civico movimento reformista

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civico movimento reformista
319
ISSN 0101-1723
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTÃO
FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA
Siegfried Emanuel Heuser
Ensaios FEE
Ensaios FEE é uma publicação semestral da Fundação de Economia e Estatística Siegfried
Emanuel Heuser que tem por objetivo a divulgação de trabalhos, ensaios e artigos de caráter
técnico-científico da área de economia e demais ciências sociais.
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Maria Lucrécia Calandro
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Isabel Noemia Junges Rückert
Luiz Augusto Estrella Faria
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EDITOR
Maria Lucrécia Calandro
SECRETÁRIA EXECUTIVA
Lilia Pereira Sá
Semestral
Ensaios FEE
Porto Alegre
v. 28
n. 2
p. 319-606
2007
320
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTÃO
FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser
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Índice Brasileiro de Bibliografia de Economia (IBBE)
Journal of Economic Literature (JEL)
ENSAIOS FEE /Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser – v. 1, n. 1
(1980) - . - Porto Alegre: FEE, 1980 – . –
v. Semestral
Do v. 17 ao v. 22, deixa de ter paginação continuada.
Índices: v. 1 (1980) – 9 (1988) em v. 9, n. 2;
v. 10 (1989) – 11 (1990) em v. 11, n. 2;
v. 12 (1991) – 15 (1994) em v. 16, n. 2.
ISSN 0101-1723
1. Economia – periódicos. 2. Estatística – periódicos. I. Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser.
CDU 33(05)
Tiragem: 250 exemplares.
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321
Sumário
Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos
na economia política — Luiz Augusto E. Faria ........................
325
Realismo crítico e abordagem da Regulação: da possibilidade de
colaboração entre Ciência e Filosofia — Carolina Miranda
Cavalcante ................................................................................
353
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil — Marco Flávio da
Cunha Resende e Giordano Bruno Braz de Pinho Matos ............
375
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal: um
estudo para Minas Gerais — 1995-06 — Frederico G. Jayme Jr.,
Júlio César dos Reis e João Prates Romero .........................
409
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado
do Rio Grande do Sul: uma análise empírica — Gilberto de Oliveira Veloso e Anderson Mutter Teixeira .....................................
443
A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento
Gonçalves na cadeia produtiva de madeira e móveis — Beky
Moron de Macadar .....................................................................
471
A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na
economia regional: uma análise em Matriz de Insumo-Produto
Multirregional — Darlan Christiano Kroth, Ricardo Luis Lopes
e José Luiz Parré ....................................................................
497
Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde: uma
análise comparada entre Argentina, Brasil, Colômbia e México —
Angela Moulin S. Penalva Santos e Maria Alícia Dominguez
Ugá .......................................................................................
525
322
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil: uma
análise espacial — Guilherme Mendes Resende e Alexandre
Manoel Angelo da Silva ................................................................
549
Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro — Patrícia F. F. Arienti ...........................................................
577
323
Summary
Sights on capitalism: structures, institutions and individuals in
political economy — Luiz Augusto E. Faria .............................
325
Critical realism and regulation approach: the possibility of
collaboration between Science and Philosophy — Carolina Miranda
Cavalcante ............................................................................
353
The long term real exchange rate in Brazil — Marco Flávio da
Cunha Resende e Giordano Bruno Braz de Pinho Matos ...........
375
Budget constraint and Fiscal Responsibility Law: a study for the
State of Minas Gerais, Brazil (1995-06) — Frederico G. Jayme
Jr., Júlio César dos Reis e João Prates Romero .........................
409
The Fiscal Responsability Law ant the microregions of the State
of the Rio Grande do Sul: an empirical analysis — Gilberto de
Oliveira Veloso e Anderson Mutter Teixeira ................................
443
The insertion of the furniture local system of production from Bento Gonçalves (Rio Grande do Sul) in the wood and furniture
chain — Beky Moron de Macadar ............................................
471
The impact of south brazilian furniture industry on the regional
economy: a multiregional input-output analysis — Darlan
Christiano Kroth, Ricardo Luis Lopes e José Luiz Parré ............
497
State reform, decentralization and health policies: a comparative
analysys among Argentina, Brazil, Colombia and Mexico — Angela
Moulin S. Penalva Santos e Maria Alícia Dominguez Ugá ......
525
324
Brazilian south region municipalities economic growth: a spatial
analysis — Guilherme Mendes Resende e Alexandre Manoel
Angelo da Silva .........................................................................
549
Restructuring and consolidation process in the private banking system
in Brazil — Patrícia F. F. Arienti ...................................................
577
Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
325
Olhares sobre o capitalismo: estruturas,
instituições e indivíduos na economia
política*
Luiz Augusto E. Faria**
Economista da Fundação de Economia e
Estatística (FEE) e Professor da Faculdade
de Ciências Econômicas (FCE-UFRGS)
Resumo
A investigação econômica deve-se desenvolver em diferentes planos de análise,
conforme propõem diversas correntes vinculadas à heterodoxia do pensamento
econômico. Um conjunto de abordagens que começa pela crítica marxista, avança
com a Teoria da Regulação e chega à análise histórica de Braudel é analisado de
forma comparativa, tendo em vista fazer-se um apanhado de suas contribuições
relativas a alguns tópicos decisivos para a compreensão das sociedades
capitalistas. Em primeiro lugar, têm-se o problema da explicação e o lugar do
indivíduo e das relações sociais na causalidade dos fenômenos econômicos.
Seguindo adiante, o necessário desdobramento da análise em diferentes planos,
passando do abstrato ao concreto, é abordado como imperativo ao desvendamento
da cadeia de causalidades que produz o real. A origem e o papel das instituições
são apontados como centrais nesse desdobramento que engloba a dialética dos
agentes e das estruturas, da lógica e da história. A distinção e a irredutibilidade
dos planos micro e macro são definidas como inerentes à complexidade dos
fenômenos que se busca compreender. Ao final, é discutida a contribuição de
Braudel para as diferentes instâncias analíticas em que se deve buscar a
compreensão da sociedade sob o capitalismo, com o intuito de lançar uma
outra luz sobre as interpretações marxista e regulacionista.
* Artigo recebido em jan. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007.
** O autor agradece a José Ricardo Tauile, pelas idas e saudosas horas de conversa, origem de boa parte das idéias aqui expostas, a Luis Bertola, por uma indicação que tornou
mais compreensíveis as figuras, e a parecerista anônimo, cujas sugestões em muito ajudaram a clarificar diversas passagens do texto.
E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007
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Luiz Augusto E. Faria
Palavras-chave
Metodologia; instituições; capitalismo.
Abstract
Economic research must be developed in distinct analytical levels. This distinction
is viewed in the light of diverse contributions to what are proposed a comparative
reading, from Marxist critics to Regulation Approach and to Braudel's historical
inquiry. First, the problem of explanation and the place of individuals and social
relations in the causality of economic phenomena are addressed. Second, the
need to spread out analysis in different levels, from an abstract one to a concrete
one is dealt as necessary to unveil the causality chain that produces concrete
reality. Central to develop such an analysis are the organization and role of
institutions, a path through the dialectics of agents and structures, of logic and
history. Distinction and irreducibility of both micro and macro levels are viewed
as inherent to the complexity of the phenomena that are attempted to understand.
Finally, Braudel's contribution on the dissimilar analytical instances where to
root a full comprehension of society is discussed.
Key words
Methodology; institutions; capitalism.
Classificação JEL: B41, B51, B52.
"Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece."
Luís de Camões
As sociedades capitalistas são as mais abstrusas estruturas sociais já
erigidas na história humana. Para se fazerem compreensíveis, era natural que,
como ensinou Marx, uma tal complexidade exigisse um difícil trabalho de
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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desvendar as aparências, de ultrapassar seu aspecto superficial e penetrar em
sua composição interna, para aí, apenas, desvendar seu segredo. Da mesma
forma, também era esperado que se prestassem a serem vistas sob diferentes
ângulos e perspectivas, diferentes percursos na tentativa de abarcar sua
totalidade. Nestas breves notas, vamos tratar de apresentar nossa interpretação
sobre alguns desse olhares voltados ao capitalismo nas direções que nos parecem
as mais promissoras e discutir algumas de suas implicações epistemológicas.
O objetivo do trabalho é realizar uma discussão sobre método na economia
e nas demais ciências sociais, tendo como eixo a crítica marxista a dois recursos
epistemológicos adotados por várias correntes dessa área de pesquisa: o
individualismo metodológico inspirado em Kant e o determinismo histórico —
aqui chamado holismo radical em seguimento a Wright, Levine e Sober
(1993) — tributário da tradição hegeliana. A discussão terá como ponto de partida
a natureza da explicação dos fenômenos sociais. O aprofundamento dessa
problemática no sentido da totalidade cobra a necessidade de desdobrar-se a
análise científica em diferentes níveis, tal qual o faz a Teoria da Regulação (TR)
ao acompanhar uma opção metodológica realizada por Marx. Uma segunda
inspiração seguida pelos regulacionistas veio da obra de Fernand Braudel (1996),
que, em sua perspectiva histórica, buscou a compreensão dos determinantes
da evolução das sociedades capitalistas ao longo do tempo, investigando muito
além do espaço público dos mercados, território de ações de larga visibilidade.
Para isso, tratou de iluminar tanto os recintos sombreados do quotidiano da
produção e do consumo que definem o modo de vida dos homens e das mulheres
em sociedade, como o lugar secreto onde o dono do dinheiro encontra o dono do
poder político e no qual se estabelece o modo de dominação social.
O ponto de partida é uma discussão sobre a causalidade dos fenômenos
sociais, em que será apresentada uma contraposição à visão majoritária entre
os economistas, filiada ao individualismo metodológico. Argumentamos que as
explicações necessariamente devem incluir não apenas as ações dos indivíduos,
mas também suas circunstâncias históricas, os limites dados pelas estruturas
em que estão inseridos. Mais adiante, tratamos de avançar no sentido da
contribuição original de Marx e do que lhe foi aposto pela Teoria da Regulação,
particularmente no que respeita à relação entre o plano micro da interação entre
os agentes econômicos e o plano macro das estruturas sociais. Um passo adiante
nessa construção metodológica aponta uma análise que se desdobra em três
níveis distintos de abstração, partindo de sua representação idealizada nas
relações sociais fundamentais e indo até a materialidade das instituições sociais
e das técnicas produtivas. Uma breve discussão sobre a passagem entre os
planos macro e micro e o fenômeno da emergência que lhe é inerente encaminha
à discussão final, resgatando a contribuição de Braudel (1996), ao pensar o
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Luiz Augusto E. Faria
capitalismo como uma ordem social sedimentada ao longo da história em três
estratos sobrepostos.
1 As relações de causalidade na economia
Em sua aparência, os fenômenos sociais são percebidos como resultantes
da ação de indivíduos interagindo entre si, de forma isolada ou em grupo. Sua
compreensão, entretanto, requer, necessariamente, a investigação de relações
de causalidade que vão muito além do mero resultado da atuação dos indivíduos,
como acertadamente argumentaram Wright, Levine e Sober (1993) em seus
ensaios sobre a explicação. A descrição dos mecanismos de funcionamento
dos sistemas sociais só é possível quando são levadas em consideração
determinações originárias de suas estruturas, que explicam uma parcela relevante
de seu funcionamento e que são irredutíveis ao plano dos indivíduos que os
compõem e a suas propriedades. Nessa perspectiva, o alcance do processo
explicativo ultrapassa, em muito, o projeto do individualismo metodológico, o
qual é assim descrito por esses autores:
O individualismo metodológico é uma reivindicação sobre o caráter da
explicação. Afirma que todos os fenômenos sociais são mais bem
explicados pelas propriedades dos indivíduos compreendidos no fenômeno.
Ou, de outra maneira, que toda a explicação que envolve conceitos
sociológicos de nível macro deveria, em princípio, ser reduzida a
explicações no plano micro dos indivíduos e suas propriedades (Wright;
Levine; Sober, 1993, p. 191, grifo do autor).
Em razão disso, ao considerarmos que o plano macro guarda relevância
explicativa, que existem determinações estruturais, é necessária a rejeição do
individualismo metodológico pelo erro do reducionismo. Sua crítica foi assim
expressa:
Resumindo, o programa reducionista do individualismo metodológico falha
porque a ciência tem projetos explicativos que ultrapassam os casos
singulares. Além de indagar por que este organismo ou aquela firma
sobreviveram, também se quer explicar o que têm em comum diversos
objetos e processos. Quando as propriedades que respondem a essas
perguntas têm realizações múltiplas no plano micro, as explicações
macroteóricas não são, mesmo em princípio, redutíveis à microexplicação
(Wright; Levine; Sober, 1993, p. 207-208).
Para explicar esse "o que têm em comum", não basta reduzir os diversos
objetos e processos a tipos na forma dos conhecidos agentes representativos,
cujo comportamento seria a expressão completa de toda a realidade de um
certo conjunto de indivíduos com as mesmas características, como fazem os
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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neoclássicos recorrendo às figuras da firma, do trabalhador, do investidor, etc.
Os adeptos dessa corrente, cujos primeiros teóricos Marx chamou "economistas
vulgares", iniciaram sua adesão ao individualismo metodológico com o recurso
que esse autor qualificou como "robinsonadas", em alusão ao personagem de
Daniel Defoe, propondo análises sobre o comportamento de indivíduos
impregnados das propriedades do homo economicus. A versão mais acabada
dessa teoria foi realizada por Walras e Paretto, a partir de 1870, quando
propuseram o conceito de equilíbrio geral. Essa hipótese foi desenvolvida por
Gerard Debreu, nos anos 60 do século XX, que buscou provar a existência de
tal equilíbrio quando o número de agentes fosse infinito. Contemporaneamente,
essa perspectiva analítica avançou o citado conceito de "agente representativo",
um recurso matemático baseado na possibilidade de o comportamento de um
conjunto de indivíduos poder ser reduzido a um só, uma vez que, como todos
têm as mesmas expectativas racionais, suas reações tenderão a ser sempre
idênticas.
Embora seja proveitoso recorrer a tipos para a explicação científica como
forma de dar conta de suas semelhanças, o "o que têm em comum" diversos
casos, a questão é a que podem ser reduzidos os tipos, se a meras propriedades
relacionais de indivíduos, ou se existem tipos relacionados a entidades sociais
agregadas que sejam irredutíveis a indivíduos.1 Se esse for o caso, devemos
admitir a insuficiência do individualismo metodológico.
A verdadeira compreensão dos tipos na análise econômica só é possível
quando se considera a possibilidade de um grande número deles corresponderem
a sujeitos coletivos — ou entidades sociais na terminologia de Wright, Levine e
Sober (1993) —, como fez Marx em suas análises sociopolíticas, nas quais as
classes sociais aparecem como os sujeitos mais relevantes dos processos de
evolução e transformação das sociedades.2 E esses sujeitos, embora sejam
agregados de indivíduos, não podem ser reduzidos a propriedades desses
indivíduos, pois os tipos podem se realizar através de múltiplos casos, no sentido
de distintas trajetórias individuais conduzirem a situações diversas dos
indivíduos, mesmo se pertencerem a um mesmo tipo. Isso também não quer
1
É nesse sentido que um tipo não pode ser confundido com a noção neoclássica de agente,
pois este, mesmo quando em grande número, nunca dá existência a um sujeito coletivo. Seu
grande número forma apenas uma soma de ações individuais, cuja convergência é um efeito
de suas propriedades assemelhadas, que faz com que eventuais desvios sejam meros
efeitos estatísticos de um comportamento estocástico.
2
É esse o método que inspirou, por exemplo, o muito citado e brilhante ensaio sobre o golpe de
Estado em que Luís Bonaparte proclamou o Segundo Império na França, em 1852 (Marx,
1976).
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dizer que alguns tipos não possam corresponder a características individuais,
como o trabalhador ou o burguês, mas apenas que estas não englobam a totalidade
dos tipos.
Por sua vez, Aglietta (1997) discute a tese dos microfundamentos sob o
prisma da necessária suposição de homogeneidade do sistema para que a
redução seja possível, para que estruturas do plano macro possam, por exemplo,
ser substituídas por algum tipo de agente representativo. Ele afirma não só ser
falsa qualquer suposição de homogeneidade do sistema econômico, como "[...]
os avanços do pensamento econômico são feitos contra o postulado da
homogeneidade" (Aglietta, 1997, p. 3). A característica heterogênea do sistema
está, para Aglietta (1997), na raiz da irredutibilidade dos fenômenos macro, a
qual se traduz na impossibilidade de se postular uma lógica de coordenação
uniforme para os dois planos da vida econômica, o que, inclusive, não é uma
característica exclusiva da economia.
Nas ciências da matéria e nas ciências da vida, sabe-se que os fenômenos
microscópicos e macroscópicos não podem ser descritos com as mesmas
ferramentas formais do pensamento. As regularidades macroscópicas têm
sua autonomia. Não obstante, na economia, o individualismo metodológico
é de uma virulência particular. A atração pelos fundamentos microeconômicos da macroeconomia é tal que a opinião dominante é a de negar o
obstáculo e, portanto, de perpetuar o postulado da homogeneidade. (Aglietta,
1997, p. 3).
Em resumo, existem relações causais dos fenômenos econômicos no plano
macro ou estrutural, o que nega qualquer tentativa de se atribuir homogeneidade
ao sistema. Em razão disso, a pretensão do individualismo metodológico de
reduzir todas as relações de causalidade ao plano dos indivíduos e suas
propriedades deve ser rejeitada.
Se a teoria neoclássica é a representante maior do individualismo
metodológico na ciência econômica, cabe lembrar em seu favor que, em sua
grande maioria, seus trabalhos visam compreender aspectos específicos da
realidade econômica para os quais o método marginal e o recurso aos modelos
de maximização têm inegável poder explicativo — por exemplo, quando se está
analisando o comportamento de uma firma. Entretanto, quando o mesmo
paradigma é empregado na tentativa de explicar o comportamento do sistema
econômico em sua totalidade, como no caso da teoria do equilíbrio geral, sua
capacidade explicativa fica irremediavelmente comprometida.
O ponto de vista que defendemos leva também à rejeição da posição que
Wright, Levine e Sober (1993) chamaram de holismo radical e que se pode
bem identificar em algumas das versões mais populares do marxismo. A concepção
teleológica a favor do determinismo no processo histórico, visto como mera
resultante da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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forma das relações de produção, foi muito difundida pela Academia de Ciências
da antiga União Soviética. Discordando da posição teleológica dentro do
pensamento marxista, o estruturalismo, encabeçado por Louis Althusser,
descrevia a história como um processo sem sujeito nem fim. No entanto, não
deixava de incorrer numa forma de holismo mais que radical, ao definir os
indivíduos como meros suportes das relações sociais. Especificamente em
relação ao método da economia, segundo sua interpretação, os fenômenos
econômicos devem ser definidos por seu conceito, o que tem a seguinte implicação
metodológica:
Definir os fenômenos econômicos por seus conceitos é defini-los pelo
conceito dessa complexidade, quer dizer, pelo conceito da estrutura (global)
do modo de produção, uma vez que ela determina a estrutura (regional)
que constitui os objetos econômicos e determina os fenômenos dessa
região definida, situada em um lugar definido da estrutura do todo (Althusser;
Balibar, 1974, p. 197-198, grifos do autor).
Em sua visão, a economia, como uma parte subordinada à ciência da
história, teria suas explicações subsumidas ao princípio da "causalidade
estrutural", o qual definiria o que consideraram um conceito epistemológico-chave, "[...] que precisamente tem por objeto designar este modo de presença
da estrutura em seus efeitos" (Althusser; Balibar, 1974, p. 203, grifos nossos).
Em outras palavras, os fenômenos econômicos seriam resultado do movimento
das estruturas, movimento através do qual a estrutura se tornaria imanente a
seus efeitos, no sentido de que "[...] toda a existência da estrutura seja seus
próprios efeitos" (Althusser; Balibar, 1974, p. 204). A assertiva é algo obscura,
mas suficientemente esclarecedora de um equívoco do qual queremos guardar
distância: a crença de que as ações dos indivíduos não têm qualquer poder de
determinação dos fenômenos sociais; eles são sempre efeitos ou epifenômenos
e nunca causa.
Nossa posição admite um horizonte um tanto mais alargado para a
construção da explicação nas ciências sociais, no qual os percursos possíveis
englobam determinações tanto individuais quanto sociais ou estruturais para os
fenômenos que são estudados. Wright, Levine e Sober (1993) admitem quatro
caminhos diferentes para a construção dos enunciados explicativos, mas
argumentam que causalidades estruturais só se efetivam através de um nexo
explicativo que inclua, necessariamente, a conduta e as propriedades dos
indivíduos. Em suas palavras,
Há quatro possíveis conexões explicativas entre os fenômenos sociais e
as propriedades individuais: primeiro, propriedades individuais podem
explicar fenômenos sociais; segundo, fenômenos sociais podem explicar
propriedades individuais; terceiro, propriedades individuais podem explicar
propriedades individuais; e quarto, fenômenos sociais podem explicar
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fenômenos sociais. [...] [Entretanto] a quarta conexão só é legítima quando
a cadeia causal da explicação envolve combinações das duas primeiras
(Wright; Levine; Sober, 1993, p. 208).
Essa necessidade de uma base no plano micro das determinações
macroestruturais vai ser melhor explicada a seguir, numa passagem em que os
autores vão convergir com a posição adotada pelos regulacionistas, que será
discutida mais adiante. Em síntese:
[...] fenômenos sociais somente explicam fenômenos sociais quando há
vínculos — mecanismos causais — que funcionam no plano microindividual.
As estruturas sociais explicam estruturas sociais através dos modos pelos
quais determinam as propriedades e as ações dos indivíduos. Estas, por
sua vez, determinam resultados socioestruturais. A investigação dessas
microtrilhas através das quais se efetivam as determinações
macroestruturais é o estudo dos microfundamentos (Wright; Levine; Sober,
1993, p. 208-209).
Embora haja concordância com a precisão do conteúdo, mantemos reservas
em relação à expressão "microfundamentos", em razão do uso abusivo desse
termo por parte dos economistas filiados à escola neoclássica, em seu caso,
uma manifestação do seu, como disse Aglietta, virulento apego ao individualismo
metodológico. Em lugar disso, vamos falar em microtrilhas da explicação. No
âmbito da Teoria da Regulação, essa aproximação do plano micro é descrita
como análise das configurações específicas das relações sociais (Boyer; Saillard,
1995). Antes de passar à forma como os regulacionistas apresentam a cadeia
de nexos causais dos fenômenos econômicos, entretanto, cabe citar uma vez
mais Wright, Levine e Sober e reproduzir seu argumento em favor de uma busca
criteriosa e não reducionista de fundamentações no plano micro para as análises
macrossociais, o que não só aumenta a confiança nas teorias, como aprofunda
seu poder de explicação.
Na medida em que se está aberto à possibilidade de múltiplos fundamentos
para uma dada explicação (e, portanto, para a não-redutibilidade de
fenômenos macro a microfundamentos), a descoberta de processos de
nível micro, através dos quais se concretizam os fenômenos maiores,
enriquece a compreensão teórica (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 210).
Uma última observação. Na passagem dos Grundrisse em que discute as
formações sociais pré-capitalistas, Marx (1971) mostra como as estruturas
sociais agem sobre o comportamento dos indivíduos, delimitando o horizonte
de possibilidades de suas ações numa determinada época e sob a vigência de
determinadas relações sociais. Seu pertencimento de classe delimita o espectro
de atitudes possíveis em uma dada situação.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007
Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
333
2 As relações sociais: indivíduos, instituições
e estruturas
A Teoria da Regulação desenvolveu um caminho, se não completamente
riginal, uma vez que é tributária de uma forte influência da tradição marxista e
das contribuições que o estruturalismo e a Escola dos Anais trouxeram às ciências
sociais, inegavelmente criativo e fecundo, para dar conta da relação entre as
trajetórias individuais dos atores e os fenômenos que se manifestam no plano
agregado das estruturas sociais. Através da análise da mediação das instituições, para a qual criaram o conceito de formas institucionais da estrutura, os
autores regulacionistas puderam dar conta da relação entre a conduta dos indivíduos e as determinações irredutíveis do plano macro.
A influência marxista trouxe uma decisiva contribuição à metodologia das
ciências sociais, que pode ser resumida pela conhecida frase com a qual Marx
contestou os economistas de seu tempo, os quais atribuíam ao capital um
estatuto de coisa, mera riqueza acumulada, uma quantidade de dinheiro ou um
conjunto de máquinas e equipamentos, dizendo: "O capital é uma relação social".
Da mesma forma, no primeiro capítulo de O Capital (Marx, 1983), quando faz
referência ao fato de toda a riqueza na sociedade capitalista assumir a forma de
um amontoado de mercadorias, ele lembra que, para estudar as mercadorias
enquanto coisas, seria preciso sair fora dos domínios da economia política e
adentrar outra disciplina científica, a qual apelidou de merceologia. Nas palavras
de um de seus seguidores, referido acima, Louis Althusser, essa posição de
Marx representa um corte epistemológico, pois funda uma nova abordagem para
a economia e para as demais ciências sociais com as quais trabalhou. Nessa
abordagem, a unidade última, indivisível e irredutível, a partir da qual se pode
construir a cadeia de causalidade dos fenômenos sociais, não é o indivíduo e os
objetos que o circundam, mas as relações entre os homens e as mulheres que
formam a sociedade. Todos os conceitos fundamentais da análise marxista,
desde o já citado capital até a mais-valia, o dinheiro, o trabalho, não representam
de forma nenhuma coisas, muito menos os indivíduos eventualmente proprietários
dessas coisas, mas as relações sociais estabelecidas entre indivíduos ou grupos
de indivíduos. Esse é o ponto de partida das microtrilhas da explicação.
2.1 O micro e o macro
Partindo das relações sociais, a TR abriu um novo campo de abordagem
para a economia política, que incorpora à investigação das relações de produção
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007
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Luiz Augusto E. Faria
determinações do nível de análise considerado por Marx como superestrutural,
aquele das relações jurídicas e políticas. Para a TR, assim como para toda uma
tradição que por décadas foi marginalizada pelo mainstream acadêmico, sem
essas determinações institucionais não é possível compreender a dinâmica dos
sistemas econômicos. Entretanto, diferentemente das versões neoclássicas do
institucionalismo, as instituições não são vistas como "microfundamentos" para
os fenômenos do plano macro.3 Conforme mostra a Figura 1, os fenômenos
micro exercem influência sobre o funcionamento do sistema como um todo,
através da mediação das determinações que se estabelecem no nível
intermediário das instituições.
No plano microssocial, as motivações e os interesses dos agentes
econômicos (empresas, grupos de trabalhadores, associações ou mesmo
indivíduos) produzem conflitos localizados, quer na esfera das relações de trabalho
(determinação dos salários, duração da jornada, atribuições de competências e
obrigações, etc.), quer na chamada área social (saúde, assistência, educação,
previdência ou segurança pública), quer na da competição intercapitalista
(conflitos de concorrência, poder de mercado e de contratação). A solução desses
conflitos exige a intervenção de uma outra esfera do sistema social, na qual se
fazem presentes o Estado e outras relações de poder que definem a política
econômica (juros, câmbio, política fiscal, etc.) e as demais políticas públicas
(políticas sociais, de meio ambiente, ciência e tecnologia, direitos da cidadania,
etc.), além dos poderes Judiciário e Legislativo, bem como de iniciativas de
organizações não-governamentais. Todo esse conjunto de instituições conforma
as cinco formas institucionais que descreve a TR, a forma do Estado, a relação
salarial, a restrição monetária, o padrão da concorrência e a inserção internacional,
cuja combinação recebeu o nome de modo de regulação. Além disso, também
faz parte desse arranjo institucional o paradigma tecnológico dominante, embora,
na maior parte da literatura, não seja tratado diretamente como uma instituição,
ao contrário do que fazem corretamente os evolucionistas (Coriat; Dosi, 1997;
Amable, 1995; Villeval, 1995).
Por fim, para completar o percurso da regulação no desenvolvimento dessa
passagem que liga os fenômenos micro às determinações macro, ou estruturais,
aparece um terceiro plano, onde se apreende o funcionamento do sistema em
3
Uma outra diferença em relação ao mainstream da teoria econômica é a negação do princípio
da racionalidade como dirigente do comportamento individual. Em lugar disso, Boyer (2004)
faz um resgate do conceito de habitus da sociologia de Pierre Bourdieu e o apresenta como
descritivo do tipo de lógica que preside o comportamento dos indivíduos em sociedade,
"determinada pelo contexto institucional, ou, mais exatamente, pelos compromissos
institucionalizados" (Boyer, 2004, p. 122).
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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seu conjunto. Nesse plano, as relações sociais, remodeladas pelas instituições,
dão forma à estrutura do sistema. A arquitetura dessas relações forma o modo
de desenvolvimento, a combinação de um modo de regulação e um regime de
acumulação, da qual resulta uma determinada distribuição da renda e da riqueza.
A situação dessa distribuição, por sua vez, volta-se sobre o plano microssocial,
ao condicionar as motivações e os interesses dos agentes que presidem os
fenômenos naquele plano.
Figura 1
As instituições na mediação entre micro e macro
Plano Institucional
Formas
institucionais
Paradigma
tecnológico
Resultados da
interação dos agentes
Modo de
desenvolvimento
Plano Micro
Plano Macro
Conflitos localizados
(relações sociais)
Motivação e
interesse dos
agentes
Distribuição da
renda e da riqueza
NOTA: Os conflitos localizados produzem resultados que, combinados, criam as
instituições reguladoras do conjunto do sistema, as quais, por seu turno, definem
um modo de desenvolvimento e um padrão de distribuição que vai motivar o
comportamento dos agentes.
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Luiz Augusto E. Faria
2.2 Do concreto ao abstrato
Um passo adiante na apropriação da produção teórica da TR é a proposição
de Boyer e Saillard (1995), segundo os quais a arquitetura geral da abordagem
regulacionista está configurada em três níveis de análise distintos,
correspondentes a três graus diversos de abstração.
O nível de análise mais geral, correspondente ao mais alto grau de abstração,
dá conta da análise dos modos de produção e de sua articulação. É nesse plano
que a filiação marxista da TR se mostra mais evidente, quando a análise faz uso
das determinações internas do modo de produção, suas tendências imanentes
e suas leis de movimento. Marx (1971), hegelianamente, tratava esse plano de
análise como o das relações internas, onde as determinações genuínas dos
fenômenos poderiam ser desvendadas, e como oposto ao das relações
aparentes, onde as verdadeiras relações de causalidade estariam, muitas vezes,
encobertas.
É importante ressaltar, entretanto, que essa filiação se refere à obra do
próprio Marx e está em desacordo com as versões mais difundidas do marxismo
ao longo do século XX. Nesse sentido, a TR manteve-se distante do determinismo
e do economicismo, operando uma incorporação da teoria de Marx em suas
melhores contribuições, a qual é assim apresentada por Boyer e Saillard (1995):
A filiação às relações de produção de Marx é clara, mas a correspondência
entre relações de produção e estágio das forças produtivas é abandonada,
da mesma forma que a dicotomia entre estrutura econômica e
superestrutura jurídico-política. No modo de produção capitalista, a forma
das relações de produção e de intercâmbio impõe o primado do valor de
troca sobre o valor de uso e faz da acumulação um imperativo do sistema.
Entretanto, a TR não infere disso a existência de uma relação invariante
entre modo de produção capitalista e formas de acumulação (Boyer; Saillard,
1995, p. 60).
No entanto, embora a ressalva sobre a existência de vários capitalismos,
as análises da TR têm sido capazes de buscar, na história do desenvolvimento
do modo de produção capitalista, a manifestação das tendências descritas por
Marx tanto na "lei geral da acumulação" quanto na "lei da queda tendencial da
taxa de lucro", ou na "lei do valor".
As formas concretas da acumulação são tratadas em um segundo nível de
análise, em um menor grau de abstração, no qual as tendências contraditórias
em direção à crise ou à estabilidade do processo de acumulação podem ser
compreendidas. É nesse plano que se explicita mais claramente a distância
entre a TR e qualquer concepção determinista ou de equilíbrio. Como lembra
Lipietz (1988), a descoberta de certas regularidades do sistema não decorre de
nenhuma tendência imanente, de nenhuma "besta do Apocalipse"; é um achado
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
337
(trouvaille), resultado dos desdobramentos das relações de cooperação e conflito
entre seus elementos constitutivos: classes sociais, frações de classes,
associações de empresas, sindicatos, etc. A estabilidade é alcançada a partir
de um certo grau de institucionalização dessas relações, materializado em um
modo de regulação que garante a continuidade do regime de acumulação, o
processo de valorização do capital. A marca desse processo é a permanente
mudança do próprio sistema, em resposta ao interminável impulso endógeno de
transformação, de adaptação às novas circunstâncias que resultam da interação
de seus elementos constitutivos ou do ambiente que o circunda. Para marcar
esse acento no caráter mutante do sistema, Boyer e Saillard (1995) polemizam:
Lá onde os neoclássicos e pós-keynesianos procuram um modelo geral e
invariante, os regulacionistas encontram uma variedade de regimes de
acumulação, segundo a natureza e a intensidade da mudança tecnológica,
o volume e a composição da demanda, o tipo de modo de vida dos
assalariados. As relações capitalistas são compatíveis com regimes de
acumulação que se transformam no longo prazo e que são, portanto,
variáveis no tempo e também no espaço (Boyer; Saillard, 1995, p. 61).
O terceiro nível de análise trata da configuração específica das relações
sociais em um determinado tempo e lugar, sua regularidade e seu tecido
institucional. Nesse plano, são definidas as cinco formas institucionais que
condicionam o comportamento dos atores sociais numa direção coerente com a
manutenção do funcionamento do sistema. Por outro lado, é também nesse
plano que, a partir da evolução do conhecimento e das interações entre os
agentes envolvidos, se configura o paradigma tecnológico, o qual vai definir
condicionantes e limites ao ritmo da cumulação. São as relações aparentes,
materializadas no nível concreto.
A Figura 2 representa as relações de causalidade e correspondência entre
os três níveis de análise. Como pode ser visto, a cadeia de conexões vai das
relações sociais fundamentais do modo de produção capitalista até as formas
institucionais e o paradigma tecnológico que regulam o funcionamento do sistema
e condicionam o formato e as possibilidades da estrutura produtiva. O percurso
começa em Marx e vai até a TR. Constituído esse tecido institucional, suas
articulações formam as duas instâncias de estabilização e reprodução do
sistema, o modo de regulação e o regime de acumulação, cuja combinação dá
forma ao modo de desenvolvimento. Nesse nível intermediário, as relações
fundamentais do modo de produção capitalista agem como condicionantes das
possibilidades alternativas das formas que podem ser assumidas pelo modo de
desenvolvimento seguido por cada formação social específica.
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Figura 2
Os três níveis de análise e os principais conceitos da abordagem da regulação
Nível Abstrato
Plano do modo de produção e de suas categorias fundamentais,
das relações mais simples e permanentes.
Relações de Produção Capitalistas
- Apropriação
- Relação mercantil
- Assalariamento
Nível Abstrato-Concreto
Plano em que se organizam as tendências e contratendências
definidoras da evolução do sistema econômico.
Regime de Acumulação
Modo de
Desenvolvimento
Modo de Regulação
Nível Concreto
Plano mais complexo, onde se estabelece a configuração específica das
relações sociais no tempo e no espaço.
Formas Institucionais:
- Forma da concorrência
- Padrão monetário
- Relação salarial
- Tipo de Estado
- Regime internacional
Legenda:
Determinação
Reciprocidade
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Paradigma
Tecnológico
Correspondência
Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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Para maior clareza, o diagrama ainda requer que seja apresentada uma
definição das categorias utilizadas. O ponto de partida desse esclarecimento é
a análise da gênese das formas institucionais, o conceito que liga os diversos
níveis da análise. Na obra fundadora da abordagem da regulação, Aglietta (1986)
adiantou o conceito de forma estrutural (o que, depois, passou a ser chamado
de forma institucional), definido como um "modo de coesão das formas sociais
resultantes do desenvolvimento de uma mesma relação social fundamental"
(Aglietta, 1986, p. 163). Em outras palavras, uma certa forma de organização
social, constituída a partir de algumas relações sociais fundamentais,
desenvolve-se e adquire maior complexidade num percurso em que essas
relações sociais dão origem a um conjunto de instituições que estabilizam e
dirigem o processo de manutenção e reprodução dessa sociedade. Alain Lipietz
produziu um desenvolvimento mais completo dessa problemática a partir da
distinção hegeliana, apropriada por Marx, entre aparência e essência. Em Lipietz
(1979) e, depois, em Lipietz (1983), ele estabelece uma relação dialética entre
as relações fundamentais, constitutivas do plano interno da análise, a apropriação — ou posse econômica —, a relação mercantil e o assalariamento e suas
formas aparentes. Um retorno à obra de Marx e a leitura de outros autores que
também estudaram a história do capitalismo, como Polanyi e Braudel, abriram a
possibilidade de conciliar a derivação abstrata das formas institucionais realizada
pela TR com a gênese histórica desse modo de produção.
Alguém que tenha estudado a obra de Marx não deixará de perceber a
presença de uma preocupação que buscava reiteradamente traçar um paralelo
entre a derivação lógica de um conceito e a gênese histórica da relação social
por ele representada. Em O Capital (Marx, 1983), ele afirma que o modo de
produção especificamente capitalista começa a existir com a introdução do
trabalho assalariado na indústria manufatureira da Europa. Isso só foi possível,
entretanto, porque a existência de outras duas relações sociais fundamentais
haviam já criado o ambiente em que o uso do assalariamento poderia assumir
sua forma capitalista. Essas outras relações foram a forma capitalista de
propriedade privada dos meios de produção — a relação de apropriação —,
através da qual esses mesmos meios de produção se transformam em capital,
e a troca intermediada por moeda — a relação mercantil —, através da qual é
possível a separação entre valor e valor de uso, base da acumulação capitalista
da riqueza abstrata.
Da mesma forma, Braudel (1996) afirmou, ao fazer uma comparação entre
as sociedades mercantis orientais e as sociedades européias as quais estudava,
que a presença da troca e mesmo da moeda não eram suficientes para definir
uma sociedade como capitalista, pois esse modo de produção apenas existe a
partir da instituição de uma nova relação social, em que o trabalho produtivo
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Luiz Augusto E. Faria
assume a forma de trabalho assalariado.4 Em seu estudo sobre as origens da
sociedade capitalista, Polanyi (2000) mostra como o desenvolvimento do
capitalismo só foi possível com a ação do Estado, cuja intervenção foi decisiva
para desenhar o formato final das relações sociais fundamentais desse modo
de produção. O processo é descrito com recurso à figura das três "mercadorias
fictícias" — a terra, o dinheiro e o trabalho —, criadas pelo desenvolvimento das
relações sociais com o decisivo concurso do Estado e que formam os pilares da
ordem econômica capitalista. O adjetivo fictícias visa ressaltar o fato de não
serem uma criação do trabalho produtivo, como as demais mercadorias, mas o
resultado da apropriação de recursos naturais, humanos ou simbólicos pela classe
dominante. Foi a ação regulatória do poder público que tornou possível essa
apropriação, ocorrida durante a fase de transição ao capitalismo, quando as
amarras feudais que as prendiam a relações pré-capitalistas foram desfeitas: a
apropriação da terra pela regulamentação de sua compra e venda; a apropriação
do trabalho pelo fim da servidão e a instituição de um mercado onde sua livre
contratação ficou possível; e a apropriação do dinheiro pela instituição do curso
forçado.
Nos primeiros capítulos do Livro I de O Capital, Marx (1983) descreve as
relações sociais fundamentais do modo de produção capitalista e a norma jurídica
que institui cada uma delas. No capítulo sobre a mercadoria, ele apresenta a
relação de apropriação5 como a forma especificamente capitalista de posse de
riqueza, regulada pela norma jurídica da propriedade privada na forma que lhe
deu o direito burguês. Mais adiante, no capítulo sobre o dinheiro, cujo subtítulo é
A circulação da mercadoria, a relação mercantil é descrita junto com as funções
da moeda, a mais importante das quais é a norma social que regula as trocas,
o princípio da equivalência. Por fim, surge a terceira relação fundamental, nos
capítulos sobre o processo de trabalho e a criação da mais-valia (Marx, 1983,
cap. 4 a 20): a relação de assalariamento, definida a partir do conceito de mais-valia, a qual é regida pela norma jurídica que regula a maneira capitalista de
exploração do trabalho, a extração do excedente na forma valor.
4
Na verdade e como será visto adiante, a definição de capitalismo de Braudel surge quando
ele olha para o encontro do dono do dinheiro com o dono do poder político. Em outras
palavras, uma sociedade em que o poder político se funda sobre o poder econômico, e este,
por sua vez, se constitui a partir da forma especificamente capitalista de exploração do
trabalho, o assalariamento. Tal relação, entretanto, como demonstrado na análise da chamada acumulação primitiva, não é imprescindível à constituição dessa relação de poder e
historicamente antecedeu o surgimento do capitalismo.
5
Marx não usa o termo relação de apropriação fazendo referência apenas à norma da
propriedade. A origem do termo foi inspirada em Charles Bettelheim (1972), onde essa
relação é chamada de posse econômica.
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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Como dito acima, a gênese das formas institucionais que definem o modo
de regulação são as relações fundamentais do modo de produção. O caminho
dessa gênese começa com as relações fundamentais, a partir das quais se
formam as normas jurídicas que regulamentam as relações, as quais instituem
as mercadorias fictícias, expressões dessas normas. Num último passo desse
percurso, são constituídas as formas institucionais que articulam o modo de
regulação, quando, então, o tecido institucional que estabiliza a acumulação de
capital encontra o melhor ambiente para seguir sua marcha.
A relação de apropriação tem como fundamento jurídico o direito de
propriedade. A norma da propriedade privada teve sua origem na instituição de
uma proteção legal para a apropriação de uma parcela útil da natureza — a terra
cultivável — por uma classe privilegiada de membros da sociedade. Sob o
capitalismo, o monopólio da terra é ampliado para um monopólio de todos os
meios de produção, resultado do processo de despossessão de agricultores e
artesãos no final da Idade Média. Esses meios de produção assumem, por esse
caminho, a forma de capital. Seu emprego produtivo ocorre através da constituição
de unidades de capital, as empresas ou firmas, onde a combinação capital/
/trabalho acontece sob a direção do capitalista, dando início ao processo de
produção e valorização. A articulação dessas unidades de capital cria uma rede
de articulações entre empresas, que constitui o sistema econômico. A garantia
de um inter-relacionamento sistêmico dessas unidades de capital é função da
forma institucional da concorrência, a qual inibe a possibilidade de os comportamentos individuais de cada unidade assumirem um perfil contraditório com a
estabilidade de conjunto do sistema econômico, regulando as disputas entre os
proprietários, as modalidades de acesso à posse dos meios de produção e
estabelecendo uma hierarquia dessas propriedades.
A relação mercantil supõe a apropriação, pois a troca só é possível entre
pessoas que disponham, como proprietários, das mercadorias postas à venda e
da mercadoria que, ao ser aceita na troca, permite a efetivação da compra
desejada, o acesso a um valor de uso específico. Entretanto, para que esse
intercâmbio pudesse ocorrer, foi preciso a instituição de uma norma, o princípio
da equivalência, e de uma mercadoria especial, que incorporasse esse princípio,
o dinheiro, a qual possibilitou a formação do sistema de preços baseado no valor
dessa mercadoria fictícia. Seu desdobramento no plano da regulação foi a criação
da forma institucional da moeda, a restrição monetária, a qual regula o nível de
preços e a distribuição dos rendimentos entre os agentes econômicos, vinculados
a seu lugar na hierarquia da apropriação.
A relação de assalariamento resultou da definição de uma norma social
de exploração, de apropriação do excedente na forma de mais-valia, possibilitada
pela compra da força de trabalho por um valor menor do que o valor por ela
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criado na produção. O preço da mercadoria fictícia trabalho, a taxa de salário, é
o centro dessa relação, regulada no plano institucional pela forma estrutural da
regulação relação salarial e que, por seu turno, define uma taxa de exploração
em sua relação com a produtividade do trabalho.
A TR desenvolveu, ainda, os conceitos de mais duas formas institucionais,
as quais não são um desdobramento das relações internas do modo de produção
capitalista, mas originam-se do ambiente social onde este se formou, a saber, a
forma do Estado e a forma de adesão ao regime internacional. A primeira
tem sua genealogia na configuração do poder político e na especificidade de
sua relação com a vida econômica, ao passo que a segunda nasce do tipo de
articulação estabelecida entre uma determinada formação social nacional e o
sistema internacional no qual está inserida.
Uma última advertência em relação à versão mais corrente da TR diz
respeito à dimensão temporal. Sua materialidade expressa-se na sucessão de
fases de estabilidade e de crise ao longo da existência do sistema. Embora haja
uma certa ênfase na estabilidade quando as análises da TR se referem à operação
dos mecanismos da regulação, isso não quer dizer que não haja uma regulação
da crise, sob pena da incursão em um viés funcionalista. Isto é, se se entende
a crise como um momento da existência do sistema, a articulação regulação-acumulação, embora em crise, permanece existindo. Entretanto, pela
peculiaridade dessas fases, é uma existência que vivencia, necessariamente,
um processo de transformação mais acelerado do que nas fases de estabilidade,
pois, como já o sabia Camões (1988), "[...] todo o mundo é composto de
mudanças, tomando sempre novas qualidades"; uma maneira de apreender a
dicotomia crise/estabilidade é reparando na velocidade das mudanças.
Uma vez constituídas suas estruturas, o movimento do sistema em sua
totalidade, que se caracteriza pela permanente mudança, deixa de ser resultado
unicamente das ações dos agentes econômicos e passa a responder a
determinações do plano agregado. Como agem essas determinações é o tema
que passamos a tratar a seguir.
3 Mudança: a evolução das estruturas
e o fenômeno da emergência
O estudo do desenvolvimento econômico de uma sociedade é, de maneira
geral, empreendido como o estudo de suas mudanças estruturais. O que faz o
desenvolvimento são essas mudanças, pois o próprio processo, que é histórico,
pode ser entendido como o processo de evolução das estruturas econômicas.
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
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Nesse sentido, seu enfoque, necessariamente, precisa fazer um recorte em
termos dos níveis de análise anteriormente referidos, deixando de lado, em larga
medida, o plano micro e concentrando-se na abordagem das cadeias de
causalidade do plano macro, pois, se as determinações micro explicam a gênese
das relações sociais, no plano macro sua articulação produz as estruturas
institucionalizadas que dão forma ao sistema econômico. A explicação da
dinâmica do sistema em seu conjunto, necessariamente, está definida nesse
nível, para o qual fenômenos do plano micro têm relevância unicamente na
medida em que comportamentos individuais extrapolem os padrões de
normalidade e desencadeiem transformações das próprias relações sociais. Em
outras palavras, o comportamento de uma das partes só será significativo se
repercutir na articulação de todas as partes e implicar uma mudança do todo.
Compreender o movimento do sistema em seu conjunto foi uma tarefa
perseguida por Marx em seu trabalho, que teve como resultado a proposição
das já referidas leis gerais do modo de produção, como a lei do valor, a lei geral
da acumulação ou a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Seu esforço
monumental ficou, entretanto, incompleto, não apenas em razão de a morte
ter apanhado o autor de O Capital antes da conclusão de sua obra, mas,
principalmente, por uma não resolvida ambigüidade metodológica presente em
sua produção científica, o que a faz aparecer ora como determinística, ora como
subjetivista (Wrigth; Levine; Sober, 1993). É essa ambigüidade que acaba
justificando o fato de duas abordagens tão distantes como o individualismo
metodológico da escola analítica e o princípio da causalidade estrutural do
althusserianismo se reivindicarem marxistas.
A ambigüidade é, no entanto, apenas aparente. Quando Marx fez a
conhecida afirmação, em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, de que os
homens fazem a história em circunstâncias determinadas, estava definindo sua
posição em favor do que se poderia chamar subjetivismo sobredeterminado. O
sujeito coletivo fundamental, a classe social, faz a história, isto é, produz os
fenômenos sociais, condicionado pela herança do tempo pregresso. O poder
relativo desse sujeito histórico é resultado do passado da sociedade, assim
como o são as instituições e as estruturas que limitam a escolha de quais
ações são possíveis de serem intentadas no presente.
Em razão disso, é preciso avançar alguns passos adiante da contribuição
de Marx e encontrar um meio termo entre essas posições extremadas, um meio
termo que pode ser percebido como uma questão então sem resposta, mas já
presente na própria ambigüidade referida. Conforme a argumentação apresentada
mais acima, inspirada em Wrigth, Levine e Sober (1993), a explicação nas
ciências sociais deve percorrer um caminho intermediário entre individualismo e
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estruturalismo, caminho onde as relações entre os diversos subsistemas que
compõem a totalidade da estrutura social são a causa do movimento de conjunto
do sistema.
Uma contribuição com origem fora da tradição marxista, mas que, como a
TR, busca se situar num meio caminho entre causalidade estrutural e
individualismo metodológico, é a apresentada pelos institucionalistas e
evolucionários. Seu argumento é inspirado num dilema metodológico que envolve
as ciências da matéria, o qual tem revelado a impossibilidade de um único
sistema teórico dar conta de fenômenos tanto do plano micro quanto do macro.6
Embora a busca incessante, pelos físicos, de uma resposta teórica capaz de
produzir a Grande Unificação — movimento correspondente à busca dos
microfundamentos pelos economistas —,7 como argumentam autores como
Prigogine (1996), a passagem de um plano ao outro implica uma diferença
qualitativa, porque a agregação de estruturas mais simples em sistemas mais
complexos produz um fenômeno novo, o surgimento de novas propriedades no
sistema assim formado, que não poderiam existir em suas partes constitutivas.
O fenômeno chama-se emergência. As ciências biológicas há já muito se têm
dado conta dessa realidade, ao se defrontarem com as características dos
organismos multicelulares. Esses organismos não podem ser confundidos com
uma mera agregação de células, como é o caso de um tecido, pois possuem
propriedades que não estão presentes no microcosmo celular. Também no campo
das ciências físicas, entretanto, a existência de sistemas complexos passou a
ser admitida a partir dos trabalhos de Prigogine e outros.
6
É, por exemplo, o caso da Física, onde persiste uma incompatibilidade entre a Teoria Quântica
e a Teoria da Relatividade.
7
A Grande Unificação é a tentativa de fundir a mecânica quântica, explicativa dos fenômenos
micro no plano das partículas subatômicas e suas forças específicas, com a Teoria da
Relatividade, explicativa dos fenômenos macro no plano do cosmos e dos grandes corpos
celestes. A analogia não é completa, porque, tal como desenvolvido pelo que se convencionou
chamar "macroeconomia moderna", a busca dos microfundamentos, na verdade, não é uma
fusão, mas a incorporação da macro pela microeconomia. Por exemplo, a hipótese da neutralidade da moeda e a teoria da escolha pública reduzem a ação do Estado a seus efeitos
sobre o comportamento dos indivíduos, reduzindo, em conseqüência, essa estrutura social
à condição de um indivíduo. Ora, a contribuição que representa a invenção da macroeconomia
por Keynes foi a de reconhecer na moeda e no Estado a condição de formas institucionais
que produzem efeitos diretamente sobre as estruturas sociais, alterando as circunstâncias
em que os agentes tomam suas decisões individuais ou coletivas. Embora não admitam
claramente, é o que implicitamente fazem os novos keynesianos, quando admitem os efeitos
do Estado sobre o ambiente econômico ao qual se adaptam as expectativas. Do contrário,
seu modelo permaneceria aberto.
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
345
Evolucionários e institucionalistas apóiam-se na teoria dos sistemas complexos, particularmente em sua propriedade de auto-organização, a idéia de
ordem formando-se a partir do caos (Prigogine, 1996), e adaptam a noção de
emergência para a economia, através de uma argumentação que está
sistematizada em Hodgson (1997). Para dizer de forma muito breve, admitir que
os sistemas econômicos tenham propriedades emergentes é defender sua
não-redutibilidade explicativa aos elementos que o compõem no plano básico.
As noções de emergência e causalidade desde abaixo são usadas na
crítica do individualismo metodológico e da idéia reducionista de que a
macroeconomia pode apenas ser construída em termos de "sólidos
microfundamentos" [...] ao explicar sistemas complexos, seremos forçados
a nos atermos a propriedades emergentes ao nível macro. (Hodgson,
1996, p. 10).
Num percurso que os aproxima muito da TR, os autores com essa filiação
teórica lançam mão do conceito de instituição, para fazer uma passagem entre
os níveis micro e macro. Tal conceito guarda grande semelhança com as formas
institucionais na TR, abrangendo o conjunto de mecanismos que condiciona e
dirige o comportamento dos indivíduos, na forma de normas, regras e convenções,
sejam formalizadas como leis ou regulamentos, sejam informais, como hábitos
e valores de conduta.8 Por sua estabilidade e relativa invariância e por perdurarem mais que os indivíduos, as instituições formam, segundo Hodgson, a unidade
última de análise (bedrock unit). "Então, a instituição é uma 'invariante construída
socialmente'. Como resultado, as instituições devem ser tidas como as unidades
e entidades de análise" (Hodgson, 1996, p. 12). Mais adiante, ele resume:
O conceito de instituição conecta o mundo microeconômico da ação
individual, dos costumes e escolhas com a esfera macroeconômica das
estruturas impessoais e aparentemente originais. Enquanto a análise de
cada um dos níveis deve permanecer consistente com o mesmo, o nível
macroeconômico tem propriedades emergentes e singulares (Hodgson,
1996, p. 12).
A mesma função é atribuída, na TR, ao conceito de formas institucionais.
Está fora dos propósitos deste trabalho fazer uma avaliação mais aprofundada
da contribuição institucionalista. Cabe, entretanto, ressaltar dois pontos. Primeiro,
sua preocupação central com a tecnologia produziu o importante aporte de tratá-la como uma instituição e, portanto, endogeneizá-la no esquema de análise,
para o que o conceito de sistema nacional de inovação é central. Esse tratamento
não existia nas primeiras versões da TR e, se, em seus trabalhos mais recentes,
8
O habitus de Bourdieu referido por Boyer (2004).
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Luiz Augusto E. Faria
a tecnologia tem recebido uma nova consideração, isso se deve, em larga medida, ao diálogo entre as duas escolas.
O segundo ponto relevante é que, inegavelmente e apesar de sua mais
breve existência, a TR possui um arcabouço teórico mais robusto, o que lhe
permitiu construir uma visão da dinâmica econômica em que as formas
institucionais estão tipificadas e hierarquizadas, assim como a articulação do
conjunto de instituições é realizada pelo conceito de modo de regulação. Mais
ainda, o motor da dinâmica do sistema em seu conjunto é apreendido na dialética
entre o regime de acumulação e o modo de regulação. Além disso, desenvolveu
uma teoria da crise a partir da qual a passagem da estabilidade ao caos pode
ser compreendida como um caso específico, com seus determinantes próprios,
mas que pertence a um tipo mais geral, a irrupção de uma contradição entre
acumulação e regulação. Esse maior poder de explicação da TR se deve à sua
inspiração marxista, especificamente à incorporação da idéia de que os processos
sociais são resultado da ação de sujeitos coletivos e que a ação desses sujeitos
será sempre condicionada e terá seus limites materiais estabelecidos pelas
relações sociais em que estão inseridos.
4 Conceituando o capitalismo
Fernand Braudel foi uma influência importante e sempre referida pela TR.
Seu emprego do método da Escola dos Anais, buscando a compreensão da
evolução histórica nas transformações da vida quotidiana, por oposição à
historiografia dos grandes homens e dos seus feitos, está na origem da
preocupação dos regulacionistas em produzir uma análise que se desdobrasse
em diferentes planos, do mais concreto ao mais abstrato, do micro ao macro.
A proposição do conceito de vida material por Braudel inspirou a noção de
interação dos agentes em torno dos conflitos localizados que formam o plano
microssocial nas análises da TR. Entrementes, a contribuição desse autor vai
muito além, representando um olhar sobre o capitalismo de uma outra perspectiva.
O sistema social criado pelos europeus na costa do Mediterrâneo permitiu-lhes
a construção de estruturas sociais dotadas de arranjos institucionais que se
mostraram os mais eficazes historicamente na implementação de sua
característica expansionista. Seu domínio avassalador sobre todas as civilizações
e sua extensão a virtualmente todo o planeta é decorrente de certas
características muito singulares do capitalismo, que esse autor francês percebeu
com originalidade e rara agudeza.
Para compreender a contribuição de Braudel, é preciso, em primeiro lugar,
ter claro que, apesar de ser evidente a presença das idéias de Marx em seu
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
347
trabalho, diferentemente do pensador alemão, Braudel não interpreta o capitalismo como um modo de produção, mas, antes disso, como uma estrutura de
poder. O capitalismo é uma forma de organização social em que o poder político,
o comando sobre os outros membros da sociedade, é facultado pelo poder
econômico. Diferentemente do que na história foi mais comum — estruturas
sociais hierarquizadas em classes nas quais o poder político foi precondição
para a posse da riqueza material — , o capitalismo inverteu essa causalidade.
Nele é a posse da riqueza que dá acesso ao poder político. Entretanto, se o
capitalismo criou um fator a mais na definição das hierarquias sociais, fator que
se vai tornando dominante na medida em que o capitalismo avança e submete
mais e mais todas as esferas da vida social à sua lógica, não criou as hierarquias, apenas as modificou à sua maneira.
A demonstração dessa proposição foi realizada por Braudel, através do
procedimento epistemológico em que explicou a evolução histórica da estrutura
social a partir de uma análise desdobrada em três planos distintos: o da vida
material, o da economia de mercado e o do capitalismo. A Figura 3 apresenta
um diagrama desses três estratos.
Figura 3
A tripartição da sociedade capitalista segundo Braudel
Capitalismo
Economia de Mercado
Vida Material
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348
Luiz Augusto E. Faria
O recurso ao método de desdobrar a análise nesses três níveis tem por
objetivo dar conta da complexidade do real e das dificuldades que essa
complexidade traz ao processo de investigação científica. Em primeiro lugar,
porque apenas o nível intermediário do mercado é transparente, está "na boca
do poço", como disse Braudel, uma vez que suas relações se desenvolvem
num âmbito público. Os outros dois níveis operam na esfera privada, nos lugares
fechados da produção e do consumo, ou nos encontros sigilosos, nos gabinetes
do poder, onde se tomam as decisões. Há, também, uma hierarquia entre esses
níveis, com o plano do capitalismo servindo-se dos outros dois, usando tanto o
mecanismo competitivo do mercado para dominar a circulação do valor, quanto
sua propriedade sobre a riqueza acumulada para controlar a criação desse valor.
A base sobre a qual se ergue o edifício social é a vida material, cujas
"costas imensas" carregam o todo. Braudel a definiu como o lugar "[...] do
quotidiano, daquilo que, na vida, se encarrega de nós sem que o saibamos
sequer: o hábito — melhor, a rotina" (Braudel, 1987, p. 13-14). Nesse plano,
realiza-se a subsistência, para a qual se organizam os processos de trabalho,
inventam-se as técnicas que o aperfeiçoam, e é também onde se definem os
padrões de consumo típicos de cada sociedade e dos diferentes grupos dentro
destas. É o lugar onde se realizam "a produção, enorme domínio, e o consumo,
um domínio igualmente enorme" (Braudel, 1987, p. 20).
Um passo acima está a economia de mercado, a "zona mais clara", onde
os processos de produção e consumo não só se articulam, como se tornam
aparentes, ganham vida e definição através dos preços. Aqui as relações de
produção adquirem um novo significado: de criadoras de valor de uso, passam a
ser geradoras do valor de troca, dando novo sentido ao trabalho, tornando-o
produtivo e social. Mas essa esfera age sobre a camada inferior em cima da
qual se erige e a transforma não só pela intermediação dos processos de troca
no âmbito da produção e do consumo — que, a partir de seu ingresso na economia
de mercado, só podem se realizar como etapas de inúmeras cadeias de
intercâmbio, cada vez mais complexas e extensas —, mas pela reorganização
desses processos, que deixam de ser presididos pelo princípio da utilidade e
passam a ter como finalidade a produção de valor de troca.9
Na definição da terceira esfera, Braudel (1987) começa por estabelecer
uma distinção entre dois tipos de troca. Um tipo A, aquele de mercado, regido
pela lei do valor, como a chamou Marx, e resultando no intercâmbio de
9
Nessa perspectiva, a teoria neoclássica do valor utilidade pode ser avaliada por seu real
significado: é puro non sense, uma vez que coloca na posição de inerente ao capitalismo
aquilo que ele suprimiu.
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Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política
349
equivalentes, seguindo as regras do mercado público tradicional, e outro de tipo
B, das "[...] trocas desiguais, em que a concorrência — lei essencial da chamada
economia de mercado — dificilmente tem lugar" (Braudel, 1987, p. 47). Esse
segundo tipo acontece não no mercado, mas no "contramercado", um espaço
dos monopólios, dos "[...] amigos do príncipe, aliados ou exploradores do Estado
[...] [que] têm a superioridade da informação, da inteligência, da cultura" (Braudel,
1987, p. 49-50) e comandam cadeias de comércio e finanças cada vez mais
longas e que, por essa mesma razão, escapam aos controles habituais da
economia de mercado e dão oportunidade ao lucro extraordinário.
Resumindo: dois tipos de troca; um terra-a-terra, competitivo, pois que
transparente; o outro superior, sofisticado, dominante. Não são os mesmos
mecanismos nem os mesmos agentes que regem esses dois tipos de
atividade, e não é no primeiro, mas no segundo que se situa a esfera do
capitalismo. (Braudel, 1987, p. 53).
Esses agentes não são indivíduos isolados, pois o capitalista não é um
produto da economia de mercado, como tentaram fazer crer os pensadores liberais
através do arquétipo do self made man. Tal condição é herdada, resulta de uma
prática de cultivar privilégios e demarcar diferenças por parte de pequenos e
seletos grupos, "[...] famílias vigilantes, atentas, empenhadas em aumentar
pouco a pouco sua fortuna e sua influência" (Braudel, 1987, p. 58). Essa característica Braudel foi encontrar unicamente na história da Europa, o que
explica o não-surgimento do capitalismo na civilização chinesa ou no Islã, dotados de vida material e de economias de mercado, à sua época, bastante mais
ricas que as européias. Nesses dois casos, as posições superiores na hierarquia social não podiam ser herdadas, pois dependiam seja de concurso público,
no caso dos mandarins na China, seja da redistribuição da propriedade pelo
Estado, no caso das sociedades islâmicas.
As características históricas do capitalismo são, primeiro, a exploração
das oportunidades e dos recursos internacionais, o caminho a que conduz o
alongamento das redes do comércio e das finanças; em segundo lugar, o recurso
aos monopólios de fato ou de direito, pois "[...] a organização, como se diz hoje,
continua a fazer funcionar o mercado" (Braudel, 1987, p. 90); em terceiro lugar e
para assegurar, dentre outras coisas, os monopólios de direito, o capitalismo
precisa do Estado, tende a se confundir mesmo com o Estado; e, em quarto
lugar, embora assim como a economia de mercado tende a se espraiar pela
estrutura social, o capitalismo não alcança nunca abarcar toda a economia.
O capitalismo não abrange toda a economia, toda a sociedade que trabalha;
jamais encerra uma e outra num sistema, o dele, e que seria perfeito: a
tripartição de que falei antes — vida material, economia de mercado,
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350
Luiz Augusto E. Faria
economia capitalista (esta com enormes adjunções) — conserva um
surpreendente valor atual de discriminação e explicação. (Braudel, 1987,
p. 90-91).
◆◆◆
Tratamos, neste texto, de discutir algumas questões de método que nos
ajudassem a compreender com mais propriedade os fenômenos econômicos
sob o capitalismo. Vimos que as ferramentas usuais dos economistas em muito
pouco ajudam a desvendar os segredos desse sistema social. Para formular
melhores explicações, é preciso evitar tanto o reducionismo do individualismo
metodológico quanto a abstração da causalidade estrutural. Dando um passo
adiante, fomos ver o quanto a Teoria da Regulação acrescenta à contribuição
original de Marx, traduzindo-a numa ferramenta para a análise do desenvolvimento
histórico dos sistemas econômicos capitalistas. Vimos também como combinar
os plano micro e macro da análise, para o que o conceito de formas institucionais
é central, bem como o quanto a análise ganha em profundidade e abrangência
quando se consegue realizá-la em diferentes níveis de abstração. Por fim,
visitamos o pensamento de Braudel, para alargar as fronteiras do nosso conceito
de capitalismo.
Apreender a eloqüente lição de Braudel, bem como as contribuições de
Marx e dos regulacionistas, faz ver o quão distante da verdadeira natureza do
capitalismo estão as descrições que os economistas tão diligentemente se
encarregam de elaborar — em geral, adornadas com elegante apuro matemático —, e que nos falam de um sistema a se mover em direção ao equilíbrio,
estruturado sobre relações de troca homogêneas, simétricas e recíprocas. São
parábolas de um outro mundo, em tudo diferente do capitalismo engendrado
pela história da Europa ocidental e hoje abarcando a quase-totalidade do
planeta em proveito de um seleto grupo de beneficiários desse sistema de
dominação social, que conseguiu, com inaudita agressividade, estender seu
predomínio até onde nenhuma outra forma de civilização sequer sonhou.
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353
Realismo crítico e abordagem da Regulação:...
Realismo crítico e abordagem da
Regulação: da possibilidade de colaboração
entre Ciência e Filosofia*
Carolina Miranda Cavalcante**
Doutoranda em Economia, na Universidade
Federal Fluminense (UFP)
Resumo
O propósito deste artigo é a investigação de uma possível compatibilidade entre
o programa de pesquisa heterodoxo da abordagem da Regulação e a proposta
filosófica do realismo crítico. O esquema conceitual da abordagem da Regulação
é apresentado a partir dos trabalhos metodológicos de seus principais autores:
Aglietta, Lipietz e Boyer. A proposta do realismo crítico é sugerida como fornecedora de fundamentos metodológicos para programas de pesquisa heterodoxos, que se orientam no sentido da construção de uma alternativa teórica à
tradição neoclássica. Uma colaboração frutífera entre a abordagem da Regulação
e o realismo crítico é possível, e esse é precisamente o caminho indicado no
presente artigo.
Palavras-chave
Realismo crítico; abordagem da Regulação; Filosofia da Ciência.
Abstract
This article’s purpose is the study of a possible compatibility between the
heterodox research program of regulation approach and the philosophical proposal
of critical realism. The conceptual framework of regulation approach is sketched
* Artigo recebido em ago. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007.
** A autora agradece, pelos comentários ao presente artigo, a Célia Kerstenetzky, André
Guimarães e a um parecerista anônimo desta revista. Agradece, ainda, à Faperj e ao CNPq
pelo apoio financeiro.
E-mail: [email protected]
[email protected]
E-mail:
Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007
354
Carolina Miranda Cavalcante
through the methodological works of its main authors — Aglietta, Lipietz and
Boyer. The proposal of critical realism is suggested as a provider of methodological
grounds for heterodox research programs, which is oriented to the construction
of a theoretic alternative to neoclassical tradition. A prolific collaboration between
regulation approach and critical realism is possible, and it is precisely this way
that we point out in the present article.
Key words
Critical realism; regulation approach; philosophy of science.
Classificação JEL: B29, B41, B59.
1 Introdução: o surgimento da abordagem
da Regulação como programa de
pesquisa heterodoxo e a emergência
do realismo crítico nos debates em
Filosofia da Ciência
Este artigo busca apresentar a proposta filosófica do realismo crítico e o
esquema conceitual da Escola Francesa da Regulação, ou, simplesmente,
Regulação. Contudo, não está sendo sugerida uma completa identificação desses dois paradigmas, poder-se-ia dizer, um filosófico e outro teórico. O objetivo
do presente estudo é a identificação de elementos ontológicos e metodológicos
comuns à Regulação e ao realismo crítico. Um aspecto que une regulacionistas
e crítico-realistas concerne à avaliação crítica dos supostos fundamentais da
Economia neoclássica-padrão. Esse ponto em comum pode ser verificado na
natureza mesma de tal crítica, que não pretende contribuir com a ampliação do
espectro de questões abarcadas pelo programa de pesquisa neoclássico, mas
procura fornecer as bases para um programa de pesquisa alternativo. Nesse
sentido, sua crítica é ontológica e sua proposta aponta a própria redefinição do
objeto de estudo da Economia, em que a noção de sistemas fechados é suplantada pela de sistemas abertos e o ponto de partida do individualismo é substituído pela idéia da precedência da sociedade em relação aos sujeitos.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007
355
Realismo crítico e abordagem da Regulação:...
A Escola Francesa da Regulação emerge num momento de contestação
do estruturalismo althusseriano, cujo esquema conceitual excluía o sujeito do
processo histórico. Os regulacionistas reconhecem uma herança althusseriana,
apesar de compartilharem da crítica a esse estruturalismo, que afirmava as
estruturas, mas negava o sujeito. Os regulacionistas são “filhos rebeldes de
Althusser” (Lipietz, 1993). Logo, a Regulação procura construir uma alternativa à
tradição neoclássica, ao indivíduo a-histórico, mas com o cuidado de não incorrer nas estruturas sem sujeito do althusserismo clássico. Michel Aglietta, Alain
Lipietz e Robert Boyer são considerados os principais autores da Escola Francesa da Regulação.
Segundo Nascimento (1993), o programa de pesquisa regulacionista deu
seus primeiros passos teóricos na década de 70, a partir das discussões suscitadas pela Tese de Doutorado de Michel Aglietta, defendida em outubro de 1974
e, posteriormente, publicada em 1976, sob o título Régulation et Crises du
Capitalisme1. Pode-se dizer que a Regulação possui, em termos lakatosianos,
um núcleo rígido, definido em torno do conceito de Regulação. Segundo Lipietz,
regulação de uma relação social é “[...] o modo como essa relação se reproduz
apesar de seu caráter conflituoso, contraditório” (Lipietz, 1988, p. 92).
Sem esquecer que entre os regulacionistas existem matizes, por vezes
significativas, o que importa, porém, é que persiste entre eles um núcleo
duro na formulação do conceito de regulação: série de mecanismos que
contribuem para a reprodução do conjunto, tomando-se em consideração
tanto as estruturas econômicas quanto as formas sociais em vigor.
(Nascimento, 1993, p. 128).
Uma questão a ser considerada é que, embora o conceito de regulação
forneça uma unidade à Regulação, esse programa de pesquisa se constitui sob
várias influências teóricas, das quais Nascimento (1993) destaca o pensamento
de Marx e de Keynes, além da Escola dos Annales2. Lipietz afirmou, numa
entrevista de 1987, que “[...] não há exatamente uma teoria da regulação. É
preferível denominá-la uma abordagem que fala de modelos de desenvolvimento em termos de acumulação e regulação” (Lipietz, 1987). Ao desenvolver suas
asserções em nome da abordagem da Regulação, Lipietz e Boyer sempre
1
No presente trabalho, será utilizada a edição de Aglietta (2000).
2
A Escola dos Annales surgiu a partir da obra de dois historiadores — Marc Bloch e Lucien
Febvre — em torno da revista Annales, publicada em 1929. A proposta dos autores era a
construção de uma noção de história-problema, alternativa à história positivista. Os campos
de interesse da Escola dos Annales envolviam estudos de estrutura, estudos de conjuntura
e estudos regionais. Sobre a Escola dos Annales, ver Cardoso e Brignoli (2002, p. 470-477).
Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007
356
Carolina Miranda Cavalcante
enfatizam a particularidade de suas respectivas perspectivas acerca da
Regulação.3
O realismo crítico é uma tradição filosófica, que emergiu, também na década de 70, a partir da obra seminal de Roy Bhaskar, A Realist Theory of
Science, de 1975 (Bhaskar, 1997). O objetivo de Bhaskar é construir uma descrição realista da ciência, na qual seja possível fornecer “[...] uma ampla alternativa ao positivismo que, desde o tempo de Hume, tem delineado nossa imagem de ciência” (Bhaskar, 1997, p.12). Em 1997, Tony Lawson publicou
Economics and Reality, tendo, assim, inserido a proposta de Bhaskar nas
discussões de metodologia econômica. Lawson sustenta que a Economia ortodoxa encontra no positivismo lógico seus fundamentos filosóficos, razão pela
qual tem sido apontada como portadora de recorrentes problemas teóricos e
metodológicos. Desse modo, Lawson apóia-se no realismo crítico, a fim de fornecer um contraponto à ortodoxia econômica no campo da Filosofia da Ciência.
Seu argumento é o de que os fundamentos filosóficos da economia mainstream
são responsáveis por suas inadequações teóricas e metodológicas e que a
construção de uma ciência econômica mais objetiva dependeria de uma
reafirmação ontológica. Uma economia mais objetiva demanda, acrescenta
Lawson, o abandono de uma ontologia positivista e a assunção de uma ontologia
crítico-realista.
As diversas críticas heterodoxas que vêm sendo direcionadas à tradição
neoclássica nas últimas décadas são fundamentais na busca de novos rumos
teóricos no campo da Economia. Nesse sentido, o realismo crítico pode fornecer argumentos bastante frutíferos na tarefa de construção de uma alternativa
heterodoxa ao mainstream econômico, ocupado pela tradição neoclássica. Na
medida em que as heterodoxias buscam edificar esquemas teóricos concorrentes ao programa de pesquisa neoclássico, cuja ontologia subjacente é provida
pelo positivismo lógico, a sugestão do realismo crítico de reafirmação ontológica
pode ajudar na emergência de alternativas teóricas mais robustas.
3
Um curioso fato pode ser identificado entre os críticos da Regulação, em que cada crítico
procede a uma particular leitura desse programa de pesquisa, o que acaba por produzir as
mais diversas avaliações — como exemplos, ver Medeiros e Oliveira (2001), Possas (1998),
Mavroudeas (1999) e Nascimento (1993). O que Possas acredita estar faltando na Regulação
é precisamente o que Mavroudeas pensa ser sua maior deficiência — a presença de
conceitos intermediários. Adicionalmente, enquanto Mavroudeas considera que a Regulação
se tem deteriorado conceitualmente com o tempo, Nascimento acredita que os desenvolvimentos recentes de Lipietz e Boyer respondem a algumas críticas formuladas por Possas.
Contudo foge do escopo deste trabalho a consideração mais atenta das críticas à abordagem da Regulação.
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Realismo crítico e abordagem da Regulação:...
357
O restante do artigo dividir-se-á em três itens. Inicialmente, será apresentado o programa de pesquisa regulacionista. Em seguida, será exposta a proposta filosófica do realismo crítico. Por fim, serão indicadas algumas similaridades entre o esquema conceitual da Regulação e o realismo crítico.
2 Abordagem da Regulação: um paradigma
teórico
A exposição do esquema conceitual da Regulação será realizada em dois
momentos. Inicialmente, será estabelecido o posicionamento teórico a partir do
qual a Regulação se insere nos debates em Economia. Nesse sentido, são
apresentadas algumas críticas de Aglietta à tradição neoclássica e a filiação
crítica que Lipietz identifica entre a Regulação e o pensamento de Althusser.
Em seguida, será realizada uma breve exposição dos conceitos centrais ao
programa de pesquisa regulacionista, a partir dos distintos níveis de abstração
sugeridos por Boyer.
A crítica da Regulação ao mainstream dirige-se a três elementos componentes do programa de pesquisa neoclássico: (a) equilíbrio geral, (b) perfeita
racionalidade e (c) individualismo metodológico. Aglietta (2000) desenvolve sua
avaliação da tradição neoclássica com base na crítica à idéia de equilíbrio geral,
a partir da qual diversas inconsistências metodológicas podem ser apontadas.
Aglietta identifica duas deficiências do programa de pesquisa neoclássico:
[...] primeiro, sua inabilidade em analisar o processo econômico em termos
do tempo vivido pelos sujeitos, em outras palavras fornecer um relato
histórico dos fatos econômicos; e segundo, sua inabilidade em expressar
o conteúdo social das relações econômicas, e conseqüentemente interpretar
as forças e conflitos em operação no processo econômico (Aglietta,
2000, p. 9).
Aglietta (2000) assinala que a tradição neoclássica sustenta uma noção de
tempo não correspondente ao tempo efetivo das economias reais. Essa noção
de tempo (lógico) encontra-se implicada na idéia de equilíbrio geral, que, por
sua vez, está atrelada a um particular modo de fazer ciência, consistente na
construção de modelos abstratos4. Existe, por conseguinte, um gap entre a
concepção de tempo implicada nos modelos de equilíbrio geral e a temporalidade
4
Naturalmente, toda teoria constitui-se através de abstrações; a questão significativa é o
modo como essas abstrações são realizadas. Retornar-se-á a essa temática adiante.
Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007
358
Carolina Miranda Cavalcante
das economias reais. O que os modelos neoclássicos negligenciam é o caráter
histórico da sociedade.
Ademais, a idéia de equilíbrio geral torna qualquer conceito de regulação
dispensável, pois a própria noção de equilíbrio implica a existência de mecanismos que direcionam a economia para esse estado de equilíbrio, de modo automático. Justamente, é essa automaticidade que elimina a necessidade de
regulação. No mundo neoclássico, a regulação não é nada além de um conjunto
de propriedades globais do equilíbrio geral (Aglietta, 2000, p. 10).
O conceito de Regulação remete à avaliação do segundo fato destacado
por Aglietta, a saber: os modelos neoclássicos não são capazes de lidar com os
conflitos inerentes às relações sociais. Poder-se-ia dizer que, sem conflito, não
há regulação; portanto, não há história, nem sociedade. Para que o suposto
fundamental de equilíbrio seja satisfeito, devem ser formuladas regras de eficiência do sistema econômico que levem os indivíduos a agirem racionalmente,
compatibilizando suas ações (Aglietta, 2000, p.10). Nessa construção teórica,
não há espaço para qualquer regulação das relações sociais, dado que todos os
agentes são perfeitamente racionais e que suas ações são automaticamente
compatibilizadas, garantindo o equilíbrio do sistema. A perspectiva neoclássica,
pelo menos em sua versão mais tradicional, é a do individualismo metodológico,
em que indivíduos atomizados, no curso de sua ação racional, sempre encontram um estado de equilíbrio.
Uma das teses da Regulação, afirma Lipietz (1987), sustenta que as relações sociais são contraditórias, por conseguinte, não existe algo como um
estado de equilíbrio. Boyer (1990) assinala, ainda, que não há um princípio único
de racionalidade, o indivíduo neoclássico é um homem abstrato. Toda ação individual se dá em meio a estruturas sociais, o próprio indivíduo é uma construção
social e histórica concreta. Para agir, o sujeito precisa edificar um espaço de
representação das condições estruturais que possibilitem sua ação; em outras
palavras, toda prática social é orientada por projetos. Adicionalmente, tal representação somente pode ser realizada se existirem estruturas sociais que lhe
sirvam de base; os projetos dos sujeitos não surgem do nada. Deste modo, “[...]
as relações sociais podem ser apreendidas, na Regulação, como um compromisso entre agentes movidos por seus projetos” (Augusto, 2004, p. 437). Ademais, os “[...] agentes que estabelecem um compromisso de manter uma relação carregam projetos diferentes e contraditórios” (Augusto, 2004, p. 438). Se
esses projetos são contraditórios, então, uma regulação das relações sociais se
faz necessária.
Lipietz (1987) fornece um contraponto ao individualismo metodológico, definindo a sociedade como uma rede de relações sociais. Portanto, o ponto de
partida da análise regulacionista são as relações sociais, não indivíduos
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atomizados, racionalmente informados, em busca de estados de equilíbrio. Não
são os indivíduos que espontaneamente resolvem instituir relações de troca,
visto que a própria ocorrência da troca pressupõe a existência de relações de
troca. Lipietz afirma ainda que a troca é, ela mesma, uma particular modalidade
de relação social. Não há algo como um indivíduo abstrato ou um estado de
natureza a partir do qual a sociedade emerge. “Na história, não existe ação no
vazio, toda ação é uma ação na estrutura — mesmo que seja contra a estrutura
existente” (Augusto, 2004, p. 440). Desse modo, a abordagem da Regulação
sustenta uma perspectiva holista, não funcionalista, acerca da sociedade.
Além da crítica à tradição neoclássica, a abordagem da Regulação também identifica algumas deficiências no esquema conceitual do althusserismo
clássico, em que três elementos fundamentais podem ser destacados: (a) relações sociais como estruturas, (b) ausência de sujeito e (c) holismo absoluto.
Do mesmo modo que a contradição está ausente no mundo dos indivíduos
neoclássicos, ela não se encontra presente no mundo das estruturas sem sujeito do althusserismo clássico. Na perspectiva do estruturalismo de Althusser,
“[...] as relações sociais não eram percebidas como contradições, tensões instáveis, mas como estruturas” (Lipietz, 1988). Clive Lawson (1995) atribui a
Althusser a adoção de uma específica modalidade de holismo — holismo absoluto5 —, que exclui o sujeito do processo histórico. De acordo com Augusto
(2004), a história de Althusser é uma história sem sujeito.
Assim sendo, na reação da Regulação ao individualismo metodológico
(hommo ecconomicus), havia uma preocupação de não-adoção do seu pólo
oposto, o holismo absoluto (enfoque estruturalista). A abordagem da Regulação
“[...] foi desenvolvida com base em uma dupla crítica: por um lado, do hommo
ecconomicus, por outro, do enfoque estruturalista” (Boyer; Saillard, 1995). Desse modo, na discussão concernente à conexão estrutura-ação, a abordagem da
Regulação busca trilhar um caminho intermediário — nem indivíduo sem sociedade (tradição neoclássica), nem história sem sujeito (althusserismo clássico).
Por um lado, o foco encontra-se exclusivamente na ação, por outro, apenas as
estruturas são consideradas. A Regulação pretende, por conseguinte, capturar
o objeto social, levando em conta tanto o papel das estruturas sociais quanto o
da ação humana.6
5
A expressão holismo absoluto, de Clive Lawson (1995), está sendo utilizada como forma de
caracterização do althusserismo clássico, em que este é distinguido da modalidade de
holismo sustentada pela abordagem da Regulação.
6
O conceito que fornecerá uma unidade não reducionista às categorias da estrutura e da ação
é o conceito de habitus, elaborado por Bordieu. O conceito de habitus será mencionado
adiante.
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Carolina Miranda Cavalcante
A proposta de Aglietta (2000) é a construção de uma alternativa à tradição
neoclássica, a partir do conceito de regulação, que comporte uma outra noção
de tempo, compatível com o caráter histórico das economias reais. Tal noção de
tempo deve, ainda, ser capaz de explicar a reprodução dos sistemas econômicos,
considerando as transformações inerentes à sociedade, bem como deve entreter uma noção de totalidade hierarquizada, isto é, uma perspectiva holista, porém não funcionalista.
O termo “regulação”, cujo conceito é tarefa da teoria a ser construída,
indica a necessidade de uma análise que considere o sistema econômico
como um todo. Essa análise deve produzir leis gerais que sejam socialmente
determinadas, precisamente especificando as condições históricas de sua
validade. (Aglietta, 2000, p.15).
Nesse sentido, a Escola Francesa da Regulação nasce com o objetivo de
fornecer uma alternativa à tradição neoclássica, ao mesmo tempo em que busca superar as limitações do althusserismo clássico.
Todo o aparelho conceitual em termos de formas institucionais, regime de
acumulação e modo de regulação visa justamente superar tanto a
incapacidade do individualismo metodológico em lidar com as instituições
econômicas de base do capitalismo ao lhes reduzir a formas de troca
mercantil, quanto a incapacidade do estruturalismo marxista em analisar
as mudanças, especialmente no momento das grandes crises. (Boyer;
Saillard, 1995).
A seguir, serão apresentados os conceitos propostos pela abordagem da
Regulação a partir de seus distintos níveis de abstração. Sugere-se uma exposição desses níveis de abstração com base no grau de concretude analítica de
três conceitos adotados pela Regulação: (a) habitus, (b) relações fundamentais
e (c) conceitos intermediários. O conceito de habitus é aqui considerado como o
mais alto nível de abstração, pois consiste numa asserção sobre a forma de ser
da sociedade, na qual sujeitos e estruturas sociais se encontram
indissociavelmente ligados, apesar de ontologicamente distintos. As relações
fundamentais remetem a uma particular configuração histórica das relações
sociais, que se cristaliza no capitalismo. Os conceitos intermediários tratam
das formas institucionais, realizando a passagem do nível de teorização mais
abstrato no âmbito da configuração histórica capitalista (relações fundamentais)
para as configurações institucionais mais concretas, que fornecem o espaço de
representação a partir do qual os sujeitos constroem seus projetos.
O conceito de habitus remete ao que Lipietz denomina disponibilidade,
que consiste na “[...] capacidade [do sujeito] de manter um papel e de procurar
melhorar o próprio desempenho” (Lipietz, 1990). A categoria do habitus engloba
tanto uma prática objetivada quanto uma prática objetivante. A prática
objetivante refere-se ao “[...] movimento pelo qual os seres humanos se produ-
