fenômenos de mobilização social?
IR — Sim, provavelmente a Primavera Árabe não teria sido possível sem as redes sociais. Tudo começou na Tunísia, porque o WikiLeaks revelou a corrupção que existia
na ditadura do general Zein-al-Abidin Ben Ali. Evidentemente a população suspeitava
disso, mas uma coisa é criticar e outra é ter provas. Essa informação circulou e permitiu
que a exasperação, a irritação e a ira das pessoas se manifestasse. As redes sociais permitiram uma coisa muito importante na luta contra a ditadura, que proibiu os partidos,
as organizações políticas, que foi a ida de 30 mil pessoas às ruas. Através do Twitter
se comunicou a hora exata e o slogan da manifestação e isso foi o que permitiu sua
organização. Também a informação chegou pela TV a cabo, como o canal Al-Jazira. A
comunicação desempenha um papel muito importante nesses movimentos, que têm
22
Revista Communicare
como característica não haver um líder, nem uma organização que dirija o movimento
ou um programa a seguir. Tradicionalmente não se derruba uma ditadura dessa forma.
Logo esse processo se repetiu no Egito, Líbia, Síria, Iêmen.
Communicare — Mas você acredita que os recursos digitais são fundamentais
para mobilizar as pessoas? O governo pode tomar medidas repressivas e facilmente tirar o Twitter do ar, por exemplo.
IR — Claro, isso foi o que o sistema fez no Egito. Eles simplesmente “desligaram” a internet, mas, se isso acontece, a economia não funciona, os bancos e o próprio aparato
do governo entram em colapso. Lá a polícia também se comunicava por celulares, que
foram cortados. Ao final de dois dias tiveram que restabelecer a internet. Ou seja, a
censura foi contra o próprio sistema. Hoje em dia é difícil desconectar na medida em
que o sistema repressivo também está utilizando as redes. Além disso, os insurgentes
encontraram meios de burlar o corte, além de usarem telefones comuns, as notícias das
TV´s por satélite. Até agora, nenhum governo autoritário conseguiu impedir que as
pessoas se organizem para se manifestarem. Veja na Líbia, apesar da terrível repressão
de Kadafi, as pessoas se organizaram e enviaram documentos para o mundo sobre o que
está acontecendo. O que demonstra que não é fácil, hoje em dia, cortar a comunicação.
Communicare — Na Inglaterra o governo também cogitou controlar a troca de
mensagens por celular e as redes sociais. É um sinal que mesmo as democracias
podem ser repressoras?
IR — Na Inglaterra não cortaram as redes sociais, mas rastrearam a conversação. Mas
o problema é que os jovens ingleses não utilizaram o Facebook ou Twitter, mas trocaram mensagens pelo BlackBerry (aparelho celular), que tem um dispositivo e não deixa
nenhum rastro, e isso só essa marca de celular garante. É um recurso que os traficantes
usam. A troca de mensagens que importava ao governo estava nos celulares BlackBerry
e não nas redes sociais.
Communicare — Como você avalia o desempenho da imprensa nesse caso?
IR — A imprensa tradicional foi muito hostil, teve uma atitude de incompreensão na
medida em que o fenômeno é difícil de entender, sobretudo o grau de violência que
existiu. Também o fato de os jovens terem saqueado as lojas e não expressarem nenhuma reivindicação política, social ou econômica. Atacaram as lojas de roupas esportivas,
como Nike e Adidas, mas não atacaram os bancos. Surpreendente, pois os bancos são
símbolos do poder econômico. É uma maneira desconcertante de uma geração mostrar
sua frustração por não estar integrada com a sociedade de consumo e pela falta de perspectivas com o futuro.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Entrevista
Communicare — Se compararmos o que acontece na Europa com o que acontece
no mundo árabe, à parte de todas as diferenças da imprensa nessas duas regiões,
vemos que a imprensa tradicional está um tanto desconectada da realidade social. O mesmo ocorre com o “Movimento dos Indignados”, na Espanha. Mas você
falou que a imprensa inglesa ainda não sabe compreender os motivos mais profundos das rebeliões na periferia de Londres e interior do país e eu acompanhei os
noticiários da BBC e me parecia que não havia intenção de discutir seriamente o
problema, mas, ao contrário, criminalizar os jovens. Parece um pouco o papel da
imprensa nas ditaduras, como na Líbia. O que você acha disso?
IR — Houve uma incompreensão geral do fenômeno e até agora não vimos uma análise
mais profunda. Sobre o movimento espanhol eu diria que a imprensa reagiu com curiosidade, na medida em que o “Movimento dos Indignados” teve repercussão em todo o
mundo, em Portugal, Grécia, muitos países, e agora em Israel. A personalidade que citam é Gandhi e, ainda que as reivindicações sejam muito radicais, especialmente contra
o poder econômico e político, elas são feitas com criatividade. Sem dúvida, os grandes
meios cobriram esse movimento, que expressa a falta de esperança de uma geração de
jovens diplomados e estudantes que vê um futuro sem perspectivas.
Communicare — Uma última pergunta. Trabalhei mais de vinte anos nas editorias
de Internacional da imprensa brasileira e todo esse tempo minhas fontes de informação foram agências como Reuters, AP, France Presse, ou canais de televisão
como a CNN. Agora, com a explosão das novas mídias, é possível obter informações e imagens, sem passar pelas agências e canais de TV, o que vai acontecer com
essas grandes empresas de comunicação?
IR — A CNN está em crise, e é possível que feche daqui a dois anos. Quem diria, pois em
1989, quando caiu o Muro de Berlim, a CNN foi a primeira a transmitir “a história em
marcha”, como diziam os apresentadores. Hoje todos os meios estão em crise e perdem
muito dinheiro. Em meu livro lembro que vários canais de informação já fecharam, como
o CNN Plus, na Espanha, que transmitia de forma contínua, deixando centenas de jornalistas na rua. Seguramente algumas agências vão continuar existindo, mas hoje, quando
acontece algo, os meios se dirigem aos cidadãos que vivem nesse local para que mandem
fotos, vídeos, testemunhos. Quando aconteceu o tsunami e o terremoto em Fukushima,
antes dos jornalistas chegarem ao Japão, os grandes canais de TV já tinham informações
enviadas por franceses que viviam lá, através de webcams, diretamente ao vivo. Com
isso, acreditavam que já tinham feito a cobertura. Estamos hoje em pleno terremoto, não
sabemos como isso vai se desenvolver. O que sabemos é que o antigo ecossistema está desaparecendo e o novo está permitindo a aparição de entidades informativas e jornalísticas
que se adaptem melhor à nova atmosfera que se está criando atualmente.
24
Revista Communicare
Artigos
Comunicação, tecnologia e política
Cadernos de 1844: crítica
originária de Marx à economia
política
Ivan Cotrim
Prof. Dr. Ivan Cotrim da Fundação Santo André e do Instituto Presbiteriano Mackenzie.
Neste artigo expusemos as categorias que são originariamente abordadas e criticamente tratadas por
Marx em seu texto “Cadernos de Paris” de 1844. Indicamos alguns analistas que estudaram o período
de formação do pensamento do jovem Marx, e suas posições sobre a economia política. Apontamos
os temas de maior evidência, dentro do texto, expondo sua forma de tratamento crítico, bem como
as conclusões daí retiradas. Buscamos mostrar que a alienação e o estranhamento nuclearizam suas
críticas, assim como a propriedade privada e a divisão do trabalho encontram-se na base de sustentação dessas categorias, o que resulta na exclusão do homem de seu próprio universo em favor do
capital. Indicamos por último a compreensão demonstrada por Marx sobre a categoria trabalho que
se encontra subsumida ao estranhamento e alienação, enquanto essas categorias dominam a comunidade egoísta, a sociedade comercial, o capitalismo.
Palavras-Chave: Estranhamento, alienação, propriedade privada, divisão do trabalho, mediador, comunidade egoísta, valor, trabalho.
1844’s Notebooks - Marx’s original criticism of political economy
This article examines
categories that are originally approached and critically considered by Marx in his “Paris Notebooks”, written in 1844. We
make reference to some scholiasts who studied the period of formation of young Marx’s thought and their standpoints on
political economy. We point out the main points raised by those writings, presenting the critical treatment Marx gives them
and the conclusions he derives from it. We seek to demonstrate that alienation and estrangement are nuclear categories in
Marx critique, as well as that private property and division of labour are set on the basis of those categories, which result in
the exclusion of man from their own universe in favor of capital. At last, we indicate Marx account on the category of labour
as subsumed by estrangement and alienation, while these categories dominate the selfish community, commercial society, or
capitalism.
Keywords: Bewildering, alienation, private land, labor division, mediator, mean community or selfish community, value, work
Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
Introdução
Tratamos aqui por crítica originária à economia política o período bem anterior às concreções encontradas sobre esse tema, na Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, e em O Capital, período em que Marx iniciou seu enfrentamento com os
pensadores clássicos da economia política, provido de postura crítica visando desvelar,
por meio de seu procedimento ontoprático, a base de sustentação tanto dos fenômenos
reais quanto das articulações ideológicas que permitiram emoldurar tal ciência. O período em que essa crítica originária transcorre tem início com os apontamentos de seus
estudos analíticos, registrados para publicação somente no século XX, sob o título de
Cadernos de Paris, produzidos anteriormente aos Manuscritos Econômico-Filosóficos,
embora no mesmo ano, 1844.
Procuramos indicar, resumidamente, algumas das abordagens que remetem a esse
período, presentes nos analistas do pensamento marxiano, observando, antes de tudo, a
escassez de referências aos Cadernos de Paris pela maior parte deles.
Tendo sido publicado pela primeira vez em MEGA (Marx Engels Gesamtausgabe),
com o título de Estudos Econômicos – Extratos, em 1932, e traduzido do alemão para o
espanhol por Bolívar Echeverria, recebeu de Adolfo Sanchez Vasquez, para a publicação em 1972, a denominação de Cadernos de Paris (Notas de Leitura de 1844). Em sua
avaliação geral sobre a produção teórica de Marx desse período, apresentada em seus
estudos sobre os Cadernos, Vasquez indica que sua redação antecede a dos Manuscritos
Econômico-Filosóficos, embora ambas datem do mesmo ano, o que explica a forte afinidade teórica entre os textos, especialmente no que respeita à economia política clássica.
As referências a esse período inicial de abordagem dos clássicos da economia política têm sido feitas por inúmeros estudiosos da obra de Marx, analistas dos variados
temas de sua produção, revelando importância indiscutível para a compreensão de seu
pensamento. Sem qualquer possibilidade de esgotar o quadro dessas referências, damos, a seguir, um panorama de alguns dos pensadores que tiveram como objetivo o
estudo desse período originário de Marx, que inclui certamente os “Cadernos”.
Num trabalho bastante difundido no Brasil, em que a questão da alienação encontra-se no centro de sua análise, Mészáros2 expõe seu entendimento sobre o “encontro
de Marx com a economia política”, título de um dos capítulos de seu livro em que trata
dessa questão. Nesse, os Manuscritos Econômico-Filosóficos figuram como objeto principal de seu trabalho. Mészáros analisa esse trabalho em que, sem dúvida, o pensador
alemão reúne um intenso questionamento sobre o tema, revelando nexos, significados
1. Vasquez, A. S.. Economia y Humanismo, in Marx, K., Cadernos de Paris (Notas de Lectura de 1844).
México: Era, 1974. Observe-se também que esse manuscrito foi conhecido e tratado por alguns analistas
por “Extratos de James Mill”.
2. Mészáros, I. Marx: A Teoria da Alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
3. Ib., p. 73.
30
Revista Communicare
Ivan Cotrim
e os sentidos da alienação.
Ter partido dos Manuscritos significa, para Mészáros, que a preocupação com as
atividades econômicas encontra-se já exposta desde esse período por Marx. Mészáros
destaca nesse texto uma frase em que a divisão do trabalho e as trocas são postas como
“as expressões alienadas mais perceptíveis da atividade humana e do poder humano
essenciais da espécie”. Vê-se que, na ótica de Mészáros, o encontro de Marx com a economia política funde-se acertadamente com as críticas à alienação. Avançando em sua
exposição sobre as críticas originárias, Mészáros cita os textos Sobre A Questão Judaica
e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução, de 1844, como sinalização dos
primeiros momentos de crítica à economia política, mas restritos ainda ao plano político, “dentro do espírito de um programa segundo o qual a crítica da religião e a da teologia devia ser transformada em crítica do direito e da política”3. Mészáros cita também
o texto de Engels, escrito em finais de 1843 e inícios de 1844, Esboço de uma Crítica
da Economia Política, para indicar a importante influência para o encaminhamento de
Marx na direção da economia.
Os Manuscritos Econômico-Filosóficos são, porém, o texto em que, conforme
Mészáros, as críticas às mediações alienadoras do homem serão levadas a cabo. Com
base na atividade trabalho, determinação ontológica do ser social, Marx empreende
sua primeira grandiosa crítica às categorias fundantes da economia política: propriedade privada, divisão do trabalho e troca. Mészáros se moverá teoricamente preocupado
mais com as formas das mediações e menos com os fundamentos históricos e objetivação dessas categorias da economia política, na busca de explicar o mais adequadamente
possível o fenômeno da alienação, que ocupou o pensamento marxiano.
Observamos aqui que Mészáros articula um conjunto de textos do período de
crítica originária de Marx, com vistas ao domínio e ampliação na explicação de novos
nexos que o tema alienação vai enredando. Mas também é preciso indicar que, embora seu trabalho contemple amplamente a problemática da alienação, Mészáros não faz
alusão aos Cadernos de Paris como apoio ou sustentação do “encontro de Marx com
a economia política”, texto que, embora da fase originária, mostra-se fundante em sua
crítica à economia política, conforme veremos à frente.
Avançando mais nos empreendimentos analíticos da fase crítico-originária de
Marx, consideramos incontornável a abordagem da crítica da economia política efetivada por Mandel, em seu A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. Essa obra
registra um consolidado reconhecimento internacional da importância de seus estudos
sobre a obra de Marx, e, sobretudo, do seu esforço em acompanhar a realidade políticoeconômica do imperialismo posterior à Segunda Guerra Mundial, expresso nos elevados
padrões intelectuais-revolucionários certamente apreendidos do pensador alemão.
3. Ib., p. 73.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
31
Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
Mandel compreende que Marx assume posicionamentos críticos desde 1843, e
que esse movimento se completa, na fase que tratamos aqui por crítica originária, com
a crítica da economia política. Em suas próprias palavras, esclarece-se que Marx vai “da
crítica da religião à crítica da filosofia; da crítica da filosofia à crítica do estado; da crítica
do estado à crítica da sociedade, isto é, da crítica da política à crítica da economia política”4. Eis, portanto, a exposição sintética de uma trajetória que, tendo como suporte a
crítica da especulação filosófica e da politicidade, culmina com o enfrentamento crítico
das teorias construídas pela economia política.
Procurando identificar o interesse de Marx pelas questões econômicas mais diretamente, Mandel remete-se a fatos que desencadearam a indignação de Marx, como
a miséria dos trabalhadores nas vinhas de Mosela e os debates concernentes ao roubo
de lenha, e a partir dos quais, ainda que se posicionasse como democrata, já punha em
questão os limites do estado quando se trata da solução da vida material dos trabalhadores. Além disso, diz ele, Marx conclui que esse estado em que se encontra o trabalho
imediato constitui pré-condição para a existência da sociedade burguesa. Com isso ele
já se proclama, conforme Mandel, um adversário da propriedade privada, qualificando-a
como fonte de toda injustiça. Porém, somente após sua chegada a Paris, em outubro de
1843 – continua –, é que Marx se defrontará diretamente com as produções teóricas
dos economistas clássicos. Mandel, com justa razão, insiste na influência de Engels sobre a formação do pensamento marxiano crítico à economia, citando o famoso texto
Esboço de uma Crítica da Economia Política, ao qual Marx sempre se referiu como
sendo uma “genial crítica” à economia política. No entanto, é preciso observar que o
percurso do filósofo alemão, com toda a influência já considerada, é original e próprio,
tendo seus primeiros traços peculiares, conforme indicamos, anotados nos Cadernos de
Paris. Mandel toma como ponto de partida de sua abordagem do pensamento crítico à
economia política de Marx os Manuscritos Econômico-Filosóficos:
De maneira que Marx se depara com a necessidade de estudar os materiais de
conteúdo econômico para orientar-se na condução de sua crítica à sociedade civil, à
vida privada, à situação de penúria dos trabalhadores. Conforme Mandel, no momento
em que os Manuscritos Econômico-Filosóficos estão sendo elaborados, descobertas fundamentais são postas à luz:
Redigidos depois da leitura de uma série de economistas de primeiro plano e consistindo,
operária produz. A sua conclusão não é, de modo algum, uma solução filosófica ao nível
aliás, parcialmente em longas citações extraídas de Adam Smith, de Pecqueuer, de Loudon,
do pensamento, da idéia, do trabalho intelectual. Ele conclui, ao contrário: ‘Para superar
de Buret, de Sismondi, de James Mill e de Michel Chevalier, esses três manuscritos
a idéia da propriedade privada, o pensamento comunista é amplamente suficiente. Para
econômico-filosóficos representam o primeiro trabalho econômico propriamente dito
superar a propriedade real, precisa-se de uma verdadeira ação comunista.7
do futuro autor do Capital. Uma crítica da filosofia de Hegel constitui a quarta parte. Eles
tratam sucessivamente do salário, do lucro, da renda fundiária, do trabalho alienado em
relação com a propriedade privada, da propriedade privada em relação com o trabalho e
com o comunismo, das necessidades, da produção e da divisão do trabalho, assim como
do dinheiro.5
4. Mandel, E. A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. De 1843 até a redação de “O Capital”.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p. 13.
5. Ib., p. 30.
32
Ivan Cotrim
Revista Communicare
Ora, estudando os economistas clássicos, Marx descobre que estes fazem do trabalho a
fonte última do valor. A síntese se fez em um clarão, as duas noções foram combinadas,
e se crê verdadeiramente assistir a essa descoberta examinando as notas de leitura de
Marx, sobretudo o célebre comentário das notas de leitura de James Mill (registradas nos
“Cadernos de Paris)”, onde Marx parte do caráter da moeda, meio de troca, instrumento
de alienação, para chegar às relações de alienação que substituem as relações humanas.6
Observe-se de passagem que Mandel constitui um dos raros pensadores a se referir aos “Cadernos”, utilizando a denominação de “Extratos de James Mill”, e, tendo-o
por parâmetro, ele observa que embora Marx tenha partido das formulações filosóficas
de Hegel, ele compreende seus limites e adverte que Hegel considera “a alienação como
fundada sobre a natureza do homem”, natureza essa engendrada pela lógica filosófica hegeliana, mas jamais constatada na realidade mesma, além disso, Hegel constata a
miséria a que estão submetidos os trabalhadores sem fazer qualquer menção às possibilidades de sua superação, muito embora reconheça que “a riqueza nasce em meio à
miséria”. Por fim Mandel expõe a radical diferença com que Marx aborda as questões
econômicas em relação a Hegel, insinuando que desde já se esboça uma reorientação de
perspectiva ontológica frente a este:
O seu ponto de partida nessa crítica não é de modo algum o ‘conceito’ de trabalho
alienado; o seu ponto de partida é, ao contrário, a constatação prática da miséria operária,
que cresce na mesma medida em que crescem as riquezas que essa mesma classe
Com o objetivo explícito de demarcar a postura teórica do pensador alemão,
expor o construto de suas próprias concepções, e explicar o fundamento da nova
posição onto-prática marxiana, Chasin, em seu texto Marx – Estatuto ontológico
e Resolução Metodológica8 inicia por afastar os tratamentos responsáveis por uma
difusão do pensamento de Marx em radical desacordo com sua própria perspectiva
6. Ib., pp. 31-32. Observe-se que as notas de leitura de James Mill estão contidas nos Cadernos de Paris.
7. Ib., pp. 161-162.
8. Chasin, J. Marx – Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
Ivan Cotrim
e tessitura, procedimentos analíticos que, ao contrário de evidenciar as qualidades e
novidades e destacar o padrão ontológico desenvolvido pelo pensador alemão, diluem
suas diferenças revolucionárias e inovadoras na imputação de um método prévio de
análise do real, a exemplo do procedimento hegeliano. De forma resumida, aludimos
aqui ao fato de que Chasin se volta aos textos originários de Marx para enfrentar essa
problemática, deixando exposto o caminho necessário para explicitação da última crítica
ontológica marxiana, a crítica à economia política. Conforme Chasin, Marx iniciara por
submeter tanto a volumosa produção filosófica quanto política a uma análise crítica,
mas, frente às dificuldades materiais da vida societária e à ausência de canalização
política resolutiva para tanto, Marx se dá conta do significado da vida econômica na
totalidade social, avançando, então para a crítica da economia política. Destaque-se que
essa abordagem de Chasin recupera a integridade do pensamento marxiano, afastando
as imputações metodológicas e indicando que a complementação de sua análise crítica
se volta para a “anatomia da sociedade civil”, como dirá bem mais tarde (1859) o próprio
Marx. Ou seja, Chasin demonstra que a trajetória de seu pensamento resolve-se, ou
melhor, encontra fundamentos na economia política, daí ser essa sua última abordagem
crítica, o que permitiu a Chasin afirmar que tal empreendimento só pode efetivar-se pelo
procedimento ontoprático operado por Marx, procedimento esse que implica verificar a
produção teórico-ideológica no mundo real e concreto.
Outro autor, com distinta abordagem, José Arthur Giannotti, em 19659, irá ter nos
Cadernos de Paris, que ele trata por Extratos de James Mill, sua atenção, dando-nos uma
aproximação de seu conteúdo e importância. Contudo, sua análise vale-se dos Cadernos
na pretensão de demonstrar sua própria tese: a determinação da negatividade histórica
do trabalho, e ao mesmo tempo defender uma disjuntiva epistemológica entre a produção do jovem Marx e do Marx de maturidade. Ele observa que:
O subtítulo que introduzi nesta segunda edição de meu livro – única modificação
significativa em relação à primeira – deve ser entendido como uma tentativa no sentido
de evitar os mal-entendidos que têm atrapalhado sua leitura. De novo venho salientar
o caráter lógico deste texto, meu interesse fundamental em compreender a viabilidade
da dialética. Se passo por uma leitura do jovem Marx, é para investigar a validade duma
dialética que toma como ponto de partida a categoria do homem como ser genérico na
qualidade de universal concreto.11
Portanto, ele se dirige à dialética como método e foco de análise, reafirmando
seu objetivo e o conteúdo de seu trabalho, bem como aquela suposta ruptura dos escritos de Marx: “Não estou com isso negando a enorme continuidade temática dos escritos
de Marx. Se há ruptura ela é lógica e ontológica – e isso precisa ser entendido”12. Quanto
aos Cadernos, especificamente, queremos aditar apenas um esclarecimento que Giannotti apresenta logo no início de suas análises:
Os textos, cuja tradução daremos a seguir, devem ser anteriores ao que acabamos de
estudar. São igualmente trechos do comentário ao tratado de economia política de James
Mill, e, como é de supor que Marx resumia e comentava conforme progredia na leitura
devem ter sido escritos antes da passagem já analisada, que se encontra quase no fim do
extrato.13
E mais adiante, depois de indicar tratar-se de leituras imediatamente comentadas
por Marx, Giannotti explica que, embora formalmente dispersas, não perdem o nexo
interior, pois
Na verdade, Marx lançava no papel suas idéias conforme lhe advinham da leitura de Mill,
Nosso primeiro projeto compreendia um balanço geral da dialética marxista e foi somente
desordenadamente e sem se preocupar com seu encadeamento num sistema teórico. Isso
no curso do nosso estudo, quando nos convencemos da radical oposição epistemológica
não significa, porém, que objetivamente as idéias não se engrenem e não se completem
entre os textos de juventude e de maturidade, que nos decidimos analisar a dialética
mutuamente.14
primitiva, preparando o terreno para um livro posterior. De outra forma, se juntássemos
num mesmo escrito a discussão dos dois procedimentos, a todo o momento, deveríamos
recorrer a universos diferentes do discurso, criando uma confusão indecifrável.
10
Essa observação é feita no prefácio à primeira edição, de 1965, do trabalho citado.
Ou seja, ele busca, por meio das análises metodológicas, explicitar uma suposta ruptura
epistemológica entre os escritos do período originário da produção de Marx e os de
maturidade. Sua preocupação com o plano epistemológico permanece, e na segunda
9. Giannotti, J. A. Origens da Dialética do Trabalho. 2ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.
10. Ib., p. 10.
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edição do mesmo livro, vinte anos depois, afirma:
Revista Communicare
Certamente Giannotti soube explorar o conteúdo dos Cadernos com adequação às finalidades a que se propôs. Contudo, não cabe aqui, nem para Giannotti, nem
para os demais comentadores mencionados, uma análise do material que apresentam
sobre esse período e texto, pois nosso objetivo, antes de tudo, é o de indicar a importância dos “Cadernos” e o contexto teórico da formação crítica originária de Marx sobre a
economia política.
11. Ib., s/ pag
12. Ib. (Prefácio à 2ªedição).
13. Ib., p.161.
14. Ib., pp.161-162
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Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
II
As anotações iniciais de Marx nos Cadernos formam um conjunto de temas cujas
críticas serão desenvolvidas ao longo do texto. Marx destaca as categorias que se encontram disponibilizadas nas teorias da economia política. Ele põe em evidência a propriedade privada, indicando ser esta, no âmbito dessa ciência um fato carente de necessidade. Muito embora a economia política tenha como base de sustentação exatamente essa
categoria, afirmando que não há riqueza sem propriedade privada, não explica a necessidade dessa forma social, não identifica qualquer demanda dessa categoria que não seja
para o capital, o que leva Marx a afirmar que se trata de um “ser sem carência”. Desta forma, as relações humanas que emergem mediadas pela propriedade privada convertem
os objetos representantes desta em um meio de dominação de seus possuidores; Marx
observa numa espécie de “diálogo reflexivo” que “O verdadeiro poder sobre um objeto
é o meio; por esta razão, tu e eu vemos reciprocamente em nosso objeto o poder de um
sobre o outro e sobre si mesmo. Quer dizer, nosso próprio produto se voltou contra
nós” (CP, p. 153)15, pois ele, objeto, se converte em meio de dominação, e como tal sua
posse, ao contrário de proporcionar o gozo recíproco e completo, promove a exclusão
recíproca dos indivíduos. Marx indica a complementação dessa inversão observando
que o objeto “parecia ser propriedade nossa, porém, na verdade somos nós sua propriedade. Estamos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui
ao outro homem” (CP, p. 153). Isto é: esse poder era supostamente sua propriedade e,
no entanto, cada um o reconhece como poder do objeto sem, contudo, compreender a
mágica dinâmica que transfere esse poder para o objeto.
Desde a abordagem inicial de Marx que ele põe em evidência o conceito de dinheiro formulado por Mill, tratado como a mediação, como inversão das relações sociais. Mill afirmara ser o dinheiro intermediário das trocas, a o que Marx observa que
ele não consiste em ser alienação da propriedade privada, mas, sim, que a atividade
mediadora encontra-se nele alienada e convertida em atributo deste, isto é, um atributo
do homem se torna uma coisa exterior ao homem, fora dele e não controlada por ele.
De maneira que o dinheiro se converte em mediador e seu pressuposto é que as relações
humanas encontram-se nele alienadas, portanto não são relações homem a homem,
homem e natureza. Observe-se antes de qualquer coisa que essa atividade mediadora
significa para Marx o dinamismo relacional, o ato humano, ato social, produtivo, (intercâmbio entre homens e homens e natureza) mediante o qual os produtos dos homens
se completam uns aos outros, pois os homens em suas individualidades produzem uns
para os outros, desde que se encontrem numa forma social humana, na comunidade
15. Daqui em diante todas as notas citadas em C.P., seguidas do número da página referem -se ao texto:
Cuadernos de Paris [Notas de Lectura de 1844]. México: Ediciones Era, 1974. Tradução de Adolfo Sanches
Vasquez.
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Revista Communicare
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humana. Porém, na sociedade mercantil o dinheiro assume o papel daquele dinamismo
relacional expressando, ao contrário, que a atividade mediadora social, esse ato humano, “encontra-se estranhado e convertido em atributo do dinheiro, de uma coisa material, exterior ao homem” (CP, p. 126), e isso obviamente numa sociedade regida pelas
trocas, pelo mercado; esse é motivo que conduz Marx a reafirmar a atividade humana
como atividade estranhada, alienada, já que seus verdadeiros atributos aparecem como
atributo do mediador, no dinheiro.
Depois de avançar na crítica às formulações de Mill sobre o dinheiro, Marx extrai
consequências nem de longe percebidas por aquele, como, por exemplo, o fato de que,
diante do dinheiro, o homem “se aliena desta atividade mediadora, ele é ativo apenas
como um homem que se perdeu a si mesmo, desumanizado”, pois, continua Marx, “o
homem mesmo deveria ser o mediador para os homens” (CP, pp. 126-7), confirmando
assim sua posição de como deveriam ocorrer as relações homem a homem, na comunidade, numa sociedade humana verdadeira, em que sua atividade pudesse manifestar
verdadeiramente sua essência, sua generidade ativa e autoconstrutora. Esse mediador,
sendo “o poder real sobre aquilo com que me ponho em relação, é claro que se converte
no Deus efetivo” (CP, p. 127).
Marx procura explicar sua conceituação sobre a alienação e o estranhamento observando a assemelhação existente entre dinheiro e divindade, formas distintas, histórica e socialmente, mas igualmente reveladoras de uma mesma fenomênica. Desta forma,
diz Marx, “[Cristo representa originalmente: 1] os homens frente a Deus; 2] Deus para
os homens; 3] os homens ante o homem” (CP, p. 128). E continua em seguida: “[De igual
maneira, o dinheiro representa originalmente, segundo seu conceito: 1] a propriedade
privada para a propriedade privada; 2] a sociedade para a propriedade privada; 3] a propriedade privada para a sociedade” (CP, p. 128), para completar afirmando que: “Cristo
é tanto o Deus alienado como o homem alienado. Deus só tem valor na medida em que
representa Cristo, o homem só tem valor na medida em que representa Cristo. O mesmo
sucede com o dinheiro” (CP, p. 128).
Desta forma, ao renunciarem à atividade mediadora como prática direta, homem
a homem, ao aceitarem o dinheiro na forma em que se encontra, os homens mantêm-se
envoltos no estranhamento que o dinheiro manifesta e colocam-se em posição subordinada aos seus insondáveis desígnios, a uma sociabilidade por eles não controlada nem
compreendida, a exemplo de sua subsunção religiosa.
Importa afirmar também que Marx busca especificar o mediador, e como tal refletir sobre sua negatividade ao reafirmar seu caráter alienado e estranhado. Além do
cotejo entre dinheiro e divindade, Marx colocará em pauta a política, destacando o estado como encarnação de mesma fenomênica: assim como o dinheiro encarna a forma
do mediador, o estado cumprirá em sua efetividade papel semelhante:
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Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
O estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Assim como o Cristo
é o mediador a quem o homem confia toda sua divindade e toda sua servidão religiosa,
o estado é o mediador a quem o homem confia toda sua não-divindade, e toda sua
limitação humana.16
A limitação humana aqui é referente a seu ser-terreno, mundano; implica
diretamente o desenvolvimento ou não das suas forças produtivas. De forma que o
estado e a política permanecerão presentes na medida em que tais forças produtivas
se mostrem incapazes de efetivar sua autoconstrução, efetivar a objetivação da
essencialidade humana.
É esta forma social, a comunidade egoísta, que a economia política tem como objeto científico, a sociedade da propriedade privada, pois é esta a categoria que sustenta
tal sociedade, já que para essa ciência não existe riqueza sem propriedade privada. Contudo, vale reafirmar a posição de Marx em dizer que a economia política não explica a
necessidade dessa categoria central deixando sem fundamento sua teoria; a propriedade
privada aparece, nesse âmbito, como um fato carente de necessidade. A economia não
a fundamenta, não a explica, mas a torna coisa determinante a todo o agir humano,
enquanto que posicionado criticamente Marx demonstra ser essa categoria a base da
alienação e do estranhamento sociais.
Ele observa, adiante, que as relações sob a comunidade egoísta, sob a propriedade
privada, convertem a reciprocidade do intercâmbio humano em relações mercantis de
troca, reafirmando o atributo humano nos objetos que resulta por conferir a essa forma
relacional uma recíproca alienação: “O verdadeiro poder sobre um objeto é o meio; por
esta razão, tu e eu vemos reciprocamente em nosso objeto o poder de um sobre o outro
e sobre si mesmo. Quer dizer, nosso próprio produto se voltou contra nós” (CP, p. 153),
pois ele se converte em meio de dominação, e, como tal, sua posse, ao contrário de proporcionar o gozo recíproco e completo, promove a exclusão recíproca dos indivíduos.
Marx indica a complementação dessa inversão expressando que o objeto “parecia ser
propriedade nossa, porém, na verdade somos nós sua propriedade. Estamos excluídos
da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui ao outro homem” (CP, p.
153). Isto é: esse poder era supostamente sua propriedade e, no entanto, cada um o reconhece como poder do objeto, sem, contudo, explicar a mágica dinâmica que o transferiu para o objeto.
Por outro lado, o produto da atividade social, ou genérica, a propriedade privada
alienada do homem, expressar-se-á, concomitantemente, como atributo do mediador,
do dinheiro; o mediador converter-se-á na essência alienada da propriedade privada, uma
forma exterior a ela, de existência independente. Se a propriedade privada expõe-se como
16. Marx, K. Sobre la Cuestión Judía, in Marx – Escritos de Juventud., México: Fondo de Cultura
Económica, 1987.
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mediação alienada de si no interior das relações consigo mesma, é porque essas relações
avançaram até a forma do mediador. É óbvio também que a presença do mediador só
tem sentido real sobre a base da existência da propriedade privada. Assim, quando se
questiona: “Por que tem a propriedade privada que avançar até a instituição do dinheiro?”, Marx de pronto responde que “como ser social [o homem] tem que avançar até o
intercâmbio, e /.../ o intercâmbio – sob as condições da propriedade privada – tem que
avançar até o valor” (CP, p. 128). Desta maneira, o acabamento da forma alienada que
assume a atividade humana sob a propriedade privada, sua reafirmação e reprodução
configuram-se no mediador, no dinheiro como determinante dessa forma social.
Não é difícil notar a exclusão humana que vai sendo processada no movimento e
dinamismo de sua própria atividade, e a expressão cada vez mais negativa das relações
humanas que se operam sob essa forma; e, sob o prisma dessa negatividade; Marx afirma:
Com efeito, o movimento mediador do homem que intercambia não é um movimento
social, um movimento humano, uma relação humana; é a relação abstrata da propriedade
privada com a propriedade privada, e esta relação abstrata é o valor, cuja existência efetiva
como valor é o dinheiro (CP, p. 129).
A ontonegatividade do valor revela-se aí sob a forma dessa relação abstrata, pois
não se trata de relação humana, de “um movimento social, um movimento humano”, já
que os indivíduos se encontram sob seu controle, sob o “Deus efetivo”; o caráter negativo se especifica por converter a atividade humana à forma valor, do dinheiro, forma
exterior aos homens que os submete. Assim, a alienação e o estranhamento a que são
submetidos os homens em suas próprias atividades encontram significado apenas nas
relações da propriedade privada consigo mesma, e na sua conversão em dinheiro, pois
a atividade humana está nela convertida.
Repondo a expressão de Marx na qual afirma que: “como ser social [o homem]
tem que avançar até o intercâmbio, e porque o intercâmbio – sob as condições da propriedade privada – tem que avançar até o valor”, entende-se que a natureza do intercâmbio nessa forma social encontra seu significado na propriedade privada, e é nessa
condição que o valor se põe, é nessa condição que a atividade humana toma a forma
de valor, cuja existência como tal, diz Marx, é o dinheiro; porém, para ser dinheiro, é
preciso ser antes uma relação não-humana, “uma relação da propriedade privada com
a propriedade privada”, uma relação abstrata, que se define como valor, uma relação
negativa, pois externa aos indivíduos e suas necessidades, uma relação contingencial
que não é efetiva para a essencialidade mesma do homem.
Na sua trajetória crítica, Marx vai delineando a forma social sob a qual se encontram as categorias de alienação e estranhamento surgidas nos processos de produção
para troca, na sociedade mercantil (capitalismo). Sua crítica torna-se fundamental para
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Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
a compreensão de que a forma social, a generidade ativa do homem, sua essencialidade, estão submersas àquelas categorias que Marx trata como caricaturas da verdadeira sociedade, categorias que emolduram a comunidade egoísta, em oposição
radical ao que seria a comunidade humana, verdadeira, integral. Essa comunidade
não é produto de qualquer idealidade marxiana, visto sua constante indicação de
que a verdadeira essencialidade humana se revela na externalização relacional do
homem, na sua generidade. Assim, mesmo que o intercâmbio entre os homens
tenha sido substituído pela relação de troca, pela propriedade privada, pelo mediador, diz Marx, persiste algo na sociedade que permite vislumbrar a indissolubilidade de indivíduo e gênero: a necessidade humana como elo insuprimível, isto é, a
necessidade como manifestação externalizada, objetivada nos atributos humanos.
A necessidade de algo externalizado posto pela produção humana é a “prova irrefutável de que ele pertence a minha essência”, confirmando ser o gênero a própria
essência do indivíduo.
