IMAGENS DO TEMPO - Pontificia Universidade Catolica de Minas

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IMAGENS DO TEMPO - Pontificia Universidade Catolica de Minas
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
Marina Andrade Câmara
IMAGENS DO TEMPO:
a inoperância como resistência na arte contemporânea
Belo Horizonte
2012
Marina Andrade Câmara
IMAGENS DO TEMPO:
a inoperância como resistência na arte contemporânea
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em
Comunicação
Social
“Interações Midiáticas” – Linha de pesquisa
“Linguagem e mediação sociotécnica” – da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito para obtenção do título
de Mestre em Comunicação Social.
Orientador: Eduardo Antonio de Jesus
Belo Horizonte
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
C172i
Câmara, Marina Andrade
Imagens do tempo: a inoperância como resistência na arte contemporânea /
Marina Andrade Câmara. Belo Horizonte, 2012.
116f.: il.
Orientador: Eduardo Antonio de Jesus
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.
1. Tempo (Filosofia). 2. Arte moderna – Séc. XX. I. Jesus, Eduardo Antonio
de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de PósGraduação em Comunicação Social. III. Título.
CDU: 115
Marina Andrade Câmara
Caixa baixa Centralizado
IMAGENS DO TEMPO:
a inoperância como resistência na arte contemporânea
3 cm
2 cm
Recuado a 7 cm
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em
Comunicação
Social
“Interações Midiáticas” Linha de pesquisa
“Linguagem e mediação sociotécnica” da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito para obtenção do título
de Mestre em Counicação Social.
__________________________________
Eduardo de Jesus (Orientador) – PUC Minas
____________________________________
Julio Pinto – PUC Minas
____________________________________
César Guimarães – UFMG
Belo Horizonte, 31 de agosto de 2012.
Ao João, com infinito amor.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é dedicado ao João, com quem descobrir o amor e a vida é pra mim a
maior dádiva do mundo. Agradeço a ele – ainda que todo agradecimento do mundo
pela sua contribuição neste trabalho sejam insuficientes – por alimentar,
incondicionalmente, todos os meus sonhos.
Agradeço imensamente ao vovô Gão – em memória – e à vovó Guida, de quem a
generosidade tornou possível que eu cursasse este mestrado.
À Manse e ao Túlio, formas de vida de tanta ternura e amor. Agradeço pela
dedicação e por tantos preciosos ensinamentos, especialmente pela inspiração
artística da minha amada mãe.
Ao Zino, à Jaque, ao Rafa e ao Fred que me apoiaram e me deram afeto sem
medida. É na determinação de vocês que me inspiro.
Ao meu irmão Felipe, pelo seu amor e doçura imensuráveis. À Rafa, pela preciosa
presença em nossa família.
Aos meus sogros Mirian e Adriano, pela imensa força que me dão e transmitem a
todos. Aos queridos cunhados Guinho e Ju, Pel e Roberta, que compartilham com
tanta alegria e entusiasmo cada conquista minha.
À todas as minhas tias e aos meus tios, pelo apoio e carinho. Às minhas primas e
primos pela tão grande alegria.
Aos verdadeiros amigos – especialmente ao Dani Toledo – e às novas amizades
com que fui presenteada ao longo do destes últimos dois anos.
Aos professores do mestrado e, especialmente ao Julio Pinto por ter, não só aceito
meu pedido de transferência, mas por acolher a mim e aos meus vários devaneios,
tendo, por fim, declarado “que bom que aceitamos sua transferência”. Como foi
importante pra mim ouvir isso!
Ao Eduardo de Jesus, meu orientador, pelas importantes indicações; e ao César
Guimarães, pela enorme contribuição.
Obrigada por participarem desta minha busca.
A ingaia ciência
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
(Claro Enigma, Carlos Drummond de Andrade, 2008)
RESUMO
A presente dissertação corresponde a um exercício de identificação, por meio da
arte contemporânea, de modos de resistência à preponderante representação
temporal que temos hoje: uma sequência linear causal e homogênea chamada
história, promovida pela anulação da dádiva. Se a arte é capaz de resistir ao hiato
formado entre a nossa experiência e as representações do tempo que excluem seu
caráter múltiplo, no qual a repartição “passado, presente e futuro” inexiste, essa
resistência se dá pelo exercício, por meio de propostas estéticas, de uma
inoperância sem fins de poder. A partir dos problemas estéticos de natureza política
trazidos pelas obras aqui analisadas, recuperamos operadores encontrados por
meio de incursões teórico-especulativas no âmbito da filosofia sobre a questão do
tempo, de cujas perspectivas fazemos uso no intuito de expandir o horizonte das
análises empreendidas. Em um movimento anacrônico, verificamos as implicações
que conceitos desenvolvidos, por exemplo, contemporaneamente à criação da
cosmogonia judaico-cristã, produzem, todavia, ainda hoje. As obras analisadas são:
Song for Lupita (Mañana), The Loop e The last Clown, de Francis Alÿs; Confronto e
O Século, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado; Cosmococa, de Hélio Oiticica
e Neville D‟Almeida e Air-Cushioned Raid, de Anri Sala.
Palavras-chave: Experiência do
Contemporânea. Inoperância. Loop.
tempo.
Representação
do
tempo.
Arte
ABSTRACT
This work is a proposal to identify, using contemporary art, ways of resistance
against the dominant temporal representation we have today: a linear sequence,
causal and homogeneous called history, which is promoted by the annulment of the
boon. If art is able to resist the gap formed between our experience and
representations of time which excludes its multiple character, in which the division
“past, present and future” does not exist, this resistance is consummated on the
exercise, by aesthetic proposals, of an ineffectiveness powerless finality. From the
aesthetic problems of a political nature brought by the works reviewed here, we
recovered operators found through theoretical-speculative incursions in the
philosophy sphere about the time issue whose prospects we use in order to expand
the horizon of the analyzes undertaken. In an anachronistic movement, we verify the
implications that concepts developed, for example, contemporaneously to the
creation of the Judeo-Christian cosmogony, produce, however, even today. The
works analyzed are: Song for Lupita (Mañana), The Loop and The Last Clown, by
Francis Alÿs; O Confronto and O Século, by Cinthia Marcelle and Tiago Mata
Machado; Cosmococa, by Hélio Oiticica and Neville D'Almeida, and Air-Cushioned
Raid by Anri Sala.
Keywords:
Time
Experience.
Ineffectiveness. Loop.
Representation
of
time.
Contemporary
Art.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Francis Alÿs – Estudos de Song for Lupita, 1, 2 e 3.................................. 30
Figura 2 - Francis Alÿs - The Loop, 1997 ................................................................. 36
Figura 3 - Francis Alÿs – frames de The Last Clown ................................................ 42
Figura 4 - Objetos de cena de O Século .................................................................. 51
Figura 5 - Frames espelhados de O Século .............................................................. 52
Figura 6 - Confronto .................................................................................................. 66
Figura 7 - Cosmococa - Program in Progress, CC1 Trashiscapes ............................ 84
Figura 8 - Cosmococa - Program in Progress, CC2 Onobject ................................... 88
Figura 9 - Cosmococa - Program in Progress, CC5 Hendrix-War ............................. 90
Figura 10 - Tlatelolco Clash, 2011............................................................................. 99
Figura 11 - Air-Cushioned Ride ............................................................................... 106
LISTA DE ABREVIATURAS
I.e. – Isto é
TBA – Time Based Art
CC – Cosmococa
ACR – Air-Cushioned Ride
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 21
2 FAZENDO SEM FAZER ........................................................................................ 28
2.1 A inoperância cínica.......................................................................................... 32
2.2 Movimento circular ........................................................................................... 35
2.3 O que mantém o loop ........................................................................................ 39
2.4 The Last Clown e a inoperância da inoperância autêntica ............................ 41
2.4.1 In-economia .................................................................................................... 43
2.5 A relação entre espaço fechado e extracampo em TBA ................................ 44
3 INSTRUMENTOS DE INOPERÂNCIAS E RESISTÊNCIA .................................... 50
3.1 O Século ............................................................................................................. 50
3.2 Indiscernibilidade da tripartição temporal ...................................................... 55
3.2.1 A potente fraqueza dinâmica ......................................................................... 57
3.3 A representação da [i]mensurabilidade do tempo ......................................... 60
3.4 Resistência ........................................................................................................ 62
3.5 O blackout político de Confronto ..................................................................... 64
3.6 O desejo estéril .................................................................................................. 69
3.7 A História como res gestae .............................................................................. 80
3.8 Cosmococa – programa in progress ............................................................... 82
3.8.1 klēsis, Beruf .................................................................................................... 85
3.9 Graça, a dádiva soberana ................................................................................. 94
4 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA .............................................................................. 97
4.1 A ausência imprescindível ............................................................................. 102
4.2 Música e tempo ............................................................................................... 104
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 111
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 113
21
1 INTRODUÇÃO
Experimentamos o tempo, mas não temos a sua representação. Giorgio
Agamben (2000) 1 , apropriando-se desta ideia do linguista Gustave Guillaume,
apresenta construções de ordem espacial criadas para que fosse possível imaginar
formas para o tempo. A representação que rege hoje, com exclusividade, é uma
figura retilínea, uma sequência numérico-progressiva que simula uma evolução e um
desenvolvimento.
Existe uma incongruência – sobre a qual, aqui, dedicamo-nos – entre a
experiência que temos e a construção espacial adotada para a representação
temporal. Enquanto nossa experiência do tempo é absolutamente heterogênea, na
qual misturam-se as supostas repartições entre passado, presente e futuro,
coexistindo e tornando-se indistintas, as subdivisões criadas pela preponderante
representação temporal insistem em alocar, separada e sequencialmente, os
acontecimentos conforme os conceitos de antes, agora e depois. A organização que
determina esta regente representação subjaz as nossas vidas e nossa vivência do
mundo, que, por sua vez, tornou-se, conforme veremos, uma sequência de fazeres
inférteis, cíclicos ou, conforme profere o artista belga Francis Alÿs, fazeres que não
fazem.
Recorremos a conceitos do âmbito da filosofia a partir da solicitação dos
problemas estéticos das seguintes obras: Song for Lupita (Mañana) e The Last
Clown, de Francis Alÿs; Confronto e O Século, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata
Machado; Cosmococa, de Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida, e Air-Cushioned Ride,
de Anri Sala. Verificamos que estas obras evocam a sensação do tempo de um
modo que resiste à ideia de linearidade, ao apontar, ora para a sua
heterogeneidade, ora para a sua problemática representação e suas graves
consequências.
Esta práxis indiferenciada (COCCIA, 2008) diz sobre uma profusão de fazeres
não consequentes de um desejo. Estes fazeres mecânicos, para os quais estas
obras nos chamam a atenção, há muito vem sendo usados como instrumento de
dissimulação e exercício do poder, simultaneamente. Os estudos filológicos de
Giorgio Agamben demonstram de que modo conceitos como a glória, o hōs me –
1
Tivemos acesso à edição italiana, cuja tradução do título seria: O tempo que resta. Um comentário à
Carta aos Romanos.
22
“como não” –, a graça e, por fim, a katargéō operam como legisladores da
genealogia teológica da economia e do governo, suspendendo, por sua vez, a lei,
i.e., a tornando inoperante com fins de um projeto de poder. São dispositivos que
caracterizam uma oportuna suspensão da vigência da lei para, justamente por meio
desta neutralização, ter ainda mais poder do que a própria lei, inclusive o poder de
suspendê-la e substituí-la.
Os operadores – que, como veremos, mais que operar, inoperam – glória,
graça e “como não” são emblemáticos no modo de instituir a lei em uma aparente
suspensão de seu uso. Tais conceitos, quando colocados em prática, articulam-se
diretamente à heterogeneidade do tempo messiânico como um profícuo modo que o
judaísmo teria encontrado para aproximar a experiência religiosa da experiência
humana do tempo.
A graça (charis) garante a manutenção do círculo ritualístico da dívida pela fé
(pistis – fides). A fé salva e torna não-devedores aqueles que depositam sua confiança no messias, permitindo o prosseguimento do ciclo ritualístico da dívida em si.
Conforme nos indica Giorgio Agamben (2000), no intuito de restituir à fé a noção de
prestação gratuita e fazer com que ela pudesse cumprir sua função de salvação,
São Paulo vinculou ao sentido da fé, a graça, ou seja, a gratuidade. Assim,
aparentemente, não estaria endividado quem depositasse sua fé, sua con-fiança em
outrem. Vale notar que, assim, a dívida é colocada como algo expressamente
inerente à todos, enquanto a graça seria apenas uma forma falaz de,
aparentemente,
arrefecê-la.
A
graça
é,
portanto,
o
operador
que
torna
enganosamente inoperante o débito no círculo ritualístico da dívida. Assim, qualquer
pretensão de contraprestação é excedida pela graça, já que ela é o que excede, a
exceção, não tem preço. A graça coloca-se assim no papel da lei, ou de uma
suspensão desta, em um movimento que é típico da soberania.
Vejamos o similar movimento realizado por outro [in]operador, a glória. Na
teologia, o eterno movimento circular representa a perfeição e a aproximação do
divino na forma da absoluta imobilidade. Este movimento “imóvel”, idêntico e
imutável obnubilaria o ócio que instaurar-se-ia após o Juízo Final, não fosse pela
oportuna substituição do exercício de governo – que, naquele contexto, não mais
seria necessário – pela glória que, assim, ocupa o lugar daquilo que é inerente à
natureza humana, o ócio. Este, por sua vez, não deve jamais ser verificado pois ele
indica a não necessidade do governo como exercício do poder. O ócio é a
23
inoperância autêntica, é o vazio que deve ser substituído pela glória para manter o
funcionamento da máquina de poder. A glória é, portanto, um dos operadores que
fazem com que o poder não desapareça, mas prevaleça na forma do seu não
exercício. Sabemos, porém, que independentemente de ser ou não obnubilado por
este ou aquele [in]operador, o poder prescinde de sua aplicação. Seu exercício é
realizado a partir, simplesmente, de sua existência.
A teoria derridiana (DERRIDA, 1996) sobre o círculo ritualístico da dívida diz
sobre as trocas que configuram o círculo econômico. Estas trocas, não obstante
sejam um movimento repetitivo de endividamento e pagamento que, por sua vez,
endivida ad infinitum, nos fazem acreditar que, ao fazê-las, deslocamo-nos,
evoluímos em direção a alguma melhoria, a algum aprimoramento. Logo, o círculo
ritualístico da dívida traveste-se na forma de uma linha, ou melhor, de uma seta que
aponta para o futuro. Um modo exemplar para compreendermos este movimento
são as mensurações temporais na forma dos dias e meses, que se repetem,
conforme se dava na Grécia, enquanto os anos, por sua vez, avançam em uma
sequência numérico-progressiva, segundo o nascimento de Cristo, o messias.
Esta dissimulação do deslocamento se dá a partir do uso de uma série de
suspensores conceituais que operam por meio da neutralização de significados, em
vista de um projeto de exercício de poder. É uma espécie de inoperância cínica da
qual valem-se os discursos dominantes, justamente para permanecerem dominantes
sem, contudo, transparecê-lo, para que não seja flagrante o mecanismo que tentam
obnubilar.
Partimos, em contraponto, do pressuposto apresentado por Agamben (2008),
em momento distinto, segundo o qual a tarefa da verdadeira revolução é, antes de
“mudar o mundo”, “mudar o tempo”, e, além disso, da afirmação deleuziana de que
“criar é resistir”. Verificaremos, pois, como foram usados os conceitos que articulam
a inoperância para compreender de que modos a arte produz outras formas de lidar
com o tempo, identificando a quais estratégias de poder ela resiste e, finalmente,
como ela, de fato, inopera. Tendo em vista que a inoperância é tratada enquanto
estratégia de poder, podemos ler, nas disposições artísticas, suas formas de se
contrapor a estas estratégias.
Algumas obras, como as que aqui trazemos, conseguem exercer,
esteticamente, um modo de resistência a partir da instituição de irrupções nos
círculos ritualísticos de que fala Derrida. Se neles ocorrem as trocas que
24
propulsionam a economia, também as equiparações entre significante e significado
constituem, por sua vez, trocas e simulam, no ritual circular, a ideia de um
deslocamento.
O artista Francis Alÿs, em suas obras em loop, traz ações aparentemente
banais do cotidiano, precisando, na sua repetição, a práxis indiferenciada de que
nos fala Emanuele Coccia e, ao mesmo tempo, emperrando o seu prosseguimento.
Ou seja, Alÿs, ao dar a ver que a profusão de fazeres – em que se transformou a
natureza humana – não opera um deslocamento, como querem os [in]operadores à
serviço de projetos de poder, impede que tal profusão prossiga, transformando-a,
pelo loop, em um momento infinito de pura repetição.
Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, em O Século, 2011, realizam um
interessante
movimento
de
espelhamento
temporal,
explorando
questões
relacionadas a conceitos como acúmulo e dispêndio. Editado com um uma cisão que
divide o vídeo em duas partes com durações iguais, se tem um blackout que marca
tal cisão e a partir do qual o mesmo registro mostrado até então é repetido em flip2.
A obra demonstra que o único deslocamento que a práxis indiferenciada poderá
promover é o seu movimento cíclico, ou seja, sua repetição, tal qual uma
incapacidade de prosseguir que é inerente ao seu funcionamento.
Em Confronto, 2005, Cinthia Marcelle interrompe dois fluxos: o da vida e o do
espectador, em uma legítima ação política de pura inoperância que se transforma
em pura potência, um autêntico vir-a-ser.
A Cosmococa – CC –, 1973, com seu aspecto lúdico, firma a profusão de
fazeres inférteis, substituindo a lógica linear por momentos de “desperdício” de
tempo. É verificada por Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida a necessidade da
restituição do ócio, que, segundo Coccia, fora extirpado dos homens paralelamente
à transformação do tempo em história. Os “quasi-cinema” a que assistimos nas CCs
são narrativas fragmentadas que se opõem diretamente à linearidade das narrativas
cinematográficas clássicas, às histórias.
Finalmente, Anri Sala, em sua obra Air-Cushioned Ride, 2006, faz com que a
pura potência opere por aquilo que o artista atribui à música, que seria, segundo ele,
capaz de resistir a significados. Entendemos que se trata da música conforme
utilizada em seus trabalhos e que a resistência infligida opera em relação à
2
Este efeito, em edição de vídeos, equivale ao espelhamento de um ou mais frames do vídeo, no
sentido oposto, horizontal ou verticalmente.
25
exclusividade de um único significado dado. A música que Sala escuta neste vídeo é
barroca, polifônica, remetendo à multiplicidade, que, por sua vez, se torna ainda
mais rizomática quando sofre a interferência de outras músicas e sons que se
emaranham no tempo e no espaço, à medida em que o artista se desloca. Anri Sala,
ao lançar-se no devir das ondas sonoras que se interpelam e se sobrepõem, indica
que é no tempo da experiência que se encontra a multiplicidade. O movimento
circular que o artista realiza por meio do seu veículo não alimenta nenhum motor de
trocas – apesar de os veículos servirem para alimentá-la. Pelo contrário, é feito para
corroborar o devir-ondas sonoras, em toda sua imprevisibilidade, constituindo-se
como um movimento conduzido pela multiplicidade.
O conceito que será nosso fio condutor, capaz de curto-circuitar o movimento
loopado do círculo econômico travestido de linha, é a inoperância (AGAMBEN,
2007). Se esta inoperância funciona, por um lado, como exercício de poder, por
outro, ao ser exercida no contexto da arte, ela é a resistência ao poder em si. Não
uma resistência que se vale da linearidade do tempo enquanto suporte para sua
manifestação, mas que emperra esta sequência de fazeres ou dá a ver sua
sequencialidade justamente para indicar onde resistir.
A necessidade de resistir por meio desta autêntica inoperância parte da
insatisfação com as implicações que as representações distantes da nossa
heterogênea experiência temporal exercem sobre nossas vidas.
Ao ser adotada como representação de um elemento como o tempo, que é
imensurável, múltiplo, heterogêneo e invisível, a sequência linear nos distancia da
nossa própria natureza humana: o ócio, condição na qual coexistimos com o tempo,
ao invés de exercer infinitas tentativas de dominá-lo, fazê-lo passar ou acumulá-lo.
Precisamos, portanto, que a inoperância será aqui afrontada sob duas
distintas conotações paradoxais. De um lado, temos a inoperância enquanto
estratégia de poder, de seu exercício e da dissimulação e suspensão soberana da
lei. Esta é a inoperância cínica que captura a multiplicidade de tempos, convertendoa em dívida e soma. Ela está, como dissemos, no âmbito da soberania e da
repetição que obnubila a práxis indiferenciada (justamente para mantê-la) e faz
perpetuar seu mecanicismo e sua infertilidade.
Do outro lado, está a inoperância exercida pelas obras de arte, gerada pela
não equiparação de significados, exacerbando a potência do devir que privilegia a
experiência da multiplicidade de tempos como dispêndio, como tempo jogado fora. A
26
este movimento que não tenta falsear o caráter destrutivo do tempo e mostra a
práxis diferenciada, chamaremos de inoperância autêntica.
No segundo capítulo serão apresentadas, a partir da perspectiva de Boris
Gorys, as características da Time Based Art, e as implicações trazidas pela
repetição em loop das obras que deste gênero fazem parte. Trazendo a obra Song
for Lupita (Mañana) do artista Francis Alÿs, veremos porque esta repetição pode ser
chamada de “pura” e de que modo ela, assim como a dádiva, são capazes de
resistir, irrompendo o “círculo ritualístico da dívida”.
Veremos, pela perspectiva de Giorgio Agamben, como o [in]operador glória
funciona ao colocar em uma pseudo suspensão, o ócio. Na análise da obra Song for
Lupita será possível identificar que o deslocamento, o avanço na linha temporal é
uma mera ilusão, e que o único deslocamento que empreendemos com nossa práxis
indiferenciada é a retroalimentação do círculo ritualístico da dívida. Em uma relação
entre a obra The Loop, do mesmo artista, e uma rápida incursão pelo conto Bartleby,
o escrivão, de Herman Melville, poderemos identificar a presença da ausência que
resiste a questões de ordem temporal.
A resistência infligida pela obra – também de Francis Alÿs – The Last Clown,
por sua vez, passa pela repetição da própria inoperância. Repetindo o ato de
irromper um círculo representado pelo acaso, o artista insere o inesperado na ordem
do aguardado, em uma dupla evidenciação que resiste às características estéreis da
práxis indiferenciada.
Finalmente, sob a perspectiva de Gilles Deleuze sobre o enquadramento e o
extracampo, poderemos compreender como as obras em Time Based Art, dando a
ver o invisível do tempo, problematizam a sua linearização.
No terceiro capítulo, analisaremos, inicialmente, a obra O Século, de Cinthia
Marcelle e Tiago Mata Machado. Na análise, identificaremos as reverberações do
modo como a obra foi editada: em um flip que replica, na segunda metade do vídeo,
a primeira. Assim como as obras de Francis Alÿs e o conto Bartleby, tanto o trabalho
O Século, quanto Confronto – segunda obra da artista que analisaremos –, dizem
sobre a práxis estéril em que transformou-se a natureza humana. Associaremos às
estratégias estéticas de resistência autêntica encontradas nas obras de Cinthia
Marcelle, ainda sob a perspectiva de Giorgio Agamben, estratégias de inoperância
que são colocadas em vigência sob estratégias de dominação, poder e governo. A
elas serão associadas, ainda, a discussão de Jacques Derrida acerca do resto e
27
aprofundamentos sobre a noção de resistência, a partir de uma entrevista a
Deleuze. Poderemos ver, por meio do blackout com o qual a artista finaliza seu
vídeo Confronto, o teor político da obra, e como esta política consegue resistir a
linearidades discursivas presentes na História dos Feitos Ilustres, fruto da
temporalização do tempo.
Evocamos também a obra Cosmococa, de Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida,
um segundo retorno à questão do ócio como característica que teve que se extirpar
do homem para que fosse possível transformar o tempo em história, segundo
noções de Emanuele Coccia. E recorremos mais uma vez à filosofia de Agamben
para verificar qual o percurso cumprido para que o ócio fosse elidido de nossa
natureza, e como a graça simula algo que pode não tornar-nos devedores e, assim,
permanecer no ciclo do endividamento que alimenta a linearização do tempo.
Finalmente no quarto capítulo poderemos analisar a obra Air-Cushioned Ride,
do artista albanês Anri Sala. Veremos como a estratégia de inoperância de Sala,
nesta obra, é aplicada sob diversas entradas: ao afirmar que a música resiste a
significados, Sala utiliza-a como puro som, esquivando-se do pressuposto existente
acerca da linguagem como narrativa. O uso que Sala faz do áudio, nesta obra, é
pré-histórico, pois é uma utilização que explora a não equiparação que o áudio é
capaz de realizar, não chegando a ser capturado pelo círculo ritualístico das trocas e
ficando à margem da história linear causal.
28
2 FAZENDO SEM FAZER
Em um ensaio publicado em 2010 e intitulado Camaradas do tempo, o crítico
de arte e pesquisador alemão Boris Groys levanta o problema da nossa relação com
o tempo. A partir da crítica da presença formulada por Jacques Derrida, Groys,
questiona-se “como é que o presente manifesta-se em nossa experiência cotidiana
[...]?” (GROYS, 2010, p.120). Parafraseando Ernst Jünger, Groys diz que a
modernidade teria livrado-se da pesada bagagem do passado para, tendo então
tornado-se leve, conseguir passar pela estreita passagem do presente que, por sua
vez, ainda segundo o autor, era visto, durante o período da modernidade, como algo
que deveria ser superado em nome do futuro, não atrasando sua chegada.