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zem e engendram suas futuras rotinas” (Lipietz, 1993). Já a prática objetivada é
“[...] o estado do homem social assim produzido, tanto de sua produção material
quanto de suas práticas rotinizadas em relações sociais, que se apresentam
agora como ‘condições’’’ (Lipietz, 1993). A unidade da prática objetivante e da
prática objetivada na categoria do habitus implica que “[...] no próprio ato de se
conformarem às condições, os homens modificam-nas de acordo com um projeto” (Augusto, 2004, p. 436). Adicionalmente, informa Augusto (2004), a prática
objetivante é o lócus da ação criativa, em que rotinas futuras são engendradas.
Naturalmente, a ação humana somente pode ocorrer em meio a estruturas
sociais relativamente duradouras, fornecidas pela prática objetivada, pela
cristalização de rotinas previamente engendradas. A prática objetivada é o lócus
do hábito.
No segundo nível de abstração, são consideradas as relações fundamentais — relação mercantil, relação salarial e Estado. A questão essencial, quando
se trata das relações fundamentais, é a compreensão do estatuto das relações
sociais, que serão definidas, de acordo com Lipietz, como um conjunto de práticas que se repetem com certa regularidade e que assumem uma autonomia
relativa. “Na infinidade dos atos sociais quotidianos, falar de relações sociais é
designar a regularidade de certas práticas sociais. Essa regularidade não é evidente, nem objetiva nem subjetivamente” (Lipietz, 1988, p. 92). Ademais, essas
relações são contraditórias, pois, como já exposto, os projetos dos sujeitos são
diferentes entre si.
Os conceitos intermediários compõem o terceiro nível de abstração, seu
menor nível de abstração. São dois os conceitos intermediários: regime de acumulação e modo de regulação. O regime de acumulação é composto por uma
norma de produção e por uma norma de consumo, podendo ser definido como
“um modo de repartição e de realocação sistemática do produto social” (Lipietz,
1988, p. 105).
O modo de regulação pode ser definido como um conjunto de padrões de
comportamento e instituições (Lipietz, 1987). Nesse sentido, um modo de
regulação encontra-se representado num dado conjunto hierarquizado de formas institucionais. São cinco as formas institucionais identificadas pela
Regulação: (a) restrição (ou coação) monetária, (b) relação salarial, (c) formas
de concorrência, (d) configuração internacional e (e) natureza do Estado.
As formas institucionais são necessárias para a reprodução das relações sociais, pois constituem o modo através do qual as relações fundamentais
se apresentam para os sujeitos; configuram o espaço de representação que os
sujeitos tomam como base para sua ação em sociedade. Conforme assinalado
anteriormente, qualquer projeto pressupõe um espaço de representação, algum
grau de conhecimento das condições de sua realização (Augusto, 2004,
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p. 436-437). Por fim, a conjunção de um regime de acumulação com um modo
de regulação define distintos modelos de desenvolvimento ao longo do tempo
(Lipietz, 1987).
Sintetizando a proposta da Regulação. Da contribuição ontológica: (a) a
sociedade precede os indivíduos; (b) as estruturas sociais, que se apresentam
para os sujeitos como formas institucionais, possibilitam a ação humana (prática objetivada) e são produzidas e reproduzidas através da ação humana (prática objetivante) e (c) a ação criativa é orientada por projetos. Da contribuição
metodológica: análise das economias reais através da investigação histórica.
Da contribuição teórica: reconhecimento de que a investigação científica deve
abarcar distintos níveis de abstração, com destaque para os conceitos intermediários. O esquema a seguir ilustra o ciclo virtuoso da Regulação, no qual as
relações sociais estão se reproduzindo com uma relativa estabilidade. Nesse
esquema, é possível identificar, ainda, os conceitos acima mencionados, bem
como a forma como concorrem para a reprodução do sistema, sempre guardando o espaço do sujeito nesse processo; por conseguinte, a possibilidade de
transformação dos modelos de desenvolvimento ao longo do tempo.
3 Realismo crítico: um paradigma filosófico
O realismo crítico é uma corrente filosófica que emerge dos escritos de
Roy Bhaskar da década de 70, a partir da qual é possível fornecer uma crítica
tanto ao positivismo lógico quanto aos teóricos do crescimento do conhecimento.7 Tony Lawson foi o responsável pela disseminação do pensamento de Bhaskar
nos debates metodológicos em Economia, daí retirando as bases para sua
crítica à economia mainstream. A seguir, apresentar-se-á o argumento filosófico
desenvolvido por Lawson.
Lawson sustenta que os problemas da Economia, mais especificamente
da ortodoxia econômica, residem num conjunto de métodos denominado
dedutivismo, que consiste numa concepção de ciência e explicação que identifica lei científica com conjunções constantes de eventos, são leis do tipo “sempre
que evento x, então, evento y” (Lawson, 1997, p. 17).
De acordo com Lawson (1997), regularidades de eventos somente podem
ser encontradas em sistemas fechados, pois é precisamente o fechamento do
7
As discussões em Filosofia da Ciência do positivismo lógico até os teóricos do crescimento
do conhecimento podem ser encontradas em Caldwell (1982), Blaug (1999) e Feijó (2003).
Para uma revisão de tais discussões, com a inclusão dos desenvolvimentos do realismo
crítico, ver Duayer, Medeiros e Painceira (2000; 2001) e Cavalcante (2005).
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sistema que permite a repetição ininterrupta de uma seqüência de eventos. Ademais, essa concepção de lei científica fundamenta-se numa ontologia lógico-positivista, que compreende a “[...] realidade como consistindo de objetos da
experiência ou impressões constitutivas de eventos atomísticos” (Lawson, 1997,
p. 19). Por fim, para uma ciência baseada no dedutivismo ser possível, os
referidos sistemas fechados devem ser ubíquos, de modo a garantirem a
ocorrência das regularidades de eventos, expressas em leis científicas, no mundo.
Para demonstrar as inconsistências do dedutivismo, Lawson (1997) propõe que se investigue uma prática difundida na ciência natural — a atividade
experimental. O que ocorre em ambiente experimental é a produção de regularidades de eventos; portanto, de sistemas fechados. No entanto, o mundo é povoado de sistemas abertos, de modo que as conjunções constantes de eventos
são contingentes, sendo raramente verificadas fora dos sistemas fechados.
A partir do dedutivismo, como explicar os resultados da ciência natural? Como
explicar a aplicabilidade de leis entendidas como regularidades de eventos (sistemas fechados) no mundo (sistemas abertos)? Pode-se concluir que: (a) os
sistemas fechados encontrados na atividade experimental são artificialmente
produzidos e (b) o dedutivismo não é capaz de explicar a prática científica
efetiva.
Resumindo, a tradição neoclássica, segundo Lawson (1997), ao adotar
como método científico o dedutivismo, pode ser metodologicamente caracterizada do seguinte modo: (a) lei científica como conjunção constante de eventos,
(b) sistemas fechados e (c) ontologia de eventos atomísticos brutos.
Lawson (1997) convida a uma análise de como os cientistas naturais extraem suas descobertas a partir da atividade experimental. Os sistemas fechados, construídos artificialmente em laboratório, são elaborados pelo sujeito
cognoscente com o propósito de isolar eventos de interesse, para que leis científicas possam ser identificadas. Nesse sentido, as conjunções constantes de
eventos são produzidas no intuito de que seja possível conhecer o modo de
funcionamento das leis científicas assim identificadas. Destarte, conclui Lawson
(1997), se leis científicas identificadas em laboratório continuam em operação
no mundo, então, essas leis devem ser operativas tanto em sistemas fechados
quanto em sistemas abertos. Leis científicas são, por conseguinte, intransitivas;
existem e operam independentemente de sua identificação em ambiente experimental.8
8
A Lei da Gravidade, por exemplo, não começou a existir a partir de sua descoberta. Evidentemente, antes de Newton, os corpos sofriam o efeito da Lei da Gravidade, embora esta
ainda não fosse conhecida. Aqui fica evidente o absurdo do dedutivismo. Se lei científica é
entendida como conjunção constante de eventos e se essas conjunções são produzidas
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Se a atividade experimental faz sentido enquanto prática científica, necessitando determinadas entidades da produção de fechamentos artificiais para
sua identificação, então, é preciso reconhecer que o mundo não se esgota nos
eventos empíricos e em seus efeitos. A concepção de uma estratificação
ontológica9 faz-se necessária. De acordo com Lawson (1997), é possível identificar três estratos constitutivos do objeto da ciência: empírico, efetivo e real.
O estrato do real é o lócus das leis intransitivas, bem como dos mecanismos
generativos, causadores do curso efetivo dos eventos.
A proposta de Bhaskar (1997) é que se estabeleça que os objetos do conhecimento comportam eventos empíricos, mas também leis gerais e mecanismos causais que residem além da esfera empírica e que são responsáveis pelo
curso de eventos observados. Um ponto importante é que leis científicas e
mecanismos causais não constituem uma adição arbitrária do sujeito cognoscente
a uma teoria que deve comportar mais que eventos empíricos; tais leis e mecanismos possuem uma existência independente de sua identificação, são entidades reais, intransitivas, conseqüentemente, não imaginárias. Assim sendo, a
ontologia filosófica proposta por Bhaskar é o realismo transcendental.10
Uma ontologia estratificada depende de um método distinto dos métodos
indutivo e dedutivo. O método retrodutivo, sugerido como o adequado a uma
ontologia realista transcendental, é aquele que visa, a partir das esferas empírica
e efetiva, identificar os mecanismos e as leis causadoras do curso efetivo dos
eventos.
Se a dedução é ilustrada pelo movimento de uma vindicação geral de que
“todos os corvos são pretos” para a inferência particular que o próximo
corvo observado será preto, e a indução pelo movimento da particular
observação de numerosos corvos pretos para a vindicação geral de que
“todos os corvos são pretos”, o raciocínio retrodutivo ou abdutivo é
designado como o movimento que parte da observação de numerosos
corvos pretos para uma teoria ou um mecanismo intrínseco (e talvez
pelo sujeito cognoscente, então, as leis científicas são uma construção humana e somente
podem existir na medida em que sejam conhecidas e/ou fabricadas pelos sujeitos. O
dedutivismo, leva a pensar que a lei da gravidade é uma construção do sujeito cognoscente,
somente existindo, portanto, a partir de sua descoberta por Newton.
9
Para uma exposição mais detalhada da estratificação ontológica, ver Bhaskar (1997) e
Lawson (1997).
10
Bhaskar (1997) assinala que a confusão de leis intransitivas com processos artificialmente
produzidos pelo sujeito cognoscente deriva de uma não-distinção entre os dois domínios do
conhecimento — transitivo e intransitivo. O domínio transitivo é aquele no qual residem,
segundo Lawson (1997), os meios de produção produzidos, ou seja, conhecimento produzido a partir de conhecimentos pretéritos. O domínio intransitivo é aquele no qual se encontram os objetos de estudo da ciência.
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também extrínseco) aos corvos que os dispõem a serem pretos. Este é um
movimento, paradigmaticamente, de um “fenômeno superficial” para alguma
entidade causal mais “profunda”. (Lawson, 1997, p. 24).
O passo seguinte é a aplicação do argumento desenvolvido para a atividade
experimental à Ciência Social. Lawson (1997) propõe que se analise o estatuto
da escolha humana, central ao programa de pesquisa neoclássico. Assinala
Lawson: “[...] se a escolha é real, qualquer agente poderia sempre ter feito de
outra maneira; cada agente poderia sempre ter agido diferentemente do modo
como ele ou ela de fato agiu” (Lawson, 1997, p. 30). Em outras palavras, a
escolha real somente é possível em sistemas abertos. Destarte, também no
âmbito da ciência social, o dedutivismo mostra-se inadequado na explicação
de seu objeto, no caso, a ação individual.
Da realidade dos sujeitos que fazem escolhas, pode-se inferir que qualquer
escolha entre alternativas implica uma certa intencionalidade, isto é, o agir humano é sempre finalístico. A intencionalidade humana, por sua vez, pressupõe
alguma cognoscibilidade do ambiente no qual se planeja realizar essa intenção,
e “[...] o conhecimento pressupõe um grau de durabilidade dos objetos de conhecimento suficiente para que eles venham a ser conhecidos” (Lawson, 1997,
p. 30-31). Por conseguinte, o agir humano intencional somente pode ocorrer com
base em estruturas relativamente duradouras. Se tais estruturas dependem da
ação humana para continuarem existindo, pode-se, adicionalmente, afirmar que
essas estruturas são sociais. Desse modo, o fundamento da ação humana
teleologicamente orientada são as estruturas sociais relativamente duradouras.
Por fim, será apresentado, brevemente, o modelo transformacional da
atividade social, elaborado por Bhaskar (1998). A idéia central desse modelo é
a superação do voluntarismo weberiano (individualismo metodológico), no qual
as estruturas sociais são produto direto da ação humana, e do estruturalismo
durkheimiano (holismo metodológico), em que a ação humana é totalmente determinada pela configuração estrutural. Por um lado, a ação humana está livre
de qualquer restrição estrutural, por outro, ela sofre um condicionamento absoluto da configuração estrutural. A sugestão de Bhaskar (1998) é que se considere
o caráter dual tanto da práxis quanto da estrutura. Os sujeitos, afirma Bhaskar,
nunca fazem as estruturas sociais. A ação humana, no entanto, possui o potencial tanto de reproduzir quanto de produzir tais estruturas sociais — dualidade
da práxis. Quanto às estruturas sociais, estas são, ao mesmo tempo, condição e resultado do agir humano intencional — dualidade da estrutura. Dessa
maneira, a ação humana não ocorre num vácuo estrutural, e as estruturas não
configuram um sistema imutável de posições que os sujeitos simplesmente
reproduzem.
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Resumindo, a proposta filosófica do realismo crítico, aqui apresentada,
consiste em quatro pontos: (a) sistemas abertos, (b) ontologia estratificada, (c)
método retrodutivo e (d) modelo transformacional da atividade social.
4 Conclusão: a compatibilidade entre
a abordagem da Regulação e o realismo
crítico
A apreciação da compatibilidade entre a proposta heterodoxa da abordagem da Regulação e a Filosofia da Ciência crítico-realista será considerada em
dois momentos. Inicialmente, destacar-se-á a semelhança entre seus
posicionamentos críticos em relação ao mainstream econômico. Em seguida,
as similaridades existentes entre suas propostas serão explicitadas.
Viu-se que tanto a abordagem da Regulação quanto o realismo crítico são
programas de pesquisa que emergem na década de 70. Segundo Hodgson (1999),
a tradição heterodoxa contribui para o debate em Economia com pelo menos
cinco escolas de pensamento: a Escola Francesa da Regulação, economistas
austríacos, pós-keynesianos, abordagens marxistas e Economia institucional.
Lawson (2003; 2005) afirma existir uma unidade ontológica entre essas abordagens heterodoxas, em que suas diferenças seriam relativas a focos analíticos
diferenciados. Determinados autores já apontam conexões entre algumas dessas abordagens. Hodgson (1989; 1999a), Ferrari Filho e Conceição (2001) e
Radzicki (2005), por exemplo, assinalam a compatibilidade entre pós-keynesianos e institucionalistas. Augusto (2006) destaca, ainda, a compatibilidade conceitual entre regulacionistas, institucionalistas e pós-keynesianos.
Nesse sentido, uma pluralidade de abordagens heterodoxas reúne-se em torno
de um conjunto de princípios básicos, cuja fundamentação metodológica é compatível com o realismo crítico. Desse modo, o realismo crítico pode fornecer
subsídios às abordagens heterodoxas, para que estas se contraponham à Economia mainstream também no âmbito metodológico, veiculando uma concepção de ciência não-alinhada com a ontologia e a epistemologia lógico-positivista.
Além disso, segundo Backhouse (1994), os mais conhecidos manuais de
metodologia econômica surgiram no início da década de 80 — Beyond Positivism,
de Caldwell (1982), e Methodology of Economics, de Blaug (1999). Pode-se
perceber que as últimas décadas têm constituído um período de prolíficos debates teóricos e filosóficos em Economia. Precisamente, dessa atmosfera, emergem o paradigma teórico da abordagem da Regulação e o paradigma filosófico
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do realismo crítico. Observe-se, à guisa de conclusão, os pontos de contato
entre a Regulação e o realismo crítico.
A crítica da Regulação dá-se em duas vertentes. Por um lado, refuta as
teses da Economia neoclássica-padrão — equilíbrio geral, perfeita racionalidade
e individualismo metodológico —; por outro, busca destacar-se das inconsistências do althusserismo clássico — relações sociais como estruturas, ausência de sujeito e holismo absoluto.
O ponto de partida da Economia neoclássica padrão é o indivíduo, e seu
suposto básico é o de equilíbrio geral. A questão é: como devem ser e se comportar esses indivíduos para que o estado de equilíbrio seja atingido? Faz-se
necessário um suposto de racionalidade completa e perfeita informação.
Portanto, os indivíduos são atomizados e, como afirma Hodgson (1999), com
funções de preferência dadas. Além disso, o ambiente no qual agem já oferece
todas as alternativas disponíveis, não havendo restrições quanto ao conhecimento de tais alternativas por parte dos agentes econômicos.
O althusserismo clássico tem como ponto de partida a estrutura,
em que “[...] os agentes-suporte das estruturas agem de acordo com as exigências dessas últimas” (Lipietz, 1993). A história é um “teatro sem autor” (Althusser11
apud Lipietz, 1993). Desse modo, os agentes ocupam determinadas posições
nessas estruturas e as reproduzem. A dinâmica social é, portanto, reduzida ao
movimento das estruturas, nas quais os sujeitos são reduzidos a “agentes-suporte” — as relações sociais são entendidas como estruturas. Evidentemente, nesse “teatro sem autor”, o sujeito está ausente.12 A vindicação de que a
sociedade — nesse sentido, as estruturas sociais — precede os sujeitos está
ontologicamente correta; o que leva o althusserismo clássico ao holismo absoluto é a eliminação do sujeito, enquanto agente intencional, do processo histórico.
Desse modo, a tradição neoclássica nega o sujeito ao reduzi-lo a indivíduos atomizados, enquanto o althusserismo clássico nega o sujeito ao limitar
seu papel na História a mero “agente-suporte” de estruturas que se reproduzem de modo autônomo. Segundo Wright, Levine e Sober (1992, p. 111-115),
11
Ver Althusser et al. (1965).
12
A palavra autor vem do latim, auctor, que significa aquele que produz, que gera, que faz
nascer, fundador, inventor. Destarte, excetuando as visões religiosas do mundo, apenas o
homem pode criar coisas novas, ou seja, no mundo social a emergência de novidades tem
seu fundamento último da ação intencional, embora o mundo social não seja o resultado de
nenhum projeto individual. Desse modo, ao eliminar o caráter intencional da ação humana,
o althusserismo clássico exclui o sujeito, logo, a possibilidade de mudança das estruturas
sociais.
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tanto o individualismo metodológico quanto o holismo radical são formas de
reducionismo, em que o primeiro reduziria os fenômenos sociais aos indivíduos,
e o segundo reduziria os indivíduos às estruturas sociais. Essas duas posturas
metodológicas apresentam-se em total oposição uma à outra; contudo compartilham um aspecto comum, a saber, a completa separação e o isolamento dos
níveis micro e macro de análise. Nos dois casos, o estatuto da escolha humana
é negado, pois, como afirma Lawson (1997), a realidade da escolha implica que
os sujeitos sempre poderiam ter agido de forma diferente do modo como de fato
agiram, e isso não é possível num mundo de indivíduos atomizados ou de “agentes-suporte”.
A crítica da Regulação à tradição neoclássica e ao althusserismo clássico
é compatível com a crítica de Lawson à ontologia subjacente ao mainstream da
Economia — lei científica como conjunção constante de eventos; sistemas fechados; ontologia de eventos atomísticos brutos. A ação humana, tanto de indivíduos atomizados quanto de “agentes-suporte”, ocorre em sistemas fechados,
nos quais há reprodução, regularidade de eventos, mas não transformação.
Adicionalmente, o caráter contraditório das relações sociais é negado, ao ser
interditado o papel do sujeito enquanto agente intencional.
Veja-se agora, a alternativa fornecida pela abordagem da Regulação e pelo
realismo crítico. Foram destacadas três dimensões, nas quais a Regulação contribuiu criticamente no campo heterodoxo: (a) ontológica, (b) metodológica e (c)
teórica. Interessa aqui estabelecer como tal contribuição pode ser compatibilizada
com a proposta filosófica do realismo crítico, na qual foram destacados quatro
pontos: (a) sistemas abertos, (b) ontologia estratificada; (c) método retrodutivo e
(d) modelo transformacional da atividade social.
A contribuição ontológica — (a) a sociedade precede os indivíduos; (b) as
estruturas sociais, que se apresentam para os sujeitos como formas
institucionais, possibilitam a ação humana (prática objetivada) e são produzidas
e reproduzidas através da ação humana (prática objetivante); e (c) a ação criativa é orientada por projetos — é compatível com o modelo transformacional da
atividade social. Bhaskar (1998) nega que exista um estado de natureza a partir
do qual indivíduos atomizados fazem a sociedade, argumentando que os sujeitos sempre produzem ou reproduzem as estruturas sociais; nesse sentido, a
sociedade precede os sujeitos e é a própria condição e resultado do agir humano intencional. Dito de outro modo, “[...] os homens fazem a sua própria
história a partir de determinadas condições herdadas do passado” (Lipietz, 1988,
p. 90). Conseqüentemente, é possível entender as estruturas sociais como sistemas abertos, nos quais é factível a ocorrência de transformações engendradas pela ação humana intencional transformativa (ou ação criativa).
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Assim sendo, é preciso afirmar a intencionalidade presente na ação humana, sem reduzir o objeto social a indivíduos atomizados, mas também é necessário reconhecer a existência de estruturas sociais que restringem, possibilitam
e moldam o comportamento dos sujeitos, sem reduzi-los a posições imutáveis
nessas estruturas. Nesse sentido, o projeto comum tanto a regulacionistas quanto
a crítico-realistas é a afirmação de uma indissolúvel conexão existente entre
sociedade e pessoa, entre totalidade e parte; logo, o foco da investigação do
objeto social direciona-se às relações sociais em lugar da análise isolada de
estruturas ou indivíduos.
A contribuição metodológica da Regulação — análise das economias reais
através da investigação histórica — somente é possível no âmbito de uma
ontologia de sistemas abertos; caso contrário, verificar-se-ia o descompasso
entre a temporalidade de modelos teóricos abstratos e a temporalidade das
economias reais, conforme apontado por Aglietta (2000). Para apreender o objeto
social em sua processualidade histórica, a abordagem da Regulação precisou
desenvolver alguns conceitos intermediários. Essa é a contribuição teórica da
Regulação.
Como exposto anteriormente, os conceitos intermediários encontram-se
no menor nível de abstração, e é justamente através deles que a Regulação é
capaz de passar do âmbito de uma pesquisa teórica para o campo da pesquisa
empírica. De acordo com Sayer (1998), a distinção entre essas duas modalidades de pesquisa somente pode ser feita depois de entendido o estatuto do
concreto e do abstrato no processo de conhecimento. Segundo Marx, o “[...]
concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a
unidade do diverso” (Marx, 2000, p. 39). O pensamento somente está habilitado
a apreender o concreto através de abstrações, que capturam aspectos particulares do concreto. Sayer (1998) oferece um exemplo ilustrativo. Quando se descreve uma fábrica como um edifício no qual se encontra um conjunto de máquinas destinadas à produção de determinada mercadoria, está sendo realizada
uma abstração, isto é, está sendo capturado um aspecto da fábrica, do concreto. Para uma descrição completa do concreto, é necessário especificar todas as
relações nas quais a fábrica está envolvida, isto é, seus aspectos físicos, todas
as relações de produção no interior e fora da fábrica, as características de suas
máquinas e de seus trabalhadores, etc. Naturalmente, tentar apreender o concreto em sua total completude, em suas múltiplas determinações, é pretender
um conhecimento absoluto das coisas, conhecimento este ontologicamente interditado ao sujeito cognoscente.
A ciência não está voltada ao alcance de um conhecimento absoluto, mas
está habilitada a conhecer objetivamente o mundo. A questão significativa não é
se uma teoria produz ou não abstrações, todo pensamento as produz; o impor-
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370
Carolina Miranda Cavalcante
tante é se as abstrações teóricas são, nos termos de Sayer, abstrações caóticas ou abstrações racionais. A pesquisa teórica pode produzir abstrações racionais, na medida em que for capaz de capturar necessidades naturais.13 Contudo o concreto é a combinação de múltiplas necessidades naturais, e, historicamente, essa combinação é contingente, somente podendo ser determinada pela
pesquisa empírica. A Regulação parte do conceito de habitus, que busca capturar ação e estrutura, pessoas e sociedade, parte e totalidade, em sua indissolúvel
conexão e em seu mais alto nível de abstração, o que permite definir relações
sociais do modo mais geral. Em seguida, serão propostas as relações fundamentais, que explicitam relações sociais particulares a uma sociedade capitalista. Por fim, os conceitos intermediários fornecem as categorias que permitem
a passagem de uma pesquisa teórica para uma pesquisa empírica, em que a
combinação efetiva das formas institucionais somente poderá ser conhecida
através do estudo das configurações históricas concretas.
Jessop (2001) destaca que a distinção entre níveis de abstração diversos
abre espaço para que o método retrodutivo seja utilizado pela Regulação. Evidentemente, tal idéia pressupõe que os três níveis de abstração, identificados
pela abordagem da Regulação, refletem uma concepção de realidade estratificada.
Desse modo, Jessop sustenta que a Regulação possui uma ontologia e uma
epistemologia implícitas, derivadas do realismo crítico. A partir da discussão
precedente, é possível dizer que a Regulação compartilha dos pressupostos
ontológicos do realismo crítico, como a noção de sistemas abertos e a precedência da sociedade em relação aos sujeitos, bem como a própria idéia de
realidade estratificada e método retrodutivo, como assinalado por Jessop (2001).
O objetivo deste artigo foi indicar alguns pontos em comum entre a
Regulação e o realismo crítico. Verificou-se, a partir da exposição da Regulação
e do realismo crítico, que existem diversos elementos em comum entre essas
duas tradições de pensamento. Acredita-se que, assim, se abre espaço para
uma profícua colaboração mútua, ou uma cross-fertilization nos termos de Clive
Lawson (1995), entre a Filosofia crítico-realista e a abordagem da Regulação.
Aqui foram indicados alguns caminhos possíveis para tal colaboração. A efetiva
fecundidade dessa cooperação teórico-filosófica permanece, contudo, objeto de
uma pesquisa mais detalhada e de maior amplitude.
13
Segundo Sayer (1998), abstrações caóticas falham ao distinguir entre relações externas e
relações internas e acabam por capturar regularidades contingentes em lugar de conexões efetivas do concreto, necessidades naturais. Argumenta-se, em Cavalcante (2005),
que abstrações caóticas estão intimamente ligadas a uma ontologia de sistemas fechados,
enquanto abstrações racionais somente podem ser obtidas a partir de uma concepção de
sistemas abertos e de uma ontologia estratificada.
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Carolina Miranda Cavalcante
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
Taxa de câmbio real de longo prazo
no Brasil*
Marco Flávio da Cunha Resende**
Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Doutor em Economia pela UNB,
Professor Adjunto do Cedeplar-UFMG
Economista pela UFMG
Resumo
As literaturas teórica e empírica do comércio internacional apontam a apreciação
e/ou depreciação da taxa de câmbio real no longo prazo, nos países desenvolvidos
e não desenvolvidos. Argumenta-se que a taxa de câmbio real é afetada por
diferenciais de desenvolvimento do setor serviços entre países e por comportamento não neutro do sistema financeiro internacional. Com base nos dois
argumentos citados, estimou-se uma equação para a taxa de câmbio real
brasileira (1971-02). Adotaram-se os métodos de estimação de Johansen e de
Engle-Granger — mecanismo de correção de erros. Os resultados corroboram
as hipóteses do trabalho.
Palavras-chave
Taxa de câmbio real; paridade do poder de compra; liquidez internacional.
Abstract
The theoretical and empirical international trade literature suggests that there is
long-term valuation/devaluation of the real exchange rate in the developed/
/undeveloped economies. We argue that the real exchange rate is affected by: i)
intercountry differentials of the services sector development; and, ii) non-neutral
* Artigo recebido em jun. 2006 e aceito para publicação em maio 2007.
** E-mail: [email protected]
Os autores agradecem a Maurício B. Lemos, Lízia de Figueiredo, Sueli Moro, José Afonso
B. B. Silva e a dois pareceristas anônimos da Ensaios FEE os comentários e sugestões
feitos a uma versão preliminar deste estudo, eximindo-os de responsabilidade pelos erros
e omissões porventura remanescentes.
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376
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
characteristic of the international financial system, demonstrated in the
Post-Keynesian approach. Based on items (i) and (ii) an equation for the Brazilian
real exchange rate was estimated in this paper (1971-2002). The econometric
procedures were based on the Engle-Granger and Johansen methods. The results
do not reject the hypothesis put forward in this paper.
Key words
Real exchange rate, purchasing-power parity, international liquidity.
Classificação JEL: C32, E12, F31, F37.
1 Introdução
Há, na literatura do comércio internacional, três explicações para a trajetória
de longo prazo da taxa de câmbio real: o modelo de diferenciais de produtividade
de Balassa (1964) e de Samuelson (1964), o modelo de dotação relativa de
fatores (Heckscher-Ohlin) e o modelo de gostos não homotéticos de Bergstrand
(1991). Lemos (1988) acrescenta uma quarta explicação, baseada no modelo de
diferenciais de desenvolvimento do “complexo de serviços”. Todas essas
explicações convergem para o mesmo resultado: nos países menos
desenvolvidos, a taxa de câmbio real deprecia-se no longo prazo, enquanto, nos
países mais desenvolvidos, essa taxa aprecia-se no longo prazo, fenômeno
constatado, inicialmente, por Ricardo (1985, cap. 7). Visto que esses são os
modelos que tratam da trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real, todos
eles serão objeto de análise na próxima seção. Porém apenas o modelo de
diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços ainda está por ser
testado empiricamente — isto é, ainda não há um volume considerável de
trabalhos empíricos, cujos resultados possam permitir uma conclusão a respeito
da validade do citado modelo. Sendo assim, na seção 4, será estimado um
modelo para a taxa de câmbio real, visando testar as hipóteses do modelo de
diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços.
No que diz respeito aos países em desenvolvimento, conforme a literatura
pós-keynesiana, os ciclos do sistema financeiro internacional explicam parte
dos movimentos de sua taxa de câmbio, principalmente no curto e/ou no médio
prazo (Dow, 1986/87; 1993; Minsky, 1994; Lopez, 1997; Paula; Alves Jr., 2000;
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377
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
Amado, 2003; Resende, 2003). Nos períodos de queda cíclica da liquidez
internacional, o racionamento de crédito seria mais intenso para as economias
em desenvolvimento vis-à-vis às desenvolvidas, ensejando, naquelas economias, escassez de divisas externas seguida de depreciação cambial. Esse processo seria revertido nos períodos de ascensão cíclica da liquidez mundial,
quando o sistema financeiro internacional expande o crédito aos países menos
desenvolvidos, aumentando a oferta de divisas externas nesses países.
Neste trabalho, será estimado um modelo para a taxa de câmbio real de
longo prazo no Brasil, baseando-se nos argumentos desenvolvidos em Lemos
(1988) e em Matos e Resende (2005) e na abordagem pós-keynesiana referente
ao padrão dos fluxos de capitais e de seus efeitos sobre a taxa de câmbio.
O trabalho apresenta quatro seções, além desta Introdução. Na seção 2,
estão os argumentos presentes na literatura do comércio internacional, que
explicam a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real. Na seção 3, será
apresentado o argumento pós-keynesiano para o comportamento do sistema
financeiro internacional e suas implicações para a taxa de câmbio real. Na seção
4, serão apresentados os modelos para o câmbio real no Brasil e os resultados
da sua estimação. A última seção destina-se às conclusões do trabalho.
2 A taxa de câmbio real de longo prazo
Conforme se constata na literatura do comércio internacional, há uma
correlação entre variações da renda per capita dos países e mudanças em seus
preços relativos. Nos países mais desenvolvidos, onde a renda per capita é
mais elevada, a taxa de câmbio real deprecia-se no longo prazo, enquanto, nos
países menos desenvolvidos, se verifica o oposto.
Essa tendência da taxa de câmbio real está explicada em quatro modelos
distintos, a saber: o modelo de diferenciais de produtividade, o modelo de dotação
relativa de fatores, o modelo de preferências não homotéticas e o modelo de
diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços. Os três primeiros
são de cunho ortodoxo, visto que são compatíveis com hipóteses, tais como a
presença de mercados (de bens e de fatores) competitivos e a convergência do
produto de equilíbrio para seu nível de pleno emprego. O último modelo contém
elementos de cunho ricardiano e de cunho marxista e situa-se no âmbito das
economias regional e urbana.
Nos modelos ortodoxos, assume-se a existência de bens comerciáveis e
de bens não comerciáveis. A presença destes últimos invalida a Lei do Preço
Único, presente na doutrina da Paridade do Poder de Compra (PPC), tornando
possível explicar mudanças da taxa de câmbio real. Ademais, o modelo de
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378
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
diferenciais de produtividade e o modelo de dotação relativa de fatores baseiam-se no lado da oferta, enquanto o modelo de preferências não homotéticas se
baseia no lado da demanda.
No modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços,
assume-se a hipótese marxista de tendência de concentração e de centralização
do capital. Além disso, partindo da mesma concepção da teoria ricardiana de
renda da terra, demonstra-se que a formação do Setor Terciário faz parte do
processo de formação das cidades (urbanização) e se dá no âmbito do aumento
contínuo da escala mínima de produção capitalista. Ou seja, nesse processo de
concentração e centralização do capital e de crescimento da escala mínima de
produção, verificam-se, concomitantemente, ganhos continuados de produtividade
e a necessidade de crescimento do setor serviços. O crescimento deste é
requerido para viabilizar a reprodução ampliada do capital não apenas na esfera
da produção, mas, principalmente, na esfera da circulação do mesmo. Todavia
os serviços não podem ser armazenados no tempo e no espaço. Sua oferta dá-se no ato da demanda, o que os torna espacialmente localizados. Portanto, o
capital, no seu processo de acumulação contínua, induz o crescimento do Setor
Terciário, que, por seu turno, se manifesta no processo de formação da
aglomeração urbana (formação e crescimento das cidades). Esse processo
apresenta mão dupla: o crescimento da escala mínima de produção capitalista
estimula e é, ao mesmo tempo, estimulado pelo desenvolvimento do setor
serviços.
O desenvolvimento de vantagens aglomerativas, isto é, do complexo de
serviços em uma região, torna essa região dotada de vantagens locacionais
para o capital. Mais do que isso, o desenvolvimento do complexo de serviços
torna o urbano, cada vez mais, peça imprescindível para o processo de
acumulação de capital. Quanto maior for o desenvolvimento de tal complexo em
determinada região, maior será o diferencial de custos de produção entre essa
região e as demais. Assim, a atração da atividade produtiva nesses espaços
(opção locacional) torna viável a formação de renda espacial. Isto é, o diferencial
de custos de serviços nos respectivos espaços econômicos torna-se objeto de
apropriação monopólica, que se expressa na forma de renda fundiária urbana,
nos mesmos moldes da renda da terra ricardiana. Quanto maior for o
desenvolvimento urbano (complexo de serviços), maior será a incidência de
renda urbana, tornando mais caros os bens que circulam nesse espaço urbano
(grosso modo, bens não comerciáveis) em relação aos demais bens (bens
comerciáveis). Assim, o desenvolvimento do complexo de serviços em
determinada região (ou país) vem acompanhado por um crescimento relativo
dos preços dos bens não comerciáveis, implicando uma tendência de apreciação
da taxa de câmbio real nessa região (ou país).
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
379
Os quatro modelos acima citados serão objeto de detalhamento na próxima seção.
2.1 A doutrina da Paridade do Poder de Compra
A doutrina da Paridade do Poder de Compra possui uma versão “absoluta”
e outra “relativa”. Naquela, a Lei do Preço Único aplica-se a bens individuais e a
níveis de preços agregados (Dornbusch, 1987). A PPC absoluta é representada
por:
(1)
P = E . P*
onde E = taxa de câmbio nominal; P = nível de preços doméstico; P* = nível de
preços estrangeiro. A equação decorre da arbitragem internacional, que conduziria
à igualdade de preços dos bens, quando medidos em uma mesma moeda. Nesse
caso, a taxa de câmbio real seria igual à unidade.1
A versão relativa da PPC relaciona a variação da taxa de câmbio com
mudanças relativas nos níveis de preços. Dessa forma, a variação percentual
da taxa de câmbio é determinada pela diferença entre a variação percentual dos
níveis de preços interno e externo, tomando um período como base (Balassa,
1964):
E1/E0 = P1/P0 – P1*/P0*
(2)
Nesse caso, é possível utilizar índices de preços nacionais, com diferentes
pesos, para determinar a variação da taxa de câmbio. Se a PPC relativa é válida,
então a taxa real de câmbio, r, é constante no decorrer do tempo.
Todavia a presença de bens não comerciáveis invalida a hipótese da PPC
em suas duas versões, visto que essa categoria de bens não está sujeita à
arbitragem internacional. Desde Ricardo (1985, p. 108), sabe-se que o preço
relativo dos bens não comerciáveis é alto “[...] nos países onde floresce a
indústria” e baixo nos demais. Apesar de Ricardo (1985) deixar claro que, num
contexto de ganhos de produtividade, os países experimentam uma apreciação
1
A PPC absoluta é válida, se algumas condições prevalecerem. Os mercados devem ser
competitivos, não há custos de transporte ou barreiras ao comércio, e os índices de preços
nacionais e estrangeiros considerados devem ser idênticos em termos da composição e das
ponderações da cesta de bens de cada país (Hsieh, 1982, p. 356). Ainda, a hipótese de
Fisher deve se verificar, ou seja, as taxas de juros reais devem ser equalizadas entre os
países em consideração (Holland; Pereira, 1999, p. 264).
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380
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
real de sua moeda decorrente de uma alteração nos preços relativos, o autor
não aponta o mecanismo por meio do qual ocorre essa alteração. Alguns autores
buscam explicá-lo.
2.2 O modelo de diferenciais de produtividade
A introdução dos bens não comerciáveis nos modelos de comércio
internacional foi proposta por Balassa (1964) e Samuelson (1964), que assumem
a hipótese de que os diferenciais de produtividade entre países são maiores no
setor de bens comerciáveis do que no de bens não comerciáveis. Um país rico
apresenta vantagens absolutas de produtividade tanto na produção de
commodities (bens comerciáveis) quanto na produção de serviços (bens não
comerciáveis), mas uma vantagem relativa de produtividade na produção de
commodities, quando comparado a um país pobre. Assim, o preço dos serviços
em relação ao preço das commodities é maior nos países mais ricos. Como o
preço destas é equalizado no mercado internacional, por meio da arbitragem, o
nível nacional de preços dos países mais ricos é elevado vis-à-vis ao dos países mais pobres.
Quanto maior a diferença na renda real per capita (tomada como proxy
para o nível de produtividade) do país A em relação ao país B, maior será a
disparidade entre os preços dos bens comerciáveis e dos bens não comerciáveis
no país A vis-à-vis ao país B. Nesse caso, a taxa de câmbio real no país A
estará mais apreciada em relação àquela sugerida pela doutrina da PPC.
Supondo-se que um país experimente uma elevação da produtividade no
setor de bens comerciáveis maior do que no setor de bens não comerciáveis,
assumindo mercados perfeitamente competitivos e o pleno emprego dos fatores,
os preços dos produtores serão iguais aos custos marginais (assumindo-se o
trabalho como único fator de produção):
AT = WT/ PT
(3)
onde PT representa os preços dos bens comerciáveis; WT, o salário nominal no
setor de bens comerciáveis, T; e AT, a produtividade marginal do trabalho no
setor T. O aumento na produtividade, maior no setor de bens comerciáveis, irá
traduzir-se num aumento da demanda relativa de trabalho nesse setor, até o
ponto onde o novo produto marginal do trabalho se iguale ao salário real. Portanto,
o salário nominal será pressionado para cima, ensejando um aumento do salário
no setor de bens comerciáveis. A mobilidade interna do fator trabalho tende a
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
igualar os salários dentro da economia,2 o que viria a elevar os salários no setor
serviços. Dessa forma, o custo de produção nesse setor eleva-se, e,
conseqüentemente, o preço relativo dos serviços aumenta. Como os preços
dos bens comercializáveis tendem a igualar-se aos preços internacionais, os
países que apresentam maiores ganhos de produtividade exibirão uma tendência
de apreciação real de sua moeda, devido ao aumento do preço relativo dos
serviços nesses países. Samuelson (1964, p. 148) argumenta: “Por esta razão
[alto preço dos serviços] toda região próspera apresenta uma apreciação crônica
de sua moeda”.
2.3 O modelo de dotação relativa dos fatores
Outra explicação para a correlação existente entre o produto per capita e o
nível de preços de um país é dada pelo modelo de dotação relativa de fatores
(Heckscher-Ohlin). Nesse modelo, assume-se que a produção de bens
comerciáveis é intensiva em capital e que a produção de serviços é intensiva
em trabalho. Os países pobres, abundantes em mão-de-obra, produzem serviços
a custos relativamente menores, quando comparados aos países mais ricos.
Como os preços dos bens comerciáveis são igualados internacionalmente por
meio de mecanismos de arbitragem e os países pobres produzem serviços a
preços relativos mais baixos que os países ricos, estes apresentarão um nível
de preços mais elevado de bens não comerciáveis em relação aos bens
comerciáveis e, conseqüentemente, uma apreciação real de sua moeda
(Bergstrand, 1991).
2.4 O modelo de preferências não homotéticas
As duas teorias anteriores explicam os altos preços relativos dos serviços
nos países mais desenvolvidos em função de mudanças estruturais nos setores
produtivos das economias. Elas se baseiam, portanto, no lado da oferta. Uma
terceira explicação para o fato de os preços dos serviços serem relativamente
altos nos países mais ricos advém do lado da demanda. Bergstrand (1991)
atribui parte da relação sistemática entre renda per capita e mudanças de preços
relativos à diferença entre elasticidades-renda da demanda por bens comerciáveis
e não comerciáveis. Segundo o autor, os serviços são bens considerados
2
Para detalhes, ver Balassa (1963, p. 238).
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382
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
“superiores”. A elasticidade-renda da demanda para esses bens é maior que um,
enquanto a elasticidade-renda da demanda por bens comerciáveis seria inferior
à unidade, ou seja, o autor assume a hipótese de preferências não homotéticas.
Assim, quanto maior for o crescimento da renda per capita de um país, maior
será o crescimento relativo da demanda por serviços nesse país, pressionando
os preços nesse setor. Essa hipótese foi testada por Bergstrand (1991), que
considerou seus resultados não conclusivos.
2.5 O modelo de diferenciais de desenvolvimento
do complexo de serviços
Existe, ainda, outra explicação para a alteração dos preços relativos no
longo prazo, baseada no argumento de que, num processo contínuo de “avanço
das técnicas produtivas” no sistema capitalista, os custos de reprodução dos
bens exportados se tornam mais baixos relativamente aos custos dos bens de
circulação interna. Esse argumento está em Lemos (1988) e em Matos e Resende
(2005) e baseia-se no conceito de “renda fundiária urbana”, semelhante ao conceito
de renda fundiária de Ricardo (1985). A renda ricardiana é uma expressão das
vantagens comparativas advindas de recursos naturais, enquanto a renda urbana
é expressão de vantagens comparativas determinadas pelo desenvolvimento
do complexo de serviços, associado ao processo de urbanização e reprodutível
pelo trabalho humano.
A base do modo de produção capitalista, a saber, a produção em grande
escala, cujo nível mínimo tende sempre a crescer, proporciona ganhos de
produtividade não experimentados nos modos de produção anteriores. Para
entender esse fenômeno, deve-se diferenciar o processo imediato de produção
capitalista das condições gerais de produção, que incluem todos os elementos
e atividades necessárias à reprodução do capital.
Conforme Lemos (1988, p. 230), “[...] há no capitalismo uma tendência
geral ao desenvolvimento da cooperação, base técnica para o aumento da escala
mínima e da concentração e centralização do capital, o que induz à aglomeração
urbana”. O processo de urbanização não pode ser dissociado da tendência de
aumentos contínuos da produtividade dos fatores de produção no sistema
capitalista. A urbanização é um processo relacionado à formação de um Setor
Terciário cada vez mais diversificado, causa e efeito do processo de diversificação
industrial, proporcionando os elementos necessários à reprodução do capital,
de forma cada vez mais eficiente. Conforme Singer (1978) apud Matos e Resende
(2005, p. 5, grifos do autor),
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
383
[...] a urbanização é mais do que o resultado da migração rural. Ela implica
formação de redes urbanas, fortemente polarizadas por grandes cidades,
ao redor das quais se formam áreas metropolitanas. E os núcleos destas
áreas, por mais estranho que pareça, não são constituídos por
concentrações industriais, mas por complexo de serviços. Na configuração
urbana típica, [...] a grande indústria tende a se afastar do centro
metropolitano, localizando-se em sua periferia [...].
O urbano constitui-se, dessa forma, como fator imprescindível ao processo
de acumulação. A aglomeração urbana, reunindo, num mesmo espaço, oferta e
demanda pelos serviços em escala cada vez maior, proporciona a redução dos
custos desses serviços. Tais serviços são essenciais ao processo de acumulação
de capital, visto que são necessários para a reprodução deste, quer na esfera
da produção, quer na esfera da circulação do capital. Ademais, a natureza
aglomerativa das atividades econômicas no capitalismo, que se expressa nos
grandes centros urbanos, é resultado da não-transportabilidade dos serviços,
pois estes não podem ser transportados no espaço e no tempo, estando presos
ao local onde ocorre a sua demanda. “Em decorrência, a aglomeração ou o
centro urbano só pode ser entendido como uma confluência e superposição de
áreas de mercado que permitam a diversificação e a acessibilidade a vários
tipos de serviços ou bens” (Lemos, 1988, p. 281).
A concentração espacial do capital, expressa na urbanização, gera
desigualdades regionais e espaços privilegiados em termos de produtividade e
de progresso técnico. Algumas regiões passam a deter vantagens comparativas
na produção de certos bens, expressas no diferencial de custo e na maior
diversificação e complexidade de serviços oferecidos. Sendo assim, certos
espaços tornam-se mais atraentes para a localização de atividades produtivas,
pois fornecem uma maior diversidade de serviços a custos mais baixos,
fundamentais à produção, além de uma estrutura que permite maior interação
entre os agentes econômicos, dinamizando os fluxos de informações, de
mercadorias e de capital. Esses espaços privilegiados detêm vantagens
comparativas, gerando um sobrelucro às atividades que ali se instalam.3
3
“Os serviços necessários à reprodução do capital, ou das forças produtivas, seja no âmbito
dos serviços de consumo — atividades de ensino, de saúde, de pesquisa, de transporte de
pessoas, etc. — ou dos serviços necessários ao processo de circulação do capital em geral —
transporte de mercadorias, armazenagem de mercadorias, etc. , entre os quais os serviços de
consumo são um caso particular — não se materializam numa coisa, não existem como
capital mercadoria; ou seja, o serviço só pode ser produzido junto com sua demanda, o que
o coloca na dimensão espaço-tempo, que, por sua vez, requer e se expressa na aglomeração urbana” (Lemos, 1988 apud Resende, 2003, p. 38-39). Desse modo, o desenvolvimento
de vantagens aglomerativas, isto é, do complexo de serviços em uma região, torna essa
região dotada de vantagens locacionais para o capital. Mais do que isso, o desenvolvimento
do complexo de serviços torna o urbano, cada vez mais, peça imprescindível para o pro-
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Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Quanto maior a aglomeração geográfica dos serviços, maiores a complexidade e a diversificação do centro urbano, resultando em aumento potencial da
taxa de lucro4. Mas, paralelamente ao aumento do sobrelucro (ou diferencial de
custos) na região onde o complexo de serviços é mais desenvolvido, surge ali
uma apropriação monopólica, na forma de renda fundiária urbana, nos moldes
da teoria ricardiana da renda da terra. A renda fundiária urbana constitui a expressão de um monopólio sobre o espaço localizado (um objeto inteiramente
produzido pelo capital). A magnitude dessa renda urbana corresponde ao diferencial de custos de serviços nos respectivos espaços econômicos.
Assim, o problema espacial, seja ele regional, nacional ou internacional, é,
antes de tudo, um problema urbano e, portanto, deve ser analisado através
do complexo de serviços existente na rede urbana: quanto mais
diversificado for aquele, em cada área de mercado, mais valorizada esta
se torna enquanto espaço localizado, tornando-se a verdadeira base para
a formação da renda urbana. (Lemos, 1988, p. 296).
Os países que são mais competitivos devido a vantagens que levam a
diferenciais de produtividade — sendo a principal dessas vantagens a
aglomerativa, expressa por uma rede urbana maior, mais diversificada e complexa — apresentarão preços para os bens exportados menores em relação aos
preços dos bens de circulação interna, quando comparados com outros países.
Em decorrência da apropriação monopólica da renda fundiária, que se verifica
por meio do aumento dos custos com aluguel, transporte e, indiretamente, da
cesta de mercadorias e serviços necessários à reprodução da força de trabalho
e do capital, os custos de reprodução dos bens de circulação interna tornam-se
mais elevados em relação ao custo dos bens exportados, provocando alterações
nos preços relativos. A explicação para esse fato está nas economias externas
(fatores aglomerativos), que estimulam a competitividade das exportações, mas,
ao mesmo tempo, encarecem o preço dos bens de circulação interna, que
circulam mais tempo no espaço onde incide a renda urbana mais elevada.
cesso de acumulação de capital. A atração da atividade produtiva nesses espaços (opção
locacional) torna viável a formação de renda espacial. O diferencial de custos de serviços
nos respectivos espaços econômicos seria objeto de apropriação monopólica, que se
expressa na forma de renda fundiária urbana, conforme será detalhado a seguir.
4
Lemos (1988, p. 283-287) demonstra que o desenvolvimento do complexo de serviços
implica aumento potencial da taxa de lucro por meio de dois canais: (a) redução do custo
unitário e global dos serviços; (b) redução do tempo de rotação global do capital. Conforme
será esclarecido adiante, o citado aumento da taxa de lucro é apenas potencial, mas não é
efetivo em virtude da incidência de renda urbana.
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
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Mudanças de preços relativos entre as mercadorias exportadas (bens
comerciáveis) e os bens de circulação interna (grosso modo, bens não
comerciáveis) implicam alterações na taxa de câmbio real de um país. Quanto
maiores as vantagens aglomerativas de um país, maiores serão suas vantagens
de produtividade e de competitividade. Essas vantagens transformam-se em
renda urbana, encarecendo os bens de circulação interna, inclusive salários,
provocando a mudança de preços relativos.
Ou seja, na região (país) onde o complexo de serviços é mais desenvolvido vis-à-vis às demais regiões (países), os custos de produção tendem a ser
menores em relação às outras regiões (países), o que se expressa em uma taxa
de lucro potencial mais elevada. Nesse caso, essa região (país) torna-se mais
atraente para a acumulação de capital, seja em função do seu diferencial de
custos, seja porque sua maior diversidade de serviços é mais adequada
(facilitadora) ao processo de reprodução do capital. Sendo tal região (país) o
lócus preferencial de acumulação de capital, como corolário, ela passa a
apresentar uma taxa de progresso técnico mais elevada vis-à-vis às demais
regiões (países). Portanto, o progresso técnico e os ganhos de produtividade
desenvolvem-se de maneira desigual entre regiões (países), visto que o complexo
de serviços não pode ser transportado nem no espaço e nem no tempo, estando
espacialmente preso à região onde ele se desenvolveu.5
Poder-se-ia imaginar, então, que, na região (país) onde o complexo de serviços é mais desenvolvido, os ganhos de produtividade seriam maiores e, em
princípio, ocorreriam tanto no setor de bens comerciáveis como no de bens não
comerciáveis (bens de circulação interna). Em ambos os setores, poderia haver
uma queda de preços, e os produtos exportáveis aumentariam sua
competitividade no mercado internacional — isto é, haveria, inicialmente, redução
de preços nos mercados doméstico e externo. O decorrente aumento das
exportações elevaria o influxo líquido de divisas externas, provocando a
apreciação da taxa de câmbio nominal e o retorno (elevação) dos preços dos
bens exportáveis no mercado internacional (em divisas estrangeiras) ao
nível observado no início do processo. Nesse caso, a PPC estaria valendo
P = E . P* ; ou seja, ao final do processo, P e E ter-se-iam reduzido na mesma
proporção, enquanto P* não se teria alterado.6
5
A abordagem evolucionária (neo-schumpeteriana) também chega a essa mesma conclusão,
isto é, o progresso técnico possui um caráter local, proporcionando um desenvolvimento
desigual entre economias. Ver Freeman (2004), Fagerberg (1994), Dosi, Fabiani e Freeman
(1994), dentre outros. Tal abordagem e aquela desenvolvida em Lemos (1988) não são
excludentes, pelo contrário, elas se complementam.
6
Esse argumento está baseado no regime de taxas de câmbio flexíveis. Do mesmo modo, a
validade da PPC também pode ser demonstrada no contexto de taxas de câmbio fixas.
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Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Contudo a PPC não seria válida, se, na região onde ocorreu o maior
desenvolvimento do complexo de serviços, o diferencial de custos daí resultante
fosse compensado pela apropriação monopólica de renda fundiária urbana. Nesse
caso, haveria uma aparente contradição, visto que os custos efetivos de produção
não seriam reduzidos na região (país) onde houvesse maior produtividade, devido
à incidência de renda fundiária. Segundo Resende (2003, p. 35),
A contradição se resolve quando se constata que a determinação da
renda fundiária apresenta uma natureza específica: ela se verifica no âmbito
de vantagens de produtividade que são “externas” à empresa capitalista e
que se expressam como economias externas às firmas, presas ao local
onde se apresentam, sejam estas vantagens naturais ou não naturais. Isto
torna possível incorporar a renda fundiária aos custos de produção em
proporções diferentes segundo o destino da mercadoria — mercado interno
ou externo. Ou seja, ao mesmo tempo em que o produtor faz uso dessas
externalidades positivas (vantagens de produtividade) para aumentar sua
produtividade, reduzindo o seu custo unitário de produção “na porta da
fábrica”, estas mesmas externalidades são compensadas com o pagamento
de renda fundiária a elas associada e cuja incidência é tanto maior quanto
maior for a circulação da mercadoria no local (região) onde se encontram
essas vantagens de produtividade.
Sendo assim, o aumento no custo de produção associado à renda fundiária
não se verifica na mesma proporção para as mercadorias exportadas e
aquelas destinadas à circulação interna. Isto ocorre porque as citadas
externalidades não acompanham a mercadoria exportada no seu
deslocamento no espaço, isto é, elas não podem ser transportadas
(exportadas), estando presas ao local onde se desenvolveram. Deste
modo, no que se refere ao contexto específico da renda fundiária, quando
a mercadoria deixa a porta da fábrica seu preço ainda será afetado pela
renda fundiária da própria região onde é produzida, se ela se destina ao
mercado interno, ou pela renda fundiária (da região) do país importador, se
ela se destina ao mercado externo.
Neste sentido, quanto maior a renda fundiária (ou o surgimento de
diferenciais de produtividade) num país em relação aos demais, maior a
mudança de preços relativos entre bens de circulação doméstica e os
demais bens, neste país. Ao mesmo tempo, a ausência (parcial) de
incorporação da renda fundiária no preço do produto exportado implica a
redução relativa deste preço, enquanto sua incorporação nos bens de
circulação doméstica implica aumento relativo dos preços desses bens.
Note-se que, no país onde ocorreu o desenvolvimento do complexo de
serviços e o aperfeiçoamento da técnica produtiva, teria lugar uma redução
inicial de preços (nos mercados interno e externo) dos bens produzidos a partir
dessa técnica e, por conseqüência, o incremento de suas exportações. O aumento
do influxo de divisas externas provocaria a desvalorização das mesmas (a
redução do seu preço) no citado país, resultando no aumento dos preços em
divisas externas dos bens em questão no mercado internacional. Isto é, os
preços no mercado internacional retornariam a seus níveis iniciais. Porém a
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
387
situação inicial não seria restabelecida nos moldes da Lei do Preço Único
(P = E . P*), se ocorresse, também, uma mudança de preços relativos e,
portanto, uma redução do valor absoluto da moeda externa (aumento no nível
absoluto de preços), em função do aparecimento de renda decorrente do monopólio
fundiário. A incidência de renda urbana implicaria aumento de preços,
principalmente dos bens de circulação interna — visto que P é formado tanto
pelos preços de bens comerciáveis, como pelos preços dos bens não
comerciáveis, ter-se-ia, então, ao final do processo, P > E . P*. O aumento dos
preços domésticos em divisas externas seria a expressão do aumento do poder
aquisitivo desse país em termos de uma cesta de bens estrangeiros, isto é, da
apreciação de sua taxa de câmbio real.7
Por fim, o desenvolvimento do complexo de serviços (vantagens
aglomerativas) numa região (país) não implica aumento da taxa de lucro ou do
salário real vis-à-vis às demais regiões (países), pois o diferencial de custos de
produção decorrente desse processo é compensado pelo pagamento de renda
fundiária urbana. Assim, o aumento do centro urbano resulta no aumento do
custo de vida do trabalhador e, portanto, em aumento de seu salário nominal,
mas não necessariamente em aumento do salário real. É por isso que os salários
nominais tendem a ser mais elevados nos centros urbanos maiores.
Entretanto, se o pagamento de renda urbana inviabiliza o surgimento de
diferenciais de taxa de lucro efetiva entre regiões, cabe perguntar por que a
região onde o complexo de serviços mais se desenvolveu será o lócus
preferencial de acumulação de capital. Segundo Lemos (1988, p. 371-372, grifos
do autor),
[...] os fatos teriam este formato estático se o sobrelucro, base quantitativa
da renda, não contivesse (ao contrário desta) um conteúdo eminentemente
dinâmico, a despeito da efetiva tendência à igualdade quantitativa das duas
variáveis. A diferença é que, enquanto a renda constitui sempre um resultado
(e apenas como tal condiciona decisões), o sobrelucro, além de constituir
um resultado concreto, representa também um resultado esperado que
encontra sua essência no fato de condicionar decisões, não à luz da
realidade corrente e presente, mas à luz de uma incerteza sobre o futuro
[...] Esta concepção de incerteza resulta de uma leitura nova de Keynes,
realizada [...] [por] autores pós-keynesianos, especialmente Davidson.
Assim, o investimento urbano, que quase sempre pressupõe a compra do
solo, é eminentemente especulativo, por buscar não apenas o sobrelucro normal,
7
Note-se que, dessa forma, Lemos (1988) demonstra que a questão da Comissão Econômica
Para a América Latina (CEPAL) sobre a retenção dos frutos do progresso técnico nos países
de centro (desenvolvidos) pode ser demonstrada mesmo quando não há deterioração dos
termos de troca entre economias em desenvolvimento e desenvolvidas.
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Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
mas o sobrelucro ganho pela valorização do solo, expressando o caráter volátil
e incerto da atividade econômica capitalista.8
A opção de investimento por um determinado ponto no espaço não se
prende apenas ao nível do sobrelucro, num contexto estático, mas à perspectiva
de seu surgimento e/ou crescimento, resultando numa articulação dinâmica entre
investimento, crescimento urbano e sobrelucro (renda). Quanto maior o centro
urbano, maior a expectativa de crescimento do sobrelucro (nesse espaço
localizado), que, por sua vez, está associado aos serviços necessários à
acumulação e à reprodução do capital, aumentando a atração que esse centro
urbano exerce sobre o capital.
A determinação da renda fundiária adquire características de lei de
movimento, que começa por uma visão dinâmica do valor (como “valor em
movimento”) e termina por uma visão da propriedade fundiária como
“propriedade financeira”, sujeita às vicissitudes e incertezas das atividades
financeiras em geral [...] a renda fundiária urbana constitui a expressão de
um monopólio sobre o espaço localizado (um “objeto” inteiramente produzido
pelo capital), sendo por isso mesmo um “objeto” em permanente movimento
que condiciona (enquanto espaço localizado) e é condicionado pela
acumulação. Esta característica dinâmica acaba se tornando uma
propriedade do próprio espaço localizado, conferindo uma vantagem
comparativa, nova e insuperável, às regiões que o possuem em maior
grau. (Lemos, 1988 apud Resende, 2003, p. 45).
Se a renda espacial, ao contrário da renda natural, é totalmente produzida
pelo capital, o potencial de acumulação torna-se ilimitado para aqueles pontos
no espaço que pautam sua participação na divisão do trabalho, através de
vantagens comparativas espaciais, que podem ser reproduzidas em escala
ampliada. Desse modo, a gênese do desenvolvimento desigual entre regiões ou
países tem uma determinação de caráter histórico, podendo estar relacionada,
inclusive, com a base de recursos naturais, cuja importância para a determinação
do movimento do capital no espaço era elevada no início do modo capitalista de
produção.
Nesse sentido, no início do processo de desenvolvimento das economias
nos moldes capitalistas, aquelas regiões que, por algum motivo, foram inicialmente
privilegiadas na opção locacional do capital apresentaram, como decorrência,
um aumento de seu incipiente centro urbano. Assim, devido à perspectiva de
surgimento e/ou crescimento do sobrelucro nesse espaço localizado, como
também de sua valorização financeira, num ambiente de incerteza, aumentou
seu poder de atração do capital, implicando um processo de “causação circular
8
O conceito de incerteza está definido na literatura pós-keynesiana e difere do conceito de
risco. Ver, por exemplo, Dow (1985, p. 184-203), Carvalho (1992, p. 54-69) e Crocco (2002).
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
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cumulativo”, embora não-linear, devido ao crescimento de sua renda urbana
(fatores desaglomerativos)9. A partir de então, essa região (esse centro urbano)
passa a ter preferência do investimento em detrimento das demais regiões, no
que diz respeito às atividades que requerem um complexo de serviços mais
diversificado para sua produção. Isso levará a um maior desenvolvimento do
complexo de serviços e do progresso tecnológico nessa região vis-à-vis às
demais regiões. Levará, também, a uma crescente diferenciação produtiva na
região em consideração, que acabará alterando a dotação relativa dos fatores
de produção.
Portanto, baseado nos argumentos acima, é possível inferir que a taxa de
câmbio real no longo prazo tende a se depreciar nos países menos desenvolvidos.
Porém os argumentos apresentados nesta seção não consideram o movimento
financeiro do balanço de pagamentos para explicar variações na taxa de câmbio.
Esse ponto será analisado na próxima seção.
3 Liquidez internacional e taxa de câmbio
real nas economias em desenvolvimento
Em economias monetárias de produção, o investimento antecede a
poupança. Esta deriva do crescimento econômico, e seu papel é consolidar
(mas não financiar) a acumulação de capital, reduzindo a instabilidade financeira
que acompanha o crescimento da economia. Nessas economias, prevalece o
circuito finance-investimento-poupança-funding (Keynes, 1987; 1987a; Davidson,
1992).10 Segundo Dow (1986/87, p. 249),
9
O sobrelucro é fator de atração do capital, enquanto sua conversão em renda fundiária
urbana é fator de repulsão. Segundo Lemos (1988, p. 349), “Na realidade, a cada momento,
o movimento do capital modifica o espaço econômico, seja ampliando (pela concentração
geográfica) as vantagens aglomerativas, seja aumentando o custo de acessibilidade e
iniciando um processo de desconcentração geográfica, seja recriando vantagens
aglomerativas em outros pontos do espaço. O tamanho do centro urbano é, nesse sentido,
o resultado tanto da maior produtividade quanto do esgotamento dos ganhos de escala ou
do aumento do custo de acessibilidade. Em suma, o processo de determinação da renda
urbana é a síntese complexa de fatores aglomerativos (que constitui a própria gênese e o
fator básico de expansão dos centros urbanos) e de fatores desaglomerativos, que acabam por estabelecer limites para o crescimento de um determinado centro urbano, permitindo assim uma certa descentralização da acumulação de capital”.
10
Definições e conceitos relacionados à economia monetária de produção estão na literatura
pós-keynesiana. Ver Keynes (1988), Dow (1985), Davidson (1992), Carvalho (1992),
Amado (2000), dentre outros.
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Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Uma economia com taxas de retorno consistentemente altas em relação
às demais irá atrair fluxos de capital em todos os estágios do seu ciclo,
enquanto a preferência pela liquidez será consistentemente baixa quando
comparada a outras economias. De modo similar, economias que
apresentam persistentemente taxas de retorno relativamente baixas,
experimentarão contínuas saídas de capitais (forçando ajustes), enquanto
a preferência pela liquidez será consistentemente alta.
Essa autora argumenta que esta última situação é o caso dos países em
desenvolvimento (Dow, 1993; 1986/87, p. 249, nota 15), posição que também é
sustentada por Minsky (1994). Resende (2005), apoiando-se no conceito de
sistema nacional de inovações desenvolvido por autores neo-schumpeterianos, também argumenta que, nas economias em desenvolvimento, as taxas de
retorno do investimento e a competitividade são menores em relação às
economias desenvolvidas. Desse modo, haveria, nas economias em
desenvolvimento, maior tendência à escassez de divisas externas vis-à-vis às
economias desenvolvidas. Amado (2003), citando estudos da CEPAL, faz a
mesma constatação.11
A avaliação de risco soberano realizada no mercado financeiro internacional
sugere a existência de controle discricionário dos bancos no que diz respeito à
distribuição e ao volume de crédito externo. Esse comportamento decorre da
preferência pela liquidez dos bancos, visto que a avaliação do risco soberano se
dá no âmbito da incerteza12. Quanto maior a incerteza sobre a capacidade dos
devedores em honrar seus compromissos financeiros, maior será a preferência
pela liquidez dos bancos, isto é, maior será o racionamento de crédito (Dow,
1993). Portanto, o sistema financeiro internacional “[...] não é neutro”, contribuindo
para o desenvolvimento desigual entre economias.
Recentemente, a abordagem minskyana de instabilidade financeira, num
contexto onde as unidades devedoras (hedge, especulativa e ponzi) são países,
tem sido resgatada para explicar as crises cambiais por que têm passado as
economias ditas emergentes (Lopez, 1997; Paula; Alves Jr., 2000; Amado, 2003;
Resende, 2005).
Do ponto de vista da análise de Minsky (1986), há algumas diferenças no
que se refere aos países, enquanto unidades de análise, e às unidades com que
ele trabalha. Enquanto, para esse autor, o problema é de fluxo monetário do
projeto e de capacidade de repagamento do projeto específico, em economias
11
Esse argumento está de acordo, também, com Lemos (1988), segundo o qual os países
onde o complexo de serviços é mais desenvolvido seriam o lócus preferencial de acumulação de capital, em detrimento das economias menos desenvolvidas, isto é, cujo complexo
de serviços apresenta um desenvolvimento relativo pequeno.
12
O conceito pós-keynesiano de incerteza já foi citado em nota de rodapé anterior.
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Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
391
abertas o problema está associado não apenas à capacidade de repagamento
dos projetos específicos, mas, também, à capacidade de geração de divisas
externas que permitam esse repagamento.
Segundo Resende (2005), economias classificadas na categoria
especulativa e/ou ponzi pelos mercados financeiros mundiais seriam aquelas
com menor capacidade relativa em gerar o influxo líquido de divisas externas
necessário (seja pela balança comercial, de serviços ou de capitais) para honrar
seus compromissos financeiros internacionais. Assim, as economias
classificadas na categoria especulativa e/ou ponzi seriam aquelas que
apresentam maior tendência à escassez de divisas externas, ou seja, as
economias em desenvolvimento.
O sistema financeiro internacional comportar-se-ia conforme esquema
semelhante ao proposto por Minsky (1986). Em função do aumento cíclico da
liquidez internacional, em grande parte endogenamente gerada através de
inovações financeiras, os mercados financeiros externos aceitam financiar países
com características de unidade especulativa e mesmo ponzi.13 Todavia, nos
períodos de reversão cíclica do nível da liquidez internacional, o sistema financeiro
internacional teria um comportamento assimétrico: o racionamento de crédito
seria mais intenso para as economias especulativas e/ou ponzi vis-à-vis às
economias hedge, aguçando, ao invés de contornar, a escassez de divisas
externas daquelas economias. A crise cambial que então se instala nessas
economias, muitas vezes amplificada pela sua abertura financeira, alimenta as
expectativas quanto à desvalorização de suas taxas de câmbio, e, assim, o
decorrente aumento da preferência pela liquidez é satisfeito através da demanda
de moeda externa, provocando fuga de capitais.14
13
Segundo Davidson (1994, p. 226-228), os ciclos dos mercados financeiros e de comércio
internacionais caminham pari passu. Na economia fechada, a ampliação do nível de atividade requer aumentos na oferta de moeda, devido à intensificação do finance que antecede
o investimento. Na economia mundial, onde também prevalecem incerteza, defasagens
temporais e a ausência de perfeita coordenação de fluxos de caixa associados ao comércio entre nações, o aumento da liquidez internacional é precondição para a expansão do
comércio, ainda que este ocorra no âmbito do equilíbrio comercial das nações envolvidas.
De outro lado, o crescimento do comércio internacional estimula o aumento da renda
mundial, acarretando efeitos positivos sobre a ampliação dos mercados financeiros e do
nível da liquidez internacional (Davidson, 1992, p. 103). Portanto, os ciclos dos mercados
financeiros e de comércio internacionais mantêm uma relação direta com os ciclos da
liquidez internacional.
14
Conforme Dow (1999, p. 154-155), “[...] na economia internacional há uma gama de moedas
[...] suponha que, para um dado grau de preferência pela liquidez, ocorra uma perda de
confiança na estabilidade do valor da moeda doméstica relativamente às outras moedas,
então as moedas estrangeiras irão satisfazer melhor aquela preferência pela liquidez”.
Dow (1999, p. 156) apresenta os motivos transação, especulação e precaução da demanda por ativos internacionais líquidos.
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392
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Portanto, nas economias em desenvolvimento, a taxa de câmbio real é
mais sensível aos ciclos da liquidez internacional em relação às economias
desenvolvidas. Nos períodos de ascensão cíclica da liquidez mundial, devido
ao aumento da oferta de divisas no país, a taxa de câmbio nominal nas economias
em desenvolvimento pode subir numa proporção inferior ao aumento de preços
domésticos, ou mesmo apreciar-se. Se a doutrina da PPC não é válida em um
ambiente onde convivem bens comerciáveis e não comerciáveis, esse
movimento da taxa de câmbio nominal resulta na redução do preço dos bens
comerciáveis em relação ao preço dos bens não comerciáveis, gerando uma
apreciação da taxa de câmbio real. Do mesmo modo, nos períodos de queda da
liquidez internacional, a restrição de crédito será mais intensa para os países
em desenvolvimento.15 A crise cambial que então se instala nesses países é,
em geral, superada pela depreciação de suas taxas de câmbio real.
Estudando os ciclos do sistema financeiro internacional nas décadas de
70, 80 e 90, Amado (2003) e Resende (2005) demonstram que tais ciclos
condicionaram os ciclos de crescimento da economia brasileira. Esses autores
evidenciam que, nos períodos de queda cíclica da liquidez mundial, houve
racionamento de crédito para o Brasil, acompanhado de crise cambial e
depreciação da sua taxa de câmbio.16
A economia brasileira parece enquadrar-se, então, na classificação de
unidade especulativa e/ou ponzi, realizada pelo sistema financeiro internacional. Assim, os ciclos do sistema financeiro internacional afetariam, de modo
relevante, sua taxa de câmbio real. Essa hipótese será testada a seguir, através
da estimação de um modelo para a taxa de câmbio real brasileira.
15
“[...] as alterações na percepção do nível de fragilidade financeira desses países podem
levar a mudanças bruscas no que diz respeito à concessão de novos empréstimos e
nesse caso há uma quebra de grande parte das unidades ou um default dos países com
características ponzi. Nesses momentos de crises cambiais surge a necessidade de
instituições coordenadoras e flexibilizadoras da oferta de liquidez em nível internacional e,
caso estas não existam, há o aprofundamento da crise gerada pelo comportamento cíclico
do sistema financeiro internacional” (Amado, 2003, p. 17).
16
Nos anos 70 e na primeira metade dos 90, havia elevada liquidez internacional, entrada
líquida de recursos externos e baixos patamares da taxa de câmbio real na economia
brasileira, além de déficits em conta corrente do seu balanço de pagamentos. Visto que
esses déficits em conta corrente eram financiados pela entrada líquida de capitais externos na conta financeira do balanço de pagamentos, eles escondiam uma possível tendência crônica da economia brasileira à escassez de divisas externas. Nos anos 80 e no final
dos anos 90, houve um refluxo da liquidez internacional, e, paralelamente, verificou-se, na
economia brasileira, crise cambial seguida da depreciação de sua taxa de câmbio real.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
393
4 Estimação do modelo de câmbio real para
o Brasil
4.1 O modelo
As quatro explicações apresentadas na seção 2, para a trajetória de longo
prazo da taxa de câmbio real, convergem para o mesmo resultado. Tal trajetória
é de aumento do preço relativo dos bens não comerciáveis nos países
desenvolvidos e sua queda nos demais países. As três primeiras explicações
apresentadas neste trabalho para a trajetória do câmbio real já estão analisadas
e testadas na literatura sobre o tema (Bergstrand, 1991). Desse modo, o modelo
apresentado a seguir baseia-se no argumento de Lemos (1988). Postula-se que
a taxa de câmbio real brasileira seria afetada pelo diferencial de desenvolvimento
do complexo de serviços do Brasil e do resto do mundo e, também, pela liquidez
internacional, principalmente no curto e médio prazos, neste último caso.
Segundo Locatelli e Silva (1991), a versão do câmbio real mais apropriada
para análises de ajustamento de médio e longo prazos do balanço de pagamentos
seria:
CR = (E . PT*)/ PNT
(4)
onde CR = taxa de câmbio real; E = taxa nominal de câmbio; PT* = preços
externos dos bens comerciáveis; e PNT = preços dos bens não comerciáveis.
Essa versão será utilizada no modelo a ser estimado, porém com os preços
domésticos dos bens comerciáveis no numerador da equação (4). Conforme
Locatelli e Silva (1991), o termo no numerador da equação supõe a validade da
Lei do Preço Único, e, portanto, admite-se a validade da arbitragem no comércio
internacional. “Assim, os preços domésticos dos produtos comerciáveis tendem
a igualar-se aos preços internacionais convertidos pela taxa de câmbio e, portanto,
podem ser usados indistintamente naquela equação” (Locatelli; Silva, 1991,
p. 547). Portanto, o câmbio real é dado por:
CR = PT/ PNT
(5)
onde PT = preços internos dos bens comerciáveis. O modelo para o câmbio real
da economia brasileira toma, então, a seguinte forma:
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
394
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
PT
= α0 + α1.Wa + α2 .LI + µ
PNT
(6)
onde α 0 = constante; α1 e α 2 = coeficientes; Wa = (PNTd/PTd)/(PNTi/PTi);
d = países desenvolvidos; i = Brasil; LI = liquidez internacional; e ì = distúrbio
aleatório.
Espera-se que á1 seja positivo e á2 negativo. A variável Wa expressa
a mudança dos preços relativos no mundo desenvolvido em relação à mudança
de preços relativos em um país não desenvolvido. Note que, quando se
desconsidera o argumento de Lemos (1988) para as alterações na taxa de câmbio
real, não há razão para a variável dependente (PT/PNT) subir no país i
(subdesenvolvido), quando se verifica um aumento de Wa. Na equação (6), a
variável Wa é compatível apenas com o argumento de Lemos (1988), visto que:
a) a variável do lado esquerdo de (6) não é (E.P*/P), onde E, P e P* são
a taxa de câmbio nominal e os níveis de preços domésticos e
estrangeiros respectivamente. Conforme Balassa (1964), o câmbio real
de um país, calculado dessa forma, é afetado pela inflação verificada
no setor de bens não comerciáveis de seus parceiros comerciais, já
que P* corresponde a um índice de preços que incorpora os setores de
bens comerciáveis e não comerciáveis, mesmo que com ponderações
diferentes.17 Esse problema é eliminado quando se substitui (E.P*/P)
por (IPAi/IPCi), onde i = país i, ou seja, neste último caso, o aumento
de preços dos bens não comerciáveis no país estrangeiro não afeta o
numerador (IPA) da razão do câmbio real do país i, visto que essa
categoria de bens não está sujeita à Lei do Preço Único.18 Esse ponto
vale tanto para o modelo de Balassa-Samuelson como para o de
Bergstrand (1991);
17
Explicando o modelo de Balassa-Samuelson, Hsieh (1982, p. 357) argumenta que “[...] uma
segunda causa para os desvios (da taxa de câmbio real) em relação à PPC é que os preços
dos bens não comerciáveis são usualmente incluídos nos índices P e P*. Desde que os
preços dos bens não comerciáveis não são arbitrados entre dois países, diferenças nos
preços desses bens no país de casa e no país estrangeiro podem gerar desvios em relação à PPC”.
18
No modelo de Lemos (1988), os ganhos de competitividade nos países desenvolvidos, que
decorrem do desenvolvimento relativamente maior do seu complexo de serviços, têm como
contrapartida a perda de competitividade das economias não desenvolvidas. A escassez
de divisas externas nessas economias, que resulta desse processo, provoca a depreciação da sua taxa de câmbio nominal e, a partir daí, o aumento do preço relativo dos bens
comerciáveis — para maiores detalhes, ver Lemos (1988, cap. 2) e Resende (2003,
cap. 2).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
395
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
b) assumindo a hipótese H-O de diferentes dotações relativas de fatores
nos países, conclui-se que, ao longo do tempo, a abundância de capital
(trabalho) nos países desenvolvidos (não desenvolvidos) deve elevar-se, provocando aumentos do preço relativo dos bens não comerciáveis
(comerciáveis). Contudo, se há, pelo motivo citado, elevações do preço
relativo dos bens não comerciáveis nos países desenvolvidos e reduções
dos mesmos nos países não desenvolvidos, o movimento de preços
na segunda categoria de países não corresponde a uma contrapartida
do movimento de preços nos países da primeira categoria. O que
há é tão-somente sentidos distintos da tendência de mudança de preços
relativos no mundo desenvolvido e nos países não desenvolvidos, mas
essas duas tendências não se influenciam — a correlação entre elas
seria apenas “espúria”. Nesse caso, a variável do lado esquerdo da
equação (6) e a variável Wa não são co-integradas.
Adotou-se o método de variáveis instrumentais para a equação (6), devido
à possibilidade de surgirem problemas de simultaneidade naquela equação.
Ademais, na construção da variável Wa, foram usados índices de preços ao
consumidor e no atacado dos Estados Unidos (USA) como proxy para os índices
dos países desenvolvidos. Ou seja,
IPABrasil/IPCBrasil = á1 + á2 (IPCUsa/ IPAUsa)/ (IPCBrasil/IPABrasil) + á3 LI + å
(6a)
A equação (6a) pode ser transformada em:
IPABrasil/IPCBrasil = á1 + á2 (IPCUsa/ IPAUsa) . (IPABrasil/IPCBrasil) + á3 LI + å
(6b)
Observe-se que a variável dependente IPABrasil/IPCBrasil entra no lado
direito da equação (6b) multiplicada por outra variável, IPCUsa/IPAUsa. Desse
modo, embora a variável [(IPCUsa/ /IPAUsa).(IPABrasil/IPCBrasil)] seja diferente
da variável dependente, é possível haver um problema de simultaneidade. Para
corrigir tal problema, adotou-se o método de variáveis instrumentais para a
estimação da equação em análise. 19 Assim, a variável [( IPC Usa /
/IPAUsa).(IPABrasil/IPCBrasil)] foi substituída por uma variável instrumental,
que corresponde a Wb = (IPCtUsa / IPAtUsa).(IPAt-1Brasil/IPCt-1Brasil), onde
t = tempo (ano). A equação a ser estimada será:
PT
PNT
19
= α0 + α1. Wb + α2 . LI + µ
(7)
Sobre o problema de simultaneidade e o método de variáveis instrumentais, ver Gujarati
(2000, p. 676-678).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
396
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
4.2 Dados utilizados
Os índices de preços utilizados para a construção da série do câmbio real
foram o Índice de Preços no Atacado-Disponibilidade Interna (IPA-DI), da
Fundação Getúlio Vargas, para os bens comerciáveis, e o Índice de Preços ao
Consumidor (IPC-FIPE), representando os bens não comerciáveis, cuja fonte
foi o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A variável Wb teve
como fonte o IPEA, construída a partir dos Índices de Preços ao Consumidor e
no Atacado, do Brasil e dos Estados Unidos.
A liquidez internacional corresponde à soma dos valores tomados em módulo
das seguintes rubricas do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, do Reino
Unido, do Japão, da Alemanha, da Itália, da França e do Canadá (grupo conhecido
como G-7): “investimentos de portfólio (ativo e passivo)”, “derivativos financeiros
(ativo e passivo)” e “outros investimentos (ativo e passivo)”. Plihon (1995) usa
como proxy para a liquidez internacional apenas os dados relativos a
“investimentos de portfólio”. Todavia as rubricas “derivativos financeiros” e “outros
investimentos” também contemplam capitais de curto prazo e instrumentos
financeiros associados aos mercados de derivativos e futuros. A fonte desses
dados foi o International Financial Statistics Yearbook (2002; 2003), publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que fornece esses dados em
periodicidade anual e cujas séries se iniciam em 1970. Foi utilizada a liquidez
internacional real correspondente à liquidez internacional deflacionada pelo índice
de preços norte-americano (producer prices/industrial goods). Ademais, optou-se pela média móvel da liquidez internacional, isto é, pela sua média aritmética
em dois períodos (soma da liquidez internacional no ano presente e no ano
anterior dividida por dois). Tal opção se deve ao fato de que são as oscilações
médias da liquidez internacional que afetam as variáveis macroeconômicas em
função da presença de custos de ajustamento, conforme se constata em Resende
(2001) e em Resende e Amado (2004). O índice de liquidez internacional real
(média móvel) está disponível para o período 1971-02. Os dados utilizados
possuem periodicidade anual. Adotou-se o logaritmo natural dos valores de cada
variável como base para as estimações.
4.3 Metodologia
Visando estimar a dinâmica de curto prazo da equação (7) pelo método do
mecanismo de correção de erros de Engle-Granger e, ainda, as relações de
longo prazo pelo método de Johansen, as séries foram testadas par a ordem
de integração a partir do teste de Dickey-Fuller Aumentado (ADF). Os valo-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
397
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
res críticos para esse teste baseiam-se em Mackinnon (1991). O critério utilizado para a escolha do número de defasagens no teste ADF corresponde à estratégia proposta por Doornik e Hendry (1994, p. 94-95). Os testes ADF foram
realizados de três formas: sem constante, com constante e com constante e
tendência. Os resultados do teste ADF estão apresentados na Tabela 1. Para os
testes de raiz unitária das séries IPA/IPC (câmbio real) e Wb, adotaram-se os
períodos para os quais essas séries estão disponíveis: 1948-03 e 1949-03, respectivamente.20
Tabela 1
Resultados dos testes ADF
VARIÁVEIS
TESTES ADF SEM
CONSTANTE
Valor
IPA/IPC
D(IPA/IPC)
Número de
Defasagens
TESTES ADF COM
CONSTANTE E TENDÊNCIA
Valor
Número de
defasagens
1,3182
6
-1,5189
6
(1)-2,8548
2
-2,3412
5
Wb
DWb
LI
1,5139
6
-1,0849
6
(2)-1,9875
2
-2,4899
5
2,1090
4
-3,5351
3
DLI
(2)-2,4329
2
(1)-4,3606
1
FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV.
IDEA.
FMI.
NOTA: 1. A letra D no início das variáveis refere-se à primeira diferença das mesmas.
NOTA: 2. O teste de raiz unitária na versão com constante pode ser obtido diretamente com o autor.
(1) Indica significância estatística a 1%. (2) Indica significância estatística a 5%.
20
Foram conduzidos inicialmente testes ADF para as séries com o período correspondente a
1971-03, conforme o período utilizado na estimação do modelo. No entanto, para as séries
na primeira diferença, os testes não rejeitaram a hipótese nula de não-estacionariedade.
Conforme Perron (1989), a potência do teste de raiz unitária aumenta quando a série da
variável testada é mais extensa. A diminuição da potência do teste decorrente da utilização
de uma série menos extensa resulta, freqüentemente, na não-rejeição da hipótese nula
(Charemza; Deadman, 1997, p. 105). Portanto, para as variáveis IPA/IPC e Wb foram
utilizadas séries mais extensas.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
398
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
O teste ADF, na sua versão sem constante, sugere que todas as variáveis
são integradas de ordem 1, I (1). Na sua versão com constante e tendência, tal
teste não rejeita a hipótese de não-estacionariedade para as primeiras
diferenças das séries temporais do IPA/IPC e Wb. De outro lado, a inspeção
gráfica das séries IPA/IPC, Wb e LI na sua primeira diferença sugere a sua
estacionariedade.21
A análise gráfica das séries Wb e IPA/IPC sugeriu uma mudança dos
parâmetros da função trend, havendo uma alteração na inclinação da tendência
em 1978. Desse modo, novo teste de raiz unitária foi realizado, seguindo-se os
procedimentos adotados em Perron (1989), de onde foram extraídos os valores
críticos. Os resultados do teste de Perron (Tabela 2) para o nível das séries Wb
e IPA/IPC sugere que elas possuem uma raiz unitária. O teste de Perron foi
também aplicado para essas séries em primeira diferença. Contudo os resultados
obtidos não foram válidos, pois, mesmo tendo sido testado o modelo com
números diferentes de defasagens, as dummies incluídas no modelo revelaram-se não significativas a 10%. O objetivo dos testes de raiz unitária é verificar se
as séries temporais são estacionárias, para evitar resultados espúrios. Os
resultados dos testes de Johansen para a equação (7) indicam a existência de
um vetor de co-integração, conforme será demonstrado a seguir, sugerindo a
inexistência de correlação espúria entre as variáveis do modelo.
Uma vez analisada a ordem de integração das variáveis, foi realizado o
teste de Johansen para a análise de co-integração.22 Considerando-se o critério
de teste-F para exclusão de variáveis, as estimações foram iniciadas com um
Vetor de Auto-Regressão (VAR) de quatro defasagens, sendo o modelo, final
reduzido para um VAR de ordem 3. A constante não participou de modo irrestrito
no modelo, devido à não-constatação de uma tendência determinística para
suas séries (Harris, 1995, cap. 5). Os resultados (Quadro 1) sugerem a existência
de um vetor de co-integração a um nível de 10%, no que se refere ao teste do
maior autovalor e ao teste do traço sem correção de Reimers (1991).
Os sinais dos coeficientes estimados estão em conformidade com o
esperado. O coeficiente da variável Wb é positivo, e o coeficiente da liquidez
internacional é negativo. A elasticidade de longo prazo da taxa de câmbio real
em relação a Wb está próxima da unidade: um aumento de 10% em Wb implica
21
Resende (2001) e Castro e Cavalcanti (1998), realizando o teste ADF para a variável câmbio
real, para o primeiro trimestre de 1978, para o quarto trimestre de 1998 e para o período
1955-95, respectivamente, rejeitam a hipótese de raiz unitária para a primeira diferença
dessa série. Essa é mais uma evidência de que a primeira diferença da série temporal do
câmbio real é estacionária.
22