Como foi visto, as relações de estranhamento e alienação assumidas pelos
proprietários privados se generalizam obrigatoriamente, implicando na constatação de que a comunidade mercantil é a encarnação dessa fenomênica. A fundamentação de Marx ao refutar a comunidade egoísta vai à seguinte direção: “enquanto o homem não se reconheça como homem e, portanto, organize o mundo
de maneira humana, esta comunidade aparecerá sob a forma do estranhamento”
(CP, p. 137). Portanto, a forma social própria da economia política, com intercâmbio, propriedade privada etc., não é e nem pode ser uma comunidade humana, é a
manifestação de uma comunidade estranhada. Marx contrapõe a essa comunidade
outra, despojada da alienação, do estranhamento, das condições fundantes dessa
forma social de existência da economia política, para mostrar que, na comunidade
verdadeira, “o verdadeiro ser comunitário é a essência humana”, pois é resultado e
projeto da atividade dos homens:
seu próprio espírito, sua própria riqueza (CP, p. 137)
Atentemos para o fato de que o autor, aqui, está expondo a forma essencial
dessa comunidade, desse ser, de como se põem os indivíduos, que, antes de tudo,
são essa própria comunidade, e não forma invocada pela idealidade abstrato-universal, como ele já apontou. Portanto, trata-se de “comunidade verdadeira [posta]
em virtude da necessidade e do egoísmo de cada indivíduo; quer dizer, é produzida
de maneira imediata na realização de sua própria existência” (CP, p. 137). E avançando nessa direção, diz ele: “Esta essência são os homens, não em uma abstração,
senão como indivíduos particulares, vivos, reais. E o modo de ser deles é o modo
de ser daquela” (CP, p. 137).
Por outro lado, a comunidade posta sob o efeito determinante da propriedade privada, das categorias sociais características da economia política, a comunidade estranhada não pode ser outra coisa senão o repositório de indivíduos estranhados, ou seja: “é exatamente igual dizer que o homem se estranha de si mesmo e
dizer que a sociedade deste homem estranhado é a caricatura de sua comunidade
real, de sua verdadeira vida genérica” (CP, p. 137). Vê-se então que a alienação dos
indivíduos lhes confere uma comunidade igualmente alienada; que a verdadeira
vida, o seu ser genérico, seu gênero é sua comunidade, mas, uma vez alienada,
converte-se em caricatura da comunidade verdadeira.
Assim, essa deformidade que acomete a comunidade corresponde à deformidade do indivíduo, cujo sofrimento se explicita no âmbito de sua vida real:
Sua atividade se lhe apresenta como um tormento, sua própria criação como um
poder estranho, sua riqueza como pobreza; /.../ o vínculo essencial que o une
aos outros homens se lhe apresenta como um vínculo inessencial, e melhor, a
separação com respeito aos outros homens como sua existência verdadeira; /.../ sua
vida se apresenta como sacrif ício de sua vida, a realização de sua essência como
dos produtos humanos entre si = a atividade genérica e ao desfrute genérico, cuja
desrealização de sua vida, sua produção como produção de seu nada, seu poder
existência real, consciente e verdadeira é a atividade social e o desfrute social (CP,
sobre o objeto como poder do objeto sobre ele; /.../ ele, amo e senhor de sua criação,
pp. 136-137).
aparece como escravo desta criação (CP, pp. 137-138).
Os homens, ao pôr em ação essa essência, criam, produzem a comunidade humana,
a entidade social, que não é um poder abstrato-universal, enfrentado ao indivíduo
Revista Communicare
singular, senão a essência de cada indivíduo, sua própria atividade, sua própria vida,
O intercâmbio, tanto da atividade humana no próprio processo de produção como
Ou seja, o “modo de existência real, consciente e verdadeiro” dos homens,
que se objetiva por seu dinamismo social, tem que reverter-se na fruição social dos
próprios indivíduos. Pode-se vislumbrar aqui que o centro de sua atenção é o ser
social. Mas que ser é esse?
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Essa longa citação serve-nos na captação e compreensão do significado
que tem, em Marx, a alienação da comunidade, e ao mesmo tempo sua radical
diferenciação em relação aos moldes daquela sociedade despojada da alienação.
Outro tema que é posto de manifesto nos “Cadernos” é o valor trabalho que
abrirá outra polêmica com os clássicos autores da economia política. Ele aborda
a problemática do valor, com base no trabalho, para comentar um tema comum
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Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política
tanto a Ricardo quanto a Smith, que é o capital como trabalho acumulado. Destaca
esse ponto afirmando que tal posição só pode ter como significado que a economia
política reconhece o trabalho “como o único princípio da riqueza”, tema que ele já
havia sublinhado em sua abordagem do pensamento de Smith; contudo, continua
ele, essa postura teórica “denigre e empobrece o trabalhador e faz do próprio trabalho uma mercadoria; e isto é tanto um axioma teórico necessário de sua ciência
como uma verdade prática da vida social atual” (CP, p. 160). Marx reconhece a
compatibilidade teórica e prática dessa formulação, mas chama a atenção para o
fato de que tomar o trabalho como único princípio de riqueza dissimula o caráter
inumano que essa realidade imprime sobre o trabalho humano. E, na complementação de seu comentário, aprofunda criticamente essa posição, ao indicar que a
abordagem da economia política que toma o trabalho acumulado como fundamento da origem do capital desabona ainda mais o trabalho, que aparece agora
“sob a figura de um capital e não como atividade humana” (CP, p. 161).
Marx evoca insistentemente a realidade viva para indicar a desumanidade
com a qual a economia política estrutura sua fundamentação, escavando nas formulações dessa ciência o conteúdo humano que está dissimulado, expondo-o em
sua imanência. Isso lhe permite sempre acrescentar as consequentes inumanidades
que decorrem do procedimento real da economia política, como, por exemplo, o
caso do equilíbrio entre oferta e procura suposto naquele corpo teórico: “O equilíbrio é somente um equilíbrio entre capital e trabalho como entidades abstratas, um
equilíbrio que não tem em conta nem o capitalista nem a pessoa do trabalhador”
(CP, p. 163), indicando, também, a forma especulativa que resulta das abstrações
manipuladas pela economia política.
Por fim, Marx segue criticamente afirmando que a economia política, tendo
em Ricardo um de seus maiores representantes, move-se de forma contraditória,
pois, ao excluir o caráter intelectual do trabalho, Ricardo justifica a diferença de
classe, e tudo o mais que dela provém. Neste ponto, é possível vislumbrar a mediação positiva do real nas suas argumentações críticas em que reafirma o caráter
contraditório daquela ciência: a economia política defende não ser sua finalidade
reduzir-se a bens materiais imediatos, contudo, é o que resta para o trabalhador;
que, na prática, a economia política, para alcançar a liberdade, lega à maioria a
servidão; que as necessidades materiais não são o único fim desejado, mas as converte em fim único para a maioria; da mesma forma, se o fim é o matrimônio, a
realidade da economia política lega a prostituição para a maioria; e, por último, diz
Marx, sendo o fim a propriedade privada, ela lega a carência de propriedade para
a maioria.
42
Revista Communicare
Ivan Cotrim
Referências
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CHASIN, J. Marx – “Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica”, in GIANNOTTI, J. A., Origens da Dialética do Trabalho – Estudo sobre a Lógica
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LUKÁCS, G. El Joven Hegel y los Problemas de la Sociedad Capitalista. 3ªed.
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______________. Ontologia do Ser Social – A Falsa e a Verdadeira Ontologia
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MÉSZÁROS, I. Marx: A Teoria da Alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MONDOLFO, Rodolfo. Estudos sobre Marx (histórico-críticos). São Paulo:
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TEIXEIRA, F. J. S. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de ‘O
Capital’. São Paulo: Ensaio, 1995.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Comunicação, meios e mensagens
Estudo da telenovela brasileira:
questões de método
Sabina R. Anzuategui
Faculdade Cásper Libero (docente), ECA-USP (doutoranda, orientação Esther Hamburger)
Este artigo discute o estudo da história da telenovela brasileira, analisando obras de referência e apresentando um estudo preliminar da telenovela O grito, de Jorge Andrade. Procura-se analisar as fontes
e metodologia das pesquisas, e apontar novas abordagens possíveis.
Palavras-chave: Telenovela; dramaturgia; história; Jorge Andrade.
Study of Brazilian telenovela: questions
of method This article presents a critical study of cur-
Lo estudio de la telenovela brasileña:
cuestiones de método En este artículo se pre-
rently available publications on the history of Brazilian so-
senta un estudio crítico de las publicaciones disponibles
apopera. It also presents a preliminary study of O grito, writ-
en la actualidad sobre la historia de la telenovela brasileña.
ten by Jorge Andrade. Keywords: Soapopera; dramaturgy;
También se presenta un estudio preliminar de la telenovela O
history; Jorge Andrade.
grito, escrita por Jorge Andrade. Palabras clave: Telenovela;
dramaturgia; historia; Jorge Andrade..
Estudo da telenovela brasileira: questões de método
Introdução
O termo “televisão experimental” tem sido usado recentemente para designar certa
produção televisiva que não se enquadra nos padrões habituais do meio, em seus vários gêneros. Em 2008 foi lançado o livro Experimental British Television, organizado
por Laura Mulvey e Jamie Sexton, com artigos sobre história e estética dessa produção na Inglaterra. No Brasil, alguns pesquisadores começam a usar esse conceito, que
entretanto continua pouco conhecido.
O que seriam programas de TV experimentais? A introdução de Experimental British Television traz algumas considerações, destacando a extrema variedade
de recursos formais usados nos programas de televisão, em sua curta história, por
mudanças de tecnologia, contexto social, leis e normas institucionais. Paralelamente
a essa variedade, argumenta-se, houve sempre um modo específico de recepção no
ambiente doméstico, que por vezes teve mais atenção dos estudiosos que os próprios
recursos formais. Seguindo esse diagnóstico, Mulvey conclui que o conceito de experimentalismo, na TV, deve encontrar suas bases próprias de análise.
O conceito de estética experimental, em todas as artes, desenvolveu-se a partir da
questão da especificidade dos meios. No caso da televisão, a ‘especificidade’ se complica
não apenas por sua tecnologia inconstante, mas também pela grande estabilidade nos
locais de recepção. (Mulvey & Sexton 2007: 2)2
Apesar das dificuldades de definição, os autores insistem na validade do termo
(mais evocativo que definitivo, em suas palavras), como estímulo a novas abordagens
nos estudos sobre televisão. Ressaltam ainda diferentes interpretações do que seja experimentalismo: para os autores, o enfrentamento da suavidade doméstica – espaço
habitual de recepção da TV – pode tornar um programa mais “experimental”, mesmo
que este permaneça convencional no modo de encenação.
Programas experimentais ampliaram os limites de aceitação, não apenas por inovações
estéticas mas também por desafiar – na tradição da estética negativa – a complacência
do próprio meio. (Mulvey & Sexton, 2007: 3)3
Tal abordagem pode ser inspiradora para compreender algumas telenovelas da
década de 1970, já mencionadas na bibliografia especializada como “alternativas” ou
“experimentais” (Campedelli, 1985: 34). Tal grupo inclui as novelas exibidas às 22h
2. No original, “The concept of experimental aesthetics, across the arts, has evolved particularly around
the question of medium specificity. In the case of television, ‘specificity’ is complicated not only by the
medium’s fluctuating technology but also by its, largely stable, site of reception.”
3. No original, “Experimental programmes have pushed at the boundaries of acceptability, not only
positively through aesthetic innovation but also, in the tradition of negative aesthetics, as a challenge to the
complacency of the medium itself ”.
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Revista Communicare
Sabina R. Anzuategui
na TV Globo, e algumas poucas exibidas às 20h na mesma emissora4. Foram projetos
ousados por sua temática e aspectos formais, como O cafona (1971)5 e O rebu (1974)6,
de Bráulio Pedroso; Bandeira 2 (1971)7 e O espigão (1974)8 , de Dias Gomes; Espelho
mágico (1977) , de Lauro Cesar Muniz; O grito, já mencionada, de Jorge Andrade.
A leitura das sinopses dessas obras é bastante estimulante. Tais resumos indicam um período de criatividade poucas vezes repetido no formato. Mas, depois de
consultar as informações básicas disponíveis em dicionários e almanaques, é dif ícil
aprofundar o conhecimento sobre tais novelas. Há breves cenas disponíveis em sites
de vídeo, e é possível comprar alguns capítulos avulsos oferecidos por colecionadores
na internet. Mas a fruição da obra completa é bastante dif ícil. Não há cópias para
venda, não há o texto publicado, nem um museu com esse tipo de acervo aberto ao
público. Além disso, a bibliografia especializada raramente oferece análises interpretativas mais detalhadas, no aspecto estético. Os principais estudos concentram-se em
questões sociais, e a discussão dos aspectos formais poucas vezes ultrapassa considerações generalistas baseadas em sinopses.
A partir dessa constatação, uma questão se apresenta: é possível avançar nos estudos do formato sem enfrentar as questões formais? E como elas devem ser enfrentadas?
A aproximação com outras áreas, como os estudos literários e a teoria do cinema, seria
um caminho natural. Buscando algumas obras de referência, encontramos o excelente
artigo de Hans Robert Jauss, A história da literatura como provocação à teoria literária,
publicado originalmente em 1967. Ele apresenta considerações teóricas importantes, a
partir de um debate que houve entre diferentes correntes nos estudos de literatura. Jauss
defende o projeto de uma história da literatura “estético-recepcional”:
Tal projeto tem de considerar a historicidade da literatura sob três aspectos:
diacronicamente, no contexto recepcional das obras literárias (...); sincronicamente,
no sistema de referências da literatura pertencente a uma mesma época, bem como na
sequência de tais sistemas (...); e, finalmente, sob o aspecto da relação do desenvolvimento
literário imanente com o processo histórico mais amplo. (Jauss, 1994: 40)
A perspectiva de relacionar questões históricas e formais na produção brasileira
de telenovelas, seguindo as considerações de Jauss, é sedutora. Mas esbarra em um problema primário: Jauss escreve sobre literatura, propondo novas abordagens para textos
4. Há também experiências em outros canais, que não foram consideradas neste artigo por dois motivos.
Primeiro, por concisão. Segundo, porque apenas na TV Globo essas produções se aglutinaram numa faixa
de horário estável e contínua, por um período longo de dez anos.
5. Dirigida por Daniel Filho e Walter Campos.
6. Dirigida por Walter Avancini e Jardel Mello.
7. Dirigida por Daniel Filho e Walter Campos.
8. Dirigida por Régis Cardoso.
9. Dirigida por Daniel Filho, Gonzaga Blota e Marco Aurélio Bagno.
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Estudo da telenovela brasileira: questões de método
de história literária já existentes. No caso da telenovela brasileira, não há um texto histórico abrangente e atualizado, que situe as modificações temáticas e formais, comparando autores, diferentes estilos, mudanças estéticas no correr das décadas, realizado com
método de pesquisa criterioso.
Existe naturalmente muita coisa escrita sobre aspectos particulares; a pesquisa em
telenovela foi muito rica nos anos recentes. Mas não existe uma visão geral e atualizada: o texto mais próximo desses parâmetros foi realizado em 198810. Além disso, muitos artigos mais recentes11, quando se dedicam às questões formais, mantêm a mesma
metodologia da década de 1980: baseiam-se em depoimentos, sinopses e material de
imprensa. Poucos passaram à etapa de análise do objeto, imprescindível para o estudo
de um trabalho audiovisual: observação, descrição e compreensão da obra em sua materialidade (texto, som e imagem).
O pesquisador Arlindo Machado destaca essa questão há muitos anos, como, por
exemplo, na introdução de seu livro A televisão levada a sério, publicada em 2000. Entretanto, pouco se avançou nesse aspecto.
Telenovela experimental da década de 1970
Iniciei meu doutorado em 2008, escolhendo como objeto de estudo a telenovela O
grito, de Jorge Andrade12. Como base para essa pesquisa, dediquei o ano de 2009 a um
estudo crítico da bibliografia disponível13 sobre a história da telenovela brasileira14. O
objetivo era organizar os dados disponíveis, e levantar questões teóricas e metodológicas para meu doutorado.
O livro analisado em mais profundidade foi a obra de Ortiz, Borelli e Ramos, que
consideramos ainda a mais abrangente para nossa abordagem (especialmente o capítulo A telenovela diária, escrito por Ramos e Borelli, que trata das décadas de 1960 a
1980). Lendo com atenção sua bibliografia de referência, percebem-se as fontes principais: livros, matérias de imprensa e monografias realizadas com o apoio de fundações
culturais. Destacam-se três desses projetos: o primeiro, sobre televisão, realizado pela
Funarte em 1981-82; outro, sobre telenovela, desenvolvido no Idart a partir de 1979; e o
terceiro, também sobre telenovela, apoiado pela Finep em 1986.
Tais projetos geraram algumas monografias, além de registrar depoimentos de
10. Telenovela, história e produção, de Ortiz, Borelli e Ramos.
11. Ver lista de artigos comentados em Malcher (2002) e Figueiredo (2009).
12. Exibida entre 1975 e 1976 na TV Globo, às 22h. Dirigida por Walter Avancini, Roberto Talma e
Gonzaga Blota.
13. Refiro-me a pesquisas históricas de produção e exibição. Abordagens mais direcionadas a questões
sociais (recepção e mercado) não foram incluídas nessa etapa.
14. Pesquisa apoiada pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero
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Revista Communicare
Sabina R. Anzuategui
profissionais de TV e dramaturgia. Foram basicamente essas fontes – livros, reportagens e depoimentos – que fundamentaram o livro publicado em 1989.
Na leitura atenciosa do capítulo mencionado de Ramos e Borelli, suspeita-se que
poucas telenovelas foram de fato assistidas. Das obras, são mencionadas sinopses (p.
94) e referências genéricas. Não fazemos aqui uma exigência anacrônica à pesquisa
pioneira, realizada há mais de vinte anos. Mas, hoje, é evidente a insuficiência dessa
abordagem.
Para detalhar a argumentação, concentro meus comentários no período de 1969 a
1977, em que se estabeleceram as relações mais tensas entre autores, governo militar e
empresas de televisão. Em junho de 1969, meses depois do AI-5, Dias Gomes escreveu
sua primeira telenovela na TV Globo, com o pseudônimo de Stela Calderon. Em 1977,
Lauro Cesar Muniz criou Espelho mágico, a experiência formal mais ousada em telenovelas no horário das 20h. A radicalização política ocorrida a partir de 1968 deu início
ao período de maior experimentação na história da telenovela brasileira. A partir do
fracasso de audiência de Espelho mágico, esse ciclo foi logo encerrado.
No capítulo de Ramos e Borelli, esse momento é comentado em menos de 20 páginas (pps. 80-98), e boa parte do texto se dedica à conjuntura política – especialmente à
relação de autores e emissoras com as propostas de cultura do governo militar. Das novelas, propriamente, mencionam-se os títulos, estatísticas e traços gerais de tema ou estilo:
Contradições na metrópole, conflitos políticos e cultura popular num clima fantástico,
atores e atrizes enfocados ‘simplesmente’ como seres humanos, valores sociais e morais
em choque. A preocupação norteadora é o ‘retrato da realidade’, ‘espelho da realidade’,
‘fidelidade à realidade’. Tarefa dif ícil, inserir a forma realista, com pretensões críticas, no
interior do principal produto da indústria cultural. (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 94)
Sobre Dias Gomes, um dos principais autores do período, comenta-se:
A partir daí temos um escritor que, no interior do gênero, procura se diferenciar como
antinovelístico. Em suas estórias circulam temáticas e personagens como: ‘o preconceito
de cor, coronelismo, dinheiro como força corruptora, divórcio, celibato de padres, zona
sul do Rio de Janeiro, jogadores de futebol, retirantes e marginais do jogo do bicho e
contrabando’. Ideário ficcional também presente no cinema, na música e no teatro dos
anos 50 e 60. (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 93)
Tais passagens resumem questões importantes de tal produção, mas dizem muito pouco sobre a forma dessas novelas. Afinal, como eram elas? Quais os recursos de
câmera, a formação dos atores, a construção literária dos diálogos, o conteúdo e a dinâmica das cenas? Quem não vivenciou o período não tem como saber. No capítulo
O produto telenovela, Ortiz e Ramos usam uma página para descrever a melhoria nas
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Estudo da telenovela brasileira: questões de método
condições de produção das novelas da TV Globo, entre Selva de pedra (1972)15 e Roda
de fogo (1986-1987)16. Avaliam que uma “sequência de fuga” é “tosca em termos de tomadas” (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 124), que a cidade de Paris, numa cena, aparece
“numa precária back projection que se resume a uma imagem do Arco do Triunfo”, e que
algumas aberturas são realizadas com “desenhos” e “gravuras” (Ortiz, Borelli & Ramos,
1989: 125). Nessa página, pode-se visualizar algumas cenas, fornecendo ao leitor fundamentos mais concretos para a argumentação dos autores. Mas é apenas uma página,
que trata de cenas de efeito (acidentes, cenários internacionais). E as outras cenas, que
formam a maior parte de uma novela, com os personagens dialogando em cenários
internos, como casas, escritórios, restaurantes, etc. Sua realização é tão óbvia que não
precisa ser descrita? Não existem recursos específicos, variações e nuances que merecem alguma atenção?
O grito de Jorge Andrade
Comentários sobre um exemplo específico devem ilustrar melhor o problema.
A telenovela O grito, já mencionada, é assim resumida no Dicionário da TV Globo:
semana, exibida em capítulos diários durante seis meses, sem que os espectadores
percebam? Como isso foi realizado? Objetivamente: que estratégias narrativas foram
usadas para que o tempo cronológico de sete dias se estendesse por sessenta horas de
dramaturgia, divididas em cento e vinte cinco capítulos de trinta minutos?
Nada responde essa pergunta, a não ser a estratégia óbvia: assistir à obra completa,
ou ler os roteiros.
Essa primeira dúvida se refere à organização global da trama; prossigo com outros
aspectos. Lendo a sinopse, nada se deduz sobre o estilo dos diálogos. Eram realmente
“coloquiais”, como descreve repetidamente a bibliografia especializada?18
A leitura dos roteiros desmente parcialmente essa noção. Entre diversas passagens
notáveis, sugiro como exemplo as falas da personagem Kátia – jovem secretária, solteira
e impetuosa, sobrevivente do incêndio do edifício Joelma19. No meio da trama, ela se
comove com a solidão de Agenor – executivo mal visto pelos moradores, pois sai escondido à noite, vestindo roupas “extravagantes”. Kátia resolve ajudá-lo, ou seja: seduzi-lo,
trazê-lo de volta à “normalidade”. Um amigo e eventual amante, o jovem médico Orlando, considera a ideia descabida. Diz a ela: “Não adianta bancar a samaritana sexual!”
(Andrade, 1976: capítulo 58, Cena 6). A conversa prossegue:
Kátia – Existem homens, mulheres, homossexuais e lésbicas! Não posso crer que alguém
Ambientada na cidade de São Paulo, a trama retrata o crescimento célere e desordenado
não seja nada, não tenha feito uma opção.
das grandes cidades e os problemas de seus habitantes, abordando os conflitos entre
Orlando – Pois há!
os moradores do Edif ício Paraíso. O prédio foi construído no terreno da mansão de
Kátia – Quero ver para crer! Depois, sou assim. Tenho muita pena dos que sofrem. E
uma família paulista quatrocentona, cujos remanescentes, Edgard e Mafalda, moram na
deve ser um sofrimento horrível viver tão só, tendo a solidão como única companheira!
cobertura. Os outros apartamentos, menores, são habitados por pessoas da classe média
(Andrade, 1976: capítulo 58)
e baixa. Num deles vive Marta e Paulinho, seu filho deficiente mental que costuma gritar
à noite, incomodando os vizinhos. O conflito principal gira em torno da mobilização de
alguns moradores para expulsar o menino. (Projeto Memória Globo, 2003: 59)17
A sinopse apresenta temas, e sugere a trama central. Não há menção ao modo
narrativo. No Almanaque da telenovela brasileira¸ de Nilson Xavier, surge um indício:
Sem ser informado sobre a unidade de tempo da história, o telespectador foi surpreendido
no final de O grito ao descobrir que a trama toda se passou em uma única semana. O
autor teve o cuidado de não deixar o público perceber esse detalhe durante os seis meses
de exibição da novela. (XAVIER, 2007: 162)
Informação breve, mas fundamental: uma narrativa com tempo diegético de uma
15. Escrita por Janete Clair, dirigida por Daniel Filho e Walter Avancini.
16. Escrita por Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, dirigida por Dennis Carvalho e Ricardo
Waddington.
17. Na citação, omiti os nomes dos atores para facilitar a leitura.
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Sabina R. Anzuategui
Revista Communicare
A mesma personagem declara, sobre a mesma situação, no capítulo 99: “É realmente fantástico o que se pode fazer neste mundo com um busto aerodinâmico!”20
Como sugere a bibliografia, há realmente recursos coloquiais nesses diálogos. Há
marcas de oralidade (“depois, sou assim”), mas se mantém certo respeito à norma culta.
Quanto ao vocabulário, há uma alternância entre expressões antiquadas e modernas.
Por exemplo, “realmente fantástico” e “busto aerodinâmico” se misturam a “não posso
crer” e “solidão como única companheira”. Um estudo sobre as variações históricas e
estilísticas no texto de Jorge Andrade pode mostrar aspectos interessantes. Há tantas
perguntas possíveis: quando o adjetivo “fantástico” passou a ser usado com o sentido de
“admirável”? Seria possível pesquisar o uso dessa palavra na época de exibição da nove18. Entre muitas referências, ver Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 78.
19. Tragédia ocorrida na cidade de São Paulo, em fevereiro de 1974, em que morreram 187 pessoas
(Caversan, 2003).
20. Todas as citações de diálogo foram extraídas dos roteiros microfilmados, consultados no Centro de
Documentação da TV Globo, conforme indicado na referência bibliográfica.
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Estudo da telenovela brasileira: questões de método
la, levando em conta que o programa dominical Fantástico estreou poucos anos antes, em
1973? Existe, nos estudos sobre a obra do dramaturgo, alguma referência às expressões
inventivas e inusitadas, com toque de humor, como a excelente “samaritana sexual”?
Numa análise atenta, tais características formais poderiam ser estudadas detalhadamente, em busca de interpretações. Uma hipótese: um tema constante na obra teatral
de Jorge Andrade é a tensão entre o mundo das grandes fazendas (anterior à crise de 1929)
e o novo capitalismo financeiro. O tema repete-se em O grito. Não poderíamos interpretar que tal tensão se manifesta nas variações linguísticas de seus diálogos? Em muitas
peças, Jorge Andrade dramatiza a memória individual e histórica por meio de recursos
formais do teatro moderno. Não seria a mesma angústia entre o arcaico e o moderno?
Existe complexidade comparável no título na novela. Ao contrário do que diz a
sinopse, a mobilização dos moradores para expulsar a criança não é o conflito principal
da obra. Marta e o filho aparecem pouco: sua função é importante como elemento catalisador, não como protagonistas da ação. Os capítulos se dedicam majoritariamente a
dramas individuais ou familiares dos outros personagens.
Os gritos noturnos têm - com muito destaque no texto - intenção alegórica. Em
vários momentos o diálogo explicita esta metáfora: o grito do menino ecoa gritos internos de cada morador do edifício e, por extensão, de cada morador da cidade. A tentativa
de expulsar o menino seria a recusa de aceitar as próprias angústias.
Dois trechos de diálogo ilustram essa estratégia. O primeiro, entre Marina e Lúcia,
no capítulo 6, referindo-se a Bento (o filho mais novo desta família):
Marina – Será que ele acordou? Ele costuma ter medo à noite.
Lúcia – As crianças têm sono profundo. (meio amarga) Ainda não têm nada que
atormente a consciência... Só as crianças e os inconscientes não acordam fácil.
Marina – Que quer dizer, mamãe?
Lúcia – Um grito como este deve lembrar a cada um... alguma coisa capaz de fazer
acordar! (Andrade, 1976: capítulo 6)
Outra conversa, no capítulo 125 (último):
Lúcia – (pensativa) E de certa maneira... os gritos do filho de Dona Marta fizeram com
que cada um ouvisse seus próprios gritos! Isto é o mais importante!
Marina – Por quê?
Lúcia – Porque suportam tudo: os uivos da cachorra do síndico, o barulho infernal
da motocicleta, do carro, da vitrola, do trânsito, do rádio, da serra elétrica, da sirena
da ambulância... de tudo! Mas não queriam suportar os gritos de uma criança doente!
(Andrade, 1976: capítulo 125)
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Revista Communicare
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Essa forma de simbolismo – eleger um motivo que fornece determinada interpretação à ação dramática, explicitada no diálogo – foi muito usada no teatro naturalista.
As contradições de tal estratégia são analisadas por Raymond Williams, ao comparar
The wild duck, de Ibsen, e A gaivota, de Tchekhov:
A função é clara. A gaivota enfatiza como símbolo visual – um objeto de cena – a
ação e a atmosfera. (…) Funciona com precisão, num plano simplesmente ilustrativo.
As correspondências, como vimos, são estabelecidas cuidadosa e explicitamente [nos
diálogos]. Mas em qualquer outro plano, e justamente no plano simbólico que se
costuma considerar, o recurso torna-se essencialmente impreciso; uma análise séria deve
considerá-lo basicamente um gesto lírico (Williams, 1969: 103-104)21.
Os procedimentos dramáticos têm sua história, discutida nos estudos literários
e teatrais. O estudo formal da dramaturgia é um aspecto importante na biografia de
Jorge Andrade, que se formou na EAD (Escola de Arte Dramática de São Paulo)22. Não
é possível excluir tais questões na análise de uma telenovela escrita por ele. São aspectos
centrais de sua obra teatral, e estão evidentes também nos textos para TV.
A lista algo vertiginosa de possibilidades para o estudo de O grito serve como
demonstração de uma riqueza potencial: a investigação formal e detalhada de uma telenovela. A observação da obra completa (em vídeo, nos roteiros, ou comparando os dois
materiais, conforme a abordagem escolhida) abre perspectivas admiráveis. Sinopses,
críticas e depoimentos não podem nunca substituir esse exame.
Propostas de teoria e método
Concluindo a argumentação, apresento um resumo das questões levantadas. Primeiro, ressaltamos que o conceito de televisão experimental – ainda que de forma vaga
e incipiente – traz a primeiro plano um aspecto pouco estudado da produção televisiva brasileira: as estratégias formais de discurso (verbal e audiovisual). Ao destacar a
importância de programas que destoam dos formatos recorrentes (ainda que tenham
impacto social mais restrito e baixa audiência), o estudo da TV experimental revela que
a programação televisiva de maior repercussão (experimental ou não) é de fato pouco
conhecida em seus recursos de linguagem. A ideia de que a TV é um meio cultural com
produção organizada em grande escala – repetitiva e padronizada – obstruiu o olhar
21. No original, “The function is surely clear. The seagull emphasizes, as a visual symbol – a piece of
stage property – the action and the atmosphere. (…) At a simple illustrative level it is precise. The
correspondences, as we have seen, are established explicitly and with great care. At any other level, and
at the symbolic level at which it is commonly assumed to operate, it is essentially imprecise; any serious
analysis must put it down as mainly a lyrical gesture”.
22. Ver Azevedo, 2001.
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Estudo da telenovela brasileira: questões de método
dos primeiros pesquisadores, criando certa cegueira acadêmica23.
Acreditamos assim que: a) é necessária uma renovação na pesquisa histórica sobre telenovela; b) não é possível prosseguir sem a observação extensiva das obras, e sua
análise formal; c) esta análise formal deve ser relacionada às questões temáticas e ao
contexto histórico e social de cada época; e) pela complexidade dessa análise, o pesquisador deve se apoiar na tradição teórica de outras áreas, como os estudos literários e a
dramaturgia teatral.
Como já mencionado, muitos aspectos da telenovela brasileira podem ser estudados historicamente: a formação dos atores e os diferentes modos de interpretação; os
modos de encenação, gravação e edição; os diferentes efeitos gráficos; a mudança nos
modos de recepção; a relação com outras artes e a produção de outros países. Somente o enfrentamento desses aspectos, compreendidos interna e externamente (dentro
de seus próprios sistemas, e relativamente às mudanças no contexto histórico, como
sugere Jauss) pode trazer novas interpretações ao fenômeno específico da telenovela
brasileira.
Para isso, é preciso enfrentar o desafio físico de encontrar e conhecer as obras completas. O trabalho é grande: os principais acervos pertencem a emissoras privadas, que
estabelecem regras de acesso, dificultando e encarecendo as consultas; e – vencidas
essas etapas – chega-se a outra tarefa que exige esforço: milhares de páginas para leitura, centenas de horas a serem assistidas, dezenas de personagens para sistematizar e
interpretar em cada obra.
Estudos com essa abordagem demandam humildade do pesquisador. Uma disposição serena para observar o detalhe, como se faz nos estudos de obras de arte. Provavelmente, nem todas as telenovelas merecem essa atenção. E mesmo nas melhores
obras, há capítulos com grandes momentos, e outros nem tanto. Mas, entre as novelas
experimentais que pesquisei nos últimos anos, muitas são admiráveis. Elas certamente
merecem um estudo atento e objetivo, que pode revelar qualidades, hoje parcialmente
esquecidas, da criação audiovisual e artística no Brasil das últimas décadas.
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23. Sobre essa questão, ver Moreira (2000), Machado (2005) e Rodrigues & Saraiva (2009).
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Revista Communicare
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Comunicação e Mercado
Emissoras e teles: esferas de
disputa de um terreno convergente
Chalini Torquato Gonçalves de Barros
Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Professora do
Centro Universitário Jorge Amado. Salvador/ BA.
Graça Penha do Nascimento Rossetto
Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Salvador/ BA.
A convergência é marca inegável das transformações que a digitalização foi capaz de trazer para
as comunicações. Condicionadas pela tecnologia, empresas passam a transpor a barreira de seus
negócios tradicionais e invadem os mercados umas das outras, como acontece com os radiodifusores e as teles. O presente artigo procura equacionar a situação de defasagem normativa do setor
de comunicações brasileiro com pressões mercadológicas e democráticas trazendo a avaliação da
situação recente.
Palavras-chave: radiodifusão, telecomunicações, convergência.
Radiodifusión y las telecomunicaciones:
las categorías de la competencia en un
campo de convergencia La convergencia es la
Broadcasting and telecommunications:
categories of competition in a convergent field Convergence is unquestionable mark of the
marca indiscutible de las transformaciones que la digitalización
transformations that the digitalization was able to bring to
fue capaz de llevar al campo de las comunicaciones. Impulsadas
the field of communications. Conditioned by technology,
por la tecnología, las empresas empiezan a superar la barrera
companies will overcome the barriers of traditional busi-
de sus negocios tradicionales e invadir los mercados de la otra,
ness and invade the spaces of each other, as happens with
como sucede con los organismos de radiodifusión y telecomu-
broadcasters and telecommunications companies. This ar-
nicaciones. Este artículo constituye un intento de equiparar la
ticle analyzes the situation of normative gap in the Brazil-
situación de vacío normativo en el sector brasileño de las comu-
ian communications industry in the face of democratic and
nicaciones con las presiones del mercado y de la democracia,
market pressures, bringing the recent assessment of the
orientado para traer la evaluación de la situación actual. Pal-
situation. Keywords: broadcasting, telecommunications
abras clave: radiodifusión, telecomunicaciones y convergencia.
and convergence.
Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rossetto
Introdução
Convergência tecnológica
A convergência de redes, equipamentos e serviços é uma realidade cada vez mais
presente na configuração da dinâmica mercadológica do setor de comunicação. Marca inquestionável de um condicionamento de pulsão capitalista, esse movimento é
materializado pelo crescimento dos conglomerados internacionais que se rearranjam
para a cobertura de novos setores. Empresas de infraestrutura invadem barreiras da
produção de conteúdo ao passo que empresas de comunicação investem massivamente na exploração de novas formas de contato com o público, oferecendo serviços
mais interativos, partindo cada vez mais para as redes de dados. Tal dinâmica atua
para a complexificação de plataformas, criando o ambiente multimídia, e questiona
de forma agressiva, não somente as barreiras tecnológicas, mas, principalmente, os
regimentos normativos que dão conta da conformação regulatória do setor.
A necessidade de se enfrentar uma ampla revisão legislativa é algo apontado
por diversos países em matéria de comunicação. Em nações de economia central, e
de democracia já mais consolidada, a estrutura institucional que rege o setor de comunicação geralmente possui instrumentos capazes de defender o caráter de bem
público da informação. Por conta disso, a revisão nesses países tem sido para estimular a competitividade e a convergência, uma vez que o setor é identificado como economicamente bastante promissor. Já em países como os da América Latina, nos quais
governos autoritários até um passado ainda recente trouxeram atrasos democráticos
significativos, a revisão normativa do setor vem acompanhada de lutas políticas e
da mobilização de entidades da sociedade civil que, amparadas pela circunstância
de mandatos presidenciais de partidos progressistas, têm acumulado alguns avanços,
como a quebra de oligopólios consolidados (Barros, 2011).
No caso do Brasil, a legislação do setor de comunicação é marcada por uma separação entre telecomunicações (incluindo aí as TVs por assinatura) e radiodifusão.
Tal distinção é paradigmática da forma oficiosa com que a legislação das comunicações é historicamente dispersa e conivente com interesses poderosos (Ramos, 2000).
O fato é que essa distinção torna-se incoerente não somente com a realidade convergente, como se prova cada vez mais insustentável, mas especialmente porque marca
o aprisionamento do setor de radiodifusão ao Código Brasileiro de Telecomunicações
(CBT) de 1952. Trata-se de um consenso a defasagem de tal arcabouço.
O presente artigo procura equacionar a situação de defasagem normativa do setor de comunicações brasileiro com as pressões externas e internas (tanto as de cunho
mercadológico, quanto as de caráter democratizante) no que diz respeito aos reajustes de
convergência que geram o embate entre empresas de radiodifusão e de telecomunicação.
A transformação das diversas formas de comunicação em uma linguagem comum foi
tecnologicamente proporcionada pela digitalização. Com isso, o código binário trouxe
a representação de diversas formas de serviços de informação em arquivo digital, o que
abria inúmeras possibilidades de utilização. Aliado a isso, deve-se considerar o aperfeiçoamento de redes de fibra ótica e satélite que modernizavam as redes capazes de fazer
fluir tais dados digitais. Diversos serviços passaram a compartilhar um único suporte
interpenetrando informática, telecomunicações e radiodifusão, fazendo surgir um novo
campo em que confluem diferentes setores econômicos (Miguel, 2010).