Um dos slogans da era soviética era “Tempo, para frente! Ilf e Petrov, dois
romancistas soviéticos dos anos 1920, apropriadamente parodiaram esse
sentimento moderno com o slogan “Camaradas, durmam mais depressa!”
De fato, naqueles tempos, seria preferível passar o presente dormindo –
cair no sono pesado e acordar nos momentos finais do progresso, depois da
chegada do futuro irradiante. (GROYS, 2010, p. 120)
A contemporaneidade, por sua vez, não passaria, segundo Groys, de uma
reconsideração dos projetos modernos. Ele afirma que hoje vivemos num tempo de
indecisão, de adiamento. Não concordarmos com esta perspectiva. Acreditamos que
o tempo, ainda hoje, é, conforme afirma Derrida, o tempo das trocas que
caracterizam o ciclo ritualístico da dívida. A dinâmica temporal contemporânea é, a
nosso ver, uma exacerbação das dinâmicas das trocas econômicas que tiveram um
primeiro momento de maior exacerbação com a Revolução Industrial e não cessam
de se intensificar, exponencialmente, em nossos dias.
Não pretendemos, entretanto, delongarmo-nos, agora, neste ponto e, sim,
concentrarmo-nos na contribuição que Groys traz, ao apresentar, sob a perspectiva
da chamada Time Based Art – TBA –, um modo específico da produção deste
gênero artístico contemporâneo de se relacionar com o tempo. Para ele, as obras
em TBA tematizam o tempo não produtivo, a “perda da perspectiva histórica infinita
[geradora do] fenômeno da improdutividade, tempo perdido” (GROYS, 2010, p. 122).
As produções elaboradas em TBA são, em grande parte, vídeos editados em loop
que tematizam o “tempo não produtivo, desperdiçado, não histórico, excedente [...]”
(GROYS, 2010, p.122) por meio da narrativa – muitas vezes não linear ou
29
fragmentada – de atividades que transcorrem no tempo, sem, contudo, levar à
criação de nenhum produto definido. Precisemos, porém, que o excedente temporal
gerado pelas obras em TBA deve-se às atividades narradas, mas sobretudo ao seu
modo de edição, ou seja, o loop, a repetição circular.
Groys usa como exemplo, em seu ensaio, a obra Song for Lupita (Mañana),
1998, de Francis Alÿs. Nesta animação, uma mulher derrama água de um copo para
o outro várias vezes, sem variação, em loop. “Fazendo sem fazer”, precisou Alÿs3.
Nesta atividade aparentemente banal estão imbricadas questões de natureza
ontológica. Este fazer sem fazer, do qual fala o próprio artista, é, segundo o filósofo
Emanuele Coccia, sinônimo daquilo em que se transformou nosso ser no mundo, a
nossa atual condição: o fazer define o ritmo do próprio ser. A partir da cosmogonia
judaico-cristã, o homem, destituído do ócio que caracterizava a vida pré-histórica, ou
seja, a vida do tempo não temporalizado do paraíso, passa a viver para a fadiga e o
trabalho. Como punição pela desobediência de um comando divino – o de não
comer um dos frutos do jardim –, toda a espécie humana passará a viver na sombra
de seu desejo, fazendo aquilo que não deseja; viverá em uma repetição da práxis
indiferenciada, em busca de uma suposta salvação para a qual aponta a seta do
tempo histórico.
É este, ainda hoje, o fazer em que se resume nossas vidas. Ainda que não
alimentemos este fazer em vistas de uma salvação messiânica ou pós Apocalipse, o
fazemos, de todo modo, em busca de uma melhoria, um desenvolvimento, de um
acúmulo que se mostra alcançável somente por meio deste encadeamento de
fazeres, ou seja, da práxis indiferenciada – exercida por Lupita. O trabalho é a práxis
indiferenciada, e a aposentadoria, a previdência, o messianismo, o paraíso
contemporâneo, quando seremos agraciados com o ócio.
3
“[...] doing withou doing”. Francis Alÿs. A story of Deception: room guide, Song for Lupita.
30
Figura 1 - Francis Alÿs – Estudos de Song for Lupita, 1, 2 e 3
Legenda: Estudos para Song for Lupita, 1998 (montagem nossa).
Fonte: ACTIVIDAD CULTURAL DEL BANCO DE LA REPÚBLICA (2007).
31
A ação infinitamente desenvolvida pela mulher na animação não gera,
efetivamente, nenhum produto, não tem uma finalidade. Se, para manter a roda do
sistema girando, devemos permanecer no repetitivo moto práxis, que, contudo,
somente simula um deslocamento e, na realidade, desloca, em loop, somente o
circulo ritualístico do endividamento, o movimento desenvolvido por Lupita estaria
em perfeita sintonia com nosso ritmo de vida – uma profusão de fazeres, de práxis
indiferenciadas –, não fosse por uma crucial diferença.
De um lado, temos a simulação do desenvolvimento, em que o círculo
ritualístico da dívida parece neutralizar e obnubilar o retorno do idêntico,
equiparando objetos e valores nas trocas, preenchendo os significantes com um
significado – aquele do acúmulo que leva ao progresso e elide o caráter destrutivo
do tempo. No pólo oposto, temos o loop em TBA, que exerce uma inoperância que
não simula a geração de melhorias – deslocamento –, mas simplesmente irrompe o
círculo econômico: não diz que produz algo a partir do ciclo de fazeres e não vincula
causa e efeito – não equipara o ato de despejar água a um significado. A única coisa
que despejar água de um copo ao outro causa é a não progressão. Esta é a
autêntica inoperância. A atividade de Lupita denuncia que o nosso fazer não leva a
lugar algum. É uma operação que, paradoxalmente, não age. Como disse Alÿs, é um
fazer sem fazer. Esta denúncia “silenciosa” é o que torna a ação de Lupita – ainda
que seja uma repetição do mesmo ato – diferente do fazer estéril, que não fecunda
seu desejo em nada. Se me permitem o anacronismo, estéril como foi a obediência
de Adão até antes do evento da expulsão do paraíso: uma obediência que fazia
viger somente as leis que representam a manutenção da obediência: causa e efeito
em loop. Como se distanciar-se do seu instinto, de seu desejo – de comer o fruto –
pudesse levar a uma elevação do ser humano e não à elevação do poder que se
perpetua, dizendo que nos eleva. O fazer de Lupita, por sua vez, sem simular
qualquer melhoria, repete um ato aparentemente vazio, explicitando-o para
demonstrar como ele não leva a nada.
Daremos agora, um passo atrás, a fim de verificar as implicações da noção do
retorno.
32
2.1 A inoperância cínica
O linguista Gustave Guillaume desenvolveu teorias utilizadas por Agamben
em mais de um livro4, dentre as quais ressaltamos o aforismo: “[...] a mente humana
tem a experiência do tempo, mas não a sua representação e deve por isso recorrer,
para representá-lo, a construções de ordem espacial” (AGAMBEN, 2000, p.66,
tradução nossa)5. As imagens às quais recorremos, seja o círculo – na Grécia Antiga
–, seja a seta, a partir do Cristianismo, são estas construções de ordem espacial às
quais devemos recorrer a fim de imaginar o tempo, mas também, em alguns casos,
afim de dominá-lo.
A ideia de retorno é inerente ao ciclo econômico e vincula-se diretamente ao
círculo como construção espacial que representa o tempo, conforme nos traz
Derrida (1996) em uma citação de Heidegger sobre Hegel e Aristóteles, segundo a
qual a circularidade do tempo estaria, por fim, acenada desde o período helenístico:
“Aristóteles,
fiel à tradição, coloca em relação chronos e sphaira, Hegel sublinha a
“circularidade” (Kreislauf) do tempo [...]” (DERRIDA, 1996, p. 10, tradução nossa)6.
Agamben relaciona a concepção da antiguidade greco-romana do tempo –
fundamentalmente circular e contínua – ao vínculo entre circularidade e eternidade,
ou seja, àquilo que permanece idêntico, imutável (AGAMBEN, 2008, p. 112). Tal
repetição do movimento circular e seu eterno retorno seriam, de tal sorte, “a
expressão mais imediata e mais perfeita (e, logo, mais próxima do divino) daquilo
que, no ponto mais alto da hierarquia, é absoluta imobilidade” (AGAMBEN, 2008, p.
112). Esta repetição do movimento circular, além de configurar o ponto mais alto da
divindade, é o que caracteriza as trocas da economia e o nosso fazer – nossa práxis
indiferenciada –que as impulsiona.
Esta noção da repetição como retorno do idêntico subjazido pela expressão
da perfeição está indicada nas pesquisas do filósofo italiano, definidas como uma
genealogia teológica da economia e do governo cujos paradigmas estariam em
todas as esferas da vida social (AGAMBEN, 2007). A questão coloca-se a partir do
4
A máxima compare em Il tempo che resta, com indicação à Gustave Guillaume, e em Infância e
História, já sem a referência ao linguista francês. Seu livro ao qual Agamben se refere é Temps et
verbe, que reúne dois estudos publicados em 1929 e 1945.
5
[...] la mente umana ha l‟esperienza del tempo, ma non la sua rappresentazione e deve perciò
ricorrere, per rappresentarlo, a costruzioni di ordine spaziale.
6
Aristotele, fedele alla tradizione, pone in rapporto chronos e sphaira, Hegel sottolinea la „circolarità‟
(Kreislauf) del tempo [...].
33
contraste entre a ociosidade divina – que se instaura após o Juízo Final, tendo os
eleitos sido beatificados – e a perene atividade que devem realizar os diabos com a
punição dos condenados: a eterna repetição de um trabalho, novamente, a práxis
indiferenciada, o fazer como ritmo de vida. Ao Deus, aos anjos e aos beatos eleitos
é permitida a ociosidade, contanto que ela seja respaldada e devidamente ocultada
pela glória, de modo que esta última não permita que seja visível o ócio. Fica aqui
nítida a discrepância entre a inoperância que dissimula e a inoperância que
denuncia. A glória é o [in]operador que, pela sua luz ofuscante (AGAMBEN, 2007),
não permite que a verdadeira inoperância, que é o ócio, seja vista. Já a inoperância
autêntica realizada pelo movimento de Lupita, que também é a repetição do
movimento circular e seu eterno retorno, não pretende ser “a expressão mais
imediata e mais perfeita (e, logo, mais próxima do divino) daquilo que, no ponto mais
alto da hierarquia, é absoluta imobilidade”, mas sim inoperar de fato, elidindo a
necessidade de simular qualquer pseudo elevação a partir de sua práxis
indiferenciada.
A interrupção da atividade divina – que configura o ócio – e a não operação
tanto dos beatos eleitos quanto dos anjos indicam um Reino sem qualquer governo,
o que é, para os teólogos, inconcebível. Para evitar a crise teológica, ou seja, o
desaparecimento da necessidade da aplicação do poder divino, é instituída a
separação entre o poder e seu exercício, de forma que o primeiro não
desaparecesse, mas simplesmente não fosse exercido, “assumindo assim a forma
imóvel e resplandecente da glória [...]” (AGAMBEN, 2007, p. 41). Aqui está a
inoperância cínica, a inoperância como projeto de poder. O poder não existe sem
sua forma de exercício – pelo contrário, exerce-se ao existir. Esta inoperância na
forma de glória permite que o ócio não seja admissível senão ao “mais alto ponto da
hierarquia divina”. Aos homens, restatia o fazer.
Os anjos, figuras que representam os instrumentos do governo divino no
mundo, celebram então a glória de Deus e os beatos entoam o eterno canto de
louvor a este. A Glória seria, assim, o modo pelo qual o poder consegue sobreviver e
se perpetuar após o fim do governo, ou seja, quando não há mais necessidade de
aplicar-se um poder. Ela é aquilo que ocupa o lugar do ócio e dissimula sua
existência que, por sua vez, não deve ser assumida.
Na tradição hebraica, o shabat, o sábado expressava o cessar da atividade
divina no sétimo dia, indicando, assim, o movimento circular que retorna ao mesmo
34
ponto, a imobilidade divina, ou seja, a eternidade: um fim sem fim, um fazer sem
fazer.
O mistério inenarrável, que a glória, com a sua luz ofuscante, tem de
esconder, é o da divina inoperatividade, aquilo que Deus fazia antes de criar
o mundo e depois de o governo providencial do mundo ter chegado a
cumprir-se. (AGAMBEN, 2007, p. 43)
Se a máquina do poder é a máquina para produzir governos, a Glória seria a
garantia do funcionamento dessa máquina, configurando-se como uma substituição
ao ócio, preenchendo esta vacuidade do último e alimentando a máquina cujo
funcionamento depende tanto deste vazio “ao ponto de ter de o capturar e manter a
qualquer custo no seu centro em forma de glória” (AGAMBEN, 2007, p. 44), ou seja,
ao ponto de ter que manter a permanência imutável do retorno circular.
O movimento circular loopado que figura em Song for Lupita não é
despretensioso. Ele é um gesto que aparentemente não leva a um fim, ou, pelo
menos, não ao fim conforme esperado pela lógica do fazer que determina o ritmo do
ser, que, por sua vez, provoca um aparentemente deslocamento temporal e uma
melhoria. A repetição em Alÿs exacerba a inoperância como algo inerente à vida,
como o direito ao ócio de que fomos destituídos pelo poder, uma vez que somente o
divino pode ser glorioso – e ocioso –, enquanto a própria glória desarticula a
inatividade, substituindo-a e transfigurando-se, por fim, em uma espécie de
atividade, em uma operação que obnubila o ócio, sendo que na verdade ela é o
louvor que se deve entoar aos céus após a eleição que se dá no Juízo Final e
consequente ausência da necessidade do exercício de governo.
Eis o sentido da imobilidade como parte do projeto de poder ao qual a
inoperância autêntica exercitada pela obra de Alÿs se opõe: o eterno retorno está
mais próximo do divino pois o movimento circular que retorna à casa, ao oikos, ao
ponto de partida, funciona como um movimento anulado cuja anulação não se pode
dar a ver. Ao passo que a autêntica inoperância realizada por Alÿs, por meio dos
movimentos de Lupita, é algo que se dá a ver, que se mostra enquanto tal.
Se a circularidade define a economia pelo movimento dar-receber-[endividarse]-dar-receber ad infinitum, a graça, conforme veremos, garante a manutenção de
tal círculo como uma salvação metafísica, suspensa, enquanto a glória encarrega-se
35
de ocupar o lugar do ócio, que não deve jamais ser verificado, haja visto que, como
dissemos, ele indica que a aplicação de um poder, i.e., de governo é desnecessária.
2.2 Movimento circular
A repetição em Song For Lupita (Mañana) é realizada a partir de três
elementos da obra: pela atividade transcorrida durante a animação – o movimento
de versar água de um copo para o outro –, pelo loop da edição do vídeo e pelo
áudio. A música para Lupita, título da obra, traz, em sua letra, a repetição da palavra
"Mañana, mañana" – "amanhã, amanhã". A eterna postergação que a música entoa
indica não menos que a impossibilidade de alcançar o deslocamento almejado ou
simulado pelo movimento circular. Esta postergação do fim sem fim, esta mesma
denúncia de que nosso fazer – que fundamenta nosso ser – não nos fará chegar a
lugar algum é recorrente nas obras do artista que configuram modos de resistência à
questão do desenvolvimento.
Em
um
trabalho
intitulado
The
Loop,
1997,
Alÿs,
criticando
contemporaneamente as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos mexicanos ao
tentar entrar nos EUA e os excessos de viagens típicas do circuito internacional da
arte na década de 1990, usa a taxa de comissão por ele recebida por participar de
uma exposição, para viajar de Tijuana para as seguintes cidades: Cidade do México,
Cidade do Panamá, Santiago, Auckland, Sydney, Singapura, Bangkok, Yangon,
Hong Kong, Shanghai, Seoul, Anchorage, Vancouver, Los Angeles e finalmente San
Diego, sem, contudo, atravessar a fronteira México-EUA. Um loop físico, em escala
global, realizável somente por uma ínfima parte da população mundial, que
contorna, ao mesmo tempo em que expõe, os inúmeros problemas daquela
fronteira. Durante o percurso, o artista enviou cartões postais que foram exibidos
como representações da obra The loop.
36
Figura 2 - Francis Alÿs - The Loop, 1997
Fonte: ARTESUR (2012)
37
Neste caso, diferentemente de em Song for Lupita, Alÿs não se vale da
repetição do idêntico que, não cessando de repetir o mesmo gesto, o esvazia,
tornando-o pura materialidade onde podemos inferir, criando significados múltiplos,
pois ali a inoperância se mostra enquanto tal.
Em The loop, o artista não retorna exatamente ao mesmo ponto, mas sim a
um lugar espacialmente localizado acima do ponto de partida. É o retorno em si que
traz a diferença. Não mais a repetição como retorno do idêntico que se abre à
potência de significações a partir do esvaziamento gerado pela própria repetição que
esvazia o significado antes dado. Em The Loop, o que temos é o retorno do não
idêntico, na qual a abertura à potência já está implícita. Alÿs não retorna
precisamente ao ponto de partida, seu retorno traz consigo uma diferença, um
deslocamento.
Nesta obra, como é possível ver no cartão postal, Alÿs estava bem próximo
dos Estados Unidos, na cidade de Tijuana, situada precisamente na fronteira entre
Estados Unidos e México. No entanto, em um gesto político, Alÿs evidencia as
questões imbricadas na fronteira, ao não cruzá-la, percorrendo distâncias imensas
que a circulam. Ele resiste a fazer o que seria o esperado, o linear.
Este gesto nos remete precisamente à ausência de gesto retratada em uma
outra obra, emblemática sobre a questão da inoperância, sobre a qual faremos
apenas uma brevíssima menção. Trata-se do conto Bartleby, o escrivão, uma obra
do século XIX, de Herman Melville. Neste conto, o escrivão, recém admitido no
escritório de um ex-consultor de Justiça, uma espécie de tabelionato, tem a função
de copiar documentos legais. O primeiro contato e assunção de Bartleby pelo
advogado de escrituras são por ele descritos: “Em reposta ao meu anúncio, um
jovem surgiu uma manhã à porta do escritório [...]. Posso ver sua imagem agora:
palidamente
delicado,
lamentavelmente
respeitável,
irremediavelmente
desamparado! Era Bartleby” (MELVILLE, 2007, p. 26). O advogado de escrituras,
chefe de Bartleby, descreve também, em seguida, seu ritmo de trabalho:
A princípio, Bartleby escrevia numa quantidade espantosa. Como se
estivesse faminto de coisas para copiar, ele parecia deleitar-se com os
meus documentos. Não havia pausa para digestão. Trabalhava dia e noite,
à luz do sol e à luz de vela. Eu deveria ficar encantado com a sua diligência,
se ele se mostrasse um pouco jovial. Mas Bartleby escrevia em silêncio,
apaticamente, mecanicamente. (MELVILLE, 2007, p. 26)
38
Não somente o ritmo, como também o próprio trabalho desenvolvido por
Bartleby remetem à práxis indiferenciada. Ele apenas copia, replica.
Com o passar do tempo, porém, o escrivão passa a recusar-se a executar
qualquer tarefa que não condissesse com a função para a qual ele havia se
destinado inicialmente. Tal recusa, que afeta não somente seu chefe, como seus
companheiros de trabalho, é feita de um modo passivo. Ele passa a responder às
solicitações de modo imparcial, com um: “Eu preferia não fazê-lo” (MELVILLE, 2007,
p. 35). E, do mesmo modo como procedia em sua práxis indiferenciada, ele
prossegue nas objeções, que passam a recusas não só a solicitações, mas também
a mover-se – já que Bartleby não saia nunca do escritório – e, por fim, a alimentarse, levando a seu triste fim, à sua absoluta ausência de vida.
Talvez possamos inferir que a inoperância executada na obra The Loop
assemelha-se à inoperância cínica, utilizada nas estratégias de exercício de poder,
no sentido de que ela não é uma simples falta operativa. Existe todo um percurso
realizado, todo um deslocamento cumprido. Com a crucial diferença que Alÿs não
está obnubilando nenhum discurso de poder, mas sim evidenciando o problema da
fronteira entre México e EUA. A fronteira, caracterizada pelo controle e claramente
compreendida pelo artista como a manifestação de um poder – o dos EUA em
selecionar quais cidadãos mexicanos estão ou não aptos a entrar em seu território –,
é desconsiderada por Alÿs, não cruzada, elidindo, por fim, o controle em si. A ação
do artista corrobora a inoperância plena de Bartleby, em seu autêntico teor de
recusa, de negação. Um literalmente imóvel, apático, o outro em um amplo
deslocamento, mas ambos, em sua inoperância, evidenciando críticos problemas da
profusão de fazeres, sinônimo da nossa natureza humana.
Não abandonando ainda nossa curtíssima incursão a Bartleby, mas
retornando à Song for Lupita, verificamos uma convergência em direção à afirmação
de Groys sobre a TBA: a “atividade documentada [...] é em si repetitiva – mesmo
antes de ter sido documentada por, digamos, um vídeo em loop” (GROYS, 2010, p.
122-123). O autor acredita que o caráter supostamente mecânico, repetitivo e sem
propósito da atividade ali representada obscurece a diferença entre ser humano vivo
e sua imagem midiática, em outras palavras, entre organismo vivo e mecanismo
morto. Efetivamente, a repetição do fazer, na vida, gera um único deslocamento, que
é o movimento de propulsão do funcionamento do sistema, enquanto o loop das
39
obras de Alÿs, como o gesto de recusa de Bartleby, denunciam esta mecanicidade
da repetição.
Bem, parece-nos, no entanto, que o obscurecimento ao qual se refere Groys
funciona somente se o encararmos como o facho de trevas do qual fala Agamben,
ou seja, somente se encararmos este obscurecimento como “o escuro [...] que [nos]
concerne e não cessa de interpelar[nos]” (AGAMBEN, 2009, p. 64). O que queremos
dizer através das palavras de Agamben é que, se os gestos documentados nas
obras de Alÿs e não executados por Bartleby obscurecem a relação entre homem e
mecanicidade, é para trazê-los aos nossos olhos. A mecanização do fazer de
Bartleby e em Song for Lupita é dada a ver pela repetição do gesto até seu
esvaziamento, enquanto os problemas da fronteira entre México e EUA são dados a
ver quando esta não é cruzada, em um “presente-ausente”, naquilo que se mostra
pela sua ausência e não pela sua presença, e que pode, em função disto, por fim,
ser dádiva.
2.3 O que mantém o loop
Percebemos uma estreita ligação entre a “narrativa loopada” que as obras em
TBA proferem e a teoria do ciclo ritualístico da dívida de Derrida. A construção de
ordem espacial utilizada desde o período helenístico para a representação temporal,
qual seja, o círculo, reapresenta-se, ad infinitum, em um gesto que nos parece mais
do que os simples acontecimentos que o próprio Alÿs declara serem recorrentes em
seus trabalhos: “[...] pequenos eventos do cotidiano” (ALŸS, 2007, tradução nossa)7.
A obra que Groys escolhe para, como ele mesmo diz, exemplificar sua discussão,
poderia ter sido The Last Clown – outra obra de Alÿs editada em loop – ou ainda
Paradox of Praxis 1 (Sometimes Making Something Leads to Nothing) – vídeo em
que o artista empurra um cubo de gelo pelas ruas da Cidade do México. Nestas
duas obras, Groys também encontraria atividades que transcorrem “no tempo, mas
que não [levam] à criação de nenhum produto definido” (GROYS, 2010, p.122).
Curiosamente, porém, a obra escolhida por Groys, Song for Lupita, traz, na
ação documentada, a mesma imagem da qual o filósofo francês do século XIX,
Joseph Jacotot, se apropria como metáfora em “O mestre ignorante” [Le Mâitre
7
[...] minor events of every day‟s life.
40
ignorant, 1987]. Nessa obra, é proposta uma reflexão sobre o processo pedagógico,
no qual o papel do professor é associado ao ato de suprimir a distância entre a sua
sabedoria e a ignorância do inábil, o aluno. É, no entanto, assertivamente verificado
que, para diminuir tal lacuna, o professor deve seguir renovando-a sempre através
de uma sucessão de “versamentos de conhecimento”. Enquanto a pedagogia
apresentar-se como esse travasamento de sabedoria da mente do professor ou da
página do livro para a mente do aluno, ela estará sempre baseada no princípio da
desigualdade.
A imagem recorrente da água sendo despejada de um copo para o outro
indica, em ambos os casos, uma manutenção cíclica de práxis indiferenciadas. Ela
diz sobre o caráter de permanência do princípio de desigualdade presente no
sistema a que se refere – educacional, no caso de Jacotot, mas, a nosso ver,
prevalecente no sistema social como um todo. O desenho representado pelo
versamento de água de um copo ao outro indica a prevalência do princípio de
desigualdade, que é justamente uma equiparação de significados, cíclica.
A noção da permanência, conforme veremos oportunamente, é uma espécie
de imperativo que nos acompanha desde a tradução da klēsis – vocação – como
beruf – profissão. A ação mantida pela repetição do movimento da figura feminina de
Song for Lupita foca – e não obscurece – a permanência da pura práxis enfatizada
por Groys entre organismo vivo e mecanismo morto, que, por sua vez, mantém a si
e ao princípio de desigualdade, assegurando que o círculo ritualístico da dívida
continue a retroalimentar-se.