O pacote estatístico utilizado foi o PCFILM versão 8.1.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
399
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
depreciação de 10,2% na taxa de câmbio real. Do mesmo modo, quando a liquidez
internacional se eleva em 10%, o câmbio real aprecia-se em 1,2%, sugerindo
pequena relevância dos fluxos financeiros na determinação da taxa de câmbio
real brasileira de longo prazo.
Tabela 2
Resultados dos testes de Perron
VARIÁVEIS
IPA/IPC
Wb
MODELO DE
PERRON
PERÍODO DA
QUEBRA
NÚMERO DE
DEFASAGENS
-3,3912
B
1978
1
-2,952
B
1978
1
TESTE DE
PERRON
FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV .
IPEA.
NOTA: O modelo B está em Perron (1989), sendo
yt = µ + β1t + (β2 – β1) DT* + εt; onde DT*
caso contrário;
trend.
= t – TB, se t › TB e 0
TB é o período no qual houve mudança(s) dos parâmetros da função
Esperava-se que os efeitos de longo prazo das oscilações da liquidez internacional sobre a taxa de câmbio real brasileira fossem menores do que os
efeitos relacionados à variável Wb . Isto porque as variações nos fluxos
financeiros internacionais, associadas às oscilações da liquidez internacional,
dependem de mudanças de expectativas dos agentes no sistema financeiro
internacional, principalmente em relação às economias especulativas/ponzi
(seção 3). Sendo assim, os fluxos financeiros internacionais possuem um forte
componente especulativo e, portanto, de curto prazo. Nesse caso, seus efeitos
sobre a taxa de câmbio dos países, em geral, e, principalmente, dos países
especulativos/ponzi (subdesenvolvidos), devem ser mais intensos no curto do
que no longo prazo.
Uma vez obtidos esses resultados, optou-se pela estimação do modelo
original, substituindo-se a variável instrumental da equação (7) pela variável
Wa. Portanto, a equação (6b) foi também estimada pelo método de Johansen.
Os resultados são semelhantes àqueles encontrados a partir da estimação do
modelo anterior, equação (7), sugerindo a existência de um vetor de co-integração.
A hipótese nula de não-existência de um vetor de co-integração foi rejeitada
tanto pelo teste do maior autovalor sem correção de Reimers (1991) quanto para
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
400
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
o teste do traço sem correção de Reimers (1991) a um nível de significância de
10%, indicando uma relação de longo prazo entre as variáveis do modelo.23
A estimação da equação (6B) produziu os seguintes resultados: os sinais
dos coeficientes encontrados são aqueles esperados. A elasticidade de longo
prazo da taxa de câmbio real em relação a Wa mostrou-se mais elevada na
equação (6b): 1,72. O coeficiente estimado da liquidez internacional foi maior
em relação àquele estimado para a equação (7): a estimação da equação (6b)
produziu um coeficiente de -0,64.24
Visando conhecer a dinâmica de curto prazo, a equação (7) foi estimada
em defasagens auto-regressivas distribuídas (ADL), seguida da determinação
da solução estática de longo prazo. Em seguida, estimou-se o mecanismo de
correção de erros de Engle-Granger, isto é, nova equação foi estimada, derivada
da equação (7), a partir da primeira diferença das suas variáveis e, também,
tomando-se o resíduo estimado na equação de longo prazo (estimação do ADL
citado), com seu valor defasado em um período (Quadro 2). As variáveis que
não foram significativas a, pelos menos, 10% foram eliminadas do modelo.
Os resultados referentes à equação de correção de erros são bons. O
modelo apresenta boa especificação em relação aos testes de diagnóstico. O
parâmetro de ajustamento do mecanismo de correção de erros (ECM-1) é -0,44.
Tal coeficiente é negativo, conforme esperado, e estatisticamente diferente de
zero a 10%. Esse coeficiente indica que os agentes compensam, em média,
44% do desequilíbrio do período anterior. Ademais, sua significância estatística
é mais uma evidência em favor da co-integração das variáveis em análise.
O coeficiente da primeira diferença da liquidez internacional é significativo
a 10% e sugere que a elasticidade de curto prazo do câmbio real brasileiro em
relação à liquidez internacional é da ordem de -0,14. O coeficiente estimado da
primeira diferença defasada em um período da variável Wb foi de cerca de 1,14
e significativo a 10%.
Por fim, os resultados encontrados sugerem que a taxa de câmbio real
brasileira tende a se depreciar ao longo do tempo e corroboram o argumento de
Lemos (1988), baseado no diferencial de desenvolvimento do complexo de
serviços entre economias desenvolvidas e não desenvolvidas.
23
Para obter detalhes sobre o teste do traço e sobre a correção de Reimers, ver Harris (1995,
p. 87-88).
24
Foram conduzidos testes ADF e de Perron para a variável Wa, para o período 1948-03. Os
resultados obtidos são os mesmos encontrados para a variável Wb. Os resultados desses
testes de raiz unitária e, também, da estimação da equação (6B) pelo método de Johansen
não estão reportados neste estudo por uma questão de economia de espaço, mas podem
ser obtidos diretamente com os autores.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
3,8
Σ log(1-γ)
0,0809
8,967
(1) 27,82
-T
246,236
255,665
260,108
260,149
0
1
2
3
FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV.
FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEA.
FONTE DOS DADOS BRUTOS: FMI.
(1) Indica significância estatística a 10%.
Log máxima verossimilhança
-0,1150
LI
0,0558
6,184
19,19
-(T –nm) Σlog(1-γ)
Posto
Wb
1,024
VETOR DE CO-INTEGRAÇÃO
0,0558
11,4
17,9
95%
1,00
0,0809
ρ< 2
6,128
13,01
-(T –nm)log(1-γ)
IPA/IPC
8,886
(1) 18,86
ρ=0
ρ<1
- T log(1-γ)
TESTE DO TRAÇO
Teste de Johansen (com variável instrumental)
TESTE DO MAIOR AUTOVALOR
H 0 : posto = ρ
Quadro 1
3,8
12,5
24,3
95%
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
401
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
402
Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
Quadro 2
Mecanismo de correção de erros para o câmbio
real brasileiro (IPA/IPC) — 1974-02
VARIÁVEIS
Constante
COEFICIENTES
0,018268
DIPA/IPC - 1
(1)0,49513
DIPA/IPC - 2
(2)–1,3163
DLIM2
(1)–0,13841
DWb - 1
(1)1,1403
ECM - 1
(1)–0,44136
2
R = 0,359309; F(5, 23) = 205,06 [0,0000]; DP = 0,0776581; DW = 2,03; RSS =
= 0,1387081199
AR 1- 2F( 2, 21) =
ARCH 1 F( 1, 21) =
2
Normality χ (2)
=
1,1598 [0,3328]
0,84274 [0,3690]
2,7118 [0,2577]
χi
2
F(10, 12)
= 0,28943 [0,9708]
RESET F( 1, 22) = 1,0328 [0,3205]
NOTA: 1. A letra D no início das variáveis refere-se à primeira diferença; a sigla
AR apresenta os valores relativos ao teste do multiplicador de Lagrange
para autocorrelação; a sigla ARCH mostra os valores para o teste de
Engle para os resíduos ARCH; e a sigla RSS corresponde à soma dos
quadrados dos resíduos; o termo DP corresponde ao desvio padrão dos
resíduos; enquanto o valor da estatística de Durbin-Watson é representado pela sigla DW.
NOTA: 2. A normalidade dos resíduos é avaliada pelo teste de Jarque-Bera, indica2
do pelo termo Normality; o símbolo χi indica os valores para o teste de
validade funcional e/ou heterocedasticidade; e o termo RESET refere-se
ao valor do teste de Ramsey para má especificação do modelo.
(1) Indica significância estatística a 10%. (2) Indica significância estatística a 5%.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007
Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil
403
5 Conclusões
Há, na literatura do comércio internacional, três explicações para a trajetória
de longo prazo da taxa de câmbio real: o modelo de diferenciais de produtividade,
de Balassa (1964) e Samuelson (1964), o modelo de dotação relativa de fatores
(Heckscher-Ohlin) e o modelo de gostos não homotéticos (Bergstrand,1991).
Lemos (1988) acrescenta uma quarta explicação, a partir do modelo de diferenciais
de desenvolvimento do complexo de serviços. Essas quatro explicações
convergem para o mesmo resultado: verifica-se a depreciação da taxa de câmbio
real, no longo prazo, nos países não desenvolvidos e uma apreciação dessa
taxa nos países desenvolvidos.
Argumentou-se, com base na literatura pós-keynesiana, que os fluxos de
capitais são relevantes na determinação da taxa de câmbio das economias,
classificadas no sistema financeiro internacional como unidades hedge,
especulativas e ponzi. O sistema financeiro internacional “não é neutro”, e os
fluxos de divisas externas são inibidos no seu deslocamento para os países
menos desenvolvidos, vis-à-vis às economias mais desenvolvidas, principalmente nos períodos de queda cíclica da liquidez internacional. As oscilações
cíclicas dessa variável afetariam, então, a taxa de cambio real das economias
em desenvolvimento com maior intensidade.
Visando estimar um modelo para a taxa de câmbio real do Brasil para o
período 1971-02, adotaram-se como variáveis explicativas do câmbio real
brasileiro uma variável proxy para a liquidez internacional e outra variável proxy
que reflete o diferencial da mudança de preços relativos nos Estados Unidos
(resto do mundo) e no Brasil — variável W. Tal variável é compatível apenas
com o argumento de Lemos (1988) para a trajetória de longo prazo da taxa de
câmbio real.
Os resultados encontrados não rejeitam hipótese de relevância de ambas
as variáveis para explicar a taxa de câmbio real no Brasil. Ou seja, constatou-se
a existência de uma relação de longo prazo entre as variáveis do modelo. Além
disso, no modelo de correção de erros, os coeficientes estimados de ambas as
variáveis explicativas são significativamente diferentes de zero a um nível de
10%. Os resultados das estimações fornecem evidências de que a economia
brasileira é classificada no sistema financeiro internacional como unidade
especulativa/ponzi, o que seria consistente com a tendência de sua taxa de
câmbio real se depreciar no longo prazo.
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Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos
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409
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
Restrição orçamentária e Lei de
Responsabilidade Fiscal:
um estudo para Minas
Gerais — 1995-06*
Frederico G. Jayme Jr.**
Júlio César dos Reis
João Prates Romero
Professor do Cedeplar-UFMG
Mestrando em Economia do
Cedeplar-UFMG
Bolsista de Iniciação Científica do
PROBIC-CNPq na UFMG
Resumo
As mudanças ocorridas no cenário institucional do Brasil, nos últimos anos,
impuseram aos administradores públicos medidas no sentido de ajustar o Estado à nova ordem econômica. O controle dos gastos passou a representar um
ponto fundamental na política econômica. No âmbito estadual, a dinâmica de
déficits sucessivos foi revertida através da renegociação das dívidas estaduais
e da implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Este trabalho faz uma
avaliação das finanças públicas de Minas Gerais no período 1995-06, ressaltando os impactos dessa lei e considerando seus reflexos sobre o sistema
federativo.
Palavras-chave
Descentralização fiscal; dívida estadual; federalismo.
Abstract
Several institutional changes in the last years have imposed to the public
administrators the adoption of several policies intended to adjust the State for
the new economic order. The expenditure control has turned to be central in the
* Artigo recebido em nov. 2006 e aceito para publicação em maio 2007.
** O autor agradece ao CNPq e à Fapemig por financiarem parte desta pesquisa, e os três
autores agradecem a dois pareceristas anônimos desta revista.
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410
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
political economy. Regarding the Brazilian states, a dynamic of successive deficits
was reverted through the renegotiation of the states debts, as well as the advent
of the Fiscal Responsibility Law. This paper aims at analyzing the public finance
of the State of Minas Gerais from 1995 to 2006, highlighting the impacts of the
above-cited law considering its implications over the federalism in Brazil.
Key words
Decentralization; public debt; federalism.
CLASSIFICAÇÃO JEL:
H20, H71, H77.
1 Introdução
A partir de 1995, observou-se, no Brasil, um movimento de reconcentração
tributária, com a elevação da carga tributária bruta (CTB) — principalmente via
impostos indiretos — e a transferência de diversas despesas, antes federais,
para a esfera estadual. Diante disso, as dificuldades impostas pelo aumento das
demandas por gastos, com o limitado crescimento das receitas, tornaram-se
entraves para a recuperação da capacidade de financiamento estadual.
O Estado de Minas Gerais não foge a essa regra. Com uma limitada capacidade de gasto, as perspectivas de intervenção mais aguda na promoção do
desenvolvimento e de ganhos de bem-estar tornam-se cada vez mais estreitas.
A composição de seus gastos, com alto grau de engessamento das despesas e
problemas no sistema previdenciário estadual, evidencia esse problema. Não
bastasse isso, se, de um lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) contribui
para uma maior transparência na gestão pública e cria mecanismos de controle
e accountability, de outro, obriga as unidades subnacionais federativas a um
rigoroso controle de gastos, que, em alguns casos, pode limitar a capacidade
dos gastos sociais e de investimento.
Nesse sentido, é importante um ajuste que garanta a sustentabilidade
financeira intertemporal do Estado, e não somente um equacionamento das finanças estaduais no curto prazo. Para tanto, a perseguição de um ajuste estrutural é
de importância central. Desse modo, analisando a situação financeira atual do
Estado de Minas Gerais e suas perspectivas para o futuro, procura-se discutir a
sustentabilidade fiscal e financeira das finanças públicas de Minas Gerais.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
411
Sabendo da necessidade de um ajuste fiscal, os administradores públicos,
nos últimos anos, vêm tomando várias medidas no sentido de tentar sanar
esses desequilíbrios. No âmbito estadual, merecem destaque a renegociação
das dívidas estaduais em 1998 e, posteriormente, em 2000, a promulgação da
Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa lei procura conferir maior controle e transparência ao gasto público. No entanto, por impor rígidos limites de endividamento,
metas de gastos e severas punições àqueles que ultrapassarem esses limites,
a LRF tem gerado maiores dificuldades de ajuste para os entes federativos com
problemas fiscais prévios, principalmente os estados.
Diante desse quadro, o objetivo deste trabalho é avaliar a situação das
finanças públicas do Estado de Minas Gerais no período 1995-06 e analisar os
impactos da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre o financiamento estadual.
O trabalho divide-se em quatro partes além desta Introdução. A seção 2
dedica-se a uma análise da Lei de Responsabilidade Fiscal: seus fundamentos,
arcabouço teórico e objetivos principais. Posteriormente, são apresentadas algumas implicações da LRF para o equilíbrio federativo. Na seção 3, é construída
uma caracterização das finanças do Estado de Minas Gerais no período
1995-06, ressaltando o impacto da Lei de Responsabilidade Fiscal nos resultados apresentados. A última seção é destinada às Considerações finais.
2 Lei de Responsabilidade Fiscal: aspectos
gerais
2.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal e seus
antecedentes
O capítulo tributário da Constituição de 1988 representou, para os estados
e os municípios, uma maior autonomia tributária, bem como a conclusão de um
processo de descentralização que se havia iniciado ainda na década de 70.
A Carta Magna procurou corrigir as distorções da estrutura anterior e resgatar
plenamente o princípio do federalismo fiscal, perdido com a reforma tributária de
meados dos anos 60. Objetivava, ademais, dirimir as desigualdades regionais
através da criação de fundos específicos para o financiamento de regiões menos desenvolvidas — Fundo Constitucional do Norte (FNO), Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO) e Fundo Constitucional do Nordeste (FNE). Esses
fundos teriam fonte garantida de recursos, uma vez que representavam a cota-parte de dois impostos importantes, quais sejam, o Imposto Sobre Produtos
Industrializados (IPI) e o Imposto de Renda (IR).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
412
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Quanto à distribuição das competências tributárias e do bolo tributário, a
nova Constituição representou uma melhora na arrecadação para estados e
municípios. Como demonstram Serra e Afonso (1992), principalmente os municípios foram muito bem aquinhoados. Quanto à estrutura de gastos, as disposições constitucionais reestruturaram o processo de planejamento, orçamento e
controle, aumentando a capacidade de inserção da sociedade através da
obrigatoriedade de o orçamento público passar pela instância legislativa antes
de ser executado. Esse processo, de maior controle e transparência, ganhou
importância com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ademais,
houve restrições ao endividamento público e a operações de crédito que
excedessem as despesas de capital.
A despeito dessas modificações, o período que se seguiu à promulgação
da Constituição, principalmente após o Plano Real, representou um duro revés
ao financiamento dos estados e dos municípios, seja pela elevação das demandas sociais decorrentes do aumento do desemprego e do subemprego em
zonas metropolitanas, seja pela política recentralizadora implementada pelo
Governo Federal, seja, ainda, por uma competição tributária horizontal e vertical, que produziu guerra fiscal entre estados e municípios. Isso, combinado com
a estagnação econômica do período 1998-03, produziu efeitos deletérios sobre
a arrecadação tributária, muito sensível a variações da renda nacional. O agravamento do desemprego representou aumento das demandas por gastos
sociais, difíceis de serem garantidas por estados e municípios, pois estes estavam impossibilitados de aumentar o endividamento, devido às amarras impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Não obstante a participação das esferas subnacionais no bolo tributário
tenha aumentado com a Constituição de 1988, após o Plano Real o Governo
Federal vem sistematicamente propondo medidas recentralizadoras, ao mesmo
tempo em que transfere diversos gastos antes federais para estados e municípios. Já na análise dos tributos pela base de incidência, o que se viu foi uma
tendência marcante de elevação da participação dos tributos indiretos e cumulativos na base de arrecadação. A literatura sobre equidade da base tributária é
rica em demonstrar que os impostos indiretos têm uma maior facilidade de arrecadação, razão pela qual são privilegiados, quando se necessita aumentar a
arrecadação tributária, mas também podem contribuir para agravar a concentração de renda em economias com perfil distributivo como a brasileira.
Para os estados, no entanto, a situação piora, pois as receitas disponíveis
(no conceito ampliado) caem de 27% em 1997 para 24,6% em 2003, refletindo o
lento, porém sistemático, processo recentralizador. O aumento da CTB no
período representou também um aumento da participação dos estados da arrecadação. No entanto, o aumento do gasto público, decorrente de maiores
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
413
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
demandas sociais, bem como da maior transferência de atribuições às unidades subnacionais, exerce um contrapeso ao processo de maior arrecadação
(Tabela 1).
Tabela 1
Distribuição da receita tributária disponível, por nível de governo, acumulada
em 12 meses, no Brasil — dez. 1989-03
(%)
ÚLTIMO
MÊS DO
ANO
Dez./89
Dez/.90
Dez./91
Dez./92
Dez./93
Dez./94
Dez./95
Dez./96
Dez./97
Dez./98
Dez./99
Dez./00
Dez./01
Dez./02
Dez./03
CARGA
TRIBUTÁRIA
(1)
União
Estados
22,5
26,5
22,2
22,9
24,5
27,5
27,2
26,5
26,6
27,4
29,2
30,0
31,4
32,9
32,5
62,9
61,1
58,6
60,2
62,6
63,6
61,7
61,5
62,7
62,9
63,2
62,6
62,4
63,4
64,1
25,7
26,4
28,4
27,2
25,3
25,0
26,0
26,2
25,2
24,5
24,0
24,6
24,6
23,7
23,3
CARGA TRIBUTÁRIA
DISPONÍVEL A (2)
Municípios
11,3
12,5
13,1
12,6
12,2
11,4
12,3
12,3
12,1
12,6
12,8
12,7
13,0
12,9
12,6
CARGA TRIBUTÁRIA
DISPONÍVEL B (3)
União
Estados
...
...
...
...
...
...
...
59,0
59,8
58,8
59,7
58,8
58,3
59,7
60,2
...
...
...
...
...
...
...
27,4
26,7
26,1
25,0
25,9
26,1
24,9
24,6
Municípios
...
...
...
...
...
...
...
13,6
13,5
15,0
15,2
15,4
15,6
15,5
15,2
FONTE: BNDES. Disponível em: <www.federativo.bndes.gov.br>. Acesso em: 14
dez. 2004.
(1) Em percentual do PIB; não inclui a arrecadação tributária própria dos municípios.
(2) Abarca a Arrecadação Direta mais ou menos Transferências Tributárias (apenas
as principais transferências). (3) Engloba Receita Tributária Disponível mais ou menos
Demais Transferências.
Fica evidente que, principalmente a partir de 1995 e agravada a partir de
1999, há uma clara recentralização dos recursos tributários e aumento das despesas de estados e municípios, já com dificuldades crescentes de financiamen-
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414
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
to. O resultado é uma combinação perversa: elevação sem par da carga tributária bruta (Gráfico 1) nos últimos anos, concomitantemente à queda da participação das esferas subnacionais na distribuição dos recursos. Não bastasse isso,
o que já seria problemático em termos da capacidade de financiamento dessas
unidades federativas, ocorreu um aumento nas despesas, bem como uma competição federativa horizontal.
Gráfico 1
Carga tributária bruta no Brasil — 1990-05
40%
(%)
38%
36%
34%
32%
30%
28%
26%
24%
04
05
20
02
01
03
20
20
20
99
00
20
20
97
98
19
19
95
96
19
19
93
92
94
19
19
19
91
19
19
19
90
0
22%
FONTE: AFONSO, J. R.; MEIRELLES, B. Carga tributária no Brasil 2004/
/2005: cálculos revisitados. Campinas: Unicamp, 2006. (Cadernos de pesquisa, n. 61).
A estabilização dos preços obtida com o Plano Real, por outro lado, tornou
evidentes o descontrole das contas públicas e a necessidade de um ajuste,
uma vez que o fim da inflação impossibilitava que os governos utilizassem a
estratégia de postergar os repasses de recursos para equilibrar suas contas —
o chamado “efeito Patinkin”.1 A combinação aumento de gastos, redução signifi1
Com altas taxas de inflação, o adiamento de pagamentos por parte do Governo representava
uma queda real na dívida pública. As receitas eram, de certa forma, indexadas à inflação; por
outro lado, as despesas não.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
415
cativa da inflação e elevação da taxa de juros real colaborou, ainda, para
aumentar as despesas reais dos governos, de forma que os déficits elevados e
o crescimento explosivo das dívidas estaduais introduziram sérios riscos para a
manutenção da estabilidade macroeconômica e para as perspectivas de retomada do crescimento (Giambiagi; Rigolon, 1999, p. 7). Assim, quando, no final
dos anos 90, devido às crises financeiras do México, da Rússia e do Sudeste
Asiático, os fluxos de recursos externos cessaram seu movimento de entrada
no Brasil, o Governo Federal viu-se obrigado a tomar uma atitude definitiva, no
intuito de controlar os sucessivos déficits, principalmente dos estados. Em 1997
e 1998, então, foram assinados acordos de renegociação das dívidas estaduais, com o objetivo de controlar esses déficits.
O descontrole das contas públicas, principalmente estaduais, e a dificuldade de controlar os déficits colocavam-se como um entrave ao modelo de
estabilização econômica adotado pelo Governo Federal após o Plano Real.
Contudo atitudes no sentido de resolver esse problema já vinham sendo tomadas desde o inicio da década de 90. Dentre elas, merecem destaque:
a) a redução da capacidade de os governos subnacionais se financiarem
através de seus bancos estaduais, o que, em última instância, significa
através do Banco Central (Bacen), devido à relação existente entre
este e os bancos estaduais. Foi determinado, por medida provisória,
que os governos estaduais se deveriam afastar das atividades financeiras dos bancos estaduais, e estes últimos deveriam ser privatizados,
extintos ou transformados em agências estaduais de fomento;
b) os vários processos anteriores de renegociação da dívida dos estados,
que aperfeiçoaram os mecanismos de controle do endividamento
público. Uma inovação conseguida em uma dessas renegociações foi a
possibilidade de bloqueio de repasses de recursos, caso o Estado não
honrasse os compromissos acordados. Esse fato é um do pilares de
sustentação da LRF;
c) a limitação da dívida bancária dos estados. Ficou estabelecido que a
participação dos bancos privados na composição da dívida estadual
deveria ser contida. A intenção era limitar a utilização da antecipação
de receitas orçamentárias (ARO) e de empréstimos de médio e longo
prazos sem a avaliação da possibilidade de pagamento; e
d) a privatização de várias empresas estatais, que se constituía em uma
válvula de escape para os governos subnacionais. Essa prática era
comum principalmente no setor de energia elétrica.
Além dessas medidas, a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal,
de 04.05.2000, veio coroar esse processo. A Lei objetiva uma administração
mais equilibrada e transparente dos recursos públicos. Os governantes dos
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
416
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público, nas três
esferas de governo, passam a ter compromissos com orçamentos e metas, de
modo a evitar o descontrole dos gastos sem o devido conhecimento da União.
Basicamente, a LRF apresenta as seguintes características:
a) limitação de gastos com pessoal, estabelecendo não somente o quanto
pode ser gasto por cada nível de governo em relação à receita corrente
líquida, mas também — e aí está a sua novidade — o percentual equivalente aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, eliminando
distorções anteriormente existentes, especialmente nos governos
estaduais;
b) reafirmação dos limites mais rígidos já estabelecidos pelo Senado
Federal para o endividamento público, indicando que o não-cumprimento será punido igualmente com mais rigor;
c) definição de metas fiscais anuais e exigência de apresentação de relatórios trimestrais de acompanhamento, criando-se também outros mecanismos de transparência, como o Conselho de Gestão Fiscal — a
ser ainda constituído;
d) estabelecimento de mecanismos de controle das finanças públicas em
anos eleitorais; e
e) proibição de socorro financeiro entre a União e os governos subnacionais,
criando uma relação mais clara entre os entes federativos e recuperando a idéia do federalismo fiscal em sua plenitude.
Do ponto de vista macroeconômico, a LRF, combinada com a política monetária restritiva, impõe restrições significativas aos entes federativos, dificultando investimentos e restringindo políticas de desenvolvimento regional
baseadas em elevação do gasto público.
Observe-se que os cinco itens acima levantados são de fundamental
importância para aumentar o controle social do gasto público, traduzindo-se em
maior transparência, democracia e, não menos importante, garantindo um melhor arranjo federativo. Um dos pontos que merece destaque, no entanto, se
refere ao endividamento público. É sabido que o endividamento é um dos instrumentos fiscais seculares de ampliação de gastos, podendo ser utilizado, inclusive, como mecanismo anticíclico. A União, alguns estados, alguns municípios
e algumas capitais certamente podem utilizar esse instrumento, quando necessitarem de aumentar o gasto público para evitar estagnação e recessão. No
entanto, a LRF, ao determinar mecanismos excessivamente rígidos e não negociáveis, pode conduzir a quedas nos investimentos públicos. De fato, a política
monetária do Banco Central, para ser compatível com metas rígidas de inflação,
produz elevação na dívida em títulos da União e de alguns estados, o que —
dados os limites restritos de endividamento — se traduz em diminuição de gas-
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Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
417
tos de custeio e, principalmente, de investimentos. Dessa forma, há uma incompatibilidade entre os objetivos da política monetária e da política fiscal. O
limite é a diminuição dos gastos públicos não financeiros a níveis incompatíveis
com a manutenção da máquina administrativa, para manter o endividamento
dentro dos limites da LRF.
A LRF constitui, no entanto, um divisor de águas na administração pública
brasileira, na medida em que introduz novas práticas de gestão das finanças
públicas, pois estabelece regras claras e precisas para o controle dos gastos e
do endividamento público. Anteriormente, os déficits orçamentários estaduais
eram, em geral, transferidos para a União, quebrando um dos princípios caros
aos sistemas federativos, qual seja, a autonomia. Assim, apesar de a Constituição de 1988 ter criado um sistema que aumentou a competência tributária e a
percepção das transferências de estados e municípios, a mesma não foi capaz
de impor responsabilidades a essas unidades subnacionais. A LRF procura
corrigir parte desse problema.
2.2 LRF e equilíbrio federativo
O rigor quanto às regras e às punições é uma importante característica da
LRF. Certamente, esse é um fator que não pode ser negligenciado em uma avaliação dos impactos da LRF em todos os seus campos de atuação. Passados
mais de cinco anos desde a sua promulgação, a mudança no comportamento do
resultado primário do Estado de Minas Gerais evidencia esse fato. Entretanto
deve-se considerar que a melhora dessa rubrica também pode ser atribuída aos
acordos assinados entre o Governo Federal e o Fundo Monetário Internacional
(FMI). Dessa forma, a LRF pode ser considerada mais como potencializadora
dessa reversão da tendência de déficits do que como a causa desse fenômeno.
Apesar desses resultados positivos, alguns fatores demonstram que, embora tenha trazido novos conceitos e novas diretrizes, ela pode provocar algumas distorções no equilíbrio federativo, prejudicando o crescimento do País e a
execução de políticas que tenham o intuito de diminuir os desequilíbrios
regionais.3
2
2
Ressalte-se que, conforme bem apontado por um dos pareceristas anônimos desta revista,
as punições são administrativas, enquanto o maior rigor está na lei penal, que foi alterada,
e não na LRF propriamente.
3
Dentre esses fatores, pode-se apontar a impossibilidade de municípios de grande porte em
aumentar o nível de endividamento, mesmo que as condições financeiras assim o permitam
(como é o caso de capitais metropolitanas, como São Paulo e Rio de Janeiro), ou, ainda, a
LRF não possui mecanismo de compensação, de modo a evitar a concentração tributária,
tanto na União quanto em estados menos desenvolvidos.
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Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Com a Constituição de 1988 e o aumento da autonomia das unidades
subnacionais, a noção de descentralização fiscal fortaleceu-se. Em países de
dimensões continentais como o Brasil, o sistema federativo apresenta uma
série de vantagens. A principal delas se refere ao ganho de eficiência alocativa,
uma vez que os governos locais são certamente mais eficientes, tanto para a
identificação das necessidades de sua população, como para a provisão dos
bens públicos que atendam a essas demandas. Além disso, com a
descentralização, é provável que ocorra aumento das trocas de informações
entre as esferas subnacionais, acarretando um processo de aprendizado que se
converterá em nova queda nos custos da provisão dos bens públicos. Assim,
caso os tributos cobrados pelas esferas subnacionais sejam relacionados aos
custos, essa queda, então, proporcionará à população pagar menos pelos bens
disponibilizados. Outro ponto favorável à descentralização fiscal refere-se à
proximidade entre a população e os governos locais. Essa maior proximidade
permite um controle maior das atividades dos governantes, dificultando comportamentos ineficientes e corruptos.
Apesar de todas essas vantagens, o processo de descentralização fiscal
brasileiro apresenta vários problemas. O principal deles é que, desde o seu
ressurgimento com o fortalecimento do processo democrático e a instituição da
Constituição de 1988, as atribuições de cada ente da Federação não foram
devidamente especificadas. Com o aumento de atribuições das esferas
subnacionais, mesmo que não claramente especificadas, tornou-se uma necessidade o aumento dos recursos a elas destinados. No período pós-Constituição
de 1988, as receitas originárias de vinculações aumentaram consideravelmente
para estados e municípios, em especial para estes últimos. As bases de incidência dos impostos subnacionais também foram aumentadas. Mesmo sem
uma definição quanto às atribuições, o que se observa é uma concentração da
atuação do Governo Federal em programas da área social, voltados para a
cobertura de riscos provenientes do desemprego, da velhice e da invalidez,
enquanto os estados e os municípios passaram a se encarregar de prover serviços voltados a diminuir as desigualdades sociais, como saúde, educação,
assistência social e desenvolvimento urbano.
Desse modo, o papel desempenhado pelas receitas originadas de
vinculações coloca-se como uma característica marcante do modelo de
descentralização fiscal brasileiro e como fator decisivo para a manutenção do
equilíbrio federativo. Mesmo com a ampliação da base tributária subnacional,
poucos são aqueles que não dependem essencialmente das vinculações para
atenderem às demandas sociais de sua população.
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Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
419
Essa visão limitada do problema ofuscou o fato de que, além de alguns
vícios, a vinculação também tem suas virtudes. A mais importante delas é
o fato de soldar as parcerias intergovernamentais indispensáveis à
eficiência e à eficácia das políticas voltadas ao combate às desigualdades
e à pobreza. Corretamente, a Constituição de 1988 associou
descentralização na gestão das políticas sociais ao estabelecimento de
uma maior cooperação financeira dos entes federados para tornar viável a
implementação dessa estratégia. (Rezende, 1997, p. 6).
Uma característica desse processo é que, atualmente, as vinculações não
significam centralização de poder, como ocorreu nas décadas passadas, mas,
sim, o fortalecimento da descentralização e da autonomia das esferas
subnacionais.
Todavia, nos últimos anos, como forma de repor as supostas perdas
decorrentes do aumento das vinculações, o Governo Federal vem promovendo
uma ampliação da carga tributária através do aumento das alíquotas de tributos
não vinculáveis, como as contribuições sociais — Contribuição ao Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Programa de Integração Social (PIS) e/ou
Programa Formação do Serviço Público (Pasep) — e da Contribuição Provisória
Sobre Movimentação Financeira (CPMF). Para piorar a situação, o IPI, que,
juntamente com o IR, é um dos componentes do Fundo de Participação dos
Municípios (FPM) e do Fundo de Participação dos Estados (FPE), apresentou
queda em sua arrecadação, nos últimos anos. Somam-se a esse fato as
distorções nos repasses de recursos tanto ao FPM quanto ao FPE.
A estratégia de elevação da CTB no Brasil, nos últimos 10 anos, provocou
a diminuição da participação relativa de estados e municípios no bolo tributário,
resultando não só em uma reafirmação dos conflitos federativos verticais e
horizontais, como também em um impacto negativo sobre a possibilidade de
utilização das transferências tributárias como mecanismo de diminuição dos
desequilíbrios regionais.
Incorporando a essa análise componentes demográficos, nota-se claramente que as regiões metropolitanas, apesar de possuírem uma maior capacidade de geração de receitas, devido à concentração populacional, são as áreas
que mais dependem dos recursos provenientes do Governo Federal, para atenderem às suas demandas sociais. Outro fator importante é que, devido ao processo de transição demográfica, as regiões mais desenvolvidas se tornam
crescentemente dependentes do Governo Federal, pois sua população tende a
ficar cada vez mais velha, aumentando a demanda por serviços de seguridade
social. Já as regiões menos desenvolvidas, que possuem um grande número de
jovens em sua população, tornam-se mais dependentes das ações dos estados
e dos municípios, com uma demanda maior de serviços relacionados à educação e à assistência social.
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420
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
O cenário configurado, então, mostra-se bastante delicado para as esferas
subnacionais: aumento nas atribuições e diminuição nos recursos disponíveis.
Essa situação pode ser muito mais complicada do que aparenta, pois, devido a
esse processo de descentralização fiscal, a importância das atividades municipais aumentou consideravelmente. Devido aos elevados déficits apresentados
nos últimos anos, os estados, cada vez mais, vêm perdendo espaço para os
municípios em quase todas as áreas de prestação de serviços sociais. O orçamento estadual é, em grande parte, destinado ao pagamento da folha de salários e dos serviços da dívida, ficando restrita sua participação na execução de
políticas públicas. Apesar de as grandes capitais possuírem uma boa base de
arrecadação, ela não é suficiente para atender às demandas sociais de sua
população. Os pequenos municípios, por outro lado, não possuem outra fonte
importante de recursos senão as vinculações. Para ambos os casos, a dependência dos recursos federais é grande, e tanto o FPM quanto o FPE não conseguem suprir essa dependência. Tal situação poderia ser amenizada, se as transferências federais representassem um volume considerável de recursos, como
já aconteceu em tempos passados. Contudo, seguindo com a política de austeridade fiscal, essas transferências vêm apresentando uma tendência declinante
desde o início da década de 90.
Os impactos da LRF sobre as esferas subnacionais agravam ainda mais
essa situação. Afonso (2001; 2002) e Serra e Afonso (2002) argumentam que a
Lei de Responsabilidade Fiscal fortalece o caráter federativo do Estado brasileiro, quando cria o conceito de ente da Federação e quando atribui regras e punições para cada esfera de governo, ou porque ela se aplica a todos os entes
federados e a cada um dos poderes. Ademais, ela responsabiliza cada esfera
por seus próprios atos. Assim, a prática recorrente de federalização das dívidas, principalmente das estaduais, foi extinta. Esses autores ainda afirmam que
a LRF contribui para o crescimento da receita dos governos, pois obriga a arrecadação de todos os impostos de competência de cada esfera, além de dificultar a renúncia fiscal; observam, ademais, que a Lei incentiva o melhor aproveitamento dos recursos, uma vez que limita as despesas.
O resultado prático, no entanto, não é assim tão nítido. Sua extrema rigidez
e sua preocupação em conter os déficits públicos acabam produzindo efeitos
negativos sobre a renda e o PIB. Como foi salientado anteriormente, as
disparidades regionais e todos os problemas provenientes delas dificultam as
ações dos governos, tanto das regiões mais desenvolvidas quanto das menos
desenvolvidas, e tratar todos os entes federados de forma igualitária ignora,
ainda que indiretamente, as disparidades regionais no Brasil. Nesse caso, se,
de um lado, a LRF pode fortalecer o equilíbrio federativo, como argumentam
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
421
Serra e Afonso (2002), de outro, pode enfraquecê-lo, não se podendo garantir
uma efetiva melhora na capacidade de financiamento das unidades federativas
subnacionais.
Dessa forma, podemos utilizar o princípio da eqüidade4 como forma de
analisar o problema. Em que pese o fato de esse conceito ser aplicado aos
princípios da tributação, qual seria o propósito de tratar os desiguais de forma
igual como faz a LRF? Não seria mais eficiente tratar os desiguais de forma
desigual?
Assim, mesmo não transparecendo à primeira vista, a LRF provoca a perda da capacidade de investimento e, com isso, a perda de autonomia das esferas subnacionais. Dessa forma, pode-se dizer que a LRF não contribui para
fortalecer o pacto federativo no Brasil.
Aqui, com a nossa LRF, as restrições foram impostas a estados e
municípios, malgrado toda a discussão que foi empreendida durante a
elaboração do projeto de lei. O resultado final, porém, mitiga, muitas vezes,
as autonomias dos entes federados, sobretudo em relação às pequenas
localidades.
......................................................................................................................
As regras da LRF foram aplicadas verticalmente aos estados e municípios,
rompendo, muitas vezes, as autonomias desses entes, infringindo o pacto
federativo estatuído na Carta Magna. (Nobrega; Figueiredo, 2001, p. 7
e 10).
Mais ainda, se, pela ótica do controle e da maior transparência do gasto
público pela sociedade, a LRF é um avanço incontestável, do ponto de vista da
utilização da política fiscal como instrumento de estímulo à demanda efetiva,
há limitações claras. Nesse sentido, a alocação do gasto público como instrumento de desenvolvimento e diminuição de disparidades regionais vai de
encontro aos principais objetivos da Lei. Desse modo, a LRF depende de um
governo que garanta o equilíbrio fiscal, uma relação dívida/PIB compatível com
a solvência intertemporal e de reformas institucionais que garantam condições
institucionais jurídicas para garantir o investimento privado.
Do ponto de vista da gestão das finanças públicas, portanto, a LRF moderniza e democratiza seus instrumentos, apoiando-se, segundo Khair (2000), em
quatro eixos principais: planejamento, transparência, controle e responsabilização.
No entanto, como já salientado anteriormente, as proposições normativas da Lei
4
O princípio da eqüidade pressupõe que indivíduos considerados iguais sejam tratados da
mesma forma e que indivíduos considerados diferentes sejam tratados de forma diferenciada. O problema consiste em determinar o critério para definir tanto a igualdade quanto a
diferenciação entre os indivíduos. Os critérios mais difundidos são o do benefício e o da
capacidade de pagamento.
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Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
acabaram por transcender esses pontos, ao criar amarras ao papel anticíclico
do gasto público e tornar o equilíbrio fiscal profissão de fé, o que pode causar
efeitos negativos sobre o investimento público. Se levarmos em conta que o
investimento privado tende a se direcionar para regiões e setores de menor
risco e maior retorno, é fácil prever que, sem a atuação direta do Estado, os
investimentos em infra-estrutura e aqueles que possibilitam diminuição de
desequilíbrios regionais ficarão prejudicados.
3 Uma caracterização das finanças
públicas em Minas Gerais: 1995-05
3.1 Aspectos gerais
O período 1995-06 é marcado, fundamentalmente, pela estabilidade da
moeda e pela perda de benefícios inflacionários decorrente do anteriormente
referido “efeito Patinkin”. Com a incapacidade de se beneficiar com a inflação,
devido à corrosão do valor real das despesas vis-à-vis à estabilidade das receitas reais, a situação financeira das contas públicas ficou mais evidente,
obrigando a um ajuste pelo lado dos gastos, uma vez que o ganho de receitas
com a queda da inflação e o crescimento do imediato pós-Plano Real não foram
suficientes para superar esse efeito.5 As mudanças no cenário econômico
nacional, principalmente as relacionadas à extinção dos bancos estaduais, também produziram efeitos sobre a capacidade de gasto estadual. As desvalorizações cambiais e o aumento na taxa de juros no período também contribuíram
para o aumento dos encargos das dívidas dos estados.
Um outro ponto importante foi a assinatura do acordo, em 1998, de
renegociação das dívidas estaduais. Com essa renegociação, os estados ficaram comprometidos a direcionar uma parcela de suas receitas para o pagamento de suas dívidas, que, em razão do referido acordo, foram assumidas pela
União. Como os valores a serem repassados à União eram superiores aos
efetivados pelo Estado de Minas Gerais antes dessa renegociação, esse fato
criou mais um agravante para o ajuste fiscal, principalmente se levarmos em
5
À medida que a inflação se acelerava, o Governo, em suas três esferas, foi criando mecanismos para evitar a vigência do Efeito Olivera-Tanzi, no qual as receitas perdem seu valor real
com a aceleração inflacionária, devido à não-indexação das receitas. Com a indexação das
receitas e a indexação incompleta das despesas, o Governo conseguia promover um ajuste
de curto prazo nas contas públicas.
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Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
423
consideração o fato de que o estoque da dívida estadual continuou apresentando crescimento, pois, com a renegociação, houve uma mudança na estrutura da
dívida, uma vez que foi incorporado ao estoque da dívida um conjunto de
dívidas relacionadas ao saneamento dos bancos estaduais, e o valor dos pagamentos acordados não foi suficiente para pagar os encargos da nova dívida.6
A Tabela 2 apresenta uma caracterização das finanças estaduais no período 1995-06. Em primeiro lugar, é possível observar um tímido crescimento da
receita total nesse período, sustentado, principalmente, pelas receitas correntes, em especial pelas receitas tributárias que, na sua quase-totalidade, são
constituídas pelas receitas advindas da arrecadação do ICMS. As receitas de
capital apresentaram uma trajetória de crescimento até 1998, quando, em razão
do encerramento do ciclo de rolagem da dívida, foram substituídas pela
renegociação das dívidas estaduais com o Tesouro Nacional. Desde então, essa
rubrica vem apresentando uma constante queda, exceto no ano 2000, em que
parte dessas receitas é explicada pela alienação de bens. A significativa queda
das receitas advinda das operações de crédito apresentada em 1999 pode ser
explicada como um reflexo da moratória da dívida interna decretada pelo Governador Itamar Franco, no início de seu mandato, em 1999. As demais rubricas do
lado da receita apresentaram uma relativa estabilidade ao longo desse período.
No caso das despesas, a situação com relação ao comportamento no
período é semelhante. Contudo deve-se ressaltar a mudança na sua estrutura.
Observando-se a Tabela 2, pode-se notar o elevado crescimento das despesas
com pessoal e encargos, de, aproximadamente, 80% no período. Essa elevação se explica pela mudança na metodologia de cálculo dessa rubrica, pois, a
partir de 2000, as despesas com funcionários terceirizados, antes incluídas nas
transferências, passaram a ser calculadas nas despesas com pessoal. Outro
fator importante é a queda apresentada pela rubrica amortizações após 1998: o
valor destinado a essa rubrica, atualmente, é cerca de 16% do valor despendido
em 1995, o que é conseqüência da renegociação da dívida de 1998. De fato, a
diminuição das amortizações veio acompanhada de um aumento do estoque de
dívida acumulada, bem como de juros e encargos sobre esse estoque. Aqui,
mais uma vez, é possível observar que o acordo da dívida não necessariamente garantiu a solvência da dívida pública do Estado de Minas Gerais, revelando
a fragilidade do ajuste de curto prazo. Um outro ponto importante é o grande
aumento no período da rubrica investimentos e inversões, chegando hoje a
representar 12% das despesas correntes. Entretanto não se pode deixar de
6
Para uma análise dos impactos da renegociação da dívida nas finanças de Minas Gerais, ver
Riani e Andrade (2002). Para uma análise recente, ressaltando os impactos negativos sobre
o custo de rolagem da renegociação da dívida, ver Riani e Andrade (2006).
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considerar que esse valor, confrontado com as amortizações e juros e encargos
da dívida, só é maior em 1998, ano de eleições, e em 2005, ano que foi marcado
pela retomada dos investimentos do Governo Estadual, possivelmente em
função das eleições de 2006.
Tabela 2
Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
1995
1996
1997
Receita total ..........................
Receita corrente .....................
Receita tributária ...............
ICMS .............................
IPVA ..............................
Transferências correntes ...
FPE ................................
Demais receitas correntes
Receita de capital ...................
Operações de crédito ........
Alienação de bens .............
Transferências de capital ...
18 969 794,91
15 510 223,17
11 382 733,43
10 805 033,98
...
3 561 016,70
811 745,13
566 473,04
3 459 571,74
2 803 193,23
590 704,08
51 001,08
19 074 483,73
14 788 528,59
10 980 028,55
10 245 941,50
...
3 078 699,69
750 199,55
729 800,35
4 285 955,14
3 404 584,06
793 403,44
87 957,56
21 744 809,39
14 463 949,68
10 449 558,56
9 663 343,52
539 308,88
3 011 041,33
768 483,85
1 003 349,79
7 280 859,71
5 622 251,80
678 908,57
84 854,56
Outras ................................
Despesa total ........................
Despesa corrente ...................
Pessoal e encargos ...........
Previdência ........................
Juros e encargos da dívida
Transferências a municípios
Despesa de capital .................
Investimentos e inversões
Amortizações .....................
Superávit/déficit ....................
14 673,91
22 352 502,13
18 214 342,91
6 437 352,30
2 744 105,41
1 180 828,80
3 540 181,82
4 138 159,22
364 190,83
2 565 836,05
9,25
18 164 449,40
15 447 595,77
5 751 166,72
2 797 256,36
888 101,10
3 380 274,57
2 716 853,63
382 834,63
2 068 049,15
894 844,77
21 235 657,22
15 132 058,25
5 778 034,05
2 814 986,56
986 991,83
3 176 053,85
6 103 598,97
994 445,05
4 860 790,46
-3 382 707,22
910 034,32
509 152,17
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
425
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
Tabela 2
Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
1998
Receita total ......................... 26 997 383,70
Receita corrente ................. 14 720 210,60
Receita tributária ............... 10 139 738,16
ICMS .......................
9 117 436,10
IPVA ........................
744 992,47
Transferências correntes
FPE .........................
3 035 059,99
781 392,88
Demais receitas correntes
1 545 412,44
Receita de capital .................. 12 277 173,11
Operações de crédito .......
9 932 198,95
Alienação de bens ............
2 228 789,89
Transferências de capital
47 618,91
Outras ...............................
68 564,70
Despesa total ....................... 26 043 940,96
Despesa corrente ............... 14 445 597,88
Pessoal e encargos ..........
5 663 009,92
Previdência .......................
755 336,68
Juros e encargos da dívida
736 548,57
Transferências a municípios
3 224 424,23
Despesa de capital ................ 11 598 343,08
Investimentos e inversões
7 097 244,64
Amortizações ....................
4 078 201,40
Superávit/déficit ...................
953 442,74
1999
2000
16 436 630,99
21 318 813,52
15 876 601,49
11 273 321,52
19 192 520,67
12 464 331,07
10 248 893,10
11 236 635,99
757 931,87
3 240 970,17
843 730,95
3 875 791,08
2 975 920,28
1 362 309,80
560 029,50
154 077,91
282 212,82
123 665,52
72,46
964 036,28
2 852 398,52
2 126 292,85
222 749,49
1 284 679,71
155 411,90
463 451,76
16 154 685,64
21 906 479,05
14 954 013,58
8 783 741,33
641 352,57
1 378 253,78
3 464 944,40
1 200 672,06
285 775,34
744 060,79
281 945,35
19 004 401,16
6 303 471,52
1 034 300,89
1 220 202,66
3 076 963,55
2 902 077,89
1 376 735,35
1 390 859,67
-587 665,53
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
426
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Tabela 2
Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
2001
Receita total .........................
Receita corrente .................
22 370 384,67
21 589 403,30
22 134 599,89
21 246 479,52
14 044 834,82
12 724 131,67
21 146 921,03
14 759 006,40
12 437 314,86
21 206 389,09
15 009 120,59
12 743 623,26
921 065,24
3 913 149,88
954 047,01
3 364 888,89
871 086,57
3 049 813,98
1 070 578,65
1 065 347,26
1 123 905,14
77 812,45
265 489,19
262 080,72
1 230 547,92
508 334,80
2 138 584,15
92 778,04
287 071,06
1 269 529,98
1 137 601,76
555 845,08
928 210,80
21 547,56
32 134,74
448 578,48
518 522,78
24 271 678,94
21 703 746,54
8 672 828,61
2 207,29
24 442 633,80
21 989 038,06
12 064 444,58
10 442,97
22 402 594,95
20 685 125,42
10 937 775,08
1 174 914,87
1 667 408,36
3 703 409,57
2 567 932,40
1 530 836,35
694 661,40
1 459 548,24
1 426 037,72
3 487 823,71
2 453 595,73
1 882 275,05
571 320,68
1 293 081,55
1 402 798,92
3 555 217,74
1 717 469,53
1 216 435,60
501 033,93
-1 901 294,27
-2 853 230,50
-267 995,06
Receita tributária ...............
ICMS ............................
IPVA ........................
Transferências correntes
FPE .........................
Demais receitas correntes
Receita de capital ...............
Operações de crédito .......
Alienação de bens ............
Transferências de capital
Outras ..........................
Despesa total .......................
Despesa corrente ..................
Pessoal e encargos ..........
Previdência ...................
Juros e encargos da dívida
Transferências a municípios
Despesa de capital ................
Investimentos e inversões
Amortizações ....................
Superávit/déficit ................
2002
2003
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
427
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
Tabela 2
Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
2004
Receita total ..........................
Receita corrente .....................
Receita tributária ...............
ICMS ........................
23 475 370,37
24 683 574,64
16 368 398,14
25 513 724,00
26 888 734,00
17 839 012,00
28 178 901,69
26 773 046,83
17 815 675,24
13 914 085,11
15 184 191,00
15 121 262,37
IPVA ........................
1 002 687,10
4 611 562,61
1 086 501,00
4 961 764,00
1 106 762,00
5 118 229,11
881 081,14
759 851,74
667 650,03
11 344,07
34 213,44
261 029,15
1 134 272,00
831 182,00
671 567,00
63 656,00
60 426,52
238 289,00
1 012 518,31
776 758,00
1 405 854,86
397 102,60
51 761,06
499 246,75
11 344,07
23 377 830,18
7 378,00
25 292 070,00
47 312,09
28 999 872,57
21 269 263,32
11 232 669,61
3 551 752,90
1 476 219,56
4 443 394,35
2 108 566,87
1 643 317,21
465 249,66
22 146 209,00
11 336 497,00
3 387 317,00
1 643 595,00
4 602 239,95
3 145 861,00
2 734 415,00
411 446,00
24 241 344,98
12 154 084,32
5 288 333,50
1 825 236,55
4 567 388,57
4 758 527,59
4 250 251,57
508 276,02
97 540,19
221 654,00
-820 970,88
Transferências correntes ..
FPE ..........................
Demais receitas correntes
Receita de capital ..................
Operações de crédito ........
Alienação de bens ............
Transferências de capital
Outras ..........................
Despesa total ........................
Despesa corrente ...............
Pessoal e encargos ..........
Previdência .......................
Juros e encargos da dívida
Transferências a municípios
Despesa de capital ................
Investimentos e inversões
Amortizações ....................
Superávit/déficit ...................
2005
2006
FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional.
Fon te: Secretaria da Fazenda de Minas Gerais.
NOTA: Valores a preços de 2005 (média anual do IPCA).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
428
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Chama atenção, na Tabela 2, o fato de que, de 2003 a 2005, houve uma
reversão do déficit orçamentário. Desde 2000, o Estado apresentava resultado
orçamentário negativo, merecendo destaque um déficit de quase R$ 3 bilhões, a
preços de 2005, em 2002. Esse elevado déficit se explica, basicamente, por
uma estagnação das receitas próprias e por uma elevação de quase 40% nas
despesas de pessoal, bem como pelo efeito deletério da inflação naquele ano,
que, medida pelo Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), superou os 20%. De fato, o custo da folha de salários, com uma inflação crescente,
tende a aumentar, menos pela elevação dos salários no setor público e mais
pelo crescimento da folha de funcionários contratados. Ademais, e isso não se
pode negligenciar, o ano de 2002 foi ano eleitoral, o que pode produzir ciclos
eleitorais com maiores gastos. De qualquer maneira, o efeito da inflação sobre
as receitas e as despesas (estas últimas indexadas), combinado com o ano
eleitoral e com um pífio crescimento econômico, certamente amplificou esse
déficit. Em 2003, primeiro ano do novo governo, portanto, tradicionalmente caracterizado por ajuste nas contas públicas, ainda não foi possível inverter o
resultado orçamentário negativo. O ajuste nas despesas, principalmente nas
despesas correntes, não foi suficiente para reverter o déficit, uma vez que as
receitas, devido ao crescimento econômico próximo de zero naquele ano, se
elevaram em apenas 2,5%.
Conforme observou Silva (2004), as receitas do ICMS são muito sensíveis
ao desempenho do PIB, de modo que períodos de estagnação têm efeitos diretos
sobre as receitas desse imposto. Isso pode ser observado em 2003, quando as
receitas do ICMS praticamente não se alteraram desde 2001. Esse fenômeno
se reverteu em 2004, conseqüência tanto da recuperação do crescimento quanto do desempenho sem par do setor exportador no País. Sendo Minas Gerais
um estado exportador de bens intermediários, principalmente minério de ferro,
que obteve resultados positivos nos preços internacionais, o efeito indireto
sobre a arrecadação, mesmo com as desonerações dos produtos exportáveis,
foi notável. Conseqüentemente, abriu-se a possibilidade para o ajuste, bem como
o crescimento das despesas naquele ano. Esse processo garantiu, ainda, o
crescimento das despesas em 2005, inclusive das despesas de capital, e, mesmo assim, proporcionou um superávit orçamentário. As despesas correntes
superaram as despesas pré-eleitorais em termos reais, mas, devido ao aumento das receitas, garantiram-se a manutenção do ajuste e a adequação às imposições da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Um fato marcante, no entanto, é a evidência de ciclos políticos. De fato,
conforme atesta a Tabela 3, o período 1995-98 foi marcado por um ajuste, que
se iniciou em 1996 e foi completado no ano seguinte. Em 1997, houve um superávit primário nas contas do Governo Estadual, com queda real nas despesas
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
429
com pessoal. No ano eleitoral, 1998, as contas do Estado apresentaram um
déficit primário de mais de R$ 6 bilhões, a preços de 2005. O Governo empossado
em 1999 procedeu a um novo ajuste, já obtendo, nesse ano, um resultado primário positivo. Em 2002, a despeito da vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal,
houve um déficit primário da ordem de R$ 1,3 bilhão, a preços de 2005. A partir
de 2003, novamente o superávit primário foi obtido, embora a dívida líquida
consolidada se tenha mantido estável em termos reais. É interessante observar-se que, mesmo sob a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal a partir de
2000, os ciclos políticos permaneceram. Naturalmente, sua evidência tende a
diminuir com a referida lei, uma vez que a elevação de gastos, sem a garantia
de crescimento das receitas, se tornou muito mais limitada.
As contas estaduais, contudo, se analisadas de forma inadequada, podem
gerar interpretações enganosas. O resultado orçamentário, por exemplo, pode
ser equilibrado ou superavitário e pode, na verdade, esconder uma situação de
desequilíbrio, uma vez que essa conta inclui empréstimos contratados pela
administração pública e por transferências de capital, o que não representa uma
receita propriamente dita. Além disso, a própria forma como são distribuídas as
receitas e as despesas do Governo pode gerar uma contabilidade enganosa.
Uma situação que se enquadra nesse aspecto é a de transferências de despesas executadas para a conta restos a pagar, o que implica que essas dívidas
deverão ser pagas no futuro, ainda que seu montante não seja incluído no montante de dívida atual. Nesse caso, bem como no da dívida fundada, uma análise
do conceito “abaixo da linha” permite observar o resultado fiscal a partir da
variação da dívida. Assim sendo, um resultado orçamentário equilibrado pode
esconder um déficit nominal — no conceito de necessidades de financiamento
do setor público (NFSP).7
Além disso, é importante analisar o próprio conceito de déficit. Em contextos de elevado endividamento, o mais adequado para avaliar o esforço fiscal do
Governo é a utilização de NFSP em seu conceito primário, que exclui os encargos da dívida, ou seja, seus juros. No entanto, ao se utilizar o resultado das
contas orçamentárias, encobre-se a verdadeira situação financeira estadual,
podendo gerar uma imagem de equilíbrio irreal. Segundo o conceito nominal
(que inclui nas contas os juros devidos e a atualização monetária e cambial),
7
Sobre esse ponto, particularmente em relação ao Estado de Minas Gerais, Oliveira (2006)
demonstra a maneira financeiramente mais correta de calcular o resultado fiscal das contas
públicas. Quanto ao conceito de déficit, no conceito “acima da linha”, são explicitados os
principais fluxos de receitas e despesas, ao passo que, no conceito “abaixo da linha”, o
déficit é observado com base na variação da dívida pública, ou pela ótica do seu financiamento.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
430
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
um resultado orçamentário equilibrado pode representar, ou melhor, encobrir, um
déficit fiscal, isso se o resultado orçamentário positivo não for suficiente para o
pagamento tanto dos juros quanto das correções monetárias.
Tabela 3
Demonstrativo da aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal
em Minas Gerais — 1995-06
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
Receita corrente líquida
(1) ..................................
Receita disponível (2) ....
Dívida líquida consolidada (3) .............................
Despesa com pessoal
total ................................
Receita tributária mais
transferências constitucionais ...........................
Resultado primário .........
Restos a pagar (4) .........
DISCRIMINAÇÃO
Receita corrente líquida
(1) ..................................
Receita disponível (2) ....
Dívida líquida consolidada (3) .............................
Despesa com pessoal
total ................................
Receita tributária mais
transferências constitucionais ...........................
Resultado primário .........
Restos a pagar (4) .........
1995
1996
1997
11 970 041,35
15 429 613,09
11 408 254,02
15 694 209,16
11 287 895,83
18 568 755,54
...
...
...
9 181 457,72
8 548 423,09
8 593 020,61
14 943 750,12
-3 124 661,63
...
14 058 728,24
-460 163,25
...
13 460 599,89
29 753,23
...
1998
1999
2000
11 495 786,37
23 772 959,47
12 411 657,09
12 971 686,59
16 115 557,12
18 241 849,98
...
...
48 659 172,81
6 418 346,60
9 425 093,90
7 337 772,41
13 174 798,16
-6 423 816,31
...
14 514 291,69
1 746 120,50
...
16 340 122,15
382 952,31
2 366 685,87
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
431
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
Tabela 3
Demonstrativo da aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal
em Minas Gerais — 1995-05
(R$ 1 000)
DISCRIMINAÇÃO
Receita corrente líquida
(1) ..................................
Receita disponível (2) ....
Dívida líquida consolidada (3) .............................
Despesa com pessoal
total ................................
Receita tributária mais
transferências constitucionais ...........................
Resultado primário .........
Restos a pagar (4) .........
DISCRIMINAÇÃO
Receita corrente líquida
(1) ..................................
Receita disponível (2) ....
Dívida líquida consolidada (3) .............................
Despesa com pessoal
total ................................
Receita tributária mais
transferências constitucionais ...........................
Resultado primário .........
Restos a pagar (4) .........
2001
2002
2003
17 543 069,95
18 666 975,10
17 659 097,32
19 797 681,47
17 651 171,35
18 579 382,16
47 342 370,26
40 457 717,38
40 530 736,22
9 847 743,49
13 523 992,82
12 230 856,63
17 957 984,70
-61 215,39
18 123 895,29
-1 329 608,09
18 058 934,57
1 327 810,10
3 196 234,13
3 560 154,07
3 431 909,06
2004
2005
2006
20 240 180,29
20 907 830,32
22 286 494,05
22 958 061,05
21 010 179,07
22 416 033,93
40 311 789,09
39 706 846,00
39 507 055,83
14 784 422,51
14 723 814,00
17 442 417,82
20 979 960,75
1 719 717,42
4 007 563,30
22 800 776,00
1 928 250,00
4 939 930,00
22 933 904,36
-820 970,88
4 568 840,52
FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional.
FONTE: Secretaria da Fazenda de Minas Gerais.
NOTA: Valores a preços de 2005 (média anual do IPCA).
(1) Receita corrente menos transferências aos municípios. (2) Receita corrente líquida mais receitas de capital. (3) Obrigações financeiras para amortização em um prazo
superior a um ano e aquelas com prazo inferior a um ano, cujas receitas tenham contado no orçamento. (4) Em valores nominais.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
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Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
De fato, o valor dos juros inscrito no orçamento não representa o valor total
dos juros devidos pelo Estado no ano, mas apenas aqueles juros computados
na previsão de pagamento. Segundo o acordo de negociação de 1998, o valor
total dos juros corresponde a 13% da receita líquida real (RLR), a ser utilizado
no pagamento da dívida com a União, incluindo também os pagamentos de
juros a serem feitos aos demais credores. Ao se excluir o verdadeiro valor dos
juros devidos, obtém-se um bom resultado no curto prazo, mas não se garante
um equilíbrio sustentável de longo prazo. Ao contrário, a própria limitação dos
juros pagos produz uma elevação ainda mais problemática do estoque de dívida
fundada e flutuante do Estado.8
Chama atenção exatamente o fato de que, limitada a possibilidade de se
endividar, o Estado de Minas Gerais tem apresentado um crescimento acelerado e persistente da conta restos a pagar. De fato, a Tabela 3 demonstra que, de
2000 a 2005, os restos a pagar se elevaram em mais de 100%, mesmo com um
razoável crescimento da receita corrente líquida. Com efeito, conforme demonstra Oliveira (2006), o crescimento da dívida flutuante permite obter resultados
orçamentários equilibrados, desde que o Governo adie pagamentos. Como os
encargos das dívidas, fundada e flutuante, são limitados pelo acordo de 1998 e
pela LRF, o ajuste de longo prazo das finanças estaduais de Minas Gerais pode
ser seriamente afetado.
A questão da dívida é, ainda, um problema a ser equacionado.
A renegociação da dívida do Estado com a União não representou ganho substancial para as finanças estaduais. As condições firmadas nesse acordo deram
ao pagamento de juros e encargos da dívida uma posição relativa importante
nos gastos do Estado, representando cerca de 7% da receita corrente líquida
(RCL) atualmente. Assim, mesmo sendo difícil obter mudanças nas regras
estabelecidas em razão de restrições legais e financeiras, essa possibilidade
não deve ser descartada.
O Estado de Minas Gerais, nesse sentido, poderia concentrar esforços
para tentar rever algumas condições acordadas, tais como:
a) redução do percentual da receita corrente líquida destinado ao
pagamento da dívida — como foi acordado quando da assinatura da
renegociação, os percentuais da RCL destinados ao pagamento dos
encargos da dívida seriam de 6,79% até novembro de 1998, 12% já em
dezembro desse mesmo ano, 12,5% no ano de 1999, e 13% a partir do
ano 2000. A redução dos percentuais poderia ser concedida pelo menos em um período de ajuste das contas, voltando para o valor acorda-
8
Sobre esse ponto, ver Oliveira (2006) e Riani e Andrade (2006).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
433
do posteriormente. Vale ressaltar ainda que a dívida foi financiada em
um período de 30 anos;
b) revisão do índice que corrige a dívida estadual — o índice aplicado
como corretor é o IGP-DI, que é mais sensível a mudanças no câmbio
e na taxa de juros. A mudança para o Índice de Preços ao Consumidor
Amplo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IPCA-IBGE) seria configurada como um ganho relativo, posto que esse índice é menos sensível à volatilidade cambial;
c) revisão das taxas de juros da dívida — quando da assinatura da
renegociação, ficou estabelecido que aos estados que podiam amortizar 20% da dívida no momento da assinatura seriam impostos juros de
6% ao ano ao estoque restante. Como Minas Gerais pagou somente
10%, foi aplicada ao estoque restante da dívida mineira uma taxa
de 7,5%.
Essas mudanças, embora representem um ganho considerável para as
finanças estaduais, não são de fácil solução. Dos problemas a serem enfrentados, destacam-se as limitações e as proibições impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Como já observado, a LRF proíbe ao Governo Federal conceder
novos refinanciamentos e modificar os contratos em vigor relacionados à dívida
anteriormente contraída por qualquer ente da Federação. Uma outra questão seria
o maior comprometimento do orçamento fiscal do Governo Federal para a geração de resultados primários positivos. A queda na participação dos estados nessa conta representa o aumento da participação do Governo Federal. Como esse
aumento só pode acontecer através do aumento da carga tributária, ou através de
cortes ainda maiores no orçamento, que já se encontra bastante comprometido, o
ajuste pelo lado da dívida é um caminho extremamente difícil de ser percorrido.
3.2 A Lei de Responsabilidade Fiscal e o comportamento das finanças de Minas Gerais
O objetivo desta seção é avaliar os impactos da Lei de Responsabilidade
Fiscal sobre as finanças do Estado. Para isso, utilizam-se alguns indicadores
que permitem avaliar a situação das finanças públicas estaduais de uma maneira geral e, em particular, qual é a situação financeira estadual à luz das limitações impostas pela referida lei.9
9
Alguns dos indicadores aqui utilizados são baseados no trabalho de Garson (2001). Em que
pese o fato de esses indicadores terem sido construídos para uma análise das finanças
municipais, não há nenhuma restrição à sua aplicabilidade às contas estaduais.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
434
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
A análise divide-se em duas partes: na primeira, examinam-se as finanças
estaduais, com base nos Indicadores de Estrutura Financeira (IEFs), ao passo
que, na segunda, se analisam os resultados apresentados pelos Indicadores de
Gestão Fiscal (IGFs).
Os Indicadores de Estrutura Financeira permitem avaliar:
a) a estabilidade dos recursos disponíveis — a relação entre a RCL e
os recursos que são considerados “estáveis”, como os advindos da
receita tributária própria e de transferências constitucionais, é um importante indicador, pois permite ao governante realizar, com mais segurança, projetos de longo prazo, uma vez que, no momento do
planejamento, tem uma boa estimativa das receitas de que pode dispor
para a realização dos projetos;
b) o grau de autonomia — quanto da receita disponível é advindo de
receitas próprias, em geral, receitas tributárias próprias, concedendo
ao ente federado maiores segurança e autonomia na implementação de
suas políticas. Esse indicador é fundamental para a implementação de
projetos que se configurem como de despesa continuada. Vale,
ademais, como um indicador de como o ente em questão pode responder a mudanças nas regras de repasses de recursos;
c) o grau de cobertura das despesas — conhecer a relação entre a
receita disponível e as despesas permanentes (despesas com pessoal
e encargos e com os juros e encargos da dívida) permite ao ente federado
o conhecimento de quanto sua receita disponível está comprometida
com despesas permanentes e, assim, quanto de seus recursos ele
pode direcionar às outras áreas em que atua.
Como se pode observar pela Tabela 4, o IEF1 para o período mostra uma
melhora na estabilidade das finanças do Estado. A queda desse indicador ao
longo do período evidencia que o Estado compromete parcelas cada vez menores de suas principais fontes de arrecadação com as deduções constitucionais
que servem de base para o cálculo da RCL, a principal delas é a rubrica transferências a municípios. Isso significa um crescimento relativo da RCL, o que se
configura como um ponto positivo, uma vez que esse dado é o principal indicador usado para o estabelecimento dos limites de gastos. Ressalte-se que, desde 1999, esse indicador apresentou uma queda significativa e, a partir de
2000, se manteve estável, revelando que a LRF exerceu um papel importante
como disciplinador do ajuste fiscal, independentemente do governo em questão.10
10
O período abarca o Governo Itamar Franco (1998-02) e o primeiro Governo Aécio Neves
(2003-06).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
435
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
Tabela 4
Indicadores de Estrutura Financeira (IEFs) de Minas Gerais — 1995-06
INDICADORES
Receita tributária mais transferências constitucionais/receita
corrente líquida (IEF1) ............
Receita tributária própria/receita disponível (IEF2) .................
Despesa com pessoal/receita
disponível (IEF3) .....................
Encargos da dívida/receita
disponível (IEF4) ....................
Investimento e inversão financeira/receita disponível (IEF5)
INDICADORES
Receita tributária mais transferências constitucionais/receita
corrente líquida (IEF1) ...........
Receita tributária própria/receita disponível (IEF2) ............
Despesa com pessoal/receita
disponível (IEF3) ....................
Encargos da dívida/receita
disponível (IEF4) ....................
Investimento e inversão financeira/receita disponível (IEF5)
1995
1996
1997
1998
1999
2000
1,25
1,23
1,19
1,15
1,17
1,01
0,74
0,74
0,42
0,70
0,70
0,37
0,56
0,56
0,31
0,43
0,43
0,24
0,87
0,87
0,68
0,68
0,68
0,35
0,08
0,06
0,05
0,03
0,11
0,07
0,02
0,02
0,05
0,30
0,02
0,08
2001
2002
2003
2004
2005
2006
1,02
1,03
1,02
1,04
1,02
1,09
0,75
0,75
0,81
0,78
0,78
0,79
0,46
0,61
0,59
0,54
0,49
0,54
0,09
0,07
0,08
0,07
0,07
0,08
0,08
0,10
0,07
0,08
0,12
0,19
FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional.
Com relação ao IEF2, observa-se uma certa estabilidade no período. As
quedas apresentadas em 1997 e 1998 podem ser explicadas pelo grande valor
apresentado pela rubrica operações de crédito nesses dois anos, o que fez
aumentar o volume das receitas disponíveis. O alto valor apresentado para o
ano de 1999, por outro lado, pode ser explicado pela grande queda na mesma
rubrica, possivelmente um reflexo negativo da moratória da dívida nesse mesmo ano. A participação elevada das receitas tributárias próprias nas receitas
disponíveis, em torno de 75% no período, evidencia uma maior autonomia do
Governo Estadual com relação à implementação de seus projetos. Todavia esse
valor, embora considerável, não necessariamente indica que o Estado esteja
aproveitando todo o seu potencial tributário. Vale dizer, esse indicador não é
capaz de captar se o Estado está aproveitando, ou não, o seu potencial tributá-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
436
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
rio. Para isso, seria necessário outro tipo de análise, que foge ao escopo do
objeto aqui tratado.
O IEF3 e o IEF4, relacionados às variáveis de despesa, mostram que o
Estado de Minas Gerais apresentou um valor médio em torno de 62% de comprometimento da receita disponível com a despesa com pessoal e com os
encargos da dívida estadual. Esse número pode ser considerado bom, mas
existe um fator de extrema importância que não é considerado no cálculo do
IEF3, qual seja, as despesas previdenciárias, e essa é uma questão relevante
no equacionamento das finanças estaduais mineiras. Com relação aos gastos
com os encargos da dívida, é importante considerar o acordo de renegociação
da dívida em 1998 e os efeitos, após 2000, das limitações de operação de
crédito. Mesmo esse indicador sendo estável ao longo do período, com uma
grande queda em 1998, em função da moratória, o ponto a ser destacado é a
importância das receitas de capital na composição das receitas disponíveis.
Antes de 2000, estas tinham um peso relativamente grande, o que representava
um pequeno comprometimento relativo da receita corrente líquida com o pagamento da dívida, sendo o ano de 1999 atípico em função da moratória. Com a
promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, observou-se uma
grande queda nas receitas de capital. Assim, a estabilidade nesse indicador
mostra que o Estado gastou, relativamente, parcelas cada vez maiores de sua
receita corrente líquida com os encargos da dívida.
Finalmente, o IEF5 analisa o volume de investimentos realizados. Observa-se que o Estado apresentou, no período, indicadores muito baixos. O grande
volume de investimentos vistos em 1998, 2002 e 2005 pode ser relacionado,
novamente, com as eleições. Desconsiderando esses anos, vê-se que o Estado de Minas Gerais disponibilizou parcelas muito pequenas de sua receita disponível para a realização de investimentos. Um provável resultado dessa política de investimentos é o significativo déficit em infra-estrutura que o Estado
apresenta atualmente, déficit este que se coloca como um dos principais
entraves ao crescimento do Estado de Minas Gerais.
A Tabela 5 apresenta os Indicadores de Gestão Fiscal para Minas Gerais,
no período 2000-06, e demonstra mais claramente a situação financeira do Estado em função das limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Os resultados apresentados pelo IGF1 indicam que o Estado se encontra
com valores elevados da despesa de pessoal total. Esse resultado, no entanto,
merece uma consideração. Pelos estritos critérios apresentados pela LRF, o
Estado de Minas Gerais encontrava-se dentro dos limites, para os anos de 2004
e 2005, da relação despesa com pessoal e receita corrente líquida, conforme o
IGF4. Com efeito, se incluídas, como no cálculo do IGF1, as despesas
previdenciárias, os valores alcançam 0,73, 0,66 e 0,83 para 2004, 2005 e 2006
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
437
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
respectivamente. Vale dizer, não obstante as despesas de pessoal total, exclusive
Previdência, revelarem um resultado dentro dos limites da LRF, que o IGF1
“acende a luz vermelha”, principalmente em 2006, uma vez que a inclusão das
despesas com a Previdência aumentou sua participação nas despesas correntes, como mostra a Tabela 2.
Tabela 5
Indicadores de Gestão Financeira (IGFs) de Minas Gerais —2000-06
INDICADORES
Despesa pessoal total/receita corrente liquida (IGF1) ............
Dívida líquida consolidada/receita corrente líquida (IGF2) ........
Receita de operação
de crédito/despesa
de capital (IGF3) .......
Despesa com pessoal/receita corrente
líquida (IGF4) ............
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
0,46
0,56
0,77
0,69
0,73
0,66
0,83
3,02
2,70
2,29
2,30
1,99
1,78
1,88
0,08
0,03
0,04
0,01
0,01
0,02
0,08
0,39
0,49
0,68
0,62
0,55
0,51
0,58
FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional.
O IGF2, apesar da considerável melhora no período, revela que o Estado
de Minas Gerais ainda se encontra em uma situação crítica. Sendo 2 o limite
estabelecido pelo Senado para esse indicador, percebe-se que o ajuste ainda é
frágil. Os programas de ajuste fiscal implementados parecem apresentar resultados positivos. Contudo a evolução no período da rubrica restos a pagar mostra
que a aparente melhora na relação dívida corrente líquida/receita corrente líquida se trata de uma estratégia contábil: a postergação de pagamentos para um
equacionamento momentâneo do balanço patrimonial. Essa prática, contudo,
não é tratada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.11 De 2002 a 2005, os restos
a pagar aumentaram em quase 40% em termos nominais.
11
O item restos a pagar é abordado no Art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
438
Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Por último, o comportamento do IGF3 evidencia a limitação que a Lei de
Responsabilidade Fiscal impõe aos estados com relação às operações de
crédito. Esse indicador mostra a pequena importância dessa rubrica na relação
com as despesas de capital. Além disso, essa relação ainda tem apresentado
queda ao longo do período, chegando a representar somente 2% das despesas
de capital em 2005. O resultado disso é que as despesas de capital, mesmo não
apresentando um grande crescimento no período, passaram a absorver cada
vez mais recursos advindos da receita corrente, o que prejudica as finanças
estaduais, ao diminuir relativamente a receita corrente líquida do Estado.
4 Considerações finais
A reorganização do cenário econômico e as mudanças econômicas e
políticas ocorridas, nos últimos anos, no País impõem aos governos, em todos
os níveis, a necessidade de reestruturações. Em alguns casos, são necessárias profundas transformações, para que o setor público tenha condições de
atender às demandas sociais e de desenvolver políticas eficientes, que busquem promover o desenvolvimento e melhorar a distribuição da renda. Nesse
sentido, a resolução dos problemas fiscais é um ponto crucial, uma vez que as
limitações impostas pela falta de recursos restringem a capacidade de atuação
dos governos na economia.
O Estado de Minas Gerais, nesse aspecto, encontra-se em situação delicada. Em que pese uma relativa melhora nos últimos anos, como demonstrado
pelos IEFs, os efeitos negativos causados pela renegociação da dívida estadual em 1998 e as limitações impostas pela LRF, como revelam os IGFs, evidenciam a difícil situação fiscal do Estado.
Outro agravante desse quadro é o fato de serem bastante restritos os
campos de atuação do Estado de Minas Gerais, tanto para a implementação de
suas políticas quanto para a reestruturação de suas finanças, em função, principalmente, da estrutura atual do sistema federativo e das limitações impostas
pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Além disso, como já referido, uma análise inadequada ou pouco acurada
das contas estaduais pode gerar interpretações enganosas, camuflando situações de desequilíbrio. É exatamente no intuito de esclarecer o significado das
contas do Estado de Minas Gerais que se fundamenta a importância deste
artigo, que colabora para uma análise mais clara da atual situação fiscal
do Estado.
Contudo esses objetivos não podem ser deixados em segundo plano, já
que é de fundamental importância a presença do setor público no incentivo e na
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:...
439
promoção do desenvolvimento, em âmbito tanto estadual como nacional. Em
razão das transformações econômicas recentes, pode ser que o setor público
se disponha não como interventor direto, como já ocorreu em outros períodos,
mas, sim, como regulador, coordenador e incentivador das potencialidades
locais, regionais e nacionais. De toda forma, atuações nesse sentido são imprescindíveis, requerendo soluções prévias não só para o desequilíbrio fiscal,
como também para o déficit de investimentos. Esses são desafios ainda
a serem superados.
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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
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Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
443
A Lei de Responsabilidade Fiscal
e as microrregiões do Estado do
Rio Grande do Sul: uma análise empírica*
Gilberto de Oliveira Veloso**
Anderson Mutter Teixeira***
Professor Adjunto do Departamento de
Ciências Econômicas da UFSM-RS
Aluno do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Econômicas da Universidade
Estadual de Maringá (UEM-PR/PCE)
Resumo
Após a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os municípios
brasileiros foram submetidos a uma disciplina fiscal, e os resultados decorrentes dessa nova configuração institucional são mostrados pelos balanços orçamentários entregues à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) a partir do ano
2000. Diagnósticos iniciais, em nível nacional, indicam resultados favoráveis ao
cumprimento da nova lei pelos municípios. O objetivo geral deste trabalho é
verificar se os municípios do Estado do Rio Grande do Sul corroboraram a hipótese de alinhamento à LRF, relativamente ao estipulado para o Poder Executivo,
do índice de gastos com pessoal e receita corrente líquida. Utilizou-se, para
esse fim, um modelo econométrico do tipo “logit”, instrumentalizando-o por
microrregiões (Coredes) do Estado do Rio Grande do Sul, para os anos 2001 e
2002. Os resultados indicaram haver prudência nas políticas fiscais dos municípios.
Palavras-chave
Lei de Responsabilidade Fiscal; índice de despesa com pessoal; receita
corrente líquida; logit.
* Pesquisa fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
(FAPERGS).
Artigo recebido em fev. 2007 e aceito para publicação em jun. 2007.
** E-mail: [email protected]
*** E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
444
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
Abstract
After the implantation the of Fiscal Responsibility Law (LRF) the Brazilian municipal districts were submitted to a fiscal discipline and the results, after introducing
the new institutional configuration, were shown by the budget accounting given
for the Clerkship of the National Treasure (STN) starting from the year 2000. On
initial analysis, on a national level, were indicated favorable results for the
execution of the new Law for the municipal districts. The general objective of this
work was to verify if the municipal districts of the Rio Grande do Sul state
corroborated relatively to the alignment hypothesis of LRF stipulated for the
Executive Power of the index of personnel expenses with liquid current revenue.
It was used, for that goal, a econometric logit model for microregiões (COREDES)
of the Rio Grande do Sul state for the years of 2001 and 2002. The results
indicated some prudence in the fiscal policies of the gaúcho municipal districts.
Key words
Fiscal Responsibility Law; index of personnel expenses; liquid current
revenue; logit.
Classificação JEL:
H77.
1 Introdução
O aprofundamento da crise financeira internacional e seus reflexos na economia brasileira reabriram a discussão sobre a necessidade de ser garantido um
ajuste com resultado primário compatível com as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, não entrando no mérito da relação entre o
sistema financeiro internacional e o Brasil e com o advento e em decorrência do
Plano Real, alguns fatores vieram à tona, como o fim do financiamento inflacionário, que permitia o adiamento de ajustes necessários às receitas e, principalmente, às despesas.
Num primeiro momento, estados e municípios perderam cifras importantes
de recursos decorrentes das transferências constitucionais, mediante o Fundo
Social de Emergência, prorrogado, depois, como Fundo de Estabilização Fiscal
(FEF). A tudo isso se somam os efeitos decorrentes dos desdobramentos da
Lei Kandir, de 1996, que jogou todo o ônus da desoneração de exportações e de
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
445
produtos básicos para os estados brasileiros, o difícil desempenho das receitas
públicas, em conseqüência do quadro econômico dos últimos anos, e a
prevalência de uma gama de direitos adquiridos, benefícios corporativos e exagerados incentivos fiscais.
Cabe ainda destacar que os dados do Banco Central publicados no Boletim das Finanças Estaduais e Municipais para maio de 1999 confirmam a
importante contribuição de alguns estados brasileiros no cômputo da dívida das
Administrações Direta e Indireta: o Estado de São Paulo destaca-se dos demais, com 39% do total, seguido pelos Estados do Rio de Janeiro, com 13%; de
Minas Gerais, com 10%; do Rio Grande do Sul, com 7%; e o restante totalizando
a participação dos demais estados da Federação (31%). Na esteira do elevado
grau de irresponsabilidade fiscal do Estado do Rio Grande do Sul, os municípios
dessa unidade da Federação apresentavam uma situação fiscal, no mínimo,
preocupante.
Conforme os dados da Tabela 1 observa-se que, nos anos de 1999 e 2000,
era elevado o número de municípios que apresentavam déficit, fruto de uma
moldura institucional fraca e flexível no que tange ao grau de gastos com
pessoal e a endividamentos.
Tendo esgotado praticamente todos os instrumentos constitucionais para
limitar o endividamento de estados e municípios, o Governo Federal preparou e
aprovou uma nova lei para as contas públicas, que substituiu a Lei n° 4.320, em
vigor desde 1964, a qual definia conceitos e mecanismos de equilíbrio fiscal
com um caráter institucional, a fim de tornar o ajuste permanente e amplo, afetando
a forma de elaboração dos orçamentos públicos em todas as esferas de governo. A Lei Complementar nº 101 (Brasil, 2000), aprovada em 4 de maio de 2000,
define princípios básicos de responsabilidade, derivados da noção de prudência
na gestão de recursos públicos, bem como define limites específicos referentes
a variáveis como nível de endividamento, déficit, gastos e receitas anuais. Em
particular, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Brasil, 2000) estabelece,
para o Executivo, conforme art. 19, alínea b da Lei Complementar n° 101 (Brasil,
2000), no que tange aos municípios, o limite de 54% para o gasto com pessoal
no cômputo da receita corrente líquida. Nesse sentido, objetiva-se verificar a
relação existente entre configurações institucionais e resultados de política
econômica; mais especificamente, a relação entre a instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000), a partir do índice de despesa com pessoal e
receita corrente líquida (DP/RCL), e o comportamento fiscal dos municípios do
Estado do Rio Grande do Sul nos anos 2001 e 2002, medida pela probabilidade
de os municípios incorrerem em déficit .
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
446
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
Assume-se que esse arranjo institucional é fundamental na explicação do
comportamento fiscal equilibrado da maioria dos municípios do Estado do Rio
Grande do Sul, verificado a partir do ano 2000, conforme dados da Tabela 1.
Assim, além desta breve Introdução, o presente trabalho está dividido em
cinco seções: na seção seguinte, é realizada uma breve análise sobre alguns
modelos da economia política do déficit público; na seção subseqüente, apresentam-se algumas evidências empíricas sobre esses modelos; a metodologia
é apresentada na quarta seção; os resultados obtidos são assunto da quinta
seção; e, finalmente, são apresentadas as principais conclusões.
Tabela 1
Situação fiscal dos municípios do Rio Grande do Sul — 1999-02
1999
DISCRIMINAÇÃO
2000
2001
2002
Número
%
Número
%
Número
%
Número
%
Superávit ..
233
49,9
285
61,02
469
94,56
428
86,30
Déficit .......
234
50,1
182
38,98
27
5,44
68
13,70
TOTAL .....
467
100
467
100
496
100
496
100
FONTE: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.
2 Os determinantes institucionais e políticos
do déficit público
Os resultados subótimos da política fiscal podem estar associados a variáveis não econômicas, como regras e procedimentos que condicionam o resultado da política fiscal. Tais condicionamentos, que se adicionam às variáveis
econômicas, são os de aspectos institucionais e políticos. Desse modo, emergem problemas, como de recursos comuns, representação política, arranjos
institucionais e produto fiscal.
2.1 Recursos comuns
O problema da ação coletiva é originado toda vez que as ações de um
indivíduo afetam o bem-estar de um grupo. A racionalidade do indivíduo impede
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que ele se dedique à produção de bens públicos, uma vez que os custos são
maiores que os benefícios derivados da participação na produção de tais bens
(Veloso, 2001).
Assim, supondo que o orçamento seja equilibrado no sentido econômico, o
gasto público deverá ser financiado por impostosτ . Desse modo, existirá recurso limitado para satisfazer as necessidades ilimitadas.
Em conseqüência disso, o consumo na sociedade divide-se em bens privados CJ e bens públicos gJ. O modelo assume a hipótese de que os bens
públicos são financiados por um fundo comum de receitas tributárias, com iguais
contribuições de cada grupo, e de que a alíquota tributária é residualmente determinada.
c
J
= y −τ = y − g
J
J
(1)
No entendimento de Nunes e Nunes (2003, p. 3), cada grupo procura
maximizar sua utilidade WJ (g) com respeito a gJ, considerando os gastos de
equilíbrio de outros grupos como dados. Assim, a utilidade no grupo J aumenta
com o consumo de bens privados e públicos e pode ser escrita como:
W (g ) = y − τ + H
J
I
I
N + H  g J ,
 J  = y −J
g
g
∑
 