Além disso, a “tradução” para o código binário potencializa o conteúdo como arquivo no que se refere à velocidade, flexibilidade e reprodução em alta qualidade. O Livro
Verde da Convergência da Comissão Europeia define convergência como “a capacidade
de diferentes plataformas de rede servirem de veículo a serviços essencialmente semelhantes ou a junção de equipamentos terminais para uso do consumidor, como o telefone,
televisão e o computador pessoal” (União Europeia, 1997: 1).
É justamente essa característica integradora, representada essencialmente pela Internet, que permitirá inúmeras formas de transmissão por redes de terminais passíveis de recepção e de interatividade nos mais variados meios como cabo, difusão terrestre e satélite.
Em termos conceituais, a convergência define-se como sendo a homogeneização dos
suportes, produtos, lógicas de emissão e consumo das indústrias info-comunicacionais.
Inicialmente tecnológico, esse processo, também chamado “revolução digital”, supõe
impactos em cenários relacionados com as culturas de produção, as formas de organização,
as rotinas de trabalho, os circuitos de distribuição e as lógicas de consumo de bens e
serviços info-comunicacionais. Impulsionada pelos processos de globalização capitalista,
está ancorada na incessante busca da velocidade, ou seja, a frenética mobilidade dos
capitais (Miguel, 2010: 50).
O fenômeno da convergência envolve, pois, uma combinação de transformações
interligadas e interdependentes, de natureza tecnológica, industrial/comercial, cultural
e social, que não está desvinculada da práxis capitalista. Ele se revela, essencialmente,
como uma inovação permanente pertinente à maximização acumulativa. Como pontua
Albornoz (1998),
(...) quando falamos de convergência estamos nos referindo a um dos processos do que
se conhece como reestruturação capitalista. É um fenômeno possibilitado por certos
avanços tecnológicos e que está dominado por uma forte reconversão dos modelos
produtivos ocidentais, a partir da crise do modo fordista de regulação (Albornoz et. al.
1998 s/p, tradução nossa).
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Como resposta a um momento de crise, portanto, a inovação proporcionada pela
convergência sustenta a promessa de uma guinada de crescimento da economia como
forma de substituir, em alguma proporção, o que foi a indústria automobilística no período pós-guerra ou, num menor grau, a informática nas décadas de 70 e 80 (Rallet, 1998:
399). Os produtos e serviços de comunicação têm ampla demanda e assumem o lugar
dos mercados relativamente saturados. Como consequência de uma tendência mundial,
“tanto o mercado televisivo como o das telecomunicações estão em vias de saturação
[...] Como consequência, as telecomunicações buscam saídas no campo do audiovisual
e a televisão no das telecomunicações.” (Richeri, 1993: 36, tradução nossa).
A produção e o consumo de bens culturais são diretamente afetados por essa dinâmica, uma vez que a busca por novas possibilidades de mercado torna-se bastante
atrelada ao desenvolvimento cada vez maior de tecnologias convergentes e ao surgimento constante de novos dispositivos. Segundo o raciocínio de Dantas (2010), a convergência tecnológica deve ser compreendida em sua relação com a horizontalização da
cadeia produtiva da indústria cultural.
Definimos esse fenômeno que costuma ser denominado “convergência tecnológica”
como um processo econômico, político e cultural que está fazendo convergir para um
mesmo regime de negócios e de práticas sociais, o conjunto da cadeia produtiva da
indústria cultural suportada em meios eletro-eletrônicos de comunicação. Onde, até
algumas poucas décadas atrás, tínhamos cadeias produtivas claramente diferenciadas e
verticalizadas em função de seus negócios, práticas sociais e tecnologias apropriadas,
tendemos a ter, de uns anos para cá e cada vez mais daqui para a frente, uma única cadeia
horizontalizada, indiferente às distintas plataformas de comunicação ou transporte, mas
segmentada conforme a divisão de trabalho, ou de valor, ao longo de todo o processo de
produção, distribuição ou recepção de bens e serviços culturais mediatizados (Dantas,
2010: 44)
A horizontalização da cadeia produtiva dá-se entre produtores, programadores e
distribuidores de conteúdo, tendo como espinha dorsal a indústria fabricante de equipamentos e sistemas presentes em todas as etapas. As funções passam a ser compartilhadas de forma que a antiga distinção entre telecomunicações e radiodifusão deve ser
desconsiderada em nome de operações convergentes de comunicação que oferecem
seus pacotes de serviços e possibilidades.
Todo esse cenário irá configurar uma coerção tecnológica e econômica exigente de
uma base regulatória que a sustente, assimilando, inclusive, sua relativização de antigos
conceitos e barreiras. Além disso, faz-se essencial que tal estrutura institucionalizada suporte não apenas um modelo de negócio que ora se configura, mas que se torne imune a
velozes obsolescências causadas pela dinâmica evolução tecnológica nos próximos anos.
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Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rossetto
2.A realidade convergente versus a desvinculação normativa
As exigências por uma nova conformação regulatória para o setor de comunicação são
uma dinâmica mundial (especialmente quando se considera o entrelaçamento das economias nacionais proporcionado pela globalização) que encontra forte discrepância na
legislação brasileira. Isso não somente porque o arcabouço regulatório do setor encontra-se disperso e defasado, mas especialmente porque ele é marcado pelo que Murilo
Ramos (2000) chamou de o “paradoxo da radiodifusão”. Trata-se de uma dissociação
normativa que retirou as telecomunicações da regência pelo CBT e da incumbência
direta do Ministério das Comunicações, à época de sua privatização em 1995, quando
a Emenda Constitucional n° 8 alterou o texto da Carta Magna para retirar do Estado a
exclusividade de sua exploração. Naquele momento, as telecomunicações viriam a ser
orientadas por uma legislação própria materializada numa Lei Geral de Telecomunicações (LGT) e ficaria sob administração da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel).
Além, portanto, de permitir a privatização das telecomunicações, a emenda excluiu a radiodifusão aberta de toda a revisão institucional por que estava passando o
setor. Isso impediu que a regulamentação que estava sendo criada englobasse as modalidades de telecomunicação caracterizadas pela transmissão de sons e imagens por
radiofrequência. A partir dessa cisão, os radiodifusores brasileiros tiveram garantida
a perpetuação de estrutura bastante conivente com seus interesses, ou seja, os líderes
do setor não teriam a interferência no seu status quo, nem mesmo qualquer ameaça à
estrutura concentrada que durante décadas foi capaz de consolidar (Barros, 2010).
A busca pelas possíveis explicações para esse feito passa pela interferência do coronelismo eletrônico e clientelismo político no estabelecimento dessa separação. Aqui,
torna-se peça-chave a influência de interesses de empresários da radiodifusão, especialmente os reunidos sob a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), na formulação de políticas públicas para o setor de radiodifusão (Ramos, 2000).
Dessa maneira, de acordo com Barros (2010), é possível afirmar que, se o paradoxo
da radiodifusão persiste na atualidade, é exatamente porque cumpre o papel de barreira de proteção para os líderes de mercado e porque o poder político do empresariado
assume proporções suficientes para condicionar as ações do Estado nesse setor. Uma
legislação determinada por essas necessidades estratégicas funciona como barreira político-institucional na medida em que barra a entrada de novos agentes no sistema e não
oferece condições de sobrevivência aos que conseguem entrar, reduzindo severamente a
possibilidade de concorrência no setor e favorecendo os que o dominam (Brittos, 2004).
Essa, no entanto, é uma realidade que tem se alterado nos últimos anos. Espreitados
pela possibilidade concorrencial das empresas de telecomunicação - organizações que re-
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Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
presentam tentáculos de alguns dos maiores conglomerados de comunicação do mundo
– os empresários de radiodifusão passam a considerar uma revisão legislativa que não
apenas enquadre a ação desses novos concorrentes, mas que também seja capaz de lhes
preservar, da alguma forma, as vantagens com que estão historicamente acostumados.
Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rossetto
serviços interativos são reconhecidos como os serviços de valor agregado para redes de
transmissão que vai garantir a lucratividade no longo prazo. A combinação dos sistemas
de transmissão com um canal de retorno de telefonia móvel poderia permitir novos
modelos de serviços, especialmente se a mobilidade também é levada em conta no
sistema de transmissão (Keller et. al., 2004: 279).
3. Emissoras e teles: um terreno de disputas
Ao enxergar o campo das telecomunicações com todas suas possibilidades e realidade
de convergência, verifica-se a riqueza por ele produzida, bem como o terreno de disputa
que dele se forma – realidade que não data de agora e que tem sua raiz, sobretudo, no
modelo de negócio empregado pelo setor em meados dos anos 80 (Rossetto, 2008).
Na época, a globalização impunha mudanças nas atuações do Estado e das corporações privadas frente à abertura de mercados e desregulamentação, e assim a oligopolização dos media insere-se num cenário de forte concentração de comandos estratégicos e de mundialização de conteúdos, mercadorias e serviços, tudo facilitado pelo
modelo neoliberal, pela supressão de barreiras fiscais, acumulação de capital nos países
mais desenvolvidos e pela desterritorialização geográfica e o crescente espaço de fluxos.
Nesse cenário são as joint ventures, grandes fusões e incorporações que passam
a ser recurso de fortalecimento para competição. O território brasileiro, assim como a
maioria dos países latinos, torna-se um polo de atração, entre outras motivações, pela
amplitude de seu mercado consumidor. Porém, nesses países o predomínio das razões
de mercado muitas vezes leva a sérias distorções e infrações por essas megafirmas.
Aqui, a principal delas é o descumprimento de dispositivos legais que visam impedir a
concentração de propriedade.
Gradualmente as operadoras de cabo, de forma legal, foram entrando nos novos
negócios com o objetivo de aumentar sua produtividade utilizando a infraestrutura já
existente, até se tornarem empresas de telecomunicações2. Por outro lado, agora dotadas de capital econômico e crescente apoio político, as empresas de telefonia, explorando brechas legais, também ingressaram no setor de TV paga.
A interpenetração dos mercados é a causa direta do acirramento de disputas no
mercado entre empresas concessionárias de serviços de telecomunicações e de radiodifusão. Ampliam-se as novas formas de exploração dos serviços, sem que a ausência de
regulação constitua qualquer impeditivo.
Operadores de radiodifusão, em particular, estão urgentemente à procura de uma
resposta para a pergunta de como serviços interativos podem ser ativados. Estes
2. Caso da Net Serviços manifestado em entrevista com o diretor da empresa, Rodrigo Duclós (Rossetto, 2008).
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Revista Communicare
Numa estrutura de mercado na qual o controle de redes de informação se torna
essencial, a estratégia de negócios indispensável consiste em dominar uma plataforma que
combine suporte para informação multimídia e produção de conteúdo. As companhias de
comunicação passaram, então, a buscar o controle dos canais de distribuição eletrônica a
fim de melhor disponibilizar o acesso de seus produtos aos consumidores, mas, também,
na procura de novos investimentos e da redução de riscos, encontram uma solução viável
na expansão de suas atividades convergindo os serviços que oferecem.
3.1 Força política versus força econômica
Se o poder de barganha dos empresários de radiodifusão é essencialmente político
(principalmente por se tratarem de formadores de opinião pública), o poder das empresas de telecomunicação que se dedicam a novos investimentos no setor é fundamentalmente econômico. Falando-se em números, essa perspectiva torna-se bastante clara:
Comparado com o setor de comunicação social, o setor de telecomunicações é um
monstro de mais de quase R$ 100 bilhões de reais de receitas totais ao ano. Só as receitas
totais do mercado com telefonia fixa e móvel superam os R$ 85 bilhões. Para se ter uma
ideia, somando-se todo o mercado publicitário brasileiro, mais as receitas com assinaturas
de TV por assinatura e Internet, mais as vendas de bancas de jornais e revistas, mais o
setor de cinema, chega-se perto de R$ 26 bilhões ao ano (Possebon, 2007: 298).
Ou ainda, como colocado por Görgen.
Em termos gerais, o montante arrecadado pelo setor de telecomunicações supera em
cinco vezes o bolo publicitário brasileiro, incluindo os valores investidos na produção
publicitária – mesmo que o rádio e a televisão alcancem 90% dos lares, e as redes de
companhias telefônicas, apenas 60% (Görgen, 2008: 213).
A bandeira argumentativa de defesa dos empresários de radiodifusão não deixa de
ser nobre. Eles afirmam que a entrada desses empresários no setor se constituiria num
perigo ao conteúdo nacional e às expressões regionais que não teriam como competir
com concorrentes tão ameaçadores. De fato, há o perigo de uma internacionalização do
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Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
conteúdo televisivo, uma vez que “qualquer empresa de conteúdo nacional não consegue fazer frente aos grandes grupos de entretenimento como Time Warner, News Corp.
e Disney. Se toda a indústria nacional se juntasse em um único grupo, não chegaria a 17ª
do mundo” (Dantas, 2011 Apud Giancoli, 2011: 13).
Acuados pelo declínio gradativo de sua audiência, consequência da multiplicidade
da oferta que pulveriza o público em novos aparelhos eletrônicos de entretenimento e
informação, esses empresários veem o mercado de TV aberta, da forma como ele se
conforma hoje, não se sustentar da mesma maneira e, até mesmo, se desvalorizar. Por
conta disso, desesperam-se em novos investimentos, como o foi a digitalização da TV –
e para isso se utilizaram de todo o poder político que tinham para definir o padrão que
lhes fosse conveniente - e a ampliação de formas paralelas de distribuição da produção.
A entrada das teles pode gerar impactos agudos nessas empresas radiodifusoras
de conteúdo nacional, causando certa inversão da postura política dos movimentos pela
democratização do setor, como afirma a cineasta Berenice Mendes, integrante da Coordenação Executiva do FNDC.
Se por um lado essas empresas (radiodifusão) representaram, em muitos momentos, o papel
de nossos adversários imediatos, dificultando a democratização da comunicação, por outro
lado elas são importantes para o setor, precisam existir – de forma menos hegemônica, claro.
Por isso, precisamos nos posicionar quanto aos limites da entrada das teles neste negócio [...]
Porque as matrizes das teles são internacionais. São megacorporações. A sociedade ficará
ainda mais sujeita aos interesses do capital transnacional (Apud Marini, 2010, s. p.)
Hoje as empresas de telecomunicações em atuação no Brasil estão divididas em
três grandes conglomerados: Telefônica/ Vivo/ Terra; NET/ Embratel/ Claro; Portugal
Telecom/ Oi/ TIM. Além disso, o grupo Vivendi, controladora da GVT, acaba de comprar a Nextel (Giancoli, 2011). São conglomerados bastante dispostos a competir no
segmento da radiodifusão, pois já avançam na disputa por uma fatia do mercado de TV
por assinatura. A Telefônica, por exemplo, já adquiriu parcela da TVA com permissão
da Anatel (Idem).
Segundo o ex-ministro Franklin Martins, “É urgente que o país pactue um novo
marco legal para o setor de comunicação, pois, sem regulação, o setor de radiodifusão
será atropelado pela ‘jamanta’ das empresas de telecomunicações” (Sem regulação...,
2010, s.p.). O equilíbrio de relações deve se dar, portanto, pela regulação do setor na defesa, inclusive, de uma bandeira legítima dos radiodifusores, que é o conteúdo nacional.
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Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rossetto
3.2 Arena legislativa de disputas
Esse embate materializa-se claramente na arena legislativa, na busca por apoio e no
lobby realizado sobre essa instância pelas grandes empresas. Se a radiodifusão historicamente comanda a portas fechadas a elaboração das políticas de comunicação, agora
ela ganha um competidor à altura: as concessionárias de telecomunicações.
Exemplo claro é o caso do PL 29/2007, que até 2010 tramitava na Câmara concomitantemente a um similar no Senado e desde junho daquele ano foi para esta última
Casa definitivamente, ficando conhecido como PL 116. O Projeto de Lei número 29
foi uma iniciativa do deputado Paulo Bornhausen (PFL/SC) em 2007, que se propôs
a regulamentar o mercado de TV paga brasileiro, revogando a Lei n 8.977, de 1995, a
chamada Lei do Cabo, e permitindo a entrada das empresas de telefonia no setor para
oferecimento de serviços relativos a conteúdo.
Na Câmara foram pelo menos quatro substitutivos (Rossetto, 2008) com uma infinidade de emendas, ora que agradassem aos lobbistas da radiodifusão, ora que agradassem à força econômica das teles. Chegou-se, portanto, a um momento em que os
agentes políticos e econômicos envolvidos no processo de negociação eram os órgãos
ligados ao governo (Anatel e Ancine), além dos parlamentares relatores e os mais ativos
nas discussões; e o empresariado, por basicamente três vertentes: a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA, representando os interesses de suas operadoras
afiliadas), os radiodifusores de emissoras abertas e as telefônicas.
Enfim no Senado, o PL 116/2010
(...)define o objeto e especifica termos técnicos e legais relativos à comunicação
audiovisual de acesso condicionado; estabelece princípios fundamentais que regem a
referida atividade de comunicação audiovisual de acesso condicionado; determina regras
para a prática das atividades de produção, programação e empacotamento de conteúdo;
obriga a veiculação de conteúdo brasileiro nos canais de espaço qualificado; altera a
regulamentação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica
nacional - CONDECINE para estimular a produção audiovisual; estabelece regras para
o exercício da atividade de distribuição de conteúdo pelas prestadoras do serviço de
acesso condicionado; assegura direitos aos assinantes do serviço de acesso condicionado;
define sanções para as empresas prestadoras do serviço de acesso condicionado que não
cumprirem as obrigações a elas imposta pela presente lei (Brasil, 2010).
Há uma fundamental positivação de regras ainda correndo em lenta tramitação,
enquanto a dinâmica de mercado não se inibe e há uma expansão técnica, marcada por
constante inovação, a despeito de sua ilegalidade. Por mais arriscado que possa ser para
os players em atividade, essa lógica pode também acelerar algumas tomadas de decisão.
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Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
É o caso recente da liberação pela Anatel da entrada das teles no mercado de TV a
cabo. No começo do mês de junho de 2011, a Agência aprovou o novo regulamento do
setor, que estabelece a concessão de outorgas de forma limitada e a um preço fixo, sem
licitação (Mendes, 2011). Apesar de uma política incomum, de venda de concessões,
essa decisão desfaz o último obstáculo para a abertura do mercado de cabodifusão e de
forma deliberada no que concerne à discussão até então estagnada no Senado.
Na prática, isso significou a ampliação da área de cobertura do serviço e os primeiros indícios da entrada das empresas de telefonia no setor. Pesadelo para os radiodifusores e operadoras atuais de cabo, essa realidade pode, porém, alavancar o mercado de
banda larga em pelo menos 4,4 milhões de clientes e trazer uma receita adicional de R$
4,8 bilhões para o setor (Mendes, 2011).
A essa decisão a resposta da ABTA foi imediata, colocando-se contra, apontando ilegalidades e temendo a entrada do capital das telefônicas no setor. Isso acontece
sem que se esteja definida a lei que vai reger o setor, passando por cima de toda discussão legal travada desde 2007 nas casas legislativas (Monte, 2011).
A questão mais inquietante aqui não é o congelamento do processo ou diferentes
posições e atitudes tomadas por diferentes atores envolvidos nessa discussão, mas o
seu porquê. É fato que o jogo em disputa é entre atores de grande poder econômico
e político, num patamar tão elevado que pequenos atores não conseguem alcançar, e
assistem atônitos esperando a repercussão das prováveis resoluções. O que se vê é uma
invencibilidade ora ameaçada e que reflete num confronto de interesses muito claro,
entre os velhos radiodifusores e as novas empresas de telefonia. Adversário à altura,
com poder econômico e político aos poucos sendo conquistado, para aqueles que antes
dominavam o lobby dos corredores.
Ocorre ainda que hoje, de toda forma, a prática de muitas empresas é ilegal. A
ausência de regras claras e de fiscalização permite que as telefônicas ofereçam TV paga
e que algumas TVs por assinatura agreguem em seus pacotes serviços de telefonia. A
verdade é que a história da regulamentação das políticas de comunicação no Brasil é
marcada por uma desorganização crônica, sendo efetivadas somente depois dos serviços em funcionamento e discutida por poucos atores sociais.
Assim o foi também a recente aprovação do PL116. No dia 12 de setembro de
2011 o PL foi promovido a Lei 012.485/2011, sancionada pela presidente Dilma Rousseff. A nova regulamentação do setor, chamada de Serviço de Acesso Condicionado, teve
apenas dois vetos: um para adequação ao Código de Defesa do Consumidor e outro
que tirou a responsabilidade pela classificação indicativa da Ancine, como proposto, e a
manteve sob responsabilidade do Ministério da Justiça (Possebon, 2011).
Até o fechamento deste artigo a nova norma ainda precisava ser regulamentada
pela Anatel, mas algumas mudanças de ordem prática são imediatas para o mercado.
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Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rossetto
A primeira é a mudança de controle societário no caso da Net Serviços, que será assumida, e agora devidamente sob a lei, pela tele Embratel. O mesmo deve acontecer com
a Telefônica, acionista da TVA. Já para a realidade imediata do assinante as mudanças
começam a chegar 180 dias depois da sanção. A primeira delas deve ser a adequação às
regras de cotas de programação (Possebon, 2011).
Se a complexidade legal do setor vai aumentando com o surgimento das inovações tecnológicas, a rapidez com que se tomam as decisões se mostra historicamente
orquestrada pelos mais influentes nos jogos de interesse. É esse o caso em questão. Burlado pela diplomacia burocrática, é como se o processo democrático travasse o próprio
exercício da democracia. Mas o fato é que, enquanto os atores que realmente interessam
não têm seus anseios atendidos, pouco se evolui para a consolidação de políticas.
Conclusão
As emissoras encontram-se acuadas pelo mercado desregulado que elas próprias criaram. Na ausência de regras, vale a lei do mais forte, algo que, enquanto se é líder, torna-se
oportuno manter. A ameaça é economicamente assustadora. E a ausência de regras tornou-se inconveniente. Enquanto as empresas de telecomunicação têm um faturamento invejável no mercado nacional, as emissoras de TV aberta se esforçam para tentar
manter a duras penas o antigo público, que agora se encanta com novas possibilidades
tecnológicas e se dispersa daquela tecnologia tradicional. Já não gasta mais tanto suas
horas de horário nobre na frente da televisão. O resultado é um índice de audiência
que declina ano após ano, algo que se tentou reverter com o maior investimento da TV
aberta nas últimas décadas: a digitalização da TV. No entanto, passados quase quatro
anos de seu lançamento no Brasil, a penetração da TV digital é algo ainda razoável, e o
retorno publicitário disso não parece ter sido tão real quanto foi promissor.
Hoje o terreno de disputas é, acima de tudo, legislativo. E a expectativa é que na
gestão de Paulo Bernardo no Ministério das Comunicações, a discussão sobre uma lei
geral para o setor seja levada adiante, o que historicamente nunca foi possível por conta, principalmente, de uma dispersão ocasionada pela pressão dos radiodifusores. Qual
sua postura agora diante de tal realidade? A espera é que no bojo dessa imensa disputa
venham os tão sonhados avanços democráticos para o setor, considerando, principalmente, os acordos alcançados entre os diversos atores na realização da Conferência Nacional de Comunicação.
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Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente
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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Comunicação e Mercado
Pesquisa Qualitativa: Caminho
para uma análise complexa da
comunicação organizacional
Marlene Branca Sólio
Doutora em Comunicação pelo PPG PUCRS; mestre em Comunicação pelo PPG Unisinos; Graduada em Jornalismo pela
Unisinos professora e pesquisadora na UCS; editora da Revista Conexão (UCS) e autora do livro Jornalismo organizacional –
produção e recepção (Educs). [email protected]
Este trabalho é parte de pesquisa em que buscamos mostrar que as relações capital/ trabalho se dão
na instância da subjetividade, exigindo que as Organizações desenvolvam uma “escuta” na direção
de seus Sujeitos. A pesquisa integral defende tese de que elas precisam perceber sua relação com os
empregados como algo que se alimenta recursivamente da própria qualidade, o que exige permanente espaço para a transformação. Para o cotejo entre fundamentação teórica, nossa experiência
vivencial e o material, obtido em campo, adotamos o Paradigma da Complexidade. O objetivo do
artigo é analisar a metodologia da coleta de dados aplicada na pesquisa: Pesquisa Qualitativa com
entrevistas de profundidade, base para a análise de discurso.
Palavras-chave: Organização. Comunicação Organizacional. Pesquisa Qualitativa.
Qualifying Research: Path for a complex
analysis of the organizational communication This work is part of a research in which we looked
Investigación Cualitativa: Camino para
una análisis complejo de la comunicacion organizacional Este trabajo es parte de una
after showing that the relations between capital and work
investigación donde buscamos mostrar que las relaciones
are given in the instance of subjectivity, demanding that
capital y trabajo llévanse en la instancia de la subjetividad,
the Organizations develop a “hearing” in the direction of its
exigindo que las organizaciones desarrollense una “escucha”
subjects. It defends the thesis that these organizations need
en la dirección de sus sujetos. Defende la tesis de que ellas
to realize its relations with the employees as something that
necesitan percibir su relación con los empleados cómo algo
feeds recursively of its own quality what demands perma-
que alimentase recursivamente de su propia calidad lo que
nent space for transformation. To the confrontation between
exige permanente espacio para transformación. Para la con-
theoretical ground, vivencional experience, and material ob-
frontación entre fundamentación teórica, experiência viven-
tained in field, we adopt the Paradigm of Complexity. The
cial, y material obtenido en campo, adoptamos el Paradigma
article analyses the methodology of the data collection: Qual-
de La Complejidad. El artículo analiza la metodología de la
itative Research wirth depth interviews, base to the analyses
colecta de dados: Investigación Cualitativa con entrevistas de
of the speech.
profundidad, base para la análisis del discurso.
Keywords: Organization. Organizational Communication.
Palabras clave: Organización. Comunicación Organizacio-
Qualifying Research
nal. Investigación Cualitativa
Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
Na pesquisa da qual este artigo é apenas uma parte, evidenciamos que as relações entre
capital/trabalho se atualizam na instância da subjetividade e são mais complexas do que
podem aparentar, exigindo que as Organizações desenvolvam uma “escuta” na direção
de seus Sujeitos. Defendemos a tese de que as Organizações precisam perceber sua relação com os empregados como algo complexo e que se alimenta recursivamente da própria qualidade, o que exige diálogo permanente e espaço para transformação.
Para desenvolver a grande pesquisa, buscamos fundamentação na comunicação
e nos estudos organizacionais, apropriando-nos de pensadores como Srour (1998),
Freitas (1991; 2002), Chanlat (1996; 2001), Pagès (1993), Dejours (2006) e Antunes
(2005), e na Psicanálise. Para o cotejo entre a fundamentação teórica, uma experiência
vivencial de mais de 20 anos como consultora de comunicação e o material obtido em
dois Grupos de Organizações, adotamos o Paradigma da Complexidade, de Morin
(2002a, 2002c, 2005b).
Para a coleta de material, com a metodologia de Estudos de Caso Múltiplos
(YIN, 2005), utilizamos a pesquisa qualitativa, e, para a interpretação de dados, recorremos à Análise do Discurso, com base na corrente francesa desses estudos e a
estudos de Psicanálise, fundamentados em Freud e Lacan.
Como o comportamento dos Sujeitos Organizacionais, se considerarmos aspectos psíquicos, pode estar relacionado ao “desenho” das relações dos públicos nas
Organizações? Essa era a questão inicial para nossas reflexões e que se desdobrou
em outras três: Qual é o papel dos aspectos psíquicos e de personalidade dos Sujeitos das Organizações, na “leitura” que farão, bem como na resposta que darão aos
apelos e às premissas da Cultura das Organizações? Como as Organizações podem
modificar e melhorar processos comunicacionais, qualificando processos relacionais?
Elas consideram, nas relações com os Sujeitos Organizacionais estudados, os aspectos
psíquicos?
Ao refletir sobre a Pesquisa Qualitativa: caminho para uma análise complexa da
Comunicação Organizacional, talvez seja importante frisar que o estudo dos processos de Comunicação Organizacional contempla, cada vez mais, vieses polissêmicos
e interdisciplinares. Pensamos, portanto, com Chanlat (1996, p. 33, v. 1), que só o
conjunto interdisciplinar de abordagens poderá delinear imagem menos parcelada
do indivíduo na Organização, porque somente cruzando e multiplicando diferentes
níveis se poderá interpretar o observado, buscando reconstruí-lo em sua integridade.
É importante pensar os vários discursos presentes no cotidiano das Organizações, numa perspectiva de circularidade de causa e efeito: eles revelam uma prática
das relações/Comunicação, que materializa-se em novo Discurso, sempre numa relação dissimulada de forças/enfrentamentos/contradições. Assim, vemos crescer a importância da escuta/análise, que implicam mais do que quantificar, computar, relatar,
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Revista Communicare
Marlene Branca Sólio
diagnosticar, descrever.
Chanlat (1996, v. 1) lembra que a riqueza do universo mental do homem permanece exageradamente simplificada, dando lugar a uma visão mecanicista da natureza
humana, o que leva a uma profusão de abordagens sobre a motivação, ao custo de
uma baixa compreensão. E Dejours (2006, p. 38) traz à discussão aspecto fundante,
ao dizer que “tudo que dizia respeito à subjetividade, sofrimento subjetivo, patologia
mental, tratamentos psicoterápicos suscitava desconfiança e até reprovação pública,
salvo em certos casos notórios”.
É fundamental, em nossa perspectiva, o paradigma da Complexidade. Morin
defende que a necessidade histórica da sociedade contemporânea é encontrar um
método que evidencie, ao invés de ocultar (como faz o racionalismo), as ligações,
articulações, solidariedades e implicações, enfim, as complexidades e, nos atrevemos
a dizer, conspirações. “A aceitação da confusão pode se tornar um meio de resistir à
simplificação mutiladora.” (MORIN, 2002a, p. 29). Trata-se, portanto, de ligar o que
estava separado, por meio de um Princípio de Complexidade, que é
um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente
associadas: ela [a complexidade] coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo
momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações,
retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico. (MORIN,
2005b, p. 13).
Acreditamos, como Morin, que ordem e desordem se confundem, se chamam,
se requerem, se combatem, se contradizem. “Esse diálogo se dá no grande jogo fenomenal das interações, transformações, organizações em que trabalham cada um por
si, todas contra uma, todas contra todas ...” (MORIN, 2002a, p. 106).
O paradigma materialista sofre abalos significativos a partir dos anos 60, quando
Edward Lorenz1 descobriu que acontecimentos simples tinham um comportamento
tão desordenado quanto a vida. Chegou a essa conclusão após testar um programa de
computador que simulava o movimento de massas de ar. Lorenz teclou um dos números que alimentava os cálculos da máquina com algumas casas decimais a menos,
na expectativa de que o resultado tivesse poucas mudanças.
Esse rearranjo amplia fronteiras epistemológicas. Procura-se, em diferentes
campos, noções teóricas que permitam um saber como gerador de um campo sui generis, pronto a buscar, em áreas já estabelecidas, fragmentos que lhe confiram hibridismo. Toma corpo a multiplicidade de vieses/olhares. Entendemos que os aspectos
biopsicossociais são indissociáveis e desenham a relação Sujeito/objeto, num perma1. LORENZ, Edward N. Disponível em: <http://www.exploratorium.edu/complexity/CompLexicon/lorenz.
html>. Acesso 25 nov. 2009.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
nente movimento de retroação. A lógica do ser é, assim, dialética, complexa. O olhar
para um objeto demanda contemplar a ambiguidade, a ambivalência, variáveis não
passíveis de mensuração linear. Daí buscarmos relação entre o Paradigma da Complexidade de Morin e a teoria psicanalítica, quando pensamos o Sujeito Organizacional.
Morin nomeia sete Princípios básicos em seu paradigma, sem valor hierárquico:
Sistêmico ou Organizacional, Hologramático, Retroativo, Recursivo, da Auto-organização: autonomia/dependência, Dialógico e da Re-introdução do conhecimento em
todo o conhecimento. Em sintonia com a Complexidade, parece-nos fundamental
que as Organizações vejam seus Sujeitos não apenas como seus “meios/produtos”,
mas também como seus produtores. Ao reconhecê-los como individualidades, mais
do que apenas como “unidades produtivas”, elas estarão atualizando um espaço para a
renovação. Entendemos que as Organizações precisam dar-se conta de que, na mesma medida em que exploram o meio ambiente, dependem dele para sobreviver. O
patrimônio ambiental de que elas se apropriam pertence ao conjunto da sociedade.
As Organizações devem reconhecer a dependência como premissa para a conquista
da independência.
Não há como traçar fronteira estanque entre o Sujeito do conhecimento, o conhecimento e o objeto. Como isolar valores, posturas, saberes que o Sujeito Organizacional traz e, isolando-o, conseguir que contribua para o desenvolvimento de uma
Organização, quando ela se comporta como um sistema fechado, com uma Cultura
cristalina, que paira sobre seu próprio contexto? Parece-nos que a tentativa de olhar
para a relação/interação Organização/ator por meio da complexidade, tende a enriquecer a análise.
Ao pensar as questões propostas sob a ótica do Paradigma da Complexidade,
procuramos metodologia coerente com a análise que pretendíamos. Assim, chegamos à Análise do Discurso (AD), hoje aglutinados em duas grandes gerações: aquela
que vai da sua constituição ao final dos anos 70, que “procurava essencialmente colocar em evidência as particularidades de formações discursivas, consideradas espaços
relativamente auto-suficientes, apreendidos a partir de seu vocabulário” (MAINGUENEAU, 1997, p. 21) e aquela que aparece “ligada às teorias enunciativas, [que] pode
ser lida como uma reação sistemática contra aquela que a precedeu.” (p. 21). “A AD
é, com efeito, pluridisciplinar, já que, de um lado, o discurso integra as dimensões
sociológicas, psicológicas, antropológicas... e, de outro lado, está no coração dessas
mesmas disciplinas...” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 15).
Nossa perspectiva de análise buscou explorar as condições de produção do discurso, ou seja, o contexto e, como evidenciam Moraes e Galiazzi (2007, p. 144), “tem
como preocupação primeira a interpretação, especialmente uma interpretação crítica, fundada em alguma ‘teoria forte’ [...] e assumida a priori como referencial inter-
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Revista Communicare
Marlene Branca Sólio
pretativo e crítico”. A AD buscou contemplar questões nele implícitas, mais do que as
explícitas, “uma vez que se preocupa com as condições de produção do discurso, com
sua crítica a partir de pressupostos externos”. (MORAES; GALIAZZI, 2007, p. 148).
Em nossa pesquisa, o oculto, o não dito, foi a preocupação central da AD. Ao
analisar as entrevistas em profundidade, desenvolvidas com o grupo de trabalhadores selecionado, dedicamos especial atenção ao que classificamos de “não ouvido”, ou
seja, as demandas expressas sob as mais diversas formas (com o corpo, com a fala,
com significantes, com sintomas).
Propostas de teoria e método
Na pesquisa de campo, trabalhamos com a Pesquisa Qualitativa (entrevistas em profundidade), apoiando-nos, também, na técnica de Pesquisa Psicanalítica. Nossa intenção, nessa abordagem, é ressaltar a importância desse tipo de pesquisa nos estudos
organizacionais e, ao retraçar o caminho que desenhamos, oferecer uma modesta
contribuição aos pesquisadores que repitam essa escolha metodológica.
Entrevistamos vinte2 trabalhadores nas duas Organizações selecionadas, com
questões abertas, servindo apenas como pontos de referência. Para a seleção dos
entrevistados, estipulamos critérios como: gênero; idade (trabalhadores com menos
de 30 anos e trabalhadores com mais de 45 anos); tempo de casa (trabalhadores com
menos de cinco anos de casa, com mais de 10 anos de casa e com até 25 anos de casa);
cargo de chefia na administração; cargo de chefia na produção; função sem chefia na
produção e função sem chefia na administração. No decorrer do diálogo, estabelecemos questionamentos da maior relevância. Como diz Haguette (1997, p. 97), “além
dos dados ‘previstos’ para obtenção por meio do roteiro, existem muitos outros, talvez
mais importantes, que poderão ser coletados mediante a habilidade e o sexto sentido
do entrevistador para aproveitar os ‘pontos cegos’ e as ‘deixas’ do entrevistado.”
Gill ressalva que
quando um analista de discurso discute o contexto, ele está também produzindo uma
versão, construindo o contexto como um objeto. Em outras palavras, a fala do analista
de discurso não é menos construída, circunstanciada e orientada à ação que qualquer
outra. O que os analistas de discurso fazem é produzir leituras de textos e contextos que
estão garantidas por uma atenção cuidadosa aos detalhes, e que emprestam coerência ao
discurso em estudo. (2005, p. 255).
2. Gaskell argumenta que “há um limite máximo ao número de entrevistas que é necessário fazer, e possível
de analisar. Para cada pesquisador, este limite é algo entre 15 e 25 entrevistas individuais, e ao redor de 6 a
8 discussões com grupos focais.” (GASKELL, George Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER; Martin,
GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 4. ed. 2005, p. 71. Cap. 3).
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
Parece-nos fundamental refletir sobre a especificidade da metodologia de trabalho adotada, na medida em que buscamos, nos dados manifestos, o conteúdo latente, fazendo uso da interpretação e da construção de um conteúdo subjetivo. Isso não significa
afastarmo-nos dos procedimentos revestidos de cientificidade, na medida em que, do
ponto de vista epistemológico, amparamo-nos em conceitos tomados de empréstimo
da psicanálise.
Por experiência, optamos por aplicar as entrevistas fora do contexto da Organização. O fato de o entrevistado estar em seu ambiente de trabalho pode funcionar como
inibidor sob vários aspectos, destacando-se a pressão de tempo para o retorno à produção e a autocensura.