A nosso ver, a obra tematiza o tempo excedente, conforme aponta Groys,
exacerbando, sobretudo, a natureza humana fundada em um fazer, sem fundamento
no ser, não somente por demonstrar atividades que transcorrem no tempo, mas que
não levam à criação de um produto definido, mas, especialmente, por manifestar a
práxis involuntária em que se transforma nossa natureza. Groys diz que “a
repetitividade inerente à arte contemporânea com base no tempo [é mostrada por
uma] atividade [que] é em si repetitiva [...]” (GOYS, 2010, p. 122-123), mas se o
objeto de Alÿs são eventos cotidianos, as atividades não podem ser senão
repetitivas. E assim, como demonstra o artista também na obra The Last Clown, não
há mais necessidade de travestir a sucessão dos eventos cotidianos em uma
narrativa linear que culmine em um the end. O ritmo das narrativas lineares não
alimenta outro movimento senão o loop.
41
2.4 The Last Clown e a inoperância da inoperância autêntica
The Last Clown, 1995-2000, outra animação em loop de Alÿs, é feita a partir
de pequenos quadros que o artista pintou durante cerca de cinco anos. Inicialmente,
as pinturas funcionavam como história em quadrinhos. Colocadas em uma
determinada sequência, elas contavam a anedota de um palhaço que, passeando
distraído e cabisbaixo por um parque de Nova York, sofre uma queda após ser
interpelado por um cãozinho que cruza seu caminho no sentido oposto e, em
seguida, levanta-se e continua seu percurso pela calçada em curva do parque.
42
Figura 3 - Francis Alÿs – frames de The Last Clown
Fonte: ALŸS, 2008
Apesar do título, na imagem não vemos qualquer sugestão de que o homem
seja um palhaço. O título, assim como a inserção do áudio de gargalhadas de plateia
no momento do evento da queda, remetem à estreita ligação entre o universo da
arte contemporânea e o mundo do entretenimento. Mas a gargalhada gravada
remete, esta sim, a uma antecipação daquele que deve ser o nosso comportamento
ao assistir a trabalhos audiovisuais nos quais existe a inserção deste tipo de áudio.
Em um depoimento do artista, gravado pela Tate, ele usa três palavras para
indicar o evento que originou a queda: encounter, accident e meeting, cujas livres
traduções poderiam ser: encontro, acidente e evento. O único acontecimento que se
difere do caráter de eternidade conferido ao caminhar em círculo do palhaço pela
edição em loop é – ou deveria ser – um significante aberto, uma irrupção em um
círculo vicioso. Tendo em mente que o círculo em que caminha o palhaço reflete
esta concepção do nosso fazer mecanicista, a queda é um inesperado, um evento
que foge à linearidade. O encontro é, porém, reapresentado diversas vezes, fazendo
com que se perca o seu caráter de algo da ordem do inesperado. Ao ser
43
reapresentado em loop, ele passa a ser o acidente previsto. Este paradoxo em que o
evento se transforma, a partir do loop, nos remete à também paradoxal condição da
inoperância em si, conforme as duas conotações sob as quais estamos trabalhando:
inoperância cínica, a serviço do exercício do poder, e inoperância autêntica.
Os eventos, quando remetem à ordem do inesperado, são aquilo que
possibilita os encontros reais. Eles estão para além da temporalidade do tempo, da
sequência do previsto. Entendendo a teoria do círculo ritualístico de Derrida de
modo amplo, i.e., que remete não somente às trocas inerentes à economia, mas ao
moto do sistema como um todo, revocamos um aprofundamento deste conceito
derridiano a fim de compreendermos as dimensões de uma irrupção em tal círculo, e
prosseguir, posteriormente, à leitura de The Last Clown.
2.4.1 In-economia
Ao conceito de economia são essenciais as noções de circulação, troca,
retroalimentação e retorno que se articulam de maneira fundamental à questão da
dádiva. A economia compreende tanto os valores da lei em geral (nomos), quanto da
lei de distribuição (nemein) e da lei como repartição (moira) – a parte doada ou
consignada, a participação. Mas estaremos atentos, sobretudo, aos valores que a lei
comporta em relação à casa (oikos enquanto administração – aplicada de forma
direta – da propriedade e da família).
A teoria derridiana acerca da relação entre a economia e a dádiva ancora-se
na figura do círculo. Esta relação é caracterizada pela co-dependência e coanulação, na medida em que a dádiva teria, como condição para sua existência, a
in-economia, ou seja, ela seria aquilo que irrompe o círculo, aquilo que não dá lugar
à troca e que desvia o retorno em uma direção outra, que não retroalimenta o
círculo. Um dom, uma dádiva, para que de fato o seja, não pode ser contra-doado,
pago ou retribuído.
A partir desta condição de existência da dádiva, Derrida a vincula ao
impossível de modo tão estreito a ponto de confundi-los. Esse entrelaçamento
explicita-se naquilo que o autor chama de paradoxo do dom. Sua condição de
existência é a mesma que determina sua anulação: a ideia de que alguém deve doar
algo a outrem para que se configure uma dádiva paradoxalmente aniquila a própria
44
dádiva, que deve ser pura entrega, sem realizar-se, nem mesmo em pensamento,
que se tenha havido alguma entrega.
“O devir-sujeito, toma então consciência de si mesmo, entrando como sujeito
no reino do calculável” (DERRIDA, 1996, p. 26, tradução nossa) 8 . A questão da
dádiva deveria colocar-se, portanto, anteriormente a qualquer relação entre sujeitos,
pois, caso o doador se reconheça ou seja reconhecido como alguém que fará uma
doação, ele, já por antecipação – temporalizando o tempo –, direciona a si uma
imagem de bondade e generosidade, aprovando-se em um movimento de gratidão
narcisista: “[...] onde existem sujeito e objeto, o dom seria excluído” (DERRIDA,
1996, p. 26, tradução nossa)9. De qualquer forma, para que exista dádiva, um sujeito
não pode jamais doar um objeto a outro sujeito: tais entidades – objeto doado e
sujeito – impediriam a dádiva de anular a velocidade do movimento circular,
firmando-o. A inoperância que a dádiva inflige no moto circular é a resistência em si.
Contudo, pensando o tropeço do palhaço na cauda do cão como uma
irrupção da linearidade sequencial da eterna caminhada no parque – da ordem do
acidente, do inesperado –, deparamo-nos com uma nova inserção do mesmo
acidente quando o vídeo de Alÿs se repete, em loop. Ou seja, este evento está no
limiar entre aquilo que deveria nos surpreender, desarticulando um ciclo, e o
apoderamento
da
irrupção
pela
circularidade
da
práxis
indiferenciada,
transformando-a em algo da ordem do previsível. Em outras palavras, o tropeço
pode ser compreendido como uma inoperância autêntica, que vem emperrar a
rotação de um sistema alimentado por um fazer mecanicista e, por ele próprio estar
inserido no ritmo mecânico loopado, configura também uma inoperância da
inoperância autêntica.
2.5 A relação entre espaço fechado e extracampo em TBA
As obras em TBA articulam uma ruptura em relação às obras mais
comumente encontradas no panorama audiovisual. Se observarmos tanto Song for
Lupita quanto The Last Clown, verificaremos que a matéria prima com a qual elas
trabalham é uma relação específica entre o tempo e a construção espacial na forma
da imagem. Na medida em que o tempo é a matéria constitutiva das obras, a
8
9
Il devenire-soggetto tiene allora conto di se stesso, entra come soggetto nel regno del calcolabile.
[...] dove ci sono soggetto e oggetto, il dono sarebbe escluso.
45
questão que elas enfrentam é relativa à possibilidade de dar uma forma ao tempo,
i.e., de conceder ao último contornos espaciais. É justamente a construção de ordem
espacial que precisamos para imaginar o tempo, à qual nos referimos ainda na
introdução deste trabalho, a partir da máxima do linguista Gustave Guillaume:
experimentamos o tempo, mas não temos a sua representação. Não de maneira
fortuita, para tomar criticamente a questão do espaço, da representação, as obras
fazem ver o invisível do tempo.
Analisando a questão do enquadramento em obras audiovisuais, Gilles
Deleuze circunscreve a noção de quadro em confluência com a noção de sistema
fechado. “Chamamos enquadramento a determinação de um sistema fechado,
relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem”
(DELEUZE, 1985, p. 22). O quadro seria, segundo o autor, inseparável de duas
tendências, quais sejam, a perturbação da saturação ou, por outro lado, a redução
do quadro a um conjunto vazio, à tela branca ou negra, ou seja, à rarefação. Cada
conjunto de elementos dentro de um quadro compõe uma espécie de subquadro, e é
através da reunião ou separação destas partes que o sistema fechado se compõe.
Para cada sistema fechado haveria o extracampo.
Contudo, ao pensarmos no que estaria para além dos enquadramentos das
obras em TBA – tendo em mente especialmente The Last Clown –, estabelece-se
uma ruptura com a noção espacial, e, por conseguinte, a temporalidade, na obra, é
curto-circuitada. Se a imagem enquadrada é um recorte espacial que dá a ver a si e,
sequencialmente, àquilo que está para além do campo enquadrado, à medida em
que a narrativa se desenvolve em uma duração de tempo, o retorno ao ponto
anterior, o loop, emperra a linearidade da narrativa e, logo, aquilo que é dado a ver é
o curto-circuito temporal em si. O quadro, nas obras em TBA, opera como um
sistema mais fechado, que tende a isolar-se do extracampo, conforme a segunda
concepção do enquadramento trazida por Deleuze:
[...] ora o quadro opera um recorte móvel, segundo o qual todo o conjunto
se prolonga num conjunto homogêneo mais vasto com o qual ele se
comunica, ora com um quadro pictural que isola um sistema e neutraliza
seu contexto (DELEUZE, 1985, p. 27)
Ainda que o sistema, quanto mais fechado, mais pareça suprimir o
extracampo, ele acaba por lhe atribuir uma importância decisiva, já que todo sistema
fechado é comunicante e não está nunca completamente isolado (DELEUZE, 1985).
46
Esta profusão de extracampos que se sucedem à medida em que novos conjuntos
são enquadrados é o que Deleuze chamou de todo ou Aberto, que, por sua vez,
permite que cada um desses conjuntos possa comunicar-se com o outro através de
um fio – imagem que Deleuze usa para dizer da comunicação entre o
enquadramento e seus quadros, assim como entre eles e o extracampo.
Ainda segundo o filósofo, o extracampo possui um aspecto relativo, “através
do qual um sistema fechado remete no espaço a um conjunto que não se vê e que
pode, por sua vez, ser visto” (DELEUZE, 1985, p.29), gerando infinitos novos
conjuntos de quadros, além de possuir, por outro lado, um aspecto absoluto. As
obras em TBA, curto-circuitando a noção do espaço homogêneo, que é exibido
sequencialmente, dão a ver, como dissemos, o invisível do tempo. Esta
característica exprime-se de modo exemplar em The Last Clown. O extracampo não
é nunca dado a ver, ainda que a animação remeta a um movimento de caminhada
do palhaço. Ele caminha, mas o enquadramento permanece fixo e o extracampo não
é nunca alcançado. Esta obra estabelece uma relação mais direta com o aspecto
absoluto do extracampo, por meio do qual o sistema fechado se abre para a duração
de algo que não pertence à ordem do visível, que acreditamos ser o tempo.
Num caso, o extracampo designa o que existe alhures, ao lado ou em volta;
noutro caso, atesta uma presença mais inquietante, da qual nem se pode
mais dizer que existe, mas que antes “inexiste” ou “subexiste”, um Alhures
mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneos (DELEUZE, 1985, p.
30)
Assim como afirma Deleuze, os dois aspectos do extracampo coexistem, mas
sobrepõem-se. No segundo caso, o “fio” pelo qual o quadro se comunica com o
extracampo é mais tênue; este último exerce também tenuemente o acréscimo de
espaço ao espaço, assim como acontece nas obras em TBA. Nelas, o extracampo
realiza sua função de “introduzir o transespacial” como denomina Deleuze. “[...]
quanto mais a imagem é espacialmente fechada, reduzida até a duas dimensões,
mais ela está apta a se abrir para uma quarta dimensão, que é o tempo” (DELEUZE,
1985, p. 30), nos levando a pensar que o que é acrescido por esta tênue
comunicação entre extracampo e quadro é uma dimensão temporal heterogênea,
uma duração, em detrimento do acréscimo de espaço ao espaço – primeira função
do extracampo.
47
Nas produções características da TBA, em conformidade com o exemplo
dado por Deleuze sobre a obra de Hitchcock, são exacerbadas as características do
sistema fechado, de modo que o extracampo seja uma abertura deste sistema para
pensar e imaginar-se imagens – ou imagens mentais, como quer Deleuze. No
extracampo de The Last Clown – se ali o podemos nominar –, são aprisionados “na
imagem o máximo de componentes” (DELEUZE, 1985, p. 30), assim como o fora
também encontra-se aprisionado para além do quadro. Se Deleuze nos diz que
existe uma situação em que o personagem esperado ainda não está visível, o porvir
de The Last Clown nunca vem. Ele se encontra, não momentaneamente numa zona
de vazio – como diz Deleuze – mas permanentemente nela, em uma relação não
atualizável com outros conjuntos, mas somente virtual com o todo.
Francis Alÿs denuncia, em suas obras, por meio da representação de
pequenos gestos, assim como faz Bartleby em sua refutação, de que modo, em sua
pequeneza e aparente banalidade, estão concentrados os nossos esforços em
manter-nos em um movimento que paradoxalmente, não nos faz deslocar. Assim
como no caso do palhaço de The Last Clown, que caminha sob o mesmo
enquadramento, sem nos dar a ver o que viria, o porvir – pois nada vem, não há
extracampo senão virtual, da ordem da imaginação –, nossos fazeres não fazem.
Contudo, se nossa práxis faz deslocar, em um movimento centrífugo, somente o
sistema de aparente acúmulo, temos, por outro lado, a repetição dos pequenos
gestos das obras de Alÿs, assim como os de Bartleby, que não pretendem simular
um deslocamento, uma melhoria ou um avanço. Elas não avançam, simplesmente
inoperam resistindo à inoperância que traveste o círculo ritualístico da dívida com a
forma de uma seta.
Observamos, até então, sob a ótica das características da TBA, como, nas
obras de Francis Alÿs aqui trazidas, está imbricada a questão da profusão de
fazeres inférteis – aqui chamada de práxis indiferenciada – em que se transformou a
natureza humana, segundo Emauele Coccia, a partir da criação da cosmogonia
judaico-cristã. Desde o momento em que o homem deve obedecer a uma lei que o
impede de fecundar seu desejo em ações, ele passa a realizá-las mecanicamente,
como obediência ao exercício de poder.
Tendo em mente o paradoxo da inoperância, na dicotomia entre a inoperância
a serviço de projetos de poder e aquela autêntica, pudemos verificar como esta
última é aplicada nas obras do artista belga de modo contumaz, isto é, fazendo
48
irromper o ciclo de trocas que é o motor do suposto desenvolvimento. Enquanto o
dispositivo glória, por sua vez, opera em um sentido precisamente oposto, qual seja,
aquele de equiparar-se ao ócio para, justamente neste movimento, fazer perene o
exercício do governo, ainda que ele não se justifique.
A queda, refinado problema estético elaborado em The Last Clown, foi aqui
relacionada a uma dupla inoperância: aquela da surpresa como dádiva, ou seja, o
inesperado que não conforma o ciclo das trocas, das equiparações, e, em seguida, a
um segundo emperramento em tal moto a partir da inserção do inesperado em um
círculo, aquele do loop.
A partir da conceituação do círculo ritualístico da dívida de Jacques Derrida,
foi possível compreender o seu funcionamento: uma retroalimentação das trocas
que nada mais são do que movimentos de práxis indiferenciadas. Vimos como o
movimento loopado, tanto de Alÿs em The Loop, quanto de Bartleby, o escrivão,
conforma recusas que evidenciam um problema – são ausências que configuram
presenças.
O círculo ritualístico da dívida, ou, simplificando, o ciclo econômico,
obnubilado por dispositivos de inoperância, quando está a serviço de uma estratégia
de neutralização, mascara projetos de exercício de poder ou de governo, justamente
para fazer as suas vezes. A profícua contrapartida exercida pelas obras que aqui
trazemos é o desmascaramento da dissimulação dos [in]operadores, firmando o
movimento cíclico. Se, como dissemos, a TBA tem como característica não simular
melhorias a partir das repetições, ela o faz exacerbando o caráter puro desta
repetição, irrompendo o círculo de trocas equiparadoras, em perfeita confluência
com o mecanismo de funcionamento da dádiva, conforme aprofundaremos,
oportunamente.
Toda a discussão até então empreendida é perpassada, conforme dissemos,
pela ideia de que somente a partir de uma mudança na concepção do tempo – ou
pelo menos de como sua representação tenta moldar nossa experiência, fazendo
com que esta se distancie de sua heterogeneidade – é possível revolucionar.
As obra em TBA configuram um modo de dar a ver o invisível do tempo,
indicando o hiato existente entre nossa experiência múltipla e a regente
representação que, em sua linearidade, tenta obnubilar o fato de que o motor que
nos propulsiona não nos levará a nenhum acréscimo ou melhoria. Segundo a teoria
deleuziana do extracampo, inferimos que a TBA consegue irromper o ciclo das
49
significações ao não acrescentar espaço ao espaço, como opera, por sua vez, o
extracampo em obras clássicas do audiovisual. Se o fora fica aprisionado para além
do quadro, ele existe somente a partir da nossa invenção ou inexiste. Esta operação
dá a ver, portanto, o tempo em sua invisibilidade, destituindo a primazia do caráter
espacial das imagens.
A partir deste ponto, poderemos identificar, ainda, em outras obras, formas de
resistência que mostram o funcionamento de dispositivos usados em projetos de
poder, para elidi-los, inoperando de modo autêntico. Verificaremos problemas
estéticos trazidos por obras dos artistas Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado,
Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida. Veremos como, no intuito de trazer à tona novas
formas de vida, estas obras problematizam as implicações do tempo linear. Para
tanto, prosseguiremos ainda com outros exemplos de [in]operadores que são
identificados nas leituras das obras que seguem.
50
3 INSTRUMENTOS DE INOPERÂNCIAS E RESISTÊNCIA
Inoperatividade não significa, de facto, simplesmente inércia, não-fazer.
Trata-se, antes, de uma operação que consiste em tornar inoperativas, em
desactivar ou des-oeuvrer todas as obras humanas e divinas. (AGAMBEN,
2007, p.47)
3.1 O Século
O Século, 2011, vídeo em loop dos artistas Cinthia Marcelle e Tiago Mata
Machado, foi realizado em um plano único, registrado por uma câmera fixa que
enquadra longitudinalmente uma fração de rua na qual se vê, a princípio, somente
uma tampa de esgoto e um bueiro. Percorrendo a profundidade do quadro, tem-se o
passeio ligado à rua, sobre o qual ergue-se um muro cuja parte mais alta não chega
a ser enquadrada, e sobre a qual perpassa uma cerca de arame farpado em espiral
– ouriço – que é dada a ver a partir de sua sombra projetada no passeio. Não
fossem a luz solar e o tratamento cromático conferido às imagens, que já configuram
traços recorrente da artista, na cena inicial prevaleceria o tom acinzentado do
asfalto.
O vídeo é dividido em duas partes. Na sua primeira metade, vemos objetos
oriundos do mundo industrial serem arremessados da direita para a esquerda do
quadro. No âmbito do extracampo, estão tanto a proveniência dos arremessos
quanto aquilo que rebate os objetos na extremidade oposta do quadro, fazendo com
que, por um brevíssimo instante, eles saiam e retornem ao campo. Este movimento
que acontece virtualmente, no extracampo, remete à estrutura da edição do vídeo,
ou seja, ao flip.
51
Figura 4 - Objetos de cena de O Século
Fonte: Cortesia de Katásia Filmes + 88 (2011)
Os objetos lançados são capacetes de proteção para trabalhos em
construção civil, lâmpadas fluorescentes, caixotes, cadeiras, pneus, tijolos, pedaços
de uniformes, tonéis, cabos de vassoura, botas plásticas, fitas K7 e outros artigos
que remetem ao universo do trabalho. Após serem lançados todos esses itens, há
uma pequena pausa e a inserção de um blackout que realiza a divisão e a transição
para a segunda metade de O século, na qual transcorrem precisamente os
lançamentos dos mesmos objetos, agora no sentido oposto: da esquerda para a
direita, através do flip da imagem anterior, ou seja, do espelhamento do plano
apresentado na primeira metade do vídeo.
A ação de rebater, fora do quadro, os objetos lançados é referida no flip da
edição, que nos traz, por sua vez, ao pensamento de Deleuze: “O extracampo
remete ao que, embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê” (DELEUZE,
1985, p. 27). Em O Século, o extracampo faz alusão, pelo modo como a edição é
feita, àquilo que é dado a ver pelo enquadramento, sem, no entanto, ser seu
prolongamento sequencial. Ou seja, o extracampo remete a algo que foi incluído no
52
vídeo, todavia sem acrescentar espaço ao espaço. Apesar de apresentar um
sistema mais fechado, o enquadramento em O Século, assim como em The Last
Clown, ao comunicar-se tenuemente com o extracampo, faz com que aquilo que
está para além do quadro insira-se nele estética e conceitualmente, após sua
edição.
Figura 5 - Frames espelhados de O Século
Fonte: MARCELLE (2011).
Legenda: Estas imagens são uma ilustração para demonstrar o funcionamento da operação
realizada entre as duas partes da duração do vídeo.
Obras como esta mostram-nos a problemática relação entre a nossa
experiência do tempo e a sua representação, que, apesar de fortemente ancorada
na imagem linear da seta, se baseia no círculo econômico.
Em
O
século,
são
colocados
em
cena
exclusivamente
objetos
industrializados. O cenário poderia ter sido extraído da modernidade: o asfalto das
53
vias, as redes de esgoto e a delimitação de espaços por muros, não fosse o uso da
cerca ouriço como um elemento do tecido urbano e não como componente de
barricadas de guerra. A possibilidade de deslocar contextualmente a imagem é
permitida pelo enquadramento: “o quadro assegura uma desterritorialização da
imagem” (DELEUZE, 1985, p. 26). Existe uma clara referência à industrialização e à
circulação que ocorre na economia, indicando uma certa atemporalidade.
Novamente, ao desterritorializar a imagem, não acrescentando espaço ao espaço,
aquilo que é dado a ver é o invisível do tempo.
Se o flip realizado a partir da metade da obra dissesse sobre um
espelhamento do século XX no século XIX, talvez pensássemos que o título da obra
poderia ser colocado no plural, como, no entanto, não acontece. Esta perspectiva
nos remete ao pensamento de Boris Groys: “o nosso é um tempo no qual
reconsideramos –, não abandonamos, não rejeitamos, mas analisamos e
reconsideramos – os projetos modernos” (GROYS, 2010, p.121). Na obra, temos um
só século, que é replicado pelo flip, assim como são rebatidos os objetos
arremessados.
Na primeira metade do vídeo, vemos os objetos serem atirados da direita do
quadro para a sua esquerda, remetendo, se pensarmos na proposição sequencial e
linear, à arremessos para trás, como se os objetos tivessem sido usados e
descartados após seu uso, já que o tempo é representado linearmente, sendo o
passado, e os objetos, um lixo morto, um resto impotente. Aquilo que temos em
decorrência do flip é a repetição que, no entanto, fará com que nos deparemos com
os mesmos objetos usados antes, mas agora diante de nós.
O arremesso, novamente recorrendo à lógica sequencial, é realizado sem
mais seguir o raciocínio do descarte para fora do caminho. Ou melhor, os dejetos,
após terem realizado o percurso do seu uso no mundo industrial e do trabalho,
circulam, e vêm encontrar seu local de despejo diante de nós. Os objetos, antes
propulsores das trocas, agora tornam-se impotentes.
A obra O século parece referir-se à condição de existência do círculo
econômico, qual seja: a temporalização do tempo nas formas da projeção, isto é, da
preparação para o lançamento de algo, de acordo com a raiz latina da expressão
projicere, que, em italiano, por exemplo, é progettare. Ao sentido de gettare (jogar,
lançar), inferimos, também a noção do dispêndio (BATAILLE, 1975), que é, por sua
vez, arruinada pela temporalidade contida em pro (a diante): não se pode calcular ou
54
prever o dispêndio pois este deixa de ser dispendioso. Associamos, também, à ideia
do lançamento, da pró-getação, a noção da pre-visão, do vislumbramento do por-vir,
em uma temporalização que tenta antecipar o futuro, antever o acontecimento, o
destino ou pouso de algo que ainda está por ser lançado. Esta temporalização do
tempo, por fim, nos diz sobre a memória endividadora da retribuição obrigatória
intrínseca ao ciclo econômico.
O texto disponibilizado pelos próprios artistas: “um mundo inteiro vindo à tona
em um jorro que se converte, imediatamente, em uma espécie de ruína”
(MARCELLE, 2011) confirma a alusão que fazemos ao dispêndio, enquanto
assistimos à obra. O dispêndio urbano contrapõe-se absolutamente àquele da
natureza. Enquanto na natureza o excedente é o fundamento da vida, na civilização,
a vida baseia-se no acúmulo que, no entanto, não consegue sustentar-se, acabando
por produzir um excedente que , diferentemente daquele da natureza, não é
reaproveitável. Este acúmulo da civilização, originalmente fruto do ciclo econômico,
torna-se, em O Século, a pura destruição que acaba por irromper o círculo. Os
dejetos, produtos do acúmulo de uma economia da paridade, perdem a sua
pertinência – sua paridade, já que passam a não servir pra nada – e devem ser
jogados fora, tornando-se impotentes. O acúmulo dos dejetos culmina na
impossibilidade de o círculo econômico prosseguir retroalimentando-se e faz com
que o sistema torne-se inoperante. É o retorno ao caos e à destruição que o
acúmulo tenta evitar.
A inoperância autêntica, em O Século, perpassa mais de um âmbito.