  N
N
(2)
onde há I grupos, N é o tamanho da população e
é o tamanho do grupo J.
O segundo termo da direita da equação (2) representa o somatório do gasto
público dos grupos, ponderado pela sua participação na população, porém admite-se que a carga tributária seja distribuída uniformemente entre os indivíduos e
os grupos mais numerosos; logo, pagarão mais impostos (Nunes; Nunes, 2003).
Ainda, o equilíbrio é o vetor
g
D
( onde o subscrito D é para gasto
descentralizado), e, então, pode-se verificar que o gasto de equilíbrio satisfaz a:
J
J ,D
H g  g  − 1 = NN − 1
(3)
Na equação (3), deve-se notar que o lado direito é negativo, todos os grupos gastam mais do que seria considerado o ótimo social definido —
g
J ,D
f
*
g para todo J —, bem como grupos pequenos gastam mais do que
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Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
precisam em grande medida. Trata-se do problema do fundo comum: cada grupo
procura consumir o máximo do bem público e paga apenas uma fração do custo
marginal social
N
J
, através de alíquotas tributárias. Esse comportamento
N
determina a ação de um free rider e é de importância ímpar no contexto da
política fiscal. Velasco (1997; 1997a) postula que países, ao incorrerem em excessos de gastos relativamente às receitas públicas, podem servir de
embasamento empírico ao problema destacado.
2.2 O problema dos recursos comuns
e a representação política
Numa democracia, a vontade popular é manifestada mediante o uso do
voto e sinaliza a direção da ação coletiva futura. Entretanto essa vontade coletiva
é, muitas vezes, subordinada à ação de um pequeno número de pessoas, que
decidem e implementam, em última instância, tal vontade. A direção da ação
individual ou de um grupo específico pode resultar de incentivos apropriados, de
tal forma a tornar tais ações condizentes com a ação coletiva.
Em decorrência de o capital da maioria das empresas estatais ser de difícil
mensuração correta quanto aos seus valores e, em especial, à quota de cada
indivíduo, os problemas de incentivos adequados aos políticos e a funcionários
públicos de carreira e a falta de informação dos cidadãos sobressaem-se. A
falta de controle dessas ações, que podem ser diversas relativamente ao interesse geral, alimenta e incentiva o surgimento de grupos de interesses, a corrupção e a discrição na conduta do resultado fiscal.
Tais divergências entre políticas públicas e as preferências coletivas podem ser analisadas mediante o uso do enfoque principal-agente. Por exemplo,
ao se cruzarem as preferências da maioria dos eleitores (o principal) e o resultado da implementação política decorrente da ação do eleito e representante dos
eleitores (o agente), a existência de interesses contrários e/ou divergentes, como
também de informações assimétricas entre partes envolvidas num jogo de interesses, pode determinar dificuldades nessa relação.
A falta de informação é um problema que diz respeito não somente aos
cidadãos como também aos políticos. Em decorrência dos elevados custos de
obtenção da informação pertinente e dos escassos benefícios individuais, em
alguns casos, é racional que os eleitores e os políticos não disponham da informação necessária e criem condições para o surgimento de grupos de interes-
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ses organizados, que controlam a ação dos políticos, garantindo, também, a
informação necessária à aprovação de matéria de seus interesses.
Desse modo, o enfoque principal-agente da relação Legislativo/Executivo
tem explicado o sobredimensionamento do produto fiscal, dos déficits fiscais e
dos gastos públicos excessivos, cuja composição é impactada por variáveis
políticas e institucionais e não corresponde aos critérios de bem-estar geral, e,
para melhorar a eficácia das políticas, seria necessário intervir em nível
institucional (Alesina; Perotti, 1995).
2.3 Arranjos institucionais e produto fiscal
O problema de recursos comuns e de representação política está vinculado aos problemas de ilusão fiscal e assimetria de informação, o que conduz à
ação fiscal imprudente e a resultados fiscais não ótimos. As regras e os procedimentos associados a determinados resultados fiscais têm sido amplamente
estudados. A idéia central aplicada a essa literatura é a de que, quanto maior for
o poder do Executivo relativamente ao do Legislativo, maior será a disciplina
fiscal, haja vista que o Executivo é capaz de internalizar mais os custos decorrentes da alocação dos recursos comuns relativamente ao Legislativo.
Nesse sentido, Alesina, Hausmann e Stein (1996) analisaram alguns
casos de países latino-americanos do ponto de vista de sua institucionalidade
fiscal, segundo um índice medidor de sua maior ou menor propensão à ação
fiscal imprudente, verificando que os piores índices eram o de El Salvador e o
do Peru. Ainda no contexto dos países latino-americanos, Sanguinetti e Tommasi
(1997) e Jones, Sanguinetti e Tommasi (1999) construíram um índice, visando
verificar o grau de institucionalidade fiscal para os estados argentinos, segundo
a metodologia empregada por Alesina e Perotti (1996), tendo verificado uma
correlação negativa entre o índice e as regras, além de procedimentos fiscais
não ótimos nos diferentes estados.
Segundo alguns autores brasileiros, a idéia de um forte Poder Executivo
como disciplinador da ação fiscal não corresponde. Diniz (1995) e Lima e Boschi
(1995) reconhecem como fonte dessa imprudência fiscal a assimetria entre os
Poderes Executivo e Legislativo, originada no modelo estatista da década de
30, não obstante a expansão das prerrogativas do Congresso Nacional após a
Constituição Federal de 1988. Tal situação foi definida como democracia delegativa
e expressa a relação principal-agente invertida, caracterizada pela baixa densidade de suas instituições, pela hipertrofia da autoridade do Presidente da República, além da fragilidade dos partidos políticos e do sistema representativo,
incluindo o Poder Legislativo. Segundo Horn (1996, p. 13), essa relação assimétrica
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Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
onera o Congresso Nacional e a sociedade como um todo, já que esse processo
favorece o clientelismo político, a corrupção e o desperdício na alocação de
recursos públicos mediante política fisiológica e legislatura ex post, direcionando
a escolha pública através de um processo não interativo e com visíveis prejuízos à democracia.
Essa literatura mais vinculada à ciência política enfatiza o efeito que a
política tem sobre as políticas públicas e, em particular, sobre os gastos, a
arrecadação e o déficit orçamentário. O enfoque mais de domínio dos economistas é o dos ciclos econômicos de origem política, como o de Nordhaus (1975).
De outro lado, grande ênfase é dada às composições de governos e, em particular, ao seu caráter dividido nos sistemas presidencialistas, vis-à-vis à falta de
capacidade do governo de realizar ajustes fiscais (Kontopoulos; Perotti, 1999).
Outras instituições de caráter político estão vinculadas aos resultados fiscais, como, por exemplo, a afiliação partidária do governo estadual relativamente ao federal. Os resultados de trabalhos empíricos indicam que essa relação
favorece ações prudentes segundo orientação federal (Jones; Sanguinetti;
Tommasi, 1999).
2.4 Regras de controle
Nos Estados Unidos, a regra de orçamento equilibrado é geral, embora seu
uso varie de estado para estado, o que torna os estados norte-americanos ricos
para evidências empíricas, de acordo com Poterba (1994; 1996).
No entendimento de Hagen (1991), os estados norte-americanos deparam-se com duas espécies de restrições fiscais sobre política: o requerimento do
orçamento equilibrado e as limitações sobre o endividamento do estado; enquanto, em decorrência da união monetária na Comunidade Européia, a regra
imposta aos países-membros, como condição de inclusão na mesma, é por
metas fiscais.
No que toca ao Brasil, cabe ao Senado Federal a função constitucional de
autorizar operações financeiras, fixar limites globais para o montante das dívidas consolidada e mobiliária e dispor sobre condições e garantias sobre operações de crédito para a União, os estados e os municípios. Entretanto todas as
medidas tomadas pelo Senado para barrar o processo de endividamento não
foram suficientes para criar um ambiente saudável na esfera fiscal.
Desse modo, emerge a Lei Complementar nº 101 (Brasil, 2000). Nessa
mesma lei, mecanismos prévios de ajuste, destinados a assegurar a observância de parâmetros de sustentabilidade da política fiscal, determinam sanções
tanto de responsabilidade quanto de caráter individual, quando tipificado ato de
irresponsabilidade fiscal.
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A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga os governantes, em todas as esferas, a instituírem e a arrecadarem todos os tributos de competência própria e
dificulta a renúncia de receita, bem como estabelece parâmetros e limites para
as despesas, dentre as quais se destaca a despesa com pessoal. Outro elemento de grande relevância que a LRF estabelece é que ela impede heranças
financeiras desastrosas de uma gestão para outra, permitindo ao governante
que assume iniciar seu mandato realizando seu plano de governo, em vez de
ficar pagando dívidas pesadas deixadas pelo seu antecessor.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000) é composta por 75 artigos, distribuídos em subseções, seções e capítulos. Desse modo, conforme o
artigo 19 da Lei Complementar 101 (Brasil, 2000), no que tange aos municípios,
são estabelecidos os seguintes dispositivos:
a) 6% para o Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas do município,
quando houver;
b) 54% para o Executivo.
Para efeito deste artigo, entende-se como órgão da esfera municipal a
Câmara de Vereadores e o Tribunal de Contas dos municípios, quando houver.
3 Algumas evidências empíricas
Velasco (1997a) desenvolveu um modelo político-econômico, que ultrapassava os limites dos modelos-padrão, de uma representação individual e de
um policymaker benevolente e que buscava maximizar o bem-estar social do
indivíduo. Foi considerada uma sociedade composta por três grupos, que se
beneficiavam, de alguma forma, da despesa do governo, e, por um competitive
fringe, que simplesmente pagava taxas e se beneficiava das despesas. Eram
pressupostos um governo fraco e dois grupos de interesses que influenciavam
as autoridades fiscais, ao proporem despesas na sua linha de interesse. Em
geral, as despesas poderiam, simplesmente, representar pressões de grupos
de interesses de dentro e de fora da burocracia estatal e poderiam ser financiadas por receitas de impostos ou pela dívida pública. É importante ressaltar que
os grupos interagiriam estrategicamente, pois compartilhariam da mesma restrição orçamentária intertemporal. Ao longo do equilíbrio do jogo dinâmico, existiria um déficit permanente, o qual seria acumulado contrariamente à vontade do
policymaker benevolente, que objetivaria maximizar o bem-estar dos grupos,
sem incorrer em dívida. A razão para o viés decorria do fato de que os recursos
líquidos do governo eram de propriedade comum dos grupos. Cada grupo pensava poder modificar parte do custo de financiamento na unidade adicional de
despesa para o outro grupo.
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Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
Essa estrutura era compatível com diferentes situações recentes de diversos países. As despesas poderiam ser propostas por autoridades fiscais, de
maneira descentralizada, representando áreas geográficas particulares, como
são os casos do Brasil e da Argentina. Igualmente, poderiam ser representadas
transferências em decorrência de situações em que empresas estatais se deparavam com restrições orçamentárias não rigorosas, como no caso do Brasil. No
caso descentralizado, o equilíbrio era ineficiente, o que conduzia a atrasos na
estabilização. Na ausência de unidade governamental de um governo único
majoritário, a sua fragmentação passava a ser uma variável institucional importante na explicação que distinguia países de baixos déficits orçamentários dos
de altos. A coalizão governamental atrasou os ajustamentos fiscais que se tornaram necessários após a explosão de déficits ocorridos em meados da década
de 70, depois do primeiro choque do petróleo em alguns países da América
Latina.
Alesina e Perotti (1995) buscaram identificar que tipos de governos eram
propensos a políticas fiscais mais ou menos flexíveis e a alcançar metas de
ajustes fiscais. Para isso, foi construída uma medida de superávit primário ajustada ciclicamente, denominada BFI (cyclically adjusted primary surplus) e
vinculada às seguintes definições: (a) uma política fiscal muito flexível estava
associada a uma política ocorrida quando o BFI decrescia mais de 1,5% do
GDP (PIB real); (b) uma política fiscal rígida ocorria, quando o BFI aumentava
mais que 1,5% do GDP; (c) um ajustamento bem-sucedido estava associado a
uma política fiscal implementada no ano t, tal que a taxa déficit/GDP no ano t+3
fosse, no mínimo, 5% menor do que a do ano t.
De uma amostra de 20 países, abrangendo o período 1960-92, os resultados obtidos obedeceram a uma classificação, conforme a estrutura do Governo
(partido único, de coalizão ou de minoria) e a orientação ideológica (esquerda,
centro ou direita). Em relação à estrutura do Governo, observou-se pouca diferença na propensão dos três tipos de se engajarem em ajustamentos fiscais;
entretanto ajustamentos fiscais iniciados por governos de coalizão caracterizaram-se por fracassos. A explicação para esse resultado é que as discordâncias
internas à coalizão, juntamente com a pressão exercida pelos vários grupos
representativos dos diferentes partidos, forçam o relaxamento da condução da
política fiscal. Por outro lado, um governo de minoria obtém uma elevada taxa de
sucesso na condução da política fiscal, sendo que, em alguns casos, a meta
especificada é reduzir o déficit público. E, em relação ao aspecto ideológico, os
dados evidenciam pouca diferença entre governos de esquerda e de direita, e o
fato mais notável observado é que os governos de centro parecem ser incapazes
de ajustar o orçamento de forma eficiente. A razão decorre da polaridade da
coalizão, já que governos de centro normalmente são constituídos por coalizões.
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Poterba (1996) buscou evidências sobre as relações entre regras de orçamento equilibrado, instituições orçamentárias e política fiscal nos estados norte-americanos. A maioria deles proíbe déficits orçamentários, mas o limite destes varia amplamente de estado para estado. Conforme dados da National
Association of State Budget Officers (NASBO) e da General Accouting Office
(GAO) utilizados pelo autor, o Estado de Vermont é o único que não tem a
exigência de orçamento equilibrado, e, conforme a NASBO, os 49 estados com
tais exigências podem ser categorizados em três grupos: (a) em 44 estados, o
Governo deve submeter-se à regra do orçamento equilibrado; (b) em 37, o
Legislativo deve aprovar o orçamento equilibrado e, nesse caso, ainda que mais
rigoroso que o anterior, permite que as receitas e as despesas reais difiram, se
as expectativas e as realizações não coincidirem, sendo possível, em alguns
estados, transferir o déficit atual para o futuro, financiando-o mediante tomada
de empréstimos; (c) a mais rigorosa regra de orçamento equilibrado combina a
exigência de aporte legal da parte do Legislativo com a proibição da transferência de endividamento para o futuro. Neste último caso, enquadram-se 24 dos 37
estados do caso anterior, onde se inclui a maioria dos pequenos estados, ao
passo que sete dos 10 maiores permitem o endividamento e sua transferência
para os anos subseqüentes. Conforme a NASBO, entre 25% e 50% das despesas de três estados foram afetadas por essas regras; entre 50% e 45% das
despesas de outros nove estados foram ajustadas pelas mesmas regras; enquanto, para os estados restantes, as regras afetaram, no mínimo, 75% de suas
despesas, sendo possível, no entanto, a existência de déficit no decorrer do
ciclo orçamentário (um ou dois anos, conforme o estado); nesses casos, a
possibilidade de contorná-lo seria por aumento dos impostos, redução das despesas, alteração da execução orçamentária mediante a revisão contábil de entradas e saídas de caixa ou obtenção de empréstimos. Outros 32 estados depararam-se com déficits previstos após a promulgação da lei e tomaram medidas
para contorná-los. As medidas de decréscimo de despesas durante o ano fiscal
responderam por 60% da redução do déficit; o aumento de impostos, por 4%; e
outras ações representaram 36% da queda do déficit.
Alesina, Roubini e Cohen (1997) consideraram evidências de 30 anos dos
países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD)
relativas à coalizão governamental. Os pesquisadores verificaram que governos
de coalizão têm tido tendências a seguir políticas fiscais mais flexíveis que
governos de partido único. Foi obtida uma regressão com base em dados cross
section, abrangendo o período 1961-93 e 13 países. A variável dependente media o déficit anual como uma mudança da taxa dívida/GDP (dbit-1). As variáveis
explicativas foram: a mudança na taxa de desemprego (dUit); a mudança na
taxa de crescimento do GDP (dyit); a mudança na taxa de juros menos a taxa
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Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
de crescimento do GDP vezes a taxa déficit/GDP defasado em um período;
uma variável dummy para capturar o aspecto eleitoral (ELEit); mais um termo de
erro (vit). Desse modo, os autores questionaram se haveria alguma modificação,
ao se supor um controle maior da estrutura governamental. Assim, foi definida a
variável que capturava o grau de fragmentação do governo (POL): POL = 0 significava governo de partido único, ou, num sistema presidencialista, com o mesmo partido presidindo o Executivo e o Legislativo; POL = 1 significava um governo parlamentarista de coalizão com dois partidos, ou, num sistema
presidencialista, um partido dirigindo o Executivo, o outro, o Legislativo; POL = 2
significava uma coalizão governamental com dois ou mais partidos-membros;
POL = 3 significava um governo de minoria parlamentar. Diante dessas definições, o objetivo era capturar o grau de fragmentação na estrutura governamental. Os resultados dessa regressão indicaram que os déficits ocorreram após o
choque do petróleo e que a fragmentação do Governo não criou déficits, mas atrasou o ajustamento fiscal requerido em decorrência do choque do petróleo.
Sanguinetti e Tommasi (1997) analisaram os determinantes econômicos e
institucionais dos déficits nas províncias argentinas. O objetivo do trabalho era
estudar os determinantes da política fiscal, durante o período de 1983-95, na
Argentina, num contexto analítico mais amplo quanto às finanças públicas provinciais, por considerarem, adicionalmente aos fatores econômicos, aspectos
institucionais e políticos. A grande variedade no que se refere a essas características institucionais poderia criar dificuldades na coordenação de esforços entre
diferentes níveis de governo, para obterem ajustes fiscal e macroeconômico,
esforço este não perseguido em nível provincial. O modo como esses
condicionantes extra-econômicos afetaram os incentivos e a conduta dos responsáveis pela política fiscal provincial foi apreendido pelo enfoque dos recursos comuns ou de ação coletiva (Common Pool), problema este que pode aumentar ou diminuir conforme os arranjos institucionais.
A análise empírica baseou-se na estimação de um modelo de equações
simultâneas para receita e despesa provinciais, mediante informações que constituíram um painel com 23 províncias argentinas, no período 1985-95. A hipótese central do modelo era a de que havia uma co-existência entre as decisões de
gasto e de arrecadação local e o problema de recursos comuns criado pelo
regime de co-participação federal de impostos, de regras e procedimentos provinciais, e de diversas configurações políticas e sua interação com as variáveis
institucionais.
Do ponto de vista de variáveis institucionais, com base na conduta fiscal
agregada e desagregada das províncias quanto a déficits primários, esforços
tributários e níveis de endividamento, foi proposto um índice de desempenho
fiscal, para classificar as províncias de acordo com sua melhor ou pior
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performance fiscal. Esse índice foi associado à existência, ou não, de regras
fiscais, sendo, então, definido o índice de institucionalidade fiscal (IIF). A essa
variável institucional foi somado um conjunto de variáveis políticas consideradas relevantes quanto ao produto fiscal provincial, como a presença de governo
dividido (maioria legislativa e distinta do Governo provincial), a existência de um
Congresso uni ou bicameral, a existência de legislação eleitoral e a identificação do partido do Governo vis-à-vis ao do Presidente.
Os resultados evidenciaram que as decisões de arrecadação e de gasto
não foram influenciadas pela necessidade de ajustes em face de déficits ou
endividamento do passado, ao mesmo tempo em que as despesas magnificaram
o comportamento das receitas provinciais. A variável política que captava a
maior ou menor busca por recursos comuns foi especificada, qualitativamente,
como afiliação partidária do Governador (igual a 1, se coincidisse com a do
Presidente; zero para outros casos). Quando essa variável foi introduzida na
equação do gasto, o coeficiente estimado foi negativo e significativo, o que
implicou que, no período considerado, governos estaduais de mesma afiliação
partidária do Presidente gastaram menos.
Outra variável política considerada foi o Governo dividido. Os resultados
obtidos mostraram que essa variável impactou negativa e significativamente
nas decisões de gastos de receitas provinciais. E, por fim, foi analisado o ciclo
eleitoral, tanto o presidencial como o de governador, que teve impacto nas decisões de arrecadação e de gasto. As regressões mostraram que, nos anos de
eleição de governador, o gasto provincial per capita se elevou, o mesmo acontecendo em relação ao ciclo presidencial, porém em menor magnitude.
Kontopoulos e Perotti (1999) analisaram, com base em dados de painel de
20 países da OECD, o papel da fragmentação governamental e o resultado
fiscal decorrente. A hipótese foi a de que os vários grupos ou agentes que
participavam da tomada de decisão levavam em consideração os seus interesses e os de seus eleitores, e, com base na decisão de maioria, cada grupo
demandava uma porção do orçamento, o que determinava o aumento da despesa e do déficit. Para determinado número de agentes ou grupos envolvidos na
tomada de decisão, foram levados em consideração o Legislativo e o Executivo;
as instituições mais representativas nessas instâncias de decisões foram os partidos políticos e o número de ministros respectivamente. O resultado do modelo
econométrico mostrou que o número de ministros era significativo e determinante
do déficit e, adicionalmente, que seu efeito ocorria mediante a despesa.
Jones, Sanguinetti e Tommasi (1999) buscaram evidências dos efeitos de
variáveis políticas e institucionais sobre as despesas do setor público, em 23
províncias argentinas, entre 1985 e 1995. Foi enfatizada a despesa e não as
receitas, por duas razões: a primeira, em virtude da existência de um efeito de
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
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Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
tamanho-padrão, que, sob o suposto equilíbrio orçamentário, conduz à previsão
que enfatiza que, quanto maior for a despesa, maior será a receita, centralizando qualquer outra consideração; a segunda, porque existem externalidades, através das províncias, que conduzem os seus governos a superestimarem as
despesas e a subestimarem as receitas, o que é conhecido como tax expenditures.
Na visão comum, os indivíduos e as instituições eleitas para representações
regionais têm uma maior tendência a agir como free riders sobre o bem coletivo
de prudência fiscal que indivíduos e instituições indicadas. Três hipóteses foram
levantadas: primeira, nas províncias onde o Governador pertencia ao mesmo
partido do Presidente, haveria menor despesa pública per capita; segunda, nas
províncias governadas pelos peronistas e por governo radicais, os níveis de
despesas públicas per capita não difeririam; por fim, províncias onde existisse
governo dividido teriam maiores despesas públicas per capita que aquelas onde
o governo fosse unificado.
A análise empírica considerou uma base de dados referentes a 23 estados
e a 11 anos. A variável dependente considerada foi a despesa do setor público
per capita na província, enquanto as variáveis de controle consideradas foram
as transferências nacionais, o consumo de energia (proxy do PIB da província),
o desemprego, o déficit primário defasado e as transferências nacionais. Para
testar as três hipóteses, foram levados em conta os efeitos de quatro variáveis
político-institucionais sobre a despesa per capita: (a) partido do Presidente; (b)
afiliação partidária do Governador, recebendo código 1, quando a província era
governada por um dos partidos nacionais de centro-esquerda, e zero, em caso
contrário; (c) Governo dividido, a variável política considerada, definido como a
situação na qual o partido do Governo não tinha maioria no sistema unicameral,
ou ambos os casos no sistema bicameral; (d) Governo único considerados todos os demais casos. Os anos em que o Governo era dividido receberam código
1, ao passo que governos únicos receberam código 0. Do total das 214 províncias-ano, governos divididos totalizaram 42 (18%), e governo unificados representaram as demais 172 províncias (82%).
A regressão confirmou a primeira hipótese, de que as províncias governadas por partidos de afiliação do Presidente gastam 65 pesos per capita menos
do que se o Governador fosse de partido de oposição; a segunda hipótese é
suportada, em certa medida, pelos dados. Um resultado positivo fraco para a
variável de afiliação partidária do Governador indica que, mantidos outros fatores constantes, não existe diferença significativa na despesa per capita entre
províncias que foram governadas por um membro da União Cívica Radical (UCR)
e províncias que foram por um membro do Partido Peronista. Um resultado significativo, mas que não faz parte da segunda hipótese, é que, entre províncias
que foram governadas por partidos de centro-direita e aquelas que foram gover-
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nadas pelo Partido Peronista ou da UCR, mantidos outros fatores constantes,
as províncias administradas por partidos de centro-direita gastam significativamente menos (130 pesos per capita) que as administradas pelo Partido Peronista.
A terceira hipótese não foi verificada para a despesa per capita, e também o
coeficiente estimado negativo indica que a presença do Governo dividido reduz
a despesa, ainda que não estatisticamente significativa. Uma possível explicação para a presença ou a ausência fraca do efeito do Governo dividido nas
províncias da Argentina seria decorrente da relação entre governos das províncias e da Nação sob um ambiente de desequilíbrio fiscal.
Sobre as instituições orçamentárias, foi frisado que não houve, no período
considerado, variações relevantes entre províncias, mas que seria construído
um índice na linha do proposto por Hagen (1991) e Alesina, Hausmann e Stein
(1996). Foram considerados seis itens na construção do índice de
institucionalização fiscal para as 23 províncias, a saber: (a) a força do Executivo vis-à-vis ao Legislativo na elaboração do orçamento; (b) a extensão das
limitações de endividamento sobre as províncias; (c) a habilidade das
municipalidades dentro das províncias para tomar emprestado dinheiro; (d) a
autonomia/poder das agências de auditoria das províncias; (e) os incentivos
para prudência fiscal na relação província/município quanto à concordância da
distribuição da receita; e (f) a presença de subsídios promocionais na Constituição. Os resultados obtidos via regressão do índice de institucionalidade fiscal
mostraram que altos índices de institucionalização fiscal levaram a pequenos
déficits.
4 Metodologia
Em referência ao objetivo de verificar a probabilidade de sucesso da LRF
relativamente ao que a mesma institui em seu artigo 19, alínea b, foi utilizado
um modelo econométrico de tipo logit, onde a variável dependente era a probabilidade de os municípios assumirem déficit, e a variável independente, o índice
decorrente da divisão da despesa com pessoal e receita corrente líquida
( DP
RCL ).
4.1 Definição geral do modelo logit
Seja
y =β x
,
i
,
i
e
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
458
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
f
(y
i
= 1/
,
x i,β
) ( )
=Ω
xβ
,
a probabilidade condicional a
x
,
e
i
de o
evento ocorrer, e
f
( y = 0/ x ) = 1 − Ω ( x β )
,
,
,β
i
i
de o evento não ocorrer, onde
conjunta e Ω =
1
,
xe
a probabilidade condicional a
i
β
é a função de distribuição de probabilidade
(1 + exp ( y ))
e
i 1, 2,..., n, , β =
( β , β ,..., β )
1
2
k
i
x
é um vetor de parâmetros desconhecidos kx1 , e i é um vetor de variáveis
explicativas
.
A função de distribuição de probabilidades Ω pode ser escrita da forma
Ω
( x β ) x (1 − Ω ( x β ))
,
,
_
O efeito marginal decorrente da variação
de uma unidade
x é:
i
para i = 1, 2,..., n e j = 1, 2,..., k
onde
Ω
i
=Ω
(β x )
,
i
∧
Isso significa que o estimador de máxima verossimilhança ( β ) vai ser o
conjunto de equações i = 1, 2,..., n derivadas em primeira ordem, denominadas escore eficiente (efficient score). Os resultados obtidos relativos aos coeficientes do multiplicador de lagrange (LM), média, variância, erros-padrão, estatísticas t, curtosis, etc., serão, assim, computados mediante a utilização do
,
 ∧ , _ 
∧ _ 
algoritmo Ω 
1 − Ω(
)  , o qual é requerido para mensurar o
 β x i 