Nossa experiência vai ao encontro do que afirmam alguns teóricos: a necessidade
de o entrevistador desmitificar qualquer ideia de sua superioridade, usando vocabulário
simples, bem como portando-se e vestindo-se com simplicidade. Parece-nos importante lembrar que “além do poder econômico, existe o poder do ‘saber’ que tem se tornado,
através dos tempos, monopólio dos grupos dominantes. Isso não significa que os oprimidos não possuam saber, eles o possuem, mas não têm consciência do valor que este
saber representa”. (HAGUETTE, 1997, p. 156).
É importante enfatizar que esse tipo de entrevista requer do entrevistador que: a)
estimule a fantasia do entrevistado, quando poderá perceber/registrar aspectos que de
outra forma não seriam atualizados (insights); acesse o imaginário do entrevistado por
meio do simbólico (linguagem), algo que se apresenta difícil, na medida em que, como
já referimos, o imaginário está associado a situações de medo, de ansiedade e mesmo
de ameaça; b) separe suas impressões subjetivas do conteúdo trabalhado, fazendo uma
autocrítica permanente; c) exercite sua capacidade de ouvir (principalmente, como diz
Lacan, o que a palavra não diz; d) identifique os momentos de resistência do entrevistado, dimensionando a riqueza do material ali depositado; e) determine a hora de concluir
a entrevista; f) deixe o entrevistado à vontade.
As entrevistas, gravadas, foram transcritas, tomando-se o cuidado de omitir dados
que personalizassem o entrevistado, bem como a empresa na qual trabalhava. Segundo
Goldenberg (1999, p. 34), “não é possível formular regras precisas sobre as técnicas utilizadas em um estudo de caso porque cada entrevista ou observação é única: depende
do tema, do pesquisador e de seus pesquisados”.
Na pesquisa, as entrevistas não tinham limite máximo de tempo, mas sabíamos
que demandam a média de uma e meia a duas horas de diálogo. Outro aspecto importante foi incluir, no encontro, um familiar, mas que fosse, também, trabalhador. Essa
triangulação propiciou comparações, novas questões, críticas e, em algumas situações,
tira o entrevistador do foco, permitindo maior descontração e uma abordagem mais
profunda e “sincera” do entrevistado, que tem com seu interlocutor uma relação de
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Revista Communicare
Marlene Branca Sólio
intimidade e confiança. Com isso, pretendemos também levar em consideração o que
destaca Goldenberg):
Um dos principais problemas enfrentados na pesquisa qualitativa diz respeito à possível
contaminação dos seus resultados em função da personalidade do pesquisador e de seus
valores. O pesquisador interfere nas respostas do grupo ou indivíduo que pesquisa. A
melhor maneira de controlar esta interferência é tendo consciência de como sua presença
afeta o grupo e até que ponto este fato pode ser minimizado ou, inclusive, analisado como
dado da pesquisa. (1999, p. 55).
Entendemos que a entrevista em profundidade pode trazer vantagens importantes para a pesquisa, na medida em que permite entrevistar analfabetos; propicia o envolvimento do entrevistado, motivando-o muito mais do que o faz a entrevista escrita; permite que o entrevistado repita/corrija/volte atrás e reflita ao longo diálogo, bem
como esclareça dúvidas ou lacunas; permite que o entrevistador faça uma leitura da
linguagem corporal, bem como de atos falhos, detectando conteúdos latentes; permite a
correção de rumo da própria entrevista, pois há muitas situações em que o entrevistado
traz questões ignoradas ao entrevistador; estabelece vínculo entre pesquisador e pesquisado, o que leva à minimização do medo/insegurança com relação ao uso/aplicação
dos dados obtidos; dá ao entrevistado a sensação de valorização, por ser ouvido em suas
demandas.
Muitos dos dados obtidos com pesquisas quantitativas acabam por compor estatísticas das Organizações, sem que seus resultados considerem a subjetividade, e os
processos de computação/análise raras vezes são interpretativos. Em grande número
de casos, os dados são vistos de forma isolada, ou seja, dissociada do conjunto daquele
ambiente/contexto. “[...] A gente acha que isso não seria muito confiável, porque se eu
tenho um problema com o meu chefe, na medida que eu falo isso claramente, eu não
sei até que ponto eu posso ser bem ou mal-interpretado”, justifica a entrevista F, o que
deixa à mostra a falta de confiança do trabalhador na relação com a Organização e a
consciência da Organização sobre esse fato: “[...]Se eu respondo uma pesquisa, eu não
me identifico, e ninguém pode me identificar, eu posso ser mais fiel”, argumenta F, sem
considerar que o anonimato também pode acolher a má-fé e a distorção. “Então, nós
usamos mais a ouvidoria, no sentido de, assim: ¬– eu tô mal com o meu chefe, eu posso
procurar, tu me ouve, eu te ouço e tudo mais.”
A fala põe na berlinda a relação chefia/subordinado, o que pode ser indicativo de
ponto nevrálgico, se recorremos ao processo de livre associação da Psicanálise, pois,
ao falar sobre o assunto, foi isso que emergiu na fala do entrevistado. Além disso, se a
ouvidoria é acionada, o processo para a pesquisa qualitativa teoricamente está aberto
e, ainda, ao justificar que “[...]Fazer pesquisa perguntando para as pessoas as perguntas
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
que a gente faz na pesquisa de clima, a gente acha que não seriam respondidas”, o entrevistado mostra desconhecimento sobre o que seja uma Pesquisa Qualitativa.
Ao analisar a entrevista S, temos pistas em outra direção. Ao ouvir a questão:
“Hoje ainda resiste o medo, entre o funcionário e a empresa?” A resposta é imediata:
“[...] com certeza, medo de perder o emprego. As pessoas calam para não perder o emprego. Porque, com certeza, nós teríamos muito para falar, se não fosse este medo. Mas
vai do teu dia também, porque tem dias que tu não está de bom humor e sai alguma coisa, sem querer”. A entrevista evidencia a necessidade de olharmos para a subjetividade
no momento da relação com o Sujeito Organizacional, quando traz à tona a latência do
recalcado e o medo de que ele possa se precipitar.
A entrevista O é esclarecedora quanto ao tipo de leitura que a recepção faz da
pesquisa quantitativa, que vem de encontro ao que foi dito na entrevista F: “[...] Eles
fazem a pesquisa de satisfação. Mas é obscura esta pesquisa. Quando eles veem que não
está bem para eles, eles não dão bola, eles querem ver o que eles apontam para se levar
a sério. E ao invés de arrumar o que foi pedido, eles ignoram a pesquisa. Eles sonegam
os defeitos da empresa.” Está clara, na fala, a polifonia do discurso.
Parece-nos importante ressaltar a especificidade de análise que buscamos fazer
em nossa pesquisa, o que justifica apoiarmo-nos, também, na pesquisa psicanalítica, de
que fala Iribarry. O autor explica que
o campo será o inconsciente; o objeto será o enfoque ou perspectiva a partir de
uma posição em que é colocado o pesquisador psicanalítico com o fim de aceder ao
inconsciente e o método será o procedimento pelo qual ele se movimenta pelas vias ou
perspectivas de acesso ao inconsciente. (2003, p. 117).
O pesquisador psicanalítico movimenta-se por meio das suas impressões transferenciais sobre o texto examinado e fica atento ao rol de significantes que formam sua
tessitura.
Essas impressões transferenciais resultam do modo como o pesquisador faz sua leitura
dos dados, o que faz com que surja a pergunta: mas, então, o pesquisador psicanalítico é
movido por sua subjetividade ao analisar o dado de pesquisa? Sim, esta é a contribuição
mais legítima que podemos extrair do percurso de Freud, pois este sempre esteve
movido por suas inclinações pessoais diante dos dados de sua pesquisa, e foi graças à
sua interferência subjetiva que a psicanálise nasceu como uma teoria, um método e uma
técnica de tratamento. (FÉDIDA, 1992 apud IRIBARRY, 2003).
Ela é sempre uma apropriação do autor que depois de pesquisar o método freudiano
Um momento importante é o da análise criteriosa dos dados obtidos, comparando-os e cotejando os resultados com a fundamentação teórica e com as reflexões dela
consequentes, para, então, confirmar ou repensar questões de pesquisa e voltar a campo. É importante, nesse momento, trazer para a discussão a questão da neutralidade/
objetividade tanto do entrevistador quanto do quadro de entrevistados.
Para isso, recorremos a Haguette quando diz:
descobre um método seu, filiado a essa vertente e o singulariza na realização de uma
Não acreditamos que o real possa ser captado “como um espelho”, ao contrário,
pesquisa. (2003, p. 117).
assumimos a postura relativista, de cunho weberiano, de que fazemos “leituras” do real.
a pesquisa psicanalítica, justamente por trabalhar com a impossibilidade de previsão do
inconsciente, não poderia jamais exigir uma sistematização completa e exclusiva. [...]
Comparado a outros modos de abordagem, o psicanalítico não busca ou pretende
estabelecer inferência generalizadora, tampouco suas estratégias de análise dos resultados trabalham com o signo, mas, sim, com o significante, que está sempre aberto a
novos sentidos. Como explica o autor acima ( p. 121), a “pesquisa psicanalítica deseja
encontrar suas formulações essenciais na experiência, que é significante para o sujeito e
desligada da antecipação prevista pelo signo”.
O pesquisador psicanalítico está implicado como um participante importante na
investigação que realiza. É preciso deixar de lado, portanto, a objetividade higienizante
e utópica defendida em alguns modelos de pesquisa, como é preciso, também, manter
um aguçado senso ético. O entrevistador deve estar disposto a repetir as entrevistas
quantas vezes se fizerem necessárias, sob pena de comprometer o resultado se incluir
na análise uma ou mais entrevistas que não tenham se desenvolvido satisfatoriamente.
Iribarry sinaliza que, na pesquisa psicanalítica,
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Marlene Branca Sólio
Revista Communicare
Esta postura, entretanto, não exime de dedicar atenção a todas as possíveis limitações
inerentes ao método científico nas ciências sociais porque nos parece que é a partir da
aceitação de cada limite do método que o cientista social pode ter a condição, também
de entender os limites do dado que ele colhe do real. (1997, p. 87).
Na América Latina, podemos relacionar o medo dos entrevistados aos possíveis/
prováveis usos dos dados revelados a um contexto político-econômico específico: o
de um ciclo de ditaduras militares. Até esse período, esse tipo de pesquisa é referido
como investigação alternativa, investigação participante, autossenso, pesquisa popular,
pesquisa dos trabalhadores, pesquisa-confronto, investigação militante, pesquisa-ativa,
estudo-ação, investigação sociológica, enquete-participação. Kurt Lewin cunhou o termo, nos Estados Unidos. Ele e seus discípulos se orientaram para a solução de problemas sociais que a população americana viveu durante a e depois da Segunda Guerra
Mundial. A partir desses estudos, configuraram-se a pesquisa-ação de diagnóstico, a
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Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
pesquisa-ação participante, a pesquisa-ação empírica e a pesquisa-ação experimental,
com metodologia própria, que começa a firmar-se e a aperfeiçoar-se.
Considerações finais
Encontramos questionamentos quanto à cientificidade desse tipo de pesquisa, que
adota técnicas como a história de vida, a história oral e a entrevista em profundidade.
O fato é que, independentemente da técnica empregada, a escolha de um paradigma
e o “procedimento científico” são uma definição pessoal, com a qual o pesquisador se
identifica e na qual impregna suas marcas, o que significa dizer que neutralidade e objetividade são utopias a perseguir, não garantias de consecução.
Bauer e Gaskell (2005) mostram que a fonte de dados na Pesquisa Qualitativa são
textos que, no caso de nosso projeto, se atualizaram por meio de entrevistas em profundidade, desenvolvidas com 20 trabalhadores de três Organizações. A análise volta-se
à interpretação dos dados, e a entrevista é a forma usual de construção do objeto. A
Pesquisa Qualitativa exige, justamente por isso, flexibilidade e criatividade (GOLDENBERG, 1999), buscando estabelecer um método que lhe ofereça credibilidade. Parece
importante lembrar que, de modo geral, as Pesquisas Qualitativas se caracterizam pela
imersão do pesquisador no contexto do objeto de pesquisa, balizando-se pela perspectiva interpretativa. O pesquisador tem espaço para a interpretação, a partir da análise/
descrição de fenômenos/comportamentos; da citação direta de experiências de Sujeitos/atores entrevistados; de partes de documentos, da transcrição de entrevistas e/ou
discursos (falas). A Pesquisa Qualitativa leva em consideração aspectos de subjetividade, ao contrário da Quantitativa, que trabalha com assertivas com valor de lei. Na Pesquisa Qualitativa, o pesquisador considera a realidade como algo da ordem do subjetivo
e socialmente construído, o que leva a pensar as noções de relatividade/complexidade
e cultura. Acreditamos que as Pesquisas Qualitativa e Quantitativa sejam complementares e, dependendo do problema a abordar, andam juntas. Bryman (1988) enfatiza que
alguns autores associam a Pesquisa Quantitativa ao positivismo e a Qualitativa à fenomenologia, considerando, assim, os dois paradigmas inconciliáveis. Ao optar por essa
linha de trabalho, buscamos uma perspectiva que mostrasse um caminho, principalmente aberto à critica e à revisão, a partir de outros vieses.
As Organizações são uma instituição cada vez mais presente no cotidiano social,
com implicações socioeconômicas e políticas. Não podemos esquecer que essa instituição se autoeco-organiza com a ingerência de Sujeitos, que, recursivamente, buscam
imprimir-lhe suas características (aqui pensamos que características sejam o modo de
atuar das suas estruturas psíquicas). E todos sabemos que o Sujeito convoca o Outro a
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Revista Communicare
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“entrar no seu sintoma” (dele Sujeito), o que efetivamente introduz a relação.
Pensamos ter cumprido o objetivo deste artigo e respondido às questões que deram início a nossas reflexões: como o comportamento dos Sujeitos Organizacionais
estudados, se considerarmos aspectos psíquicos, pode estar relacionado ao “desenho”
das relações dos públicos nas Organizações? Questão ilustrada quando entrevistados
da Organização A1 fazem comentários em relação à personalidade, forma de ser e de
relacionar-se de determinado gerente, responsável pela [injusta na visão dos trabalhadores] demissão de um supervisor. Os comentários dos entrevistados mostram que os
dois Sujeitos (gerente e supervisor) “desenhavam” relações diferentes com a população
em questão, o que levou, naturalmente, a outro aspecto importante: a disputa de poder
e a consequente demissão do supervisor. E isso somente foi possível captar/compreender por meio das entrevistas em profundidade.
No que diz respeito ao papel dos aspectos psíquicos e de personalidade dos Sujeitos das Organizações, na “leitura” que farão, bem como na resposta que darão aos
apelos e premissas da Cultura das Organizações? recorremos ao exemplo do supervisor
mencionado em uma das entrevistas, cujo critério para a seleção de trabalhadores era
serem dóceis. Temos, com esse exemplo, a perspectiva de quem contrata e a perspectiva de quem é contratado, cuja postura será, evidentemente, a de submissão.
Ouvimos relato de como, em muitos casos, chefias imprimem às relações com os
subordinados o seu modo de ser/perceber. Vieram à tona situações em que elas convocam o Outro a responder ao seu sintoma, assim como ficaram evidentes mecanismos
de defesa, grupais e individuais, que os Sujeitos acionam ao estabelecer relações. Ficou
evidente, também, principalmente se olharmos para os excertos de algumas das entrevistas, a importância do “não-ouvido” ao lado dos bem-ditos, mal-ditos e não-ditos de
que fala Roman (2009).
Com essa pesquisa, buscamos entender como as Organizações podem modificar e
melhorar os processos comunicacionais, investindo na qualificação dos processos relacionais. Queríamos saber, também, se elas consideram, nos seus processos relacionais
com os Sujeitos Organizacionais estudados, os aspectos psíquicos. Afirmações definitivas e generalizações são perigosas quando se trabalha com seriedade, e, na maior parte
das vezes, segundo entendemos, inconvenientes. No momento das Organizações que
acompanhamos, podemos dizer que elas não consideram aspectos psíquicos dos Sujeitos Organizacionais estudados. Percebemos, também, que os dois Grupos estão em
momentos distintos com relação a esse aspecto, havendo, de parte do Grupo B, mesmo
que incipiente e, diríamos, quase mecânico, ainda, o desejo de andar nessa direção.
E somente pudemos fazer essas inferências a partir da escuta cuidadosa efetivada por
meio das entrevistas em profundidade, ou seja, da pesquisa qualitativa.
Entendemos, agora ainda mais, que a escuta é imprescindível no desenho das re-
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81
Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional
lações em qualquer tipo de Organização. Um exemplo simples ilustra isso com riqueza:
quando um líder, com características paranoides, convoca seus liderados a entrarem no
jogo de uma fantasia de perseguição, o Sujeito de seu inconsciente não medirá esforços
para que o grupo entre em seu sintoma.
O Sujeito do inconsciente de alguns integrantes desse grupo, com certeza, ficará
preso ao sintoma desse líder, e o próprio grupo poderá desenvolver uma “estrutura/
personalidade paranoide”, o que levará a problemas de relacionamento/ comunicação. Esses problemas poderão vir a ser, inclusive, muito mais sérios em relação a(os)
integrante(s) do grupo que se recuse(m) a “entrar no sintoma”, na medida em que há
grandes chances de ser eleito(s) “bode(s) expiatório(s)” na relação, tanto com o líder
quanto com o próprio grupo. Parece-nos fundamental que a Organização desenvolva
escutas na direção de seus Sujeitos/grupos, e que ela “faça uma escuta de si” como instituição. E um saudável caminho para isso é, efetivamente, a Pesquisa Qualitativa.
Pensamos essa questão dialética/dialogicamente, o que significa dizer que abrimos mão de uma solução para o problema que analisamos. Vemos a solução como algo
temporário, na medida em que as relações se modificam e, pensando nos significantes
da Psicanálise, deslizam permanentemente. Dessa forma, acreditamos que olhar para
a Comunicação Organizacional numa transdisciplinaridade Comunicação/Psicanálise
seja um passo na direção de encontrar algumas respostas importantes, mas, também,
na direção de buscar novas questões, estas, sim, mobilizadoras de transformações importantes. Mas, para provocar/aceitar transformações, as Organizações devem estar
atentas à forma como buscam analisar/estudar/descobrir/desvelar seus contextos, o
que para nós significa investir na escuta por meio da Pesquisa Qualitativa permanente.
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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
83
Dossiê: A comunicação e a política na era digital
Ecossistema de mídias na
primavera digital
Entrevista com Lourival Sant´Anna
Por Daniela Osvald Ramos
Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), é professora de Novas Tecnologias da Comunicação na
Faculdade Cásper Líbero
“A responsável pela transformação mental é a televisão, não a internet”, diz
o jornalista que, como enviado especial do jornal O Estado de São Paulo,
testemunhou as transformações políticas no Oriente Médio
Entrevista
Lourival Sant’anna
Introdução
Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e mestre pela Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o repórter especial Lourival
Sant’Anna iniciou sua carreira no O Estado de São Paulo em 1990, como redator de
Internacional. Passados 21 anos, sua trajetória compreende a cobertura de conflitos em
mais de 40 países, entre eles a Palestina, Afeganistão, Iraque, Irã, Líbano, e, recentemente, Egito, Tunísia e Síria. Também é autor de dois livros: Viagem ao Mundo dos
Taleban (Geração Editorial, 2002) e O Destino do Jornal (Editora Record, 2008), este
sua dissertação de mestrado.
A informação é fator decisivo numa guerra. Sant´Anna testemunhou o desenrolar
das mudanças políticas no Oriente Médio nesta época na qual a comunicação digital
é um elemento cada vez mais determinante em todos as esferas da sociedade. Se a
transformação mental foi introduzida nos lares árabes por dois canais de televisão a
cabo, principalmente, o Al-Arabiya e Al-Jazeera, foi por meio das redes sociais que os
jovens se reuniram para efetivamente mostrarem ao mundo sua insatisfação com as
ditaduras. Ou seja, as mídias operam na cultura como sistemas interligados de informação, à semelhança de um ecossistema no qual a introdução de novas espécies altera sua
configuração original.
Disseminar correspondências diplomáticas via internet, como fez Julian Assange,
é outro exemplo das mudanças pelas quais passamos. “Quando Osama Bin Laden utilizou aviões como mísseis e os transformou em armas de guerra, ele rompeu limites, um
acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece, a
civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que isso
aconteceu com a correspondência diplomática”, diz, a respeito do Wikileaks.
E, na era digital, fazer política não difere muito de vender um produto: ”Os candidatos são como produtos, sabão em pó, e são capazes de se contradizer, se necessário.
Eles não têm convicções. O político moderno não tem pensamento, não tem ideias,
princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de opinião pedem. E a internet tem sido um
veículo disso”. Leia a seguir a entrevista completa.
Communicare - Como podemos entender o que a internet causou nos países nos
quais você cobriu conflitos nos últimos cinco anos, em especial a Primavera Árabe? Essas mudanças são perceptíveis na prática?
Lourival Sant´Anna - Numa ordem cronológica, temos o Irã, com conflitos em junho
de 2009, chamados de Primavera do Teerã, e o Iraque em março de 2010. O que acontece é que a internet, o Facebook, principalmente, e o Twitter, também, são usados para
as pessoas se mobilizarem e se encontrarem. A responsável pela transformação mental
86
Revista Communicare
é a televisão, não é a internet. Do ponto de vista do conteúdo, são responsáveis os canais
Al-Arabiya e Al-Jazeera, principalmente, e outras dezenas de canais noticiosos, das mais
diversas correntes, como o Hezbollah, no Líbano. Esses canais entram nos lares dos
árabes, e dos iranianos também. No caso dos árabes, esses canais entraram livremente
nas casas na Líbia, Tunísia, Egito e Palestina.
Eles trouxeram a notícia de que existem outras formas de organização política. E,
mais que isso, ajudaram a abortar operações de propaganda, que antes transcorriam incólumes. Por exemplo, houve um protesto em Londres que foi contra o corte de bolsas
de estudo e, principalmente, contra o aumento da anuidade nas universidades. A televisão estatal na Líbia pegou essas imagens e disse que os ingleses estavam protestando
contra a participação da Inglaterra na operação da Otan. Mas os canais Al-Arabiya e
Al-Jazeera mostraram que não era bem assim. Isso é muito importante numa guerra.
Isso pode ser decisivo numa guerra. Por exemplo, agora, em Bani Walid, as pessoas estavam saindo da cidade, fugindo, porque a rádio estatal local dizia que Bani Walid estava
cercada por islâmicos fundamentalistas, que a Al Qaeda estava cercando a cidade. Mas
comprando uma antena que custa dez dólares e o sinal é grátis, sabe-se que a cidade é
um dos últimos redutos do Kadafi. Isso muda completamente o estado da guerra. E isso
tem acontecido.
Communicare - E no Irã?
LS - Estive agora por coincidência com o presidente da Press TV, a TV estatal iraniana e
ele disse que não existe TV a cabo no Irã. Ele não me falou, mas sei que existem algumas
antenas clandestinas, que podem levar a pessoa à morte se forem descobertas. E existe
um complicador, que é o fato de os iranianos não falarem árabe. Então, esse fenômeno
dos canais árabes não penetra no Irã. Mas lá é possível sintonizar a BBC, a CNN, e a elite
iraniana fala inglês. Mas também não é atingindo a elite que se muda a equação política
dentro de um país como esse. Mesmo assim, a Primavera de Teerã, em 2009, foi um
fenômeno também impulsionado pela classe média, de qualquer maneira.
No início de setembro de 2011, um hacker iraniano entrou no sistema de quatro certificadoras de internet, uma delas na Holanda, que reconheceu que foi mesmo
invadida. Ele roubou certificadores usados pelo Google, pelo Yahoo, e outros sites e
entregou para as autoridades iranianas que, com isso, provavelmente, calcula-se, vão ser
capazes de violar o segredo de e-mails de 300 mil pessoas no Yahoo. Isso é muito grave
num país como o Irã, pode levar à morte.
Communicare - E no Egito e Tunísia?
LS - Tudo começou, no Egito, com uma página do Facebook que dizia “Somos todos
Khaled Said”. Porque Khaled foi um rapaz de 28 anos que estava numa lan house quan-
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Entrevista
Lourival Sant’anna
do foi abordado por policiais que queriam que ele se identificasse. Ele falou “primeiro
vocês precisam se identificar”. Apanhou da polícia até morrer. Então, isso é muito emblemático na questão da internet, porque a partir daí criou-se essa página no Facebook
e começou-se a discutir. Primeiro, o papel da polícia. É claro que isso transbordou para
outras questões políticas. Wael Ghonim, egípcio, estava à frente disso, sendo o gerente
de marketing do Google para o Oriente Médio. Com relação à mobilização, nessa e
em outras páginas do Facebook foi-se falando “vamos fazer uma manifestação”, e isso
foi muito antes da revolução na Tunísia. Portanto, a revolução egípcia é um fenômeno
anterior ao tunisiano, ao contrário do que se pensa. Mas a manifestação foi marcada
para 25 de janeiro e a Tunísia estourou no início de janeiro por causa de um homem
que se autoimolou, uma história fortíssima, ele tinha graduação na universidade, não
tinha emprego e estava trabalhando como camelô e tomaram as coisas dele. Então ele
pôs fogo em si mesmo. Acho que qualquer pessoa compreende por que ele pôs fogo em
si mesmo.
O que eu sempre gosto de opinar nessa questão é que as coisas nascem no mundo
real. Khaled Said foi espancado até a morte, outro homem se imolou. Na Líbia, parentes
dos presos políticos chacinados na prisão de Abu Salim, em 1996, estavam preparando uma manifestação quando o advogado dessas famílias todas, Fathi Terbil, foi preso
preventivamente, às vésperas do protesto. Essa manifestação foi então engrossada pelos
advogados e pelos juízes da Alta Corte de Benghazi, na Praça dos Mártires. São fatos
concretos, mas a mobilização para essa manifestação foi feita no Facebook. E, posteriormente, surgiram muitas páginas no Facebook.
Quando começou a revolução, em Tripoli, nove parentes do rei Idris Sanusi, derrubado por Kadafi, todos jovens, irmãos e primos entre si, foram presos, para justificar
uma das narrativas do regime para essa revolução, que era uma conspiração para trazer
de volta a monarquia. Conversando com eles, falei “mas vocês fizeram alguma coisa?”,
e eles “eu não fiz nada”, “eu não fiz nada”. Aí um deles falou “ah, eu não fiz nada, eu só
tinha uma página no Facebook chamada ‘Fora, Kadafi’”. A minha análise é de que a
maior serventia do Facebook e do Twitter é para a organização: “vamos nos encontrar
em tal lugar, tal hora e tal dia”. E claro, o Facebook, como todos nós sabemos, é um lugar
em que você se coloca. E, naturalmente, as pessoas se colocavam. Eu me lembro de um
médico que falou que “no início da revolução, dos protestos, eu escrevi na minha página do Facebook ‘nós precisamos de reformas. Esse regime precisa de reformas’. Eu não
queria a queda do Kadafi, eu só achava que precisava de reformas. Depois de tudo o que
aconteceu, hoje eu preciso que o Kadafi caia”.
Communicare - É preciso ver que e-mail já proporcionava isso, mas não em escala
de rede...
88
Revista Communicare
LS - Isso. Acho que o Facebook e o Twitter permitem essa abertura. Enfim, eles são sistemas mais abertos. As pessoas que se interessam podem buscar, não é fechado. E isso
fez uma diferença grande.
Communicare - Você falou da TV, é interessante notarmos esse ecossistema dos
meios de comunicação, que é daí que surge o novo.
LS - Só mais uma questão: tanto na Tunísia quanto no Egito e na Líbia, a internet foi
derrubada e os celulares também. Encontrei com dois jornalistas da revista alemã Der
Spiegel, um fotógrafo e um repórter de texto. Eles ficaram duas semanas na Síria, escondidos (não estavam sendo fornecidos vistos para jornalistas). Perguntei ao fotógrafo:
“como você fez com o seu equipamento?”, e ele “não levei equipamento”. “Telefone satélite?”, “Não, não levei nada, a gente só publicou depois de sair (da Síria)”. Em revista, você
pode fazer isso... Ele falou: “meu plano foi o seguinte: eu levei uma câmera de turista.
Estava lá como turista, levei uma câmera pequena. Só que as manifestações são de noite,
e existem franco-atiradores no topo dos edifícios do governo que buscam quem está
com uma luzinha, celular ou câmera. Se os vizinhos vissem aquela manifestação, tudo
bem, não seria um problema. Mas o resto do mundo seria um problema. Ligava minha
câmerazinha e falava ‘agora eu vou morrer’, porque tinha aquela luzinha no meio da
escuridão”. Então, existe toda essa questão da fotografia digital, que é viral.
No meio da guerra na Líbia, chegavam homens com celular e falavam “você tem
imagens para trocar?”. Trasmitiam-se as imagens por bluetooth de celular para celular.
Na Síria, isso é vital, também no Yêmen e Bahrein, que são países fechados para a imprensa. É a única forma de contrabandear para fora do país imagens do que está acontecendo lá. De forma viral, pelo Bluetooth.
Communicare - Você vê, a médio e longo prazo, os governos no mundo querendo
ter mais controle sobre a internet? Por exemplo, nos conflitos com os riots na Inglaterra, neste ano, o governo cogitou cortar o acesso à internet e às mensagens
enviadas por celular.
SL - Vou responder à sua pergunta de uma forma histórica. Nos últimos dez anos, uma
parte do orçamento de defesa da China e dos EUA, e de países europeus também, tem
sido destinada à guerra eletrônica. Porque, na guerra convencional, o primeiro objetivo
é bombardear as salas de controle e comando. É como se você destruísse o cérebro. Na
Líbia, algumas brigadas como, por exemplo, em Ashdala, no leste, estavam atuando sem
controle e comando, porque a Otan cortou a comunicação. Fazer isso com bombas é
mais difícil, porque se destroem alvos civis.
O controle de comando do Kadafi estava debaixo de um estacionamento de um
bar de Abu Salim. São bunkers. Se é possível atacar os centros de comando eletronica-
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
89
Entrevista
Lourival Sant’anna
mente, é muito mais custo-benefício. Muitos hackers têm sido capturados, cooptados e
trazidos para dentro de agências de inteligência militar, que têm atuado nesse sentido. E
acho que a gente ainda não viu nada. Acho que isso vai crescer muito. Com relação à Inglaterra, Londres é provavelmente a cidade mais vigiada do mundo. Mas outras cidades
do interior da Inglaterra também. Em cada esquina há uma câmera de circuito interno,
que é usada pela polícia. Londres foi um dos lugares em que o Google Street começou.
Mas os ingleses falaram (em relação à possibilidade de controle da internet): “Já temos
invasão de privacidade suficiente”. E há um tremendo problema legal aí.
Communicare - É possível dizer que a digitalização da cultura, no sentido em que
estamos falando, muda o jeito de fazer política?
LS - Com certeza. Eu cobri a eleição americana, fiquei o segundo semestre de 2008
nos EUA. Até hoje eu recebo e-mails do John McCain, da mulher dele, do Obama, da
mulher do Obama, da Hillary Clinton... A campanha, principalmente do Obama, e isso
se tornou um caso clássico, foi feita em função da internet. A arrecadação foi recorde.
Na época, vinham e-mails em que ele colocava questões políticas do momento, da conjuntura da campanha, isso até na época das primárias, antes de ele ser o candidato. E
dizia “olha, está acontecendo isso, isso e isso, você pode dar 50 dólares? É um momento
difícil”. Deu certo. Na democracia americana há uma tradição de doações, que tem uma
conotação política muito forte. Quando os políticos americanos falam em doação na televisão, vira uma bola de neve. Tem uma grande repercussão sobre o público americano,
que tem orgulho de dizer “eu votei com o meu dinheiro”.
Eu acho que a política continua sendo a política, assim como a guerra continua
sendo a guerra. Mas os meios mudam a forma de fazer as coisas. A aceleração da informação e do impacto dela ricocheteia e tem muita influência sobre a política, porque
antes o discurso era mais vertical. Antes era possível, com um discurso preparado, passar uma mensagem mais homogênea, mais vertical. Hoje interage-se o tempo inteiro.
Communicare - O que é o WikiLeaks?
LS - Eu acho que o WikiLeaks é uma quebra nas normas de convívio, nas normas de
comportamento. Uma coisa é flagrar um ato de corrupção. Outra coisa é violar uma
correspondência diplomática. Mas o WikiLeaks tem vários aspectos. O que mais me
impactou até hoje e que considero uma contribuição jornalística muito importante foi
o vídeo do bombardeio no Iraque, daquela operação por helicóptero. Aquilo realmente desnudou a incrível irresponsabilidade das forças armadas americanas. Teve coisas
desse tipo também no Afeganistão. Eu acho que isso é jornalismo, da mesma maneira
aquele escândalo da prisão de Abu Ghraib no Iraque, anos antes, aquelas fotos. Isso é
muito pertinente, isso é de interesse público.
90
Revista Communicare
Tenho dúvidas se está dentro da nossa ética distribuir correspondências diplomáticas. Mas, de qualquer maneira, vamos passar a conviver com isso. O mundo ficou tão
dependente de todas essas formas de comunicação que se tornou, ao mesmo tempo,
vulnerável. Eu faria uma analogia com a questão do avião. Quando Osama Bin Laden
utilizou aviões como mísseis e transformou-os em armas de guerra, ele rompeu limites,
um acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece,
a civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que
isso aconteceu com a correspondência diplomática. É isso que caracteriza o terrorismo,
não respeitar normas da guerra. E, propositalmente, atingir um alvo civil. Mas quando
se mexe com sistemas de transportes ou com sistemas de comunicação, aí se transpôs
um limite. E o WikiLeaks faz isso. E proclama que não há regras. Os fins justificam os
meios. Vejo benefícios no WikiLeaks, mas tenho dúvidas do balanço entre prejuízos e
benefícios. Como é que fica quando alguém fura a fila, quando cruza o sinal vermelho?
O que é que ele introduziu na sociedade? Um elemento de barbárie.
Communicare - Barbárie digital, como quando se colocam informações falsas sobre uma pessoa no Facebook, Orkut?
LS - Uma traquinagem. Cobri os vinte anos da queda do muro de Berlim em 2009 e senti dificuldade em fazer entrevistas on the record com jovens entre 18 e 30 anos de idade.
É uma coisa que um jornalista nunca enfrenta, você tem problemas em estar on the
records com autoridades, diplomatas, militares, empresários falando coisas sensíveis.
Uma moça me perguntou: “essa entrevista vai estar na internet?”. Eu respondi como
sempre, com todo o entusiasmo: “sim, claro!”, porque achei que ela queria mostrar para
os amigos, para a mãe. “Ah, então eu preferiria que não saísse meu nome”. “Estou tentando limpar meu nome da internet”. Eu vi isso várias vezes, até que alguém me explicou
que, na Alemanha, os jovens não conseguem emprego formal se o recrutador faz uma
pesquisa e encontra imagens deles bêbados. O que é uma coisa alemã, beber cantando
e fazendo besteira. Mas eles não conseguem tirar isso da internet e não conseguem emprego formal. Pode acontecer no nosso país, também.
A internet dá ressonância para um tipo de controle moralista e pudico, puritano. Emoldura a vida pública das pessoas num limite mais estreito, que responda ao
conservadorismo mais extremado. Porque a sociedade tem diversos raios de aceitação,
de tolerância moral e social. Na medida em que a questão se torna aberta e há um
escrutínio milimétrico da vida de todos, a aceitação social se circunscreve ao mínimo
denominador comum. E aí se chega a uma situação orwelliana. Há o Grande Irmão que
controla. Por que uma pessoa que, na adolescência, foi filmada numa cena de bebedeira,
anos depois não pode ser aceita numa empresa? A única diferença entre ela e aqueles
outros alemães que trabalham na empresa é que esses outros alemães não têm imagens
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
91
Entrevista
gravadas no YouTube. Se houver preocupação com a questão do alcoolismo, é possível
para a empresa colocar um tipo de exame específico, psicológico, em seu processo de
seleção. Mas do que é que nós estamos falando, é de alcoolismo? Não, é de imagem. O
que essa empresa não quer é que, no mercado, em um momento de vulnerabilidade, se
associem essas coisas a ela.
Porque nós não estamos falando sobre o domínio da internet, nós estamos falando
sobre o domínio do marketing, inclusive na política. Hoje, a política é dominada por
estratégias mercadológicas. Os candidatos são como produtos, sabão em pó, que são
capazes de se contradizer se necessário. Eles não têm convicções. O político moderno
não tem pensamento, não tem ideias, princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de
opinião pedem. E a internet tem sido um veículo disso. As pessoas que são guiadas por
princípios não conseguem se ajustar a esse sistema. Em resumo, nós elegemos atores.
92
Revista Communicare
Dossiê: A comunicação e a política na era digital
Fatodifusores digitais e os novos
modos de produção jornalística
Cristiane Lindemann
Jornalista formada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), mestre em Comunicação e Informação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutoranda no mesmo PPG. [email protected]
Danielle Sandri Reule
Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Comunicação e Informação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora da Universidade Estácio de Sá (Unesa).
A proposta do artigo é refletir sobre o papel de indivíduos que presenciam acontecimentos e, utilizando tecnologias digitais, capturam e disseminam globalmente as informações no ciberespaço,
sem moderadores. A tendência é que fatos com valor-notícia sejam, em dado momento, também
confirmados por autoridades e divulgados pela imprensa oficial. O processo não é novidade, mas
a emergência do Twitter e de redes sociais como Orkut e Facebook resultou no surgimento de um
novo fenômeno. Sugere-se, então, denominar esses personagens, relevantes aos processos comunicacionais, fatodifusores digitais.