Conceitualmente, temos a irrupção do próprio círculo econômico – representado
pela escolha dos objetos. O movimento do círculo estagna-se, fazendo com que ele
deixe de girar, quando, em um determinado momento, os objetos transformam-se
em dejetos que não mais podem fazer parte do circulo ritualístico da dívida,
retroalimentando-o. O próprio ciclo opta por abandoná-los. Por outro lado, a própria
edição em loop remete a uma inoperância que é de ordem estética, sobre a qual
discutimos acerca da produção de Alÿs, em um loop que gera um excedente de
tempo, distante da projeção e antecipações temporais. A projeção em O Século foca
o mecanicismo e a temporalização da práxis indiferenciada, replicada ao longo do
tempo como se este fosse uma pura repetição do idêntico. Ao repetir a própria
imagem, a obra dá a ver a inoperância que decorre da transformação do jorro em
ruína, ou seja, mostra-nos que os dejetos gerados pelo acúmulo serão encontrados,
55
sequencialmente, diante de nós, fazendo com que não mais possamos prosseguir
em tal moto, emperrando, finalmente, nossa práxis indiferenciada, fazendo com que
o tempo, em sua forma de paridade acumulativa, ali, inopere. Isto é: concede-se
potência àqueles objetos "mortos". Faz-se com que eles possam vir a ser
novamente. Transforma-se as ruínas em um porvir distante da sua função cuja
destituição os levou a ser descarte. Torna-se indiscernível jogar fora e receber, lixo e
presente, velho e novo, precisamente como são indiscerníveis as repartições
temporais em nossa experiência. Este problema estético apresentado em O Século,
que torna o descarte um vir-a-ser, uma potência de formas de vida, realiza um
enviesamento temporal que aproxima a obra da heterogeneidade da nossa
experiência de tempo. Aproxima arte e vida.
Faz-se necessário, ainda, um adensamento sobre a questão da inoperância.
Para tanto, permitiremo-nos contextualizar, a partir de verificações realizadas por
Giorgio Agamben, os pormenores da elisão, nas representações temporais, da
heterogeneidade.
3.2 Indiscernibilidade da tripartição temporal
Agamben identifica rastros do messianismo nas Cartas de São Paulo aos
Romanos. A partir das traduções que se sucederam paralelamente à história das
Igrejas cristãs, o messianismo, assim como o próprio termo “messias”, teria sido
eliminado do texto paulino. Para Agamben, tratar-se-ia de uma consciente estratégia
de neutralização da heterogeneidade do tempo que estaria implicada no
messianismo:
[...] uma aporia que concerne à própria estrutura do tempo messiânico, à
particular conjugação de memória e esperança, passado e presente,
plenitude e falta, origem e fim que este implica. (AGAMBEN, 2000, p. 9,
10
tradução nossa)
A questão que se coloca é a proposital e patente elisão, por parte do
cristianismo, da heterogeneidade do tempo de suas representações como um
projeto de poder. Através da delimitação das repartições passado – estanque, não
mais acessível, assim como é o lixo na primeira metade da obra O Século, que, no
10
[...] un‟aporia che concerne la struttura stessa del tempo messianico, la particolare coniugazione di
memoria e speranza, passato e presente, pieneza e mancanza, origine e fine che esso implica.
56
entanto, na segunda metade, retorna –, presente e futuro, o tempo passa a ser
compreendido como algo homogêneo. A temporalização do tempo procede
contemporaneamente à sua organização que é, por fim, esta estratégia de poder
contida na elisão da heterogeneidade do tempo.
Observa-se, porém, que, por outro lado, o uso que São Paulo faz das
características da heterogeneidade é um mecanismo para aproximar a experiência
da religião da experiência humana do tempo, heterogênea por excelência.
A heterogeneidade identificada na relação messiânica com o tempo é
articulada a partir da relação entre conceitos de inoperância. Um deles diz respeito à
desarticulação e ao aprisionamento da noção de vocação. Trata-se do “como não” –
o hōs mē – que, segundo Agamben, funciona como um tensor especial vinculado à
noção de klēsis, a vocação messiânica, para tomar posse sobre esta e permitir ao
homem apenas um momentâneo uso. Observemos como este dispositivo de
inoperância age na desarticulação temporal: destituindo a perenidade da vocação de
quem a teria, para, ao tomá-la, permitir que a pessoa faça dela uso, sem possuí-la.
A aproximação entre o “como não” e a vocação permite que se distinga o
direto de uso do direito de posse, fazendo com que a vocação passe a sugerir
exclusivamente o direito de uso, ainda que fosse entendida como algo inerente ao
homem: dizemos ter e não usar uma vocação. Seria a suposta neutralização da
ideia de posse – que é inerente – e uma consequente conversão desta ao uso, que
é temporário, logo, não perene, não ubíquo.
O termo “como não” – hōs mē – coloca em relação um conceito consigo
mesmo, em uma condição que não o cancela, não o apaga, mas simplesmente o faz
passar, preparando seu fim na forma da sua neutralização ou da sua temporária e
oportuna suspensão. É um mecanismo que torna inoperante aquilo de que se
aproxima. É por funcionar como este tipo de tensor especial que, na Carta, este
termo, ao aproximar-se da noção de vocação messiânica, a torna indiscernível
quanto à imanência ou transcendência, indistinguindo, por fim, o presente do futuro:
a pura heterogeneidade do tempo. A vocação é entendida como algo com o que já
nascemos, algo de nosso, algo sobre o que temos posse. A aproximação do tensor
hōs mē faz com que este operador permita que façamos uso desta vocação quando
convir.
O hōs mē funciona, portanto, como um operador que desarticula significados
e contextos e está em jogo, por exemplo, na concepção franciscana do voto de
57
pobreza, na qual estava implícita uma novitas vitae, sobre a qual o direito civil
resultava inaplicável, i.e., sua aplicação era desarticulada, já que a forma vivendi
franciscana passa a estar integralmente fora da esfera do direito. Aquilo que indica a
relação dessa forma de vida dos franciscanos com os bens mundanos é o usus
pauper, diferenciando-se, novamente, neste momento, uso e direito: “[...] podemos
de fato usar algo mesmo sem haver direito sobre ela ou sobre seu uso, assim como
o escravo usa a coisa do patrão sem ser dela nem dono nem usufrutuário”
(LAMBERTINI apud AGAMBEN, 2000. p. 32, tradução nossa)11.
Aquilo que prevalece tanto no “como não” quanto nos demais [in]operadores
que vimos até então – a glória, a graça – é a ideia de soberania na forma de uma
oportuna suspensão que está por trás dessa neutralização do sentido. No caso do
“como não”, é a elisão da posse que permite, todavia, contemporaneamente, seu
uso: “[...] se tratava, tanto para Olivi quanto para Angelo Clareno, de criar um espaço
que fugisse das garras do poder e das suas leis, não entrando em conflito com ele,
mas simplesmente o rendendo inoperante” (AGAMBEN, 2000, p. 32, tradução
nossa)12.
Para operar esta oportuna desarticulação de sentidos, vale frisar que é na
aproximação da nossa heterogênea experiência do tempo que se aplica a estratégia:
elidindo a repartição presente e futuro, imanência – como uso – e transcendência –
como posse.
Após termos realizado esta incursão sobre o funcionamento do operador
“como não” em sua aproximação da heterogeneidade do tempo, permitiremo-nos
adentrar ainda mais afundo e acerca do conceito da inoperância, antes de iniciarmos
a leitura de Confronto, 2005.
3.2.1 A potente fraqueza dinâmica
O poder, como temos visto até então, no presente trabalho, se vale de uma
estratégia para se converter sempre em um mecanismo soberano que não anula o
11
[...] possiamo infatti usare qualcosa anche senza aver un diritto su di essa o sul suo uso, così come
lo schiavo usa la cosa del padrone senza esserne né padrone né usufruttuario.
12
[...] si trattava, tanto per Oliviche per Angelo Clareno, di creare uno spazio che sfuggisse alla presa
del potere e delle sue leggi, non entrando in conflito con esse, ma semplicemente rendendole
inoperanti.
58
seu correspondente negativo, mas o suspende, o coloca em uma posição outra de
forma que sua ação seja desarticulada, sem configurar uma apraxia, e garantindo,
de tal sorte, a manutenção da primazia do fazer. Em outras palavras, o poder exerce
a faculdade de inoperar, que funciona como uma eficaz estratégia de desarticulação.
Esta articulação está presente nas Cartas também por meio da oposição entre a
potência – dýnamis – e o ato – energéia. Opondo esses conceitos, aquilo que seria
potencialidade ou possibilidade passa a operar como ação, não enquanto força, mas
na forma da fraqueza – asthéneia –, da des-ativação: conversão da potência em
práxis que anularia a própria práxis.
Katargéō é um composto derivado do adjetivo argós, cujo significado é
inoperante, não-em-obra, suspenso da eficácia (AGAMBEN, 2000). Esta é a chave
para a desarticulação da lei de forma soberana. “Para Paulo, a potência messiânica
não se exaure no seu ergon [trabalho, função], mas permanece nele potente na
forma da fraqueza. A dýnamis messiânica é [...] constitutivamente „fraca‟”
(AGAMBEN, 2000, p. 93, tradução nossa).13
O próprio nome do apóstolo fora modificado de Saulos – um nome régio, de
homens que superavam em grandeza e beleza qualquer outro israelita – para
Paulus – em latim, pequeno, de pouca importância. Ele mesmo se identificava como
“o menor dos apóstolos” e a reinvindicação cristã da humildade era aplicada fazendo
com que diminutivos fossem adotados como nomes próprios no intuito de satisfazer
a esta exigência de pertencer ao grupo dos escolhidos para a salvação: “Deus
escolheu... as coisas fracas do mundo para confundir as fortes... as coisas que não
são para tornar inoperantes aquelas que são” (I COR. I, 27 apud AGAMBEN, 2000,
p.18, tradução nossa)14.
O termo katargéō funciona como um “tensionamento distensor” (AGAMBEN,
2000) e é aplicado por São Paulo não à destruição do ser, mas ao progresso em
direção a um estado melhor, como se a simples permanência pudesse trazer uma
transformação, uma passagem, uma melhoria. E, como vimos, é precisamente neste
moto que se circunscreve nossa relação com o tempo, cuja articulação entre a
repetição dos dias e meses e a progressão dos anos é exemplar. Não obstante as
trocas que não cessamos de realizar – a circulação monetária e de produtos, por
13
Per Paolo, la potenza messianica non si esaurisce nel suo ergon, ma resta in esso potente nella
forma dela “debolezza”. La dýnamis messianica è, [...] costitutivamente “debole”.
14
Dio ha scelto ... le cose deboli del mondo per confondere le forti ... le cose che non sono per
rendere inoperose quelle che sono.
59
exemplo –, configurem um loop, i.e., retroalimentam entre si infinitamente, no
modelo “pagamento, dívida, pagamento...”, elas não deixam de simular um
deslocamento na linha progressiva, não deixam de se travestir em seta, conforme
nos indica a fundamental análise de Giovanni Crisostomo, sobre a qual acreditamos
que todo o conceito da inoperância pode-se resumir:
Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite que se trate de uma
destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e de um dom
verso o melhor [...] O tornar inoperante [katárgēsis] é um cumprimento
[plērōsis] e uma adição em direção ao melhor [...]. (CRISOSTOMO apud
15
AGAMBEN, 2000, p. 94, tradução nossa)
Temos aqui a operação, por excelência, da captura pelo poder: no sentido da
inoperância da potência, da inatividade, implicam-se melhoria e progresso
dissimulados na forma do dom, ou seja, em graça. O acréscimo e a dádiva que se
obtém ao ouvir a palavra, ou sendo fiel de acordo com Crisóstomo é uma espécie de
recompensa por ter-se permanecido inoperante.
A tradução luterana do termo katargeín para o alemão foi, precisamente,
aufhebung, i.e., revogar, fazer que deixe de viger. A desarticulação, vá dizer, a
inoperância, está diretamente ligada à questão de tempo. O tempo messiânico,
heterogêneo, é resguardado pelos suspensores da lei, quais sejam: a glória, a
graça, o “como não” e a katargéō – que, por sua vez, como legisladores, operam na
forma, se me permitem o paradoxo, da inoperância. Este arsenal de mecanismos,
tão ambíguos quanto potentes, garantem a heterogeneidade do tempo, devidamente
contida por esses in-operadores. Ou seja, aquilo que este arsenal faz é permitir que
o tempo possa ser declarado heterogêneo com o fim de aproximar a experiência
religiosa da nossa experiência do tempo, i.e., como uma estratégia de poder, na qual
deve-se pensar o acúmulo e a soma como se fosse dádiva, o que não quer dizer
que eles sejam. É um movimento de puro cinismo.
Conforme vimos, ainda que se trate de uma heterogeneidade devidamente
anteparada por toda essa série de suspensores, a eliminação, a partir do
cristianismo, do termo “messias” nas traduções das Cartas de São Paulo teve como
intuito a neutralização da já citada aporia que concerne à própria estrutura do tempo
messiânico. De fato, a conjugação de memória e esperança, passado e presente,
15
Affinché, udendo questa parola, non si creda che si tratti di una distruzione totale, ma in qualche
modo di un acrescimento e di un dono verso il meglio [...] Il rendere inoperante [katárgēsis] è un
compimento [plērōsis] e un‟aggiunta verso il meglio.
60
plenitude e falta, origem e fim foi abolida a partir da instituição da representação
cristã do tempo – predominantemente linear, potencializando um terreno que Paulo
havia deixado fértil –, adotando-se a seta como a justa construção espacial para a
representação do tempo. Nela, os acontecimentos são irrepetíveis e irreversíveis,
distanciando-se de forma contumaz da nossa experiência. Em ambos os casos a
inoperância exerce-se como um projeto de poder.
3.3 A representação da [i]mensurabilidade do tempo
Nossa experiência do tempo é a experiência plenamente heterogênea, na
qual coexiste de uma imensa multiplicidade de acontecimentos reais e imaginários,
ou seja, nossa experiência é da ordem dos acontecimentos – dos feitos – e do
onírico, do imaginário. No entanto, aquilo que representa a nossa relação com o
tempo, a partir da conversão do múltiplo em soma e da dádiva em acúmulo, passa a
ser a simplória imagem de uma seta. O cinismo em relação à dádiva é justamente o
que
vai
convertendo,
aos
poucos,
a
representação
do
tempo
–
e,
consequentemente, nossa vivência dele – em algo que remete ao progresso.
Uma das mais profícuas imagens da multiplicidade, qual seja, o rizoma
(DELEUZE, GUATTARI, 1995), talvez seja a construção de ordem espacial que
melhor representa a profusão de tempos de toda ordem que compõem a nossa
experiência. Contudo, a representação que temos do tempo reflete características
opostas: sucessões numéricas que o subdividem em frações que fazem, por sua
vez, com que a regente representação do tempo resuma-se, por fim, a modos de
sua mensuração. Vivemos sob uma representação diretamente associada à noção
cronológica, trazida pelo termo grego chrónos, “que indica uma duração objetiva,
uma quantidade mensurável e contínua de tempo” (AGAMBEN, 2008, p. 89). No
entanto, voltando-nos para conceitos elaborados por Jacques Derrida, é possível
verificar que tais tentativas de mensuração do tempo são vãs, pois o tempo é, por
fim, imensurável. Após termos verificado sua teoria sobre o círculo ritualístico da
dívida e a condição de existência da dádiva, vejamos como Derrida elabora a
questão da imensurabilidade do tempo.
Seu livro Donner le temps inicia-se com a análise de um trecho de uma
suposta carta escrita por Madame de Maintenon à Madame Brinon. Madame de
Maintenon, cujo nome é, na verdade, Françoise d'Aubigné, foi fundadora da Maison
61
Royale de Saint-Louis, um internato para moças, localizado em Saint-Cyr, atual
comuna de Saint-Cyr-l'École, na França. Interessante notar que seu nome, Madame
de Maintenon, remete ao tema da temporalidade através da alusão a Maintenant
que, em francês, significa “agora”. Ela teria casado-se secretamente com o então
Rei da França, Luís XIV, após este ter tornado-se viúvo. Sua interlocutora, Madame
de Brinon, era uma religiosa que havia sido pelo Rei nomeada superiora da Escola,
mas que dela fora afastada em 1692, após uma reforma por maior severidade na
clausura, imposta pela Igreja Católica. Madame de Maintenon teria, então, assumido
a posição de Madame de Brinon a partir desse período.
No referido excerto, Madame de Maintenon diz à sua interlocutora que o Rei
toma todo o seu tempo e que ela doa o resto a Saint-Cyr, a quem gostaria de doá-lo
todo. Observa-se que, tendo o Rei tomado todo o seu tempo, o resto – que ela
gostaria de doar a Saint-Cyr –, não resta e, logo, nada seria. Entretanto, notamos
que apesar de ter todo o seu tempo tomado pelo Rei, ela consegue doar dele ainda
algum resto e, assim, o tempo se apresenta como algo paradoxal: não obstante
tenha sido totalmente tomado, resta dele, ainda, algo tal que é inclusive por ela
doado. Percebemos que, ao tempo, é aplicada uma mensuração com a qual
estamos há muito familiarizados, mas que, conforme exemplificado, tal mensuração
é inexata e se invalida naquilo que se apresenta como um contrassenso. Ao
diligenciarmos mensurar o tempo, ele se pulveriza, invalidando a possível
totalização: do todo [tomado] excede-se um resto [doado]. Há sempre um resto, algo
sobra, a conta não fecha. Na soma ou no acúmulo progressivos, algo fica de fora da
equação e a transformação em linha reta, na qual todo o tempo é acumulado em
uma só direção é, desde sempre, impossível.
Os dejetos da obra O Século evidenciam o excedente na civilização: restos da
produção humana. Ainda que as trocas do círculo ritualístico da dívida sejam
baseadas na equiparação não existe um domínio acerca da paridade. E o tempo é
emblemático para verificarmos a imprecisão acerca das várias tentativas de captura
dos fluxos, tanto temporais, quanto econômicos.
Não obstante a mensuração do tempo também seja impossível, é justamente
a partir dela que procedem-se os modos de representação temporal. A
incongruência verificada, logo, não resume-se à relação entre o tempo que
experimentamos e a sua representação, mas é também inerente à representação
mensuradora em si. Buscamos, portanto, outros modos de ver o mundo, outras
62
possibilidades, questões estéticas que resistam à primazia desta incongruente
representação temporal que tanto influencia nossa vivência do tempo, fazendo-nos
distanciar e obnubilar até mesmo a experiência que temos dele.
A obra O Século realiza precisamente a mesma operação realizada por hōs
mē [“como não”] e katargéō, que são tensores especiais justamente pelo seu poder
de dissimulação. Os dejetos em O Século retornam, a partir do flip, à sua condição
de potência. Este retorno à vida ocorre precisamente pela mesma estratégia de
elisão que é feita por hōs mē e katargéō. Os dejetos em O Século não pertencem ao
seu passado estanque. Eles voltam, sob uma nova significação, qual seja a de
emperrar o caminhar para frente do suposto desenvolvimento a que eles, ora,
serviram. Esta mesma indistinção é aplicada pelo hōs mē quando ele obnubila, na
vocação, posse – imanente –, uso – transcendente –, presente e passado, por fim. E
katargéō indica que é conveniente a permanência do moto práxis, loopado, pois nele
estaria implícita a melhoria, o desenvolvimento.
3.4 Resistência
Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. (WITTGENSTEIN
apud DANTO, 2006)
Como vimos, existem modos de exercício de poder que são imperceptíveis
pois estão devidamente resguardados, dissimulados e, algumas vezes, substituídos
por uma série de dispositivos de inoperância.
A inoperância autêntica é o modo de resistência, digamos, à altura dos
dispositivos de inoperância dos projetos de poder. Esta resistência é elaborada pela
arte, como temos visto até então, a partir de implicações na questão do tempo, sob
variadas estratégias de natureza estética. A resistência é o modo profícuo de
combate às estratégias de poder.
Michel Foucault havia situado as sociedades disciplinares entre os séculos
VIII e XIX. No entanto, encontramos no texto “Post-scriptum sobre as sociedades de
controle”, de Gilles Deleuze, algo como uma atualização do conceito foucaultiano e
uma clara advertência em relação àquela que, segundo Deleuze, é nossa atual
condição: a sociedade de controle. “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas
armas” (DELEUZE, 1972-1990, p. 219), dizia Deleuze. No mesmo texto, encontra-se
outra passagem sobre a atual condição humana cuja relação com a teoria derridiana
63
sobre o ciclo ritualístico da dívida é evidente: “O homem não é mais o homem
confinado, mas o homem endividado” (DELEUZE, 1972-1990, p. 3). Aquilo que nos
domina e nos confina não é um poder declarado e explícito, mas sim as próprias
trocas que não cessamos de realizar e, especialmente, a crença em um suposto
desenvolvimento ao qual elas nos levariam. Este perene moto, que é o círculo
ritualístico da dívida, como já dissemos, define o ritmo do ser, a nossa condição
humana.
Acreditamos que resistência aos regimes de dominação deva, portanto, incutir
aprofundamentos sobre a concepção e experiência temporais, tendo em vista,
sobretudo, a tensão dívida-dádiva.
Na entrevista “O Abecedário de Gilles Deleuze”, a jornalista Claire Parnet
escolhe um tema para cada letra do alfabeto, sugerindo que o filósofo discorra sobre
cada um dos tópicos propostos. Para a letra “R” é sugerido resistência – “e não
religião”, como pontua Parnet. Ao iniciar sua concatenação, Deleuze questiona o
que é resistir, e a sua própria e imediata resposta é: criar é resistir. Esta fundamental
declaração do filósofo remete, precisamente, à citação de Wittgenstein com a qual
iniciamos esta sessão: “Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida”. É
através da arte que a possibilidade de ver o mundo de outro modo se aproxima da
vida. É a criação que consegue desvincular as relações de paridade.
Em seguida, o filósofo aprofunda sobre o fato de a resistência evidenciar-se
nas artes, além da criação como resistência, e diz, por fim, que a motivação da arte
e do pensamento estaria numa certa “vergonha de ser homem” (DELEUZE, 19881989):
Acho que, na base da arte, há essa ideia ou esse sentimento vivo, uma
certa vergonha de ser homem que faz com que a arte consista em liberar a
vida que o homem aprisionou. O homem não para de aprisionar a vida, de
matar a vida. A vergonha de ser um homem. O artista é quem libera uma
vida potente, uma vida mais que pessoal. Não é a vida dele. (DELEUZE,
1988-1989)
A resistência que a arte se propõe a realizar parte, portanto, segundo
Deleuze, do questionamento sobre a ontologia ou, conforme Emanuele Coccia,
sobre reflexões acerca da natureza humana distanciada de seu lado natural,
tornando-se inatural. Parnet, então, solicita um aprofundamento sobre a vergonha a
que se refere Deleuze:
64
Quer dizer que essa vergonha de ser um homem... A arte liberta a vida
dessa prisão, dessa prisão de vergonha. É muito diferente da sublimação. A
arte não é... É realmente uma resistência? (DELEUZE, 1988-1989)
Ao que Deleuze responde:
É uma liberação da vida, uma libertação da vida. [...] São potências de vida
fantásticas. [...] Só a sua existência já é uma resistência. [...] Liberar a vida
das prisões que o homem... Isso é resistir. [...] Vemos isso claramente no
que fazem os artistas. Quer dizer, não há arte que não seja uma liberação
de uma força de vida. (DELEUZE, 1988-1989)
E, finalmente, perante a indagação de Parnet: “Mas quando você cria, quando
você é um artista, você sente esses perigos o tempo todo à sua volta? Há perigos
por toda parte?”, temos a afirmação categórica acerca da realidade do controle nas
sociedades. Responde Deleuze: “Claro que sim” (DELEUZE, 1988-1989).
A questão ontológica levantada por Deleuze por meio do posicionamento da
vergonha em ser homem não pode deixar de ser aprofundada, pois acreditamos
estar neste âmbito, uma série de implicações sobre o tempo histórico. Como
dissemos, está precisamente na historicização – ou temporalização – do tempo o
distanciamento da sua representação em relação à nossa experiência, que, por sua
vez, permite que todas as estratégias de poder capturem nossa práxis,
transformando-a em uma mecanicidade a serviço do progresso, que é o
desenvolvimento somente do poder.
Compreenderemos, a partir do vídeo Confronto [Série Unus Mundus], 2005,
da artista Cinthia Marcelle, a relação entre o homem que se distancia da sua
natureza, a mensuração do tempo e sua transformação em história, adentrando
finalmente em um ponto sobre o qual perpassamos até então, o fazer que define o
ritmo do próprio ser.
3.5 O blackout político de Confronto
O vídeo Confronto da artista mostra, por um mesmo enquadramento, em um
único ângulo, sem cortes ou movimentos de câmera, uma cena de malabaristas que
performizam, com tochas acesas, ao longo da faixa de pedestres, diante de carros
que aguardam que o semáforo fique verde. Eles repetem a performance algumas
vezes durante o período em que o semáforo está fechado para os carros, saindo da
65
faixa de pedestres toda vez que este fica verde, dando passagem aos veículos, e,
estranhamente, não pedem dinheiro aos motoristas ao final de cada performance,
como ocorre com frequência nestas situações.
Existe, contudo, uma espécie de progressão por trás da narrativa. Na primeira
performance, os malabaristas são dois, na segunda, quatro, na terceira, seis, na
quarta, oito. Na quarta repetição da performance mostrada pelo vídeo, porém,
quando o período do sinal vermelho se encerra, os performers, no entanto, não dão
passagem aos carros, permanecendo na execução do malabarismo com tochas,
ainda que o sinal tenha aberto para os veículos.