β
x
i



_
efeito marginal computacionalmente para diferentes coeficientes
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
( x).
459
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
A escolha do modelo logit, ou outro modelo de natureza probabilística (probit,
tobit) é feita a partir ou pela aplicação de um critério de seleção como o de
informação de Akaike (AIC), o bayesiano de Schwarz (SBC) ou o teste de modelos não-alinhados. Se forem utilizados somente os modelos logit e probit,
usa-se, como critério de escolha o maior valor da função de máxima
verossimilhança. Na utilização do modelo logit, além dos critérios de seleção já
mencionados, destaca-se que a sua escolha está condicionada à natureza incerta sobre o enforcement da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Deve-se ressaltar que o cálculo numérico relativo ao escore eficiente é
conduzido com base no seguinte algoritmo:
−1
β
j
=β
j −1
−
  ∂ l (β )

E
, 
 
β
∂
∂
β

 β

2
, j = 1, 2,..., k
=
β
 ∂l ( β )

j −1

∂β 
A representação matricial interna ao colchete assegura que o vetor
∧
β
estimado tenha parâmetros que sejam consistentes, assintoticamente, normalmente distribuídos e negativos, já que se trata de uma segunda derivação, e a
função está sendo maximizada; trata-se da matriz de variância-covariâncias.
,
As probabilidades estimadas e os valores discretos ajustados obedecem
ao seguinte algoritmo:
∧
= 1 , se l  β
yi

∧
∧
y
i
=0
, se

x i  ≥ 0.5

ou
 ∧, 
l  x i  < 0.5
β



4.2 O modelo logit proposto
Na seção 4.1, partiu-se da definição genérico, de um modelo logit da forma
y = β x , onde:
,
i
i
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
,
460
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
( y = 1/ x , β ) = Ω ( x β )
f ( y = 0 / x , β ) = 1− Ω ( x β )
,
f
i
,
i
,
i
,
i
Sem perda de generalidade e transpondo-o para o caso em estudo, levan-
y =β x
,
do-se em conta que
i
,
i
= α + β xi , α e β =
( β , β ,..., β )
1
2
k
são vetores kx1 de parâmetros em estimados para os i-ésimos municípios, e
x
i
( DP RCL )
, um vetor kx1 correspondente ao índice ,
, pode-se rei
presentá-lo da seguinte forma:

 Def = 1
Pi = 

( DP



 = α + β ( DP
)
RCL i 
Def
=
( DP RCL)
RCL
), onde :
i
i
probabilidade de ocorrência de déficit primário do i-ésimo município em relação
ao índice DP/RCL de não-cumprimento da LRF.
Se
P
i


= E  Def = 1
=
DP / RCLi 

1+ e

− α + β


1
( DP
RCL
é a função de distribuição logística relevante.
Se considerar
Def
i
= α + β ( DP
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
RCL
) , então
i

)