Palavras-chave: web 2.0; Twitter; participação; fatodifusor digital; jornalismo
Digital fact-diffusers and new ways
of journalistic production This paper proposal is
Fatodifusores digitales y las nuevas
formas de producción periodística El ob-
to reflect on the role of individuals who witness events and,
jetivo del trabajo es discutir el papel de los individuos que
using digital technology, capture and disseminate overall
presencian eventos y, con el uso de tecnologías digitales, cap-
information in cyberspace, with no moderators. The ten-
turan y difunden la información a nivel mundial en el cibe-
dency is that facts with news value are, at some point, also
respacio, sin moderadores. La tendencia es que los hechos de
confirmed by authorities and published by official media.
valor de noticias sean, en un momento, también confirmados
The process is not new, but the emergence of Twitter and
por autoridades y divulgados por la prensa. El proceso no es
social networks such as Orkut and Facebook has resulted in
nuevo, pero la aparición del Twitter y las redes sociales como
appearence of new phenomena. Therefore, it is suggested to
Orkut y Facebook está dando lugar a fenómenos nuevos. Se
call these characters, relevant to communication processes,
sugiere, por lo tanto, llamar a estos personajes, pertinentes a
digital fact-diffusers.
los procesos de comunicación, ‘fatodifusores digitais’
Keywords: web 2.0; Twitter; participation; fatodifusor digi-
Palabras clave: web 2.0; Twitter; participación; fatodifusor
tal; journalism
digital o efecto difusor; periodismo
Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
Informação em primeira mão
Web 2.01, celulares, câmeras digitais, redes sem fio. Eis algumas das ferramentas que
têm modificado os modos de produção do jornalismo. O modelo tradicional de “comunicação de massa”, baseado na produção e disseminação de notícias padronizadas, a
partir de poucos veículos e de profissionais especializados, passou a conviver com tecnologias digitais que viabilizam a inserção de novos atores nos processos de apuração,
construção e distribuição do conteúdo.
Em novembro de 2008, Mumbai, na Índia, foi abalada por tiroteios. As primeiras
informações e fotos do ataque terrorista que matou mais de 300 pessoas e deixou outras
tantas feridas foram escritas e divulgadas por pessoas comuns que estavam no local.
Poucos minutos após o ataque as seguintes mensagens foram divulgadas pelo Twitter:
Urvaksh: “Mumbai está um caos: 18 mortos, 40 pessoas mantidas reféns no Oberoi, hotel
cinco estrelas, tiroteio acontecendo no JW Marriott”. 11:33, 26 nov, da web.
Fossiloflife: “Batalhas com tiros acontecendo em dois pontos estratégicos do sul de
Mumbai”. 10:34, 26 nov, da web. No final, a CNN mostrou uma história intitulada
“Twittando o terror: como a mídia social reagiu a Mumbai”. (Comm, 2009: 22)
Em janeiro de 2009, a versão online do jornal Daily News2 falava sobre a fama repentina
de Janis Krums, um cidadão americano que publicou no Twitter3 (Figura 1) uma foto
do avião da US Airways que pousou no rio Hudson. Tirada momentos após o acidente,
antes de a imprensa chegar ao local, a foto de Krums, postada na Web, foi vista por
cerca de 40 mil internautas nas quatro horas seguintes, segundo o Daily News. O texto
refere-se a Krums como “repórter amador”, dizendo que ele contribui para o “jornalismo cidadão”, também chamado de jornalismo participativo.
No mês seguinte outro acidente de avião, desta vez com uma aeronave da Turkish
Airlines, na Holanda, teve sua primeira divulgação por meio do Twitter. A própria CNN
afirmou que um usuário da rede social foi responsável por publicar a primeira foto do
acidente aéreo. Foi só depois de ver a imagem no Twitter que repórteres da rede nor1. O desenvolvimento da chamada web 2.0 impulsionou ainda mais as “relações horizontais”. De
acordo com Primo (2006), a web 2.0 refere-se à segunda geração de serviços online e caracteriza-se por
potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar
os espaços para a interação entre os participantes do processo, potencializando o trabalho coletivo, de
troca afetiva, de produção e circulação de informações, de construção social e de conhecimento apoiada
pela informática. O autor frisa que a Web 2.0 diz respeito não apenas a uma combinação de técnicas
informáticas (serviços Web, linguagem Ajax, Web syndication, etc), mas também a um determinado
período tecnológico, a um conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação
mediados pelo computador. A disponibilidade dessas condições faz surgir novas práticas em rede, como o
webjornalismo participativo.
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3. http://www.twitter.com.
96
Revista Communicare
Figura 1: Página do Twitter com o tópico publicado por Janis
Krums, com link para a foto tirada por ele
te-americana entraram em contato com oficiais holandeses para confirmar o acidente.
Os três casos ilustram um processo de comunicação cada vez mais comum: indivíduos que, com a ajuda das tecnologias digitais e de canais disponíveis na rede mundial
de computadores, capturam e disseminam globalmente as informações, no ciberespaço, em tempo real e sem moderadores. A tendência é que, quando os fatos têm o que
conhecemos como valor-notícia4, em certo momento, também serão confirmados por
autoridades locais e divulgados pela imprensa oficial – configurando um processo de
comunicação pretensamente democrático, em que a mediação de jornalistas se faz presente, porém, situada num contexto heterogêneo de fontes.
O processo em si não é uma novidade. Mas a emergência do Twitter – para uns,
um serviço em formato de microblog, para outros, uma rede social – e de redes sociais5
como Orkut6 e Facebook7 resultou no surgimento de um fenômeno novo, ainda que
tímido. Indivíduos que não têm como profissão o jornalismo e que também não têm a
pretensão de fazer parte de um ambiente de webjornalismo participativo; que são mais
do que simples testemunhas ou fontes, pois não precisam passar a informação para um
“moderador” divulgá-la; e que se utilizam de tecnologias digitais para difundir um fato
de relevância social, mesmo sem grandes apurações.
4. Os valores-notícia constituem resposta à seguinte pergunta: que acontecimentos são considerados
suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícia? Esses
valores variam entre: a) conteúdo: grau e nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento
noticiável, impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional, quantidade de pessoas envolvidas, relevância
quanto à evolução futura; b) disponibilidade do material e critérios relativos ao produto informativo; c)
público; e d) concorrência. (Wolf, 2003).
5. Redes sociais na Internet são constituídas de representações dos atores sociais (geralmente
individualizadas e personalizadas) e de suas conexões (elementos que vão criar a estrutura na qual as
representações formam as redes sociais (Recuero, 2009: 40).
6. http://www.orkut.com.
7. http://www.facebook.com.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
97
Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
Como lembra Lévy (2005), a emergência da Internet e o surgimento da World
Wide Web prolongaram a precedente evolução da esfera pública, introduzindo elementos radicalmente novos, como a interconexão geral, a desintermediação e a comunicação de todos com todos (Lévy, 2005: 369). Acrescenta-se aí o desenvolvimento da web
2.0, que potencializa a comunicação horizontal, em caráter colaborativo e aberto.
Partindo dessas considerações, o presente artigo tem o objetivo de analisar este
fenômeno, baseando-se em conceitos como jornalismo, webjornalismo participativo e
notícia. A intenção é levantar um debate acerca deste novo personagem que passa a
integrar os processos comunicacionais digitais.
A essência do jornalismo
Em 1985 José Marques de Melo escreveu que “mais de um século de pesquisa sistemática sobre os fenômenos jornalísticos não foi suficiente para permitir uma concisão
conceitual sobre esta atividade da comunicação coletiva” (Melo, 1985: 7). A dificuldade
estaria no descompasso entre o avanço do conhecimento científico e as mutações do
próprio campo. É o que se percebe com o avanço da tecnologia, que, inserindo-se no
processo produtivo, chega ao ponto de impor dúvidas sobre a própria prática jornalística, exigindo a revisão de conceitos que até então pareciam definidos, mas que agora
tomam novos contornos.
Sousa (2004) é um dos estudiosos que explicita a preocupação com o novo cenário
imposto pelas tecnologias da comunicação. Ele afirma que, na sua essência, o jornalismo corresponde à atividade de divulgação mediada, periódica, organizada e hierarquizada de informações com interesse para o público. No entanto, ele ressalta que “as novas
formas de jornalismo on-line, de jornais a la carte, de televisão interactiva, etc. colocam
em causa alguns dos pressupostos do jornalismo tradicional” (Sousa, 2004: 75).
Neste artigo, o jornalismo será tomado como uma atividade de divulgação de informações, com propósito social, que constroi a realidade a partir de inúmeros processos de interação entre os profissionais do campo jornalístico, as fontes, outros jornalistas e com a própria sociedade.
O jornalista, no papel de mediador, tem a função de recolher informações, selecioná-las e distribuí-las para a sociedade, sempre em sintonia com os bons costumes e a
boa conduta (Bucci, 2000), que são as bases da ética. “Desse modo, por sua atividade, o
jornalista cria o cidadão e o interesse público” (Vaz, 2004: 220). O profissionalismo jornalístico não é, portanto, apenas um exercício técnico que reproduz o senso comum. O
conteúdo enunciado tem o “poder” de explicar o mundo e, consequentemente, de formar
opiniões e fornecer conhecimento aos cidadãos, por meio de uma representação do real.
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Revista Communicare
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
Também são levadas em conta duas questões importantes. Primeiro, que os relatos veiculados na mídia são uma realidade possível, mas não única, uma vez que pode
ser tomada sob diversos ângulos e de várias formas. Segundo, que o repórter, atualmente, já não é mais figura centralizadora na produção. Isso porque o processo rígido, de
caráter industrial, vem cedendo espaço para modelos descentralizados, que envolvem
outros sujeitos – os “cidadãos comuns” – tanto na coleta quanto na construção e distribuição das informações. Muitas vezes, como buscaremos mostrar neste artigo, essas
pessoas não têm a intenção de “fazer jornalismo”, mas acabam furando a mídia tradicional e até pautando-a.
Leva-se em conta ainda que, com essa nova realidade – em que as informações
fluem sem controle por uma rede de fácil acesso – o próprio conceito de valor-notícia
foi ampliado. Se antes cabia ao jornalista a tarefa de escolher o que seria relevante seu
público ler, rejeitando determinadas informações por questões ideológicas ou limitação
de espaço/tempo, o contexto atual permite uma publicação, a priori, sem limites.
A notícia e o jornalismo móvel
As notícias constituem a matéria-prima do jornalismo contemporâneo. Elas são, segundo Traquina (2005), estórias que podem ser contadas em várias versões, as quais ajudam
a construir a realidade. Contudo, é preciso ressaltar (e isso será mais bem esclarecido
adiante), que as atuais tecnologias digitais de comunicação, com ênfase para os dispositivos móveis, oportunizam o surgimento de novas formas de apuração das informações,
modificando e agilizando todo o processo de construção das notícias. Silva (2009: 93)
diz que “tornou-se comum em redes de TV e portais de notícias na Web as reportagens
e coberturas com celular banda larga 3G oferecendo visibilidade à operação do jornalismo móvel”.
Um internauta munido de celular pode captar a imagem de um acidente e publicá-la
no Twitter (como o caso de Janis Krums, que publicou a foto do avião da US Airways
que pousou no rio Hudson). A partir daí, se o fato relatado possuir valor-notícia, não
apenas as pessoas envolvidas no acidente, mas também ele próprio passa a ser fonte
para os jornalistas. Mesmo sem intenção e sem sequer ter conhecimento das técnicas
para apurar e redigir uma notícia, esse cidadão comum está fazendo jornalismo ao divulgar um fato atual e de interesse social.
Esta é apenas uma entre tantas evidências que mostram que o jornalismo vem
passando por mudanças significativas – o que comprova que esta é uma prática social variável e condicionada historicamente, como alerta Rüdiger (2003). A atualidade
apresenta não apenas um novo suporte técnico – o computador –, mas também uma
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Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
maneira diferente de produzir, difundir e receber a informação. Esse fator ficou ainda
mais evidente após o estabelecimento da rede mundial de computadores (Internet), que
potencializou conceitos como memória, hipertextualidade, instantaneidade, interação
e hipermidialidade.
A Internet, aliada à Web 2.0, rompe com o processo comunicacional vertical8,
de formato um-todos, característico do jornalismo massivo. As tecnologias digitais de
comunicação potencializam a interação, as relações recíprocas, de domínio público e
caráter colaborativo. Diluem-se as fronteiras de tempo e espaço geográfico, assim como
as fronteiras entre emissores e receptores, resultando num espaço público virtual (o
ciberespaço) onde novas relações sociais são estabelecidas e onde “veículos e profissionais tendem a buscar meios de aproximar, ou mesmo integrar novos recursos e atores
às práticas e rotinas do campo jornalístico” (D’Andréa, 2009: 73).
Esse cenário possibilita o surgimento de experiências inovadoras, como o webjornalismo – que estabelece uma relação de potencialização e complementaridade em relação ao jornalismo tradicional, pois se baseia em recursos tecnológicos que permitem
formas diferenciadas de produção, veiculação e recepção de notícias – e o webjornalismo participativo (Lindemann, 2008), que serão abordados no próximo item.
Webjornalismo participativo: um ato intencional
O webjornalismo é a prática jornalística em rede, viabilizada graças aos avanços tecnológicos iniciados na década de 70, que possui características como multimidialidade
ou convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização, instantaneidade ou
atualização contínua e memória (Palácios: 2003). Agregada a esse contexto, a Web 2.0
possibilita o surgimento do “webjornalismo participativo”, que remete à ideia de produção e publicação de notícias na rede mundial de computadores a partir de qualquer
usuário. É o que alguns autores chamam de citizen journalism, jornalismo colaborativo,
comunitário, cidadão, open source9 (código aberto), peer-to-peer10, etc.
A principal característica dessa lógica de produção de notícias é a superação do
8. “Comunicação vertical” seria a comunicação que separa nitidamente emissores de receptores. Pode
haver interação entre eles, mas esta não se dá pelo mesmo suporte e raramente resulta em uma produção
conjunta de conteúdo.
9. Conforme Moura (2002), o termo open source surge aplicado ao software que algumas pessoas criam
e disponibilizam gratuitamente na rede para que qualquer usuário possa manipulá-lo, e vem sendo
adaptado a outras áreas, como no caso do jornalismo, o que gerou a expressão jornalismo open source.
Trata-se, portanto, da união da prática jornalística com a abertura do código-fonte de softwares, ou seja,
as ferramentas de publicação. De acordo com Träsel (2007), o espaço do webjornal é aberto para que os
leitores possam colaborar enviando suas próprias reportagens, ou mesmo editando as reportagens de
outros colaboradores.
10. Segundo Moura (2002), a expressão jornalismo peer-to-peer sugere um jornalismo que envolve a
partilha de recursos e serviços pela troca entre sistemas.
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Revista Communicare
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
modelo comunicacional emissor-meio-mensagem-receptor – característico, em especial, dos veículos massivos –, uma vez que este último torna-se um produtor de conteúdo em potencial, de modo que a fronteira entre produção e leitura não é nitidamente
delimitada ou não existe (Primo e Träsel, 2006).
Com as tecnologias digitais tem-se, portanto, uma nova arquitetura social, que
abre os canais de comunicação, permitindo um fluxo diferenciado de informações.
Trata-se de um processo de interação em que os envolvidos são, ao mesmo tempo, produtores, emissores e receptores. Em alguns casos, porém, permanece a figura do mediador, filtrando o conteúdo produzido pelos internautas e impossibilitando a interação
mútua (Primo, 2000).
Acredita-se que esse novo modelo de produção pode ir ao encontro da proposta
de Gans (2004), de um “jornalismo multiperspectivo”, cujas características são: 1) realização de uma cobertura que vá além das fontes oficiais, ou seja, que mostre o “pano de
fundo” ou entorno dos fatos; 2) focalização de notícias mais representativas, relatando
as atividades e opiniões de todos os setores e papeis da população. Por “setores”, o autor
entende grupos de todas as idades, níveis escolares, etnicidade, religiões, etc. Por “papeis”, o que as pessoas fazem, como pais e filhos, empregados e empregadores, vendedores e clientes, médicos e pacientes; 3) ênfase para as notícias de serviços, fornecendo
informações relevantes a setores e papeis específicos, ou seja, pensar no que as pessoas
consideram importante para elas mesmas; 4) fontes mais dispersas, evitando-se as de
fácil acesso. As fontes devem ser selecionadas em todos os níveis da sociedade. É o que
se denomina de modelo two-tier11, ou seja, notícias que representem uma variedade de
perspectivas da arena simbólica.
Obviamente, diz Gans (2004), esse modelo produziria uma representação um
tanto diferenciada. Isso porque os meios “tradicionais”, mais proeminentes na arena
simbólica, também teriam de se tornar mais multiperspectivos. Ele idealiza o jornalismo multiperspectivo praticado por jornalistas, não se referindo, especificamente, ao
webjornalismo participativo. Acredita-se, no entanto, que essa modalidade possa ir ao
encontro de tal proposta – ainda mais se considerarmos o grande potencial das tecnologias móveis, que favorecem e facilitam a participação do cidadão comum nos processos
produtivos.
Portanto, mais que ferramentas ao dispor dos jornalistas, as tecnologias digitais
de informação e comunicação impõem um novo cenário de trabalho a esses profissionais, exigindo-lhes novas habilidades para manter-se no mercado. Conforme Santaella
(2003), a sociedade de distribuição piramidal começou a sofrer a concorrência de uma
sociedade reticular de integração em tempo real.
11. Modelo two-tier: trata-se de um modelo que se propõe a relatar as notícias para audiências específicas
e razoavelmente homogêneas. A ideia é de reavaliar e reinterpretar a notícia divulgada pelos meios
“tradicionais”, direcionando-as para audiências específicas.
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Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
Nesse aspecto, vale mencionar Langeveld (2009), que, ao refletir sobre a atual dinâmica de produção e circulação de informação de interesse jornalístico, alerta para o fato
de que está cada vez mais difícil identificar o que é o “fato jornalístico”, ou onde começa e
termina a sequência de fatos que deve ser reportada. Segundo ele, o fluxo ininterrupto de
informações exige que as redações estejam preparadas para produzir e editar informações de forma contínua, explorando as especificidades de cada meio e agregando dados
publicados por diferentes fontes, inclusive aquelas mantidas pelo público.
O cidadão comum passa a exercer a função de gatekeeping12, até então designada aos
jornalistas. Esse conceito teve que ser repensado, dando lugar ao que Bruns (2003) definiu
como gatewatching. Segundo Primo e Träsel (2006), há um deslocamento da coleta de
informação para a seleção. Esse novo jornalista, que combina funções de repórter e bibliotecário, é o gatewatcher. Do porteiro, assinalam os autores, passa-se ao vigia.
Portanto, o webjornalismo participativo permite novas formas de produção, com
potencial para enriquecer o chamado jornalismo tradicional – seja com o fornecimento
de informações, seja por seu caráter fiscalizador, que tende a deixar os profissionais
alertas, sempre em busca da qualidade, da completude e da verdade. Frisa-se, porém,
que esse modelo de produção é alimentado por sujeitos que colaboram intencionalmente com o fornecimento de informações. Já as redes sociais como o Twitter chegaram para ampliar ainda mais esse leque de opções, gerando outros caminhos para o
processo comunicacional em meios digitais. Contudo, nem todos os internautas que
postam informações no Twitter têm a intenção de fazer jornalismo. É esse o foco do
presente artigo, sobre o qual nos debruçaremos a seguir.
Noticiando sem intenção
Ainda há muita discussão sobre o jornalismo participativo ser ou não jornalismo e sobre
a credibilidade desse tipo de produto resultante da produção colaborativa, o que nos
leva a comparar a prática e o cotidiano jornalísticos a eventuais contribuições do cidadão comum com o que ainda se pode chamar de notícias. Como bem lembra Charaudeau (2006: 152), o simples fato de se “relatar o acontecimento tem como consequência
construí-lo midiaticamente”.
Pode-se dizer que o ciberespaço é um ambiente em que “comunicadores profissionais”15 disputam atenção com “comunicadores eventuais” quando o assunto é notícia.
Entretanto, essas pequenas participações de “testemunhas oculares” que, em questão
12. O gatekeeping é exercido pelo chamado gatekeeper – o “porteiro” da redação, ou seja, aquele jornalista
responsável pela filtragem das notícias. É ele quem vai definir, de acordo com critérios editorias (como os
valores-notícia, por exemplo), que fatos serão publicados e quais serão descartados.
13. Toma-se a palavra “comunicador” no sentido de especialista em comunicação, aquele que comunica,
que transmite, que desempenha a função de emissor num processo de comunicação. Para fins deste artigo,
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Revista Communicare
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
de minutos, disseminam uma informação factual, sem grande apuração, ainda antes da
imprensa ou órgãos oficiais, podem ser encaradas de forma distinta. O que se defende
aqui é a possibilidade de se estabelecer uma diferença entre os papeis do jornalismo, do
webjornalismo participativo e desse terceiro conceito.
Informalmente, essa questão tem sido levantada no ciberespaço. Em seu blog sobre cultura Web, tecnologia e mídia, o jornalista Tiago Dória14 já aponta as diferenças
citadas neste artigo dizendo que, no caso da foto do avião no rio Hudson, dois pontos
devem ser ressaltados: 1) Krums não enviou a foto para nenhum site de jornalismo
cidadão/colaborativo/participativo. Ele simplesmente pegou o telefone, tirou a foto e
enviou para a sua rede de contatos mais próxima com quem provavelmente troca mais
informações no dia-a-dia – Twitter. (...) 2) O Twitter foi muito bom em hospedar os
primeiros relatos, mas na hora de saber por que o avião fez esse tipo de pouso, quantas
pessoas se feriram, se o piloto fez a coisa certa, se era a primeira vez que acontece esse
tipo de acidente na região, o negócio foi correr para a grande mídia, que fez o que sabe
fazer melhor – explicar o fato detalhado e trazer informação editada, mais aprofundada.
Fato é que a abundância de informações a que estamos submetidos faz com que o
indivíduo prefira que essas informações venham para “consumo imediato”. E as tecnologias digitais permitem que se produza e se receba de pronto toda e qualquer informação. O Twitter, por exemplo, não foi criado especificamente para a produção de notícias
na Web, mas trabalha com o tempo real, conceito permanentemente perseguido pelas
redações online. A sugestiva premissa do “O que você está fazendo?” já implica a divulgação de fatos presentes, instantâneos, o que fica evidente no texto de apresentação do
serviço:
Iniciado como um projeto paralelo em março de 2006, o Twitter amadureceu para
um serviço de mensagens rápidas em tempo real que funciona sobre múltiplas redes e
dispositivos.
Em países em todo o mundo, pessoas seguem as fontes mais relevantes para elas e
acessam a informação via Twitter no momento em que acontece – de plantões de notícias
mundiais a atualizações de amigos. (http://www.twitter.com/about#about)
Além disso, antes de uma era de virtualização, vive-se uma era em que predomina
o consumo de imagens. A sociedade é marcada pela força da imagem, pelo poder da
mídia, um ambiente em que precisamos constantemente consumir e ser consumidos.
Como bem definiu um dia Guy Debord (1997), ainda no contexto dos anos 1960, a
“sociedade do espetáculo” é o ponto máximo da cultura de massa somado ao excesso
de visibilidade. A Internet e os dispositivos móveis só potencializaram o processo, dano profissional é, basicamente, o jornalista, com a prática e o cotidiano jornalísticos. O eventual é o que busca
exercer, ocasionalmente, o papel desempenhado pelo profissional.
14. http://www.tiagodoria.ig.com.br/2009/01/16/a-incrivel-foto-do-twitter/. Acesso em 20/07/2010, 21:24:20.
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Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
do velocidade, alcance global e dinamismo. Assim, nossas experiências cotidianas são
moldadas pela espetacularização da mídia, não importa a forma ou a fonte, afinal “o que
aparece é bom, o que é bom aparece” (Debord, 1997: 17). Como não há mais distinção
entre produtor e consumidor no ciberespaço, veículos oficiais e público em geral produzem para que indivíduos conectados possam consumir, e quem consome também
produz para que outro consuma.
Para se ter uma ideia, segundo Bradshaw apud Recuero, existem muitos casos
em que as redes sociais estabelecidas na Internet atuam de forma determinante como
fontes de informação. Um desses casos é o do blogueiro Salam Pax com as notícias de
Bagdá durante a invasão americana do Iraque em 2006.
No caso, o objetivo do blog não era construir um repositório de informações de Bagdá,
mas simplesmente, contar o dia a dia do autor e auxiliar em sua busca por Raed. O fato
do blog tornar-se uma fonte de informações deu-se, justamente, pela falta delas e pela
ação das redes sociais comentando o mesmo. Com o passar do tempo, o blogueiro passou
também a preocupar-se com a informação no blog por causa do processo. (Recuero,
2009: 46)
Mas nesse cenário, há ainda a questão sobre os motivos que levam um indivíduo a
desempenhar esse papel de comunicador eventual. Existiria aí a necessidade de apenas
informar, mostrar-se como uma fonte confiável ou aparecer como alguém relevante à
sociedade por prestar um serviço? Ou seria apenas pela fama repentina? Ainda nas
palavras de Debord (1997:14), o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediada por imagens”, produzindo, dessa forma, modos de
agir, pensar, sentir ou consumir.
O que se tem, então, são indivíduos espalhados pelo mundo que se tornam fonte
de informação pelo simples fato de utilizarem a Internet, associada a outras tecnologias
digitais, para disseminar uma informação factual com rapidez e sem muitos detalhes.
São pessoas que contam com outros fatores, de forte presença na sociedade atual, para
que sua mensagem seja repassada. Afinal, um comunicador eventual, mesmo não tendo
a intenção de tornar-se um jornalista profissional, almeja ver seu conteúdo disseminado. E dentro da questão principal deste artigo, o que melhor explica essa disseminação
é a forma como se reage a um rumor – um tipo de informação não confirmada que se
propaga em rede e circula com a intenção de ser tomada como verdadeira (Reule, 2008).
De maneira geral, os conceitos para rumor elaborados por diferentes estudiosos
seguem uma mesma linha de raciocínio. DiFonzo e Bordia (2007: 13), por exemplo,
descrevem os rumores como “declarações de informação não verificada e instrumentalmente relevante em circulação”15. Entretanto, Renard (2006) ressalta que a palavra
15. Do original: “ (...) unverified and instrumentally relevant information statements in circulation.”
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Revista Communicare
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
rumor tem, essencialmente, dois sentidos possíveis e diferentes, sendo o primeiro o
sentido de informação não-verificada, um ruído que corre, que pode circular pela palavra, imprensa ou Internet. Nesse nível, a mensagem pode ou não ser verdadeira. Caso
seja comprovada a veracidade, passa a ser uma informação válida. E é nesse sentido que
as mensagens usadas como exemplo para a elaboração deste artigo são entendidas e
repassadas.
Quem são os fatodifusores digitais?
A partir de uma visão psicológica sobre o assunto, DiFonzo e Bordia (2007) apontam para o fato de que a reputação de um indivíduo como uma fonte de informação
confiável é vital para sua aceitação em redes sociais. E, segundo os autores, “uma maneira de garantir tal reputação é partilhar informação que seja precisa e crível”16 (DiFonzo
e Bordia, 2007: 76). A essa afirmação podemos acrescentar as ideias de Charaudeau, ao
defender que
O crédito que se pode dar a uma informação depende tanto da posição social do
informador, do papel que ele desempenha na situação de troca, de sua representatividade
para com o grupo de que é porta-voz, quanto do grau de engajamento que manifesta com
relação à informação transmitida (Charaudeau, 2006: 52).
Desse modo, surgem indivíduos que ganham notoriedade no ciberespaço não por
fazerem parte de um veículo de comunicação e também não por se colocarem propositalmente num ambiente de webjornalismo participativo. Não podem ser considerados
apenas fontes ou mesmo testemunhas, porque não serviram somente para passar informações a um interlocutor ou veículo que vai publicá-las. Como já previa Rüdiger (2002:
155), “as próprias pessoas serão fontes de informação para as outras, à medida que se
generalizarem tecnologias mais portáteis de comunicação”.
Então, como denominar esse personagem que não é jornalista (ou comunicador
profissional) nem fonte, não tem a intenção de apurar ou elaborar uma matéria, mesmo
que seja para um espaço de webjornalismo participativo, não é apenas testemunha de
um fato, pois dissemina ele mesmo a informação, e recorre a uma rede social com características tão específicas quanto o Twitter? Que papel tem esse indivíduo nesse processo
de interação e na esfera da comunicação?
Um primeiro olhar sobre esse personagem, que divulga rapidamente um acontecimento, com valor-notícia, porém sem a necessidade de um mediador para isso e sem
16. Do original: “One way to ensure such a reputation is to share information that is accurate and
believable.”
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Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
a intenção proposta pelo jornalismo participativo, leva-nos a interpretá-lo como um
propagador de informações factuais, o que aqui vamos chamar de “fatodifusor”17. O
termo difere o indivíduo do jornalista profissional, da fonte, da testemunha e do colaborador, jornalista-cidadão. Entretanto, o conceito pode ser vago, pois não deixa claro o
meio utilizado para essa disseminação, o que é de suma importância para efeitos deste
artigo. Portanto, denominamos esse novo personagem “fatodifusor digital”, já que ele
dissemina a informação de relevância social por meios digitais, permeando diversos
ambientes no ciberespaço.
A relevância da ação desse sujeito quanto se trata de jornalismo está no fato de
que ele pode alimentar as edições de jornais, webjornais ou telejornais com notícias
em primeira mão. Afinal, o tempo que se leva para deslocar uma equipe até o local do
acontecimento muitas vezes impede os jornalistas de flagrar o instante exato em que o
fato se deu. Evidentemente, esse processo só é possível graças aos dispositivos móveis,
que permitem a captação e distribuição de informações (especialmente imagens) em
um curto período de tempo.
Considerações finais
O telégrafo no século XIX, o telefone e o computador no século XX e as tecnologias
móveis no século XXI. Eis algumas das ferramentas que transformaram os modos de
fazer jornalismo no decorrer do tempo. Atualmente, vive-se o que Jenkins (2008: 27)
denomina de “cultura da convergência”, em que velhas e novas mídias colidem, mídia
corporativa e mídia alternativa se cruzam, em que o poder do produtor de mídia e do
consumidor interagem de maneiras imprevisíveis.
Para o autor, o conceito de convergência é antigo, mas vem assumindo novos significados. Enquanto o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias substituiriam as antigas, o paradigma emergente evidencia que novas e antigas mídias estão
interagindo de forma cada vez mais complexa. Para Jesse Walker, editor da revista Reason,
Os novos meios não estão substituindo os velhos; estão transformando-os. Devagar, mas
de modo perceptível, a velha mídia está se tornando mais rápida, mais transparente, mais
interativa – não porque quer, mas porque precisa. A concorrência está apressando o ciclo
da notícia, quer se queira acelerá-lo ou não (apud Jenkins, 2008: 278)
Neste cenário, afirma Jenkins (2008), “convergência” é uma palavra que define não
apenas as transformações tecnológicas, mas também mercadológicas, sociais e culturais. No jornalismo, ficam evidentes muitas dessas mudanças. Além de terem todo o
17. Entre os termos sinônimos para o ato de espalhar, citados ao longo do artigo (difundir, propagar,
disseminar), “difusor” pareceu o substantivo referente com melhor sonoridade.
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Revista Communicare
Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule
aparato tecnológico para facilitar o seu trabalho, os profissionais da mídia ainda têm o
desafio de lidar com novos sujeitos que, graças a essas ferramentas, têm autonomia para
produzir e publicar seus próprios conteúdos. Cabe então às empresas de mídia definir
novas estratégias para acompanhar todas essas novidades.
A proposta deste artigo não é trazer resultados ou apresentar soluções para o tema
em questão, mas, sim, abrir o debate (já em voga entre outros pesquisadores) acerca
desse novo cenário. Afinal,
A expansão da mobilidade e das tecnologias baseadas em localização tem invertido os
processos estabelecidos e consolidados do jornalismo e das pesquisas realizadas ao longo
do século XX. Essas possivelmente necessitam ser repensadas ou adaptadas para uma
aplicação de forma objetiva aos novos fenômenos vinculados à comunicação móvel.
(Silva, 2009: 94)
Devemos considerar que a imersão crescente dos dispositivos móveis, da Web 2.0,
das redes sociais e dos microblogs (só para citar alguns exemplos) na sociedade exige
reflexões acerca da prática jornalística e do papel desses sujeitos que, cada vez mais, têm
participado da produção de notícias – com ou sem intenção.
A arquitetura social em rede abre os canais de comunicação, permitindo um fluxo diferenciado de informações e de produção, baseado na Web 2.0 e nos processos de
interação. Contudo, quando se fala em webjornalismo participativo, há o envolvimento
de pessoas interessadas propositadamente em “fazer jornalismo”. Já redes sociais como o
Twitter são abastecidas por internautas que não têm a intenção de produzir material jornalístico, mas que muitas vezes acabam furando e posteriormente pautando os veículos.
A importância do papel do fatodifusor digital fica evidente justamente quando
as informações propagadas globalmente por esse indivíduo atraem o interesse da imprensa e de órgãos oficiais, que passam a apurar e investigar os acontecimentos comunicados. Se a mídia tradicional costumava esperar pelo material enviado pelas agências,
agora tem de ficar atenta também a outros canais de disseminação da informação, que,
não raras vezes, furam até mesmo as agências.
Portanto, se as notícias são (re)construções de determinados acontecimentos da
realidade, resultantes de processos que envolvem fatores como a relação dos jornalistas
com as fontes, questões técnicas, ideológicas e econômicas, as rotinas produtivas e os
critérios de noticiabilidade (Lindemann, 2008), então é possível afirmar que, mesmo
sem intenção, os fatodifusores digitais estão cumprindo um papel social, contribuindo
para a disseminação do conhecimento, para a formação da opinião pública e para a elaboração de uma visão de mundo dos cidadãos.
Os exemplos abordados neste trabalho deixam claro que as redes sociais podem
colaborar com a prática jornalística, pautando os veículos, mas é relevante destacar que
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística
o trabalho efetivo de checagem de informações, de busca por detalhes e aprofundamento acerca dos motivos e consequências dos fatos continua sendo executado por
comunicadores profissionais.
Ressalta-se que cada um desempenha seu papel dentro desses processos comunicacionais, em diferentes etapas e esferas. É bem possível que, em pouco tempo, seja
preciso rever alguns conceitos ou criar subgrupos relacionando novas funções na mídia.
É certo que veículos e profissionais de comunicação precisam se adaptar (como já o
fazem há mais de uma década) às tecnologias e dispositivos que surgem numa velocidade espantosa. Entretanto, o esforço para reconhecer e estudar algumas mudanças e
evoluções é vital para que a “máquina” da comunicação funcione harmoniosamente.
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Revista Communicare
Dossiê: A comunicação e a política na era digital
Capital, habitus e as redes no
ciberespaço1
Liráucio Girardi Júnior
Doutor em Sociologia pela FFLCH-USP, professor e pesquisador ligado à Faculdade Cásper Líbero e Universidade Municipal
de S. Caetano do Sul.
A partir de uma Economia das trocas simbólicas, proposta por Bourdieu, apresento uma breve análise dos modos de abordagem do ciberespaço e das relações estabelecidas entre o mundo on-line e
off-line. Por meio de certas categorias-chave como capital social, capital simbólico e habitus, procuro
identificar os problemas relacionados à construção do self no mundo de mediações sociotécnicas
contemporâneas.
Palavras-chave: Bourdieu, ciberespaço, sociabilidade, tipos de capitais, habitus
Capital, habitus and networks in cyberspace From an economy of symbolic exchanges,
Capital, habitus y las redes sociales en
el ciberespacio A partir de una Economía de las tro-
proposed by Bourdieu, I present a brief analysis of ways to
cas simbólicas, propuesta por Bourdieu, presento una breve
approach cyberspace and relations established between the
análisis de los modos de abordaje de lo ciberespacio y de las
online and offline world. Through certain key categories such
relaciones establecidas entre el mundo online y offline. Por
as social capital, symbolic capital and habitus, I try identify
medio de ciertas categorías-chave como el capital social, ca-
problems related to the construction of self in the world con-
pital simbólico y habitus, procuro identificar los problemas
temporary socio-technical mediations. Keywords: Soapop-
relacionados a la construcción do self en el mundo de media-
era; Bourdieu, cyberspace, sociability, capital types, habitus
ciones socio técnicas contemporáneas. Palabras clave: Bourdieu, el ciberespacio, sociabilidad, tipos del capital, habitus.
1. Versão ligeiramente modificada do artigo apresentado no Grupo “Redes Sociais, Comunidades Virtuais e Sociabilidade” do
IV Simpósio Nacional da ABCiber.
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
As trocas simbólicas produzidas em um novo ambiente sociotécnico, como o ciberespaço, geraram o que se poderia chamar de um novo espaço virtual de coalizões. Nesse novo espaço, torna-se possível a construção de uma série de complexas redes de
interagentes em torno do acesso à produção, apropriação e distribuição universal de
recursos (bens simbólicos) que, até há pouco tempo, eram mais ou menos escassos.
Se esse fato, por si só, já seria o suficiente para destacar o potencial revolucionário da rede, é preciso observar, também, que a passagem do reino da escassez para o
reino da abundância simbólica coloca em questão alguns novos problemas. Gostaria
de destacar quatro questões, entre outras.
Uma delas está relacionada às diversas modalidades de recursos disponíveis
para acesso f ísico à rede (acesso a diferentes tipos de gadgets, provedores, velocidade
de conexão etc.) e ao desenvolvimento de habilidades adequadas para se apropriar
desse acesso. Outra questão está relacionada a um melhor entendimento das novas
modalidades de escassez no que diz respeito à construção de capital social e capital
simbólico nas redes - capitais extremamente valorizados que não são “distribuídos”
ou “adquiridos” de modo simétrico por todos. Finalmente, é possível identificar, também, um problema relacionado à nossa capacidade cognitiva para lidar com o volume
gigantesco de informações disponível nos meios digitais e à nossa capacidade para
compreender a lógica de seus fluxos (atividade que combinaria a engenharia social e
a engenharia de computação no desenvolvimento de algoritmos específicos para os
mais diversos tipos de aplicativos e ro-bots).