66
Figura 6 - Confronto
Fonte: MARCELLE (2005).
O contexto por si só é cíclico. O ritmo dos carros que não cessa de repetir o
mesmo movimento é refeito pelos malabaristas, tanto pelo girar de suas tochas
quanto pela sua entrada e saída da faixa de pedestres, em sincronia com o ritmo
determinado pelo semáforo. A interrupção instituída pelos performers inflige
diretamente no fluxo do temporal que é repetido diária e geograficamente pelos
motoristas que percorrem as mesmas ruas, todos os dias, para deslocarem-se do
casa ao trabalho e vice-versa.
A ação lúdica de brincar com fogo impõe-se, configurando um contraponto ao
prosseguimento do percurso dos automóveis, ao movimento inerente à sua função.
Os motoristas, irritados, buzinam e tentam avançar sobre os performers que, por sua
vez, permanecem obstinados, em pé diante dos carros. A ação política do vídeo é
oferecida pela artista quando, no ápice das buzinas que, apressados e afoitos para
prosseguirem em seus ritmos os motoristas não cessam de disparar, é inserido, na
imagem, o blackout. No retorno à pura materialidade da cor preta apresentada junto
ao áudio que, diferentemente da imagem cortada, permanece, é dado ao espectador
da obra, a possibilidade de invenção.
67
Relembrando a questão do enquadramento trazida anteriormente, a partir das
noções de Deleuze, o quadro em Confronto seria inseparável da tendência ao vazio,
à rarefação. Isto faz com que o vídeo exerça uma abertura à experiência, à não
mensuração do tempo que o permite, por sua vez, atualizar-se em cada nova leitura
desta lacuna, ou seja, permite-o transitar no tempo. Dizendo de outra forma: a
representação abdica de re-apresentar, de trazer o que foi de modo totalizante, não
circunscrevendo o acontecido em um lugar estanque no passado – assim como os
dejetos, em O Século, não permanecem como algo que foi. Ao deixar à imaginação
do telespectador a conclusão dos fatos, o blackout torna-se dádiva, jogando fora,
infinitamente, o significado, o sentido último por detrás das imagens. Desta forma,
impossibilita o tempo de, a partir de uma repetição enquanto mensuração, equiparar
uma imagem a um fato passado e seguir em linha reta, uma vez que "o que foi" pode
vir a ser novamente, de acordo com as leituras exequíveis do espectador.
O confronto que já nos é apresentado a partir do título da obra fala de uma
resistência que irrompe num cenário cotidiano, cujo volume de veículos nos induz a
contextualizá-lo em uma hora “de rush”. Seu alvo é, antes dos carros e de seus
motoristas, o fluxo temporal, o ritmo desenfreado do trabalho, de um prosseguir cujo
blackout que se instaura em determinado ponto da obra impede-nos de conferir as
consequências previstas, criando-as nós mesmos. O áudio das buzinas e motores
prossegue sobre o blackout, mas não podemos ver até onde vai o ímpeto de
continuação do fluxo, de fazer prevalecer a práxis como sinônimo da vida.
Agamben, em seu texto “O cinema de Guy Debord”, identifica o corte e a
repetição como os transcendentes da montagem em trabalhos audiovisuais. A
repetição não é identificada como o retorno do idêntico, mas como a possibilidade
da multiplicidade temporal, pela existência, por exemplo, do passado a partir da
memória. Ao fazer vir à luz estes transcendentais, Debord, segundo Agamben,
coloca a montagem em primeiro plano e restitui, assim, à imagem, ou seja, ao
significante, a sua possibilidade e a sua abertura em perfeita contraposição ao modo
como os fatos são apresentados pelo discurso midiático, que, ainda segundo
Agamben, tornam “o cidadão indignado mas impotente” (AGAMBEN, 1995, p.4) – ou
seja, impedindo-os de fazer qualquer coisa, já que nos informa que aquilo passou.
Esta situação do espectador é dada pelo fato de o tempo midiático, ainda que
heterogêneo, exercer o poder de relatar os fatos acontecidos, i.e., os feitos. O fato
de os acontecimentos apresentados serem organizados sequencialmente destitui ao
68
espectador a possibilidade de acessá-los, já que eles passaram, aconteceram, e
estão, a partir deste modo como a mídia os apresenta, devidamente alocados no
compartimento “passado”, visto que aquilo passou, não retornará.
Se as pessoas ignoram a performance dos malabaristas e retornam às suas
vidas temos a conversão da potência em pura práxis. É dada a ver a natureza
histórica, pois andar na rua é só um meio para se chegar em casa, ir ao trabalho,
ganhar dinheiro e manter o moto do sistema. O fechamento imagético que o
blackout do vídeo nos proporciona é a abertura do significante. Enquanto o
“conteúdo” da obra remete à inoperância autêntica por meio da interrupção do tempo
histórico, mensurado, ao parar o fluxo dos carros, a sua forma chama atenção por
uma interrupção em seu próprio dispositivo, que é o ato de mediar, de trazer um fato
– o que foi, o feito – ao espectador. E, em correlação aos performances que
interrompem o trânsito, o vídeo corta a própria transmissão, tornando-a potência. A
experiência do motorista do carro, que tem sua continuidade obliterada, é correlativa
à experiência do espectador, que tem a continuidade da representação expungida. E
nesse sentido – não só numa postura política específica, ativista –, mas também
como estratégia representativa, o vídeo é uma verdadeira experiência posicionandose frente à preponderante representação que nós temos do tempo: ele joga fora o
resultado da ação, torna-a potência de vir a ser o que o espectador quiser inferir nas
telas negras do blackout. Isto é a dádiva na obra de arte. O blackout não tem
explicação, não se sabe o que ele significa, e justamente por isso ele continuará
significando, poderemos continuar inferindo sobre o que ele quer dizer. Ele joga fora,
destrói o significado.
Retomando novamente as considerações de Deleuze acerca do extracampo,
veremos que o blackout de Confronto é o tênue fio que liga o sistema fechado do
enquadramento ao que está, só potencialmente, para além do quadro, não
espacialmente – acrescentando espaço ao espaço –, mas, sequencialmente, no
tempo. O blackout realiza um movimento que faz comunicar o conjunto de
elementos enquadrados a nós, espectadores do vídeo, mais do que com o fora, que
só existe a partir de nossas formas de ver o mundo.
Ficam claros, em Confronto, tanto a relação entre a cultura da práxis como
sinônimo de um fazer que nos impele a alimentar o processo de desenvolvimento do
progresso, quanto a subjacência do ciclo por uma progressão, que é, porém,
desmascarada pela irrupção do círculo, realizada pela persistência dos malabaristas.
69
Eles, em um fazer – até literalmente – cíclico, emperram o fazer circular da vida, no
qual tempo é igual a história.
Eis a resistência que Confronto inflige na linearidade do tempo histórico. Sua
estratégia, se verificarmos o gesto dos malabaristas, assemelha-se ao sutil modo de
exacerbar a práxis indiferenciada, executado por Lupita. Ambos os gestos repetitivos
geram um excedente de tempo, um excesso, um resto. Ainda que o tempo do
semáforo tenha se excedido, delonga-se a duração da permanência estática dos
carros. Firmando-os e resistindo ao frenesi em que se transforma a vivência do
tempo na civilização. Se Lupita repete à exaustão o versamento da água de um
copo ao outro, esvaziando o gesto de significados, este esvaziamento é imposto de
modo mais radical em Confronto: na forma do blackout, no retorno à pura
materialidade. Também em relação ao fazer representado como sinônimo daquilo
em que se transformou a natureza humana, as duas obras convergem. No caso de
Confronto, tanto o fazer dos malabaristas quanto o dos motoristas.
Se o tempo tomou a forma que hoje conhecemos, transformando-se em
história, foi, conforme indica Coccia, a partir da caracterização do homem, ou seja, a
partir da constituição de uma ontologia, cujas características formantes nos serão
caras na análise de alguns aspectos trazidos pelas obras aqui tratadas.
3.6 O desejo estéril
Emanuele Coccia, em um gesto anacrônico, recorre à cosmogonia judaicocristã para verificar, através das bases formantes da ontologia, como se originou o
tempo histórico. Vale lembrar que falar desta cosmogonia é falar de uma das
maiores narrativas mestras de toda a história.
Segundo Coccia, foi o ato de desobediência de Adão que determinou, não
menos que a natureza humana: a sujeição ao pecado e a necessidade da morte – já
que a vida no Jardim de Éden era, até então, eterna, assim como a relação entre
eles – homem e terra – era caracterizada pelo prazer. Esta relação harmônica entre
homem e terra identificava o ser no mundo como um perene regozijo –
fundamentado no ócio –, em contraposição à noção de propriedade que será
estabelecida a partir do evento de Adão.
A desobediência é a relação entre um comando – o dizer de Deus – e uma
ação. A partir do momento em que o fazer de Adão deixa de corresponder ao dizer
70
divino, o homem nasce para o trabalho, a fadiga e o sofrimento, e o seu ser no
mundo torna-se sinônimo de práxis.
O início do pensamento ocidental acerca da cultura do fazer teria sido o conto
adamístico do pecado original. A práxis, que tornou-se sinônimo da natureza
humana, teve origem como um castigo pela desobediência de Adão. Não podemos
deixar de identificar que este pensamento de Coccia corrobora a leitura que
Agamben faz de Paulo por meio da emblemática citação de Crisóstomo, à qual
recorremos repetidas vezes ao longo do nosso trabalho.
Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite que se trata de uma
destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e de um dom
verso o melhor [...] O tornar inoperante [katárgēsis] é um cumprimento
[plērōsis] e uma adição em direção ao melhor [...]. (CRISOSTOMO apud
16
AGAMBEN, 2000, p. 94, tradução nossa)
A potência é obnubilada e transformada em uma práxis vazia, segundo este
pensamento, através de uma suspensão de ações – na forma da inoperância – que,
entretanto, não configura a apraxia, mas sim um acréscimo e uma transformação em
algo melhor. De acordo com o pensamento de Coccia acerca do gesto adamístico,
há também uma inoperância, mas que é autêntica: a desobediência na forma da não
execução – da desobediência – do comando proibitivo que é a ação como
consequência do seu desejo, aquele de comer o fruto. Este gesto leva, contudo,
igualmente à práxis vazia como resultado da temporalização do tempo que teria sido
uma decorrência da desobediência. A expulsão do paraíso teria, assim, dado ao
tempo a forma progressiva.
Graças ao gesto adamístico, o tempo tomou a forma que hoje conhecemos,
i.e., transformando a nossa natureza humana em uma natureza histórica, já que,
antes, a vida no Jardim era uma vida sem tempo, eterna. Mas, além de determinar a
nossa experiência do tempo, a nossa história e a nossa natureza, a desobediência
de adão marcou “[...] a impossibilidade de uma experiência humana não marcada
pelo poder” (COCCIA, 2008, p.23, tradução nossa) 17 e pelo arbítrio. Coccia nos
16
Affinché, udendo questa parola, non si creda che si tratti di una distruzione totale, ma in qualche
modo di un acrescimento e di un dono verso il meglio [...] Il rendere inoperante [katárgēsis] è un
compimento [plērōsis] e un‟aggiunta verso il meglio.
17
[...] l‟impossibilità di un‟sperienza politica non marcata dal potere.
71
mostra como a instituição de um governo divino sobre o mundo não se dá, conforme
afirma Agamben, a partir da Trindade18, mas em um momento bem anterior:
Por sua causa Deus não poderá mais governar as coisas por elas mesmas,
interiormente, através da própria natureza delas. Deverá intervir diretamente
em uma gestão pessoal do universo. [...] é por causa desse gesto que o
Deus criador deverá duplicar-se em um Deus soberano e governador. O
verdadeiro núcleo esotérico da teoria do governo divino não é a doutrina
trinitária, nem a teoria da criação divina do mundo, mas o mito, nunca
interrogado enquanto tal, de uma desobediência inicial através da qual uma
parte das criaturas teriam se rebelado contra o seu criador. (COCCIA, 2008.
19
p. 23, tradução nossa)
Atentemos para a distinção feita por Coccia entre uma espécie de “governo
natural” e governo soberano, arbitrário. No primeiro estaria implícita a noção de um
governo inerente à dinâmica da vida [de glória] existente no Jardim, enquanto o
segundo, o governo soberano, teria a transcendência como característica.
O primeiro evento de discórdia na história da humanidade traz consigo a
primeira necessidade de um juízo e de um processo. Logo, seriam contemporâneos
à desobediência, o direito, enquanto técnica de resolução de conflitos, e as
necessidades de poder e da instituição.
A gestão governativa do mundo – chamada providência – nasce a partir do
momento em que Adão não cumpre um comando: aquele de não consumir um dos
frutos do Jardim, tendo como consequência a perda do nosso lugar próprio, o
paraíso, e de toda possível felicidade – cujo ócio é inerente –, a qual, a partir de
então, continuará a nos escapar a cada instante, que será, por sua vez, preenchido
pelo remorso desse não cumprimento do comando e pela glória. O castigo-práxis
acompanhará, então, o nosso ser no mundo.
A resistência de Adão implica um ato moral com dimensão antropológica e
consequências ontológicas: uma ação que modificou o ser não só do seu agente,
mas da inteira espécie à qual este pertence. O traço fundador da natureza humana,
cujo ócio é o traço duplamente original – tanto como origem, quanto como destaque
– passa a ser a desobediência, e essa constitui, por sua vez, não “[...] um evento
18
AGAMBEN, 2009.
Per causa sua Dio non potrà più governare ele cose da se stesse, interiormente, attraverso la loro
stessa natura. Dovrà intervenire direttamente in una gestione personale dell‟universo. [...] è a causa
di questo gesto che il Dio creatore dovrà duplicarsi in un Dio sovrano e governatore. Il vero nucleo
esotérico dela teoria del governo divino non è la dottrina trinitaira, né la teoria dela creazione divina
del mondo, quanto il mito, mai interrogato in quanto tale, di una disobbedienza iniziale attraverso cui
una parte del creato si sarebbe ribellata contro il suo creatore.
19
72
passado, mas a forma na qual se constitui toda possível experiência de si e do
mundo” (COCCIA, 2008, p.27, tradução nossa)20. A natureza humana deixa de ser o
ócio e passa a ser a práxis, e, ulteriormente, como bem observou Oswald de
Andrade, em uma bela pseudo-etimologia, o neg-ócio, a negação do ócio.
(ANDRADE, 1990).
Viver passa a ser sinônimo de experimentar uma irrevogável desobediência
de si: “[...] o homem se transformou em algo similar a uma sombra. Não se podem
enumerar as numerosas coisas impossíveis que ele quer enquanto ele não obedece
a si mesmo, isto é, à sua alma” (AGOSTINHO apud COCCIA, 2008, p. 27) 21 .
Enquanto Deus, conforme vimos, aparta ser e práxis na oikonomia do mundo – a
qual, por sua vez, traz paradoxalmente, a indistinção entre público e privado –, é
através do contrário, i.e., da coincidência entre ser e ação como marca fundamental
do homem como aquilo que ele faz – a sua práxis –, que o tempo se livra do eterno
retorno a si e tem-se, então, a história: onde o fazer define o ritmo do próprio ser.
O “fazer [que] define o ritmo do próprio ser” é, ainda hoje, e de modo sempre
mais exacerbado, a nossa condição. A nossa práxis nos define. Somos aquilo que
produzimos e sermos melhores significa produzirmos mais em menos tempo, ou
ainda, preenchermos a forma do tempo com mais fazeres.
É precisamente com esse ritmo que a narrativa de Confronto dialoga em um
movimento díspar: se, a partir do momento em que os malabaristas interrompem o
fluxo cíclico do trânsito, há uma análoga interrupção do fluxo histórico, ou melhor, da
linearidade de que se disfarça o círculo, o não prosseguimento da obediência de
Adão às leis divinas que regiam o Paraíso determina a inauguração do tempo
histórico.
O verbo desobedecer, transitivo indireto, implica, no entanto, em um prévio
comando, uma lei precedente, que foi imposta apesar do contexto – o paraíso – não
apresentar qualquer necessidade para a sua existência. O governo divino instituíase em uma situação que dispensaria a legislação. Contudo, aquilo a que Adão
desobedeceu foi precisamente uma lei. Se Deus deu aos homens o paraíso e a vida
eterna, ele, contemporaneamente, lhes impôs uma limitação o que faz com que,
diga-se de passagem, tal oferenda não possa configurar-se de fato como um dom.
20
[...] un evento passato ma la forma in cui si costituisce ogni possibile esperienza di sé e del mondo.
[...] l‟uomo è divenuto simile a un‟ombra. Non si possono enumerar ele numerose cose impossibili
che egli vuole mentre egli non obedisce a se stesso, cioè al suo animo.
21
73
O espaço antropológico e ontológico que é inaugurado com o ato de Adão
fundamenta-se na lei. A própria Bíblia, como confirma o seu nome em hebraico, cuja
primeiras traduções em grego eram nomos – lei – ou didaskalia – ensino –, nasce
como “o livro das leis dos judeus” e foi redigida quando a palavra lei ainda não
existia em grego, quando os povos eram comandados por máximas. A bíblia
introduz no mundo a vida na lei, que tem sua origem não em Atenas ou em Roma,
mas em Jerusalém. E o evento nela trazido sobre o pecado de Adão é um aggadah,
ou seja, um conto alegórico contido em uma das duas categorias fundamentais das
quais os legisladores dispunham, juntamente a uma vasta antologia de nomoi – leis
–, para fazer atuar a justiça (COCCIA, 2008). Sobre o conto fundamenta-se e
delimita-se não menos que a ontologia, o ser humano.
Se graças a Adão a experiência da lei coincidiu imediatamente com a
experiência da desobediência, é só na lei e na vida que ela torna possível a
possibilidade da existência de uma vontade capaz de distinguir-se do fazer,
e uma ação que não siga o desejo. É só graças à lei que o homem teve a
experiência de ter uma vontade separável do ritmo dos próprios gestos.
22
(COCCIA, 2008, p. 32, tradução nossa)
Na vida na lei, a vontade difere-se do fazer e a ação desvincula-se da sua
condição de consequência do desejo, inaugurando na subjetividade ocidental uma
práxis involuntária, não gerada pelo desejo e, por conseguinte, um desejo estéril,
incapaz de produzir práxis. Havíamos verificado a esterilidade do desejo já na
passagem sobre a carta de Madame de Maintenon: o desejo associado ao tempo
necessário para doar algo que apresenta sem apresentar-se; o tempo em si.
O espaço metafísico, onde teve lugar o evento do “pecado original”, é um
espaço pré-político, ao mesmo tempo em que ele configura-se como o paradigma de
todas as associações políticas. De forma análoga, ali davam-se relações préfamiliares, ao mesmo tempo em que a união entre Adão e Eva conforma a primeira
família da humanidade. Ou seja, trata-se da origem de todas as sociedades e de
toda família humana, ainda que esteja fora de ambas (COCCIA, 2008).
Para Aristóteles “[...] uma cidade pode ser considerada uma pluralidade de
famílias, de terras e de propriedades autônomas finalizadas ao bom viver [...]”
22
Se grazie ad Adamo l‟esperienza dela legge ha coinciso immediatamente con l‟esperienza dela
disobbedienza, è solo nella legger e nella vita che essa rende possibile che potrà esistere una
volontà capace di distinguersi dal fare, ed un‟azione che non segua il desiderio. È solo grazie ala
legge che l‟uomo ha fatto esperienza di avere una volontà separabile dal ritmo dei propri gesti.
74
(ARISTÓTELES apud COCCIA, 2008, p.33, tradução nossa) 23 . No entanto, a
administração – oikonomia – caracteriza-se pela monarquia, enquanto a política tem,
ou deveria ter, o caráter de uma ordem múltipla – ek pollon archonton24. Ou seja,
configuram-se duas formas de uso do poder, em que, na primeira, o pai pode vigiar
tudo pessoalmente, ao passo que, no governo civil, “[...] o chefe não vê quase nada
senão através dos olhos dos outros” (ROUSSEAU apud COCCIA, 2008, p. 33,
tradução nossa)25. De acordo com Coccia, a distância entre família e cidade é, para
Rousseau, a mesma que existe entre o poder “estabelecido pela natureza” e aquele
“puramente arbitrário”. Esta relação, curiosamente, vale-se da noção da presença
que remete tanto à espacialidade – presença física – quanto à temporalidade – a
aplicação do poder ao longo do tempo. Na oikonomia o poder é aplicado
pessoalmente e a vigilância é realizada através dos próprios olhos, enquanto a
arbitrariedade seria aquilo que determina o governo civil sempre mediado por
terceiros – sem a presença física, mas temporalmente presente –, em contraposição
à aplicação do poder “i-mediato” (BOLTER; GRUSIN, 2000) como ocorre na casa ou
no governo divino da natureza.
O messianismo – ou, segundo Coccia, a sua forma mais difusa, o cristianismo
– nega o conceito grego de experiência política, ou seja, revoga a distinção entre
família e cidade por meio da figura de Deus, cuja administração da casa, por ele
mesmo criada, e do mundo coincidem perfeitamente. Deus seria, de tal forma, capaz
de gerir, sem mediação, ambas instâncias: família ou natureza; sociedade ou
mundo.
A este imediato – sem mediações – como instrumento de poder que permite o
governo em sua forma mais íntima ainda que via terceiros, contrapomos um
autêntico imediato: o blackout de Confronto que não media o fato ocorrido, não
apresenta um feito, mas sim uma abertura à nossa leitura na forma da pura
potência.
De tal sorte, o mundo em si coincidiria perfeitamente com a lei e vice-versa,
conforme a extraordinária pesquisa de Coccia nos indica:
23
[...] una città può essere considerata come una pluralità di familie, di terre e di proprietà autonome
finalizzate al buon vivere [...].
24
εκ πολλών αρχοντων: por muitos príncipes.
25
[...] il capo non vede quasi nulla se non attraverso gli occhi altrui.
75
Dado que o pai é fisicamente mais forte que seus filhos, pelo menos por
todo o tempo em que eles precisam de ajuda, o poder paterno justamente
parece ser estabelecido pela natureza. Na grande família da qual todos os
membros são ao contrário naturalmente iguais, a autoridade política
puramente arbitrária, quanto à sua instituição, não pode ser fundada senão
sobre convenções, nem o magistrado pode comandar aos outros senão em
26
virtude das leis. (IVI apud COCCIA, 2008, p. 34, tradução nossa)
Colocar o mito da criação no livro Gênesis, início do corpus juris – o livro das
leis dos judeus –, faz com que a formação do mundo proceda sincronicamente à
formação da lei que o governa. E, logo, negar a doutrina da criação seria eliminar a
lei, o governo providencial.
A existência da necessidade de um governo e de uma cura – de um cuidado –
está condicionada a uma criação.
Não somente onde há paternidade há autoridade, mas a cada vez que
existe uma relação de autoridade deve haver e ser instaurada uma relação
de paternidade. [...] A criação é fruto de uma dedução jurídica e não
27
cosmológica. (COCCIA, 2008, p.35. tradução nossa)
Fica declarado, através da indistinção entre o paradigma da criação e a
fundação política, que não pode existir direito sem criação e que esta não pode
acontecer distante de um ato de poder e normatização sobre as coisas.
O gesto de Adão é um gesto político porque diz respeito e define toda a
natureza humana, mas é capaz de sê-lo justamente pela indistinguibilidade préestabelecida entre poder e natureza, soberania e geração. O governo divino é
aplicado igualmente e de forma i-mediata, tanto na administração da casa por ele
criada quanto no governo do mundo. A desobediência de Adão assinala a ruptura da
indistinção rousseauniana entre as instâncias do poder “estabelecido pela natureza”
e “puramente arbitrário”. A não resistência de Adão à sua vontade, ou, em outras
palavras, a fertilização do seu desejo em sua ação, indica, por outro lado, a
resistência, o desacordo, a rejeição ao primeiro e mais banal comando que, se
tivesse sido obedecido, teria cessado de ser lei para ser um “[...] mero
prosseguimento do ato de criação. Só onde existe desobediência a ordem da
26
Dato che il padre è fisicamente più forte dei suoi figli, per almeno tutto il tempo in cui è loro
necessario un aiuto, il potere paterno a ragione sembra essere stabilito dalla natura. Nella grande
famiglia di cui tutti i membri sono invece naturalmente eguali, l‟autorità politica puramente arbitraria,
quanto alla sua istituzione, non può essere fondata che su delle convenzioni, né il magistrato
comandare agli altri che in virtù delle leggi.
27
Non solo lá dove c‟è paternità c‟è autorità, ma ogni volta che c‟è una relazione di autorità deve
esserci ed essere instaurato un rapporto di paternità. [...] La creazione è frutto di una deduzione
giuridica e non cosmologica.
76
soberania não é mais reconduzível à ordem natural [...]” (COCCIA, 2008, tradução
nossa)28. Graças à resistência de Adão à lei e à não resistência ao seu desejo, o
poder desvinculou-se da natureza, passando a não mais representar, pelo menos
para os homens, algo de natural.
O que Adão inventou, ao desobedecer, foi um modo de vida no qual a lei não
mais dissimulava-se na forma de natureza – inerente à vida. Efetivamente, este
modo de vida inventado – esta resistência – não poderia opor-se a outra coisa senão
à lei, já que ela baseia-se justamente no distanciamento do lado natural do homem –
de seu desejo e de seu ócio – de si mesmo, criando, por fim uma inatureza humana.
A projeção daquilo que a lei permite que seja feito configura um
enquadramento de características que compõem, a partir desta permissão-seleção,
narrativas mestras, que, no caso da historicização do tempo, terá a forma sequencial
de acontecimentos que se sucedem, encadeados conforme um antes e um depois:
causas e efeitos, comandos e cumprimentos.