i 
, então,
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
Lim P = lim
Def i→∞
i
1
Def i→∞ 1 + e
−∞
=1
, e
Lim P
Def i→−∞
i
=
461
1
∞ =0
Def i→−∞ 1 + e
lim
Assim, 0 ≤
é a probabilidade de se verificarem déficits
≤1 , e
i
i
primários em municípios que não obedecem o limite da LRF, ao passo que
P
P
1 − P i é a probabilidade de que os municípios que não obedecem à LRF não
tenham déficits.
4.3 Definições de variáveis
Déficit primário ( Def) é a diferença verificada entre a despesa total e a
receita total, excluídos o passivo e a correção monetária.
Índice de Despesa com Pessoal e Receita Corrente Líquida ( DP R CL)
é o indicador da LRF relativo à exigência para o Poder Executivo de, no máximo,
54% do comprometimento da receita corrente líquida com gasto em pessoal.
4.4 Definições dos Coredes
São Alto Jacuí, Campanha, Central, Centro-Sul, Fronteira Noroeste, Fronteira Oeste, Hortênsias, Litoral, Médio Alto Uruguai, Metropolitano Delta do Jacuí,
Missões, Nordeste, Noroeste Colonial, Norte, Paranhana-Encosta da Serra, Produção, Serra, Sul, Vale do Caí, Vale do Rio dos Sinos, Vale do Rio Pardo e Vale
do Taquarí. Justifica-se essa opção pelas características socioeconômicas regionais apresentadas pelos municípios integrantes dos respectivos Coredes-RS, porque facilitará, por um lado, a análise e a compreensão do grupo e permitirá, por outro, concentrar esforços de políticas, por parte do poder público, diferenciadas, devido à diversidade de grupos, e homogêneas, no âmbito do
mesmo.
4.5 Fontes de dados e procedimentos utilizados
Os dados utilizados para os anos de 2001 e 2002 foram obtidos junto ao
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, inclusive o índice da relação da despesa com pessoal relativamente à receita corrente líquida:
<http://www.tce.rs.gov.br>.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
462
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
Tomou-se como base a data de 1° de janeiro de 2004, mediante atualização de valores pelo Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), da
Fundação Getúlio Vargas. Esses dados estão disponíveis em:
<http://www.fee.tche.br/sitefee./pt/content/pg_atualizacao_valores.php>.
5 Análise dos resultados
Nesta subseção, far-se-á a análise dos resultados, tomando-se por base o
agrupamento de municípios do Estado do Rio Grande do Sul para os anos de
2001 e 2002.
Os resultados do processamento computacional para o ano de 2001 estão
reunidos na Tabela 2. De um modo geral, verificam-se resultados favoráveis ao
dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000).
Tabela 2
Resultados da regressão, por Coredes, para os municípios do Estado
do Rio Grande do Sul — 2001
COREDES
Alto Jacuí .....................
Campanha ...................
Central .........................
Centro-Sul ...................
Fronteira Noroeste .......
Fronteira Oeste ............
Litoral ...........................
Hortênsias ....................
Médio Alto Uruguai ......
Metropolitano Delta do
Jacuí ............................
Nordeste ......................
Noroeste Colonial .......
Norte ............................
Paranhana Encosta da
Serra ............................
Produção ....................
Serra ............................
Sul ................................
Vale do Caí ..................
FATOR DE
CÁLCULO DO
EFEITO
MARGINAL
COEFICIENTE
(β )
PROBABILIDADES
[(Antilog-1) x 100]
-7,1184
-3,5975
-4,1060
-6,1302
-5,1629
-4,9603
-4,9810
-3,7814
-6,4653
99,99
97,26
98,35
99,78
99,42
99,29
99,31
97,72
99,84
0,49186
0,12820
0,12620
0,53821
0,91109
0,82379
0,822951
0,13003
0,68584
-3,1312
-4,6536
-6,0729
-8,6596
95,63
99,04
99,76
99,98
015084
0,13617
0,72893
0,2979
-3,3642
-8,4237
-7,8658
-6,2936
-5,9478
96,54
99,97
99,96
99,81
99,73
0,15686
0,50545
0,53410
0,47976
0,10724
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
463
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
Tabela 2
Resultados da regressão, por Coredes, para os municípios do Estado
do Rio Grande do Sul — 2001
COREDES
Alto Jacuí ....................
Campanha ..................
Central ........................
Centro-Sul ...................
Fronteira Noroeste ......
Fronteira Oeste ...........
Litoral ..........................
Hortênsias ...................
Médio Alto Uruguai .....
Metropolitano Delta do
Jacuí ...........................
Nordeste .....................
Noroeste Colonial ........
Norte ...........................
Paranhana Encosta da
Serra ...........................
Produção ...................
Serra ...........................
Sul ...............................
Vale do Caí .................
EFEITO MARGINAL
[(Antilog-1) x 100] (1)
ESTATÍSTICA
t
-3,50 [96,98]
-0,46 [36,87]
-0,52 [40,54]
-3,29 [96,27]
-4,70 [99,09]
-4,08 [98,30]
-4,13 [98,39]
-0,49 [38,73]
-4,43 [98,80]
-2,9382
-1,6170
-3,6388
-2,5514
-2,8340
-2,2370
-3,0476
-1,7271
-3,5457
-0,47 [37,49]
-0,63 [46,74]
-0,78 [54,15]
-2,58 [92,42]
-1,6998
-2,8365
-3,6739
-3,3042
-0,52 [40,54]
-4,25 [98,57]
-4,20 [98,50]
-3,02 [95,11]
-0,63 [46,74]
-1,8491
-3,8985
-3,7013
-3,0173
-2,7618
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.
(1) Os números entre colchetes referem-se à ponderação do coeficiente estimado pelo fator
de cálculo do município.
Aos níveis de significâncias de 5% e 10%, os coeficientes estimados e os
ajustes das regressões, por Corede, conforme resultados da Tabela 2, mostraram-se significativos. Assim, pode-se verificar que as probabilidades de ajustes ao marco da Lei são elevados por municípios, sem exceção, variando no
intervalo de 95,63% a 99,99%. Verifica-se, também, que, quando se pondera o
coeficiente estimado pelo fator de cálculo específico do município, obtendo-se o
efeito marginal, alguns municípios ajustam a taxas diferenciadas ao ano. Os
Coredes Campanha, Metropolitano Delta do Jacuí e Hortênsias destacam-se
pela baixa capacidade de ajuste ao ano; 36,87%, 37,49% e 38,73% respectivamente. De outro lado, o Corede Fronteira Noroeste lidera um grupo que apresen-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
464
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
ta indicadores de uma adaptação imediata à Lei, acima de 90%, tal como os
Coredes Alto Jacuí, Centro-Sul, Fronteira Noroeste, Fronteira Oeste, Litoral, Médio
Alto Uruguai, Norte, Produção, Serra e Sul.
Os Coredes Central, Nordeste, Noroeste Colonial, Paranhana-Encosta da
Serra e Vale do Caí apresentam um ajustamento à LRF mediano, conforme se
pode verificar na Tabela 2. Essa menor velocidade de ajuste resulta do fato de
que, na média dos municípios, o comportamento da despesa com pessoal relativamente à receita corrente líquida está próxima do limite instituído pela LRF.
De outro lado, os resultados do processamento computacional para o ano
de 2002 estão reunidos na Tabela 3. De um modo geral, verificam-se resultados
favoráveis ao dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000).
Tabela 3
Resultados da regressão, por Corede, para os municípios
do Estado do Rio Grande do Sul — 2002
COREDES
Alto Jacuí .....................
Campanha ...................
Central .........................
Centro-Sul ...................
Fronteira Noroeste .......
Fronteira Oeste ............
Litoral ...........................
Hortênsias ....................
Médio Alto Uruguai .......
Metropolitano Delta do
Jacuí ...............................
Missões .......................
Noroeste Colonial ........
Norte ............................
Nordeste ......................
Paranhana-Encosta da
Serra ............................
Produção .....................
Serra ............................
Sul ................................
Vale do Caí ..................
Vale do Rio dos Sinos
Vale do Rio Pardo ........
Vale do Taquari ............
PROBABILIDADES
[(Antilog-1) x 100]
FATOR DE
CÁLCULO DO
EFEITO
MARGINAL
-3,2595
-3,8438
-3,7686
-2,2520
-5,2986
-2,2976
-1,1830
-2,4250
-9,1480
96,15
97,85
97,69
89,48
99,50
89,95
69,36
91,15
99,98
0,16196
0,11365
0,13515
0,19488
0,083149
0,19139
0,23264
0,18415
0,027080
-0,28806
-6,5207
-4,5956
-8,0325
-5,8188
25,02
99,85
98,99
99,96
99,70
0,24882
0,052710
0,11402
0,057424
0,11045
-5,1538
-6,3934
-4,5788
-3,5479
-6,0517
-5,6049
-3,3145
-6,7439
99,42
99,83
98,97
97,12
99,76
99,63
96,36
99,88
0,092029
0,092687
0,13454
0,13808
0,0888380
0,062048
0,15209
0,081086
(continua)
COEFICIENTE
(β )
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
465
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
Tabela 3
Resultados da regressão, por Corede, para os municípios
do Estado do Rio Grande do Sul — 2002
COREDES
Alto Jacuí ......................
Campanha ....................
Central ..........................
Centro-Sul ....................
Fronteira Noroeste .......
Fronteira Oeste ............
Litoral ............................
Hortênsias .....................
Médio Alto Uruguai .......
Metropolitano Delta do
Jacuí ................................
Missões ........................
Noroeste Colonial .........
Norte .............................
Nordeste .......................
Paranhana-Encosta da
Serra .............................
Produção ......................
Serra .............................
Sul .................................
Vale do Caí ....................
Vale do Rio dos Sinos
Vale do Rio Pardo .........
Vale do Taquari .............
EFEITO MARGINAL
[(Antilog-1) x 100] (1)
ESTATÍSTICA t
-0,52 [40,54]
-0,43 [34,94]
-0,50 [39,34]
-0,43 [34,94]
-0,44 [35,59]
-0,43 [34,94]
-0,27 [23,66]
-0,44 [35,59]
-0,24 [21,33]
-2,5021
-1,6845
-3,6605
-1,8002
-2,8451
-1,6005
0
-2,2788
-3,1867
-0,007 [0,69]
-0,34 [28,82]
-0,52 [40,54]
-0,46 [36,87]
-0,64 [47,27]
0
-3,3177
-3,5697
-3,4708
-2,9763
-0,47 [37,49]
-0,59 [44,56]
-0,61 [45,66]
-0,48 [61,60]
-0,53 [41,13]
-0,34 [28,82]
-0,50 [39,34]
-0,54 [41,72]
-2,1380
-3,9416
-3,4315
-2,8560
-2,8378
-2,4513
-2,8395
-4,0299
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do
Sul.
(1) Os números entre colchetes referem-se à ponderação do coeficiente estimado
pelo fator de cálculo do município.
Com base nos resultados arrolados na Tabela 3, observa-se um comportamento homogêneo dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul para o ano
de 2002. Essa homogeneidade fica transparente a partir da leitura dos valores
dos efeitos marginais, calculados e tomados percentualmente, e que evidenciam um ajuste residual ao dispositivo legal, uma vez que esses resultados são
decorrentes, provavelmente, dos ajustes executados no ano anterior (2001) e
que sucederam a aplicação da Lei.
A explicação para esse fato decorre, portanto, de os municípios já terem
enviado dois balanços orçamentários ao Tribunal de Contas do Estado do Rio
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
466
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
Grande do Sul e à Secretaria do Tesouro Nacional no ano de 2002, tendo tempo
para se ajustarem ao dispositivo legal, mesmo que em velocidades diferentes,
mas convergentes, como se pode verificar.
Observa-se, também, do ponto de vista estatístico, a partir dos resultados
da Tabela 3, que, embora as regressões tenham tido significâncias em níveis de
5% e 10%, seus coeficientes individuais, por Corede, apresentaram insignificâncias estatísticas a esses mesmos níveis, casos dos Coredes Litoral e Metropolitano Delta do Jacuí. Contudo esses resultados não invalidam a identificação de uma tendência geral de convergência aos limites impostos pela Lei por
parte dos municípios gaúchos, em 2002.
Com base nos resultados constantes nas Tabelas 2 e 3, pode-se inferir
que, à medida que os municípios se conformam aos limites impostos pela LRF,
suas velocidades ou taxas de ajustes tendem a um limite ao qual todos os
municípios, num intervalo de variação pequeno, convergirão. Tal fato fica evidente, quando se verifica que, de um ano para outro, municípios com performances
de ajustes diversos se aproximam após se submeterem à Lei. Tais diferenças
decorrem, por um lado, do fato de apresentarem resultados fiscais apropriados
ao instituto legal, ou, contrariamente, por apresentarem resultados distantes do
convencionado pela Lei. Na primeira situação, a velocidade de ajuste é aquela
próxima da velocidade ótima, que coloca o município na vizinhança da Lei; e, na
segunda situação, a velocidade é alta, pela necessidade de resultados que aproximem o município do limite legal. De outro lado, uma velocidade baixa de convergência aos limites impostos pela Lei pode indicar, também e num primeiro
momento, a dificuldade que o município enfrenta relativamente às necessidades de ajustes. Pode-se inferir, ainda, com base na Tabela 3, que os valores
convergentes a um valor mediano (31,14%) das taxas de ajustes indicam que
os municípios dos diferentes Coredes se comportam conforme reza a Lei, uma
vez que os valores percentuais representam o que ainda resta para o ajuste
final.
Em relação aos anos subseqüentes, é importante destacar-se o comprometimento dos municípios do Rio Grande do Sul com o dispositivo legal. Entre
os anos de 2003 e 2005, dos 496 municípios, apenas 27 ultrapassaram o limite
de 54% de comprometimento da receita corrente líquida com gastos com pessoal, sinalizando, desse modo, uma adequação por parte dos gestores públicos
à Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000) no que tange a gasto com
pessoal.
Destaca-se, com base no Quadro 1, no Corede Fronteira Oeste, o Município de Itaqui, o qual desrespeitou o dispositivo legal nos anos de 2003 a 2005. O
Corede Sul apresentou, nesse período, nove municípios acima do limite legal, o
que indica que grande parte dos recursos desses municípios é destinada a
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
467
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:...
pagamento de salários, inviabilizando, assim, os gastos em investimentos, tais
como saúde, educação e infra-estrutura. Quanto aos outros Coredes que desrespeitaram o dispositivo legal foram constatados apenas casos isolados.
Quadro 1
Situação dos municípios, por Coredes, que ultrapassaram o dispositivo legal
no Rio Grande do Sul — 2003-05
2003
COREDES
Alto Jacuí ...........
Campanha .........
Central ………….
Centro-Sul ..........
Fronteira Noroeste ........................
Fronteira Oeste ..
Litoral .................
Hortênsias ..........
Médio Alto Uruguai ....................
Metropolitano Delta do Jacuí ..........
Missões ..............
Noroeste Colonial ……..............
Norte ……….......
Nordeste ….........
Paranhana-Encosta da Serra .........
Produção ...........
Serra ..................
Sul ......................
Vale do Caí .........
Vale do Rio Sinos .....................
Vale do Rio Pardo .......................
Vale do Taquari
Acima de
54%
da
RCL/DP
2004
Abaixo
de 54%
da
RCL/DP
Ok
Ok
Ok
Ok
Acima de
54%
da
RCL/DP
1
Ok
2
3
1
Ok
Ok
Ok
Acima de
54%
da
RCL/DP
Ok
Ok
Abaixo
de 54%
da
RCL/DP
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
1
3
Ok
Ok
Ok
Ok
1
1
1
Ok
Ok
Ok
Abaixo
de 54%
da
RCL/DP
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
1
2005
1
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
1
Ok
Ok
1
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
Ok
5
3
1
2
Ok
-
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.
NOTA: 1. RCL/DP = receita corrente líquida por despesa com pessoal.
NOTA: 2. As indicações OK significam que todos os municípios do Corede respeitaram o
dispositivo legal.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007
468
Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira
6 Conclusões
Este estudo procurou evidenciar a relação existente entre configurações
institucionais e resultados de política econômica, mais especificamente, a relação entre a instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal e o comportamento
fiscal dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul nos anos de 2001 e 2002.
Usando-se procedimentos estatísticos a partir da proposição de um modelo do
tipo logit, em que a variável dependente era a probabilidade de os municípios
incorrerem em déficit e a variável explicativa era a relação entre a despesa com
pessoal e a receita corrente líquida, pode-se verificar que o modelo proposto
era significativo, assim como os coeficientes individuais das regressões obtidas, por Coredes e anos, em níveis de significância de 5% e 10%.
Como conclusão geral, pode-se afirmar, com base na amostra constituída,
que a configuração institucional moldada a partir da Lei de Responsabilidade
Fiscal (Brasil, 2000) determinou, positivamente, um comportamento fiscal responsável dos governos municipais do Estado do Rio Grande do Sul nos anos de
2001 e 2002.
Outrossim, pode-se concluir, afirmativamente, que o desempenho fiscal
verificado a partir da instituição da Lei sinaliza um rompimento com a tradição
clientelista, até então dominante, e restitui a capacidade de execução e de
controle de políticas por parte do poder público, ficando este menos refém de
grupos de interesses, locais e regionais, o que favorece o melhor aproveitamento dos escassos recursos públicos e minimiza os prejuízos à democracia.
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A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
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A inserção do Arranjo Produtivo Local
(APL) moveleiro de Bento Gonçalves
na cadeia produtiva de
madeira e móveis*
Beky Moron de Macadar**
Economista e Doutora em Administração
Resumo
O artigo tem como objetivo descrever e analisar o caso do Arranjo Produtivo
Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, visando
identificar os gargalos que dificultam o aproveitamento integral dos benefícios
estáticos e dinâmicos dessa aglomeração industrial. As principais conclusões
do trabalho são de que há insuficiência de fornecedores locais ou regionais de
insumos básicos, custos logísticos elevados em relação a outros concorrentes
nacionais, baixo poder de barganha frente a fornecedores e clientes e baixo
aproveitamento das oportunidades apresentadas pelas instituições de apoio
quanto a iniciativas para a atuação conjunta.
Palavras-chave
Arranjo produtivo local; cooperação; competitividade sistêmica.
Abstract
The article aims to describe and to analyze the case of the furniture local
productive arrangement of Bento Gonçalves, in the State of Rio Grande do Sul,
with the purpose of identifying the obstacles that prevent taking full advantage of
the static and dynamic benefits of the industrial cluster. The main conclusions
are that the cluster counts with an insufficient number of local or regional providers
* Este texto baseia-se na pesquisa desenvolvida pela autora para sua Tese de Doutorado
(Macadar, 2006).
Artigo recebido em nov. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007.
** E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007
472
Beky Moron de Macadar
of basic inputs, high logistical expenses in comparison with other national
competitors, low bargaining power with providers and customers and poor
advantage taken from the opportunities offered not only by supporting institutions
but also regarding initiatives for joint action.
Key words
Local productive arrangements; cooperation; systemic competitive
advantage.
Classificação JEL:
R11, 018.
1 Introdução
As empresas verticalizadas que predominavam até os anos 70 do século
XX executavam internamente a maioria das operações necessárias para o fornecimento de produtos. Hoje, devido à elevada competição entre as empresas,
aos grandes avanços tecnológicos e à maior complexidade de produtos e mercados, estruturas empresariais verticalmente integradas são menos freqüentes.
Nesse ambiente, as empresas executam apenas uma fração das operações necessárias para disponibilizar determinado produto ao cliente final, já que
é cada vez mais difícil possuir internamente todas as competências necessárias para produzir e comercializar produtos, ou seja, elas passam a concentrar-se nas suas competências essenciais. Desse modo, é natural que as empresas inseridas em arranjos e sistemas produtivos locais façam parte de uma ou
mais cadeias de suprimentos. Estas últimas, por sua vez, nem sempre estão
totalmente contidas no interior do próprio arranjo produtivo. Além disso, ao estarem inseridas em cadeias de suprimentos e em cadeias produtivas, as empresas passam a depender não só do seu próprio desempenho, mas também do
desempenho de todas as demais empresas que fazem parte das etapas necessárias para o fornecimento de um determinado produto ao cliente final. Assim
sendo, aumentam a interdependência e a necessidade de manter relacionamentos cooperativos que redundem em maior eficiência das cadeias como um todo.
O objetivo deste trabalho é descrever e analisar a inserção do Arranjo
Produtivo Local moveleiro de Bento Gonçalves (RS) na cadeia produtiva de
madeira e móveis, visando identificar os gargalos que dificultam o aproveitamento integral dos benefícios estáticos e dinâmicos das aglomerações indusEnsaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007
A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
473
triais. Para tanto, na segunda seção, é feita uma revisão da literatura sobre o
papel das aglomerações industriais de um determinado setor e de setores complementares na obtenção de vantagens comparativas através da geração de
economias externas e de cooperação interorganizacional. Na terceira seção,
descreve-se a cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul. A
seguir, na quarta seção, discutem-se as principais características do Arranjo
Produtivo Local moveleiro de Bento Gonçalves e seu relacionamento com a
cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul. Por último, na
conclusão, salientam-se os principais gargalos que obstaculizam a
competitividade sistêmica, entendida como a competitividade que depende não
só de fatores macroeconômicos e setoriais, mas também da gestão das empresas
e da natureza do meio econômico e social no qual atuam. Dentro do possível, o
artigo procura sinalizar ações que poderiam contribuir para a obtenção de
resultados mais satisfatórios.
O Município de Bento Gonçalves foi escolhido para fazer essa análise por
ser um dos pólos moveleiros mais importantes e mais consolidados do País e
por irradiar sua influência para outros municípios da região. O APL é formado por
370 empresas — de porte variado e com baixa integração da cadeia produtiva —, que geram 10.500 empregos diretos e indiretos (Abimóvel, 2005). A economia do Município tem a indústria moveleira como seu carro-chefe, posto que,
em 2005, 56% da produção industrial era oriunda do setor1 (Sindmóveis, 2006).
O trabalho desenvolvido caracteriza-se como pesquisa qualitativa de caráter
exploratório, tendo como estratégia o estudo de caso. A coleta de evidências
envolveu entrevistas presenciais semi-estruturadas, observações diretas em
eventos do setor e dados secundários. O roteiro de entrevista foi submetido à
consideração de dois juizes qualificados e, posteriormente, adaptado às sugestões. Após a alteração do documento, foi feito um teste piloto com três experts
na área de móveis, o que gerou novas alterações, com o intuito de melhor
adequá-lo à pesquisa.
A pesquisa de campo foi realizada pela própria autora entre setembro de
2004 e fevereiro de 2005. Foram feitas, ao todo, 21 entrevistas presenciais com
13 executivos — presidentes ou diretores — de nove instituições de apoio2, dos
1
Em 2005, o faturamento atingiu a marca de R$ 1,2 bilhão, representando 38,5% e 10% do
faturamento do Rio Grande do Sul e do Brasil, respectivamente, nesse segmento industrial
(Sindmóveis, 2006). No mesmo ano, a exportação de móveis do Município de Bento Gonçalves alcançou o valor de US$ 76,8 milhões, perfazendo 28,2% da exportação gaúcha do
setor e 7,5% da brasileira (Sindmóveis, 2006; MICT, 2006). O montante exportado representa
14,1% do faturamento das empresas moveleiras do Município.
2
Em algumas organizações, foram entrevistados dois executivos, a fim de se obterem informações mais completas.
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474
Beky Moron de Macadar
quais cinco são empresários de pequenas e médias empresas (PMEs)
moveleiras; um é presidente de uma rede de pequenas empresas, quatro são
diretores de grandes empresas; além de três fornecedores de grande porte,
todos escolhidos por conveniência, com a orientação das instituições de apoio.
2 Aglomerações industriais
A literatura sobre aglomerações industriais é abundante e foi iniciada por
Marshall (1982) em 1890, quando, no seu Principles of Economics, salientou
a importância das economias externas nos distritos industriais. Ele chamou
atenção para o fato de que a aglomeração de firmas de um mesmo setor e de
atividades correlatas gerava uma série de economias externas que diminuíam
os custos dos produtores aglomerados. As vantagens incluíam a concentração
de trabalhadores especializados e com habilidades específicas relativas ao sistema local; a presença e a atração de um conjunto de fornecedores de insumos
e serviços especializados; e a rápida difusão de novos conhecimentos, habilidades e informações relacionadas com a atividade principal dos produtores locais
(Marshall, 1982). Tais economias externas ajudam a entender o crescimento
das aglomerações industriais contemporâneas, entretanto há uma certa concordância de que as economias externas marshallianas não são suficientes para
explicar o desenvolvimento dessas aglomerações.
Além das economias externas incidentais — subproduto não intencional
ou acidental de alguma outra atividade —, freqüentemente há uma força deliberada operando, qual seja, a perseguição consciente da ação coletiva. Isso é o
que emerge das pesquisas sobre aglomerações industriais nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. Schmitz (1997) juntou os efeitos
incidentais e os deliberados no conceito de eficiência coletiva, definido como a
vantagem competitiva derivada de economias externas e da ação conjunta. As
economias externas podem ser consideradas uma eficiência de caráter passivo, enquanto a ação conjunta é uma eficiência de caráter ativo. A ocorrência
desta última é que vai determinar a possibilidade de um melhor posicionamento
competitivo. Da mesma forma, para Anderson e Narus (1990) a cooperação é o
resultado de atividades coordenadas entre empresas interdependentes, para se
atingirem resultados mútuos ou unilaterais que excedem aquilo que seria obtido
de forma isolada.
A ação conjunta pode ser de dois tipos (Schmitz, 1997): a cooperação
entre duas empresas individuais (por exemplo, compartilhando equipamento ou
desenvolvendo novos produtos) por um lado, e, por outro, grupos de empresas
atuando de forma conjunta em associações comerciais, na compra de mate-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007
475
A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
riais, em consórcios de exportação, na contratação de serviços especializados,
nas cooperativas de crédito ou em atividades do gênero. Também é possível
diferenciar entre a cooperação horizontal, entre concorrentes, e a cooperação
vertical, ao longo da cadeia de suprimentos, conforme pode ser apreciado no
Quadro 1.
Quadro 1
Formas de ação conjunta em clusters
FORMAS
DE
COOPERAÇÃO
Horizontal
Vertical
BILATERAL
MULTILATERAL
Compartilhamento de equi- Associações setoriais
pamentos
Desenvolvimento conjunto Alianças ao longo da cadeia
de componentes por produ- de valor
tores e usuários
FONTE: SCHMITZ, Hubert. Collective efficiency and increasing returns. Brighton:
University of Sussex, 1997. (IDS Working paper, n. 50). p. 8.
Tanto na literatura econômica como no âmbito governamental, ainda existe
grande dificuldade de se encontrar uma definição precisa para tais aglomerações. Muitas das tentativas de definição são tão generalistas que abarcam todos os casos empíricos de aglomerações produtivas, não importando o grau de
desenvolvimento atingido.
Conforme a Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist), do Instituto de Economia da Universidade Federal de Rio de
Janeiro, o termo aglomeração pode ser utilizado, de forma genérica, para incluir
os diferentes tipos de aglomerados referidos na literatura, tais como distritos
industriais, clusters, arranjos produtivos locais e Sistemas Locais de Produção
(SLPs), dentre outros. Ele é suficientemente abrangente para “[...] envolver diferentes atores, além de refletir formas diferenciadas de articulação, governança
e enraizamento” (RedeSist, 2005, p. 5). Entretanto, para diferenciar aglomerados
mais, ou menos, articulados, a Rede distingue Sistemas Produtivos e Inovativos
Locais (SPILs) de APLs. Os primeiros consistem em “[...] conjuntos de agentes
econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, desenvolvendo atividades econômicas correlatas e que apresentam vínculos expressivos de produção, interação, cooperação e aprendizagem”. Esses aglomerados
geralmente envolvem, além de empresas produtoras de bens e serviços finais,
fornecedores, clientes e outras organizações, tais como associações empresa-
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Beky Moron de Macadar
riais, cooperativas, centros de pesquisa e desenvolvimento, de produção de
informações e de formação e treinamento de recursos humanos. Já os APLs
“[...] são aqueles casos fragmentados e que não apresentam significativa articulação entre os agentes” (RedeSist, 2005, p.5 ). Essa distinção contribui para o
entendimento dos aglomerados encontrados no Brasil e foi adotada neste trabalho.
As empresas pertencentes a esses aglomerados são capazes de obter
vantagens competitivas em relação às empresas dispersas geograficamente.
Em alguns casos, e graças à eficiência coletiva, a aglomeração dos produtores
é capaz de desenvolver uma estrutura produtiva completa, melhorando, com
isso, sua competitividade nos mercados doméstico e externo.
As vantagens competitivas são consideradas de caráter estático quando
estão baseadas em fatores espúrios, tais como o baixo custo da mão-de-obra
ou a abundância de uma determinada matéria-prima. São fatores que tendem a
ser anulados, com o passar do tempo, pelo surgimento de outra fonte mais
barata de mão-de-obra ou pela descoberta de uma nova matéria-prima substituta. Já as vantagens competitivas dinâmicas apóiam-se em fatores que evoluem
constantemente, relacionados principalmente com a inovação e a interação entre os agentes locais, incluindo as instituições de apoio (Belussi; Gottardi, 2000;
Garcia; Motta; Amato Neto, 2004), gerando, desse modo, uma competitividade
sistêmica. O distrito industrial italiano é considerado um exemplo paradigmático
das vantagens competitivas que surgem da aglomeração de pequenas e
médias empresas, setorialmente especializadas, em uma dada localidade. As
aglomerações favorecem a inovação e ajudam as firmas locais a competirem
globalmente (Humphrey; Schmitz, 2000).
Existe um consenso crescente de que as aglomerações auxiliam as pequenas e as médias empresas a superarem as barreiras ao crescimento e a
ultrapassarem o mercado local, mas também há um reconhecimento de que o
resultado não é automático. De acordo com Schmitz (2000), a eficiência coletiva
somente emerge, quando a confiança sustenta os relacionamentos
interempresariais e quando se consegue conectar o cluster com mercados de
grande porte no próprio país ou no exterior.
Para Suzigan, Garcia e Furtado (2002, p. 2), há três aspectos essenciais
no entendimento das aglomerações de empresas e instituições em clusters ou
sistemas locais de produção e/ou inovação:
[...] (1) a importância das economias externas locais, cerne de toda a
discussão sobre clusters ou SLPs; (2) a necessária caracterização como
aglomeração geográfica de empresas que atuam em atividades similares
ou relacionadas, e sua respectiva forma de organização e de coordenação;
e (3) os condicionantes históricos, institucionais, sociais e culturais que
podem influir decisivamente na formação e evolução do cluster ou SLP.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007
A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
477
Desse modo, além de possuírem economias externas, as aglomerações
geográficas de empresas setorialmente especializadas geralmente incluem um
grande número de empresas de porte variado, onde predominam as pequenas.
Suzigan, Garcia e Furtado (2002, p. 3) salientam que o sucesso de um sistema
local de produção e/ou inovação “[...] é fortemente condicionado por suas raízes
históricas, pelo processo de construção institucional, pelo tecido social, e pelos
traços culturais locais”. Esses fatores têm uma grande influência na especialização produtiva, no surgimento de lideranças locais, na existência da confiança
para empreender ações conjuntas de cooperação, na criação de instituições de
apoio às empresas e na estrutura de governança vigente. Tais fatores “[...] permitem também que os clusters combinem, em proporções muito variáveis caso
a caso, elementos de cooperação e competição” (Suzigan; Garcia; Furtado, 2002,
p. 3).
Contudo tanto os APLs quanto os SLPs fazem parte de alguma cadeia
produtiva estruturada, de tal forma que isso permite ao produtor local se abastecer de insumos junto a fornecedores internos ou externos à aglomeração e também distribuir sua produção de modo que atinja os consumidores finais, nacionais ou estrangeiros.
2.1 Cadeias produtivas
Uma cadeia produtiva é definida a partir da identificação de determinado
produto final e do encadeamento das várias operações técnicas, comerciais e
logísticas, a jusante e a montante, necessárias à sua obtenção (Batalha, 1997;
Pires, 2001). Sua definição deve partir sempre do mercado final (produto acabado) e seguir na direção dos insumos que a originaram. A característica central
desse nível de análise é estudar o conjunto de empresas intervenientes de
forma sistêmica, sem particularizar as empresas integrantes da cadeia, ao contrário do que ocorre na cadeia de suprimentos. Esta última procura evidenciar a
cadeia específica a uma empresa ou a uma organização em particular, a empresa focal, de modo que a cadeia produtiva é mais abrangente que a de suprimentos, pois, dentro dela, convivem inúmeras cadeias de suprimentos.
Uma cadeia produtiva é composta por dois níveis: a cadeia principal e a
cadeia auxiliar. Na principal, as atividades são diretas e vinculadas ao seu objetivo
principal, enquanto a auxiliar realiza atividades indiretas e de suporte, interagindo
dinamicamente com a cadeia principal e proporcionando tudo aquilo que é necessário para executar sua atividade-fim (Pires, 2001).
A análise de uma cadeia produtiva é considerada de caráter tipicamente
meso-analítico, “[...] porque se procura estudar mais do que apenas uma empre-
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478
Beky Moron de Macadar
sa, mas sem chegar ao nível de estudar o conjunto do sistema industrial, restringindo-se ao grupo de empresas constituintes de uma cadeia produtiva, ou
um subsistema produtivo” (Gusmão, 2004, p. 74).
A análise de cadeias produtivas propicia a identificação de questões relevantes para a melhoria do desempenho e de sua competitividade, já que permite
a identificação dos chamados “nós”, que constituem os pontos-chave onde são
estabelecidas as políticas de toda a cadeia. Também permite, por um lado, identificar os pontos de estrangulamento, isto é, aqueles elos que comprometem o
desempenho da cadeia como um todo, e, por outro, os pontos fortes existentes
(Pedrozo; Hansen, 2001). Para Morvan (1991 apud Batalha, 1997), o conceito
de cadeia produtiva tem diversas utilidades: como ferramenta de descrição e
análise técnico-econômica, para a formulação e análise de políticas públicas e
privadas, como apoio à avaliação de estratégias empresariais e como ferramenta de análise das inovações tecnológicas e apoio à tomada de decisão,
dentre outros.
No entanto, Pires (2001, p. 80) destaca que o maior benefício decorre da
“[...] possibilidade de ampliação da compreensão do contexto onde as empresas estão inseridas, fazendo com que as mesmas caminhem no sentido de ter
uma visão sistêmica de sua competitividade”. Quando os atores regionais começam a perceber as inter-relações entre os diversos elos da cadeia produtiva,
começam a ficar mais claros os pontos de estrangulamento que prejudicam a
competitividade regional e a das próprias empresas e quais os esforços coletivos
necessários para reverter essa situação.
3 A cadeia produtiva de madeira e móveis
do Rio Grande do Sul
A origem da indústria moveleira do Rio Grande do Sul está relacionada à
imigração italiana ocorrida no século XIX e ao estabelecimento desses imigrantes nos municípios da região da Serra gaúcha. Com o conhecimento e a tradição
trazidos de seus países de origem, iniciaram a produção de móveis de forma
artesanal e voltada para o consumo próprio e, mais tarde, passaram a produzi-los industrialmente.
Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor de
móveis no Brasil e responde por cerca de 26% da produção nacional, ficando
atrás somente do Estado de São Paulo. É também o segundo maior estado
exportador de móveis do País, responsável, em 2005, por 26,7% das exportações do setor (MICT, 2006). Além disso, o Estado conta com três principais
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007
A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
479
regiões produtoras de móveis: Bento Gonçalves e arredores, Lagoa Vermelha e
arredores e Região das Hortênsias, sendo que o Município de Bento Gonçalves
se destaca como o principal produtor.
A indústria moveleira gaúcha é composta por 2.467 empresas, que geram
30.970 empregos diretos e indiretos (Abimóvel, 2005). Quanto ao porte das
empresas, 67,3% são micro, 28,7%, pequenas; 3,8%, médias; e 0,1%, grandes.
A maioria das empresas moveleiras do Estado fabrica móveis com base
em madeiras processadas — medium density fiberboard (MDF), aglomerados e
compensados —, sendo muito poucas as que produzem móveis de madeira
maciça em larga escala. A produção de móveis tubulares e de plástico está em
crescimento, mas ainda é pouco expressiva (Rio Grande do Sul, 2005).
A Figura 1 apresenta o desenho da cadeia produtiva de madeira e móveis
do Rio Grande do Sul, fazendo a distinção entre os elos incipientes ou externos
ao Estado e os elos existentes e representativos no Estado. A cadeia principal
pode ser decomposta em quatro etapas: a de tratamento da matéria-prima (reflorestamento, extração de madeira nativa, exploração florestal, madeireiras e serrarias e indústria de painéis), a de produção do móvel (indústria de móveis), a de
distribuição (atacadista ou distribuidor, lojas de móveis e mercado externo) e a
de consumo (cliente final). Os elos mais frágeis da cadeia principal no Rio Grande do Sul são os do reflorestamento, da extração de madeira nativa, da exploração florestal e da indústria de painéis, cujo desenvolvimento incipiente no Estado é insuficiente para atender a toda a demanda da indústria moveleira.
A cadeia auxiliar proporciona bens e serviços que satisfazem as necessidades indiretas e de suporte da cadeia principal. Os fornecedores de material
auxiliar atendem às demandas das madeireiras, das serrarias e da indústria de
móveis. A indústria química fornece produtos para a indústria de painéis e para
a própria indústria moveleira. Os serviços de transportes são utilizados intensivamente tanto pelos elos responsáveis pelo tratamento da matéria-prima quanto pelo da indústria de móveis. A indústria de equipamentos abastece os elos de
exploração florestal, madeireiras e serrarias, indústria de painéis e indústria de
móveis. Os serviços associados, tais como marketing e atendimento pós-venda, vinculam-se às atividades de produção, de distribuição e de atendimento ao
cliente final, enquanto a assessoria em design arquitetônico, os serviços de
informática e a indústria de acessórios se concentram na etapa de produção do
móvel. As associações empresariais e os órgãos de apoio, por sua vez, envolvem os fabricantes de móveis, bem como as lojas, enquanto o vínculo predominante das escolas e centros de tecnologia é com a indústria moveleira. No caso
da cadeia auxiliar, as maiores carências manifestam-se nas indústrias química,
de equipamentos e de acessórios, bem como nos serviços associados.
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Figura 1
Cadeia produtiva da madeira e móveis do RS
C A D E IA D A M A D E I R A E MÓ V E IS D O R S
C A D E IA P R IN C IP A L
C A D E IA A U X IL IA R
M AT E R IAL
A U X IL I A R
E X T R AÇ Ã O
REFLO RESTAM ENTO
M A D E IR A N A T IV A
IN D Ú S T R I A
Q U Í M IC A
TRANSPORTES
E X P L O R AÇ Ã O F L O R E S T A L
IN D E Q U IP A M E N T O S
M A D E I R E IR A S /
S E R R A R IA S
I N D P A INÉ IS
S E R V IÇ O S
A S S O C IA D O S
IN D Ú S T R I A D E MÓ V E IS
R e s id e n c ia is
A S S E S S . D E S IG N
J a rdins
A R Q U I T . / IN F O R M .
E s c r itó rio
IN D A C E S SÓ R I O S
A T A C A D IS T A /D I S T R I B U ID O R
A S S O C IAÇ Õ E S /
Ó R G Ã O S D E A P O IO
L O J A S D E MÓ V E IS
E S C O LAS E C E N T R O S
E s p e c ia liz a d a s
G e n e r a lis ta s
C L IE N T E
D E T E C N O L O G IA
F IN A L
- Q u a li fic aç ã o M O
- C o n s u lto ria
M ER C A D O E XT E R N O
E lo in c ip ie n t e o u e x te r n o a o e s ta d o
E lo e x is t e n t e e re p r e s e n ta tiv o n o e s t a d o
FONTE DOS DADOS BRUTOS: AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DO RIO GRANDE DO SUL — PÓLO RS. Análise competitiva preliminar da cadeia produtiva de móveis do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. p. 12.
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3.1 Os elos da cadeia produtiva de madeira
e móveis gaúcha
No Rio Grande do Sul, o elo de produção e extração da madeira está concentrado nos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes)3 Hortênsias-Campos de Cima da Serra (43,5%) — na região nordeste do Estado —, Centro-Sul (9,5%) — próximo à Região Metropolitana de Porto Alegre — e Metropolitano Delta do Jacuí (8,4%). O Estado possui apenas 3,8% da área plantada de
pínus e 7,7% da área de florestas plantadas de eucalipto no Brasil. Essa baixa
participação do Estado em um elo tão importante para o desenvolvimento da
indústria moveleira explica parte das desvantagens logísticas enfrentadas pelas empresas moveleiras locais em termos de abastecimento (Rio Grande do
Sul, 2005).
No elo de processamento de madeira, existe uma distribuição bastante
uniforme entre os quatro Coredes responsáveis pelas participações mais significativas: Metropolitano Delta do Jacuí (15,4%), Serra (16,7%) — próximo à
Região das Hortênsias4, a cerca de 120km de Porto Alegre —, Vale do
Taquari (15,3%) — lindeiro ao Corede Serra — e Hortênsias–Campos de Cima
da Serra (16%), entretanto estão muito próximos uns dos outros. Grande parte
da madeira processada (68%) fica no próprio Estado.
No elo de fabricação de móveis, sobressai-se o Corede Serra, responsável
por 68,4% das vendas do Estado em 2002. Ele é seguido pelo Corede Metropolitano Delta do Jacuí, com 5,8% do total. Enquanto o primeiro destina 51,8% de
sua produção a outras unidades da Federação e 16,9% à exportação, o segundo
efetua 80,8% de suas vendas no mercado estadual.
Saliente-se que o maior volume exportado pela cadeia não é o de móveis,
muito pelo contrário, pois, em 2004, foram 344.000 toneladas em pastas de
madeira, no valor de US$ 104,5 milhões; quase um milhão de toneladas em
madeira e carvão vegetal, totalizando US$ 146,8 milhões; e pouco mais de
183.000 toneladas de móveis no valor de US$ 221,4 milhões. Ou seja, a exportação de móveis — o produto com maior valor agregado desses três segmen-
3
Os municípios do Rio Grande do Sul estão agrupados em 26 Coredes, 21 dos quais foram
inicialmente criados em 1994, pela Lei nº 10.283. Trata-se da mais bem-sucedida experiência
de regionalização do Estado, que, com o passar do tempo, sofreu uma reorganização
territorial, com alguns municípios trocando de região. Os Coredes possuem um processo de
consulta popular que os torna um forum organizador das demandas regionais para a
destinação de parte do orçamento do Estado.
4
A Região das Hortênsias está inserida na Serra gaúcha, que é formada pelo Planalto Sul-Rio-Grandense, estendendo-se por toda a Região Nordeste do Estado.
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tos — foi aquele que menos contribuiu (12%) no total do volume exportado (Rio
Grande do Sul, 2005).
Por outro lado, um dos problemas mais sérios enfrentados pelas empresas
gaúchas do setor é a insuficiência de fornecedores locais de insumos fundamentais — madeira maciça, MDF, aglomerado e compensado —, o que leva a
que uma parcela importante da matéria-prima seja trazida de outros estados,
principalmente do Paraná e de São Paulo, ou mesmo importada. Esse fato é
responsável pela perda de competitividade relativa no mercado interno, já que
móveis retilíneos com alto grau de padronização estão sendo fabricados em
outros pólos moveleiros do País, mais próximos dos fornecedores e, conseqüentemente, com menores custos de frete, que pesam sensivelmente no transporte da madeira. Ou seja, para competir com preços baixos e/ou médios de
móveis, o custo do transporte é um fator de perda de competitividade frente aos
outros pólos produtores de São Paulo, Santa Catarina e Paraná.
O segmento de acessórios divide-se entre distribuidores e indústrias com
produção própria. Ao contrário de outros fornecedores primários, está bem integrado com a indústria moveleira, proporcionando cada vez mais uma variedade
maior de itens. Investiu fortemente na área de design, desenvolvendo, inclusive, produtos exclusivos para seus clientes.
No que diz respeito ao varejo de grande porte, as empresas moveleiras
enfrentam dois tipos de problemas. O primeiro está relacionado com a reduzida
escala de produção de algumas empresas gaúchas, com qualidade insatisfatória,
com deficiência em design e com baixo preço pago pelos varejistas. Por esse
motivo, uma parcela do varejo do Rio Grande do Sul é abastecida pelos Estados
de Santa Catarina e Paraná (Agência de Desenvolvimento do Rio Grande do
Sul, 2002). O segundo é o elevado poder de barganha que os varejistas exercem
em função da concentração do mercado em poucas redes. Somente as quatro
maiores redes brasileiras do varejo de móveis e eletroeletrônicos — Casas Bahia,
Ponto Frio, Colombo e Magazine Luiza — concentravam 47% da receita do
segmento no Brasil, que atingiu R$ 32 bilhões em 2004 (Grandes..., 2005).
Quanto aos serviços associados, os que apresentam problemas mais sérios são os de montagem, instalação e acompanhamento pós-venda. Estes geralmente são realizados por profissionais não capacitados, o que prejudica a
imagem das lojas e, principalmente, a dos fabricantes de móveis frente ao consumidor final.
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3.2 Integração da cadeia com o mercado
A cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul especializou-se na produção de móveis, mas não na distribuição. Via de regra, as
vendas para o mercado externo são o resultado de encomendas de compradores que procuram diretamente as fábricas para executarem determinados produtos, ou seja, as empresas não realizam o esforço de vendas; é o cliente que as
procura. Nesse mercado, são poucas as empresas que podem comercializar
seus produtos sem o auxílio de intermediários. Já no mercado interno, boa parte
das empresas moveleiras depende das grandes redes de lojas e não tem um
contato direto com o consumidor final, o que as deixa dependentes das informações repassadas por estas últimas.
3.3 Integração da cadeia com os fornecedores
A principal dificuldade enfrentada pelas empresas moveleiras no relacionamento com os fornecedores é o de ter que lidar com a Associação Brasileira da
Indústria de Painéis de Madeiras (Abipa), que reúne os produtores de chapas de
aglomerado e de MDF e atua como uma espécie de cartel.
Com a instalação da primeira fábrica de MDF no Rio Grande do Sul, no
Município de Glorinha,5 houve uma melhora no fornecimento, complementada
com a inauguração do Centro de Distribuição da Masisa do Brasil6 em Porto
Alegre, inaugurado em 2005, o que representou uma economia nos custos de
frete pagos pelos seus clientes no Rio Grande do Sul. A Masisa também assinou, em setembro de 2006, um protocolo de intenções, junto ao Governo do
Estado, para a construção de uma nova fábrica de MDF, no Município de
Montenegro. Por outra parte, o Grupo Isdra planeja investir em torno de R$ 150
milhões em uma nova linha de produção de aglomerado, no mesmo terreno da
5
Uma prova da capacidade de mobilização das entidades dos fabricantes de móveis é ter
conseguido sensibilizar o Governo do Estado para a necessidade de ter, no Rio Grande do
Sul, uma empresa que produzisse painéis de MDF e de aglomerado, dada a importância
desses insumos nos móveis fabricados no Estado. Graças aos incentivos fiscais oferecidos e comprovada a viabilidade econômica do empreendimento, o Grupo Isdra estabeleceu-se no Município de Glorinha e construiu a fábrica Fibraplac, em funcionamento desde 2005
e com planos de uma futura expansão.
6
O Centro de Distribuição funciona como entreposto dos painéis de MDF fabricados pela
Masisa na Argentina, bem como da fábrica da Masisa em Ponta Grossa (PR), utilizando um
sistema multimodal rodoferroviário. Com isso, há uma economia de 10% a 15% nos fretes
pagos pelos clientes no Estado (MASISA..., 2005; MASISA..., 2005a).
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fábrica de MDF localizada em Glorinha (Klein, 2005). Além disso, a duplicação
desta última foi anunciada em fevereiro de 2006. Desse modo, é possível prever
que, no médio prazo, o abastecimento da matéria-prima básica será feito por
empresas geograficamente mais próximas.
3.4 Situação estratégica atual
A cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul tem uma
estratégia bastante definida, a de competir em preço. Além disso, a tecnologia
de ponta e a escala de produção em grandes volumes permitem que o produtor
gaúcho ofereça confiabilidade de entrega e disponibilidade de produtos. Essa
estratégia deixou para trás outras dimensões competitivas, tais como a qualidade intrínseca, a qualidade percebida, a variedade e a inovação (Agência de
Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, 2002).
Não há ênfase na qualidade intrínseca do móvel; poucas empresas empregam materiais alternativos, de maior valor agregado, ou de design mais aprimorado. Com isso, a aparência do móvel gaúcho não é diferenciada em relação ao
que é produzido por outras cadeias moveleiras do País. A variedade está limitada pela escala de operação das empresas de maior porte, baseada na automação,
e, no caso das empresas menores, que possuem maior variedade, pelos altos
custos e pela menor confiabilidade de entrega. Quanto à inovação, a cadeia
estadual privilegiou os investimentos na capacidade produtiva e não no desenvolvimento de produtos, já que a ênfase estratégica estava centrada no preço.
Contudo essa situação não parece ser sustentável no médio prazo, pois as
cadeias moveleiras concorrentes — principalmente as do Paraná e de São
Paulo — possuem menores custos logísticos e, aos poucos, deverão equiparar-se em tecnologia e escala de operação.
A cadeia produtiva regional deveria orientar sua estratégia para a produção de móveis diferenciados, com maior valor agregado, inovando a aparência
destes através do uso de novos materiais e utilizando melhores práticas de
acabamento e de design, mesmo que a um preço mais elevado. Assim, estaria
ocupando-se um novo nicho de mercado, onde a qualidade percebida passaria a
ser o principal fator estratégico. Essa nova estratégia não seria excludente, ou
seja, não substituiria a fabricação de produtos padronizados, posto que as empresas moveleiras investiram intensamente em tecnologia e na capacidade produtiva existente, e esse investimento precisa ser remunerado. Entretanto as
duas estratégias poderiam conviver simultaneamente, permitindo o atendimento da demanda de diferentes segmentos de mercado, tanto a de móveis mais
populares quanto a dos mais sofisticados.
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4 O Arranjo Produtivo Local moveleiro
de Bento Gonçalves
O Município de Bento Gonçalves — possuidor de uma população total de
95.268 habitantes em 2003 — está localizado na região da Serra gaúcha, uma
das mais industrializadas do Estado, e o seu PIB industrial representava, ainda
em 2003, 58,2% de sua economia. Seu Índice de Desenvolvimento
Socioeconômico (Idese), calculado pela Fundação de Economia e Estatística,
foi de 0,808 nesse mesmo ano, superior à média do Estado (0,757), ficando em
sexto lugar no ranking de todos os municípios do Rio Grande do Sul, o que
indica uma situação privilegiada (FEE, 2006).
Com base nos critérios propostos pela RedeSist (2005), citados anteriormente, e, dada a evolução anterior da aglomeração de empresas moveleiras e
de setores complementares de Bento Gonçalves, considera-se que a mesma
pode ser definida como um arranjo produtivo local com potencial para tornar-se
um sistema produtivo e inovativo local. Ou seja, apesar de ser um dos pólos
moveleiros mais avançados do País, ainda é necessário desenvolver novas
formas de articulação entre os diversos agentes econômicos e as instituições
locais para atingir uma nova cultura organizacional e competitiva com base na
inovação.
O APL moveleiro de Bento Gonçalves é o maior da Região Sul do Brasil.
Especializou-se na produção de móveis retilíneos fabricados com painéis de
madeira reconstituída (aglomerados e MDF), e várias das empresas nele localizadas adotaram práticas avançadas de incorporação tecnológica e de desenvolvimento de produtos (Brasil, 2002; Vargas; Alievi, 2000). Sua região de
influência estende-se a outros municípios vizinhos da região da Serra gaúcha,
tais como: Garibaldi, Farroupilha, Flores da Cunha, São Marcos, Antônio Prado
e Caxias do Sul. É por exercer essa influência regional que Bento Gonçalves,
conforme a tipologia proposta por Suzigan et al. (2003), constitui um núcleo de
desenvolvimento setorial-regional. Nessa região, estão localizadas algumas
das mais modernas e maiores empresas do setor, que se destacam pelo design
e pela qualidade de seus produtos, como Todeschini, Carraro, Florense
e Dell Anno. A produção concentra-se em três categorias de móveis: residenciais
(92%); de escritório (7%) e institucionais, tais como para escolas e hospitais
(1%).
No entanto, o padrão tecnológico do APL moveleiro é bastante díspar. As
empresas líderes encontram-se em fase avançada de atualização tecnológica e
utilizam modernas técnicas de gestão administrativa. Porém, segundo relatório
da Secretaria de Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais (Sedai), não
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mais do que cinco fábricas do arranjo produtivo da região da Serra gaúcha estariam atualizadas em relação às características tecnológicas dos países desenvolvidos. As médias empresas encontram-se em um nível tecnológico intermediário, e as micro e as pequenas empresas são as mais atrasadas (Rio Grande
do Sul, 2000).
A maioria das médias e grandes empresas opera máquinas e equipamentos dotados de controladores numéricos computadorizados (CNCs). Contudo,
dado que o processo produtivo não é contínuo, a modernização às vezes é
parcial, possibilitando a coexistência de máquinas modernas e obsoletas em
uma mesma planta. A fim de superar o atraso, a estratégia das empresas menores para a rápida atualização dos produtos tem sido a cópia direta dos modelos
lançados pelas empresas líderes.
O APL dispõe de fornecedores de matéria-prima, acessórios, serviços
especializados, máquinas e implementos e de instituições, tais como associações de empresários, centro tecnológico, universidade e centro de treinamento
da mão-de-obra;7 ou seja, os fabricantes de móveis contam com uma importante estrutura de apoio.
Tanto as instituições de apoio localizadas no APL como as externas vêm
demonstrando um nível elevado de comprometimento para fortalecer a cadeia
produtiva moveleira da Serra gaúcha, tendo adotado uma orientação de longo
prazo a respeito dos relacionamentos entre elas e com as empresas moveleiras,
visando fomentar o estabelecimento de relacionamentos cooperativos
interorganizacionais. No que se refere às instituições difusoras do conhecimento, o comprometimento tanto da Universidade de Caxias do Sul quanto do Centro Tecnológico do Mobiliário é evidenciado pelos vultosos investimentos realizados nos cursos e nos laboratórios dedicados especificamente ao setor de
móveis.
Além disso, existe um elevado nível de confiança entre as instituições de
apoio. As que compõem o Conselho de Administração do Centro Gestor da
Inovação, por exemplo, atuam de forma coordenada e tentam colocar em prática
7
Em nível local, o APL de Bento Gonçalves congrega uma série de instituições de apoio muito
atuantes — a Associação das Indústrias de Móveis do Estado do Rio Grande do Sul (Movergs),
o Sindicato das Indústrias do Mobiliário de Bento Gonçalves (Sindmóveis), a Universidade de
Caxias do Sul–Campus da Região dos Vinhedos (UCS/Carvi), o Centro Tecnológico do Mobiliário (Cetemo), o Centro Gestor de Inovação (CGI) e o Centro de Indústria, Comércio e
Serviços de Bento Gonçalves (CIC) —, as quais desempenham diferentes funções, mas
atuam com vários objetivos comuns. O APL também conta com o apoio de outras instituições
estaduais, tais como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae),
a Pólo RS e a Secretaria de Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais do Estado do Rio
Grande do Sul.
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a resolução conjunta de conflitos, enquanto a UCS e o Cetemo procuram evitar
a superposição de cursos.
Por outra parte, alguns indivíduos do APL destacam-se como líderes
influentes, principalmente aqueles mais vinculados às entidades que congregam os empresários. Em função dessa liderança, a Movergs, o Sindmóveis e o
CGI constituem os agentes coordenadores das relações interempresariais no
interior do APL, ou seja, exercem a governança local.
Mas, embora o APL conte com um conjunto de instituições maduras voltadas para o fortalecimento da aglomeração produtiva e a conseqüente obtenção
de vantagens competitivas, os ganhos não são automáticos. Há uma certa
resistência entre os empresários locais ao estabelecimento de vínculos mais
estreitos na cadeia produtiva, tanto horizontais quanto verticais, fato que prejudica substancialmente os ganhos que poderiam advir da atuação conjunta geradora de eficiência coletiva.
4.1 Dependência entre fornecedores
e empresas moveleiras
Nas entrevistas realizadas com fornecedores, tentou-se avaliar até que
ponto eles dependem das compras realizadas pelas empresas do APL. O resultado indica que a dependência dos grandes fornecedores em relação às empresas moveleiras de Bento Gonçalves é de baixa para média. Inversamente, a
dependência relativa destas últimas é muito superior, principalmente em relação
aos oligopólios de fornecedores de fórmica e aos de chapas de aglomerado e
MDF. Ou seja, as vendas desses fornecedores são bastante pulverizadas no
País, e o peso do APL, atualmente, não é suficientemente significativo a ponto
de alavancar o poder de barganha das empresas moveleiras. Mesmo quando o
fornecedor realiza investimentos visando atender a necessidades específicas
dos fabricantes de móveis, a dependência do fornecedor é relativa, pois a este
não resulta difícil redirecionar os produtos para outros mercados consumidores.
Assim, as possibilidades de se estabelecerem relacionamentos estratégicos
com esses fornecedores são muito limitadas.
Um outro indicador de baixa interdependência a montante na cadeia de
suprimentos é a ausência de ações conjuntas de pesquisa e desenvolvimento
(P&D) entre fornecedores e empresas. Já a fabricação de produtos personalizados pode ser tomada como um indicativo de comprometimento, mas também
retrata a facilidade com que as novas tecnologias permitem reprogramar a produção sem perda de eficiência.
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Em síntese, a dependência dos grandes fornecedores de insumos com
peso importante na produção do móvel de madeira não é muito significativa em
relação às vendas para o APL, ou seja, é uma dependência assimétrica. O
poder econômico dos grandes fornecedores é muito superior àquele das empresas moveleiras do APL, mesmo as de maior porte, acarretando um poder de
barganha relativamente baixo. Assim sendo, a concentração de empresas
moveleiras no APL não é fator de atração suficiente para o adensamento de
importantes elos da cadeia produtiva de madeira e móveis regional. Os fornecedores de chapas de MDF, compensado e fórmica, para garantirem o retorno
sobre os vultosos investimentos requeridos por essa indústria preferem estabelecer-se próximos à matéria-prima ou próximos aos grandes mercados consumidores.
4.2 Práticas associativas
As empresas do APL enfrentam muitas dificuldades para praticar o
associativismo. Os empresários são intrinsecamente desconfiados e apresentam uma grande resistência à cooperação. Seguindo o exemplo dos primeiros
imigrantes italianos que se estabeleceram na Serra gaúcha e fabricavam integralmente seus próprios móveis, os empresários da região acostumaram-se a
fazer os móveis por inteiro, do início ao fim. Durante décadas, tiveram empresas
totalmente verticalizadas e somente começaram a terceirizar nesta última década, quando o processo produtivo ficou mais complexo, e houve necessidade
de aumentar a eficiência. Contudo esse afã de produzir o móvel integralmente
foi absorvido também pelos terceirizados, pois, assim que estes se fortalecem,
passam a ter vida própria e a trabalhar como concorrentes.
As redes de pequenas e médias empresas poderiam ser uma saída para
que as de menor porte pudessem enfrentar a concorrência das grandes, bem
como para fortalecerem o poder de barganha frente a fornecedores e compradores. Aqui, novamente, as dificuldades são de relacionamento, a julgar pelos
resultados da Associação dos Fabricantes de Estofados e Móveis Complementares (Rede Afecom)8, onde poucas empresas se adaptaram à atuação conjunta. No seu auge, a Rede chegou a ter um showroom em Miami.
8
A Rede Afecom originou-se no APL de Bento Gonçalves, no final do ano 2000. Constitui uma
aliança estratégica intra-indústria, formada por nove empresas que concorrem nos mesmos
mercados geográficos e que pretendem usufruir economias de escala com base na cooperação e na ação conjunta. Trata-se de uma rede de pequenas empresas, organizada a partir
de um programa estadual coordenado pela Sedai, que busca incentivar a formação do
Programa Redes de Cooperação no Rio Grande do Sul.
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4.3 Elos da cadeia produtiva moveleira
de Bento Gonçalves
Os gargalos enfrentados pelos fabricantes de móveis do APL de Bento
Gonçalves são semelhantes aos relatados para a cadeia produtiva do RS e
afetam profundamente a competitividade das empresas.
Por um lado, apesar de ter havido um importante processo de substituição
de fornecedores de acessórios de outros estados e do exterior por fornecedores
locais, grande parte das chapas de aglomerado e de MDF utilizadas no APL
ainda são trazidas do centro do País, onerando o produto final.
Por outro, considerando o poder econômico dos fabricantes de aglomerado
e de MDF, bem como o das grandes redes de lojas nacionais descrito anteriormente, não restam dúvidas de que os fabricantes de móveis são o elo mais
fraco da cadeia produtiva de madeira e móveis. Ambos os fatos deixam as
fábricas muito vulneráveis em relação tanto aos fornecedores quanto aos clientes e limitam seu poder de negociação, pressionando a taxa de lucro para baixo.
Diante desse quadro, as exportações já foram tidas como uma opção de sobrevivência para as empresas do APL, mas a valorização do real registrada nos
últimos anos acabou prejudicando as vendas externas.
4.4 A cooperação no interior do APL
Apesar de, nos últimos anos, ter havido um aumento na cooperação
interempresarial dentro do APL, o tipo de cooperação predominante ainda é de
curto prazo, para a solução de questões pontuais, tais como o empréstimo de
insumos. A rivalidade entre as grandes empresas é acentuada, e não existe
qualquer tipo de cooperação entre elas, nem mesmo dentro das entidades de
classe. Inclusive, ninguém espera que se produza uma aliança estratégica entre
duas ou mais grandes empresas em função de mudanças nas condições de
mercado, tais como a intensificação da concorrência externa ou a maior concentração do setor. Quanto às PMEs, a cooperação é mais intensa entre aquelas que fazem parte de projetos coordenados pelas instituições de apoio, tais
como o Sebraexport Móveis9 e o Programa Redes de Cooperação, da Sedai.
9
O Sebraexport Móveis foi implementado pelo Sebrae-RS, com a finalidade de aumentar as
exportações de móveis do Estado, e conta com a parceria da Movergs e do Sindmóveis. O
projeto é subsidiado pelo Governo Federal através da Agência de Promoção de Exportação
(Apex) e promove ações de promoção comercial e de capacitação de empresas para
atuarem no comércio internacional.
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As instituições de apoio são as responsáveis pelo aprofundamento da cooperação no APL, graças ao empenho de alguns líderes, à organização de
atividades e programas e a investimentos específicos — feiras, cursos, laboratórios, pesquisa — realizados com a finalidade de alavancar o desenvolvimento
do APL. Contudo a maior dificuldade para incrementar a cooperação entre as
instituições de apoio e as empresas e entre as próprias empresas reside nas
deficiências de comprometimento e de confiança.
4.5 Canais de distribuição e de comercialização
As micro, pequenas e médias empresas do APL enfrentam dificuldades
para organizar canais de distribuição e de comercialização próprios, dependendo cada vez mais das grandes redes varejistas. Dado o maior poder de barganha dessas redes, os lucros vêm declinando, comprometendo, assim, a capacidade de investir em treinamento de mão-de-obra, pesquisa e desenvolvimento
de novos materiais, design, qualidade, etc. Contudo algumas médias e grandes
empresas moveleiras estão conseguindo superar essa dependência mediante o
estabelecimento de redes de lojas exclusivas, próprias ou licenciadas. Uma
outra alternativa mais tradicional consiste na contratação de representantes de
vendas para as diferentes regiões do Estado ou para outros estados.
Quanto aos tipos de relacionamentos que se estabelecem com o mercado
externo, prevalece a diversidade. A maioria das empresas vale-se de grandes
empresas internacionais de comercialização e de distribuição, de representantes internacionais ou de trading companies, e, portanto, tais empresas submetem-se a uma série de exigências do comprador, pois este já vem com
especificações completas sobre o produto e o processo, bem como sobre o
preço que ele está disposto a pagar. Inserem-se, assim, na tipologia de Gereffi
(1999) de cadeias de valor globais coordenadas pelo comprador. Um outro grupo
de empresas, principalmente as de maior porte, opta pela exportação através
de canais próprios, pela abertura de lojas exclusivas na América Latina e nos
grandes mercados consumidores ou pela formação de consórcios de exportação. Apenas uma minoria consegue estabelecer canais de comercialização que
não sufocam o desenvolvimento da empresa e que permitem que haja um processo de aprendizado, de capacitação para a inovação e para o upgrading. Geralmente, são empresas que, primeiramente, se fortalecem no mercado interno,
explorando as economias de escala da produção em série. Como o percentual
inicialmente comprometido com a exportação é relativamente baixo, a dependência em relação às cadeias de valor globais não é significativa, e, com isso,
têm autonomia para estabelecer seus próprios canais de comercialização. É
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uma forma mais lenta de entrar no comércio exterior, mas, certamente, muito
mais rentável a médio e longo prazos, que permite manter as funções que geram maior valor agregado, tais como design e marketing.
As exportações do APL pararam de crescer em 2005 e 2006, refletindo o
impacto negativo da valorização do real frente ao dólar norte-americano, em um
setor industrial que se utiliza muito pouco de insumos importados e que, portanto, não consegue reduzir seus custos trazendo insumos do exterior. Além disso,
apesar dos ganhos de produtividade resultantes da utilização de tecnologias
mais avançadas, uma série de fatores incide sobre o preço final do produto e
afeta sua competitividade, tais como problemas de logística decorrentes da
localização geográfica adversa em relação aos principais fornecedores e aos
grandes centros consumidores, custos de transporte mais elevados e tributos
em ascensão. Contudo, para ampliar o market share no mercado externo, é
preciso mudar de estratégia. Enquanto os produtos exportados continuarem sendo
commodities industriais, estar-se-á ganhando mercado em produtos de baixo
valor agregado, onde o fator preço é determinante, o que torna muito frágil a
sustentabilidade da inserção externa. A desvantagem da ênfase no fator preço é
que sempre haverá outro país que ofereça o mesmo produto a um preço menor,
em função do custo da mão-de-obra ou da matéria-prima mais barata. A estratégia alternativa mais favorável seria investir na qualidade intrínseca do móvel, na
diferenciação do produto, procurando utilizar materiais alternativos e um design
mais ousado.
5 Conclusão
O APL moveleiro de Bento Gonçalves irradia sua influência para outros
municípios da região e pode ser considerado um núcleo de desenvolvimento
setorial-regional, tendo como base de sustentação uma série de instituições de
apoio que avalizam seu potencial. Apesar dessa situação privilegiada, o aglomerado enfrenta diversos gargalos, que prejudicam a competitividade da produção de móveis, tais como insuficiência de fornecedores locais ou regionais de
insumos básicos, custos logísticos mais elevados que os de outros concorrentes nacionais, baixo poder de barganha frente a fornecedores e clientes, reduzida escala de produção de algumas empresas e serviços deficientes.
Muitos desses gargalos poderiam ser mais bem resolvidos através de uma
atuação conjunta, mas o que se observa claramente no arranjo produtivo são
apenas características típicas da existência de economias externas incidentais:
elevada concentração de trabalhadores especializados na produção de móveis,
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492
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presença de representantes e/ou de fornecedores de insumos e serviços e rápida difusão de novos conhecimentos.
Existe, portanto, um déficit de cooperação, seja de forma coletiva, por
meio de projetos com as instituições de apoio, seja através de acordos entre
empresas. Isto é: as empresas continuam enfrentando seus problemas de forma individual, salvo raras exceções, não obstante a disponibilidade de centros
de treinamento de mão-de-obra e de formação de quadros universitários
especializados, a facilidade para entrar em contato com fornecedores de bens e
serviços no próprio APL e a difusão de novos conhecimentos — através das
instituições de apoio, das feiras locais ou como resultado da rotatividade dos
trabalhadores.
Mesmo assim, ao usufruírem das economias externas incidentais, as empresas do APL ficam em melhor situação do que outras da mesma cadeia produtiva que estão geograficamente dispersas. Observa-se, porém, a falta de uma
interação mais efetiva entre os agentes econômicos e sociais para desenvolverem um maior número de atividades conjuntas geradoras de eficiência coletiva
e, principalmente, uma subutilização das instituições de apoio. Conseqüentemente, há um descasamento entre os esforços realizados pelas instituições de
apoio para intensificar a cooperação no APL e os baixos níveis de comprometimento externados pelas empresas.
Sem dúvida, o fato de os fabricantes de móveis estarem concorrendo principalmente em preço e com produtos semelhantes intensifica a rivalidade entre
eles e inibe as tentativas de cooperação. Enquanto a concorrência não se
transladar para outros fatores, como, por exemplo, a qualidade, o design, ou os
novos materiais, a cooperação tende a ficar estagnada. Diante desse quadro, as
pequenas e médias empresas são as mais prejudicadas por essa falta de cooperação, já que não usufruem das economias de escala que as grandes têm e
nem sempre possuem os recursos necessários para investir e concorrer em
fatores que dependem da inovação.
No entanto, mesmo sendo rivais, ainda existe um espaço para cooperarem
na solução de problemas comuns que possam melhorar a competitividade dos
produtores locais, como, por exemplo, na certificação de uma marca de origem