No entanto, a mais sensível questão que se anuncia desde o final do século
XIX – e que se acentua de modo particular em pleno século XXI -, é a delicada relação
que passa a existir entre a experiência simbólica construída em um mundo f ísico de
copresença e a experiência simbólica construída em um mundo de representações
mediadas, sociotecnicamente, por meios analógicos ou digitais. E é, justamente, a partir dela que se desenvolve um tema clássico da modernidade: as novas condições históricas (materiais e simbólicas) em meio às quais se produz a subjetividade ou o self .
Essa questão clássica pode ser identificada no modo pelo qual as teorias pós-modernas reelaboraram diversas análises da chamada Escola de Chicago - e do papel que
a comunicação desempenhava nela. Para Callero (2003), o interacionismo simbólico
tem servido cada vez mais como referência para a produção de uma teoria pós-moderna da experiência contemporânea, ao conferir centralidade à linguagem e à comunicação na análise do processo de construção social da realidade. No entanto, o pesquisador citado observa que a compreensão do self no mundo pós-moderno depende,
também, de análises que envolvam as relações de poder e um melhor entendimento
114
Revista Communicare
Liráucio Girardi Júnior
da função que a reflexividade2 tem desempenhado nessa experiência (Giddens, 1991,
2002; Beck, Giddens, Lash, 1997).
Nas discussões sobre a unicidade ou multiplicidade das experiências que marcam o processo de construção da identidade, o que se constata é que a construção do
self parece variar no decorrer da vida e parece estar bem longe de ser completamente
unificadora. Somos um e somos muitos, a partir das estórias e narrativas por meio
das quais nos construímos2 . Por isso, pode-se dizer que as narrativas são fundamentais para que os agentes sociais sejam capazes de se localizar em certas experiências
pessoais e coletivas, ao mesmo tempo em que evitam possíveis fragmentações desarticuladoras do self.
No entanto, valendo-se de algumas análises de Schwalbe, Callero (2003) observa
que o self é vivenciado como uma experiência f ísica e cognitiva de um ser no mundo.
Esse mesmo vínculo é identificado por Bourdieu (1998, 2000, 2001, 2007) a partir do
seu conceito de habitus. Para este sociólogo, o habitus desenvolve-se em seus aspectos f ísicos e cognitivos como disposições ou esquemas práticos de visão e divisão do
mundo, percepção e apreciação de si mesmo e dos outros – um esquema prático de
localização social dos agentes sociais e de suas práticas. Ele é vivenciado, integralmente, como uma héxis, uma disposição corporal diante de si mesmo e dos outros. As
experiências cognitivas estão ligadas a certos tipos de experiências corporais e sensoriais importantes para que os agentes sociais possam se localizar e agir no mundo.
Deste modo:
(...) os agentes sociais são dotados de habitus inscritos nos corpos pelas experiências
passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto
operar atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento
de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir,
como também engendrar, sem posição explícita de finalidade nem cálculo racional
de meios, estratégias adaptadas e incessantemente renovadas, situadas porém nos limites
das constrições estruturais de que são o produto e que as definem. (Bourdieu, 2001: 169)
Em algum momento, os estudos avançados sobre as formas de inteligência artificial ou sobre o significado social do uso dos algoritmos nas redes, etc. serão obrigados a lidar, seriamente, com essa questão. Ou seja, serão obrigados a identificar o
que está em jogo nos complexos problemas que envolvem a capacidade humana de
construção, identificação e uso padrões sociais e simbólicos.
Quando Johnson (2003) elogia os sistemas emergentes, a partir da criação de
algoritmos capazes de gerar padrões de reconhecimento das trocas simbólicas pro2. “Sobre a reflexividade ver: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. (orgs). Modernização reflexiva. São Paulo:
Editora da Unesp,1997; GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.”
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Capital, habitus e as redes no ciberespaço
duzidas em rede – padrões do tipo “bottom-up” (de baixo para cima) -, é preciso
observar que esses sistemas terão enorme dificuldade para se aproximarem da função
produzida pelo habitus no processo de socialização dos seres humanos.
Ao conferir um enorme destaque à descoberta de Holand sobre a existência de
uma espécie de algoritmo genético nos processos de seleção natural, Johnson aceita a
transferência de um campo semântico das ciências da computação para o campo semântico das ciências naturais. Concomitantemente, transfere essa mesma lógica para
o estudo das trocas simbólicas – objeto das ciências humanas.
O autor deste ensaio não tem condições de avaliar todas as vantagens e os problemas causados por essa importação conceitual ou metafórica. No entanto, em certo aspecto, ele se torna bastante arriscado. O risco que se corre é o de se produzir uma espécie
de “conversão” equivocada, um deslocamento - sem mediações - de análises biológicas
ou computacionais para o mundo social. Ou seja, ignora-se completamente o significado
que a experiência simbólica (a Cultura) adquire nas sociedades humanas.
De minha parte, daria início a essa discussão com uma questão muito específica: seria possível o desenvolvimento de uma espécie de “algoritmo” das práticas sociais
(Johnson, 2003) que simulasse as experiências produzidas pelo habitus (Bourdieu)? O
senso prático do mundo, que caracteriza o habitus, pode ser traduzido no senso lógico do
modelo matemático?
Lanier (2010), por exemplo, é um dos pesquisadores que preferem criticar as
orientações desse tipo no mundo da computação. Reduzir o “senso prático” humano
à lógica de um programa obriga os pesquisadores a refletir justamente sobre a própria definição daquilo que qualificam como “humano”. Bougnoux (1994), seguindo a
mesma lógica, observou que as máquinas são muito interessantes para resolver problemas, mas bastante limitadas para formulá-los ou reconfigurá-los.
O habitus, que é para os seres humanos uma espécie de organizador de um
senso prático do mundo, consegue orientar razoavelmente os agentes sociais em sua
vida cotidiana sem que tenha uma “racionalidade” como guia. Sendo assim, a lógica da prática, explorada por Bourdieu (2000), que se “incorpora” nesses esquemas e
padrões humanos, não se orienta por uma “lógica da lógica” como aquela que é construída pelos modelos (particularmente, os modelos matemáticos ou inspirados neles).
Essa condição humana permite que os agentes sociais sejam capazes não apenas de
reconhecer padrões, mas de estabelecer uma relação de jogo com eles. Os padrões
humanos são esquemas de reconhecimento, apropriação e invenção, incorporados
pela nossa experiência passada no mundo com o qual interagimos. É o que destacam
Gebaur e Wolf (2004) no que diz respeito ao significado da mimese na experiência
social humana. Não se trata de inviabilizar a discussão em torno da busca de um
“algoritmo” da cultura, desde que se tenha cuidado com as mediações necessárias a
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Revista Communicare
Liráucio Girardi Júnior
serem usadas no uso da metáfora. E isso é fundamental, particularmente, no que diz
respeito ao desenvolvimento de uma teoria da ação humana.
O Habitus e o Self
Retornando à argumentação principal sobre a questão do self, pode-se verificar que
as novas tecnologias de informação e comunicação (analógicas ou digitais) possibilitaram uma reconfiguração da experiência social, produzindo diversos ambientes de
interação – digitais e dialógicos - que não necessitam mais da presença f ísica comum,
isto é, da copresença f ísica.
Nesse sentido, alguns pesquisadores acreditam que as novas tecnologias de informação e comunicação criaram ambientes de interação em que o corpo poderia ser
separado do self, abrindo espaço a uma série de experiências emocionais, cognitivas
e sensoriais jamais vistas. Outras vezes, esses pesquisadores acentuam que a possibilidade de simulação de um corpo desejado ou imaginado interfere diretamente na
“definição de situação” virtual em meio à qual os agentes sociais se encontram e se
reconhecem.
No entanto, essas posturas enfrentam severas críticas:
Na visão de Turkle, o eu se torna um espécie de plastilina psíquica de total flexibilidade.
O que essa visão falseia é a enorme carga de modelação e formação psicológica que é
imposta a um indivíduo por sua criação, sua sociedade e seus genes. Essa modelação, que
ocorre em grande parte quando somos muito jovens, não pode em geral ser destruída ou
rearranjada senão mediante árduo e enorme trabalho psicológico. (...) Brincar de ser um
esquilóide ou um Klingon, seja qual for seu valor genuíno, simplesmente não é uma
experiência de mudança de identidade. (Wertheim, 2001: 182)
Sobre os mitos da construção do self no ciberespaço, Wertheim (2001) observa que ele parece adequar-se a certo espírito universalista do cristianismo, potencialmente aberto aos pobres e ricos, desenvolvidos e em desenvolvimento, homens e
mulheres, mas não faz qualquer consideração sobre as exigências cognitivas, éticas e
espirituais necessárias para ter acesso a esse mundo. Um dos poucos esforços necessários para o ingresso nessa nova ordem (que já excluiria um número considerável de
pessoas) seria o de pagar a taxa de ingresso e acesso à tecnologia e à rede.
Na crítica a essas posições, Sterne (1999) destaca a importância dos Estudos
Culturais no enfrentamento de certas abordagens mecânicas e lineares sobre o ciberespaço, que relembram posturas milenaristas ou que o tratam como uma espécie de
container, a exemplo de um paraíso cibernético.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Capital, habitus e as redes no ciberespaço
O que interessa aos Estudos Culturais não é apenas o que os textos significam
para seus participantes, mas quais são as condições nas quais os significados podem
ser construídos e compartilhados. Para isso, é necessário observar as dimensões políticas presentes na vida social e cultural, o que significa observar as relações complexas
entre pessoas, meios sociotécnicos, os lugares “ocupados” pelos agentes nessas relações, seus rituais e a sua possível institucionalização. A interconexão entre o mundo
on-line e o mundo off-line para o entendimento das trocas simbólicas no ciberespaço
dependem, para Sterne, de uma teoria da articulação entre o contexto e o texto
construído nas múltiplas formas de interação mediada produzidas nesses novos
ambientes.
Do modo como são feitas as avaliações do mundo on-line, o novo espaço de criação e fruição virtual é apresentado, então, como uma espécie de panaceia sócio-técnicasimbólica para os males da comunicação. Sem dúvida, no ciberespaço, os interagentes
podem estar juntos sem que certas características estéticas, étnicas, de limitação f ísica ou de condição social (em alguns casos) possam ser um fator de desqualificação ou
impedimento antecipado para as trocas simbólicas, mas isso está um pouco longe da
fartura de relacionamentos, conhecimentos, sensações, imagens, arquivos etc. que se
associa ao ciberespaço.
O que Wertheim (2001) procura destacar em suas análises é que o significado
das trocas simbólicas em rede não pode ser creditado, simplesmente, ao surgimento
ou disponibilidade de uma tecnologia, mas ao seu engendramento a interesses e desejos intensos, que são colocados em ação, de alguma forma, por algum tipo de domínio
que os agentes sociais adquirem, assimetricamente, com relação a essas tecnologias.
Para mostrar como a construção social do self não se trata apenas de uma experiência cognitiva, Callero (2003) destaca as reflexões sobre o processo de subjetivização que marcam os estudos de Michel Foucault:
For Foucault, the self is the direct consequence of power and can only be apprehended
in terms of historically specific systems of discourse. So-called regimes of power do not
simply control a bounded, rational subject, but rather they bring the self into existence by
imposing disciplinary practices on the body. Through the ‘technologies’ of surveillance,
measurement, assessment, and classification of the body, technocrats, specialists,
therapists, physicians, teachers, and officers serve as vehicles of power in diverse institutional
settings (prisons, schools, hospitals, social service agencies). (Callero, 2003: 117)
O destaque conferido a Foucault nessa passagem – sobre uma questão que atravessa suas obras (Foucault, 1979, 1986, 1987, 2005) - ressalta que é preciso integrar
os processos de subjetivação no mundo contemporâneo aos dispositivos e agenciamentos sociotécnicos. Com isso, o que se procura é esboçar, de algum modo, é uma
118
Revista Communicare
Liráucio Girardi Júnior
genealogia das linhas de força que anunciam as formas históricas das possibilidades e
das formas de controle da experiência, dos discursos e da intersubjetividade.
Kendall (1999) chama atenção para um tipo de discurso sobre o ciberespaço
que pretende se desfazer, de um modo um tanto apressado, dos limites impostos pela
presença do corpo f ísico. Esse discurso parece reduzir sensivelmente a complexidade
das experiências no espaço virtual. Assim:
Descriptions of cyberspace as a separate reality depict participants’bodies as left behind
tediously typing, while their personas cavort in cybespace. This fails to capture the
complexity and diversity of relationships between on-line and off- line experiences. The
degree of immersion in on-line ‘spaces’ varies considerably, depending on myriad factors,
including type of forum and participant interest. (Kendall, 1999: 61)
Muitos consideram a experiência com o ciberespaço como a possibilidade de
vivência de um self múltiplo. Mas, como observa a pesquisadora, apesar de todas as
possibilidades de fratura e multiplicidade disponibilizadas pelo ciberespaço, o que se
vê é ainda a sensação de que os agentes se identificam como portadores de um self
mais ou menos contínuo e integrado.
Com certeza, a construção de si mesmo pode variar no decorrer da vida. O
mundo contemporâneo tem levado os agentes sociais a experimentar situações complexas com as quais procuram dar sentido às suas experiências, rejeitando-as, incorporando-as, reelaborando-as a partir de imagens, objetos, situações que vivenciam ou
fruem. Além disso, o fato de se desvincular o corpo da ação discursiva no ciberespaço
não impede que essas ações discursivas, de um modo ou de outro, reproduzam algumas marcas de identificação.
Os fóruns virtuais, muitas vezes, podem reproduzir um ambiente de dominação
masculina. A presença feminina envolve, quase sempre, lutas por reconhecimento.
Na maioria das vezes, as mulheres precisam desenvolver estratégias para se movimentar nesses ambientes. Elas negociam seus discursos a partir de ou contra um padrão de interação masculina que gira, muitas vezes, em torno de referências sexuais,
recursos de sedução ou insultos ritualizados.
O mesmo pode ser dito das diferenças raciais ou étnicas e a sua representação
indireta no ciberespaço. Embora os “protocolos”, a “etiqueta” de comunicação virtual
tendam a diminuir bastante a influência da identificação “racial” para que a conversa se inicie, não deixa de ser importante observar que, muitas vezes, determinados
grupos tornam-se capazes de reconhecer o que chamam de “conversa de branco”. A
composição dos fóruns exige, então, um complexo processo de negociação, mesmo
que discursiva:
On-line anonymity does not represent an absence of identity, providing instead a set
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
119
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
of assumed identity facts. Anonymous participants are assumed to be white and male
until proven. But in any case, on-line forums do not provide contextless spaces free from
expectations about identity or from challenges to identity claims. (Kendall, 1999, p. 66)
O que se pode observar é que existem vários contextos sociais que interligam
experiências on-line e off-line. A dinâmica social nos fóruns do ciberespaço depende
do tempo de familiarização com a tecnologia, do modo de interação desenvolvido
em seus fóruns e dos desejos e motivações de seus participantes. Mas, no fundo, todos
que estão ali sabem, de algum modo, que ninguém vive no ciberespaço.
A questão é entender como os recursos e as performances construídas nos ambientes on-line são utilizados como estratégias de negociação e conversão de capitais (culturais, econômicos, sociais e simbólicos) pré-existentes no mundo off-line ou vice-versa.
Sterne (1999) chama atenção justamente para o fato de que o uso da internet é parte
do tecido social do cotidiano dos internautas e que seu uso social pressupõe sua integração ao modo de vida e às rotinas e exigências do mundo off-line.
O mesmo pode ser encontrado no artigo de Golder, Wikinson e Huberman (2007),
intitulado “Rhythms of social interaction: messaging within a massive online network”,
em que os autores estudam os usos do Facebook, valendo-se de recursos de medição em
larga escala dessas interações em busca de alguns padrões e regularidades. O acesso
de universitários ao Facebook assume importantes padrões que podem variar durante
a semana e durante o próprio dia. A preocupação dos pesquisadores era entender o
porquê, com quem e quando os estudantes faziam uso das plataformas de comunicação
eletrônica. No desenvolvimento de suas análises, os pesquisadores mostram como é
difícil responder à questão: O que é “a” Internet?
.
Estamos diante de um vasto grupo de definições de “coisas e processos” . E isso tem
consequências na própria metodologia utilizada para os estudos da rede. Do ponto
de vista metodológico, a etnografia do ciberespaço tem se revelado grosseira demais.
No que diz respeito ao pouco tempo de observação das redes sociais, Kendall observa
que, com isso, perde-se muito no entendimento do modo como múltiplos pontos de
interação são criados, mantidos e recriados entre o mundo on-line e off-line. E conclui:
Finally, using participant observation to take account of various social contexts of on-line
interaction can high light the politics of identity. Participants come to on-line forums from
different positions of power within society, which affects both their own actions on-line
and their interpretations of others’actions. (Kendall, 1999: 69)
Como já foi visto, Sterne (1999) chama atenção justamente para o fato de que o
uso social da rede pressupõe sua integração ao modo de vida e às rotinas, aos problemas
e às exigências do mundo off-line. Do mesmo modo, pode interferir nele. Essas interações podem variar durante a semana e mesmo durante o próprio dia, de acordo com os
120
Revista Communicare
Liráucio Girardi Júnior
ritmos da vida cotidiana familiar, escolar e profissional, além do modo pelo qual essas
práticas de relacionamento estão interconectadas a esses ambientes. Podem variar, ainda, segundo a conjuntura.
Entender os usos sociais do ciberespaço a partir dos ritmos da vida cotidiana retoma a interconexão entre o mundo off-line e on-line e permite pensar, por exemplo, a
complexidade da produção de novos ambientes que possam integrar a experiência da
privatização móvel centrada no lar (Williams, 1979) aos padrões de conectividade,
mobilidade e controle das redes (Lemos, 2004).
Os capitais e as trocas simbólicas em rede
Na análise das trocas simbólicas em rede é muito comum encontrar entre os pesquisadores a referência à importância do capital social na estruturação (concentração e
hierarquização) dos nós que a compõem. Embora essa discussão já tenha sido desenvolvida por Coleman, Putnam e outros (Matos, 2009), gostaria de explorar a ideia de
que uma Economia das Trocas Simbólicas, desenvolvida por Bourdieu, seria fundamental para a identificação das estruturações produzidas pelos interagentes nesses
novos espaços (sociotécnicos).
Cada vez mais, nas análises de rede, fala-se em capital humano, social, tecnológico, comunicacional, mas não se explicita, com maior clareza, o porquê de se fazer
uso da noção de “capital” e nem o modo pelo qual esses capitais tornam-se importantes
para a “localização” dos agentes no espaço social, no espaço de estilos de vida, ou mesmo,
no espaço de fluxos (Castells, 2003) formado por redes dos mais variados tipos.
É preciso estar atento para o fato de que valer-se da noção de “capital” pressupõe
ajustar-se a um campo semântico estritamente vinculado a uma economia das trocas
simbólicas que, para ser coerente, deveria abarcar a noção de “lucro”, “mercado”, “taxa
de conversão”, “desvalorização” etc. É, justamente, esse vínculo a um campo semântico muito particular (categorias) que confere uma razoável coerência às análises bourdieusianas sobre as trocas simbólicas (Girardi Jr, 2007).
Para Bourdieu, a “localização” das redes de relações entre os agentes no espaço
social indica possibilidades de experiências cognitivas, de sociabilidade e de acesso
a recursos de um modo diferenciado. As ciências sociais e da comunicação devem
lidar com o trabalho de identificação das estruturas de diferenças e os princípios geradores dessas diferenças, produzidas nesses novos espaços. Embora a rede tenha possibilitado avanços e modificações impressionantes na relação escassez/abundância no
que diz respeito ao acesso e à produção de bens simbólicos, é preciso entender que
novas modalidades de recursos escassos e distintivos podem aparecer.
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121
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
Da mesma forma que a língua não é um tesouro universal capaz de produzir,
por si só, um comunismo linguístico, a rede e sua estrutura distribuída não é capaz de
garantir, por si só, o comunismo cibernético.
Apenas para lembrar alguns aspectos das análises de Bourdieu sobre os processos de produção da “distinção” social, poderia ser destacada aqui a complexa combinação entre capital econômico e o capital cultural, apropriados pelos agentes sociais,
e a sua relação com os gostos e os estilos de vida. As diversas combinações entre esses
capitais criam certas condições de distribuição assimétrica dos agentes no espaço.
A partir dela, torna-se possível esboçar determinados “mapas” capazes de identificar “regiões” ou redes de interação (mais ou menos hierarquizadas) que qualificam
socialmente esse espaço. Transversalmente, aos capitais econômicos e culturais, já
indicados, os agentes sociais são capazes de produzir capitais simbólicos e sociais,
indispensáveis para a formação de suas redes de relações sociais.
O capital social pode ser definido como:
durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-
rias para que se produzam determinadas relações de conhecimento e reconhecimento entre os interagentes no interior dessas comunidades. E essas relações passam a
carregar o custo simbólico de manutenção dessas mesmas comunidades.
São essas relações multiplexas (Recuero, 2009) que ajudam a construir signos
legítimos de identificação do grupo (certo modos expressivos, símbolos, estética etc),
territórios, lugares de encontro (festas, congressos, blogs, sites, perfis etc.), práticas
e estilos distintivos capazes de produzir uma espécie de “dispersão homogênea” dos
interagentes pela rede, ou seja, verdadeiros campos de forças, adensamentos ou concentrações, constelações significativas no ciberuniverso.
O capital social pressupõe, então, o exercício da sociabilidade, do conhecimento
das regras de reconhecimento dos iguais, um dispêndio de tempo e envolvimento,
além de certa criatividade na manutenção dos vínculos. Muitas vezes, esse capital social é herdado do passado por meio de relacionamentos familiares e por meio de redes
de relacionamentos nas quais os filhos ingressam desde muito cedo (festas, escolas,
cursos, aniversários etc). Outras vezes, ele é fruto do próprio processo de sociabilidade vivido pelos agentes sociais no decorrer de sua vida. Como observa Wellman:
reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, conjunto de agentes que
Given assymmetric ties and bounded network clusters, resources do not flow evenly
não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo
or randomly in a structure. The density of clusters, the tightness of boundaries
observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações
between them, and the patterns of ties within and between cluster all structure resource
permanentes e úteis. (...) O volume do capital social que um agente individual possui
flows. Because of their structural locations, members of a social system differ greatly in
depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e
their access to these resources. Indeed, unequal access to scarce resources may lead to
do volume do capital (econômico, cultural e simbólico) que é posse exclusiva de cada
greater asymmetry in ties. (…) Asymmetric ties between nodes and clusters concatenate
um daqueles a quem está ligado. (Bourdieu, 1998: 67)
into hierarchical networks and engender cumulative differences in access to resources.
(...) conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede
Assim, a obtenção de certos “lucros” sociais que advêm das relações construídas
em rede (nem sempre de maneira consciente ou instrumental) constitui a base das
regras de solidariedade e reciprocidade que mantém essas mesmas relações. Além
disso, o capital social não é estático, ou melhor, ele é o produto de “estratégias” desenvolvidas pelos agentes sociais. Ele é o produto de um “trabalho de instauração e de
manutenção”, ou seja, estratégias de investimento social (consciente ou inconsciente)
na manutenção de vínculos e recursos que podem ser mobilizados para atender aos
mais diversos tipos de necessidades sociais (redes de apoio, organização de encontros
sociais, festas etc.).
Para Recuero (2009), é possível encontrar uma variedade de redes de filiação e
redes emergentes (ou, até mesmo, formas híbridas) na Internet. A diferença entre elas
consiste nos tipos de interação que pressupõem, no grau de bidirecionalidade e na
densidade das trocas simbólicas elaboradas entre seus membros.
Nesse sentido, o capital social identifica os tipos de trocas simbólicas necessá-
122
Liráucio Girardi Júnior
Revista Communicare
(Wellman & Berkowitz, 1991: 45)
Quando se destaca que a grande vantagem da rede é a sua capacidade
de reduzir os intermediários no processo de produção, circulação e consumo de bens
simbólicos, não se pode cair no equívoco de se acentuar, demasiadamente, uma análise individualista da ação social. Castells (1999, 2003) chega a denominar a experiência
dos agentes sociais na sociedade contemporânea como um “individualismo em rede”.
No entanto, não se pode deixar de notar que esse “indivíduo” é socializado e tem uma
história.
Boa parte das análises sobre a rede parte de um indivíduo em interação sem
qualquer consideração sobre as condições sociais, políticas e ideológicas em meio
às quais se tornou um “indivíduo”. Tratam-no como uma entidade socialmente fictícia. As análises que se concentram no ciberespaço como uma espécie de container
ignoram que as liberdades e potencialidades da rede são vividas por “indivíduos” socializados em meio a capitais culturais, econômicos e sociais muito diferenciados no
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
123
Capital, habitus e as redes no ciberespaço
mundo off-line.
A questão da barreira digital ou da exclusão digital não é simplesmente uma
questão de acesso tecnológico, mas de acesso a um conjunto de capitais em meio aos
quais as novas tecnologias são apropriadas e funcionam como marca de distinção
simbólica e social.
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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
125
Iniciação Científica
Da leitura crítica dos meios de
comunicação à Educomunicação
no Brasil
Caio Dib de Seixas
Graduando da Faculdade de Jornalismo da Cásper Líbero, pesquisador em Educomunicação e integrante da equipe de Novos
Negócios, Pesquisa & Desenvolvimento do setor de Tecnologia de Educação da Abril Educação.
Pedro Ortiz
Jornalista, diretor da TV USP, professor da graduação e da pós-graduação em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.
Neste artigo, caracterizamos o termo Educomunicação e apresentamos contextualização históricosociológica da Educomunicação no Brasil. Partimos da década de 1950, falando dos cineclubes da
Igreja Católica até as atuais possibilidades de trabalho na área. Também abordamos o tema da perda
da identidade do sujeito na pós-modernidade e como a Educomunicação trabalha com essa questão.
Palavras-chave: Educomunicação, perda de identidade na pós-modernidade, mercado de trabalho.
From media criticism to Educommunication in Brazil In this article we define the term Educommunication and reflect upon its historic and sociologic
Desde la lectura crítica de los medios
de comunicación a la Educomunicación en Brasil El artículo describe la palabra Educo-
contextualization in Brazil. We studied the subject since de
municación y presenta el contexto histórico y sociológico
50ths, discussing the cinema clubs of Catholic Church, up to
de la Educomunicación en Brasil. Partimos de la década de
the current possibilities of work in the field. We, also, studied
1950, hablando de los “cineclubs” de la Iglesia Católica hasta
the loss of identity of the subject at the post-modernity as
las actuales posibilidades de trabajo en el área. También se
well as the way Educommunication deals with this fact. Key-
analiza la cuestión de la pérdida de la identidad del sujeto
words: Educommunication, the loss of identity of the subject
en la postmodernidad y como la Educomunicación trabaja
at the post-modernity, labor market.
con el tema. Palabras clave: Educomunicación, pérdida de la
identidad en la postmodernidad, mercado laboral.
Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
Educomunicação: conceito e caracterização
Educomunicação, termo provavelmente criado pelo Prof. Dr. Ismar de Oliveira Soares
(NCE-ECA/USP), é “forma de conhecer e compartilhar o conhecimento usando estratégias e produtos de comunicação” (Rede CEP, 2010:11). Em sua vertente metodológica,
procura-se garantir o acesso à comunicação e o uso democrático da comunicação para
ampliar a capacidade de expressão e de conhecimento de si mesmo e do outro.
Para entender como o conceito de Educomunicação foi construído no Brasil,
apresentaremos um panorama histórico-sociológico dos métodos de ensino-aprendizagem desenvolvidos no país. O campo é vasto e trata de temas como a leitura crítica
da mídia, a comunicação comunitária, a tecnologia sendo usada em prol da Educação
e a resolução de conflitos de diversas espécies no ambiente escolar. Muitas vertentes
da Educação e da Comunicação contribuíram para o desenvolvimento da Educomunicação. No artigo, são apresentadas contribuições que pensadores e atores das duas
áreas deram para esse campo do conhecimento e para as práticas educomunicativas;
a intenção é traçar um panorama geral da história da Educomunicação no Brasil, pois
o aprofundamento sobre o tema ficará para futuras pesquisas.
É importante esclarecer que a Educomunicação não surgiu no Brasil. Vem sendo
desenvolvida por diversos educadores ao redor do mundo, iniciando-se com o francês
Célestin Freinet - que criou a Escola do Trabalho e introduziu a imprensa na escola,
no início de 1920. No contexto brasileiro, a Educomunicação surgiu calcada nos valores e projetos desenvolvidos no decorrer dos movimentos alternativos de Educação
realizados desde a década de 1950 pela Igreja Católica e intelectuais ligados à área da
Educação. Segundo Gottlieb, é “decorrência natural de todo o movimento de leitura
crítica dos meios de comunicação” (Gottlieb, 2010:107).
Até a década de 1950, o ensino tradicional1 predominava nas escolas. Paulo Freire o classificou como “educação bancária”. Nela, “o educando é um banco de dados
sempre disponível para extrair ou colocar cifras, dados, informação e conhecimento
solicitados no momento que assim deseje o professor” (Sierra apud Alves, 2007:27).
Freire propôs um método de ensino-aprendizagem no qual o diálogo e a participação
fossem valores fundamentais no processo de aprendizagem: a Educação Popular, que
é baseada na Comunicação Dialógica e Libertadora.
1. Entendemos Educação tradicional principalmente como uma Educação de tendência liberal tradicional, na qual
“os conteúdos e procedimentos didáticos, a relação professor-aluno não tem nenhuma relação com o cotidiano do
aluno e muito menos com as realidades sociais dos estudantes. O papel da escola é meramente preparar intelectual
e moralmente o jovem para assumir uma posição social” (Luckesi, 1994:55-57). Esta formação é baseada em
conteúdos - que são “os conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações adultas e repassados ao aluno
como verdades” - transmitidos dos professores para os alunos como verdades a serem absorvidas. Pressupõe-se
que a aprendizagem consiste apenas em repassar os conhecimentos para o estudante, que tem uma capacidade de
assimilação similar à do adulto, apenas menos desenvolvida (Luckesi, 1994:55-57). Geralmente, não há espaço para
questionamentos e debates, e menos ainda para a socialização e aceitação de diferenças sociais e culturais.
128
Revista Communicare
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
Cineclubismo, Comunicação Libertadora e
Educação Popular
No final da década de 1950, foi criado movimento de leitura crítica dos meios de
comunicação a partir do trabalho desenvolvido pelo cineclubismo católico, baseado
em valores morais da teologia cristã. As paróquias montavam salas de exibição de
películas e, depois de os grupos assistirem aos filmes, os coordenadores dos cineclubes iniciavam debates sobre a obra. O advento da televisão fez com que os cineclubes
perdessem a força. Sobre o cineclubismo católico, Gottlieb esclarece que seus coordenadores analisavam, além da linguagem dos filmes e das características de cada
diretor, aspectos morais das obras “que ocorriam, quase sempre, de forma descontextualizada, com a exaltação da virtude e a condenação do vício, sempre sob o aspecto
da obrigação moral individual” (Gottlieb, 2010:102). A partir dos cineclubes católicos,
iniciou-se um movimento concretizado e disseminado de leitura crítica da mídia que
incentivaria outros movimentos ligados à educação e comunicação.
Houve outras maneiras de os sujeitos interagirem com sua realidade e interpretarem de maneira crítica o meio em que vivem. A Comunicação Dialógica e Libertadora,
desenvolvida por Paulo Freire, defendia o diálogo e a participação como valores fundamentais para a construção do entendimento entre os universos da Comunicação, da
Educação e da Cultura. Freire desenvolveu o projeto de Educação Popular no Nordeste brasileiro que utilizava uma metodologia que ficou conhecida como “Método Paulo
Freire”. Valoriza-se o diálogo, a participação e os aspectos locais e cotidianos presentes
na vida do indivíduo. “É um trabalho coletivo, co-participativo, de construção do conhecimento da realidade local” (Brandão, 1982:24).
Nesse método, o trabalho de alfabetização é feito em círculos de cultura, em substituição da sala de aula tradicional. O animador cultural é mais do que um professor: tem o
papel de incentivar e orientar os participantes, fazer com que exista um pensar coletivo.
Freire foi além da alfabetização. O educador realizou trabalho político com o
povo. A missão do animador cultural também era “a de ajudar na criação das condições
de surgimento, e apoiar as condições de fortalecimento, dos movimentos populares”
(Brandão, 1982:90-93). Com a Educação Popular, ampliou-se a liberdade de expressão
dos indivíduos e de suas organizações e aguçou-se a reflexão da ação popular. Brandão
diz que “o povo começa a saber e a poder fazer” (Brandão, 1982:98).
A Educomunicação como se conhece hoje está muito ligada ao trabalho de Freire,
principalmente pela preferência da substituição da sala de aula tradicional por círculos
de discussão e pela tentativa de aproximação do cotidiano dos educandos, utilizando temas comuns à comunidade e fortalecendo a expressão, o debate e o trabalho em grupo.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
Ações da Igreja Católica nas décadas de 1960 e 1970
Em 1965, no Concílio Vaticano II, a Igreja afirmou seus ideais de justiça, solidariedade
e diálogo. Alves acredita que as mudanças decididas no evento aumentaram a atuação
da Igreja na questão social e no campo da mídia. (Alves, 2007:29). O principal resultado
foi a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que marcaram a presença da
Igreja Católica nos movimentos populares que se formaram no País. Soares diz que nas
CEBs, pela leitura da Bíblia, “foi possível assimilar os ensinamentos do Concílio dentro
da pedagogia democrática e dialógica da comunicação interpessoal e grupal sugerida
por Paulo Freire no final da década de 50 e início de 60” (Soares apud Alves, 2007:30).
Alves defende que a Comunicação Popular “reflete no trabalho das CEBs ao propiciar
um espaço que privilegia a fala, valoriza as relações interpessoais e dinamiza a formação
de seus participantes” (Alves, 2007:34).
As CEBs, por meio do Movimento Eclesial de Base (MEB), utilizaram o rádio como
ferramenta educativa. Melo mostra que o MEB serviu como ferramenta alfabetizadora de
adultos por ter custo baixo para montagem de emissora de rádio e também porque era politicamente fácil conseguir concessões para essa atividade. Porém, havia interesse da Igreja
em conseguir concessões radiofônicas para reforçar a evangelização rural (Melo, 2010:45).
Peixoto Filho acredita que o rádio era instrumento dinâmico e pedagógico para a
Educação Popular, principalmente quando se tratava de alfabetização de adultos e das
mobilizações sociais dos setores rurais. Por intermédio dos meios de comunicação, a
Igreja pôde realizar projeto de educação para as comunidades mais necessitadas. Além
de alfabetizar e fornecer dados acerca da realidade social do trabalhador rural na sociedade brasileira, o projeto desenvolvia atitude crítica diante do processo de exploração e
dominação (Peixoto Filho, 2010:35). A Educomunicação pode ser método eficiente para
abordar os temas de exploração e dominação ao dar voz aos explorados nos meios de
comunicação. Ao utilizar o rádio, a televisão ou um veículo que usa linguagem escrita, o
indivíduo consegue expressar seus sentimentos, enxergar-se, questionar a situação em
que se encontra e, muitas vezes, descobre formas de deixar de ser dominado.
Quanto à eficácia da ferramenta radiofônica, alguns autores, como Peixoto Filho,
acreditam que havia envolvimento com a comunidade local por meio de sua história, de
temáticas conhecidas e da interação com as atividades locais. O autor defende que, com
a utilização dos meios de comunicação, havia o “reconhecimento de uma linguagem
própria, de formas de comunicação e de aspectos culturais de uma região historicamente contextualizada” (Peixoto Filho. op cit., 2010:30). Porém, autores como Freire - que,
segundo Melo, recusava o uso dos meios de comunicação para fins educacionais - não
acreditavam na eficácia deste método educativo. Freire acreditava que conscientizar é
ato de mão dupla (dialógico, aberto, criativo), e não unidirecional. O educador temia
que os meios de comunicação na Educação se tornassem meros impositores de conhe-
130
Revista Communicare
cimento. Em Diálogos sobre educação, Guimarães mostra citações que Freire fez sobre
o tema e as comenta:
“O problema não está apenas em trazer os meios de comunicação para dentro das
escolas, mas em saber a quem eles estão servindo”. A propósito dos computadores,
sua manifestação é coerente com os receios precedentes. “Eu não sou contra o uso
dos computadores.” Mas, em tom de advertência, perora: “O meu receio [...] é que a
introdução desses meios mais sofisticados no campo educacional [...] vá trabalhar em
favor dos que podem e contra os que menos podem (Guimarães apud Melo, 2010:50).
No entanto, Peixoto Filho acredita que, no modelo de ensino-aprendizagem aplicado na metodologia do MEB, o ouvinte era considerado ator importante no processo.
Para ele, não era transmissão de mão única. Além de constante diálogo entre a Equipe
Central do MEB e os monitores locais, havia a preocupação do entendimento do conteúdo como a fala das personagens com características próprias da comunidade e a
importância das questões locais.
Em 1979, a União Cristã Brasileira de Comunicação Social (UCBC) iniciou o Projeto de Leitura Crítica da Comunicação (LCC). O LCC pretendia demonstrar o potencial dos meios de comunicação em massa para fins comunitários e pastorais e tinha
como meta a Comunicação Libertadora. A abordagem consistia em utilizar produtos
relacionados com o cotidiano dos atores envolvidos no processo e em desenvolver atividades baseadas no diálogo e na participação – intenção também muito presente em
projetos educomunicativos hoje -, inclusive por meio de feiras de Comunicação desenvolvidas nas escolas participantes.
Além do LCC, outros projetos relacionados à leitura crítica dos conteúdos difundidos pelos meios foram introduzidos ao longo da década, principalmente em comunidades
com menor representatividade social e que sofriam maior exploração da força de trabalho.