A práxis obliterada do desejo, isto é, uma práxis vinculada a um exterior, ao
poder, não permite que haja exterior para nós, ou seja, que não haja práxis fora do
poder, uma vez que ela conecta-se intimamente a ele. Pensamos o contexto de
Confronto como uma práxis alienada – os motoristas dos carros, o trabalho podem
converter-se, a partir do blackout, em potência, potentia novamente. Por outro lado,
a História é a história dos grande acontecimentos, dos feitos ilustres, ou seja, ela
não nos leva em consideração, independe de nós, conforme dissemos. Abrir o
tempo, interromper o fluxo histórico, retilíneo, destruir a presença, é, sobretudo, a
oportunidade de podermos ler como bem queremos, de podermos imaginar e criar
outros modos de vida, i.e., de podermos ser agentes da história, de poder escrevê-la
também – no lugar de uma história em que o sujeito real é o Estado, o poder. A
heterogeneidade é uma história múltipla, dos pequenos fatos.
Sabe-se, entretanto, que não todas as manifestações artísticas propõem-se
ou são capazes de elaborar pensamentos com densidade que possa configurar
resistências reais à dominação, ao controle, como nos alerta Stéphane Huchet:
Hoje, muitos artistas usam o termo “político”, muito abrangente, para abrigar
a questão da relação da arte com a sociedade, do impacto de suas
realizações, reciclando a velha questão da relação entre arte e vida, tão
28
[...] mera prosecuzione dell‟atto di creazione. Solo dove existe disobbedienza l‟ordine dela sovranità
non è più riconducibile all‟ordine naturale [...].
77
forte no início do século XX. Muitas vezes, o uso desse termo serve
inclusive à não-problematização de seus limiares e de seus caminhos de
aproximação. (HUCHET, 2010, p. 1099-1100)
As manifestações artísticas que se colocam frente aos discursos dominantes
e questionam seus limiares, restituindo a participação de todos na escrita da história,
são configurações políticas que conformam contrapontos às narrativas que Arthur
Danto chama de narrativas mestras da história [da arte]. A nosso ver, elas seriam
políticas por aproximarem-se da nossa heterogênea experiência do tempo, refutando
o ponto de vista histórico, a história contada, única, a História dos Feitos Ilustres.
Elas tratam precisamente dos grandes feitos, passado do verbo fazer. Este mesmo
mecanismo é aplicado ainda hoje pelo discurso midiático que, mesmo em seu
aspecto múltiplo, tanto nos suportes quanto nas temporalidades, exerce o poder de
contar aquilo que foi, desprovendo o feito de suas possibilidades de vir-a-ser. Por
isso, apesar de sua aparente multiplicidade – como vimos na teologia –, o tempo
acaba por ser traduzido como uma seta, uma vez que o passado passou, que os
acontecimentos são re-apresentados sem sua potência, de forma totalizante, nos
fazendo imaginar que continuamos a andar para frente.
As obras que aqui analisamos configuram resistências à exclusividade dos
discursos dominantes. Todas elas opõem-se à história em sua unicidade discursiva,
cada uma a partir de uma problematização estética.
Para Danto, a partir de um determinado momento por ele denominado “fim da
arte”, a “arte contemporânea não mais permite ser representada por narrativas
mestras de modo algum” (DANTO, 2006, p.XVI). A morte, ou o fim a que ele se
refere, claramente, não é da arte em si, mas de uma narrativa legitimadora da arte:
“Uma história havia acabado” (DANTO, 2006, p.5) e seria, ao contrário, “o primeiro
dia do resto de sua vida” (DANTO, 2006, p.6). A narrativa mestra ou dominante diz
sobre uma especialização de técnicas que, ao desenvolverem-se, acumulam-se,
sobrepõem-se e sucedem-se em direção a um aperfeiçoamento. Danto indica que a
teoria defendida pioneiramente por Giorgio Vasari – para quem a arte seria a
conquista progressiva da aparência visual – e, posteriormente, por Clement
Greenberg não dá conta das manifestações artísticas que não se comportem como
sucessoras da manifestação técnica e cronologicamente anterior. O acúmulo de
técnicas e progressivas conquistas que esta narrativa seguia é a mesma da qual
Crisóstomo fala: “um cumprimento [plērōsis] e uma adição em direção ao melhor
78
[...]". Greenberg defenderia a arte como história sancionada, i.e., algo que deve levar
em consideração os avanços, entendendo-se como uma linha progressiva. Para ele,
as manifestações que vieram “após o fim da arte” estariam para
[...] além do limite da história, aconteceu mas não foi parte significativa do
progresso [demonstrando] até que ponto a identidade da arte estava
internamente ligada à participação de uma narrativa oficial. (DANTO, 2006,
p. 11)
A história vincula-se de modo tão estreito à arte, até o ponto da última ser
apreciada sob a perspectiva de uma narrativa, conforme antecipado por Greenberg:
“uma história progressiva linear [...] juntamente com o aprendizado das sequências
históricas” (DANTO, 2006, p. 19).
Deste modo, a partir da década de sessenta, ter-se-ia instaurado, segundo
Danto, uma historicidade do presente marcada pela inaplicabilidade de qualquer
narrativa mestra na qual estariam, finalmente, incluídas as obras antes localizadas
temporalmente para além do limite da história – algo, por excelência, político.
Quando a arte não mais diz o que foi o mundo – mas diz sobre si –, ela se
abre historicamente, pois se torna dádiva, não possuindo atributo ou equiparação na
forma do mundo exterior. Ela não mais diz sobre algo, mas diz algo. “E em razão da
situação presente ser essencialmente desestruturada, a ela não pode mais se
adequar uma narrativa mestra” (DANTO, 2006, p. 127). Acreditamos, porém, que
essa desestrutura surge por ser inerente à vida, assim como nossa experiência do
tempo é, por natureza, múltipla. Aquilo que Danto chamou de arte após o fim da arte
é, em si, uma forma de resistência.
No posfácio à edição brasileira do livro de Danto, Virginia Aita acrescenta:
Esse outro nível de consciência filosófica da arte torna possível a
coexistência pacífica de diversas narrativas num cenário pluralista marcado
por seu caráter disjuntivo [e] assinala a resistência da arte pós-histórica [...].
(DANTO, 2006, p. 277)
A narrativa oficial ou mestra, discurso dominante ou história dos res gestae,
corresponde a conformações comprazentes da representação sequencial e linear do
tempo. Se a arte contemporânea admite a coexistência de múltiplas narrativas, ela
está mais próxima da nossa experiência.
79
Atemo-nos às questões estéticas privilegiadas por obras que revocam
aspectos da conformação espacial da representação do tempo direta e
pungentemente, como é o caso do Programa Cosmococa – CC –, obra de Hélio
Oiticica e Neville D‟ Almeida, elaborada entre os anos de 1973 e 1974.
Cinco Cosmococas foram recentemente reunidas e montadas em um espaço
único, no Centro de Arte Inhotim. Em uma espécie de pavilhão, estão hoje
disponíveis para visitação Trashiscapes, Onobject, Maileryn, Nocagions e HendrixWar, nomes dados, respectivamente, às CCs, de 1 a 5, às quais dedicamos uma
sessão do nosso trabalho.
Cada uma das CCs é um “bloco-experimento” ou “bloco de experiências”. São
“ambientes sensoriais com projeção de slides, trilhas sonoras e diversos elementos
táteis” 29 . Cada CC faz parte daquilo que Oiticica chamou de “quasi-cinemas”:
instalações ambientais cujas projeções de imagens posicionam-se em um estado de
formação, na iminência do cinema, em devir, in process, como diz o título. Elas
colocam-se no limiar entre a as narrativas cinematográficas a nova configuração
espacial oferecida pelas as obras de arte que trabalham o audiovisual.
Se, no cinema, o espectador é imerso em um contexto que o isola do mundo
no intuito de conduzir sua experiência em direção à narrativa sequencial oferecida, a
imagem em movimento inserida no circuito da arte, como a TBA, por outro lado,
oferece uma nova temporalidade que é inerente à obra em si, por meio, muitas
vezes, de narrativas fragmentadas, mas também por meio de relações espaciais
mais livres entre o espectador e a fruição – que diferencia-se da imersão. Ao ser
apresentada em um galeria de arte, a duração que o ato de assistir terá é
determinada pelo espectador e não pela obra. A ele também é oferecida maior
abertura espacial no sentido de, algumas vezes, não serem dispostas cadeiras
enfileiradas e direcionadas à tela. A relação que o espectador – ou participante, no
caso da CC – tem com a obra é, em si, mais fragmentada. Ele pode assistir a uma
parte da obra, sair da sala e voltar em outro momento, ou mesmo não voltar,
optando por absorver apenas parte da narrativa.
É sobre esta liberdade que o “quasi” diz. Os autores das CCs frisavam o fato
dos blocos serem um programa e não um projeto, proposições experimentáveis que
não remetem à temporalização do tempo, refutando a ideia da projeção temporal,
29
INHOTIM, Cosmococas 1-5, 2009.
80
inerente, como vimos à própria etimologia da palavra: projeção temporal que
antecipa o futuro, i.e., informando que o tempo é uma seta. “Projeto associa-se a
visões utópicas de construção de um futuro. Programas não idealizam ações e obras
para o futuro, mas anunciam a experimentação” (CARNEIRO, 2007). Ou seja, era
uma preocupação dos autores que a obra não constituísse uma narrativa histórica,
mas que elidisse, esteticamente, em contrapartida, a formação de narrativas ou
discursos dominantes. Em outras palavras, que não fizesse parte da constituição da
história dos res gestae, sobre a qual falaremos em uma breve passagem que nos
permitirá compreender melhor as implicações da ações e desarticulações
empreendidas pelos autores da Cosmococa, antes de prosseguir em sua leitura.
3.7 A História como res gestae
As Histórias desejam combater o caráter destrutivo do tempo. Retornamos
[incessantemente] à Crisóstomo: “Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite
que se trate de uma destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e
de um dom verso o melhor". Isto é, estamos melhorando; ao passo que podemos ver
o que foi feito, somos testemunhas do que foi e poderemos comparar para seguir
melhorando, acumulando história e tempo.
“Assim como a palavra que indica o ato de conhecer (eidénai), também a
palavra história deriva da raiz id-, que significa ver. Histór é, na origem, a
testemunha ocular, aquele que viu” (AGAMBEN, 2008, p. 114). Restringe-se, assim,
a história à condição da presença, do olhar, da visibilidade e do testemunho. A
supremacia grega do olhar determina a “presença do olhar” como condição para o
ser autêntico, excluindo assim a experiência da história como “[...] aquilo que já está
sempre lá sem jamais estar sob os olhos como tal” (AGAMBEN, 2008, p. 114). Mas
a necessidade da presença é imposta pelas Histórias que insistem em construir-se a
partir dos grandes feitos – res restae –, implicando, de tal forma, a vã tentativa de
combater o caráter destrutivo do tempo e corroborando a inútil obsessão do homem
em dominar, quantificar, ganhar, possuir e fazer passar o tempo. Tem-se a
conversão da multiplicidade em acúmulo, da dádiva em soma, herança e dívida, em
contraponto à destruição, nossa irrevogável e verdadeira condição. Por isso a
necessidade de uma experiência autêntica do tempo, imediata – sem mediações –,
múltipla, ociosa, dispendiosa.
81
Como afirma Agamben, as transformações culturais estão atreladas às
transformações sobre a representação temporal. O tempo, no cristianismo –
diferentemente da noção circular helenística –, como sabemos, é representado por
uma linha reta cuja origem, duração e fim desenvolvem-se a partir da Gênese e em
direção ao Apocalípse. “A história [...] se tornou uma série de fatos que progrediam,
de um início bem definido para um objetivo estabelecido. Nascia a história da
salvação, a ideia do tempo linear” (DISCOVERY, 1994). O tempo cristão possui um
único sentido que é aquele que remanesce até a chegada escatológica da redenção
final.
A partir do cristianismo, o movimento circular dos astros deixa de constituir o
mecanismo de mensuração do tempo e este passa a ser um fenômeno
essencialmente humano e interior, como sugeriu Santo Agostinho: “[...] É em ti, meu
espírito, que eu mensuro o tempo” (AGOSTINHO apud AGAMBEN, 2008, p.114).
Enquanto a compreensão do tempo como sucessão contínua de instantes
conforme um antes e um depois for aquela que determina a representação do
tempo, existirá sempre uma incongruência, um hiato entre essa representação e
nossa experiência. E, segundo Agamben, não será possível construirmo-nos como
seres autênticos, já que nossa história será a historia rerum gestarum, ou seja, a
„história dos feitos ilustres, das grandes empresas‟, segundo, obviamente, a ótica de
quem a escreve, e, na qual, por fim, o “sujeito real da história é o Estado”
(AGAMBEN, 2009, p. 120). É a esta noção que se distancia a concepção do
programa CC, que propõe, por sua vez, outras relações com o tempo, que não seja
o encadeamento sequencial de ações, conforme veremos.
A idade moderna absorve a concepção grega do tempo como sucessão
contínua de instantes pontuais e, por quanto tenha dissociado-se da noção de fim,
própria à concepção eclesiástica, mantém a ideia de “qualquer sentido que não seja
o de um processo estruturado conforme o antes e o depois” (AGAMBEN, 2008, p.
117). Se na antiguidade e no cristianismo esta sequência causal tratava-se de uma
noção incerta, calcada em vista de um fim do tempo – o Apocalipse –, na
modernidade, o antes e o depois passam a ser o sentido em si e por si, que é,
então, apresentado como aquilo que é verdadeiramente histórico. O “processo” – a
velha sucessão de instantes – passa a ser a concepção de história na modernidade
e, associado à noção de “desenvolvimento”, integra as categorias-guia do
conhecimento (AGAMBEN, 2008).
82
O grande impedimento que a ideia do tempo como sucessão contínua de
instantes pontuais impõe à formulação de uma história autêntica é que, assim, a
verdade caberá sempre ao processo como um todo, i.e., à história contada, no
singular, como se a profusão de acontecimentos que transcorrem no tempo
pudessem ser resumidos a uma única narrativa.
A partir da contextualização da regente representação temporal, que baseiase na exclusão de quaisquer acontecimentos que não ocupem devidamente seu
local na organização cronológica passado, presente e futuro, temos os precedentes
necessários para uma aproximação da obra cuja apresentação foi brevemente feita
nesta sessão.
3.8 Cosmococa – programa in progress
Como vimos, a temporalização do tempo é elidida pelos artistas em CC já a
partir da formulação do título que privilegia o caráter experimental dos programas em
detrimento do planejamento futuro dos projetos.
Analisando o termo cosmos, Beatriz Carneiro, sob o título de Coca cósmica,
pondera, em seu artigo, o percurso de traduções seguido pelo termo:
A palavra cosmos era um termo específico da prática jurídica da Grécia
antiga com o sentido da reta ordem da Cidade Estado. Com o filósofo
Anaximandro de Mileto (609/610 a.C. - c. 547 a.C.) a noção de cosmos se
projetou na natureza e adquiriu o significado mais próximo do que
conhecemos hoje. (JAEGER apud CARNEIRO, 2007)
No entanto, kosmos, a partir de sua tradução para o latim, tornou-se Universo,
cuja raíz grega é, segundo estudos filológicos de Agamben, καθολικής (católica).
Efetivamente, o significado atribuído hoje a cosmos remete à ordem, enquanto o
“Programa Cosmococa: programa anti-cosmos, invenção de cosmos outros,
combate [a] ordem do mundo ao captar forças que atualizam o porvir” (CARNEIRO,
2007). Lembramos, ainda, que o termo cosmos segue em oposição ao termo caos e
identificamos, por outro lado, que a resistência em CC propõe-se a partir da
reconfiguração da relação com o tempo, que se dá, finalmente, não mais através da
representação organizada cronologicamente.
Os espectadores, ou participantes, como prefere Beatriz Carneiro, são
convidados a fazer parte das obras, experimentando a multisensorialidade para além
83
da experiência multimídia, ou seja, da experiência mediada. Na CC, o
multissensorial é o contato com o próprio corpo, imediato.
Antes de entrar nos blocos, os participantes são convidados a retirar os
sapatos. As CCs são apresentadas por fichas técnicas que contêm indicações sobre
a trilha sonora e sugestões de ações a serem desenvolvidas durante a fruição. As
imagens projetadas são slides, fotografias de desenhos feitos por carreiras de
cocaína em capas de discos ou livros. Os artistas, que foram usuários sem culpa da
cocaína, faziam dela também uso estético, remetendo ao ócio, à nossa original
condição da qual Coccia indica que fomos extirpados quando o tempo temporalizouse.
A cocaína era também a promotora de mundos simultâneos, da extensão
dos corpos ao mundo e das coexistências. Ao seu uso, Oiticica atribuía uma
saída da vida do trabalho e da competição porque os modos de vida não
precisam ser superados, eles coexistem. A prima, como Oiticica chamava a
coca, era a alienação nas imagens das infinitas experiências simultâneas.
(CERA, 2012)
Na entrada da CC1, Trashiscapes, são disponibilizadas lixas de unha. Os
participantes são convidados a experimentar a obra, transcorrendo o tempo
acomodados em colchões e almofadas, assistindo aos slides projetados em duas
paredes. As projeções deslizam contemporaneamente ao som de forró, baião, Jimi
Hendrix e outros sons, o que, por si só, configuram uma relação múltipla com o
tempo e o contexto original das músicas, uma anacronia. As imagens são de
instrumentos para o uso da cocaína e desenhos feitos pelas carreiras. As ações que
os participantes realizam remetem “à postura preguiçosa de pouco se lixando”
(CARNEIRO, 2007).
84
Figura 7 - Cosmococa - Program in Progress, CC1 Trashiscapes
Fonte: OITICICA; D’ALMEIDA, 2012
O ócio sugerido aos participantes é o contraponto à representação sequencial
e linear do tempo à qual somos submetidos no nosso dia a dia.
Então veio uma outra mudança fundamental ligada ao pensamento
religioso: o que se tornou conhecido como Norma de São Benedito no
cristianismo ocidental iria mudar profundamente a rotina diária. O ócio é
inimigo da alma [Idleness is an enemy of the soul]. Saint Benedict.
(DISCOVERY, 1994)
Como vimos, a partir de Coccia, existe um círculo vicioso entre a negação do
instinto natural da natureza humana – a nossa inatureza –, que se reflete
precisamente no fazer vazio, que, por sua vez, temporaliza o tempo, perpetuando o
fazer como proceder desvinculado do desejo e configurando uma práxis
indiferenciada. Esta dinâmica foi tratada por Derrida com relação às trocas do círculo
econômico que endividam e propulsionam o prosseguimento delas mesmas, sem
fim. A restituição da ociosidade operada pela CC é a inoperância autêntica por
excelência. Ela nos dá o direito de não fazer, nos devolve à condição de seres em
contraposição à noção de profissionais, que tende a substituir-nos.
85
A partir de estudos filológicos de Agamben e Emanuele Coccia, é possível
compreendermos o quanto o distanciamento do ócio é fundamental para a
transformação do tempo em história.
3.8.1 klēsis, Beruf
Como já dissemos, o sentido da humanidade resume-se, hoje, em progredir e
desenvolver em direção a um fim que não é outro senão o do desenvolvimento do
próprio progresso que permanece, por sua vez, em uma infinita retroalimentação. As
causas para que fosse atingido o extremo verificado podem ser conferidas, em
alguma instância, a desdobramentos do uso do termo klēsis, cuja tradução seria
vocação ou chamado.
A utilização que nos interessa deste termo é indicada por Agamben em um
trecho da Carta de São Paulo aos Romanos: “O termo klētós, do verbo kaléō,
chamar, significa „chamado‟ (vocatus, traduz Jerônimo)” (AGAMBEN, 2000, p. 25,
tradução nossa)30. O trecho no qual compare, no entanto, a menção a este termo é:
Quanto ao resto, [...] cada um como Deus chamou, assim caminhe. Assim
disponho em todas as comunidades [ekklēsíais, ainda uma palavra da
família de kaléō]. Alguém foi chamado de circunciso? Que não se extraia o
prepúcio. Alguém foi chamado de com prepúcio? Que não se faça
circuncidar! A circuncisão é nada e o prepúcio é nada ... Cada um
permaneça na chamada na qual fora chamado. Foi chamado de escravo?
Não se preocupe. Mas mesmo que possa transformar-se em livre, ao
contrário faça uso. Quem foi chamado de escravo no senhor, é um liberto
do senhor. Da mesma forma, que foi chamado de livre, é escravo do
31
messias. (COR. 7, 17-22 apud AGAMBEN, 2000, p. 25, tradução nossa)
É patente a conotação de permanência no sentido atribuído à vocação. Esta
permanência é o circulo vicioso do qual falamos. Uma inércia – ou inoperância,
como a entendemos – na qual está indicado que permanecer faz progredir. Não nos
preocupemos, permaneçamos e tudo andará bem. Esta é a inoperância cínica à qual
30
Il termine klêtós, dal verbo kalétô, chiamare, significa “chiamato” (vocatus, traduce Girolamo).
Per il resto, [...] ciascuno come Dio ha chiamato, così cammini. Così dispongo in tutte lecomunità
[ekklēsíais, ancora una parola dela famiglia di kaléō]. Uno è stato chiamato circoncisio? Che non si
tiri il prepuzio. Uno è stato chiamato col prepuzio? Che non si faccia circoncidere! La circoncisione è
nulla e il prepuzio è nulla ... Ciascuno rimanga nella chiamata in cui fu chiamato. Sei stato chiamato
schiavo? Non preoccupartene. Ma se anche puoi diventare libero, piuttosto fa uso. Chi è stato
chiamato schiavo nel signore, è un liberto del signore. Allo stesso modo, chi è stato chiamato libero,
è schiavo del messia.
31
86
a apraxia autêntica do gesto de lixar as unhas sugerido na CC1 se opõe, resistindo.
Como veremos, esta resistência perpassa o conceito também das demais CCs.
Mas o que será, a nós, caro é a condição de “absoluta indiscernibilidade” da
vocação messiânica enquanto movimento de “[...] imanência e transcendência, entre
este mundo e aquele futuro” (AGAMBEN, 2000, p. 30, tradução nossa)32. A klēsis
funciona, portanto, como um operador anacrônico.
A questão levantada pelas CCs, para a qual buscamos uma reposta por meio
de incursões filosóficas, é como tornou-se possível a necessidade de se criar
espaços restritos ao não fazer. Imaginamos que o legado que permanece a partir do
modo como o termo klēsis foi traduzido e, posteriormente, utilizado, seja uma fonte
de compreensão para este questionamento. “É através da versão luterana que um
termo que significava originalmente somente a vocação que Deus ou o messias
endereçam a um homem, adquire, de fato, o significado moderno de „profissão‟ [...]”
(AGAMBEN, 2000, p. 26, tradução nossa)33. Aquilo que existiria de mais intrínseco a
nós tem impresso em seu significado, a partir da tradução luterana, o significante
que contém em si os conceitos de processo e desenvolvimento. Agamben indica
ainda como este operador anacrônico desarticula seus significados: Beruf 34 é a
união de vocação e profissão mundana:
Enquanto descreve esta imóvel dialética, este movimento surplace, a klēsis
pode confundir-se com a condição factível e com o estado e significar tanto
35
“vocação” quanto Beruf. (AGAMBEN, 2000, p. 28, tradução nossa)
Se a tradução luterana foi aquela que prevaleceu e se o texto original de São
Paulo nos indica uma nítida acepção acerca da imobilidade e da permanência sobre
a relação do sujeito com sua vocação, o que temos, hoje, é uma leitura da
fundamental necessidade de mantermo-nos estáticos (ou no movimento circular que
retorna ao mesmo ponto) na profissão, que, estando intimamente vinculada às
noções de processo e desenvolvimento, implica em sermos constantes em tal moto,
ainda que ele não leve a nenhum fim que não a perpetuação de si mesmo.
32
[...] immanenza e trascendenza, tra questo mondo e quello futuro.
È attraverso la versione luterana di un temine che significava in origine soltanto la vocazione che
Dio o il messia rivolgono a un uomo, acquista, infatti, il significato moderno di “professione” [...].
34
Em alemão, profissão.
35
In quanto descrive ques‟ immobile dialetica, questo movimento sur place, la klēsis può confondersi
con la condizione fattizia e con lo stato e significare tanto “vocazione” che Beruf.
33
87
A tradução da palavra vocação, cujos sinônimos conferidos pelo dicionário
são predestinação, tendência, talento, aptidão36, culminou em uma equiparação ao
significante profissão. Em contraposição ao sentido de permanência que nos é
indicado acerca desta vocação-profissão, o chamado que os participantes recebem
de Oiticica e D‟Almeida é um convite ao puro ócio. Um convite a opormo-nos à
secular cultura judaico-cristã que nos diz que nascemos para o trabalho, o
progresso, o acúmulo e o desenvolvimento.
Este convite à resistência é realizado em todas as cinco CCs. Na CC2,
Onobject, no lugar de colchões, temos uma grossa espuma cobrindo todo o chão, e
no lugar das almofadas, sólidos como cones, cubos e cilindros feitos, também eles,
de espuma. Ao invés de lixar as unhas, a sugestão é dançar, pular e jogar os sólidos
de espuma para cima. Enfim, brincar e se desestabilizar num chão que nos
desequilibra. Aquilo que nos vem em mente quando pensamos na imersão, não só
na CC2, mas também em outros blocos-experiências, é uma mudança radical sobre
a experiência do tempo. Sabemos que nos blocos das CCs estamos desvinculados
da noção do fazer cíclico que simula acúmulo. A noção que rege as CCs é, ao
contrário, a perda de tempo, seu desperdício. A brincadeira coloca-se precisamente
à contrapêlo em relação à ideia de uma práxis que leva à formação de um produto.