para os móveis do APL, na redução dos custos de transporte, compartilhando
containers para o mesmo destino, ou na instalação de uma central de compras
de insumos para essas empresas.
Além disso, as empresas desse APL poderiam aproveitar o fato de contarem com importantes instituições de apoio localizadas no próprio município para
intensificarem a cooperação em áreas ainda pouco exploradas, como na montagem de estruturas comerciais para ingressar em novos mercados externos, tais
como os de países da Ásia e da África. As grandes empresas contam com seus
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A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves...
493
próprios canais de comercialização, mas as pequenas e as médias precisam de
apoio e orientação, já que as despesas para adquirirem um conhecimento prévio
dos mercados — cultura, gostos e preferências dos consumidores, canais de
comercialização, legislação, dentre outros — são elevadas.
Desse modo, a situação do APL não é, no momento, muito promissora,
pois a cooperação exige doses elevadas de confiança e comprometimento, e a
desconfiança mútua ainda bloqueia a maioria das iniciativas. Dada a resistência
à cooperação, enquanto a produção não se tornar mais diferenciada, a tendência é a de manutenção do quadro atual, em que as grandes empresas conseguem contornar os gargalos do APL de forma isolada, enquanto os fabricantes
menores não se organizam e continuam sofrendo as pressões de custo de fornecedores e de clientes mais poderosos.
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
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A indústria moveleira da Região Sul do
Brasil e seus impactos na economia
regional: uma análise em Matriz de
Insumo-Produto Multirregional*
Darlan Christiano Kroth**
Ricardo Luis Lopes***
José Luiz Parré
Aluno do Programa de Mestrado em Economia
da Universidade Estadual de Maringá-PR
Professor do Programa de Mestrado em Economia
da Universidade Estadual de Maringá-PR
Professor do Programa de Mestrado em Economia
da Universidade Estadual de Maringá-PR
Resumo
O presente trabalho busca analisar os impactos da indústria moveleira da Região Sul do Brasil sobre suas economias regionais, utilizando-se, para isso, do
instrumental de Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Nesse sentido, foi
calculada, a partir da Matriz de Insumo-Produto nacional, a matriz multirregional
da Região Sul do Brasil para o ano de 1999. Os principais resultados encontrados foram que há alto efeito de ligação do setor de móveis com os demais
setores da economia, alto índice de multiplicador de produto, confirmando-se
como setor-chave, no sentido “para trás” , para as economias estaduais do Paraná e de Santa Catarina. Outro resultado destacado é a forte correlação do
setor da construção civil com o setor de móveis, indicando que os créditos
direcionados para a compra de imóveis são bem sentidos pela indústria moveleira.
Palavras-chave
Indústria de móveis; Matriz de Insumo-Produto; economia regional aplicada.
* Artigo apresentado no IX Encontro de Economia da Região Sul (Anpec-Sul), em Florianópolis,
em julho de 2006.
Artigo recebido em jul. 2006 e aceito para publicação em maio 2007.
** E-mail: [email protected]
*** E-mail: [email protected]
Os autores agradecem ao Professor Doutor Joaquim José Martins Guilhoto o fornecimento
da Matriz Insumo-Produto Multirregional utilizada neste trabalho.
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498
Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Abstract
The objective of this paper is to determine the impact of the South region furniture
industry of Brazil on its regional economies. For this purpose, Multiregional
input-output tables from the Brazilian South region for 1999 are constructed. The
results suggest the existence of a high linkage effect of the furniture sector with
other sectors and a high output multiplier. This result confirms the furniture industry
as a key sector in terms of backward linkage for the State economies of Paraná
and Santa Catarina. Also, there is strong correlation between the civil construction
and furniture sectors, what indicates that the furniture industry is sensitive to
House loans.
Key words
Furniture industry; input-output models; applied regional economy.
Classificação JEL: L68, C67, R15.
1 Introdução
Nos últimos anos, cresceu o interesse nos estudos sobre o setor de móveis no Brasil, devido às transformações que essa indústria sofreu através do
impacto da abertura comercial. Como maiores transformações, destacam-se o
uso de novas tecnologias e o de novas matérias-primas. Outro aspecto que
despertou interesse é o desempenho no comércio exterior, que cresceu a uma
taxa média de 19% a.a. no período de 1991 a 2004.
A Região Sul do Brasil possui significativa representatividade nessa indústria, pois conta com grande número de empresas, equivalente a mais de 40% do
total do País, gerando cerca de 44% dos postos de trabalho do setor. Outra
característica das empresas da Região é a forte participação no mercado
externo, no qual respondem por mais de 80% das vendas nacionais (Abimóvel,
2005).
A forma de localização dessas empresas, geralmente formando pólos ao
redor de determinadas cidades, a exemplo dos pólos de Bento Gonçalves (RS),
São Bento do Sul (SC) e Arapongas (PR), suscita vários estudos acerca da sua
maneira de interação no que tange à exploração dos ganhos de competitividade,
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
499
devido à sua aproximação. Nesse sentido, a maioria dos estudos desses pólos
está ligada à teoria de Arranjos Produtivos Locais (APLs).
A forte presença desse tipo de indústria motiva ainda questionamentos
acerca das externalidades criadas na economia local, como geração de emprego e renda, e em relação à existência de efeitos de ligação (linkage effect) para
outras regiões próximas e ao efeito transbordamento (spillover effect) para outros setores.
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar esses efeitos e
mensurar a capacidade dinamizadora do setor moveleiro para as economias
regionais da Região Sul do Brasil. Para alcançar esses objetivos, lança-se mão
da análise da Matriz de Insumo-Produto Multirregional para o ano de 1999. As
inferências realizadas referem-se aos impactos de aumento e de redução na
demanda final sobre o setor, bem como ao cálculo dos multiplicadores de produto e aos índices de ligações de Hirschmann-Rasmussen.
O artigo divide-se em quatro seções, além desta Introdução, sendo que,
na primeira, são expostas as características da indústria moveleira do País. Na
seção seguinte, exploram-se os pólos da Região Sul do Brasil, bem como os
aspectos das suas firmas. Na terceira seção, é demonstrada a metodologia da
Matriz de Insumo-Produto, e, na quarta, os resultados obtidos. Para finalizar,
apresentam-se as conclusões, bem como as limitações e as sugestões para
próximos trabalhos.
2 Aspectos gerais da indústria moveleira
Os estudos que tratam do setor moveleiro no Brasil ganharam maior relevo
nos últimos anos, devido a dois fatores: (a) as mudanças ocorridas no setor
através do processo de abertura comercial; e (b) as características da localização das fábricas, geralmente em regiões próximas, tornando o setor importante
para as economias regionais, no que tange à geração de emprego e renda.
Nesse panorama, os estudos que tratam do primeiro fator buscaram captar
características gerais do setor, como a realização de diagnósticos e panoramas, dentre os quais destaca-se o de Gorini (1998), que faz ampla análise da
indústria — talvez a mais completa já realizada —, sendo a mais citada nos
trabalhos sobre o setor. Outros trabalhos desse grupo são os estudos de mercado do BNDES (2002) e de Valença, Pamplona e Souto (2002), além do de Marion
Filho (1997).
Nos trabalhos sobre o segundo fator, exploram-se as características intrínsecas de cada pólo regional, retratados, sobretudo, nos estudos de APLs, que
analisam as características das firmas de cada região, na tentativa de extrair
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500
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peculiaridades e idéias que poderiam ser dinamizadas para outras regiões. Sobre esse assunto, encontra-se vasta literatura, sendo apresentados, neste artigo, os estudos referentes ao pólo de Bento Gonçalves (RS), feitos por Roese e
Gitahy (2004), ao pólo de São Bento do Sul (SC), através da análise de Denk e
Cario (2002), e ao pólo de Arapongas (PR), realizado por Camara et al. (2002). O
trabalho de Serconi (2003) alia os três pólos.
As transformações que sofreu o setor de móveis a partir da década de 80,
impondo uma reestruturação das empresas nacionais, e que despertaram o
interesse na pesquisa decorrem dos seguintes fatores: (a) o processo de abertura comercial, que possibilitou o contato com o mercado externo, tanto consumidor como de tecnologias; (b) o uso de novas matérias-primas — como a
madeira reflorestada e a utilização do Médium Density Fiberboard (MDF)1 —; e
(c) o aumento do mercado interno (o boom pós-Plano Real).
O mercado externo possibilitou o acesso a novos mercados, pois, de acordo com dados de Valença, Pamplona e Souto (2002) e Abimóvel (2005), as
exportações de móveis passaram de US$ 40 milhões em 1991 para US$ 941
milhões em 2004. Crescimento significativo, se comparado ao crescimento das
vendas externas em nível nacional. Além da ampliação das vendas, o comércio
exterior possibilitou o acesso a novas tecnologias, gerando a modernização do
parque de máquinas e a incorporação dos ganhos de produtividade.
Para Coelho e Berger (2004), o bom desempenho no comércio exterior
decorreu, sobretudo, dos ganhos de competitividade (baixos custos da matéria-prima e da mão-de-obra e utilização de novas tecnologias) e, em menor grau,
da ampliação do mercado mundial de móveis e da criação de novos mercados.
Salienta ainda que, a partir de 1995, a competitividade perdeu ímpeto, devido à
valorização do real.
A utilização de novas matérias-primas, como o intenso uso de madeira
reflorestada (pínus e eucalipto), além da inserção, na década de 90, do MDF,
resultou na redução de custos e em melhoramentos no processo produtivo,
como a intensificação da produção em série. A utilização do MDF ganhou força,
quando, a partir de 1997, se instalaram as primeiras fábricas no Brasil.
Atualmente, conforme dados do BNDES (2002), o setor conta com sete empresas, em São Paulo e no Paraná, que acabam abastecendo em 90% o mercado
nacional. As matas reflorestadas aumentaram significativamente no período,
em decorrência das exigências ambientais e do alto custo da madeira advinda
do norte e do centro-oeste brasileiro, sobretudo de Mato Grosso, Pará e Amazonas (Correia et al., 2004).
1
MDF são painéis de madeira reconstituída, sob a forma de cavacos. Outros tipos são os
painéis de madeira aglomerada (particle board) e as chapas de fibra ou chapas duras
(hardboard).
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O terceiro fator de destaque é a ampliação do mercado interno, através da
explosão de consumo no período pós-Plano Real, que trouxe a possibilidade de
utilização da capacidade ociosa gerada com a ampliação do parque tecnológico,
apontada anteriormente.
Essas transformações, porém, não alteraram o perfil do setor, que, hoje,
se apresenta ainda muito verticalizado2, intensivo em mão-de-obra, agregando
pouco valor ao produto, formado por micro, pequenas e médias empresas, com
perfil administrativo familiar e de capital nacional. Para Marion Filho (1997), essas características assemelham-se ao padrão internacional, ficando a maior
diferença para a questão da verticalização.
A baixa utilização de tecnologia por parte das empresas nacionais levanta
duas questões. Uma decorre do baixo volume de crédito para a aquisição de
novas máquinas, já que a maior parte das empresas são pequenas e enfrentam
restrições de crédito nos bancos. A outra, apontada por Roese e Gitahy (2004),
refere-se ao fato de que a utilização de tecnologia não é o principal diferencial
nesse setor, pois, em nível geral, se trata de uma indústria de baixa intensidade
tecnológica, ou seja, a tecnologia de ponta para a produção de móveis está
disponível no mercado a qualquer empresa que dispuser de recursos para a sua
aquisição. Isso faz com que o diferencial competitivo das empresas esteja menos na tecnologia de produção, concentrando-se no design, nas estratégias de
comercialização e no investimento em marketing.
A Abimóvel (2005) estima que o setor moveleiro do Brasil seja constituído
por 16.112 empresas, respondendo por 189.372 empregos.3 A maior parte da
produção, 90%, é gerada nas Regiões Sudeste e Sul do País, abarcando 70%
dos postos de trabalho. A característica de localização dessas empresas deu
origem a pólos moveleiros em alguns estados, a exemplo dos três da Região
Sul, já citados, e dos pólos de Mirassol e Votuporanga, em São Paulo; Ubá, em
Minas Gerais; e Linhares, no Espírito Santo. Esses pólos buscam especializar-se em determinados tipos de produtos, para obterem vantagens competitivas e
explorarem novos nichos de mercado.
A própria diversidade que marca a origem e desenvolvimento dos pólos
moveleiros no Brasil tornou possível a existência de padrões de
especialização regionais que contemplam os diferentes segmentos da
indústria de móveis. Assim, verifica-se uma diferenciação acentuada entre
esses pólos regionais tanto com relação aos tipos de móveis fabricados e
2
Segundo Marion Filho (1997), a verticalização ocorre porque, na mesma firma (unidade de
produção), convivem inúmeros processos tecnológicos — como secagem, usinagem, acabamento e embalagem —, e, em muitas, ainda são realizados o transporte e a comercialização
de varejo. A integração vertical é mais freqüente nas médias e nas grandes empresas.
3
Dados extraídos da RAIS 2003 (Brasil, s. d.).
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502
Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
nichos de mercado como quanto aos níveis de capacitação produtiva e
inovativa. (Vargas; Alievi, 2000, p. 15).
O mercado consumidor de móveis, de acordo com Gorini (1998), é renda-elástico, variando positivamente com a renda da população. Por estar bastante
associado às variações da renda, o consumo é bastante dependente do comportamento da economia, sobretudo do setor de construção civil. Cerca de 1% a
2% da renda (após os impostos) são gastos com móveis. Outros fatores que
influenciam a demanda por móveis são as mudanças no estilo de vida da população, os aspectos culturais, o ciclo de reposição e o investimento em marketing,
que, para muitos autores, é muito baixo nessa indústria.
As mudanças no estilo de vida da população, aliadas às transformações
na indústria moveleira, a partir da década de 80, como novas tecnologias e
novas matérias-primas, foram responsáveis pela geração de ampla gama de
tipos de móveis, bem como dos insumos utilizados.
A indústria de móveis caracteriza-se pela reunião de diversos processos
de produção, envolvendo diferentes matérias-primas e uma diversidade
de produtos finais, e pode ser segmentada principalmente em função dos
materiais com que os móveis são confeccionados (madeira, metal e outros),
assim como de acordo com os usos a que são destinados (em especial,
móveis para residência e para escritório). Além disso, devido a aspectos
técnicos e mercadológicos, as empresas, em geral, são especializadas
em um ou dois tipos de móveis, como, por exemplo, de cozinha e banheiro,
estofados, entre outros. (Gorini, 1998, p. 2).
Esses novos produtos, que têm como características preços menores,
facilidades na montagem e/ou desmontagem, modelos variados e diminuição
do tempo de vida, possibilitaram, segundo Coelho e Berger (2004) e Camara
et al. (2002), um mercado de massas para o setor de móveis, com ampliação
das demandas interna e externa. Outro fator que contribuiu para a formalização
do mercado de massas foi o crescimento de redes de lojas de varejo, a exemplo
de Casas Bahia, Ponto Frio, dentre outras, que acabaram ofertando os produtos
por prazos mais extensos, facilitando o consumo. Porém, segundo Roese e
Gitahy (2004), essa configuração das redes de lojas fez aumentar os preços
dos móveis para o consumidor final, ao passo que reduziu o preço para os
fabricantes, fato este devido ao aumento da competição no setor e ao maior
poder de barganha dessas redes.
O mercado internacional de móveis gira em torno de US$ 150 bilhões,
conforme dados extraídos do International Trade Center (UNCTAD, 2006), dos
quais cerca de 65% são produzidos pelos países desenvolvidos, com destaque
para Itália, Alemanha, Canadá e EUA — esses países são também os maiores
exportadores e importadores. Os 21% restantes ficam para os países emergen-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
503
tes, com destaque para China4 — o qual é o maior exportador mundial de
móveis, com US$ 12,6 bilhões em 2004 —, Polônia, México e Malásia. O Brasil,
apesar de melhorar seu saldo exportador, ainda tem uma participação abaixo de
1% desse comércio. De acordo com Garcia e Motta (2006), os principais mercados das empresas brasileiras atualmente são EUA (40%), Reino Unido (9,3%) e
Países Baixos (5,1%), e os produtos são, sobretudo, dormitórios e salas de
jantar. A Argentina, até o ano 2000, era o segundo maior mercado de destino das
exportações brasileiras, respondendo por 16% das exportações, mas, com a
crise econômica de 2001, o país deixou de importar significativamente. Para
conquistar maior espaço no comércio exterior, a indústria nacional de móveis,
segundo Pimentel (2005), necessita inovar na área de design de seus produtos,
bem como ampliar os ganhos de escala na produção.
A partir do conhecimento das características do setor, explora-se, na próxima seção, a configuração dos pólos moveleiros da Região Sul do País e sua
relação com a economia local.
3 Os pólos moveleiros da Região Sul
do Brasil
A indústria moveleira possui forte presença na Região Sul do Brasil, na
qual estão estabelecidas 6.531 empresas, gerando cerca de 84.753 postos de
trabalho, conforme dados da Tabela 1. Isso equivale a 41% e 45% do total nacional respectivamente. As empresas localizadas nessa região fecham todo o
círculo da cadeia produtiva, possuindo empresas que vão desde a produção de
matéria-prima, como madeira reflorestada (pínus e eucalipto) e fabricação de
MDF, até empresas de bens de capital, na produção de máquinas para o setor.
Outro fator de destaque da indústria moveleira regional é a boa participação nas exportações: os três estados, juntos, são responsáveis por mais de
80% das exportações brasileiras do setor, conforme apresentado na Tabela 2. O
bom desempenho dessas empresas no mercado externo, sobretudo as do Rio
Grande do Sul e as de Santa Catarina, decorre da busca por especialização
nesse mercado, aliando qualidade dos produtos e baixo preço. O interesse pelo
comércio exterior surgiu na década de 80, quando o mercado interno enfrentava
restrições.
4
De acordo com Kroth (2003) e Correia et al. (2004), a China é um dos principais importadores
de madeira do País, assim como os países desenvolvidos, os quais acabam a beneficiando,
reexportando móveis. Nesse aspecto, o Brasil perde mercado para seus produtos de maior
valor agregado, ficando apenas como supridor de matéria-prima.
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Tabela 1
Número de empresas e de empregos do setor moveleiro
na Região Sul e no Brasil — 2005
DISCRIMINAÇÃO
EMPRESAS
EMPREGOS
Paraná .................................
2 103
28 217
Santa Catarina .....................
1 961
25 566
Rio Grande do Sul ...............
2 467
30 970
Região Sul ..........................
6 531
84 753
Brasil ....................................
16 112
189 372
FONTE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — AbiFONTE: móvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil: informações gerais.
FONTE: São Paulo, 2005. 75p. Disponível em: <http://www.abimovel.com>. Acesso
FONTE: em: 19 nov. 2005.
Tabela 2
Exportações do setor moveleiro realizadas pelos estados
da Região Sul — 2004
COLCHÕES
(US$)
TOTAL
(US$)
% DO
TOTAL
DO
BRASIL
Santa Catarina ....... 17 382 206 409 462 260
144 652
426 989 118
45,0
Rio Grande do Sul 45 776 347 230 335 923
407 366
276 519 636
29,0
Paraná .................... 30 066 412
108 410
91 934 085
9,7
ESTADOS
ASSENTOS
(US$)
MÓVEIS
(US$)
61 759 263
FONTE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — AbiFONTE: móvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil: informações gerais.
FONTE: São Paulo, 2005. 75p. Disponível em: <http://www.abimovel.com>. Acesso
FONTE: em: 19 nov. 2005.
O trabalho de Serconi (2003) demonstra que há uma grande interação entre
a indústria e instituições, como universidades, centros tecnológicos e de treinamento, que acabam colaborando na busca por inovações e na melhoria da
capacitação da mão-de-obra nessa indústria.
A grande presença desse tipo de empresa na região decorre, segundo
Marion Filho (1997), das características da sua colonização nas décadas de 50
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
505
e 60, dado que a região possuía vasta floresta de araucária — madeira propícia
para a produção de móveis —, aliada à experiência dos colonizadores (italianos
e alemães) e à baixa necessidade de capital.
Atualmente, a indústria está organizada através de pólos moveleiros:
regiões que concentram grande número de empresas, fornecedores e prestadores
de serviços ligados ao mobiliário. A proximidade dessas firmas gera ganhos de
competitividade para as mesmas, pois reduz seus custos logísticos, havendo
maior disponibilidade de matéria-prima e de mão-de-obra especializada, além da
boa localização para os canais exportadores do Mercosul. As principais regiões
produtoras são apontadas no Quadro 1.
Quadro 1
Principais pólos moveleiros em cada estado da Região Sul do Brasil — 1999
ESTADOS
Paraná
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
PÓLOS MOVELEIROS
Arapongas
Curitiba
Londrina
São Bento do Sul
Rio Negrinho
Bento Gonçalves
Flores da Cunha
Caxias do Sul
Gramado
Canela
FONTE: VALENÇA, A. C. V.; PAMPLONA, L. M. P.; SOUTO, S. W. Os novos
desafios para a indústria moveleira no Brasil. BNDES Setorial, Rio de
Janeiro, n. 15, p. 83-96, mar. 2002.
A grande concentração de empresas e o bom desempenho no comércio
exterior acabam gerando efeitos de ligação e transbordamento, fazendo com
que outros setores e regiões também sejam beneficiados com o desenvolvimento dessa indústria.
Essa forma de organização é muito próxima das características encontradas nos APLs, que, de acordo com Schmitz (1997), consistem num grande
número de pequenas e médias empresas de um mesmo setor, localizadas geograficamente próximas, contemplando vários elos da cadeia produtiva, como
fornecedores, prestadores de serviços, empresas de máquinas, presença de
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
506
Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
mão-de-obra especializada, o que acaba gerando externalidades positivas para
todas as empresas da região. Em APLs mais desenvolvidos, a existência da
cooperação entre as empresas possibilita a troca de informações, favorecendo
a disseminação de novas tecnologias de produção. Nesse sentido, muitos dos
estudos desses pólos buscaram identificar a existência dessas características.
Nesse sentido, os trabalhos de Marion Filho (1997) e Roese e Gitahy (2004)
apontaram a existência de dois pólos no Rio Grande do Sul: Bento Gonçalves e
Gramado. O Estado é o segundo maior produtor de móveis do País, representando, em média, 20% do valor da produção nacional. Apresenta cerca de 2.467
empresas, sendo sua produção direcionada predominantemente para o mercado interno (18% no próprio Estado e 75% em outros estados). As exportações
do Estado situam-se em torno de 7% da sua produção total, tornando-o o segundo maior exportador do País (Tabela 2).
Os pólos gaúchos concentram-se na produção de móveis residenciais —
principalmente cozinhas e dormitórios — e para escritório, sendo que o pólo de
Bento Gonçalves está mais voltado para a fabricação de móveis retilíneos
seriados (de madeira aglomerada, chapa dura e MDF). De acordo com Garcia e
Motta (2006) e com o Sindicato das Indústrias do Mobiliário (2006), somente a
Cidade de Bento Gonçalves emprega cerca de 8.500 pessoas — entre empregos diretos e indiretos — em 265 empresas formais, com faturamento anual de
R$ 1,2 bilhão. Com esses números, a região de Bento Gonçalves caracteriza-se
como um sistema industrial moveleiro importante tanto para o Estado do Rio
Grande do Sul quanto para o Brasil.
O Estado de Santa Catarina possui mais de 1.900 fábricas de móveis,
empregando cerca de 25,5 mil pessoas, sendo o maior estado exportador desde
1994. O direcionamento para o mercado externo, segundo Denk e Cario (2002),
decorreu das dificuldades do mercado interno na década de 80, além de ser um
período em que surgiram novas linhas para apartamentos, rejeitando os móveis
de estilo colonial — produto-padrão da região. Outros fatores que contribuíram
para a busca de novos mercados foram o acirramento da concorrência entre
pólos e a utilização de madeira reflorestada na fabricação, o que favoreceu a
redução dos preços de móveis, ganhando competitividade externa, sobretudo
para o Leste Europeu.
Segundo Marion Filho (1997), em Santa Catarina, a indústria moveleira
está mais concentrada nas microrregiões Planalto de Canoinhas (especialmente nos Municípios de São Bento do Sul, Rio Negrinho, Campo Alegre e Mafra),
Colonial de Blumenau (Blumenau, Brusque e Indaial) e Colonial de Joinvile (Joinvile
e Jaraguá do Sul), além da existência de pequenos pólos na região oeste
(Pinhalzinho, São Lourenço e Coronel Freitas). Nesse aspecto, a indústria
moveleira catarinense espalha-se por todo o Estado.
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
507
Para Denk e Cario (2002), o pólo moveleiro de São Bento do Sul possui
várias características de um APL, como as apontadas anteriormente, mas falta-lhe ainda a principal característica, ou seja, a cooperação. A região possui,
então, 350 empresas, empregando 11.000 funcionários, e constitui o maior centro exportador do País, com quase 40% do total das exportações nacionais,
confeccionando móveis para uso residencial (cerca de 80% da produção). Lá
existem empresas exclusivamente exportadoras, especialmente micro e pequenas, que trabalham, em sua maior parte, sob encomenda.
Já o Paraná possui cerca de 2.100 empresas, empregando mais de 28.000
funcionários (Tabela 1). A região de Arapongas constitui-se no maior pólo, mas
também se destacam as regiões de Curitiba e Londrina. O Estado ainda concentra o maior número de empresas produtoras de MDF, e, conforme estudo do
BNDES (2002), do total de nove empresas no País, conta com sete, possibilitando boa oferta de matéria-prima para o Estado e para a região.
Conforme Camara et al. (2002), no pólo de Arapongas, estão presentes
cerca de 140 empresas, gerando 6.100 empregos. A produção destina-se, sobretudo, ao mercado interno, mas é responsável por cerca de 40% das exportações do Estado. Destaca-se, ainda, que “[...] o crescimento do pólo acabou
estimulando a criação de empresas em cidades vizinhas que se beneficiaram
das vantagens locacionais: fornecimento de matéria-prima, máquinas, mão-de-obra qualificada, entre outros fatores nos últimos 20 anos” (Camara et al.,
2002, p. 11).
Para Garcia e Motta (2006), as empresas do pólo de Arapongas dedicam-se à produção em massa, portanto, voltam-se para o mercado de móveis populares retilíneos (quartos, cozinhas e racks) e tubulares e destacam-se no segmento de estofados. Ali existem empresas de todas as dimensões, mas as
médias e as grandes conseguem aplicar mais tecnologia no processo produtivo
e exportam a maior parte da produção, sendo responsáveis por 7% das exportações totais de móveis do País.
Verificando-se a forte presença da indústria moveleira na Região Sul e a
importância dos pólos nesses estados, é relevante buscar captar os efeitos
reais dessa indústria sobre a Região, no intuito de mensurar a capacidade de
geração de emprego e renda e de propor políticas de suporte e desenvolvimento. O estudo desses efeitos dar-se-á através de uma Matriz de Insumo-Produto
Multirregional. Na seção seguinte, apresentam-se a metodologia utilizada e, em
seguida, os resultados encontrados.
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
4 A Matriz de Insumo-Produto Multirregional
De acordo com Miller e Blair (1985), a Matriz de Insumo-Produto é a representação de dados econômicos de uma região e/ou de um país, em um determinado período, resumindo o fluxo de produção, em termos monetários, de cada
setor da economia. Ou seja, expõe todos os insumos necessários para a produção de determinado produto de um setor — mobiliário, por exemplo —, bem
como todas as vendas desse segmento para os demais setores da economia.
Compõem ainda a Matriz o grupo Demanda final, formado pelo consumo das
famílias, do Governo e pelas exportações, e o grupo Valor adicionado, composto pelos salários, pelo excedente operacional bruto, além de impostos e importações. Na Figura 1, é representada a Matriz de Insumo-Produto. Onde:
A=Z/X
(1)
X = (I-A)-1Y
(2)
A equação (1) representa o coeficiente técnico, que significa, em termos
relativos, quanto a demanda do produto do setor i, representa da demanda total
do setor. A equação (2) evidencia a Matriz Inversa de Leontief5 ((I - A)-1 ), que
representa os efeitos diretos e indiretos do produto da economia, ou seja, se
aumentar a demanda final, Y, para o setor i, quanto essa demanda afetará a
produção de todos os demais setores da economia. É na análise desses efeitos
na economia que se dá a relevância dos estudos utilizando a Matriz de Insumo-Produto, pois possibilita conhecer quanto cada setor afeta a economia como
um todo. Esse efeito é devido ao fato de que os setores da economia estão
ligados entre si: se o setor i elevar sua produção, necessitará de maiores insumos
do setor j, que, por sua vez, demandará mais insumos do setor k, e assim
sucessivamente.
Conforme Miller (1998), a análise regional parte dessa concepção, ou seja,
do interesse de conhecer como os setores de cada região e/ou estado são
afetados, bem como de verificar a ocorrência de efeitos, ligações e/ou transbordamentos entre regiões e setores do País, efeitos estes não percebidos a partir
da análise de uma matriz nacional.
5
É chamada assim em homenagem a Wassily Leontief, criador da estrutura de Matriz de
Insumo, o qual recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1973, devido a esse trabalho.
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
Figura 1
Representação da Matriz de Insumo-Produto
Z
DF
X
Z = Matriz de Transações Interindústrias
DF = Demanda Final
X = Produção Final
VA = Valor Adicionado
VA
X
NOTA: Nas linhas, são expostas as vendas de produto final de cada setor; já nas
colunas, são expostos os insumos demandados pelo setor.
Nesse aspecto, caso haja aumento da demanda final na economia, esse
modelo possibilita conhecer qual região e quais setores serão mais afetados.
Existem dois métodos para se chegar a uma matriz regional: (a) Método da
Matriz de Insumo-Produto Inter-regional (IRIO); e (b) Método da Matriz de Insumo-Produto Multirregional (MRIO). Os dois métodos são semelhantes na forma de
sua apresentação, mas se diferenciam quanto à metodologia de construção dos
dados da matriz. A Figura 2 mostra, de forma simplificada, duas regiões, L e M.
Figura 2
Representação da matriz regional
A
LL
AM L
A
LM
AMM
DF
L
D FM
X
L
XM
NOTA: ALL = transações interindústrias da região L; ALM = vendas da região L para
a região M; AML = vendas da região M para a região L; AMM = transações
interindústrias da região M; DFL e DFM = demandas finais para as regiões L e M
respectivamente; e XL e XM = produção total para as regiões L e M
respectivamente.
Nessa representação, a matriz dos coeficientes técnicos é dividida, agora,
em quatro partes: (a) ALL, representando as transações interindústrias dentro da
região L; (b) ALM, representando as vendas da região L para a região M; (c)
matriz AML, que expõe as vendas da região M para a região L; e (d) AMM, que
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
apresenta as transações interindústrias dentro da região M. A demanda final
para cada região, L e M, é representada pelas matrizes DFL e DFM respectivamente, assim como XL e XM representam a produção total para as devidas
regiões.
A diferença essencial consiste em que o método IRIO requer informações
setoriais e espaciais sobre a origem e o destino das transações interindustriais,
o que o torna um trabalho de pesquisa de dados muito difícil e custoso. Mantendo a estrutura da metodologia anterior, a forma do MRIO simplifica a obtenção
dos dados, pois os mesmos são obtidos diretamente, através da matriz nacional, a partir de estimativas para cada região.
Nesse aspecto, foi utilizada, no presente trabalho, a matriz multirregional
desenvolvida por Guilhoto e Sesso Filho (2005). A matriz está apresentada na
forma de quatro regiões — através do método MRIO anteriormente exposto —,
que são: Restante do Brasil (RBR), Paraná (PR), Santa Catarina (SC) e Rio
Grande do Sul (RS). A forma gráfica é apresentada na Figura 3.
Figura 3
Representação do método MRIO
RBRRBRB
RBRRBPR
RBRRBSC
RBRRBRS
PRPRRB
PRPRPR
PRPRSC
PRPRRS
SCSCRB
SCSCPR
SCSCSC
SCSCRS
RSRSRB
RSRSPR
RSRSSC
RSRSRS
NOTA: Cada quadrante está na forma da Figura 2.
As inferências da matriz serão feitas considerando-se três aspectos: (a)
choques na demanda final; (b) multiplicadores de produto; e (c) verificação de
setores-chave.
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
511
Quanto ao primeiro aspecto, que consiste na forma tradicional de análise
da Matriz de Insumo-Produto, a demanda final de um setor representativo de
uma região é alterada, e verificam-se os impactos ocorridos nas outras regiões,
bem como na própria região que recebeu o choque. Esses choques geralmente
são derivados de aumento e/ou diminuição dos gastos do Governo, das exportações e/ou do consumo das famílias.
Os multiplicadores de produto, de acordo com Miller e Blair (1985), informam qual o valor total de produção em todos os setores da economia que é
necessário para satisfazer o aumento de uma unidade monetária na demanda
final pelo produto do setor i. Através desse índice, podem-se captar os efeitos
diretos e indiretos, ou seja, quanto o setor i precisa produzir para satisfazer o
aumento na sua demanda final e ainda para atender à demanda dos demais
setores. A equação do multiplicador de produção é apresentada a seguir:
n
O j = ∑ bij
(3)
j =1
onde bij = cada elemento da matriz (I - A) -1 .
O último aspecto refere-se à localização de setores-chave para a economia, que consiste, segundo Guilhoto et al. (1994), em uma forma de verificar
quais setores têm maior poder de encadeamento dentro da economia, ou seja,
quanto um setor demanda dos outros setores e quanto é demandado por eles. A
localização desses setores pode ser feita através dos índices de ligação “para
trás” (backward linkages) e “para frente” (forward linkages), que podem ser calculados através da metodologia de Hirschmann-Rasmussen, exposta a seguir:
[
]
U j = B. j n B*
(ligações “para trás”)
(4)
U i = [Bi. n ] B *
(ligações “para frente”)
(5)
onde B=(I - A)-1, e B.j e Bi = somatório das colunas e linhas de B, respectivamente, B* = média de todos os elementos de B.
O interesse nesses dois índices é a possibilidade de identificação dos
setores mais significativos de uma região, que, se estimulados, poderão conduzir a um melhor desempenho do produto, do que se fossem estimulados outros
setores que apresentaram baixos índices.
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Dentro desse arcabouço, o objetivo é apontar os impactos que o setor
moveleiro da Região Sul do Brasil gera na economia regional, bem como verificar se o mesmo se apresenta como um setor-chave para esses estados. Na
próxima seção, demonstram-se os resultados obtidos.
5 Análise dos resultados
Antes de iniciar as análises através dos métodos enunciados na seção
anterior, busca-se verificar, através da matriz de coeficientes técnicos, quais
setores são os mais importantes no fornecimento de insumos para o setor
moveleiro de cada estado e quais setores são os maiores demandantes dos
produtos finais.
Verifica-se, através do Quadro 2, que, entre os setores demandados, há
uma convergência entre os três estados da Região Sul, ou seja, todos demandam mais produtos dos setores agropecuária e madeira e mobiliário. A explicação para os setores mais demandados deve-se ao fato de que a agropecuária
agrega o setor extrativista (madeira), e que o setor madeira e mobiliário se compõe de serrarias e fábricas de MDF, sendo seus produtos os maiores insumos
da indústria moveleira. Já o setor química é composto pelas indústrias de
solventes, corantes e tintas.
Quanto à estrutura de demanda das regiões, o detalhe está na identificação da origem dos insumos, pois, enquanto o Rio Grande do Sul demanda dos
setores da sua própria economia, Paraná e Santa Catarina demandam os insumos
de agropecuária e química da região RBR. Deve-se destacar que, na estrutura
de demanda do Rio Grande do Sul, a presença do setor comércio pode estar
indicando que o mesmo adquire produtos de fora do Estado, intermediando,
assim, a matéria-prima para a indústria de móveis gaúcha.
A leitura dos coeficientes pode ser feita da seguinte forma: para a indústria
de móveis do Paraná, a cada R$ 1,00 de insumo gasto na produção, R$ 0,14 são
gastos no setor agropecuária; R$ 0,12, no setor madeira e mobiliário; e R$ 0,06,
no setor de produtos químicos.
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RS
SC
PR
ESTADOS
Quadro 2
Agropecuária
Madeira e
mobiliário
Comércio
Agropecuária
Madeira e
mobiliário
Química
Agropecuária
Madeira e
mobiliário
Química
SETORES
DEMANDADOS
0,10620
0,08593
0,04691
0,10541
0,10047
0,04526
RBR
SC
RBR
RS
RS
RS
0,13866
0,12007
0,06404
COEFICIENTES
RBR
PR
RBR
ESTADO/
/REGIÃO
Madeira e
mobiliário
Construção civil
Indústrias diversas
Madeira e
mobiliário
Construção civil
Indústrias diversas
Madeira e
mobiliário
Construção civil
Materiais
elétrico/eletrônico
SETORES
COMPRADORES
RS
RS
RS
SC
SC
SC
PR
PR
PR
ESTADO/
/REGIÃO
Índices de coeficientes técnicos do setor moveleiro de cada estado
da Região Sul do Brasil — 1999
0,08593
0,02412
0,00808
0,10047
0,02319
0,01105
0,12007
0,01374
0,01199
COEFICIENTES
A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Pelo lado dos setores que compram móveis, verifica-se a predominância
dos setores madeira e mobiliário e construção civil de cada estado. Esse resultado merece dois comentários: o primeiro relaciona-se ao fato de que, nesta
análise, não estão computadas as vendas para o mercado externo, o que pode
diluir essa maior participação dos setores de cada estado; a segunda ressalva é
que o principal setor comprador — madeira e mobiliário — integra, no seu grupo,
as empresas de serraria e de MDF, podendo estar, assim, gerando um viés, ou
seja, pode estar indicando a própria compra de insumos pelas empresas de
móveis. Considerando o viés comentado, pode-se argumentar que o setor construção civil é o principal demandante de móveis, indicando a forte relação entre
os dois setores.
A próxima análise é feita com base no primeiro aspecto exposto na
metodologia, que se refere aos choques de demanda nos setores específicos,
e, em seguida, verifica onde foram gerados os maiores impactos. Nesse sentido, realizam-se três choques: um positivo e outro negativo na demanda final do
setor de móveis de cada região e outro positivo no setor construção civil, na
tentativa de evidenciar a existência, ou não, da correlação apontada acima.
O primeiro choque, então, é um aumento da demanda final, através de
exportações e do consumo doméstico, na ordem de R$ 1 bilhão, que representa
10% da produção nacional de móveis. Os valores encontrados são expostos na
Tabela 3.
Através desse exercício, evidencia-se que o setor de móveis presente na
Região Sul do Brasil é pouco interligado — baixo efeito transbordamento —
entre os estados, ou seja, o aumento da demanda por móveis num estado específico é pouco sentido nos outros. Nesse aspecto, o Paraná é o estado que
mais influencia a produção da Região, gerando aumento de 0,21% em Santa
Catarina, 0,29% no Rio Grande do Sul, e 0,17% na RBR.
Por outro lado, quando se analisam os impactos desse choque sobre a
economia do estado que recebeu o impulso, a importância da indústria moveleira
na região é verificada. Ao estimular o setor de móveis de cada estado, ocorre
uma variação de 2,84% na produção estadual de Santa Catarina e de 1,75% e
1,51% nos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul respectivamente. A maior
performance do estado catarinense talvez esteja relacionada ao fato de sua
indústria moveleira ser mais representativa para sua economia (Crise... 2006).
Quando se analisam os impactos sobre o produto nacional, o choque é mais
eficiente na região RBR, gerando um aumento de 0,40% no produto.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
Tabela 3
Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido
ao choque positivo na demanda final de móveis da ordem de R$ 1 bilhão,
nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil .....
Paraná ........................
Santa Catarina ...........
Rio Grande do Sul ......
Brasil ..........................
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil .....
Paraná ........................
Santa Catarina ...........
Rio Grande do Sul ......
Brasil ..........................
RESTO DO BRASIL
PARANÁ
No Setor
Na Região
No Setor
Na Região
20,30440
0,13270
0,09991
0,09448
-
0,44747
0,15580
0,12785
0,10590
0,40374
0,16428
41,52175
0,40174
0,18655
-
0,17151
1,75420
0,20524
0,28555
0,28767
SANTA CATARINA
RIO GRANDE DO SUL
No Setor
Na Região
No Setor
Na Região
0,05774
0,19693
45,48359
0,12779
-
0,11386
0,18977
2,84335
0,11931
0,22680
0,01127
0,01536
0,01620
72,13797
-
0,03515
0,05409
0,05135
1,51216
0,14823
FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional.
O segundo choque vai no sentido contrário da proposta anterior, ou seja,
avalia quais seriam os impactos no setor e para as economias estaduais de
uma redução da demanda externa, por exemplo, de R$ 500 milhões, gerada por
uma valorização cambial. Valor este que representa, aproximadamente, 50%
das exportações nacionais de móveis e 60% das vendas externas dos três
estados da Região (Tabela 4).
Analisando a Tabela 4, compreende-se que os impactos sobre o setor de
móveis e também sobre as respectivas economias regionais, em geral, são
menores (em termos proporcionais), quando ocorre o choque negativo. Uma
explicação para isso poderia estar no fato de que as empresas da Região Sul do
Brasil direcionam sua produção para o mercado interno, concorrendo com as
demais empresas da região RBR, quando encontram restrições no mercado
internacional. Com esse choque, a economia gaúcha é a mais penalizada, sofrendo queda de 0,76% na sua produção estadual; já em Santa Catarina, a queda fica em 0,11%. Para o Paraná, o choque negativo não é sentido, pelo contrário, sua economia responde positivamente. Uma das explicações para esse efeito
deve-se ao fato de que o Estado tem uma participação pequena nas exportações, se comparada com as de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Tabela 4
Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido
ao choque negativo nas exportações de móveis da ordem de R$ 500 milhões,
nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ......
Paraná ........................
Santa Catarina ...........
Rio Grande do Sul ......
Brasil ..........................
DISCRIMINAÇÃO
RESTO DO BRASIL
PARANÁ
No Setor
No Estado
No Setor
No Estado
0,17484
0,09854
0,07420
0,07017
-
0,24076
0,11570
0,09494
0,07864
0,22147
0,08804
-7,57287
0,21529
0,09997
-
0,09191
0,04566
0,10999
0,08833
0,08861
SANTA CATARINA
No Setor
Restante do Brasil .....
0,02892
Paraná ........................ 0,09864
Santa Catarina ........... -11,27438
Rio Grande do Sul ...... 0,06401
Brasil ..........................
-
No Estado
0,05703
0,09505
-0,10673
0,05976
0,05344
RIO GRANDE DO SUL
No Setor
0,02892
0,09864
56,95639
-62,02430
-
No Estado
0,05703
0,09505
2,96039
-0,75910
0,11236
FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional.
Um resultado que chama atenção é a variação da produção catarinense
de móveis (56,96%), quando ocorre o choque negativo na indústria gaúcha.
Esse resultado pode estar indicando que a indústria de Santa Catarina consegue captar a parcela do mercado externo perdida pela indústria do Rio Grande
do Sul, elevando sua produção.
O terceiro choque refere-se a um acréscimo da demanda final no setor de
construção civil, no volume de R$ 1 bilhão, acréscimo este que pode ocorrer
através de uma ampliação de crédito para as famílias por parte do Governo6, ou
dos próprios gastos do Governo Estadual, por exemplo, através de construção
de casas populares. A Tabela 5 expõe os índices obtidos.
Os resultados demonstram a grande correlação desse setor com o de
móveis: além de grandes variações na produção do setor em cada região, ocor-
6
Foi aprovado, para o ano de 2006, um pacote de R$ 18 bilhões de crédito imobiliário, conforme
Pacote de R$ 18,7 bi para a habitação: Governo incentiva a compra da casa própria e a
construção civil estimulando o aumento de crédito pelos bancos e zerando a alíquota do IPI
(2006).
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
rem, ainda, transbordamentos, quando o choque é realizado para a região RBR.
Nesse caso, a produção do setor moveleiro dessa região cresce 20,57%, enquanto os Estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul são
favorecidos com ganhos na produção do setor de 8,43%, 7,96% e 7,89% respectivamente. Esse transbordamento pode ser resultado do fato de a indústria
do resto do País não conseguir atender ao aumento da demanda, cabendo aos
estados da Região Sul cobrir essa falha.
Tabela 5
Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido
ao choque positivo no setor da construção civil da ordem de R$ 1 bilhão,
nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ......
Paraná ........................
Santa Catarina ...........
Rio Grande do Sul ......
Brasil ..........................
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ......
Paraná ........................
Santa Catarina ...........
Rio Grande do Sul ......
Brasil ..........................
RESTO DO BRASIL
PARANÁ
No Setor
Na Região
No Setor
Na Região
20,56692
8,42618
7,95781
7,88773
-
4,77403
1,71848
2,19450
1,11594
4,34462
0,06087
5,00639
0,08031
0,04946
-
0,22742
2,19131
0,64750
0,38290
0,38621
SANTA CATARINA
RIO GRANDE DO SUL
No Setor
Na Região
No Setor
Na Região
0,01518
0,02600
5,00333
0,01761
-
0,08833
0,17150
5,86786
0,08086
0,32066
0,05187
0,06130
0,05872
13,05412
-
0,19713
0,28313
0,29470
3,27820
0,43876
FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional.
Quando o choque é gerado em cada estado da Região Sul individualmente,
os ganhos são menores para o setor moveleiro dos Estados de Santa Catarina
e Paraná em comparação com a conjectura anterior. Quando esse choque é
direcionado inteiramente ao Paraná, a indústria moveleira amplia sua produção
em 5%, mesma variação encontrada para Santa Catarina; já o Rio Grande do
Sul sofre o maior impacto, 13,05%. A menor performance de Santa Catarina e
Paraná pode ser devida à menor participação do setor construção civil nesses
estados do que na economia do Rio Grande do Sul e do resto do Brasil, por
exemplo.
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518
Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
Outra característica dessa situação é que não ocorrem transbordamentos
para outro estado da Região, o que pode ser resultante de que cada estado
consegue suprir a sua demanda interna por móveis, conforme já apontado anteriormente.
A próxima análise que é feita do MRIO se refere aos multiplicadores de
produto do setor moveleiro para as economias nacionais e regionais. A Tabela 6
apresenta os índices encontrados.
Tabela 6
Multiplicadores de produto, efeitos diretos, indiretos e totais para os
estados da Região Sul e do resto do Brasil — 1999
EFEITOS DIRETOS
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ................
Paraná ..................................
Santa Catarina ......................
Rio Grande do Sul ................
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ................
Paraná ..................................
Santa Catarina ......................
Rio Grande do Sul ................
Nacionais
Regionais
1,1189
1,1368
1,1120
1,0943
1,1189
1,1368
1,1120
1,0943
EFEITOS INDIRETOS
Nacionais
Regionais
0,8198
0,9927
0,8109
0,6298
0,7517
0,1824
0,1738
0,3466
EFEITOS TOTAIS
DISCRIMINAÇÃO
Restante do Brasil ................
Paraná ..................................
Santa Catarina .....................
Rio Grande do Sul ................
Nacionais
Regionais
1,9387
2,1295
1,9229
1,7241
1,8706
1,3192
1,2858
1,4409
FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional.
Os índices mostram que o setor moveleiro tem poder significativo para
gerar impactos positivos tanto em suas economias locais como na economia
nacional. Nesse sentido, dos setores moveleiros da Região Sul, o Estado do
Paraná é o que mais consegue afetar a economia nacional. Ou seja, para cada
R$ 1,00 de aumento na sua demanda, gera R$ 2,13 de produto, sendo que
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519
A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
R$ 1,14 se refere ao efeito direto — quanto o setor de móveis precisa produzir
para atender ao aumento de R$ 1,00 na sua demanda, mais o que os outros
setores lhe irão demandar para provê-lo com insumos —, e R$ 0,99, ao efeito
indireto — quanto os demais setores produzirão para suprir com insumos o
setor de móveis do Paraná, quando sua demanda é incrementada em R$ 1,00.
Quando são focalizados os efeitos regionais, o estado da Região Sul que
mais se destaca é o Rio Grande do Sul, onde, para cada R$ 1,00 de aumento na
demanda de móveis, se gera R$ 1,44 de produto na sua economia, que decorre
de R$ 1,09 do efeito direto e de R$ 0,35 do efeito indireto.
Como último exercício do trabalho, calcularam-se os índices de Hirschmann-Rasmussen, “para frente” e “para trás”, no sentido de descobrir se a indústria
moveleira da Região Sul se apresenta como um setor-chave para as economias
regionais. Conforme Guilhoto et al. (1994), para um setor ser considerado “chave” na região, o índice calculado deve ser maior que 1; nesse sentido, pode-se
classificar quais setores apresentam o maior índice. Na Tabela 7, são apresentados os índices obtidos através das equações (4) e (5).
Tabela 7
Índices Hirschmann-Rasmussen, “para frente” e “para trás”, do setor de móveis nos
estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999
DISCRIMINAÇÃO
ÍNDICE “PARA TRÁS”
ÍNDICE “PARA FRENTE”
Restante do Brasil ...............
Paraná .................................
Santa Catarina .....................
Rio Grande do Sul ...............
1,03359
1,13530
1,02518
0,91916
0,64762
0,66853
0,65933
0,62216
FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional.
Os índices encontrados demonstram que o setor de móveis tem maior
influência no sentido “para trás” da economia, ou seja, por demandar insumos de
vários setores, apresenta-se, nos estados do Paraná e Santa Catarina, como
um setor-chave, assim como na região RBR. Ressalta-se, porém, que, apesar
de se apresentar como setor-chave, não chega a ser o principal de cada estado.
Já no sentido “para frente”, não se verifica essa mesma performance, com
todas as regiões possuindo índices abaixo de 1. Esse valor encontrado deve-se
ao fato de que são poucos os setores que demandam produtos do setor moveleiro,
sendo mais direcionado para as famílias, o que explica a forte relação com o
setor de construção civil.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
520
Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
6 Conclusões
O presente trabalho possibilitou explorar os impactos reais da indústria
moveleira na Região Sul do Brasil, no que se refere ao potencial de geração de
emprego e renda, bem como aos efeitos de ligação e transbordamento para os
demais estados e entre setores. Nesse aspecto, foram feitos choques positivos
de demanda para o setor de móveis de cada estado, no que tange ao incremento
da demanda final, verificando-se a ampliação da produção estadual em 2,84%
em Santa Catarina, 1,75% no Paraná e 1,51% no Rio Grande do Sul, o que
ilustra o bom reflexo dessa indústria para as economias regionais.
Ao analisar um choque adverso na demanda final — queda das exportações —, verificou-se que o impacto no produto estadual (em termos proporcionais) é menor do que quando o choque foi positivo, ou seja, ao encontrar restrições no mercado internacional, a produção moveleira desses estados direciona-se para o mercado interno. Apesar do resultado, a alta concentração das vendas no mercado externo, principalmente em Santa Catarina, torna o setor mais
vulnerável à conjuntura internacional, bem como às políticas macroeconômicas,
como no caso da valorização da moeda. Destacou-se, no texto, que um dos
principais fatores de competitividade no mercado externo é o preço, no qual a
moeda exerce peso considerável.
O setor de construção civil posicionou-se como o principal demandante de
móveis, ou seja, o produto “móveis” é complementar ao produto “casa”. Nesse
sentido, os choques positivos na demanda final desse setor exercem maior
influência no setor moveleiro do que o incremento das exportações no próprio
setor. A ampliação no setor de móveis ficou em 8,4% (PR), 8,0% (SC) e 7,9%
(RS), quando esse choque é feito em nível de Brasil; e em 5% (PR), 5% (SC) e
13% (RS), quando o choque é feito em cada estado separadamente.
Dessa forma, a ampliação do crédito imobiliário, principal política de apoio
à construção civil, acaba favorecendo indiretamente o setor moveleiro. Esse
reflexo ameniza a falta de linhas de crédito específicas para o consumo de
móveis, uma das principais críticas dos empresários dessa indústria, medida
que favoreceria a demanda interna para o produto, já que o consumo de móveis
é muito elástico com a renda.
Outro índice calculado foi o multiplicador de produto, o qual, através dos
efeitos diretos e indiretos, é uma boa referência da influência do setor de móveis
nas economias regionais, bem como de seu potencial na geração dos efeitos de
ligação e transbordamento. Nesse aspecto, para cada R$ 1,00 no aumento da
demanda de móveis em cada estado, gera-se um aumento no produto nacional
de R$ 2,13, quando o choque é realizado no Paraná, de R$ 1,92, quando em
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A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:...
521
Santa Catarina, e de R$ 1,72, quando realizado no Rio Grande do Sul. Já os
impactos na renda estadual são de R$ 1,32 no Paraná, R$ 1,29 em Santa Catarina
e R$ 1,44 no Rio Grande do Sul.
Como último exercício, verificou-se, através dos índices de ligação, “para
frente” e “para trás”, de Hirschmann-Rasmussen, a configuração do setor
moveleiro como um setor-chave para as economias estaduais de Santa Catarina
e Paraná, no sentido “para trás”, ou seja, o setor de móveis é um bom indutor da
economia regional, no sentido de que demanda insumos de vários setores para
gerar seu produto final, podendo ser objeto de políticas públicas que busquem a
promoção de emprego e renda local. Ressalta-se, porém, que, em nenhum estado, chegou a ser o principal setor. Já no sentido “para frente”, não foi encontrado
índice relevante.
Pode-se mencionar também que, importantes em seus estados, as empresas de móveis são pouco interligadas entre os estados da Região Sul, ou seja,
os impactos de aumento da demanda no setor de um estado são muito pouco
sentidos pelos outros. Isso reflete a capacidade da indústria de cada estado de
ampliar sua própria produção e de atender aos aumentos da demanda, individualmente.
A análise do setor de móveis da Região Sul do Brasil através do MRIO
possibilitou a realização de inferências e resultados mais precisos sobre os
impactos gerados por essa indústria nas economias regionais. Constatando seu
potencial, torna-se mais fácil iniciar políticas que visem promover o setor, já que
o mesmo, além de gerar emprego e renda, favorece a balança comercial.
Verificou-se também que, para a indústria moveleira ampliar sua produção
e conquistar novas fatias no mercado internacional, necessita, ainda, melhorar
seu modo de produção, no que concerne à maior utilização de tecnologia —
sobretudo as pequenas empresas — e à inovação em design nos móveis brasileiros — no sentido de diferenciar o produto.
Outra medida para incentivar a demanda para o setor seria a geração de
linhas de crédito para consumo de móveis, a exemplo da linha de CDC-Móveis,
lançada pelo Banco do Brasil, no final de 2005, que é uma forma de compensar
a falta de renda da população, sendo, ainda, um substituto dos crediários das
grandes redes de lojas de varejo, que acabam onerando o preço ao consumidor.
Um último comentário a ser feito relaciona-se com a base estatística utilizada no trabalho, referente ao ano de 1999, o que se pode traduzir como uma
limitação da pesquisa. Porém ressalva-se que os resultados ainda podem ser
utilizados como bom indicativo dos efeitos reais do setor moveleiro sobre as
economias regionais, dada a sua presença destacada e sua contínua expansão
no período. A relevância da utilização do referencial de MRIO baseia-se na possibilidade de avaliar mais especificamente os efeitos de políticas setoriais, e,
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
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Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré
para tanto, sugerem-se a manutenção de estudos mais aprofundados na área e
a sua utilização pelos governos e pelas instituições locais.
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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007
525
Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
Reformas do Estado, descentralização
e políticas de saúde: uma análise
comparada entre Argentina, Brasil,
Colômbia e México*
Angela Moulin S. Penalva Santos**
Maria Alícia Dominguez Ugá***
Doutora (FAU-USP) e Professora
Adjunta dos Programas de Pós-Graduação em Economia e em
Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
Doutora (IMS-UERJ) e Pesquisadora
Titular da ENSP/Fiocruz
Resumo
A crise fiscal eclodida no início da década de 80 do século XX marcou o esgotamento dos processos de desenvolvimento latino-americanos baseados na
condução, pelos Estados nacionais, dos processos de industrialização substitutiva
de importações. Desde então, foram inicialmente adotados planos de estabiliza˘ıo macroeconômica até meados dessa década, que focalizavam o reequilíbrio
do balanço de pagamentos, e, a partir daí, ganharam força os programas de
ajuste de cunho neoliberal, afetando as políticas sociais na sua essência.
A tônica desse ajuste passou a ser a diminuição do protagonismo estatal, incluindo a descentralização das políticas entre as esferas governamentais. As reformas nos sistemas de saúde inscrevem-se nesse contexto, o que se reflete,
na maioria dos casos, no fortalecimento do setor privado e das instâncias
infranacionais de poder, e têm potencial para afetar a organização do território.
Este estudo analisa, comparativamente, esses processos na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México.
* Uma versão deste artigo foi apresentada no IX Seminario Internacional de la Red Iberoamericana
de Globalización y Territorio, realizado de 17 a 20 de maio de 2006, em Bahía Blanca, na
Argentina. Trata-se também do desdobramento de uma pesquisa que realiza uma análise
comparativa entre os processos de descentralização nos quatro países selecionados feita
por pesquisadores desses países.
Artigo recebido em jun. 2006 e aceito para publicação em maio 2007.
** E-mail: [email protected]
*** E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007
526
Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá
Palavras-chave
Reforma do Estado; descentralização e sistema de Saúde.
Abstract
The come out fiscal crisis at the beginning of the decade of 1980 marked the
exhaustion of the American Latin processes of development based in the
conduction by the National States of the industrialization processes based on
importation substitutions. Since then, the multilateral organisms have pressured
so that institutional reforms are implemented that diminish this governmental
protagonism, including the decentralization of the politics between the
governmental spheres. The reforms in the health systems are enrolled in this
context, and it reflects in the strenghtening of the infranational instances and
have potential to affect also the organization of the territory. This study
comparatively analyzes these processes in Argentina, Brazil, Colombia and
Mexico.
Key words
State Reform, Decentralization, Health System.
Classificação JEL:
H75.
1 Introdução
A crise fiscal eclodida no início da década de 80 do século XX marcou o
esgotamento dos processos de desenvolvimento latino-americanos baseados
na condução, pelos Estados nacionais, dos processos de industrialização
substitutiva de importações. Desde então, os organismos multilaterais têm pressionado para que sejam implementadas reformas institucionais que diminuam
esse protagonismo governamental, incluindo a descentralização das políticas
entre as esferas de governo. Como apontado em Ugá (1997), se, nos planos de
estabilização macroeconômica adotados a partir do final da década de 70 até
meados da de 80, que focalizavam o reequilíbrio do balanço de pagamentos, os
efeitos sobre as políticas sociais eram residuais, decorrentes da contração de
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recursos para o seu financiamento e da pauperização da população, nos programas de ajuste de cunho neoliberal, implementados a partir da segunda metade dos anos 80, as transformações por que passaram as políticas sociais atingiram a sua essência e corresponderam a um projeto global de reorganização da sociedade sob a égide neoliberal, do qual a face econômica é apenas
a mais discutida, mas não esgota a compreensão do seu alcance.
As reformas nos sistemas de saúde inscrevem-se nesse contexto, o que
se reflete no fortalecimento das instâncias infranacionais de poder, e têm potencial para afetar a organização do território. Este estudo analisa comparativamente esses processos na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México.
O artigo está estruturado em cinco seções, a primeira das quais é esta
Introdução, enquanto a segunda visa identificar o sentido das reformas do Estado. As seções 3 e 4 constituem o núcleo do trabalho. Na terceira, analisa-se
como a descentralização se insere nas reformas do Estado, e explicitam-se
algumas diferenças entre as reformas empreendidas nos quatro países com
base em três indagações relativas à: (a) estrutura político-territorial; (b) redefinição
no federalismo fiscal; e (c) possibilidade de que a descentralização tenha sido
apenas resultado do avanço do neoliberalismo. Na quarta seção, focaliza-se a
descentralização nas reformas do sistema sanitário, dividindo-a segundo os
casos: (a) colombiano; (b) mexicano; (c) argentino; e (d) brasileiro. Na quinta e
última seção, apresentam-se algumas reflexões sobre a relação entre
descentralização e território à guisa de conclusão.
2 O sentido das reformas de Estado
Todos os Estados modernos dedicam-se à redistribuição, à gestão
macroeconômica e à regulamentação dos mercados; a diferença está nas prioridades dadas, por cada país, no exercício dessas funções, que tendem a variar
ao longo do tempo. Na América Latina, a prioridade, durante o período 1950-80,
foi a industrialização, considerada um instrumento para o crescimento econômico,
a qual promoveria políticas redistributivas. Houve significativo crescimento no
período, mas as desigualdades interpessoais e inter-regionais intensificaram-se, assim como ocorreu queda na eficiência da gestão pública.
O esgotamento do modelo desenvolvimentista e a construção do modelo
de ajuste fiscal suscitaram a reforma do Estado, envolvendo quatro elementos
distintos, mas interdependentes: (a) diminuição do tamanho do Estado; (b)
desregulamentação; (c) elevação da capacidade financeira e administrativa do
Estado de formular e implementar políticas públicas; e (d) realização de esforços visando à legitimidade política para implementar reformas.
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Em busca desse ajuste e da correspondente contração do papel do Estado, os World Development Reports do Banco Mundial1 vêm apontando que a
reforma do Estado tem sido um processo permanentemente incompleto, defendendo a realização de novas etapas, sob pena de não se alcançar o objetivo do
ajuste estrutural do Estado. Apesar disso, podem ser distinguidas duas etapas
de reformas: (a) durante os anos 80, quando houve a tentativa de disseminar o
chamado “Estado mínimo”, visando atingir os dois primeiros elementos mencionados anteriormente; e (b) a partir dos anos 90, quando houve uma mudança na
concepção das reformas, no sentido de fortalecer o Estado em número menor
de objetivos, visando alcançar os outros dois elementos.
Neste segundo momento, as reformas passaram a dar maior destaque
para a eqüidade e para a accountability (transparência e responsabilização da
administração pública). A descentralização passou a ser entendida como instrumento que conduzia à accountability e como um bom meio não apenas para
aproximar Governo e “clientela”, mas também de poder tornar os cidadãos capazes de participar mais ativamente das decisões que afetam toda a sociedade
(Abrucio; Loureiro, 2004).
O tema accountability, portanto, emerge de uma segunda geração de reformas de Estado, que visavam tornar os governos não apenas mais eficientes no
provimento de seus serviços públicos, mas também mais responsivos às demandas dos eleitores.
Dentre os muitos instrumentos para a garantia da responsabilização democrática, aqueles que mais prosperaram foram os que conduzem à accountability
nas finanças públicas. Os quatro países analisados neste artigo experimentaram mudanças nos seus marcos legais, no que tange ao controle do
endividamento público, ao processo de elaboração e execução orçamentária e à
estrutura de seu federalismo fiscal. Nesse sentido, houve um avanço considerável nas propostas de reforma, no entanto, falta avançar na direção do outro dos
seus elementos constitutivos, a busca da eqüidade.
Na próxima seção, serão abordados elementos do processo de
descentralização nos quatro países estudados, para situar o processo de
descentralização no âmbito dos seus sistemas de saúde.
1
Destacam-se, em particular, os relatórios do Banco Mundial (1993; 1997; 1999/2000; 2002;
2004).
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3 A descentralização nas reformas de Estado
A descentralização está presente no receituário das reformas de Estado
de primeira e de segunda geração. Nas de primeira, destaca-se a capacidade de
a descentralização dos serviços públicos proporcionar maior eficiência à administração pública; nas de segunda geração, o destaque é dado ao estímulo à
responsabilização democrática, dada a tendência de a descentralização estar
associada à participação popular.
A participação popular, entretanto, é parte de um processo cívico e dependente da disseminação dos valores democráticos na cultura popular, o que, na
América Latina, ainda está associado apenas ao processo eleitoral. O baixo
nível de renda per capita, associado à grande desigualdade que caracteriza os
nossos países, não contribui para o avanço dos movimentos cívicos. Nessas
condições, o estímulo à participação popular tem sido muito mais uma concessão dos governos centrais para legitimar suas políticas de ajuste macroeconômico
do que uma conquista dos cidadãos. Entretanto a transferência de responsabilidade de políticas para as instâncias locais de poder é um instrumento que pode
estimular uma maior participação popular e o avanço “de baixo para cima” da
responsabilização democrática.
O processo de reformas institucionais apresenta nuanças e ritmos distintos em cada país, em função de suas experiências específicas. As subseções
a seguir realçam as diferenças entre os países, no que tange à introdução da
descentralização como parte das reformas de Estado na Argentina, no Brasil,
na Colômbia e no México. Visando identificar tais diferenças, são comparados,
a seguir, os quatro países, com base em três aspectos: suas estruturas político-territoriais, as possíveis alterações ocorridas no federalismo fiscal e a indagação sobre se a descentralização teria sido um mero resultado do avanço do
neoliberalismo.
3.1 Qual a estrutura político-territorial desses
países?
Três dentre os países considerados são federações — Argentina, Brasil e
México —, enquanto a Colômbia é um Estado unitário. Diferentemente do caso
clássico de federalismo — o norte-americano —, nos países latino-americanos,
não houve uma organização territorial local que tenha decidido abrir mão de
alguma autonomia para se unir a outras regiões e formar uma unidade nacional
politicamente mais forte. Ao contrário, a estrutura federativa foi mantida para
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aumentar o poder central, posteriormente fortalecido com a modernização dos
países, através do modelo de industrialização substitutiva de importações.
Dentre os quatro países considerados, a Argentina foi aquele que estabeleceu uma estrutura de Estado mais próxima do paradigma norte-americano.
Assim, por exemplo, suas 24 províncias têm autonomia para criar seus municípios segundo seus próprios critérios, o que significa dizer que não há uma diretriz
geral nacional para a criação de novas unidades territoriais de esfera municipal
que possam assumir responsabilidades na execução de políticas descentralizadas, como há no caso brasileiro da política de assistência básica à saúde.
Assim, a descentralização é um processo referido apenas aos governos provinciais, que viram fortalecidas suas responsabilidades com a transferência das
políticas sociais para sua esfera de poder, numa descentralização que se iniciou ainda na década de 70, mas que foi intensificada com a Constituição de
1994 (Manzanal, 2005).
O caso mexicano é aquele onde o federalismo mais se distancia do
paradigma norte-americano. A revolução mexicana e o modelo desenvolvimentista
contribuíram para o fortalecimento da polarização demográfica e econômica na
Capital Federal (como também se deu nos outros países considerados). Entretanto, no México, a manutenção de um mesmo partido político (o PRI) por 70
anos tornou o federalismo apenas uma estrutura legal, longe de retratar a organização real do País. Foi somente na década de 90 que outros partidos e representantes políticos surgidos em outras regiões puderam alcançar o poder
central (Rogel, 2005).
Mas, antes disso, durante a década anterior, foi iniciado um processo de
fortalecimento do poder municipal, a partir de uma importante mudança no artigo 115 da Constituição (que se refere à vida institucional do município mexicano), a partir do qual o município passaria a ter responsabilidades na execução (e
não na formulação) das políticas sociais. No “novo federalismo” mexicano, a
descentralização foi, na verdade, uma iniciativa do poder central, como parte do
projeto de reforma que visava não apenas dotar os governos infranacionais de
condições financeiras e administrativas, mas ainda legitimar o Estado.
O Brasil também é uma federação desde sua primeira Constituição, mas
isso foi uma reação ao temor de que a Proclamação da República (em 1889)
pudesse suscitar a fragmentação do seu território, como ocorrera com a América espanhola. Como no caso argentino, no Brasil havia territórios que disputavam a hegemonia política e econômica, que, após o desenvolvimentismo, favoreceu a polarização espacial em torno de São Paulo. Apesar disso, a força política de outros estados sempre foi grande e apenas sufocada durante os períodos de regime autoritário. Essa característica pode ser ilustrada pelo trade off
entre poder econômico e político em que se baseia a Federação brasileira: apro-
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ximadamente 75% do PIB estão localizados nos sete estados das Regiões
Sudeste e Sul, mas a representação política desses estados no Senado é de
apenas 21 dentre 81 senadores. Porém a principal manifestação da força dos
governos locais foi a transformação dos municípios em entes federativos (pela