Estudos Culturais
No final da década de 1970, alguns pensadores latino-americanos, como Canclini e
Martín-Barbero, passaram a estudar o problema da recepção em lugar dos estudos dos
“meios”. O receptor passou a ser visto como sujeito capaz de realizar críticas aos conteúdos que recebe dos veículos de comunicação em massa, estabelecer relações das informações veiculadas neles com aspectos presentes em seu cotidiano, e até de elaborar propostas de contracultura - formas de cultura paralelas à cultura de massa - que abordam
2. Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para América Latina. Criado em 1959 pelo
governo do Equador, Universidad Central Del Equador e Unesco com a missão de posicionar a comunicação
como um direito social imprescindível para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
as questões culturais e sociais de grupos que não pertencem ao circuito main stream.
Desde a década de 1960, no Ciespal2 - Equador, Mario Kaplún e Juan Diaz Bordenave desenvolveram os conceitos de Comunicação Participativa e Comunicação Popular. Ambos acreditavam que a participação dos atores envolvidos é determinante para a
prática da Comunicação Popular e da Educação Transformadora.
Para Bordenave, os sujeitos “organizam-se e adquirem poder coletivo; resolvem
seus problemas comuns e contribuem para a transformação da estrutura social de modo
que ela se torne livre, justa e participativa” (Bordenave apud Alves, 2007:31). O autor diz
que o sujeito desenvolve a capacidade de autoexpressão e de criação conjunta do saber
através do próprio raciocínio, do relacionamento e da elaboração de sínteses. Também
analisa como a participação pode ser benéfica à escola e à comunidade.
Kaplún defende a educação que enfatiza o processo de ensino-aprendizagem – e
não os conteúdos a serem ensinados ou os resultados obtidos. Acredita que nesse modelo há “possibilidade de plena participação do sujeito na construção de uma educação
problematizadora” (Alves, 2007:34). O educando é o sujeito da ação e, por meio do
diálogo e da participação, busca o conhecimento.
O que importa - mais do que ensinar coisas e transmitir conteúdos - é que o sujeito aprenda a aprender; que seja capaz de raciocinar por si mesmo, de superar as constatações meramente empíricas e imediatas de seu entorno e desenvolver sua capacidade
de relacionar e elaborar sínteses (Kaplún apud Alves, 2007:34).
Século XXI: crise na escola e na identidade
A partir dos anos 1990, há forte crise de paradigmas na sociedade ocidental e redução
no status de excelência das instituições de ensino, que deixaram de ser o lugar privilegiado para a aquisição e produção de saber (Alves, 2007:47). A escola não é mais o
principal player na Educação e nem a única fonte legítima de saber, perdendo lugar
principalmente para o mundo pós-moderno: ágil, instantâneo e superconectado. Jovens
podem aprimorar seus conhecimentos sobre temas de interesse na internet, com sites
como Google, Youtube e Wikipedia, de maneira muito mais rápida e fácil do que o uso
de livros e cadernos (que continuam sendo ferramentas fundamentais para o aprendizado). Ademais, podem produzir conhecimento, contando com a colaboração de pessoas
em outras partes do planeta.
Os indivíduos ganharam oportunidade de buscar informação em outros lugares
fora da sala de aula. Freinet dizia, no início do século XX, que as técnicas tradicionais de
ensino, isoladas da vida cotidiana, causam o desinteresse dos alunos. Ele propunha “restabelecer o circuito para ligar a escola à realidade” (Rede CEP, 2008:123) e pretendia fazer
132
Revista Communicare
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
esta ligação estabelecendo e interpretando a dialética instaurada entre o comportamento
psicológico das crianças e o meio social delas, que, no caso, era o meio rural (Freinet,
1998:IX). Na abertura do livro de Freinet, A Educação do Trabalho, Jacques Bens conta
que “Freinet não costumava tomar ao pé da letra o que encontrava nos livros: gostava de
pô-lo à prova na vida cotidiana” (Freinet, 1998:I). Era exatamente isso que o educador
fazia com seus alunos: através da produção de jornal escolar, as crianças interagiam com
o conteúdo estudado nos livros e também com as comunidades às quais pertenciam.
Assim, a possibilidade de ver sentido no que é estudado no banco escolar aumentava, já que o conteúdo aprendido misturava-se com a realidade dos estudantes. Um
exemplo real disso é a produção de blogs por jovens do colégio Bandeirantes. No curso
extracurricular de mídia para jovens chamado Idade Mídia, os estudantes debatem sobre mídia, aprendem a teoria do jornalismo em sala e produzem uma revista no final
do ano. Em 2007, por exemplo, alguns jovens criaram, junto com a escola, o Blog do
InterBand (www.interband.colband.blog.br); um projeto no qual os próprios alunos do
Idade Mídia e colegas do Bandeirantes que não fazem o curso se envolvem com a produção jornalística ao cobrirem o campeonato esportivo interescolar. No blog, os jovens
praticam o que aprenderam na sala de aula e constroem, juntos, um produto multimídia
em tempo real com o auxílio de editores que já participaram do blog, do educador do
Idade Mídia e dos professores do departamento esportivo. O blog já tem cinco anos de
existência e continua se modernizando.
O sociólogo Zygmunt Bauman (2001) acredita que a sociedade pós-moderna é caracterizada por processo contínuo de integração e desintegração em todos os aspectos
(político, econômico, social, cultural) por causa da enorme circulação de capitais, bens
e ideias. Costa (2009) analisa a obra de Bauman e aponta que isso gera, no ser humano,
a sensação de que tudo é muito instável, provisório e descartável.
Costa faz análise sobre o pensamento de Bauman perante a Educação. O sociólogo, segundo ela, vê a Educação na modernidade sólida (o que várias vertentes de pesquisa chamam de “modernidade”) como um projeto de longo prazo, com fundamentos
duráveis e realizada por sujeitos com identidade estável. A Educação na modernidade
líquida (a “pós-modernidade”, para muitos estudiosos) exige rapidez, instantaneidade
e descartabilidade; a solidez é ameaça para seus sujeitos (Costa, 2009:60-75). Bauman
(2001) argumenta que essas diferenças educacionais dos dois períodos são um dos principais fatores da crise no ensino. Costa, ao analisar a obra de Bauman, aponta que a escola de hoje não comporta os sujeitos com características da pós-modernidade – “ágeis,
instáveis e mutantes (...) e em permanente mutação” (Costa, 2009:72).
As instituições de ensino, em vez de incorporarem os novos valores e atenderem
às necessidades da sociedade pós-moderna, relutam em alterar sua estrutura hierárquica e pouco dinâmica, segundo Alves. A autora argumenta que ainda há resistência da
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Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
escola em deixar de ser a única fonte legítima de saber. O que deveria ser “um ambiente
que assume a forma de um ‘ecossistema comunicativo’ dinâmico, indiferente aos ritmos
institucionais e que faz circular grande multiplicidade de saberes e proporciona diferentes formas de aprender”, na verdade, é um lugar de resistência às novas necessidades da
sociedade. Há resistência da escola “no sentido de manter-se como o único lugar legítimo de produção do saber” (Alves, 2007:47). A escola deveria preparar sujeitos ativos
e participantes na sociedade e, principalmente, pessoas capazes de construir relações
lógicas e, assim, conhecimento, através das informações que recebem em seu cotidiano.
Alves concorda com o ponto de vista de Martín-Barbero, ao ponderar que a escola
deve incorporar as “novas formas de sociabilidade, de cultura e de saber que já fazem
parte do cotidiano de crianças e jovens” (Alves, 2007:47). A pesquisadora também complementa dizendo que é preciso mudar os mecanismos de transmissão e construção do
conhecimento. Não basta apenas aparelhar-se com novas tecnologias. “Equipar-se com
novos suportes técnicos não significa que a escola tenha compreendido o papel estratégico que tem a Comunicação para a Educação” (Alves, 2007:49). Alexandre Sayad,
Secretário Executivo da Rede CEP (Rede Comunicação, Educação e Participação – que
reúne dez ONGs de diversos Estados do País que têm o trabalho em comum na área de
Comunicação e Educação), em artigo para o portal d’O Estado de S. Paulo, ressalta que
“computadores não educam sozinhos; nem livros. Ambos são meios, ou recursos, para
uma potencial prática pedagógica, que pode ser interessante e eficiente” (Sayad, 2009).
A diferença entre o que a escola proporciona e o que a sociedade demanda pode
ser um dos pontos que levam à grande falta de interesse dos alunos em aprender apenas
através das aulas dirigidas por livros didáticos e da comunicação unidirecional professor-aluno. Existem aproximadamente 50 milhões de jovens no Brasil, que representam
quase 1/3 da população brasileira. De acordo com o Instituto Cidadania, em pesquisa
realizada no ano de 2004, apenas 48% dos cidadãos entre 15 e 17 anos cursam o Ensino
Médio. Outra pesquisa, da ONG Ação Educativa (2007), mostra que 59% dos alunos
do Ensino Médio responderam que somente às vezes ficam realmente interessados no
aprendizado. Apenas 28% dos educadores acreditam que seus alunos estejam interessados nas matérias lecionadas.
Os dados estatísticos coletados indicam que, além da não universalidade do ensino médio e da desmotivação de grande parte dos estudantes matriculados, há também
grande evasão escolar. Pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (Neri, 2006), referente ao ano de 2006, aponta que 40,29% dos jovens brasileiros da mesma faixa etária
abandonam a escola por desinteresse; 27,09% deixam os estudos por razões de trabalho
e renda; e 10,89% deixam de estudar por dificuldades de acesso à escola. No Estado de
São Paulo, esses números são maiores: 46,15% são desinteressados, 29,2% precisam trabalhar, mas apenas 8,55% abandonam a escola pela difícil acessibilidade.
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Revista Communicare
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
Observaram-se deficiência no sistema de ensino vigente e necessidade de reestruturação dos processos educacionais, para que sejam realizados de forma interdisciplinar
e com método de ensino-aprendizagem que possibilite aos estudantes interagirem com
o assunto abordado. O auxílio das novas tecnologias representa a possibilidade de os
estudantes aplicarem à sua vida cotidiana o conhecimento construído a partir do novo
modelo de ensino-aprendizagem.
A pós-modernidade também provoca crise de identidade nos sujeitos. Como observa Stuart Hall (2005), as mudanças sofridas pelas sociedades modernas no final do
século XX alteram as identidades pessoais – tanto sociais quanto culturais -, abalando a
ideia que os indivíduos têm de si próprios como sujeitos integrados.
Com isso, os indivíduos não conseguem estabelecer facilmente relações estáveis
de identificação com a sociedade, o grupo ou a família. Isso leva a uma crise de identidade do sujeito. De acordo com o filósofo Roger Scruton, estudado por Hall, o indivíduo
precisa identificar a si mesmo como algo além do sujeito autônomo, como um mesmo
grupo (sociedade, classe, estado, nação ou algum outro modo de agrupamento) “ao qual
ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar”
(Scruton apud Hall, 2005:48).
Hall (2005) trabalha a identidade nacional como uma comunidade imaginada. Os
indivíduos constroem suas identidades com base num universo de representações simbólicas que lhes dá a sensação de pertencimento a um Estado ou a uma nação. Ocorre
que os indivíduos estão perdendo esses referenciais simbólicos nacionais e, em razão da
complexidade e da imensa fragmentação inerentes ao processo atual de globalização, a
identidade passa a ser instável, multicentrada e polissêmica. Projetos que envolvem a
inter-relação da Educação e da Comunicação, como é o caso do Educom.rádio, do NCE
(Núcleo de Comunicação e Educação, ECA-USP, que estuda a inter-relação Comunicação
e Educação), por exemplo, procuram resgatar a identidade e a cidadania dessas pessoas,
oferecendo-lhes referenciais e, ao mesmo tempo, a possibilidade de mais ampla e profunda reflexão sobre as condições de vida que o sujeito pode encontrar em cada contexto.
Quando se estudam os temas identidade e cidadania, é importante lembrar a contribuição de Canclini ao dizer que a reflexão sobre identidade e cidadania não se situa
apenas em relação ao folclore ou a discursividade política, como ocorreu nos nacionalismos dos séculos XIX e XX. “Deve também levar em conta a diversidade de repertórios artísticos e de meios de comunicação que contribuem para a reelaboração das
identidades” (Canclini, 2005:136). Por isso, deve ser um estudo transdisciplinar. O autor
ainda defende que as noções de multimídia e multicontextualismo são fundamentais
para redefinir o papel da cultura. “As identidades nacionais e locais só podem persistir
na medida em que as situemos numa comunicação multicontextual”. E completa:
A identidade, dinamizada por esse processo, não será apenas uma narrativa ritualizada,
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Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
a repetição monótona pretendida pelos fundamentalismos. Ao se tornar um relato que
reconstruímos incessantemente, que reconstruímos com os outros, a identidade torna-se
também uma co-produção (Canclini, 2005:136).
Canclini acredita que a identidade não é baseada apenas pela formação cultural da
sociedade. Ela está exposta à influência de fatores externos à história da comunidade e
por sua cultura folclórica e/ou política. Afirma que a identidade tornou-se também uma
coprodução já que não se analisa somente as diferenças entre culturas, mas também “as
maneiras desiguais com que os grupos se apropriam de elementos de várias sociedades,
combinando-os e transformando-os” (Canclini, 2005:131). O autor defende que as teorias do “contato cultural” erram ao estudarem duas culturas diferentes, partindo do que
as diferencia. Canclini acredita que os grupos são afetados pela circulação cada vez mais
livre e frequente de pessoas, capitais e informações que faz com que as culturas se relacionem. Disso resulta que nossa identidade não pode mais ser definida pela associação
exclusiva a uma comunidade nacional. Ressalta que “o objeto de estudo não deve ser,
então, apenas a diferença, mas também a hibridização” e que “hoje a identidade, mesmo
em amplos setores populares, é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos
mesclados de várias culturas” (Canclini, 2005:131).
Portanto, a maneira como os indivíduos se apropriam de elementos para construir
sua identidade - processo em constante mudança - é diferente de uma sociedade para
a outra. A Educomunicação aproxima as pessoas ao propor diversas leituras culturais
para o mesmo fenômeno e entendimento do diferente através de leitura crítica de conteúdos difundidos pela mídia e pela produção de mídia pelos participantes.
Canclini aponta a forte influência dos meios de comunicação na formação de
identidades e ressalta a importância de abordar esse tema de maneira multidisciplinar. Defende que, além de complexa em sua essência, a identidade está em constante
construção ao ser influenciada pelos meios de comunicação. Relembra a importância
do rádio e do cinema na formação das sociedades nacionais: “O rádio e o cinema contribuíram para organizar os relatos da identidade e o sentido de cidadania nas sociedades
nacionais” (Canclini, 2005:129).
Tendo em vista, principalmente, o fato de a escola deixar de ser a única fonte legítima
de saber (Alves, 2007), a Educomunicação procura resgatar a identidade e a cidadania dos
indivíduos e desenvolver o trabalho com os meios de comunicação ligados ao aprendizado.
Diante da ascensão de fundamentalismos religiosos, xenofobia, homofobia e racismo, é ainda mais necessário preservar a diversidade cultural. Para isso, Alves propõe
a construção de canais de comunicação que possibilitem liberdade de expressão para
que haja um intercâmbio comunicacional entre diferentes culturas e a criação de mecanismos de promoção da cidadania política e cultural.
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Revista Communicare
Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
A Educomunicação é facilitadora desse processo, por ser método de promover a
expressão, o diálogo e o trabalho em grupo. Por meio dela, procura-se tornar o aprender mais interessante para os jovens que já nasceram na era digital. Estes, segundo Don
Tapscott, em seu livro Grown Up Digital, têm características muito diferentes de seus
pais e avós. Eles prezam a liberdade e a liberdade de escolha, gostam de coisas customizadas, trabalham colaborativamente, gostam do diálogo e não do discurso, querem
se divertir a toda hora - tanto no trabalho quanto na escola -, a velocidade é normal e a
inovação é parte da sua vida. (Tapscott, 2009:6).
A obra foi baseada em pesquisa realizada em 2007 em doze países (EUA, Canadá,
Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, México, Brasil, Rússia, China, Japão e Índia)
com 9.442 pessoas entre 13 e 61 anos – integrantes de diferentes gerações, através de
questionário on-line e com trinta estudos em profundidade de casos de Net Geners.
No âmbito educacional, o livro aponta a importância da colaboração e na valorização dos estudantes. O autor defende a mudança do modelo pedagógico baseado
na instrução - em que o approach tem foco no professor - para o modelo com foco
no aluno e é baseado na colaboração, que é um valor importante para a mobilização e
participação social.
Tapscott acredita que os estudantes devem levar os conhecimentos adquiridos na
escola para a comunidade. O uso de ferramentas como a Wikipedia e o Facebook para
fins educacionais e sociais é exemplo disso. O autor ressalta também a importância de
os jovens produzirem os conteúdos abordados em classe e terem a possibilidade de descobrirem o conhecimento e desenvolverem pensamento crítico em relação aos dados e
informações a que têm acesso. “O problema da Educação é que sempre que você ensina
algo, você impede que uma criança tenha o prazer e o benefício da descoberta” (Papert
apud Tapscott, 2009:134)3 . Tal proposição aproxima-se do que Freinet defendia: criar
oportunidades para que, por meio da produção de jornais e de outras atividades que
possibilitassem utilizar os conteúdos escritos nos livros escolares, as crianças pudessem
aprender na prática e até estabelecer outras ligações entre o conteúdo aprendido e suas
próprias realidades, produzindo conhecimento que não teria sido “repassado” a eles.
O autor relembra a fala do professor de Física de Harvard, Eric Mazur, mostrando
que não basta apenas decorar a informação. É necessário saber interpretá-la e utilizá-la
com proveito. Mazur ressalta que a Educação é mais do que apenas transferir informação. A mensagem precisa ser assimilada, aplicada de maneira eficaz e adaptada em
situações novas e não-familiares. (Tapscott, 2009:132). É mais vantajoso que os jovens
trilhem o caminho para aquisição do conhecimento e até construam esse aprendizado
por meio de trabalho colaborativo. Isso possibilita o conhecimento de outras culturas e
a ruptura de quebrar pré-conceitos.
3. Livre tradução feita por este autor do trecho: “The scandal of education is that every time you teach
something, you deprive a child of the pleasure and benefit of discovery” (Tapscott, 2009:134).
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Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil
A Educação para a Comunicação tem papel fundamental no método de ensinoaprendizagem eficaz para o aprendizado e o desenvolvimento do aluno – tanto intelectual quanto como cidadão, uma vez que desenvolve habilidades e competências que
ajudam os estudantes a compreenderem melhor o mundo em que vivem, analisarem as
situações-problema e fazerem questionamentos que possibilitam descobertas.
A Educomunicação hoje
A Educomunicação está muito bem desenvolvida na teoria e aparece em diversos campos
no mercado. Existem dois cursos de graduação com habilitação em Educomunicação. Profissionais ligados à área de Comunicação e Educação encontram possibilidades de trabalho
em empresas, instituições de ensino, governo e, principalmente, no terceiro setor.
O campo teórico é estudado por profissionais da Educação e da Comunicação de
todo o Brasil. Há forte concentração das pesquisas em São Paulo, onde está situado o
Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP. Formado em 1996, explora o campo
da inter-relação Educação-Cultura-Comunicação desenvolvendo pesquisas, articulação
de pesquisadores envolvidos na área e também projetos experimentais. Entre 2001 e
2004, o NCE implantou o projeto Educom.rádio em 455 escolas municipais do ensino
fundamental, no qual se instalou estação de rádio para ser usada por alunos e professores, que foram formados em Educomunicação para utilizá-la.
Em 2011, a Universidade de São Paulo iniciou o segundo curso brasileiro de graduação com habilitação em Educomunicação. O primeiro curso, de bacharelado, foi criado
na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG-PB) em 2009, mas percebeu-se a
necessidade de profissionais licenciados na área para atuação no mercado paulista. A
USP criou, então, o primeiro curso de licenciatura em Educomunicação do país.
Nas instituições de ensino, o profissional pode se tornar um professor de Comunicação do Ensino Infantil ao Médio - desenvolvendo conceitos das áreas da Educomunicação e auxiliando os jovens a produzirem material midiático - ou podem lecionar
Educomunicação nas universidades, em cursos ligados à Comunicação.
O educomunicador também pode atuar como consultor junto a órgãos governamentais municipais, estaduais e até em âmbito nacional em projetos que envolvam Comunicação e Educação. A Rede CEP, por meio do “Programa Mais Educação”, do Governo
Federal, ajuda a promover a Educação Integral no País, por exemplo. O programa tem
atividades organizadas em macrocampos – entre eles, o da Educomunicação. Nele, os alunos podem produzir jornal e rádio escolar, história em quadrinhos, fotografias e vídeos.
Os profissionais que trabalham na área da Educomunicação também podem ser consultores de empresas privadas, auxiliando-as em projetos da área social que envolvam Edu-
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Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz
cação e Comunicação e até atuando como educomunicador nos projetos da companhia.
Além das áreas citadas, podemos encontrar o profissional da Educomunicação no
terceiro setor, que está muito envolvido com a melhoria da vida social e comunitária de
jovens e adultos atendidos pelas instituições sociais.
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140
Revista Communicare
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
141
Iniciação Científica
A popularidade e a influência no
Twitter
Mariana Pascutti Zacarias
Aluna do curso de Rádio e TV na Faculdade Cásper Líbero. Realizou Iniciação Científica no Centro Interdisciplinar de
Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero no ano de 2010.
Luis Mauro Sá Martino
Professor da Faculdade Cásper Líbero. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Autor dos livros “Comunicação e Identidade”
e “Teoria da Comunicação”, entre outros.
O objetivo desta pesquisa é delinear alguns aspectos da construção de conexões responsáveis pela
influência e popularidade de alguns usuários do Twitter, ferramenta de microblogging que ocupa,
atualmente, significativo espaço entre as redes sociais no país. Para tanto, foram analisadas as mensagens postadas durante dez dias por: uma celebridade consolidada no mundo da mass media e por
uma figura emergente das Redes Sociais, que se tornou conhecida somente através da Web.
Palavras-Chave: Redes Sociais, Twitter, popularidade, influência, celebridade.
The popularity and influence on Twitter La popularidad y la influencia en Twitter
This paper investigates the social construction of online pop-
El objetivo de este trabajo es describir algunos aspectos de la
ularity and influence of Twitter users. Twitter is one of the
construcción de conexiones responsables por la influencia y
most important social digital networks, and it seems to be
la popularidad de algunos usuarios de Twitter, herramienta de
a way to some users to reach fame, popularity and prestige.
microblogging que ocupa actualmente una parte significativa
It analyzes the Tweets of two users with different levels of
entre las redes sociales en el país. Con este fin, hemos anali-
popularity and prestige during the period of ten days: one
zado los mensajes enviados durante diez días por dos perso-
is a TV celebrity, and his fame has been built prior to any
nas: una celebridad consolidada en el mundo de los medios
online interference; the other is what could be called a ‘web-
de comunicación y una figura emergente de las redes socia-
celebrity’, and his fame is due exclusively to his online actions.
les, que se quedó conocida sólo a través de la web. Palabras
Keywords: Social Networks, Twitter, popularity, influence,
Clave: Redes sociales, Twitter, la popularidad, la influencia
celebrity.
de la celebridad.
A popularidade e a influência no Twitter
Introdução
O desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) vem alterando
significativamente a estrutura de fluxos e transmissão de conteúdos, bem como da interação entre seres humanos (Santaella, 2010). A convergência de mídias, propiciada pelas
tecnologias digitais, impulsionou um ambiente de compartilhamento, interação e troca
de informações formadas pelo código binário, assim como a mobilidade incrementou a
velocidade das interações possíveis. Como explica o pesquisador Walter Lima Jr:
Nesses quase 60 anos de desenvolvimento contínuo, o avanço das telecomunicações,
das máquinas computacionais das ciências da computação e dos dispositivos para saída
das informações processadas (impressoras e displays, entre outros), além da mobilidade,
tornou os seus convergentes dispositivos pervasivos e ubíquos (Lima, 2009, p. 95)
Na medida em que há um intenso fluxo de informação sendo distribuído por diferentes mídias e conteúdos sendo apresentados por múltiplas plataformas, modalidades
anteriores de relações sociais encontram novas formas de expressão e interferência no
cotidiano, dando origem a perguntas a respeito das transposições de comportamento nos ambientes virtuais. O fenômeno das redes sociais conectadas (Lima, 2009), por
exemplo, recebe atenção crescente dos pesquisadores da Comunicação interessados em
verificar as relações entre tecnologia e ação social, entendida, no sentido weberiano,
como a ação voltada para uma outra pessoa.
Mas isso remete a uma pergunta: como se constitui esse outro nas redes sociais?
Neste trabalho, busca-se delinear um caminho para colaborar na construção coletiva
dessa resposta – e de novas perguntas – a partir de um caso particular. O recorte da
análise desses fenômenos recai sobre uma ferramenta da Internet que, desde 2006, vem
adquirindo significativo destaque entre as redes sociais, o Twitter.
Denominado microblogging, cada usuário possui um perfil, no qual posta mensagens com até 140 caracteres, com o intuito, a princípio, de responder a pergunta proposta pela ferramenta: “o que está acontecendo?”.
O Twitter consegue integrar mensagens de texto, links, fotos, e relacionar os usuários entre si, na medida em que cada indivíduo pode “seguir”, isto é, ter acesso aos tweets
escritos por pessoas, organizações e instituições de seu interesse, e, com isso, ter em sua
página inicial as mensagens postadas.
Dessa forma, a interação pode ser direta ou indireta, e não necessariamente de forma recíproca: é possível seguir alguém, sem a necessidade de ser seguido por essa pessoa.
Isso, de saída, cria uma disparidade que, de alguma maneira, é uma das bases
deste trabalho: a desigualdade entre o número de usuários que alguém segue e a quantidade de pessoas por quem se é seguido permite entrever uma diferença de prestígio
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
e reconhecimento. Seria possível propor que quanto mais seguidores se tem, maior a
potencial influência de seus Tweets.
Atualmente, o microblogging conta com cerca de 300 milhões de usuários, de acordo com a pesquisa do site Twopcharts1, registrada em maio de 2011. Ao agregar variadas
funções, desde 2006 o Twitter se configura dentro do conceito de “convergência midiática” proposto por Henry Jenkins (2008) e compreendido, de forma geral, como um
processo contínuo de interstícios entre diferentes sistemas de mídia, devido ao fato de
possibilitar a junção de diferentes informações e relacionar indivíduos. Segundo Jenkins
(2008, p. 30), “a convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e
em suas interações sociais com outros”.
Ao longo desse período, o Twitter sofreu uma mudança recente relacionada à
alteração da pergunta original, “O que você está fazendo?”, para “O que está acontecendo?”. Essa modificação pode ser entendida como uma alteração no uso que se faz da
ferramenta: em vez de postar algo sobre sua vida particular, a proposta seria divulgar
mensagens que acreditam ser relevantes para um público maior. Ocorreria, portanto,
uma troca de informações que transcende o universo pessoal em favor da elaboração
de uma rede de informações no espaço público. “A inteligência coletiva pode ser vista
como uma fonte alternativa de poder midiático”, explica Jenkins (2008, p. 30)
A partir dessas considerações, nesta pesquisa busca-se diferenciar os conceitos
popularidade e influência no Twitter. Para isso, foi escolhida a análise do perfil de duas
pessoas com diferentes índices possíveis de capital social. O primeiro, Luciano Huck,
apresentador do programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, transmitido aos sábados
à tarde e constantemente pautado no universo das mídias de massa. O segundo usuário
é o vloger (“video-logger”) Felipe Neto, que se tornou conhecido, ao postar vídeos satirizando bandas e artistas que despontaram em 2010.
No que se segue, em primeiro lugar será discutida a relação entre popularidade e
influência no uso do Twitter, a partir, sobretudo, mas não exclusivamente, da noção de
“capital social”. Será apresentada a pesquisa realizada com os dois perfis e, em seguida,
alguns resultados obtidos.
Popularidade, influência e capital social
Em certa medida, o poder exercido no ambiente virtual relaciona-se com o que vários
autores denominam “capital social”, entendido como uma compreensão qualitativa e
quantitativa das relações sociais estabelecidas por um determinado indivíduo em sua
vida social (Bourdieu, 1981).
1
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Revista Communicare
Disponível em: twopcharts.com/twitter300million Acesso em: Nov/2010
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A popularidade e a influência no Twitter
Não sendo o objetivo aqui uma detalhada discussão do conceito – remete-se o
leitor interessado a Araújo (2003) e Mattos (2009) – vale, no entanto, assinalar algumas
características que interessam a este trabalho. O capital social não se restringe ao número de conexões de um determinado indivíduo, mas refere-se também à capacidade de
interação e potencial mobilização dessas conexões, bem como o reconhecimento social
desfrutado em um determinado espaço.
Falando de posições diferentes, Bourdieu (1981) e Putnam (1995) identificam que
o capital social se constrói a partir do estabelecimento de relacionamentos, bem como
no engajamento em questões que reforcem os laços dentro de uma comunidade específica. Assim, o capital social é cultivado no universo das relações humanas como um
índice da força dessas relações em seu direcionamento para ação.
No ambiente on-line, o capital social é um tema trabalhado recentemente e ainda
é objeto de dissenso. Nota-se, no entanto, uma tendência para se observar a construção
de relações virtuais como fonte de produção e transferência desse capital a partir do uso
de ferramentas on-line de visibilidade e consagração. A aferição do capital social de um
indivíduo ou organização não é tarefa simples ou que possa ser numericamente determinada, mas há indícios que permitem delinear alguns desses elementos.
No caso do Twitter, a mencionada diferença entre o número de indivíduos que se
seguem e a quantidade de pessoas por quem se é seguido pode oferecer uma pista, mas
também, na mesma linha, a quantidade de “retweets”, isto é, de mensagens passadas
adiante pelos seguidores, o que potencializa exponencialmente a exposição on-line do
indivíduo.
A aparente facilidade em se relacionar com as pessoas é traduzida na ausência de
qualquer investimento alto de capital intelectual ou cultural para desfrutar dos recursos
básicos da ferramenta.
Partindo do pressuposto de que as conexões são resultados da interação entre os
indivíduos, pode-se afirmar que há duas redes sociais principais dentro do Twitter: uma
formada pelas relações entre contatos estabelecidos na rede e a outra composta pelas
relações entre quem efetivamente interage com quem (Recuero, 2009). A pesquisadora
considera ainda que esta última represente a rede social emergente, caracterizada pelas
conversações entre os atores, de forma a concretizar a troca direta pelos usuários de
mensagens, que podem ser enviadas uns aos outros de maneira privada (direct messages) , ou pública (postadas na timeline do autor).
A primeira rede citada seria de filiação, “decorrente de conexões automáticas”
(Recuero & Zago, 2009: 83), assim definidas devido ao fato de duas pessoas se conectarem através de uma simples postagem que possua um assunto em comum, usando os
trending topics, por exemplo, o que deixa em aberto uma possível interação entre elas.
Quanto mais conexões, maior acesso a informações terão os atores. Em consequ-
146
Revista Communicare
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
ência, explicam as autoras, os indivíduos que têm maior número de seguidores postam
mais informações de interesse geral. Outra característica decorrente desse aspecto está
relacionada com a popularidade na rede.
A popularidade representada por um elevado número de seguidores, muitas vezes
chegando à casa dos milhões, pode ser vinculada à exposição do indivíduo no mundo da
mídia. Por outro lado, não significa, necessariamente, que essas pessoas são influentes e
que suas postagens trazem à tona novas discussões na mídia. É preciso, de saída, deixar
espaço para um certo ponto de flutuação e recusar interpretações redutoras que vinculem a construção do capital social e sua conversão em uma relação de causa e efeito: o
prestígio adquirido em uma mídia pode ser convertido em outra, mas isso não significa
que a ausência de prestígio em uma implique a impossibilidade de criação desses vínculos em outra.
Um estudo da Pew Internet2 constatou que as pessoas estão cada vez mais buscando, na rede, informações e referências sobre outras.
Internet users have become increasingly likely to use search engines to check up on their
digital footprints. Since our last survey in 2006, search engines have vastly expanded their
reach and now include everything from images and videos to real-time results on Twitter.
(Madden & Smith, 2010: 8)
O jornalista e blogueiro Tiago Dória apresentou dados da pesquisa da Pew Internet, em seu weblog3, indicando que a maior parte das pessoas entrevistadas, 69%, já
procurou informações de outras pessoas em sistemas de busca. De acordo com o jornalista, em entrevista por e-mail concedida em 29 de novembro de 2010, “você pode ter
20 seguidores no Twitter, não ser popular no serviço de microblogging; e, mesmo assim,
as suas ideias e posturas são respeitadas. Enfim, reputação está mais atrelada ao respeito
do que à popularidade”.
A distinção proposta entre “respeito” e “popularidade” pode ser compreendida
em termos de capital social e serve como exemplo de uma diferenciação entre a simples
relação social, desprovida de maiores vínculos, e a elaboração de um tecido de relações
nas quais o “respeito” indicado converte-se em capital social, fruto do reconhecimento
da fala do usuário como “legítima” dentro de um ambiente e, portando, valorizada. Daí
que a simples observação do número de seguidores, embora forneça um índice inicial, é
insuficiente para aferir o capital social de um indivíduo no Twitter.
É evidente, contudo, que a visibilidade também pode gerar acordos comerciais,
como os anúncios nas páginas. Assim, muitos usuários utilizam estratégias como palavras impactantes e sensacionalistas, fotos associadas a artistas - estratégias usadas para
serem encontrados mediante os mecanismos de buscas. No ambiente das celebrida2. http://pewinternet.org/~/media//Files/Reports/2010/PIP_Reputation_Management.pdf
3. Disponível em: www.tiagodoria.ig.com.br
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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A popularidade e a influência no Twitter
des, que possuem blogs em determinados portais, essa visibilidade pode se traduzir
em acordos comerciais, por exemplo. Nesse sentido, há uma relação entre a lógica da
construção de capital social e a exposição da vida particular que pode ser explorada.
Como lembra Daniel Boorstin (2007), “celebridade é uma pessoa conhecida por ser
muito conhecida”. Na internet, é possível se tornar conhecido simplesmente por divulgar
algum vídeo relacionado com alguma atividade corriqueira dele próprio. Não há mais a
necessidade de se fazer algo específico: “(...) você ganha mais fama quanto mais falar de
você mesmo, do livro que está lendo, de seu acesso de tosse” (Martino, 2010: 189).
Complementando, Martino (2010: 193) afirma que hoje há a tentativa de levar às
telas a vida particular com o objetivo de torná-la de interesse coletivo. Com isso, atenua-se a fronteira entre o público e o privado.
Nas redes sociais, nota-se que muitos usuários utilizam a mesma estratégia para
conseguir mais leitores. No Twitter, por exemplo, postar o que está fazendo ou publicar
uma foto da festa em que se encontra pode atrair mais atenção do que promover debates.
Entretanto, segundo Alex Primo (2009), a fama conquistada nas pequenas redes
não ultrapassa esse círculo. Para ser popular como as celebridades, é necessário estar
exposto no universo das mídias de massa.
O blog sozinho não tem capacidade (como da televisão e do cinema) de alçar seus autores
à categoria de celebridade. [...] a elevação ao status de celebridade midiática depende da
massiva exposição na grande mídia. (Primo, 2009: 115)
Por ser uma rede de difusão de informação muito mais instantânea e concisa do
que os blogs, além de possuir outro formato e diversas ferramentas, no Twitter a popularidade – mas não necessariamente o prestígio, vale salientar, uma vez que este se liga
ao capital social do indivíduo – pode ser avaliada de acordo com o número de seguidores que possuem determinado perfil, apresentado no alto da página. Assim, quanto mais
seguidores, mais popular é determinado usuário.
Contudo, este microblog apresenta outras características que precisam ser levadas em consideração. Ter um alto número de seguidores não significa ser muito conhecido ou reconhecido dentro e fora da rede social. Muito pelo contrário. Quando o
Twitter surgiu, em 2006, os usuários usavam um script4 que adicionava pessoas automaticamente com intuito de obter uma resposta recíproca e aumentar seus seguidores.
Além disso, ter muitos seguidores não significa ser uma pessoa influente na mídia.
4. Sequência de comandos programados para executar determinada tarefa
5. Disponível em: http://www.midiassociais.net/2010/08/estudo-da-hp-influencia-vs-popularidade-emredes-sociais/
6. “Eu defino influência nas mídias sociais pela capacidade de afetar aqueles com quem você interage. No
Twitter, você sabe que afeta alguém quando uma pessoa que não utiliza a ferramenta com muita frequência,
’retwita‘ sua mensagem”. (Tradução livre)
7. www.scup.com.br
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Revista Communicare
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
Se o número de seguidores oferece um índice potencial de influência, é preciso lembrar,
dentro das variáveis do capital social, que pessoas influentes geram comportamentos
dos demais, hábitos de consumo e são reconhecidas como detentora de discursos e
atitudes procedimentais legítimas dentro de um universo específico.
Uma pesquisa desenvolvida pelo Laboratório de Pesquisas da HP, publicada em
agosto de 2010 e intitulada “Influence and Passivity in Social Media”, sob coordenação
de Bernardo Huberman, procurou diferenciar a influência e a passividade dentro do
Twitter, sem levar em consideração o conteúdo postado nas mensagens avaliadas5.
Criou-se um algoritmo denominado IP (Influence - Passivity) utilizado na metodologia do estudo, a fim de medir tais elementos dentro dos perfis selecionados. Entre
eles estavam @aplusk (o ator Ashton Kutcher, um dos primeiros usuários a possuir mais
de um milhão de seguidores do mundo) @mashable, blogueiro bastante reconhecido
nas mídias, a rede @google, dentre outros usuários e serviços.
Cerca de 2,5 milhões de dados, entre usuários e os respectivos Tweets, foram analisados e, através do estudo de caso, o grupo da HP constatou que a maioria dos usuários
são consumidores passivos de informação e não repassam as informações pela rede,
apenas absorvendo informações, sem transmiti-las aos demais. Dessa maneira, para
que um usuário se torne influente, ele precisa obter atenção e superar essa passividade
existente entre os usuários.