São desarticulações com os significados que os produtos têm – suas funções –,
aberturas que partem da transformação de produtos em objetos, que por sua vez
remetem ao título da CC2. Objetos em sua materialidade pura, a partir da qual
criamos.
36
Médio Dicionário Aurélio, p. 1760.
88
Figura 8 - Cosmococa - Program in Progress, CC2 Onobject
Fonte: D’ALMEIDA ; OITICICA 2012
Citando o romance de Carlo Collodi, Pinóquio, Agamben faz a seguinte
inferência:
Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma
mudança e aceleração do tempo: „Em meio aos passatempos contínuos e
divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num
lampejo‟. [...] o jogo, [...] mesmo que não saibamos ainda como e por que,
altera [o calendário] e o destrói. (AGAMBEN, 2008, p.82-84)
O jogo, como entendemos as brincadeiras praticadas pelos participantes das
CCs, no entanto, não somente corrompe a noção da passagem sequencial do
tempo, como também profana a esfera de onde, originalmente, ele provém.
Pois, se é verdadeiro que o jogo provém da esfera do sagrado, também é
verdade que ele a transforma radicalmente, ou melhor, inverte-a a tal ponto
que pode ser definido sem exagero como „sagrado às avessas‟.
(AGAMBEN, 2008, p.84)
Pensando sobre o fato de os brinquedos serem atualizações de algo que, no
passado, pertenceu à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica do mundo
89
do trabalho, por assim dizer, ou que, por fim, originou-se, além de uma destas
esferas, da miniaturização e desvio de tais objetos à esfera do uso, as formas
geométricas da CC2 colocam, por sua vez, em xeque o racionalismo,
transformando, para tanto, em brinquedo aquilo que poderia ser visto como símbolo
da razão ali representada pelos sólidos de espuma. Formas que teriam em si toda
uma carga histórica, ao serem manuseadas pelos gestos das brincadeiras, retornam
à sua condição de sólido como pura forma. A essência do brinquedo é
eminentemente histórica.
Aquilo que o brinquedo conserva do seu modelo sagrado ou econômico,
aquilo que deste sobrevive após o desmembramento ou miniaturização,
nada mais é que a temporalidade humana que aí estava contida, na sua
pura essência histórica. (AGAMBEN, 2008, p.87)
Logo, aquilo que os participantes fazem ao imergir-se na CC2 é transcorrer o
tempo de um modo que desintegra a sequência linear do calendário – aqui
entendido como o tempo representado pela sua mensuração –; é tornar lúdica a
relação com a razão – através do jogo com seus símbolos –, fazendo passatempo
do acúmulo espacial da história que nos objetos sedimenta-se. “O brinquedo é uma
materialização da historicidade contida nos objetos [...]. Aquilo com que brincam as
crianças é a história” (AGAMBEN, 2008, p. 87-88). Tendo em mente que a nossa
relação com o tempo é uma relação “profissional”, por assim dizer, em que tentamos
acumulá-lo, equiparando, a todo instante, significantes a significados e fazendo uso
de objetos de um modo predefinido que oriente o seu manuseio a um melhor
aproveitamento do próprio tempo, a destituição destes significados por meio da
brincadeira estabelece uma nova linguagem, um novo modo de ver o mundo, uma
outra relação com o tempo. Brincar é brincar com o tempo, transformá-lo em algo
lúdico em contraposição à sua forma de progressão numérica.
Também na CC3, Maileryn, assim como em todos os blocos das CCs, o
aspecto lúdico prevalece. O chão é formado por pequenas dunas de areia, cobertas
por uma lona de plástico rígido, sobre as quais “os participantes são convidados a
deitar e rolar [...]” (CARNEIRO, 2007), em um recorrente convite ao ócio. E os
objetos com os quais brincam são balões amarelos e alaranjados que flutuam pelo
bloco.
O puro ócio volta a ser diretamente remetido pelas redes distribuídas na CC5,
Hendrix-War. Elas são, por excelência, o lugar para se jogar tempo fora, a autêntica
90
inoperância que se dá a ver, pois não se deseja crescer, melhorar, mas ficar deitado.
As redes são criações indígenas – sociedades sem escrita e sem "história", pelo
menos na nossa concepção. Os índios vivem no tempo mítico, e não no tempo da
história sancionada, dos grandes feitos.
As redes da CC5 são, por sua vez, colocadas ao lado de projeções de
imagens ao som de músicas pop, o que configura, como dissemos anteriormente,
um anacronismo – o primitivo ao lado da tecnologia –, ou seja, uma pura montagem
de tempos, na qual se vive uma verdadeira multiplicidade.
Figura 9 - Cosmococa - Program in Progress, CC5 Hendrix-War
FONTE: D’ALMEIDA; OITICICA 2011.
91
Nas redes, ao deitar, as pessoas solevam-se em um movimento que remete à
leveza, não mais tendo que sustentar nem mesmo o peso do próprio corpo,
liberando-se também de pesos que ficarão, momentaneamente, para além do
casulo, no qual cada participante se isola da temporalidade do mundo do trabalho. A
trilha sonora é de Hendrix, que em 1970, declarou “quando as coisas ficarem
pesadas demais, me chame de Hélio” (CARNEIRO, 2007).
Uma analogia entre o conceito de heteropia de Michel Foucault e as CCs é
realizada por Beatriz Carneiro. O conceito é trazido por Foucault em seu texto
“Outros espaços”, que, embora escrito em 1967, foi publicado somente em 1984.
Antes, no entanto, a ideia de heterotopia é mencionada pelo autor no prefácio de
seu livro “As palavras e as coisas” (2007). Neste prefácio, Foucault parece vincular
diretamente o conceito de heterotopia à etimologia da palavra utopia no que
concerne a sua referência espacial, fazendo-nos notar que seu pensamento estaria
atrelado principalmente à noção de espaço, embora algumas vezes seja possível
inferir que sua ideia sobre o tempo tinha um caráter mais ligado à liberdade e ao
porvir do que aquela sobre o espaço:
[...] entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região
mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: é aí que ela aparece,
segundo as culturas e segundo as épocas, contínua e graduada ou
fracionada e descontínua, ligada ao espaço ou constituída a cada instante
pelo impulso do tempo. (FOUCAULT, 2007, p. XVII)
Foucault indica, em “Outros Espaços”, as chamadas heterotopias de desvio:
“aquela na qual se localizam os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à
média ou à norma exigida” (FOUCAULT, 2009, p. 416). Embora os exemplos dados
como heterotopias de desvio sejam as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas e
as prisões, talvez seja possível imaginar as CCs sob as mesmas características, a
partir de sua condição desviante, não só da regra lazer, mas sobretudo da regra
trabalho: “em nossa sociedade em que o lazer é a regra, a ociosidade constitui uma
espécie de desvio” (FOUCAULT, 2009, p. 416).
A aproximação realizada pela autora torna-se, para nós, ainda mais
interessante quando as CCs são relacionadas, especificamente, com a noção de
heterocronia, quarto princípio heterotópico circunscrito por Foucault, sob dois
âmbitos. Enquanto há heterotopias do tempo “que se acumula infinitamente”, como
as bibliotecas e os acervos permanentes de museus, há, em contraposição, “as
92
heterotopias que estão ligadas, pelo contrário, ao tempo no que ele tem de mais fútil,
de passageiro, de mais precário, e isso sob a forma da festa” (FOUCAULT, 2009, p.
419) ou, como vimos, da brincadeira, enquanto “rupturas na vida ordinária, desvãos”
(CARNEIRO, 2007).
As heterotopias estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo,
ou seja, elas se dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de
heterocronias; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os
homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo
tradicional [...]. (FOUCAULT, 2009, p. 418)
Tal ruptura é impulsionada pelo aspecto lúdico que, como já vimos, a partir da
CC2, por exemplo, subverte nossa usual relação com o tempo e impõe-se como
resistência à representação e mensuração do tempo, pois delas nos livra, fazendonos experimentar o tempo sem mediadores. Ainda segundo Carneiro, esta nova
relação com o tempo sugere “situações de prática de liberdade, campo aberto para
experiências reais em que os corpos experimentam o que podem” (CARNEIRO,
2007). Esta liberdade perpassa a obra desde a sugestão “quasi-cinema” e nos
convida a experimentá-la, infligindo uma mudança nos próprios ritmos dos
movimentos corporais, uma desaceleração considerável, não somente física, mas
em que também o pensamento altera seu ritmo. Finalmente parece que livramo-nos
das representações do tempo que nos dizem o que fazer com ele, dentro de um
período, para simplesmente experimentá-lo, heterogêneo e múltiplo como ele é,
desperdiçando-o, perdendo-o, fazendo-o passar e não acumulando-o, preenchendoo, como se ele fosse uma forma capaz de conter ou comportar algo dentro de si.
Se, no início deste trabalho, tivemos a oportunidade de circunscrever o
problema da imensurabilidade do tempo, a partir das análise empreendidas por
Derrida sobre a carta de Madame de Maitenon, no momento seguinte desta análise,
o autor verifica precisamente a noção do preenchimento do tempo, contra a qual as
ações da CC se opõem. Na análise derridiana da carta, Madame de Maitenon diz
que o Rei toma todo o seu tempo. Segundo Derrida, tal noção remete, por
metonímia, ao significado da palavra tempo como aquilo de que ele – o tempo – se
preenche, tornando sua forma mais determinante que o tempo em si, ou seja,
fazendo-nos compreendê-lo, por fim, como uma forma que, ao exacerbar o aspecto
93
espacial deste tempo-forma, o permitiria comportar algo “dentro” de si, isto é, possuir
algo37.
O descompasso sugerido pelas ações da CC em relação à nossa usual
relação com o tempo – o ritmo do trabalho, do fazer – é propiciado, sim, pelo
aspecto lúdico da obra, por aproximar o participante de narrativas não lineares,
inerentes às experiências lúdicas em si, mas também pelas sequências de slides
serem não narrativas: os “quasi-cinema”. A resistência à não linearidade discursiva à
qual alude o advérbio quase não seria, para Oiticica, gerada a partir de uma criação,
conforme vimos em Deleuze, mas a partir de uma invenção:
Criar, segundo Oiticica, obedece a um impulso naturalista de realizar formas
originárias, que prescinde da experiência. Por outro lado, inventar decorre
da experimentação e de estudo, não surge espontaneamente, mas resulta
de necessidades sentidas, de exigências postas pelo percurso e vivência do
inventor ou de seu grupo social. (CARNEIRO, 2007)
Adotar o termo invenção é uma forma de reforçar o devir-obra, ou seja, é um
modo de remeter sempre mais ao processo e não a instituições de situações e
narrativas. Privilegiar o termo invenção, em detrimento da criação que inaugura, é
transformá-lo em um instrumento de resistência infligida pelas CCs devido à sua
decorrência das experiências – em estreita conformidade com a noção que nos
serve como guia para a problematização da questão do tempo. Além disso, o ato de
criação, efetivamente, foi apoderado pelo discurso dominante judaico-cristão e
associado ao poder de impor leis que determinam, também, de modo arbitrário, por
sua vez, uma sequência de ações a serem executadas linearmente.
Estas sequências lineares das quais compõem-se as narrativas mestras
configuram uma delimitação progressiva na forma início, meio e fim, mas significam,
sobretudo, a anulação da dádiva, configurando o fim da potência de vir a ser. Elas
temporalizam a práxis, situando-a num passado e linearizando o tempo, pois se o
fato aconteceu, há um discurso de poder que pode dizer como ele aconteceu,
proibindo-o de vir a ser novamente, não remetendo ao porvir, à potência. Oiticica e
D‟Almeida embaralham a tripartição passado, presente e futuro, fazendo-a inexistir.
Ao negarem a noção de projeto que pré-figura um futuro, eles emperram a
37
Essa conotação do tempo como algo objetivo que envolve as coisas que estão dentro dele como
em um invólucro tem a filosofia grega como ponto de partida, em que a Física era o referencial para
o tratamento das questões. (AGAMBEN, 2008).
94
temporalização do tempo, fazendo-nos experimentá-lo, na CC, de um modo outro,
em contato direto com nossa sensorialidade, com nossa experiência.
3.9 Graça, a dádiva soberana
Derrida observa a dupla condição da palavra gift enquanto presente que
endivida o presenteado, envenenando-o. O termo, em inglês, significa presente, e,
em alemão, tem significado oposto, qual seja, veneno. Logo, para que exista dádiva,
é necessário que o donatário não retribua, não amortize, não reembolse, não se livre
do débito, não entre em um contrato e jamais contraia uma dívida. Se a dádiva se
apresenta como tal, se o presente lhe é presente como um presente, tal
reconhecimento o anula por restituir ao lugar da própria coisa um equivalente
simbólico, na forma cíclica da equiparação.
Logo, não somente a percepção da dádiva, mas até mesmo a percepção da
sua intenção, o sentido intencional da dádiva, antes mesmo de transformar-se em
gratidão, é capaz de anulá-la. E o doador, como vimos, ao tomar consciência de que
doa, começa, desde o momento inicial em que há a intenção de doar, a felicitar-se, a
repagar-se de um reconhecimento simbólico, capaz, também este, de anular a
dádiva antes mesmo de ela acontecer, pois, através da memória, ele lembra que
presenteou e envenenou ao mesmo tempo. Verificamos que tais mecanismos de
impossibilidade da dádiva ocorrem através dos deslocamentos temporais:
A temporalização do tempo (memória, presente, antecipação; retenção,
proteção, eminência do futuro; êxtase, etc.) dá início sempre ao processo de
uma destruição da dádiva: na conservação, na restituição, na reprodução,
na previsão ou na apreensão antecipadora que toma ou compreende por
38
antecipação. (DERRIDA, 1996, p. 16, tradução nossa)
Assim como o tempo, a dádiva não pode ser mensurada, pertencer ou conter,
pois extingue-se no trânsito temporal. A própria aparência, o simples fenômeno da
dádiva, também a anularia enquanto tal, transformando a aparição em fantasma e a
operação em simulacro, nos levando, por fim, a não existência da dádiva, já que, ao
se apresentar, não mais se apresenta.
38
La temporalizzazione del tempo (memoria, presente, anticipazione; ritenzione, protezione,
imminenza del futuro; estasi, ecc.) avvia sempre il processo di una distruzione del dono: nella
conservazione, nella restituzione, nella riproduzione, nella previsione o nell‟apprensione
antecipatrice, che prende o compeende in antecipo.
95
A impossibilidade da dádiva atrela-se tanto às antecipações de autofelicitação do doador quanto ao endividamento que se instaura no donatário, na
lembrança de que algo foi recebido, obrigando-o a repagar – desde a forma do
agradecimento “obrigado” –, configurando um processo cíclico que não oferece
espaço à dádiva.
Eis a temporalização à qual não somente a obra CC, mas também a obra O
Século, se contrapõem. O projeto vislumbra futuros, antevê situações. O programa
de Oiticica e D‟Almeida desenvolve-se em um âmbito outro, para além das
antecipações e previsões, que estariam, por sua vez, ligadas às narrativas mestras
sobre as quais nos diz Danto. Se, de acordo com Beatriz Carneiro, a narração no
cinema e a busca naturalista da reprodução de eventos com veracidade incomodava
ambos artistas, eles privilegiavam a não narração, conforme escreveu o próprio
Oiticica sobre o filme Mangue-Bangue, de Neville D‟Almenida:
MANGUE-BANGUE não é documento naturalista vida-como-ela-é ou busca
do poeta artista nos puteiros da vida: é sim a perfeita medida de frestasfragmentos filmes-som de elementos concretos [...] NÃO NARRAÇÃO
montagem corte de planos takes deslocados fim do conceito de cinema
verité já que o CINEMA É VERDADE e não representação da verdade [...] o
q é a verdade, anyway? (MANGUE-BANGUE, Programa Hélio Oiticica,
organizado por Lisette Lagnado, Tombo nº. 0477/73 apud CARNEIRO,
2007)
A sequencialidade da narrativa cinematográfica na qual a representação do
tempo é configurada pela imagem-movimento “que reproduziria a passagem
sucessiva dos momentos ao mostrar um „antes e depois‟ de uma linha evolutiva na
qual se desenrolava uma ação” (CARNEIRO, 2007) não interessava aos artistas que
optaram, então, por realizar uma experiência de não-discurso. A projeção dos slides
nas CCs está fora da lógica da projeção quadro a quadro cinematográfica e
repercute a arbitrariedade da construção perceptiva do tempo em uma desordem
inerente à coexistência daquilo que seria um antes e um depois: a coexistência de
tempos.
Verificamos, pois, ainda outros mecanismos de inoperância como projeto de
poder, tal qual o “como não” e seu funcionamento que atua precisamente na
concepção temporal, elidindo a cisão entre presente e futuro, uso e posse,
imanência e transcendência. Tendo em mente a obra O Século, pudemos
compreender a relação entre a temporalização do tempo e a condição de existência
96
da dádiva. Se, na obra, o processo de projeção verifica-se precisamente tanto no
gesto representado pelo lançamento de objetos quanto em sua edição em flip, podese observar uma perfeita confluência ao conceito derridiano da impossibilidade de
existência da dádiva neste contexto de previsão, antecipação, vislumbramento.
Pudemos, por fim, assinalar tanto na obra Confronto quanto na CC modos distintos
de se precisar a natureza humana como sinônimo de fazer infértil, segundo
conceitos de Coccia. Ambas resistem à profusão de práxis indiferenciadas, em
radicalidades distintas. No vídeo de Cinthia, o fazer mecanicista dos motoristas é
firmado por um fazer loopado dos malabaristas, ambos interrompidos pela própria
artista em uma ausência de imagens que restitui ao espectador a escritura da
história. Similarmente, podemos pensar que as ações lúdicas propostas em CC
fazem com que o participante tome para si o modo de experimentar não só a obra,
como também o tempo. Pensando principalmente nas duas últimas obras trazidas, é
possível identificar que a resistência ao fazer do mundo do trabalho remete ao ócio:
de modo menos enfático em Confronto, a partir de desperdício do tempo em jogos
com tochas e de modo bem mais enfático na CC pelas redes, lixas de unha,
colchões e travesseiros que implicam uma relação com o tempo oposta àquela
sugerida pela sua representação linear. De um modo geral, percebe-se, como já
mencionamos, que todas as obras operam a contrapêlo em relação aos discursos
dominantes, em que reside, inicialmente, sua resistência.
Verificaremos, a seguir, as estratégias de resistência infligidas pelo artista
albanês Anri Sala, em sua obra Air-Cushioned Ride.
97
4 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA
Somente porque existe uma infância do homem, somente porque a
linguagem não se identifica com o humano e há uma diferença entre língua
e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isto existe história,
somente por isto o homem é um ser histórico. Pois a pura língua é, em si,
anistórica, é, considerada absolutamente, natureza, e não tem necessidade
alguma de uma história. (AGAMBEN, 2005)
Anri Sala é um jovem artista contemporâneo cujo trabalho tem o vídeo como
principal suporte, combinando, em suas obras, imagem, som e arquitetura. Sala
nasceu em 1974 em Tirana, Albânia, e hoje vive e trabalha entre Paris e Berlim.
Estudou na National Academy of Arts, em Tirana, na Ecole Nationale Supérieure des
Arts Décogratifs, em Paris e na Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains,
em Tourcoing, no norte da França. Expôs seus trabalhos em instituições como a
Tate Gallery, em Londres, em 2004, no ARC – Musée d‟art moderne de la Ville de
Paris, no mesmo ano, na Ikon Gallery, na Inglaterra, em 2002 em muitas outras.
Recebeu inúmeros prêmios, dentre os quais o Young Artist Prize, em Veneza, e o
Prix Gilles Dusein, em Paris39.
O artista, que encerrou, no dia 6 de agosto de 2012, sua mostra individual no
Centre Pompidou, representará a França na 55a Bienal de Veneza, em 2013. Apesar
do trabalho de Sala ser tão intimamente associado à imagem em movimento, um
dos elementos primordiais das suas obras é o som – temática da referida mostra no
centro de arte francês.
Nos debruçamos aqui sobre um vídeo de sua autoria, editado e exibido em
loop e intitulado Air-Cushioned Ride, 2006. Sala o realizou numa área de descanso
para motoristas à margem de uma estrada pela qual ele cruzava o estado do
Arizona, EUA. No vídeo, ouve-se o rádio de seu veículo, que transmite uma música
barroca sobreposta por outras transmissões. A frequência de seu rádio sofre
constantemente a interferência dos rádios dos outros caminhões que estão ora
estacionados, estacionando ou partindo. Seu veículo, que no início do vídeo está por
um brevíssimo momento parado, dá partida e prossegue movendo-se em torno do
agrupamento de caminhões estacionados, enquanto a música barroca de seu rádio
é incessantemente interceptada e sobreposta por música country, narrações de
39
Informações livremente traduzidas do site da galeria do artista, Marian Goodman. Disponível em:
<http://www.mariangoodman.com/artists/anri-sala/>.
98
radialistas e outros ruídos de estações de rádio que sobrepõem-se àquela
sintonizada em seu veículo.
Alguns lugares não guardam edifícios ou datas a serem lembrados, mas
produzem sua própria trilha sonora. Com essas palavras, retiradas de suas
anotações, Anri Sala descreve a ambientação de Air-Cushioned Ride
(2006). [...] Sala investiga a ideia de um lugar intermediário, que nunca é o
ponto de partida ou de chegada, mas que desenvolve suas potenciais
40
qualidades a partir do tempo.
Não vê-se outra coisa senão enormes caminhões estacionados ou em
indistintos movimentos de chegada ou partida, e algumas pequenas construções
industriais no entorno. Air-Cushioned Ride, que é o que está escrito na imensa
carroceria de um dos caminhões estacionados, poderia ser livremente traduzido por
algo que remete à “passeio almofadado”. O vídeo é ambientado em um contexto que
foi classificado como “lugar intermediário”, justamente por tratar-se de um território
de transição, um espaço em que os motoristas interrompem seu fluxo, por um
momento, antes de prosseguirem suas jornadas.
O artista, em seu veículo ainda parado, ao perceber as interferências sonoras
sofridas pelo rádio, põe-se a registrar, enquanto dirige em círculo, o inerte
movimento da área: o movimento de chegada ou partida de caminhões que
estacionam ou já estão estacionados em um quadro que tem, em primeiro plano,
este aglomerado de caminhões parados paralelamente ou em seus momentos de
transição entre a inércia e o fluxo. Em um plano posterior, tem-se a estrada, na qual
cruzam, velozes, os veículos, e, ao fundo, a longínqua linha do horizonte de uma
vasta planície. E os enquadramentos são registrados pelo artista que, pondo-se em
movimento, nos dá a ver o repouso daqueles cuja natureza é o movimento.
Esta obra, em sua montagem no Inhotim, onde ficou exposta até agosto de
2011, era projetada, com dimensões pequenas, em uma parede branca. A projeção
possuía cerca de 1,5 metros de largura por um metro de altura e não havia qualquer
moldura, ou seja, era uma projeção sangrada na parede, que conferia um caráter
despretensioso à montagem da obra.
O determinante em ACR ser poderia definido como uma não arquitetura em
um posicionamento outro em relação àquele adotado em importantes vídeos do
artista, como Tlatelolco Clash, 2011. Nesta obra, o artista seleciona um monumento
40
Trecho do texto de parede da obra enquanto esteve exposta, até 2011, no Centro Inhotim.
99
emblemático que faz a música tocar, ecoando-a, de modo que a arquitetura
determine o áudio. Em Tlatelolco Clash, o contexto é a famosa Praça das Três
Culturas [Plaza of the Three Cultures], localizada em Tlatelolco, na Cidade do
México. O nome da praça refere-se a três períodos da História mexicana que são,
por sua vez, referidos pelas épocas de construção dos edifícios que compõem a
praça: pré-colombiano, colonial hispânico e o independente “nação mestizo”. A
praça localiza-se próxima à moderna construção do Ministério de Relações
Exteriores. Neste local, em 1968, 300 estudantes foram baleados pelo exército e a
polícia mexicana (CENTRE POMPIDOU, 2012). No vídeo de Sala, um homem
empurra um instrumento que toca a música “Should I Stay or Should I go” do grupo
The Clash, enquanto aproxima-se da praça. A música é ecoada para todo o entorno,
pelas pareces de um dos edifícios.
Figura 10 - Tlatelolco Clash, 2011
Fonte: SALA, Anri 2012
100
Sem entrarmos nas tantas questões políticas imbricadas na obra Tlatelolco
Clash e atendo-nos ao problema estético em que a arquitetura toca o áudio do
vídeo, é possível inferir que esta operação, no caso de ACR, se dá a partir da
ausência. A arquitetura que cria a trilha sonora em ARC é invisível. Esta obra de
Sala dá a ver o invisível do tempo, pelo áudio. Anri Sala contrapõe a solidez das
arquiteturas – que, em vídeos como Tlatelolco Clash, replicam o áudio, fazendo-o
ecoar – à invisibilidade das ondas sonoras, que em ACR são elas mesmas as
estruturas que mostram-se, em uma presença que não se vê, ao interferir no som de
seu rádio.
As obras de Sala têm uma relação estreita com a música, que funciona,
segundo ele, como um motor para cada um de seus filmes, uma espécie de script
que anima o espaço. Para ele, seus próprios vídeos são como instrumentos
musicais (CENTRE POMPIDOU, 2012). Os filmes do artista desencadeiam-se de
relações surgidas a partir de imagens, sons, lugares e personagens sem, contudo,
contar histórias tal como são concebidas, elidindo a noção de discurso concatenado
conforme uma sequência linear. Fica patente aqui que, a partir destes problemas
estéticos, Sala contrapõe-se à noção de História tal como é concebida, em sua
composição a partir dos discursos dominantes, conforme vimos sob a perspectiva de
Arthur Danto acerca das narrativas mestras.
Em um excerto do catálogo da referida exposição, encontramos o título: “A
música como um substituto da linguagem” (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução
nossa) 41 . O artista inventa mundos ou modos de ver o mundo a partir da “prélinguagem” música, em sua obra. Mais uma vez, nos vem em mente a citação de
Wittgenstein: Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. E, no caso do
artista albanês, as formas de vida são imaginadas pela linguagem som. De acordo
com o uso que Sala faz do som em suas obras, este seria a música em sua pura
materialidade, em seu estado aberto, pré-narrativo, antes da edição torná-lo música.
Sala imagina formas de vida libertando-as de significações dadas.
Interessa-me aquilo que é dito pelos significados das palavras mas não
necessariamente pela linguagem. Eu tendo a substituir a linguagem como
uma forma privilegiada de narração [...] Me intriga também a música como
método de narrativa. O seu modo de abordar significados é diferente
41
Music as a substitute for language
101
daquele da linguagem. Música pode resistir a significados” (CENTRE
42
POMPIDOU, 2012, tradução nossa)
As incursões realizadas pelo artista sobre a música são um profícuo modo de
resistência poética em relação à narratividade, ao encadeamento sequencial antes,
agora, depois, causal. O que de mais inoperante pode haver do que se opor à
narrativa, pela música, que, por sua vez, também é comunicação? Esta é a poética
da sua resistência. E talvez aqui possamos indicar uma diferença entre conceitos
que até então usamos como sinônimos: resistência e inoperância. A inoperância é
uma das formas de resistência que, contudo, se opõe a algo sem valer-se de ações
propriamente negativistas. Este é o caso da utilização do som em ACR, que resiste
a significados simplesmente tocando, e não, por exemplo, ausentando-se e
instituindo o silêncio. Se os discursos [dominantes] informam, indicando um
significado preciso para cada significante, a música, conforme manejada por Sala,
seria a pura liberdade de imaginação e invenção, onde temos, assim como no
blackout de Confronto, a entrega ao espectador da faculdade de escrever aquela
história.
Conforme o supracitado excerto de Agamben, o homem torna-se um ser
histórico a partir da diferença entre semiótico e semântico, ou seja, ele torna-se
histórico ao equiparar e instituir significados. Isto nos faz pensar na investigação de
Sala sobre a música como uma busca pelo tempo não histórico. Ele trabalha,
conforme diz, com a palavra – que para Agamben é anistórica, anacrônica –, e não
com a linguagem.
Esta investigação do artista acerca do elemento musical nos faz pensar que
aquilo que ele busca, que é da ordem do pré-político, do visceral, seria o modo de
comunicação mais distante da inferência de significados, da equiparadora relação
significante – significado, que, como sabemos, é o motor das trocas do círculo
ritualístico da dívida. Sala busca a resistência pela não operação de dizer, tocando.
Ao verificar na música de seus vídeos a inoperância de significados, ele elide
qualquer narração e qualquer discurso que sejam dados.
A ausência de significados é a dádiva, a não equiparação, a irrupção do
círculo das trocas. Por isso ela é a liberdade na forma da in-operância: não opera,
42
I am interested in what is told by means of images but not necessarily through language. I tend to
replace language as a favoured form of narration. […] I am also intrigued by music as a narrative
method. Its manner of approaching meaning is different from that of language. Music can resist
meaning.
102
não significa e, justamente por isso, se abre a significações possíveis. Somente a
partir da ausência existe espaço para alguma presença, para a invenção.
4.1 A ausência imprescindível
A música, no modo como Sala a utiliza, configura uma forma de dádiva
justamente por não determinar significados. Se, na canção Mañana para Lupita,
infere-se a postergação para onde a seta da história aponta – o futuro, o amanhã –,
desmascarando aquilo que nos diz Crisostomo sobre a inoperância que leva a uma
melhoria, a um progresso, em ACR o som elide inferências e se abre a invenções.
Se o esquecimento é uma forma, digamos, de sobrevivência da dádiva, ele
deve operar não um esquecimento por remoção, já que esta anularia o dom por
permitir que ele seja reconhecido simbolicamente, equiparando-o. Ele significou – a
dádiva foi anulada – e depois foi destituído de seu significado, pela remoção. Para
Derrida o verdadeiro esquecimento que permite a existência da dádiva é o
esquecimento absoluto, capaz de apagar, inclusive, os rastros da remoção: o
esquecimento da dádiva. De acordo com esta radical condição imposta por Derrida,
a música deveria configurar uma relação que dispensaria a remoção, ela não
deveria chegar nem mesmo a indicar significações. Entretanto, justamente por nos
parecer excessivamente radical pensar a música a partir do esquema do
esquecimento absoluto derridiano, lembramos que, nas situações de imersão, não
lembramos, não "vemos", não temos consciência. Ou seja, é um momento sem
dialética, ou de uma dialética irresoluta, como no paradoxo, precisamente como o
êxtase acefálico sobre o qual nos ateremos em seguida. Contudo, na música, há
significações subjacentes, ainda que elas não predominem.
Derrida condiciona reciprocamente a existência do esquecimento à existência
da dádiva não enquanto causa, mas enquanto premissa, como o contexto
necessário que define uma situação. E aqui encontra-se um dos pontos de nosso
maior interesse dentre as contribuições trazidas por Derrida: esta indistinção entre
esquecimento e dádiva, cujas existências são reciprocamente condicionadas, nos
leva à estrada, ao Weg ou Bewegen43 (caminho, caminhar, traçar a rota) que não
43
A tradução do termo alemão Weg seria “maneira” enquanto o termo Bewegen é um verbo que
poderia ser traduzido como passar, movimentar, mudar. A união destes, por sua vez, Wegbewegen
quer dizer afastar.
103
conduz a lugar algum, o que, não de modo fortuito, define o percurso realizado por
Anri Sala em ACR.
Derrida individua aquilo que liga o problema do tempo ao problema da dádiva,
e ambos a um singular pensamento sobre o esquecimento que, por sua vez,
acrescentemos, é essencial ao pensamento da história que constitui-se a partir dos
memoráveis feitos, elidindo todo o resto, esquecido. O esquecimento seria aquilo
que escapa à equiparação de significados e, logo, não pode ser incluído no discurso
dominante, na história causal. Dizer que algo é significa pré-fixar uma equivalência
simbólica através da linguagem. A música opera em um sentido anterior, da ordem
do sensível, do atemporal, daquilo que é sentido naquele momento.
A experiência como precedente para a invenção sobre a qual nos dizem
Oiticica e D‟Almeida, é a mesma experiência que está implícita na utilização da
música na obra ACR de Anri Sala. Lembramos que a invenção para Oiticica e
D‟Almeida é um surgimento decorrente de “necessidades sentidas, de exigências
postas pelo percurso e vivência” (CARNEIRO, 2007), precisamente como é o
surgimento de significados vários nas possíveis leituras da música em ACR.
Para compreendermos os desdobramentos infligidos pela temporalização –
em contraposição à noção de ausência –, faz-se importante trazer para a discussão
de ACR a noção de êxtase, recorrendo ao conceito de comunidade em Georges
Bataille e ao paradoxo da soberania. Questionando o pensamento de uma
experiência comunitária, Bataille recusa “toda comunidade positiva fundada sobre a
realização ou sobre a participação de um pressuposto comum” (AGAMBEN, 2005, p.
91). Bataille desarticula, para que haja comunidade, a possibilidade de comunhão
fusional. A experiência da impossibilidade seria, portanto, o único, paradoxal e
possível modo de existência da comunidade (AGAMBEN, 2005).
A manifestação desta experiência coletiva – que, para existir, deve, logo, não
ser coletiva, na forma como se entende o conceito de comunidade [com-um], como
um – implica a privação da cabeça, ou seja, a acefalidade que, por sua vez, elide
tanto a racionalidade quanto a existência de um capo44, sendo tão fundamental, por
outro lado, quanto a exclusão de si mesmo, isto é, dos próprios membros da
comunidade, estando presentes somente através da sua própria decapitação, ou
seja, da elisão de suas racionalidades e liderança, i.e., da ausência.
44
Referimo-nos a ambas significações da palavra italiana capo: tanto “cabeça” quanto “chefe”.
104
A ausência do significado da música nos remete à experiência que é, em
Bataille, o êxtase ou o paradoxo do ekstasis: “absoluto estar-fora-de-si do sujeito,
[...] aquele que faz a experiência não está mais no instante em que a experimenta,
deve faltar a si no momento mesmo em que deveria estar presente para fazer a
experiência” (AGAMBEN, 2005, p. 92).
O ex-tasis que Agamben vê em Bataille, ou seja, não o estar – presença –,
mas o ex-tar – o não-estar –, é a não coincidência do ser com a sua presença. É a
ausência com que se faz presente, a falta que mostra sua existência, como um
rastro, uma pegada imaginária, assim como é a música nas obras de Sala. Por um
lado, a falta de significado dado que permite a invenção, e, por outro, o áudio tocado
pela ausência de estrutura arquitetônica sólida, pela presença da invisibilidade das
ondas sonoras que se interferem mutuamente.
O papel que o som exerce em ACR equivale a não apresentar-se no processo
de temporalização do tempo, que, por sua vez, é compreendido por meio das trocas,
na forma: dou algo ou deposito fé (presente); vislumbro receber em troca (futuro);
cobro aquilo que dei (passado); recebo, logo devo retribuir etc. A música é a dádiva:
não capturável, pois a sua presença – i.e., seu equivalente simbólico, seu significado
– não está declarada e equiparada. O uso que Sala faz da música em seus vídeos
constitui a mais pura inoperância, a ausência plena de operações.
4.2 Música e tempo
A música forma-se a partir dos intervalos temporais dos movimentos de onda,
i.e., de acordo com o número de vibrações – frequência – que a onda realiza em um
período de tempo. A música é formada a partir das amplitudes e frequências das
ondas em intervalos temporais. A própria amplitude da onda remete à sua duração,
mais que ao espaço que sua longitude pode ocupar. O cerne da música é produto da
conjunção onda-tempo. Ela é a função do tempo e da frequência e amplitude das
ondas em cada intervalo de tempo. A matéria música, logo, é o tempo: a frequência
da repetição de um movimento de onda.
O pesquisador da Universidade de Colúmbia, Johnatan Kramer, estuda o
papel do tempo na música. Em uma entrevista dada para o Discovery Channel,
Kramer diz:
105
Tempo é movimento e tempo é mudança. Música é movimento e música é
mudança [...]. As variações no tempo são o que adicionam um elemento
essencial humano na execução da música. A música precisa de um pulso,
de uma batida humana e não de um metrônomo. (DISCOVERY, 1994)
Eis a ordem do pré-político à qual nos parece remeter a investigação da
música na obra de Sala. Ela é um modo de comunicação em que o tempo é um
ritmo, uma frequência, mas na qual ele não chega a ser mensurado ou equiparado.
Ele simplesmente se repete. Esta repetição nos traz, por sua vez, as reflexões de
Deleuze acerca daquilo que ele chamou de terceira repetição: “A arte não imita, [...]
ela repete, e repete todas as repetições, a partir de uma potência interior (a imitação
é uma cópia, mas a arte é simulacro, ela subverte as cópias em simulacros)”
(DELEUZE, 2006, p. 403). A repetição das frequências pelas ondas sonoras que
formam a música é, por sua vez repetida, e remete a um batimento cardíaco, com
variações rítmicas temporais.
A música nas obras de Sala expressa a emoção, sem, contudo, induzir uma
definição de sentido. A curadora Christine Macel escreveu sobre o fato do trabalho
de Sala afastar-se da noção de narração, “deixando um espaço vazio no qual os
espectadores podem, então, projetarem suas próprias histórias” (CENTRE
POMPIDOU, 2012, tradução nossa)45.
A potência de ACR, antes de ser pensada como força, parece remeter, em
um primeiro momento, à sua raiz etimológica, potentia passiva, paixão, passividade,
inoperância, por fim. Contudo, assim como a história filológica da palavra potência,
em um segundo momento, a passividade ou a renúncia em significar da obra de
Sala remete a uma imensa força de resistência, à potentia activa. A música permite
a Sala resistir à narração, indo além, dizendo mais do que seria possível dizer
simplesmente com palavras.
Assim como Oiticica e D‟Almeida elidem a sequência cinematográfica em
seus “quasi-cinemas”, propondo uma forma mais próxima da nossa própria
experiência do tempo, desordenada, em que estamos em contato com nosso corpo,
Sala desarticula os discursos, propondo a não narração por meio música – também
esta desvinculada de sua relação com a imagem. “Sala rejeita a causalidade
acústica do cinema em que se pode identificar com precisão a origem e a causa do
45
[...] leaving an empty space on which viewers can then project their own stories.
106
som [...]”(CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa)46, elidindo, em suas obras, a
relação existente no audiovisual clássico, ou seja, no cinema tradicional narrativo
que representa, como dissemos, sequências causais.
Figura 11 - Air-Cushioned Ride
Fonte: INHOTIM (2011)
46
Sala rejects the acoustic causality of the cinema in which one can accurately identify the origin and
cause of the sound.
107
Se, nas obras de Francis Alÿs e Cinthia Marcelle, aqui discutidas, o
extracampo não se dá a ver, a não ser pela tênue comunicação que, como vimos,
pode dar-se, em alguns casos, somente a partir da restituição ao espectador da
possibilidade de invenção da continuação espacial, em Air-Cushioned Ride o
extracampo está plenamente dado pelo movimento circular da câmera que filma
todo o entorno, repetidas vezes, sem construir, contudo, nenhuma narrativa. Se o
espaço, ali, parece ser infinitamente acrescentado ao espaço – função, segundo
Deleuze, do extracampo –, a cada deslocamento de câmera, ainda assim, parece
que o que vemos é sempre o mesmo lugar de transição. Aquilo que é acrescentado
a cada grau de deslocamento em círculo da câmera de Sala é o tempo – na forma
do áudio – e não a imagem – na forma de construções espaciais. Os movimentos
dos caminhões não definem nem mesmo partidas ou chegadas, remetendo a
movimentos “puros”, sem significado – ainda que saibamos que os caminhões têm,
por excelência, uma precisa determinação geográfica por atingir.
Já neste ponto é possível verificar algumas considerações paradoxais na obra
de Sala. Os veículos, símbolos da locomoção e transporte, são filmados em seu
momento de pausa, em seu momento de inatividade. Quem se move é o próprio
artista, em um movimento repetitivo que enquadra uma conformação inerte dos
veículos. O movimento que a câmera oferece à imagem é um movimento cíclico e
loopado.
Os caminhões, meios para propulsionar o andamento do sistema, agora
inoperantes, são flagrados em movimentos indistintos de chegada e partida, não
aludindo ao seu original movimento de levar e trazer que é o motor das trocas
econômicas – o círculo ritualístico da dívida. Sala filma o repouso do veículos de
troca. Esta é a imagem que vemos em seu vídeo. Mas vemos, sobretudo, a imagem
invisível do som.
“Como sempre fez [...], Anri Sala tende a escolher os locais e a arquitetura
para seus filmes não apenas como uma moldura para a ação, mas também como
geradores de som” (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa) 47 . Embora o
citado excerto não refira-se à obra em questão, é precisamente deste modo que
desenvolve-se o áudio de ACR: de forma inerente ao vídeo, e, ainda mais, de modo
47
As he has always done [...], Anri Sala tends to choose the locations and architecture for his films not
simply as a frame for the action but also as sound generators.
108
inerente ao espaço e sobretudo ao tempo, já que é no tempo que viajam as ondas
sonoras. A música é diretamente executada pelo tempo em seu vídeo. Se quisermos
afirmar que a música neste vídeo é tocada pelo espaço, deveremos lembrar, além
do fato de que as ondas sonoras viajam no tempo, também que as interferências
sonoras são verificadas pelo ato do deslocamento, tanto do movimento de Sala
quanto do movimento das ondas.
A crítica de arte Jessica Morgan observa, no referido catálogo, que Sala faz
uso de diferentes músicas ou trilhas sonoras para criar múltiplas temporalidades ou
considerações abstratas. E é precisamente isto que ACR dá a ver: as invisíveis e
múltiplas temporalidades, todas conjugadas simultaneamente, para além de
qualquer tentativa de divisão ou tripartição.
Se quiséssemos pensar em uma imagem que se formasse a partir das ondas
sonoras das rádios que se intercruzam à medida que Sala se movimenta em seu
veículo, poderíamos pensar em uma construção espacial formando-se a partir de
linhas que se embaraçam. Um novelo emaranhado que se desfia e se emaranha em
um movimento fragmentado, descontínuo e desordenado.
Esta possível representação, como tentativa de imaginar o modo como o
tempo se move e move o áudio em ACR, nos leva a pensar sobre quão vãs são as
ordenações, mensurações e repartições temporais que nos cercam por todos os
lados.
Pode-se dizer que Anri Sala cada vez mais tenta liberar o som, não apenas
do papel subordinado que ele tende a desempenhar em relação ao filme,
mas também de suas próprias origens, tratando os aspectos constitutivos
do som ou da música como componentes abstratos que contém histórias e
referências, qualidades formais e evocações de humor ou sentimento.
48
(CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa)
Se é verdade que Anri Sala considera que o som combina-se com a
arquitetura para criar, definir e articular o espaço, devemos pensar que o som em
ACR combina-se com a não arquitetura, como dissemos. A resistência branda ou
melhor dizendo, poética, pela abertura à significados que gera a música em ACR,
nos remete a uma capacidade de desvio intrínseca ao tempo: aquela de elidir as
dialéticas e as equiparações.
48
It can be said that Anri Sala increasingly attempts to liberate sound, not just from its subordinate
role that it tends to play in relation to film, but also from its own origins, treating the constituent
aspects of sound or music as abstract components containing stories and references, formal
qualities and evocations of mood or feeling.
109
[...] O tempo se anuncia já como aquilo que contorna esta distinção entre
tomar e doar, logo entre receber e doar, talvez entre a receptividade e a
atividade, isto é entre o ser-afetado e o atingir (affecter) [...]. (DERRIDA,
49
1996, p.4, tradução nossa)
Tal observação, feita de forma quase en passant e precedida, no período, por
um talvez acerca das indistinções, nos remete a uma capacidade de desvio
intrínseca ao tempo e à música na obra de Sala, que, não remetendo a um só
significado, também elide as dialéticas próprias da equiparação.
A música em ACR tem, portanto, a capacidade de desviar – de inoperar –,
intrínseca também ao tempo nas várias instâncias sob as quais o queiramos
analisar. Ao serem remetidos à sua invisibilidade – ainda que não se possa ser cego
em relação a ele, nada pode existir fora do tempo –, somos levados a pensar sobre
a onipresença deste tempo impossível.
Esta música-tempo de ACR, como aqui a compreendemos, ou seja, como
uma presença que indica a ausência, realiza uma operação em conformidade com a
aquela desenvolvida pelas imagens que a obra nos dá a ver: a presença da
invisibilidade do tempo, que, ainda que não se mostre, perpassa todos os quadros
do vídeo. Entendemos que a fixidez dos significados aos quais a música em ACR
resiste está elidida também pela opção de Sala em utilizar-se, nesta obra, de
arquiteturas invisíveis que possam tocar o áudio: as ondas que estão no ar.
Esta operação está em confluência com aquela realizada por Francis Alÿs, em
The loop e por Bartleby, o escrivão. Alÿs e Bartleby realizam uma refutação que
evidencia algo de problemático – no caso de Alÿs, as questões de poder da fronteira
México-EUA e, no caso de Bartleby, o fazer infértil em que se transformou a
natureza humana –, ou seja, ambos recusam-se a fazer algo. É esta mesma
ausência que está em jogo no som de ACR, mas, nos parece, em um estágio mais
próximo da pura materialidade, mais próximo do esquecimento absoluto formulado
por Derrida. Uma ausência – de significado – que faz presente a invisibilidade,
heterogeneidade e multiplicidade do tempo.
Em correlação às músicas usadas na CC, temos também uma convergência
entre o som de ACR, no que diz respeito a uma multiplicidade que traz a
heterogeneidade de tempos. Em ambos os casos, músicas distintas são transmitidas
49
[...] Il tempo si annuncia già come ciò che elude questa distinzione tra prendere e donare, quindi
anche tra ricevere e donare, forse tra la recettività e l‟attività, cioè, tra l‟essere-affetti e il colpire
(affecter) [...].
110
na mesma obra, indicando a profusão temporal de sua origem: no caso da CC, por
meio da mistura de músicas regionais com internacionais e de vários gêneros; no
caso de ACR, por meio da sobreposição e interpelação das músicas e ruídos.
A música em ACR é aqui compreendida como sinônimo de dádiva, por ambas
não permitirem equiparações. E o dom capaz de satisfazer a todas as exigências da
sua existência está, necessariamente, fora do círculo econômico que organiza o
tempo, ou seja, na fragmentação musical operada em ACR.
O caráter múltiplo do tempo é explicitado em ACR tanto pelo modo como a
sua invisibilidade é dada a ver, pelo som, em uma configuração emaranhada, quanto
pelos próprios movimentos e não movimentos dos caminhões e do veículo do artista.
Sala indica dezenas de temporalidades interpolando-se simultaneamente em um
espaço cuja função original é o repouso, aproximando-se, pela imagem e som de
sua obra, da nossa heterogênea experiência do tempo.
111
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O loop, característico das edições das obras em TBA é a pura repetição.
Dizemos pura pois esta repetição traz um retorno à materialidade do gesto de repetir
desvinculado de indicações de significados. A autenticidade – ou pureza – destas
repetições configuram resistências precisamente às significações e, ao fazê-lo,
conseguem irromper a equiparação que é o motor das trocas que, por sua vez, são
impelidas pela práxis involuntária, não calcada no desejo, mas fruto de um exercício
de poder.
Esta práxis, como vimos, é aquilo que transforma o tempo em história,
linearizando-o. Se o caráter circular do tempo característico do período helenístico
fora retomado pelo cristianismo, indicando que o retorno ao idêntico é aquilo que
mais se aproxima da perfeição e do divino, esta retomada foi anteparada pelo
inoperador glória, que, com sua luz ofuscante, oblitera aquilo que deve ser
absolutamente elidido para manter o funcionamento da práxis mecânica e cíclica: o
ócio.
O ócio é precisamente o elemento mais inerente à natureza e, ao ter sido
extirpado do homem para que fosse constituída a natureza humana: aquilo que
passa a ser nossa maior característica é fazer, o ritmo da vida do ser.
Todas as obras que aqui foram tratadas dão a ver esta práxis como sinônimo
da natureza humana, e é a isto que resistem.
Se a música para Lupita, Mañana, indica a perene postergação enquanto
Lupita prossegue no moto da práxis indiferenciada, é para indicar que dissimulações
como a obnubilação do ócio pela glória é um exercício de poder para manter-nos
perenemente afastados da nossa real natureza humana, da qual o ócio não pode ser
elidido. Mañana, em loop, quer dizer: o deslocamento chegará amanhã, e amanhã,
será adiado para amanhã, ad infinitum. Esta obra nos desmente Crisóstomo,
indicando que permanecer imóveis, ainda que em uma práxis frenética, não leva a
nenhuma melhoria ou progresso.
Verificamos a paradoxal dialética da inoperância. De um lado está a sua
atuação como obliteração do poder. A glória que obnubila o ócio, a graça que simula
um não endividamento nas trocas circulares, o “como não” que indica que a
heterogeneidade do tempo deve ser oportunamente indicada e, por fim, a tradução
112
grega da inoperância, a katargéō. Todos, sem exceção, atuam para um único fim:
manter-nos na práxis indiferenciada e na falsa imagem do tempo linear.
Refletir sobre a experiência do tempo e sobre as determinações que essa
inflige nas transformações culturais é fundamental para a realização de uma
concepção outra de história. Por isso Agamben diz que a tarefa da verdadeira
revolução do mundo é, antes de “mudar o mundo”, “mudar o tempo”, ocupação na
qual a concepção revolucionária da história teria falhado por não ter elaborado uma
concepção
correspondente
do
tempo,
tendo
simplesmente
se
valido
da
representação vulgar deste como um continuum pontual e homogêneo. E é
justamente do cumprimento desta tarefa que se aproximam as obras aqui discutidas.
Elas, em um verdadeiro ato político, não só refutam representações arbitrárias, mas
inventam – ou nos fazem inventar – imagens para o tempo que sejam muito
próximas do nosso sensível.
As obras aqui analisadas desconstroem a história tal como a conhecemos:
causal, conforme um antes e um depois. Ao repetirem em loop seus próprios
movimentos ou, no caso da CC, ao exibir seu “quasi-cinema”, elas emperram o
prosseguimento do tempo histórico. Eles o fazem tanto a partir da desconstrução de
suas narrativas quanto a partir do modo como são feitas as edições dos vídeos. Em
uma bela contraposição da questão do espaço com a questão do tempo, a própria
ausência do fora, por exemplo, é uma ausência que evidencia algo que, como
dissemos, é a invisibilidade e a heterogeneidade do tempo.
Sem exceção, as obras que foram aqui trabalhadas resistem ao fazer estéril
como sinônimo de vida e, consequentemente, à linearização do tempo.
113
REFERÊNCIAS
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del ensayo. 2009. Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/banrepcultural/
3611501065/>. Acesso em: 10 fev. 2012.
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Disponível em < http://intermidias.blogspot.com.br/2007/07/o-cinema-de-guy-debordde-giorgio.html>. Acesso em: 02 maio 2011.
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