Em entrevista por e-mail concedida em 24 de novembro de 2010, Humerman afirma: “I define influence in social media by the ability to affect6 those you Interact with. In
twitter you know you affect someone when that someone is relatively passive (retweets
very seldom) and retweets your message”.
Entre a construção e a conversão de prestígio na rede
No período de 21 a 31 de outubro de 2010, foram analisados os perfis do vloger Felipe
Neto e de Luciano Huck. A escolha de Felipe Neto deve-se à sua representatividade
como figura emergente da Internet, popular no mundo das grandes mídias. Já o apresentador de TV Luciano Huck foi escolhido, pois já consolidou a sua imagem no mundo
broadcasting. Foram coletados 289 tweets, 201 postados por Felipe e 88 por Huck. Essa
coleta foi realizada diretamente do perfil do Twitter desses usuários.
Também foram coletados dados do Scup7, plataforma desenvolvida pela empresa
DirectLabs para monitorar redes e sites como o Twitter, comunidades do Orkut, Blogs,
Flickr, Youtube.Twitter, Facebook, Vimeo, Google, Yahoo, ReclameAqui, Wordpress,
Slideshare e RSS. No Twitter, a ferramenta monitora tweets, usuários, directmessages
e mentions, que são os “@”, através da busca por palavras-chave. É possível criar filtros
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A popularidade e a influência no Twitter
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
para especificar os resultados obtidos e ainda possibilita um teste gratuito por sete dias.
O Scup foi utilizado para observar repercussões das mensagens, compreender
o que usuários da rede estão buscando e quais os assuntos que mais são retransmitidos. Com a ferramenta foram coletados todos os Tweets do universo desta rede social
que ‘retuitavam’ Luciano Huck e Felipe Neto. Foram coletados 1255 tweets contendo
@felipeneto e @huckluciano
Na análise dos dados foram classificadas as mensagens postadas diretamente por
Luciano Huck e Felipe Neto. Foram determinadas dez categorias relevantes para esta
pesquisa, de acordo com a frequência com que os assuntos apareciam na timeline dos
usuários: Perguntas, Política, Pessoal, Replies, Links, Televisão, Tecnologia, Autopropaganda/Avisos, Esporte e Outros.
A tabela a seguir apresenta os números de Tweets obtidos por categoria.
Tabela 01: Distribuição dos tweetspor categoria
Luciano Huck
Felipe Neto
Autopromoção/
Avisos
9 Tweets
14 Tweets
Pessoal
27 Tweets
57 Tweets
Links
15 Tweets
19 Tweets
Perguntas
2 Tweets
13 Tweets
Replies
8 Tweets
57 Tweets
Política
16 Tweets
4 Tweets
Esporte
4 Tweets
5 Tweets
Tecnologia
0 Tweets
6 Tweets
Televisão
7 Tweets
12 Tweets
Outros
0 Tweets
14 Tweets
TOTAL
88 Tweets
201 Tweets
Observa-se que Felipe Neto tem duas vezes mais Tweets do que o apresentador
global e utiliza, significativamente, o Twitter como meio de autopromoção de seus vídeos. Trata-se de um indivíduo que ainda está se firmando no universo da mass media
com o programa “Será que faz sentido?”, no canal Multishow estreado no início de dezembro de 2010, e com o recente quadro chamado “Sem noção” no programa “Esporte
Espetacular”, da TV Globo.
Luciano Huck, figura tradicional do mundo televisivo, também utiliza a rede social para divulgar seus trabalhos, porém em menor escala. Ele cita o horário de seu
150
Revista Communicare
programa “Caldeirão do Huck” e eventos de seu “Instituto Criar”.
Tais dados permitem confirmar a ideia exposta por Martino (2010), o qual constatou que no universo das subcelebridades é válido comentar e postar sobre sua vida real a
fim de torná-la interessante ao outro para aos poucos conquistar audiência. Percebeu-se
que, no caso de Felipe Neto, a frequência de postagem é maior do que a de Luciano Huck,
que possui sua fama consolidada. Para o vloger, quanto mais expuser suas opiniões, mais
atenção do público ele obterá. Aos poucos conseguiu mais um milhão de seguidores e
hoje tem um canal do Youtube com mais de 21.064.818 visualizações. Como afirma Silveira (2009, p. 83), “o Twitter e o próprio Orkut são exemplos da grande possibilidade de
criar, com poucos recursos, pólos de atenção de grande relevância na rede”.
De acordo com os tweets coletados, a interação direta com os followers se dá por
meio de perguntas; isso significa que os personagens questionam literalmente seus seguidores, a fim de obterem respectivas respostas. E também pode ser por Replies, mensagens direcionadas a uma pessoa por meio da utilização do símbolo “@” antes do nome
de usuário, caracterizadas por serem uma conversação aberta, publicada na timeline.
Os dados obtidos demonstram que Felipe Neto busca interagir com seus seguidores muito mais do que Luciano Huck e ainda, nota-se que o vloger possui maior disposição para as postagens tendo em vista os números que se sobressaem aos do apresentador e também busca a interação direta com perguntas que suscitam respostas dos
seguidores. O elevado número de replies apresentado, 57 tweets, caracteriza a ferramenta como um possível meio para manter conversações com amigos.
Ainda, devido ao fato de o período estudado preceder o segundo turno das eleições presidenciais de 2010 do Brasil, avaliou-se o quanto os usuários citavam o tema,
ou se referiam a assuntos políticos. Felipe Neto, por sua vez, não comentou muito sobre
a situação política, embora seja um tema polêmico e aberto a grandes discussões. O
esporte também representou um percentual pequeno entre os usuários.
As três últimas categorias restantes foram divididas em assuntos que tiveram certa frequência nos tweets de ambos os casos estudados e que também seriam relevantes
na busca por compreender o interesse das pessoas. São elas: Tecnologia, Televisão e
Outros.
Em Tecnologia, foram separadas mensagens que mencionavam algum tipo de
aparato tecnológico, ou questionavam alguma função de determinado produto. Com
relação à Televisão, separaram-se tweets que diziam algo sobre alguma série, programa
ou que estivessem no contexto televisivo. Felipe Neto postou constantemente opiniões
a respeito de séries americanas, enquanto Luciano faz mais referências ao “Caldeirão do
Huck”, a outros programas Globais ou dos canais Globosat – neste caso, as mensagens
não foram consideradas explicitamente autopromocionais.
Em Outros classificaram-se mensagens aleatórias como palavras soltas, expres-
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A popularidade e a influência no Twitter
sões e interjeições sem contexto pré-definido. No Twitter do apresentador não houve
esse tipo de incidência, mas Felipe Neto apresenta 14 tweets do gênero, alguns exemplos: “Rock’n Roll”, “Jóia”, “Deus do céu” e “Finalmente...”
Com os dados obtidos no Scup e na ferramenta Tweetsearch no próprio site do
Twitter, avaliou-se o que mais era retransmitido pela rede e quantas vezes os posts desses personagens eram “retwitados”. Para efeito de análise, foram adotadas as mesmas
dez categorias utilizadas na classificação das postagens dos dois casos estudados, sendo
que aqui se incluem em “Outros” os tweets que usavam @felipeneto ou @huckluciano
para conversação direta, na qual os “twitteiros” buscavam algum tipo de interação com
os personagens.
Nota-se, de saída, que a maior parte dos RTs de Felipe Neto, 20%, refere-se à sua
vida pessoal, o que reforça a noção de que a exposição da vida privada se afigura como
Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
uma estratégia para alcançar repercussão dos tweets. Nesse sentido, é possível questionar em que medida ainda se poderia relacionar a noção de “capital social” em um
de seus sentidos, considerada em termos da produção do engajamento cívico e mobilização, se o principal foco de interesse é a vida privada do indivíduo. A tese de Putnam
(1995) sobre o declínio do capital social, exposta em Bowling Alone e largamente discutida posteriormente, parece encontrar algum respaldo nessa constatação: a construção
do que poderia ser um maior capital social não parece representar, efetivamente, um
maior interesse em questões outras que não o elemento pessoal transformado em entretenimento.
Ainda sobre as mensagens pessoais, vale destacar que os usuários costumam repassá-las e adicionar um comentário a respeito. Entre as mensagens foram encontradas
afirmações de caráter favorável a Luciano Huck e críticas pejorativas a Felipe Neto. Isso
permite deduzir que algumas pessoas o seguem não por serem fãs ou admirar seu trabalho, mas para saber o que Felipe Neto vem postando, a fim de descobrir o motivo de
ter obtido relativo sucesso nas mídias sociais.
A princípio, inferiu-se que a maioria dos propagadores das mensagens de Felipe
Neto está na mesma faixa etária do jovem de 22 anos, o que pode também ser um fator
que contribuiu para o alto número de “Retwittes” encontrados (884 RTs) em comparação aos de Luciano Huck (371 RTs). De acordo com o último senso do Twitter no Brasil,
atualizado em 2 de junho de 2009, 43,81% dos usuários estão entre 19 e 24 anos, correspondendo à maioria do acesso à rede8.
As categorias Perguntas e Tecnologia, que não aparecem nas mensagens que
“retwitavam” o apresentador, apresentam as mais baixas incidências no caso de Felipe
Neto. Notou-se que os usuários ‘retwitavam’ e adicionavam perguntas, comentários e
dicas relacionados ao assunto em questão.
Em Links, foram considerados os tweets com sites citados ou divulgados por Felipe Neto que não estavam ligados a ele. Ou seja, links que não direcionavam ao canal
do vloger no Youtube. O mesmo se remete a Luciano Huck. Os links divulgados pelo
apresentador representam a segunda categoria mais propagada pela rede no período.
O fato de esses retweets se referirem a endereços de sites, vídeos e fotos indica que sua
opinião é levada em consideração pelos demais usuários, eles se interessam em saber
o que o apresentador está sugerindo e quais são seus gostos, enquanto Felipe Neto não
obteve muito sucesso na propagação dos links.
Os números encontrados na categoria Política para ambos os personagens se assemelham. Por se tratar de um assunto bastante pautado no período de realização deste
trabalho, foram encontradas mensagens que concordavam ou discordavam da opinião
expressa por Felipe Neto. Os usuários “retwitavam” e complementavam com um comentário, mas, ao contrário do que ocorria no caso do vloger, os propagadores das men8. http://www.twittercentral.com.br/censobr/
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A popularidade e a influência no Twitter
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Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino
sagens de Luciano Huck pareciam concordar plenamente com suas colocações.
O fato de Huck postar menos mensagens que promovam seu programa da TV
Globo, ou ainda outro projeto particular, pode levar ao menor índice desses RTs em
comparação com os de Felipe Neto. Em contrapartida, mesmo com a sua carreira consolidada, as pessoas ainda comentam e repassam as informações transmitidas pelo
apresentador, por mais que já sejam conhecidas pelo grande público. Os tweets com
algum vídeo do “vlogueiro” ou que divulgavam seu novo programa, horário em que
realizaria uma twitcam etc., foram muito comentados. Além disso, a grande maioria
adicionava comentários positivos e recomendações de seu trabalho.
A categoria ‘Outros’ representa mais da metade de todos os tweets analisados, em
ambos os casos. Foram encontradas perguntas, tentativas de chamar a atenção para que
os agentes divulgassem algum Twitter ou material de seus seguidores, pedidos, declarações. O número confirma a teoria de que as redes possibilitam relativa aproximação
com o artista, uma vez sendo possível a conversação mediante a resposta do apresentador. Mesmo que isso não ocorra, é possível encontrar tweets em que Huck afirma
ler todas as mensagens direcionadas e as agradece de maneira geral, sem especificar
nenhum usuário.
tado, mantém uma relação de proximidade e distância com seus seguidores – talvez,
pode-se especular, como estratégia de manutenção do status. Fato que se alinha com
Martino (2010: 180), ao sugerir que “a decisão de criar um blog, assim como a definição
do conteúdo, está pautada em critérios pessoais de edição a respeito do que será tornado público”.
O mesmo ocorre no Twitter, onde o autor pode selecionar os acontecimentos cotidianos que serão ou não explicitados, ou ilustrados, algumas vezes, com fotos. Ocorre
a exposição de uma intimidade antes restrita à vida particular de cada indivíduo. De
outra maneira, cria-se a sensação de distância para o observador que não compartilha
aquela situação real no mesmo instante (Santaella, 2009; 2010).
O status de fama não significa o poder de criar novos padrões. A discussão permite observar que o aspecto multifatorial da construção/conversão de capital social está
vinculado igualmente à definição de estratégias para manter, às vezes de maneira circular, certo prestígio. Ser influente ou popular no Twitter leva à análise desta série de
fatores e conceitos - algo que extrapola a pergunta “O que está acontecendo?” para uma
dimensão de interação relacionada com as apropriações, feitas na rede, de sentidos e
significados.
Considerações finais
Referências
É possível observar correlações e contradições entre a construção virtual do prestígio,
no caso de Felipe Neto, e da transposição ou conversão do mesmo fator previamente
adquirido por conta da exposição nos meios de comunicação ditos “tradicionais”. Os
padrões encontrados na análise dos tweets sugerem que, de fato, o capital social anterior
está ligado à definição das estratégias empregadas na tentativa de multiplicação desse
capital (Bourdieu, 2003).
Avaliando as categorias representadas pelos retweets que possuem porcentagem
semelhante tanto no caso de Huck quanto no de Felipe Neto, nota-se, pelos dados coletados, que a opinião do apresentador possui um peso significativo para seus seguidores,
que tentam interagir com Huck, chamam sua atenção e comentam suas postagens.
Felipe Neto, por sua vez, trilha o caminho de quem está conquistando espaço nas
redes e eventualmente pode ganhar o universo das mídias de massa – o que, aliás, já
vem ocorrendo. O jovem utiliza diariamente a ferramenta para conversar com os usuários e divulgar novas produções. Além disso, interage com os seguidores de maneira
direta, visto que a grande maioria dos retweets ou citações buscam interação recíproca.
Aparentemente Huck tem maior tendência em gerar comportamentos e influenciar nas mensagens de outros usuários, mas, como detentor de um prestígio já sedimen-
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156
Revista Communicare
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Resenhas
Resenha
Webjornalismo
Original por: Magaly Prado
São Paulo: Editora Gen / LTC, 2010.
(241 pp.)
Por Daniela Osvald Ramos
Webjornalismo
Com uma boa introdução histórica sobre o jornalismo na web, que condensa as
principais etapas e as primeiras iniciativas comerciais da comunicação digital, “Webjornalismo”, de Magaly Prado, é um guia para a escrita digital, indicado para iniciantes
e iniciados. A autora, jornalista de formação e radiomaker, como se define, tem larga
experiência no rádio e também foi pioneira no jornalismo da web brasileira. Professora com habilidades multimídia, Prado escreveu um texto orientado principalmente
a uma didática do ensino da disciplina de comunicação digital nos cursos superiores,
experimentando uma linguagem adaptada para a nova geração. A autora sinaliza caminhos para discussões inevitáveis na área, que vão desde a influência do digital no
impresso até temas complexos como o fim do papel do jornalista como único responsável pela emissão de informação na sociedade (“o consumidor como jornalista”), até
a filtragem da informação no ciberespaço (é essa uma nova tarefa do jornalista?). As
recentes novidades também são contempladas, como o jornalismo móvel, o surgimento do iPad, uma nova plataforma de conteúdo, e o QR Code, código que já está
colocando em funcionamento a Realidade Aumentada e que foi usado no livro para
expandir as informações sobre os assuntos tratados.
Mas é como guia para a escrita digital que o livro marca a sua proposta. Se entendermos a escrita digital não somente como o que é possível comunicar com o uso
do alfabeto, mas, sim, com números, que viram digitalmente bits, pixels, textos, fotos,
vídeos, infografia, visualização de dados, redes sociais, agregadores, geolocalização,
conteúdo hiperlocal, colaboração de usuários e, principalmente, tudo isso articulado
com o hipertexto e com o design, temos nesse livro um ponto de partida para a compreensão de como é possível escrever uma linguagem jornalística digital. Repleto de
exemplos práticos, também há espaço para os temas técnicos que inevitavelmente
compõem o novo perfil do jornalista: arquitetura da informação, noções de design
digital, usabilidade, navegação, interfaces, remixagens, mashups e recombinações outro ponto polêmico no campo, por conta da discussão dos direitos autorais.
Também é reservado espaço para as questões que fundamentam o jornalismo,
como a precisão da informação, a objetividade do texto, a ética jornalística (que ganhou um capítulo) e a apuração e checagem das fontes. As várias questões que envolvem o uso jornalístico dos blogs foi contemplada no capítulo 7. A autora vai a campo
e entrevista personagens-chave no cenário das empresas de comunicação digital no
Brasil, como Rodrigo Mesquita, do Estadão e Marion Strecker, ex-diretora de conteúdo do UOL. Assim, há uma interação com os atores do cenário digital, enquetes
com jornalistas que fazem uso do Twitter, relatos e depoimentos, como o de Rosental
Calmon Alves. Sugestões de discussões em sala de aula também são dadas ao final
do capítulo, o que reforça o caráter didático do livro. Uma informação curiosa que
aparece a cada início de capítulo é o serviço de áudio digital que Prado estava ouvindo
162
Revista Communicare
Daniela Osvald Ramos
na hora de escrever o capítulo, o que é um dado à parte sobre a variedade desse tipo
de site na web.
Dif ícil é achar um tema de comunicação digital que não foi ao menos citado ao
longo do livro. O índice remissivo ajuda a localizar os pontos de interesse do leitor
e o site http://magalyprado.com a manter-nos atualizados sobre os desdobramentos
do tema. Ao final, fica claro que, como o mundo que não para de transformar e ser
transformado, o jornalismo segue mutante, termo usado pela autora na dedicatória
do livro para designar o uso criativo da rede por e para jornalistas.
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Resenha
O grande filme: dinheiro e poder
em Hollywood
Original por: Edward Jay Epstein
Título original: The big picture: money and power in Hollywood
Tradução: Silvana Vieira.
São Paulo: Summus Editorial, 2008.
(383 pp.)
Por Bruno Hingst
O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood
Trazendo informações e dados interessantes e pouco conhecidos, o autor, além de
trazer ao leitor um relato das transformações ocorridas no cinema, mais precisamente
no cinema de Hollywood, também desnuda como se dão as relações de poder nos bastidores do meio cinematográfico nos Estados Unidos.
O cinema americano se origina em Nova York e foram os judeus que, antevendo
o futuro promissor dessa nova atividade comercial, os seus primeiros exploradores que
acabaram se estabelecendo em Los Angeles, criando sete empresas que seriam a marca
do cinema norte-americano, ajudando a criar o mito de Hollywood e que levariam o
entretenimento a uma escala mundial: Paramount, MGM, Warner Brothers, RKO, Columbia Pictures, Universal e Twenty Century Fox.
No período entre 1915 a 1948 é que se desenvolveu, em Hollywood, o sistema de
Estúdio, no qual os seus proprietários geriam os seus negócios dentro de uma estrutura
extremamente centralizadora e monopolista: contratos exclusivos e de longa duração vinculando os atores e artistas, distribuição e grandes cadeias de exibição próprias do qual
obtinham enormes lucros decorrentes somente da bilheteria dos filmes.
O autor nos mostra que apesar dos nomes e dos logotipos dos estúdios continuarem amplamente conhecidos, a Hollywood atual é bem diferente. Os antigos proprietários foram substituídos por empresas de capital aberto e seus executivos, pertencentes a
impérios corporativos de escala global, sendo os filmes apenas uma das fontes de receita.
Algo realmente mudou. Aparece então uma nova forma de consumir entretenimento,
obrigando os estúdios a gastar enormes verbas de publicidade e a formular ampla estratégia de marketing para a divulgação do filme em novos veículos de comunicação (tv
aberta e tv a cabo), buscando assim atingir um público agora cada vez mais diversificado.
Esse público começa então a trocar a sala de cinema pela comodidade do entretenimento doméstico, a tv aberta e a tv a cabo, despertando desejos e novas necessidades,
principalmente nas crianças e nos mais jovens. O fácil acesso agora ao DVD dos filmes,
somado ao poder de influenciar a decisão dos pais na escolha e compra de toda sorte de
produtos licenciados pelos estúdios de cinema, faz deles um dos públicos estratégicos mais
cobiçados e que, portanto, devem ser continuamente conquistados.
Ao longo do livro vemos quais são as transformações sofridas pelo negócio cinematográfico e, sobretudo, do entretenimento, que começa a ser alterado consideravelmente em razão das inovações tecnológicas e das novas fontes de receitas, mais vantajosas em relação à bilheteria dos filmes, como a distribuição de filmes, vendas de vídeo
e DVD, licenças para exibição para televisões dentro e fora dos Estados Unidos. Uma
outra modalidade de receita, já amplamente utilizada nos anos 1920 por Walt Disney,
com o personagem Mickey Mouse, é o licenciamento de produtos (CD´s, bonecos, imagens, etc.), que podem atingir futuros consumidores.
O declínio do poder dos estúdios, a partir do final dos anos 1950, abriu espaço
para a chegada de uma nova geração de executivos e agentes, trazendo novas perspectivas para o negócio do entretenimento, ampliando os horizontes comerciais e tecno-
166
Revista Communicare
Bruno Hingst
lógicos, dentre eles: David Sarnoff e o desenvolvimento de equipamentos eletrônicos
para televisão; Lew Wasserman, agente de atores e estrelas e produtor de programas
de televisão e Steve Ross, com uma nova visão do conteúdo e das formas de direito de
propriedade intelectual que multiplicava os negócios e lucros.
A inovação tecnológica trouxe para Hollywood Akio Morita da Sony e a nova plataforma digital para DVD e games e Rupert Murdoch com a transmissão de conteúdo
audiovisual pago por uma rede de satélites globais, da Ásia à América Latina. Por sua
vez, a Summer Redstone, na Paramount, antevê o poder do conteúdo para as novas mídias do estúdio de cinema e diversifica os negócios: cria a locadora de vídeo Blockbuster
e a tv paga MTV.
Todos esses homens imprimiram um novo contorno aos negócios ligados ao setor
do cinema e entretenimento, levando Hollywood ao modo de gestão e obtenção de lucros em moldes corporativos como se vê hoje.
Aqueles estúdios da década de 1920 e suas marcas se transformaram, depois de
diversas fusões, em grandes conglomerados do entretenimento: Fox, Viacom, NBC
Universal, Time Warner, Disney e Sony, detendo cada um deles uma enorme cadeia de
produtos audiovisuais, de rede de transmissão a venda de conteúdos.
Hoje, todo o processo para a realização de um filme, da produção até o seu lançamento, envolve uma complexa estrutura de negociação sobre direitos, que incluem
atores e artistas, roteiristas e diretores, sempre intermediados pelos agentes que discutem o valor de cachês, a divulgação do filme, as entrevistas e até o percentual de receita
sobre a bilheteria do filme.
O desenvolvimento das relações comerciais e pessoais de todos os profissionais
que estão vinculados à comunidade cinematográfica de Hollywood é permeado por um
conjunto de valores como prestígio e poder, aliados à discrição e fatores como a promoção dos produtores, dos atores, dos diretores e dos executivos de estúdio e, acima de
tudo, alinhado a uma estratégia ampla de marketing e relações públicas que valorize o
negócio cinema e seus produtos derivados.
A Hollywood do século XXI está sendo moldada, sem dúvida, numa combinação
da revolução digital, com inserções cada vez mais crescentes de recursos gráficos e visuais aliados à distribuição digital dos filmes diretamente por satélite e à progressiva e rápida eliminação, em alguns anos, do filme celuloide. O cenário para uma nova economia da
ilusão converge cada vez mais para as plataformas digitais (aparelhos de DVD, internet,
pay per view) e para a seleção dos conteúdos desejados, com as quais se podem fundir as
fronteiras entre o desenho animado, programas ao vivo e jogos interativos.
Por detrás da cultura da ilusão que moldou por décadas Hollywood são estabelecidas negociações concretas para abordar histórias, fatos, ou mesmo criar fantasias,
sempre com o cuidado de não gerar conflitos e prejuízos, pois para eles a negociação e
o lucro são a alma do negócio.
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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Resenha
Relações Públicas Estratégicas:
Técnicas, conceitos e instrumentos
Original por: Luiz Alberto de Farias
São Paulo: Summus Editora, 2011.
(309 pp.)
Por Mauricio Luis Marra
Relações Públicas Estratégicas: técnicas, conceitos e instrumentos
Nos últimos anos, principalmente por razões econômicas e culturais, as Relações
Públicas ganharam destaque no mundo corporativo, político e social. Como resultado
dessa evolução, também o mercado editorial tem refletido o desenvolvimento da atividade e do pensamento sobre o tema.
Dentre os novos e promissores autores brasileiros que se debruçam sobre a profissão e as bases teóricas que lhe dão suporte, Luiz Alberto de Farias se destaca, desde
que lançou seu primeiro livro, A Literatura de Relações Públicas: Produção, Consumo
e Perspectivas (Summus, 2004), no qual fez um amplo levantamento bibliográfico da
produção nativa nesse campo.
Agora, Farias se apresenta como organizador de uma coletânea de artigos escritos
por autores relativamente novos no cenário, mas com ampla e diversificada experiência na
área. Aí está o primeiro mérito da obra: temas contemporâneos, diversos e complementares, pela visão de profissionais atuantes no meio corporativo, acadêmico e da pesquisa.
O prefácio da Profa. Margarida Kunsch, a apresentação do Prof. Abraham Nosnik,
da Universidad Anáhuac (México), e a introdução do próprio Farias deixam claro que a
obra destaca a abordagem estratégica e de planejamento, o que demonstra a evolução
que a área teve nas últimas décadas, deixando de ser vista como suporte e passando ao
papel de protagonista.
Dividido em duas partes, o livro traz, primeiro, reflexões de base para o pensamento contemporâneo das Relações Públicas, e, em seguida, uma abordagem mais prática, ou
mais aplicada, sempre de maneira estratégica, dos conceitos e instrumentos da profissão.
Ao iniciar a leitura dos artigos, deparamo-nos com uma interessante retrospectiva
histórica das Relações Públicas na América do Sul, de autoria de Backer Ribeiro Fernandes, que traça a evolução e ajuda a contextualizar o momento atual da área, o que colabora para o melhor entendimento dos temas por vir, oferecendo ao leitor os principais
fatores externos às teorias, que levaram a essa postura cada vez mais estratégica.
Em seguida, Farias retoma e aprofunda a questão do planejamento e da estratégia
já pontuada na introdução à obra. Dando sequência, Júlio César Barbosa se debruça
sobre o discurso e a construção dos princípios organizacionais, mostrando, com exemplos, a dificuldade de se compreender e redigir missão, visão e valores de uma organização, dando-lhe uma identidade menos subjetiva.
O artigo de Maria José da Costa Oliveira passa pelo entendimento dos públicos
e seus desdobramentos, e nos conduz à reflexão da questão da cidadania, que pede indivíduos mais conscientes e participativos, e oferece uma visão mais contemporânea e
completa daquilo que chamamos de responsabilidade social.
Finalizando a primeira parte, Flávio Schmidt faz uma reflexão sobre identidade,
imagem e reputação, tendo como pano de fundo a questão da perda da noção de pertencimento no mundo virtual e globalizado em que vivemos, tanto por parte das empre-
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Revista Communicare
Mauricio Luis Marra
sas, quanto dos indivíduos que as compõem ou fazem parte da sociedade que as acolhe.
A segunda parte começa com outro artigo de Farias, agora sobre Assessoria de
Imprensa, mostrando não só a importância do fluxo de informações das organizações
para a imprensa, mas também o cuidado necessário de monitoramento daquilo que sai
na mídia tradicional e nas redes sociais.
Cínthia da Silva Carvalho aborda a questão de crises, perpassando pela identidade
e imagem das organizações, até chegar à construção e manutenção da reputação, o que
muitas vezes acaba sendo deixado de lado pelas empresas, preocupadas com ganhos e
percepções imediatistas.
Falando de eventos, Ethel Shiraishi Pereira mostra como essa área de atuação das
relações públicas está sendo vista cada vez mais sob uma perspectiva estratégica, fundamental no processo de fortalecimento e manutenção dos relacionamentos com os
diferentes públicos, e não mero instrumento pontual.
Retomando a busca de uma atuação excelente das Relações Públicas, proposta primeiramente por Grunig, principalmente no que se refere à sua dimensão simétrica e de
mão dupla (diálogo), Else Lemos volta seu olhar para a comunicação interna como possibilidade de aproximação entre a organização e seu público primeiro (seus funcionários), gerando uma verdadeira relação entre as partes, dentro da perspectiva real de uma
comunicação integrada que seja capaz de olhar para dentro e para fora da organização.
Tânia Câmara Baitello utiliza de sua vasta experiência profissional para abordar
a questão da Governança Corporativa como atuar das Relações Públicas, tema fundamental e contemporâneo, principalmente em vista dos processos de abertura de capital,
internacionalização de empresas brasileiras e fusões e aquisições.
Em uma interessante reflexão sobre os impactos do modelo consumista contemporâneo sobre os indivíduos e as organizações, Rudimar Baldissera resgata e aprofunda
o debate acerca da responsabilidade social e da sustentabilidade, como parte efetiva de
uma cultura organizacional que vai além dos modismos ou da mera relação econômica.
Ao tocar na questão do uso das publicações na gestão de relacionamentos, Ágatha
Camargo Paraventi resgata seus diversos tipos e usos, inclusive com dados quantitativos
quanto à sua aplicação hoje no Brasil, seguindo para uma proposta de roteiro de projeto
editorial, e finalizando em balanços sociais.
Sérgio Andreucci Jr. trabalha a questão da política de patrocínio cultural, lembrando sua importância para a construção de uma comunicação institucional, mas alertando para as dificuldades de se desenvolver projetos consistentes com a identidade e
coerentes com as necessidades e realidade da organização.
Paulo Salgado retoma um tema pouco discutido nos últimos anos, mas fundamental em uma sociedade democrática e a cada dia mais madura e moderna, ao falar da
atuação na área governamental.
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Relações Públicas Estratégicas: técnicas, conceitos e instrumentos
Ao questionar o papel das redes sociais e da comunicação digital via internet na
comunicação de Relações Públicas, Carolina Terra mostra o potencial e riscos desses
canais como instrumento de criação e manutenção de relacionamentos, indicando caminhos possíveis para se potencializar essa interação entre as organizações e seus públicos, cada dia mais construtores e participantes do que consumidores de conteúdos.
O último artigo, de Valéria Castro Lopes e Vânia Penafieri, oferece um resumo da
importância e principais características da pesquisa no campo das Relações Públicas,
principalmente recordando seu papel ao mesmo tempo como base e resultado do atuar
da área, seus diferentes objetivos e metodologias de aplicação.
Olhando para a obra como um todo, em certos momentos notam-se artigos que,
se reordenados, poderiam dar maior fluidez e sequência lógica à leitura, principalmente
para os novatos da área. Em outros momentos, alguns artigos acabam avançando sobre
temas já apresentados, sem que isso traga abordagens ou perspectivas diversas. Mas
nenhuma dessas questões compromete o resultado do livro.
Concluindo, podemos dizer que, se a obra não traz grandes novidades no que se
refere às teorias voltadas às Relações Públicas, isso não se deve aos autores, mas, sim,
às características do pensamento teórico de comunicação como um todo, que, como
sabemos, não evolui na mesma velocidade que o mundo econômico, político e social.
O grande mérito do livro está justamente no fato de trazer o que há de mais atual na
aplicação prática desses conhecimentos nas organizações, ajudando-as a se adaptarem e
consolidarem diante das incertezas dos mercados nacional e global. Portanto, ao trazer
uma visão ampla e diversificada das Relações Públicas e de seus encaminhamentos mais
recentes, sem com isso tornar-se extremamente teórica, temos uma obra útil a todos
aqueles que desejam conhecer melhor a profissão, ou queiram aplicá-la de forma mais
eficiente em seu ambiente de trabalho, além de ser um excelente material de apoio a
professores e alunos da área.
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Revista Communicare
Normas
Normas para o envio de originais
A Revista Communicare, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da
Faculdade Cásper Líbero, tem por objetivos promover a reflexão acadêmica, difundir a pesquisa e ampliar o intercâmbio científico com pesquisadores das diversas instituições de pesquisa.
Os autores podem enviar artigos cujos temas estejam relacionados
às seguintes linhas de pesquisa desenvolvidas no Centro: Comunicação:
Tecnologia e Política, Comunicação, Meios e Mensagens e Comunicação
e Mercado, como também de acordo com a temática do dossiê divulgada
no Call for papers.
Linhas de pesquisa:
Linha de Pesquisa 1: Comunicação: Tecnologia e Política
Ementa: Estuda os processos de comunicação no contexto das modificações tecnológicas e culturais proporcionadas pelas redes da sociedade
contemporânea, os novos formatos de rádio e televisão, a participação
dos meios de comunicação na constituição do espaço público e as políticas institucionais e/ou públicas de comunicação. Eixos temáticos: Políticas de comunicação; Tecnologia e cultura de rede; Rádio e Televisão
no universo das redes; Comunidades virtuais e processos colaborativos.
Linha de Pesquisa 2: Comunicação: Meios e Mensagens
Ementa: Estuda os conteúdos e/ou produtos veiculados pelos meios de
comunicação, a comunicação nos meios tradicionais e nas novas mídias,
as relações entre informação e entretenimento/espetáculo, o imaginário
e a cultura da imagem, bem como as formas de interação dos receptores/
usuários com os meios e suas mensagens. Eixos temáticos: Comunicação
e cultura visual; Jornalismo e espetáculo; Narrativas da contemporaneidade; Comunicação e Recepção.
Linha de Pesquisa 3: Comunicação e Mercado
Ementa: Estuda e/ou propõe respostas às demandas institucionais e mer-
Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011
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cadológicas contemporâneas nos campos de atuação da Publicidade, da
Propaganda e Marketing, das Relações Públicas e do Turismo; investiga o
processo de inserção dos profissionais formados pela Cásper Líbero nos
mais diversos setores da sociedade. Eixos temáticos: Cultura e Mercado
Publicitário; Ética e Comunicação Organizacional; Pesquisa Aplicada em
Turismo; A inserção social dos profissionais formados pela Cásper Líbero. A publicação destina-se à divulgação de trabalhos inéditos de pesquisadores e docentes da Faculdade Cásper Líbero e de outras instituições, na qualidade de autores e coautores, com a titulação mínima de
mestre, exceto artigos escritos em coautoria orientador e orientando. As
colaborações poderão ser apresentadas em forma de artigos, resenhas, levantamentos bibliográficos ou informações gerais, e estarão condicionadas à aprovação prévia da Comissão Editorial e do Conselho Consultivo.
Os trabalhos publicados serão considerados colaborações não remuneradas, uma vez que a Revista tem caráter de divulgação científica e
não comercial. Tanto o conteúdo quanto o compromisso com o ineditismo dos textos são de total responsabilidade de seus autores. O envio de
artigo para a Revista Communicare implica automaticamente autorização para publicação. Os direitos autorais de desenhos, ilustrações, fotografias, tabelas e gráficos que acompanhem os textos serão de exclusiva
responsabilidade do colaborador.
Artigos
1. Os artigos devem ser encaminhados para o e-mail communicare@
casperlibero.edu.br ou [email protected] com a identificação do
autor – local onde leciona, maior titulação e instituição pela qual obteve
o título;
2. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial,
tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 20 mil a 35 mil caracteres, incluindo espaços;
3. Sugere-se que o autor faça uma rigorosa revisão do texto antes de
enviá-lo;
4. Os textos devem ser enviados obedecendo à reforma ortográfica;
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Communicare
5. A estrutura do texto deve obedecer à seguinte ordem: Título, Resumo
(em 600 caracteres no máximo), Palavras-Chave; Corpo do Texto e Referências, sendo que o Título e o Resumo (Abstract) deverão ser acompanhados de versões para o Inglês e Espanhol;
6. Ilustrações e/ou fotografias deverão ser enviadas no formato TIFF ou
JPEG (arquivos .tif e .jpg), com tamanho mínimos de 2000 pixels de altura
e largura. A resolução não deve ser menor que 300 dpi;
7. Tabelas e gráficos devem ser numerados e encabeçados pelo seu título;
8. Desenhos, ilustrações e fotografias devem ser identificados por suas
respectivas legendas e pelo nome de seus respectivos autores;
9. Citações e comentários no corpo do artigo deverão ser inseridos ao
longo do texto. As citações devem seguir o padrão: (Sobrenome em caixa
baixa, ano da publicação: número da página);
Exemplo: (Zanini, 2000: 45)
10. As referências deverão estar dispostas no final do artigo. A lista de
referências segue a ordem alfabética, sendo que as normas para cada referência variam de acordo com a autoria e natureza das obras utilizadas
no trabalho. A Communicare adota como padrão o destaque em negrito.
No caso de obras com um único autor, é este o padrão:
AUTOR (SOBRENOME EM CAIXA ALTA, Inicial nome.). Título em Negrito (bold). Edição. Cidade: Editora, Data da publicação.
Exemplo:
URANI, A. Constituição de uma matriz de contabilidade social
para o Brasil. Brasília, DF: Ipea, 1994
11. Publicações em meio eletrônico devem conter o endereço eletrônico
e data de acesso no padrão: 01/01/2001.
Exemplo:
ALVES, C. Navio negreiro. [S.l.]: Virtual Books, 2000. Disponível
em: http://www.terra.com.br/virtualbooks/freebook/port/Lport/
navionegreiro.htm. Acesso em: 10/01/2002, 16:30:30.
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12. Publicações periódicas devem conter dados como volume(v), número
(n), páginas(p), mês e ano, sendo que apenas o nome da publicação vem
em negrito.
Exemplo:
BENNETTON, M. J. Terapia ocupacional e reabilitação psicossocial:
uma relação possível. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 11-16, mar. 1993.
13. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.
Resenhas
1. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial,
tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 2800 a 5600 caracteres, incluindo espaços;
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3. Solicita-se que a resenha seja acompanhada de um exemplar da obra
ou de imagem digitalizada da capa em formato tif, para publicação, de
acordo com as possibilidades de editoração;
4. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.
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