Constituição de 1988), desfrutando autonomia política, legislativa, administrativa e financeira; em decorrência dessa mudança institucional de grande significado, o processo de descentralização no País praticamente se confundiu com a
municipalização das políticas sociais.
A Colômbia é um Estado unitário que resultou da fragmentação de uma
antiga unidade territorial, a Gran Colômbia. Como no caso brasileiro, a unidade
territorial foi iniciativa do Governo Central, que, a partir de 1886, iniciou um
século de forte centralização política e econômica do País, para a qual muito
contribuiu o desenvolvimentismo industrial. Essa centralização foi marcada pelo
bipartidarismo que se revezava no poder, mas foi posta em xeque na década de
80, quando foi dada autonomia política aos governos locais, que passaram a ter
seus governantes eleitos diretamente pela população. A reconfiguração territorial
daí resultante foi intensificada com a lei de descentralização que entrou em
vigor em 1986, seguida de uma nova Constituição (em 1991), prevendo uma
forte descentralização das políticas sociais. Apesar de a arquitetura institucional
da descentralização, nessa Constituição, prever a formação de seis níveis de
governo, apenas três existem de fato — os Governos Central, estaduais e
municipais (Restrepo; Cuellar, 2005).
3.2 Houve redefinição do federalismo fiscal?
Na Argentina, o país de estrutura federativa mais consolidada, existem
mecanismos de redistribuição da arrecadação fiscal entre os entes federativos,
desde 1935, ainda que, apenas na reforma constitucional de 1994, a distribuição
de fundos entre a Nação e as províncias tenha sido constitucionalmente garantida. Segundo Manzanal (2005), o sistema fiscal argentino é altamente descentralizado, com o nível de gasto realizado pelas províncias atingindo percentuais
superiores a 40% do total nacional desde muitos anos. Trata-se de uma estrutura federativa cuja evolução a longo prazo pode ser ilustrada com base em três
características principais (Cetrángolo; Gimenez apud Manzanal, 2005): (a) aumento no número de entes federativos, inclusive com a elevação da Capital
Federal a essa condição; (b) aumento dos tributos partilhados com as esferas
infranacionais de poder; e (c) aumento dos percentuais de transferências dos
tributos partilhados.
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A partir de 1992, no entanto, os valores transferidos foram estabilizados,
deixando de variar de acordo com a arrecadação fiscal. Ademais, o Governo
Federal transferiu responsabilidades da política de educação para as províncias, sem lhes destinar mais recursos, apenas confiando que a elevada participação desses entes infranacionais já era elevada, o que lhes permitiria financiar
esse novo encargo. De acordo com a mesma autora, o subseqüente arrocho na
situação fiscal das províncias somente melhorou após a eclosão da crise de
dezembro de 2001.
O México, país onde prevalecia um forte centralismo político e financeiro,
passou a desconcentrar a execução de políticas a partir da década de 80, quando foi criado o Sistema Nacional de Coordenação Fiscal (SNCF), instituindo a
co-participação dos entes infranacionais na arrecadação tributária. Os governos
estaduais deveriam transferir aos municípios, no entanto, parcela das transferências recebidas do Governo Federal, tendo tais transferências a condição de
“convênios”, isto é, recursos com alocação já predefinida antes de chegar aos
cofres dos municípios. A partir de 1990, foram modificados os critérios de repartição, para melhorar a condição financeira dos entes infranacionais economicamente mais fracos, impondo um critério redistributivo em função da população.
Novas mudanças ocorreram a partir de 1995, quando houve elevação dos
percentuais de co-participação, o que teve forte impacto positivo nas receitas
de departamentos e municípios, dado que essas transferências intergovernamentais constituem a principal fonte de financiamento dos entes
infranacionais. Cabe ressaltar, ainda, que esses são recursos cuja alocação é
definida livremente pelos governos locais, o que lhes aumenta o grau de autonomia financeira.
O chamado “novo federalismo” mexicano tem os seguintes marcos legais:
(a) Lei Orgânica da Administração Pública Federal; (b) Lei de Planejamento e
Programa de Descentralização da Administração Pública Federal; e (c) convênios únicos de desenvolvimento, a partir de 1983, para financiar a execução de
responsabilidades compartilhadas entre as distintas esferas de governo. A partir de 1998, esse “novo federalismo” sofreu uma tendência à recentralização
financeira, quando passaram a vigorar maiores controles das receitas de transferências por parte do Governo Federal, muito comprometido com políticas de
ajuste fiscal estrutural do Estado mexicano.
O Brasil introduziu um sistema de co-participação entre os níveis de governo na sua Constituição de 1946, sendo que o federalismo fiscal foi alterado
na Constituição de 1967. A centralização política e financeira imposta pelo regime militar (1964-85) aumentou muito as transferências intergovernamentais, mas,
sobretudo, aquelas cuja alocação já vinha previamente definida na esfera federal de governo. Essa situação somente foi alterada ao longo da década de 80,
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quando foram sendo elevados sistematicamente os percentuais de receitas de
transferências de arrecadação compartilhada, atingindo o auge com a entrada
em vigor da atual Constituição (em 1988), que conduziu o município à condição
de ente federativo, assegurando-lhe competência para gerir sua receita tributária
própria (que aumentou), além de elevar ainda mais os percentuais das receitas
partilhadas.
O esgotamento do aumento da autonomia financeira municipal foi deflagrado
a partir de 1995, quando se elevou a carga tributária nacional mediante o aumento de tributos não partilháveis com os entes infranacionais de governo. Apesar disso, o Governo Federal passou a transferir mais recursos para estados e
municípios, porém sob a condição de que sua alocação fosse definida naquela
esfera de governo. Vale dizer, houve sustentação das receitas de transferências, mas menor liberdade na alocação dos recursos, ainda que estados e municípios continuassem a assumir crescentes responsabilidades de políticas. Ademais, uma nova legislação federal (a Lei de Responsabilidade Fiscal2) passou a
impor controles mais estritos para o endividamento governamental, o que se
aplica, de fato, muito mais sobre estados e municípios do que ao próprio Governo Federal (Santos, 2004).
No caso colombiano, pode-se identificar o início do fortalecimento dos
governos infranacionais em 1968, quando foram estabelecidas transferências
intergovernamentais para financiar as políticas de educação e saúde nas esferas estaduais e municipais de governo. Outra etapa desse fortalecimento ocorreu em 1983, ano em que entrou em vigor a Lei n° 14, uma lei fiscal visando à
melhoria na arrecadação dos governos estaduais e municipais (Restrepo; Cuellar,
2005).
A descentralização colombiana tem seus marcos legais no ano de 1986,
por meio de: (a) conquista de eleições diretas para prefeitos (e, em 1991, também para governadores); (b) realização de uma grande reforma administrativa
para definir as competências dos governos infranacionais; e (c) aumento do
valor percentual dos tributos federais a serem transferidos a estados e municípios. Apesar desses avanços, a partir do início da década de 90, passou a ser
experimentado um processo de recentralização das políticas públicas em face
do ajuste fiscal com o qual o Governo Federal se comprometeu. O País passou
a controlar o endividamento dos municípios e a monitorar o uso dos recursos de
2
A Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal, Lei Complementar nº 101, de maio de 2000, fixa
princípios e regras para uma gestão fiscal responsável nas três esferas de governo, no
País. Ela estabelece limites para o gasto púbico com pessoal, torna obrigatória a emissão de
relatórios fiscais detalhados de despesas e suas fontes de receita e fortalece o papel da Lei
de Diretrizes Orçamentárias como verdadeiro instrumento de planejamento e norteador da
elaboração da Lei Orçamentária Anual.
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co-participação, condicionando o acesso a esses recursos; em 2001, foi congelado o valor das transferências por oito anos, independentemente da variação
da arrecadação, o que, certamente, compromete o financiamento das responsabilidades dos governos locais, em particular, na área da saúde.
3.3 A descentralização foi apenas resultado
do avanço do neoliberalismo?
Como já mencionado anteriormente, a descentralização das políticas é
parte da agenda de reformas do Estado que vem sendo conduzida, urbi et orbi,
a partir da década de 80. Nesse sentido, ela integra o “pacote” de reformas que
as agências multilaterais têm disseminado, em particular o Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional. Na América Latina, região que ficou economicamente muito fragilizada com a crise fiscal, principalmente a partir da moratória
mexicana, em 1982, o receituário daquelas agências obteve grande ressonância, com maior ou menor rapidez, nos diferentes países.
Estudos dos casos de descentralização na Argentina e no México creditam as modificações introduzidas naqueles países como sendo respostas ao
“ajuste neoliberal” em vigor nas últimas duas décadas (Manzanal, 2005; Rogel,
2005). As autoras destacam que tais modificações não são bem caracterizadas
como partes do processo de descentralização, mas apenas de uma
desconcentração administrativa do poder público. Na ausência de fortalecimento dos governos infranacionais (províncias na Argentina e departamentos no
México) como formuladores das políticas, não houve processo de
descentralização, uma vez que esse envolve, necessariamente, transferência
de poder político na formulação e na implementação de políticas.
Estudos dos casos brasileiro e colombiano sugerem, no entanto, que houve participação de representantes dos territórios infranacionais no processo de
transferência de responsabilidades sobre políticas para os governos locais. Os
autores desses estudos reconhecem que houve fortalecimento político, e não
apenas administrativo, nas esferas locais de poder (Restrepo; Cuellar, 2005;
Santos, 2005).
No Brasil, o processo foi muito significativo, uma vez que a Constituição
passou a reconhecer os municípios como entes federativos, desfrutando de
autonomia política, administrativa, legislativa e financeira. Esse fortalecimento
do papel dos governos locais, e do município em particular, foi produto da luta
política pela redemocratização das estruturas de poder após 21 anos de regime
militar. Durante esse período, o País experimentou elevadíssimo grau de urbanização da população e o surgimento de muitos municípios de médio e grande
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portes. Estes se tornaram atores protagonistas das políticas públicas e é improvável que aceitem a recentralização financeira que o Governo Federal tem promovido. Pelo contrário, sua resistência pode ser identificada na dificuldade de
fazer aprovar uma reforma tributária que preveja o aumento do controle do Governo Central na arrecadação, ainda que esteja previsto o aumento das receitas
infranacionais através de mecanismos de co-participação, mas com perda de
autonomia financeira pelos governos infranacionais.
Na Colômbia, o fortalecimento dos governos municipais e estaduais ocorreu quando se instalou a crise econômica, com o esgotamento do modelo
econômico centralizador da industrialização por substituição de importações
(ISI), na década de 80. Desde então, surgiram demandas territoriais distintas do
Governo Central, e foi conquistada a autonomia política dos municípios (em
1986) e dos governos estaduais (em 1991), que passaram a eleger seus representantes pelo voto popular. O fortalecimento dos governos infranacionais fez
emergir novos partidos políticos, bem como recrudesceu o poder da guerrilha
associada ao tráfico de drogas. Este, por sua vez, suscitou o estreitamento de
relações políticas e econômicas com o Governo norte-americano, interessado
em controlar o tráfico. Em face desses fenômenos, há uma controvérsia sobre a
importância da guerrilha e do tráfico de drogas para a descentralização: de um
lado, teria contribuído para fortalecer a economia e o poder local; de outro, o
combate promovido pelo Governo Federal teria ajudado no processo de
recentralização política ora em curso no País (Restrepo; Cuellar, 2005). De qualquer modo, o fortalecimento de alguns municípios e departamentos foi conquista de luta política que dificilmente será sufocada pelos interesses do Governo
Central.
É preciso destacar, entretanto, que, nos quatro países considerados, o
Governo Central vem reagindo à descentralização, especialmente mediante
mecanismos de controle financeiro dos Governos locais em face das políticas
nacionais de ajuste fiscal. Não é provável, contudo, que haja total retrocesso,
com recentralização política, devido à elevação das expectativas de cidadania
nessa era de comunicação instantânea. O que parece mais provável de ocorrer
é uma tentativa de que se estabeleçam mecanismos mais adequados para a
coordenação na formulação e na implementação de políticas de responsabilidade compartilhada entre as diferentes esferas de governo. Esse processo está
em curso no Brasil, onde acaba de ser aprovada (em abril de 2005) uma lei
federal estimulando a formação de consórcios intermunicipais;3 na Colômbia, já
3
Pela Lei nº 11.107, de abril de 2005, importante marco legal para a formação de redes
federativas horizontais, os consórcios intermunicipais são transformados em figuras de
direito público. Uma análise mais aprofundada sobre essa lei pode ser encontrada em Vasco
(2006).
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está, inclusive, prevista na Constituição de 1991 a existência de seis esferas de
governo, além das três tradicionais (Governos Central, Departamental e Municipal).
4 A descentralização nas reformas
dos sistemas de saúde
Desde o final dos anos 80, mas particularmente durante a década de 90,
os organismos multilaterais de crédito, que até então se ocupavam em ditar as
políticas econômicas dos países dependentes, voltaram sua atenção também
às políticas sociais. Isto porque, como analisado em Ugá (1997), as políticas
sociais passaram a ser parte integrante do próprio ajuste macroeconômico. Na
medida em que se propõe uma retração do papel do Estado em termos tanto da
população a ser atendida por suas políticas (que passam a ser focalizadas nos
segmentos mais pobres) como da gama de serviços a ser ofertada (delimitada),
é evidente que essas políticas passam a ser instrumentos do ajuste econômico.
Assim, no Investing in Health, o Banco Mundial (1993) propõe uma
redefinição do papel do Estado focado nos grupos sociais “mais necessitados” e
mediante a provisão de uma “cesta básica” de serviços definida pela relação
custo/efetividade dos mesmos. Simultaneamente, propôs uma maior atenção
em termos da promoção e da regulação do setor privado, através da expansão
dos seguros de saúde, e, de outro lado, a introdução de mecanismos de mercado no âmbito do setor público, que passaria a competir com o privado.
Trata-se, portanto, de privatizar tanto os serviços como a lógica de atuação
do setor público, expandindo o mercado de seguros privados e de serviços hospitalares. Como mostram as experiências apresentadas a seguir, essa receita
foi implementada, de forma mais fiel, pelo México e, de uma forma adaptada,
pela Colômbia. Na Argentina, observou-se um crescimento do setor privado com
finalidades de lucros, o qual se somou às Obras Sociales. Finalmente, o Brasil
foi o único país que buscou um caminho diferente, no sentido da constituição de
um sistema nacional de saúde de acesso universal e integral, que convive com
um segmento de planos e seguros privados de saúde previamente estabelecido
no País.
4.1 O caso colombiano
A reforma do sistema de saúde colombiano tem sido caracterizada, como
aponta Jaramillo (s. n. t.), por dois grandes traços: descentralização e privatização.
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Ambos correspondem a um processo de redução do âmbito de intervenção estatal (que passa a se limitar apenas ao financiamento e à regulação dos atores
do sistema de saúde) e à descentralização de recursos e responsabilidades
antes assumidas pelo Governo Central para os governos locais, que passam a
regular os entes privados e públicos que participam do sistema de saúde.
A Lei 100, de 1993, instituiu, através da criação do Sistema de Seguridade
Social na Saúde, uma profunda reforma do sistema sanitário colombiano. Criou
um sistema de seguro privado, financiado por fundos públicos e privados e constituído por seguradoras de saúde — as Entidades Promotoras de Salud
(EPS) — de natureza privada, e, de outro lado, as Instituciones Prestadoras de
Servicios de Salud (IPS), de natureza privada e pública (hospitais públicos que
se têm reorganizado sob a forma jurídica de Empresas Sociales del Estado,
com instrumentos de gestão privados).
Essa reforma tem como princípios essenciais: (a) a separação da provisão
de serviços e o seguro; (b) a introdução da competição regulada entre seguradoras e entre prestadores públicos e privados; e, finalmente, (c) os subsídios à
demanda — o financiamento dos seguros é transferido aos cidadãos de baixa
renda, que têm livre escolha das EPS (seguradoras) que mais lhes convenham
no regime subsidiado.
Cabe aos municípios a responsabilidade de identificar os indivíduos elegíveis para receber o subsídio para a compra de saúde subsidiada. Esse subsídio
é financiado mediante a co-participação dos municípios nas receitas correntes
da nação — dos 25% das transferências que devem ser alocados à saúde,
15% devem ser destinados a subsidiar a demanda da população pobre (regime
subsidiado), e os demais 10% destinam-se a outros gastos em saúde. Por outro
lado, foram criados os Consejos Territoriales de Seguridad Social em Salud,
responsáveis pela supervisão das EPS e das IPS.
Vale mencionar que, diferentemente do caso mexicano, na Colômbia, foi
instituído o Plan Obligatório de Salud Integral (POS), que se propõe a cobrir
todas as intervenções e os procedimentos referentes à promoção, à prevenção,
ao tratamento e à reabilitação em todos os níveis de complexidade. Ao POS,
somam-se os Planes Complementarios de Salud, com serviços e/ou instalações adicionais aos do plano obrigatório. Este último é regulado pelo mencionado Consejo Nacional de Seguridad Social, enquanto os planos complementares
se sujeitam às regulações da Superintendência Nacional de Salud. Existem
também o regime contributivo (ao qual se subscrevem os trabalhadores com
capacidade de pagamento) e o subsidiado (mediante subsídios à demanda transferidos pelo Estado à população de baixa renda).
No entanto, como apontam Cardona et al. (2005), ainda permanecem vários temas críticos na reforma da lei de seguridade social colombiana, sendo a
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cobertura um deles. Segundo esses autores, a elaboração da lei previa crescimento do PIB (e do mercado de trabalho, de onde provêm as cotizações sociais
e o pagamento de impostos), que permitiria uma rápida ampliação da cobertura
do seguro de saúde. No entanto, o crescimento econômico tem ficado bem
abaixo do esperado (e, a partir de 2001, desvinculou-se do nível de arrecadação
nacional o volume de recursos compartilhado com os governos infranacionais);
ademais, o nível de desemprego e de informalidade da população trabalhadora
tem mantido cifras muito altas, que apenas recentemente começaram a melhorar. Como conseqüência, ainda em 2004, uma proporção muito importante dos
trabalhadores informais não desfrutava dos benefícios do seguro de saúde: nada
menos que 40,9% da população estavam descobertos de quaisquer esquemas
de seguro naquele ano.
Vale mencionar que, como apontam os referidos autores, a cobertura de
59,1% tem sido fundamentalmente obtida com base na expansão da cobertura
do regime subsidiado, posto que o regime contributivo segue sendo o mesmo de
1998.
Outro ponto crítico mencionado refere-se ao enfraquecimento “[...] das
estruturas e processos que fazem parte fundamental de qualquer política de
saúde pública moderna” (Cardona et al., 2005, tradução nossa): a deterioração
das políticas compreensivas de saúde pública, das estruturas de planejamento
de saúde pública e o debilitamento de programas de promoção da saúde e de
prevenção de enfermidades.
Os municípios têm desempenhado um papel central no novo sistema de
saúde colombiano, que tem sido acompanhado de recursos provenientes de
transferências do Governo Central: são os municípios que regulam a concorrência entre as seguradoras (as EPS) e definem a população elegível para o regime
subsidiado. O Governo Central manteve seu protagonismo na política de saúde
com a formulação e a regulação dos atores que operam o sistema sanitário
colombiano. No entanto, cabe mencionar que as funções de governança, regulação
e controle foram sendo transferidas do Ministério de Salud para a Superintendência Nacional de Salud, criada como organismo autônomo em relação ao
Ministério.
Dessa forma, pode-se afirmar que a Colômbia tem realizado um verdadeiro
processo de descentralização, de cunho privatizante, tanto pela criação de novos agentes privados que passam a operar no mercado sanitário (as EPS),
como pela introdução de mecanismos de mercado no que tange aos prestadores
de serviços de saúde públicos e privados, que competem entre si pela obtenção
dos recursos, através da venda de seus serviços às populações seguradas.
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Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
539
4.2 O caso mexicano
Desde 1983, o México vem experimentando dois processos de reforma no
seu sistema de saúde. O primeiro foi orientado pela proposta denominada Reforma Estructural, que visava melhorar o acesso aos serviços de saúde e racionalizar recursos mediante a integração das instituições de seguro e de assistência
à saúde, além de promover a descentralização na provisão dos serviços (Almeida;
Pêgo, 2002). O segundo, iniciado nos anos 90, que prevalece ainda hoje, constitui-se, indubitavelmente, no resultado da agenda de reforma setorial veiculada
pelo Banco Mundial de retração do papel do Estado e sua limitação à provisão
de bens públicos e serviços assistenciais focalizados na população carente e
limitados a uma “cesta básica”.
A atual reforma resulta da presente hegemonia de um grupo de profissionais que, sob a liderança do atual Ministro da Saúde, Dr. Julio Frenk, construiu o
conceito da Nueva Salud Publica. Como afirmam Almeida e Pêgo (2002, tradução nossa), ela constitui uma “[...] especialização do campo médico referida à
saúde das populações, cujo objetivo era conhecer as necessidades da população e solucionar a demanda de forma a estabelecer um equilíbrio entre essas
necessidades e os recursos”, definidos como escassos. Nessa proposta, ocupa
um lugar central o modelo técnico assistencial e a racionalização do uso dos
recursos (ou racionamento dos mesmos, coerente com as políticas de ajuste).
Tal proposta, apoiada por grupos de interesses privados, está baseada na
separação de funções de financiamento e prestação de serviços e em uma
retração da ação estatal no campo da saúde. Nela, o setor privado presta serviços, o financiamento dá-se através de contribuições sociais, e o Estado regula
o mercado de serviços, caracterizado pela livre escolha do consumidor. Nesse
modelo, portanto, transferem-se as contribuições sociais ao mercado privado,
com as quais os consumidores adquirem seguros e serviços de saúde, e amplia-se, assim, como no caso colombiano, o mercado ao setor privado de seguros e de serviços de saúde (principalmente os hospitalares).
Existem três sistemas de afiliação ao sistema, o contributivo, o subsidiado
e o vinculado, aos quais correspondem diferentes “cestas básicas” de serviços.
Diferentemente do caso colombiano, essas “cestas básicas” não oferecem uma
gama integral de serviços, dado que estes são definidos com base em critérios
de custo-efetividade e de racionamento do gasto.
Essa proposta de privatização do sistema de saúde foi aprofundada a partir de 2001, com a vitória do Presidente Vicente Fox, mediante a expansão do
mercado de seguros privados de saúde, no marco do Seguro Popular de Salud.
Segundo Almeida e Pêgo (2002), essa estratégia permite canalizar, para as
seguradoras e para as operadoras de planos de saúde privados, os recursos
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007
540
Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá
previamente alocados em pagamentos diretos no ato da utilização dos serviços
por parte da população de baixa renda, que não tem acesso à seguridade social
e que não consegue ser atendida nos serviços públicos.
No que tange ao processo de descentralização, também houve dois momentos da reforma de saúde. De acordo com Merino (s. d.), podem-se distinguir
dois processos de descentralização no México. O primeiro, ocorreu ao longo da
década de 80, quando se tratou de descentralizar a gestão da prestação dos
serviços de saúde. Nele, foram transferidos a gestão de alguns hospitais e outros serviços de saúde, e estabeleceu-se a integração das instituições de seguro e de saúde em nível local. Entretanto tal processo era mais identificado como
uma desconcentração de funções e não como um processo de descentralização,
posto que não foi transferida para o nível local nenhuma responsabilidade em
termos de formulação de políticas.
O segundo processo de descentralização iniciou em 1996, quando a
descentralização se apresentou como uma das estratégias principais do Programa de Reforma del Sector Salud 1995-2000. Nele, o eixo central consistia
em reverter o excessivo centralismo do sistema de saúde e, em conseqüência,
a alegada baixa eficiência nas decisões sobre a alocação dos recursos: falta de
precisão na definição das responsabilidades de cada esfera de governo,
burocratismo excessivo e inércia nas decisões de destinação de gasto entre os
estados (Merino, s. d.).
Essa reforma dotou a esfera local de maior autonomia no manejo das transferências recebidas do Governo Central no âmbito do sistema de saúde, que
tiveram um aumento considerável. Ademais, isso se deu num contexto da reforma fiscal instituído através da reforma do artigo 115 da Constituição, no qual se
formalizaram e se expandiram as funções dos municípios, incluindo a autonomia no uso dos recursos. No entanto, foi mantida uma importante centralização
em matéria de arrecadação fiscal. Portanto, não foram gerados os incentivos
para aumentar a contribuição local no financiamento dos serviços públicos, e foi
mantido o poder do Governo Central em termos de sua capacidade de impor às
demais esferas de governo (dependentes das transferências federais) as políticas formuladas desde o nível central.
Assim, esse processo de descentralização foi bastante tímido, uma vez
que, como afirma o referido autor, as principais funções de políticas públicas
permaneceram no nível federal de governo. A isso, acrescenta-se uma baixa
capacidade técnica e gerencial observada em grande parte dos municípios, ou
seja, uma falta de acumulação técnica proveniente do longo período de
centralismo mexicano.
Na atual reforma, o financiamento proveniente de tributos é de nível federal, enquanto os estados arrecadam recursos provenientes da utilização de ser-
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Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
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viços de saúde (prêmios de seguros e co-pagamento). Além disso, é o Ministério da Saúde, no nível central de governo, que tem competência para definir a
amplitude da “cesta básica” e das tecnologias que ela incorpora, enquanto os
governos locais operam essa “cesta” de serviços e a adaptam segundo o perfil
epidemiológico de sua região.
A principal responsabilidade do nível local de governo é, sem dúvida, a
contratação e a regulação de prestadores, como no caso colombiano. Dessa
forma, pode-se afirmar que, enquanto o Governo Central define políticas de
saúde — e, principalmente, a amplitude da “cesta básica” e os mecanismos de
seu financiamento —, os governos locais se ocupam da operação do sistema,
através de agentes privados por eles contratados.
4.3 O caso argentino
A reforma do setor de saúde argentino parte de um sistema bastante peculiar, organizado sob o modelo bismarkiano, constituído das Obras Sociales, que
são definidas e organizadas por setor de atividade. Nesse sistema fragmentado
em múltiplos subsistemas, portanto, o acesso a um determinado subsistema de
saúde ocorre a partir da pertinência em relação ao mercado formal de trabalho,
segundo o setor de atividade (e ao seu respectivo sindicato), e, no que concerne
aos aposentados, através do Programa del Instituto Nacional de Servicios
Sociales para Pensionados y Jubilados (PAMI), criado em 1970.
Sempre existiram, evidentemente, fortes desigualdades na oferta de serviços, nas distintas Obras Sociales, determinadas por seu diferente poder
econômico. Além disso, até hoje, quase a metade da população argentina não
está vinculada a nenhum desses subsistemas e, portanto, está formalmente
atendida pelo setor público.
Nos anos 90, surgiram várias propostas de reestruturação do sistema de
saúde, apresentadas por diferentes setores da sociedade (os sindicatos de trabalhadores, o sindicato empresarial) e pelo Banco Mundial. Todas convergiam
nos seguintes temas (Tafani, 1997):
- a promoção (de distintas formas) de fusões entre Obras Sociales, de
forma a promover grupos maiores de segurados, nos quais fosse possível um maior compartilhamento do risco, que lhes desse, portanto, maior
viabilidade econômica;
- a criação do Programa Médico Obrigatório, ou seja, a oferta de uma gama
comum de serviços médico-hospitalares;
- a regulação e o fortalecimento institucional, através da constituição de
um marco regulatório que atuasse sobre as Obras Sociales.
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542
Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá
A reforma institucionalizou-se a partir de 1992, através da criação da
Organización Solidaria de Atención Médica (OSAM). Esta introduziu um subsídio à demanda no âmbito das Obras Sociales, acoplado à instituição da livre-escolha, que se exercia mediante uma Cuota Parte de Atención Médica uniforme para todos os beneficiários (Cetrángolo; Devoto, 2002).
Em 1993, foi concretamente instituída a livre-escolha por parte de
beneficiários de Obras Sociales, e adotou-se o Programa Médico Obrigatório
(ou seja, um conjunto de prestações básicas a ser oferecido por todas as Obras
Sociales). Como, nesse sistema, o beneficiário aporta segundo seu salário, previu-se que, no caso de os custos das Obras Sociales ultrapassarem o valor
arrecadado das cotas dos beneficiários, eles seriam compensados pelo Estado.
Dessa forma, de acordo com Cetrángolo e Devoto (2002), o critério redistributivo
presente no Fondo Solidario de Redistribución foi substituído por mecanismos
de mercado, no qual as Obras Sociales mais poderosas (e com melhores planos
de saúde) tendem a captar os indivíduos de mais alta renda.
A livre-escolha tende a levar os assalariados de maior renda a migrarem
para os planos que tenham melhores ofertas de serviços, com o que a tendência passa a ser a segmentação dos subsistemas de saúde segundo o nível de
renda. Para contrabalançar essa tendência, foi criado o Programa Médico Obrigatório, no qual, como já referido anteriormente, o Estado subsidia o acesso no
caso de a cotização mensal de cada trabalhador ser inferior ao equivalente a
US$ 40,00. De todo modo, subsistem ainda importantes diferenças no acesso
aos serviços de saúde, no campo do seguro social e no atualmente robusto
setor privado (de seguro e de serviços de saúde).
No que tange à descentralização da reforma sanitária, pode-se dizer que,
ainda que o Ministério da Saúde seja a autoridade máxima, as províncias têm
autonomia para formular e implementar políticas de saúde pública, bem como
são as responsáveis pela provisão de serviços. Nesse sistema, cabe aos municípios a execução de programas e serviços de sua competência, mas se deve
recordar que a autonomia e a responsabilidade municipal são definidas por cada
província. Nessas condições, a reforma dos anos 90 incidiu fundamentalmente
sobre o sistema de seguridade social e saúde (as Obras Sociales) e não alterou
muito o sistema federativo no que diz respeito às relações intergovernamentais.
4.4 O caso brasileiro
A reforma sanitária, no Brasil, foi inspirada nos sistemas de saúde
welfarianos de caráter universalista, com atenção integral à saúde destinada a
todos os cidadãos, distanciando-se, portanto, das reformas propostas pelas
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Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
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agências internacionais, que, ao contrário, propunham (e continuam propondo)
uma retração do papel do Estado no âmbito das políticas sociais. Na Constituição de 1988, foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), baseado nos seguintes princípios: acesso integral e universal, descentralização e participação
popular.
Essa reforma demandou a união do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) (instituição de saúde vinculada à
Previdência Social) ao Ministério da Saúde — historicamente separados —, a
redistribuição de recursos e de responsabilidades entre as três esferas de governo e a institucionalização de instâncias de concertação entre elas, através
das Comissões Intergestoras Bipartite — Ministério da Saúde e secretarias
estaduais de saúde — e Tripartite — Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde. Foi institucionalizada, também, a participação
popular, mediante a criação de conselhos de saúde em cada uma das três esferas de governo, nas quais 50% dos membros são representantes dos usuários
do sistema de saúde.
No entanto, no momento da proposição de um novo sistema de saúde
inspirado nos Welfare States europeus, o setor privado já estava amplamente
consolidado no setor de saúde do Brasil: existia, de um lado, um importante
segmento de seguros privados (que passou a ser considerado, na nova Constituição, como “segmento de saúde suplementar”), e, de outro, os prestadores
hospitalares foram, desde sempre, majoritariamente privados no Brasil. Dessa
forma, ainda hoje, o gasto público representa apenas 44% do gasto total com
saúde, sendo seguido, em ordem de importância, pelo gasto das famílias (34%
do gasto total) e pelo gasto com seguros de saúde, que representa 22% do
gasto total (Ugá; Santos, 2006).
Até meados da década de 90, o gasto público com saúde guardava a
marca do período anterior ao da nova Constituição, caracterizado por uma forte
centralização do sistema de saúde e de seu financiamento no nível central. A
descentralização de recursos tem sido marcada por reformas constitucionais,
enquanto uma série de normas operacionais formuladas pelo Ministério da Saúde, em um processo que tem sido denominado, por vários autores,
“descentralização tutelada”, definiram um processo de desconcentração da capacidade de gestão conduzido centralmente pelo Ministério da Saúde.
Ainda a partir do processo de descentralização tributária introduzido pela
Constituição — que ampliou a competência tributária de municípios e elevou o
nível das transferências de tributos federais para as esferas infranacionais de
governo — e, posteriormente, a partir da Emenda Constitucional nº 29, de
2000 — que estabelece níveis mínimos de crescimento do gasto público federal
com saúde e percentagens mínimas de participação dos recursos próprios de
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544
Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá
estados e municípios no financiamento do SUS —, observa-se uma progressiva
descentralização no mesmo.
Por essa emenda, os estados e os municípios passaram a ser obrigados a
aportar, no mínimo, respectivamente, 12% e 15% de seus recursos próprios
para a saúde. Como resultado dessas modificações, os municípios já estavam
assumindo 22% do gasto público em saúde, percentual que não passava de 7%
em 1980; nesse mesmo período, o percentual de gasto da esfera federal diminuiu de 75% em 1980 para 58% em 2002.
No que diz respeito à descentralização mediante transferências financeiras da União às esferas infranacionais no âmbito do SUS, ela tem sido paulatinamente construída mediante uma série de “normas operacionais”4 formuladas
pelo Ministério da Saúde.
A primeira, a Norma Operacional Básica (NOB) 01/91, introduziu uma significativa recentralização do sistema, uma vez que as transferências de recursos se davam, enquanto ela esteve em vigor, fundamentalmente sob a forma de
pagamento por serviços de saúde prestados por unidades sanitárias pertencentes às esferas subnacionais de governo.
A NOB 01/93 tentou resgatar paulatinamente o processo de descentralização
do SUS, introduzindo estímulos para que estados e municípios fossem adquirindo autonomia na gestão da rede assistencial, no seu âmbito de governo, e se
habilitassem a receber repasses “fundo a fundo”. Um entendimento básico então pactuado pela NOB 01/93 foi o de que a descentralização deveria ser um
processo lento e gradual, com liberdade de adesão por parte das unidades
federadas, e que as instâncias locais de governo, paulatinamente, se habilitariam, institucional e tecnicamente, a adquirir maior grau de autonomia de gestão.
A criação, nesse período, das Comissões Intergestoras Bipartite e Tripartite
foi, sem dúvida, um grande avanço no sentido da construção de um espaço de
concertação das políticas setoriais entre as três esferas de governo, constituindo-se, também, em mecanismo de democratização do processo decisório. Nesse espaço de pactuação, foi sendo construída, num demorado, mas democrático processo, a Norma Operacional Básica do SUS (NOB-SUS) 01/96, aprovada
por portaria publicada no Diário Oficial da União de 6 de novembro de 1996.
Esse novo instrumento veio consolidar e aprofundar os avanços no sentido da descentralização do sistema iniciados pela NOB/93. Aquelas esferas que
cumprissem os requisitos para obterem a gestão plena do sistema passariam a
ter autonomia para gerir o sistema de saúde como um todo na sua esfera de
governo, isto é, todas as ações relativas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde.
4
Maiores detalhes sobre as normas operacionais figuram em Ugá et al. (2003).
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Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
545
As principais inovações introduzidas por essa norma operacional foram a
criação de um valor per capita nacional para o custeio de procedimentos de
atenção básica e a criação de incentivos financeiros para o desenvolvimento de
programas específicos (como, por exemplo, o Programa de Saúde da Família).
Maiores avanços no sentido da descentralização de recursos (isto é, não
só do volume de recursos transferidos pela União, mas também do nível de
discricionariedade do gasto das esferas estadual e municipal) estão sendo introduzidos pelo Pacto Pela Saúde 2006, cuja operacionalização ainda está em
curso.
Atualmente (até que o referido pacto seja operacionalizado), existem três
níveis de autonomia de gestão das secretarias estaduais e municipais de saúde, condicionados pelo cumprimento de diversas condições:
- a “condição de gestão plena do sistema de saúde”, de máxima autonomia, na qual os gestores locais têm o poder de contratar e pagar provedores privados, recebem transferências globais desde o nível federal, destinadas à saúde, e se encarregam da execução de diversas políticas de
saúde;
- a “condição de gestão plena da atenção básica”, na qual os gestores têm
autonomia total no que concerne a esse nível de atenção, mas a gestão
da atenção secundária e a da terciária ficam nas mãos da Secretaria
Estadual de Saúde (no caso em que esta tenha gestão plena do sistema
de saúde) ou do Ministério da Saúde (no caso em que nem o município e
nem o estado possuam gestão plena do sistema de saúde);
- e, no caso dos municípios não habilitados, estes não têm nenhuma autonomia de gestão.
Note-se que essas condições de gestão foram abolidas pelo “Pacto da
Saúde”, que traz como principal diretriz a regionalização dos serviços, com o
que saem ainda mais fortalecidos os governos infranacionais.
Em resumo, pode-se dizer que se vem desenvolvendo, desde meados dos
anos 90, um importante processo de descentralização do sistema de saúde
brasileiro. Orientada tanto pela busca de um ajuste fiscal no Governo Federal
como pelo incentivo a um maior protagonismo das esferas infranacionais de
governo, a Emenda Constitucional nº 29 promoveu um significativo aumento da
participação dessas esferas nos recursos, instaurada pela reforma tributária de
1988. Ademais, a maior participação no financiamento tem sido acompanhada
por uma desconcentração do poder de gestão do sistema, ainda que a formulação de políticas esteja em mãos do Governo Federal.
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Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá
5 Descentralização e território: reflexões
à guisa de conclusões
Este artigo pretendeu descrever o modo como a reforma do sistema de
saúde foi parte integrante das reformas de Estado nos quatro países latino-americanos considerados. Tais reformas conduziram à diminuição do tamanho
do Estado, bem como à introdução de mecanismos de mercado na provisão da
atenção à saúde, restringindo a cobertura populacional e abandonando, na
maior parte dos casos, o sistema welfariano de tipo europeu. Como resultado, o
Estado passou a ajustar suas políticas à sua capacidade de financiá-las.
Se as reformas tivessem apenas a função de contribuir para o ajuste fiscal
em cada país, não haveria nenhuma redefinição na organização de seus territórios. No entanto, as reformas incluíram a descentralização das políticas como
instrumentos para melhorar a eficiência na alocação dos recursos públicos e a
responsabilização do gestor público (além de contrair o gasto nas esferas centrais de governo). Por isso, elas traziam subjacente a possibilidade de fortalecimento dos governos infranacionais.
Esses governos são constituídos por esferas intermediárias e municipais,
mas, apenas no Brasil, estas últimas constituem “entes federativos” e desfrutam de ampla autonomia política, administrativa, legislativa e financeira. Nos
demais países considerados, há uma variedade de situações institucionais, com
maior ou menor grau de autonomia da instância municipal de governo, mas ela é
sempre tutelada pelos governos intermediários.
Existe também uma variedade de situações relativas à autonomia financeira, condição indispensável, mas não suficiente, para que a descentralização
das políticas possa ser experimentada como fortalecimento do poder local, e
não meramente como estratégia de desconcentração na execução das políticas.
O fortalecimento dos governos infranacionais pode ocorrer, desde que o
federalismo fiscal lhes assegure participação na arrecadação fiscal e lhes permita cobrar tributos próprios para o financiamento das políticas descentralizadas. Ademais, é necessário que haja participação infranacional nas decisões
políticas e não apenas na fase de sua execução.
Com isso em mente, é possível supor que as reformas nos sistemas de
saúde, nos quatro países, tenham sido instrumentos de algum fortalecimento
do poder infranacional: em menor escala, na Argentina (apenas os governos
provinciais, que já desfrutavam de grande autonomia) e no México; mais significativamente, na Colômbia e, principalmente, no Brasil.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007
Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde...
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
549
Crescimento econômico dos municípios
da Região Sul do Brasil:
uma análise espacial*
Guilherme Mendes Resende**
Alexandre Manoel Angelo da Silva***
Doutorando (PhD Candidate) pela London
School of Economics (LSE), Mestre em
Economia pelo Cedeplar-UFMG
e Técnico de Planejamento e Pesquisa
do IPEA-DF
Mestre em Economia pela EPGE-FGV
e Técnico de Planejamento
e Pesquisa do IPEA-DF
Resumo
Neste artigo, analisam-se os determinantes das taxas de crescimento da renda
do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil no período 1991-00. No
modelo de erro espacial estimado, verifica-se que a ocorrência de choque aleatório em um desses municípios transborda para toda a Região Sul do Brasil.
Além disso, as estimações mostram que, quanto maiores forem os níveis
de escolaridade e as taxas de urbanização, maiores serão as taxas de crescimento da renda do trabalho. Por outro lado, quanto menores forem o número de
homicídios, a concentração de renda e os níveis iniciais da renda, maiores
serão as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região.
Palavras-chave
Externalidade; crescimento da renda do trabalho; municípios sulistas.
* Artigo recebido em jan. 2006 e aceito para publicação em maio 2007.
** E-mail: [email protected]
*** E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
550
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Abstract
In this paper, we analyze the determinants of labor income growth rate of Brazilian
Southern municipalities in the period 1991-2000. In the estimated spatial error
model, we verify that one random shock on a specific municipality in the South
region propagates itself throughout the region. Besides, the estimations show
that the higher are schooling and urbanization rates, the higher is the labor income
growth rate. On the other hand, the smaller are number of homicides, income
inequality and initial income level, the higher is the labor income growth rate of
Brazilian Southern municipalities.
Key words
Externalities; labor income growth; southern municipalities.
Classificação JEL:
R11, R58.
1 Introdução
Este trabalho analisa os determinantes das taxas de crescimento da renda
do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil no período 1991-00, verificando também a existência de externalidades espaciais1 que podem estar
influenciando o crescimento econômico desses municípios. No mainstream da
teoria econômica, a discussão sobre externalidades espaciais (spillovers) é um
tema recente (Fujita; Krugman; Venables, 1999).
No que diz respeito à literatura empírica mundial, a relação entre as
externalidades espaciais e o crescimento econômico é feita utilizando-se
econometria espacial. Rey e Montoury (1999) fazem uma análise estadual para
os Estados Unidos; Fingleton (1999) estuda as regiões da União Européia;
e Moreno e Trehan (1997) utilizam uma amostra de países.
No Brasil, o uso de modelos de econometria espacial para discutir essas
externalidades tem se baseado, em sua maioria, em dados dos estados brasilei1
Neste artigo, os termos externalidade espacial, externalidade, spillover e transbordamento
são utilizados como sinônimos; ou seja, esses termos representam a influência que determinada variável econômica de uma localidade gera sobre sua vizinhança.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
551
ros. Magalhães, Hewings e Azzoni (2000) utilizam técnicas de econometria espacial para estudar o processo de convergência de renda, por habitante, entre
os estados brasileiros, no período 1970-95. Os resultados encontrados por
esses autores mostram a existência de dependência espacial entre os estados
brasileiros, sugerindo, portanto, que modelos, ou estudos, de crescimento
econômico que utilizam dados dos estados brasileiros e ignoram a dependência
espacial estão mal especificados.
Silveira Neto (2001) fornece evidências empíricas da presença de spillovers
de crescimento entre as economias dos estados brasileiros, no período
1985-97. A partir da estatística e de modelos econométricos espaciais, esse
autor evidencia que a localização da economia estadual é um importante
condicionante para seu crescimento econômico. Em outras palavras, a economia estadual é significativamente afetada pelos desempenhos das economias
vizinhas.
Trabalhos utilizando dados municipais ou microrregionais brasileiros são
ainda pouco tratados pela literatura empírica. Monasterio e Ávila (2004) aplicam
a econometria espacial para analisar o crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB) por habitante das 58 áreas estatisticamente comparáveis gaúchas entre
1939 e 2001. Os resultados mostraram que áreas ricas tenderam a ser circundadas por áreas ricas; e áreas pobres, por outras igualmente pobres. O mesmo
fenômeno foi encontrado para as taxas de crescimento do PIB por habitante.
Utilizando-se modelos econométricos espaciais, verificou-se a ocorrência de
convergência do PIB por habitante.
Esses trabalhos fornecem um retrato do estado atual da discussão de
crescimento econômico com externalidade espacial no Brasil. Em sua maioria,
ao utilizarem dados estaduais, os estudos evidenciam sistematicamente a
importância das externalidades espaciais no crescimento econômico.
Neste estudo, são utilizados dados municipais e investigados os
determinantes do crescimento da renda do trabalho por meio de um modelo
espacial, a fim de captar as externalidades espaciais existentes nos municípios
do sul brasileiro. Menciona-se, ainda, que os supostos determinantes do crescimento da renda do trabalho foram escolhidos em consonância com o modelo de
Glaeser, Scheinkman e Shleifer (1995).
Além desta Introdução, para que se alcance a investigação mencionada,
far-se-á, na próxima seção, uma descrição socioeconômica de 594 municípios
da Região Sul. Em seguida, serão abordados, respectivamente, o modelo de
crescimento econômico dos municípios, a metodologia, a base de dados, os
resultados e as conclusões.
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552
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
2 Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil
Neste artigo, são utilizadas 594 áreas mínimas comparáveis (AMC)2, pertencentes aos três estados que integram a Região Sul do Brasil. A escolha dos
municípios pertencentes aos três estados dessa região baseou-se somente na
geografia política, desconsiderando-se quaisquer relações econômicas existentes entre os municípios da Região Sul e os de outras regiões. Contudo é válido
destacar que, em estudos de economia espacial, essa arbitrariedade está sempre presente, isto é, sempre se deixa de reportar alguma fronteira. Por exemplo,
se fosse estudado o crescimento dos municípios brasileiros, estar-se-ia deixando de reportar alguma região (de um país vizinho) que faz fronteira com o Brasil.
No Mapa 1, em relação ao período 1991-00, apresentam-se as taxas
médias de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do
Brasil.
A visualização do Mapa 1 sugere que os municípios de Santa Catarina
tiveram, em média, taxas de crescimento da renda do trabalho significativamente maiores que os municípios dos outros estados do sul brasileiro. Em meio a
essa prosperidade, existem alguns municípios que mostraram um fraco desempenho. Por exemplo, Xavantina apresentou uma taxa média de crescimento da
renda do trabalho negativa.
A análise visual do Mapa 1 sugere, então, que os municípios do Rio Grande do Sul e do Paraná tiveram as menores taxas de crescimento da renda do
trabalho da Região Sul do Brasil. Entre os municípios do Paraná, observam-se
vários pequenos espaços em branco, denotando possíveis clusters de municípios que apresentaram taxas negativas de crescimento da renda do
trabalho, como é o caso dos municípios que circundam Juniópolis, Boa Esperança, Roncador ou São José da Boa Vista. Não obstante, nesse mapa, constata-se que os municípios do Paraná mais próximos aos pertencentes a Santa
Catarina apresentam, quase sempre, altas taxas de crescimento da renda
do trabalho.
2
No decorrer do texto, AMC e municípios serão usados como termos sinônimos. É válido
mencionar que, a partir das fronteiras municipais de 2000, o IBGE recalculou os dados de
1991 conforme as áreas censitárias. Portanto, no período 1991-00, para estudos com municípios, não há necessidade de se trabalhar com AMC. No entanto, em virtude de a agenda de
pesquisa dos autores incluir períodos mais extensos na análise, por exemplo, 1970-00,
optou-se por utilizar as AMC, de modo a tornar comparáveis futuros estudos.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
553
Mapa
Mapa
11
Taxas médias
percentuais
de crescimento
da renda
trabalho
594
Taxas médias
percentuais
de crescimento
da renda
do do
trabalho
dede594
municípios
da Região
Brasil
1991-00
municípios
da Região
Sul Sul
do do
Brasil
——
1991-00
FONTE
FONTEDOS
DOSDADOS
DADOS BRUTOS:
BRUTOS: IPEADATA.
IPEADATA. Dados
Dados macroeconômicos
macroeconômicos ee regionais.
regionais.
Disponível
Disponível em:
em: <http://www.ipeadata.gov.br>.
<http://www.ipeadata.gov.br>.
Acesso em:
em: jan.
jan. 2006.
2006.
NOTA:
legenda,entre
entreparênteses,
parênteses,
consta
númerodede
municípios
respectiNOTA: Na
Na legenda,
consta
o onúmero
municípios
nosnos
respectivos
dataxa
taxa média
médiade
decrescimento
crescimento
renda
do trabalho.
vos intervalos
intervalos da
da da
renda
do trabalho.
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554
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Ao se observar a legenda do Mapa 1, verifica-se, também, que aproximadamente 50% dos municípios da Região Sul do Brasil apresentaram taxa
média de crescimento da renda do trabalho acima de 2,9% e que cerca
de 12% deles tiveram taxa média de crescimento da renda do trabalho
negativa.
Em 1991, os municípios da Região Sul tinham, em média, uma renda por
habitante de cerca de R$ 168,00, com 85% dessa renda proveniente de
rendimentos do trabalho; entre 1991 e 2000, a média das taxas de crescimento
da renda por habitante dos municípios dessa região foi de 4,3%, enquanto
a média das taxas de crescimento da renda do trabalho foi de 2,9%.
Em conseqüência disso, em 2000, em média, a renda por habitante dos
municípios da Região Sul passou a ser próxima de R$ 242,00, com 72%
dela proveniente de rendimentos do trabalho. Em outras palavras, as
transferências de renda efetuadas pelos Governos Federal, estaduais e
municipais aumentaram a participação no total da renda gerada nesses
municípios.
Na Tabela 1, para os anos de 1991 e 2000, apresentam-se 20 variáveis
referentes aos municípios da região estudada, com seus respectivos valores
médios, mínimos, máximos e desvios-padrão.
Em 1991, nesses municípios, em média, o coeficiente de Gini, que mensura
a desigualdade interpessoal de renda, era 0,53; entre 1991 e 2000, esse
coeficiente aumentou, em média, 0,1. Em vista disso, pode-se suspeitar que as
transferências de renda aos municípios dessa região não contribuíram para a
diminuição da desigualdade de renda, pois, em média, em 2000, verificou-se
uma concentração de renda maior (coeficiente de Gini mais elevado) do que
aquela observada em 1991.
Contudo, ao se analisar o percentual de pessoas que moram em domicílios
com renda domiciliar por habitante menor que um quarto do salário mínimo, uma
proxy do nível de pobreza, que, na Tabela 1, está identificado como percentual
de pessoas com renda domiciliar por habitante menor que R$ 37,75, suspeita-se
que as transferências de renda contribuíram para a diminuição do nível de
pobreza existente na Região Sul. Em 1991, nos municípios sob enfoque,
o percentual de pobres era de cerca de 17%. Entre 1991 e 2000, em média, esse
percentual diminuiu aproximadamente sete pontos percentuais, indicando que
as transferências diretas governamentais, apesar de não terem contribuído para
a diminuição da desigualdade de renda, se mostraram importantes para a diminuição do número de pessoas pobres nesses municípios.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
555
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
Tabela 1
Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil — 1991 e 2000
1991
VARIÁVEIS
Média (1)
Taxa de crescimento da renda
proveniente de rendimentos do
trabalho (%) ...............................
Taxa de crescimento da renda
por habitante (%) .......................
Taxa de crescimento populacional (%) .......................................
Taxa de homicídios (média
1991-00) (%) ..............................
População total ..........................
Renda domiciliar total (R$ de
2000) .........................................
Proporção da renda proveniente
de rendimentos do trabalho (%)
Renda proveniente de rendimentos do trabalho (R$ de
2000) .........................................
Renda domiciliar por habitante
(R$ de 2000) ..............................
Índice de Gini .............................
Percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante
< R$ 37,75 .................................
Número médio de anos de estudo ..............................................
Percentual de pessoas analfabetas ..........................................
Expectativa de vida (anos) ........
Taxa de mortalidade infantil .......
Taxa de fecundidade .................
Densidade populacional ............
Taxa de urbanização (%) ..........
Percentual de domicílios com
água encanada ..........................
Percentual de domicílios com
energia elétrica ..........................
Mínimo
Máximo
Desvio-Padrão
2,90
-7,30
16,00
2,90
4,30
-4,80
12,20
2,10
-0,10
-8,70
7,10
1,90
16,60
37 255
3,30
1 206
92,40
1 315 035
9,60
101 409
9 155 578
0,85
7 701 314
133 396
0,66
115 401
663 551 890
0,94
524 803 190
40 892 963
0,04
33 569 117
168,20
0,53
69,40
0,36
525,20
0,71
58,80
0,06
17,40
0,80
58,60
10,20
4,10
1,90
8,60
0,80
19,60
67,50
31,60
2,90
76,70
55,10
2,60
56,30
11,10
2,00
2,60
8,00
47,30
74,30
80,20
4,70
3 051,80
100,00
8,80
3,40
11,40
0,50
255,90
22,20
48,90
6,80
95,40
20,00
88,40
37,30
100,00
11,30
(continua)
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
556
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Tabela 1
Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil — 1991 e 2000
2000
VARIÁVEIS
Média (1)
Mínimo
Máximo
Taxa de crescimento da renda
proveniente de rendimentos do
trabalho (%) ..............................
Taxa de crescimento da renda
por habitante (%) .......................
Taxa de crescimento populacional (%) ...................................
Taxa de homicídios (média
1991-00) (%) ..............................
População total ..........................
42 269
1 338
1 587 315
Renda domiciliar total (R$ de
247 102
983 849 583
2000) ......................................... 14 472 889
Proporção da renda proveniente
de rendimentos do trabalho (%)
0,72
0,46
0,82
Renda proveniente de rendimentos do trabalho (R$ de
2000) .......................................... 10 465 254
175 025
720 374 665
Renda domiciliar por habitante
(R$ de 2000) ..............................
242,80
96,60
709,90
0,54
0,40
0,77
Índice de Gini .............................
Percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante
< R$ 37,75 .................................
10,40
0,90
51,30
Número médio de anos de estudo ............................................
5,00
2,90
9,30
Percentual de pessoas analfabetas ..........................................
13,60
2,30
34,90
71,20
61,50
77,90
Expectativa de vida (anos) ........
18,80
7,20
42,30
Taxa de mortalidade infantil .......
2,50
1,70
4,30
Taxa de fecundidade .................
90,70
3,00
3 683,70
Densidade populacional ............
63,60
8,30
100,00
Taxa de urbanização (%) ..........
Percentual de domicílios com
água encanada ..........................
65,40
8,60
96,90
Percentual de domicílios com
energia elétrica ..........................
95,40
57,70
100,00
Desvio-Padrão
118 233
63 920 475
0,05
45 748 985
78,00
0,05
7,00
0,80
6,60
3,10
5,80
0,40
308,40
21,00
19,20
5,10
FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível:em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: jan. 2006.
(1) A média é aritmética.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
557
No que concerne ao número médio de anos de estudo da população com
25 anos em diante, uma proxy do nível educacional, em 1991, os municípios da
Região Sul do Brasil possuíam, em média, 4,1 anos. Entre 1991 e 2000, esse
número médio foi elevado em 0,9 ano, passando, pois, para cinco anos. Ainda
em relação à educação, no que diz respeito à taxa de analfabetismo entre
pessoas com 25 anos ou mais de idade, entre 1991 e 2000, nesses municípios,
houve diminuição de aproximadamente seis pontos percentuais, de modo que
essa taxa de analfabetismo declinou de 19,6% para 13,6%.
Entre 1991 e 2000, em média, a taxa de urbanização dos municípios da
Região Sul aumentou em torno de oito pontos percentuais, passando de cerca
de 55% para próxima de 63%. Desde que essa taxa representa uma proxy para
o grau de aglomeração nas áreas urbanas desses municípios, esse aumento
significa que, nesse período, houve uma diminuição das áreas rurais na Região
Sul do Brasil. Em 1991, nos municípios dessa região, em cada 1.000 crianças,
com até um ano de idade, morriam cerca de 31 crianças. Em 2000, nesses
municípios, essa taxa de mortalidade infantil, uma proxy para o estado de
saúde da população, passou a ser 18,8. No que diz respeito à porcentagem de
domicílios com acesso à água encanada em 1991, os municípios sulistas apresentaram, em média, um percentual de 48,9%. Em 2000, tais municípios
aumentaram esse acesso para 65,4%.
Enfim, por meio dessa descrição, percebe-se que, entre 1991 e 2000,
excetuando-se o indicador de desigualdade interpessoal da renda, índice de
Gini, houve uma melhoria em todos os indicadores socioeconômicos dos municípios da Região Sul.
3 Um modelo de crescimento econômico
dos municípios3 da Região Sul do Brasil
Nesta seção, descreve-se o modelo que embasará o trabalho empírico.
O modelo supõe que os municípios partilham idênticas dotações de trabalho e
de capital, de modo que a poupança e a dotação exógena de trabalho não
causam diferenças nas taxas de crescimento econômico dos municípios. Des-
3
O modelo descrito nesta seção está em consonância com Glaeser, Scheinkman e Shleifer
(1995).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
558
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
sa forma, os municípios diferem-se somente via nível de produtividade e qualidade de vida. Assim, tem-se a seguinte função de produção:4
f ( Li ,t ) = Ai , t Lσi ,t ,
(1)
onde Ai ,t representa o nível de produtividade do município i no tempo t;
Li ,t representa a população da cidade i no tempo t; f (.) é uma função de
produção Cobb-Douglas, comum entre os municípios, com elasticidade do produto em relação à mão-de-obra σ . Vale mencionar que a interpretação de
é ampla, advindo de fontes educacionais e do nível da renda do trabalho.
Em equilíbrio, no mercado de trabalho, a renda do trabalho é igual à produtividade marginal do trabalho:
Wi ,t = σAi ,t Lσi ,t−1
(2)
Definiu-se a utilidade total como a renda ponderada por um índice de qualidade de vida. Supondo que a qualidade de vida é uma função monotonicamente
inversa do tamanho dos municípios:
qualidade de vida
= Qi ,t L−i ,δt
(3)
no qual δ > 0 . O índice de qualidade de vida
Ai , t captura efeitos de vários fatores:
criminalidade, densidade populacional, infra-estrutura social, urbanização, acesso
aos serviços de saúde e desigualdade de renda.
Assim, no município i, no ano t, a utilidade total da renda do trabalho é:
U
i ,t
= σ A i , t Q i , t L σi , t− δ − 1 .
(4)
A partir da expressão (4), pode-se inferir que:
U 
A 
Q 
L 
Ln i ,t +1  = Ln i ,t +1  + Ln i ,t +1  + (σ − δ − 1)Ln i ,t +1 
U 
 A 
 Q 
 L 
 i ,t 
 i ,t 
 i ,t 
 i ,t 
4
(5)
A suposição de que os estoques de capital dos municípios sulistas são idênticos e não
influenciam a taxa de crescimento econômico advém de dois motivos: primeiro, constitui
suposição básica do modelo de Glaeser; Scheinkman e Shleifer (1995); segundo, no Brasil,
em nível municipal, no que concerne ao ano de 1991, apesar de já existirem dados para o
estoque de capital privado (<www.nemesis.org.br/docs/estcapmun.pdf>), não existem
dados relativos de total de estoque de capital (privado mais público).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
559
Assume-se que:
A 
Ln i ,t +1  = X i',t β + ε i ,t +1
 A 
 i ,t 
(6)
 Qi ,t +1 
 = X i',tθ + ζ i ,t +1
 Q 
 i ,t 
e Ln
(7)
onde, X i ,t é um vetor com as características dos municípios no tempo t,
determinando o crescimento tanto da produtividade quanto da qualidade de vida
dos municípios. Ao se associar (5), (6) e (7), com algumas manipulações
algébricas, pode-se escrever a seguinte equação:
W  
1
 '
Ln i ,t +1  = 
 X i ,t (δβ + σθ − θ ) + ϖ i ,t +1
 Wi ,t   1 + δ − σ 
(8)
em que χ i,t e ϖ i,t são termos não correlacionados com as características
dos municípios.
O resultado desse modelo é que a regressão representante do crescimento da renda do trabalho pode ser interpretada como uma função das características (produtividade e qualidade de vida) dos municípios. Mais precisamente, o crescimento da renda do trabalho é uma ponderação entre o nível de produtividade e a qualidade de vida.
Nesse modelo empírico, os sinais esperados para os coeficientes representativos dos níveis da produtividade e da qualidade de vida estão no Quadro
1. Salienta-se que os sinais esperados das variáveis têm como referência as
teorias de crescimento econômico informadas na coluna REFERENCIAL
TEÓRICO do Quadro 1.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
560
Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Quadro 1
Sinais esperados para os coeficientes representativos dos níveis da produtividade e
da qualidade de vida dos municípios da Região Sul do Brasil
CARACTERÍSTICAS
DOS MUNICÍPIOS
Produtividade
Qualidade de vida
VARIÁVEIS
SINAL
ESPERADO
Renda do trabalho em 1991 (Ln)
Número médio de anos de
estudo das pessoas de 25 anos
ou mais de idade (proxy para
capital humano)
Percentual de domicílios com
acesso à água encanada (proxy
para infra-estrutura social)
Percentual de domicílios com
acesso à iluminação elétrica
(proxy para infra-estrutura social)
Taxa de mortalidade infantil
(proxy para estado de saúde)
Densidade populacional (proxy
para efeitos de congestão)
Taxa de urbanização (proxy para
economias de aglomeração)
Taxa de homicídios (proxy para
criminalidade)
Índice de Gini (proxy para
desigualdade na
distribuição
interpessoal de renda)
_
REFERENCIAL
TEÓRICO
–
Solow (1956)
+
Lucas (1988);
Mankiw, Romer e
Weil (1992)
+
Barro (1990)
+
Barro (1990)
–
_
+
–
Bloom, Canning e
Sevilha (2001)
Fujita, Krugman e
Venables (1999)
Fujita, Krugman e
Venables (1999)
—
Alesina e Rodrick
(1994)
4 Metodologia
Esta seção descreve como se investigará a relação entre a taxa de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul, variável dependente,
e suas variáveis explicativas, variáveis que mensuram a produtividade e a qualidade de vida dos municípios, conforme descrito na seção anterior. Inicialmente, utilizar-se-ão os testes I de Moran (Assunção, 2004) e Local Indicators of
Spatial Association (LISA) (Anselin, 1995), a fim de se construir uma análise
exploratória dos dados espaciais, analisando-se se existe autocorrelação espacial nas taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios dessa
região.
A estatística, ou índice I de Moran, é uma estatística de autocorrelação
espacial, que indica se a distribuição dos dados no espaço segue algum padrão
não aleatório. Caso exista um padrão espacial para a variável em análise — taxa
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
561
de crescimento da renda do trabalho —, há duas possibilidades: autocorrelação
positiva, caso em que os valores semelhantes se aproximam no espaço, ou
negativa, caso em que os valores se distanciam espacialmente.
Uma outra indicação da distribuição espacial de uma variável qualquer é a
estatística LISA. Neste caso, a estatística LISA ilustrará os resultados apresentados pelo índice I de Moran. Segundo Pimentel e Haddad (2004), enquanto a
estatística de Moran apresenta um resultado global para um determinado espaço econômico, a estatística LISA indica uma associação espacial local, no âmbito
de cada unidade regional, apresentando a existência, ou não, de clusters de
valores de uma dada variável em um determinado espaço. Com isso, é possível
definir o tipo de “clusterização” existente para a variável em análise, que é a
taxa de crescimento da renda do trabalho entre 1991 e 2000.5
Em um passo subseqüente, a fim de ratificar a presença de autocorrelação
espacial no modelo econométrico, far-se-á, também, o teste I de Moran nos
resíduos dos Mínimos Quadrados Ordinários (MQO). Se a presença de
autocorrelação espacial for confirmada, usar-se-á a estratégia sugerida por
Florax, Folmer e Rey (2003) na escolha do modelo econométrico apropriado
para se analisar quais são as variáveis que determinam as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul. Basicamente, a econometria
espacial sugere dois modelos: autocorrelação espacial na variável dependente
(defasagem espacial) ou autocorrelação espacial no erro (erro espacial). No
modelo de defasagem espacial, acrescenta-se, entre as variáveis explicativas
do modelo clássico de MQO, uma defasagem espacial da variável dependente.
Estima-se, assim, por meio do método de Máxima Verossimilhança (MV),
o modelo especificado na equação (9).
y = ρWy + Xβ 1 + ε
ε ~ N (0, σ 2 I n )
(9)
Aqui, y é um vetor (nx1), que representa as taxas de crescimento da renda do
trabalho municipais. A matriz X (nxK) representa as variáveis explicativas, sendo β1 o vetor (Kx1) de coeficientes, que inclui tanto os coeficientes das proxies
do nível de produtividade quanto os coeficientes das proxies do nível de qualidade de vida dos municípios estudados. A matriz W (nxn) é a matriz de contigüidade6, e o parâmetro ρ é o coeficiente de defasagem espacial, o qual capta os
5
6
Ver Silva e Resende (2005), para uma aplicação detalhada das estatísticas de Moran e LISA.
A relação de contigüidade adotada neste trabalho foi a chamada Queen, ou seja, são considerados vizinhos os municípios que têm fronteiras ou vértices com outros.
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
efeitos de transbordamento das taxas de crescimento da renda do trabalho sobre os vizinhos.
No modelo de erro espacial, modela-se o erro, ε , do modelo de MQO da
seguinte forma: ε = λWε + u . Aqui, λ é um escalar do coeficiente do erro,
e u ~ N (0, σ 2 I ) . Assim, tem-se o modelo de erro espacial especificado na
equação (10).
(10)
y = Xβ + ( I − λW ) −1 ε
1
Como dito anteriormente, este trabalho segue a abordagem sugerida por
Florax, Folmer e Rey (2003), para a escolha da especificação apropriada do
modelo a ser estimado. As ferramentas usadas para identificar o modelo
apropriado são os testes de Multiplicador de Lagrange (ML) em sua versão robusta.7 Esses autores seguem os seguintes passos:
a) estime via MQO o modelo y = Xβ 1 + ε ;
b) teste a hipótese de ausência de dependência espacial devido a
uma omissão da defasagem espacial da variável dependente ou
devido à omissão do erro espacial auto-regressivo, usando
MLρ e MLλ respectivamente;
c) se ambos os testes não forem significantes, a estimação do primeiro
passo é utilizada como a especificação final, caso contrário, siga o
passo (d);
d) se ambos os testes forem significantes, estime a especificação que
apresentar o maior valor do teste, por exemplo, se MLρ > MLλ
então, estime o modelo (9), defasagem espacial. Se ML ρ < MLλ ,
então, estime o modelo (10), erro espacial, caso contrário, siga o
passo (e);
e) se MLρ for significativo, mas MLλ não, estime o modelo (9), caso
contrário, siga o passo (f);
f) estime o modelo (10).
Assim, por meio dessa metodologia, escolher-se-á o modelo econométrico
apropriado para se analisar quais são as variáveis (representativas da
produtividade e da qualidade de vida) que determinam as taxas de crescimento
da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil.
7
Para maiores detalhes, ver Florax, Folmer e Rey (2003, p.562) .
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
563
5 Base de dados
A amostra consiste em 594 áreas mínimas comparáveis dos municípios
da Região Sul do Brasil para o período 1991-00. Todas as variáveis utilizadas
foram obtidas no Ipeadata (2006): (logaritmo da) renda do trabalho em 1991
(R$ de 2000), percentual de domicílios com água encanada; percentual de
domicílios com iluminação elétrica; número médio de anos de estudo das pessoas
de 25 anos ou mais de idade; taxa de mortalidade infantil até um ano de idade
(por 1.000 nascidos vivos); índice de Gini; taxa de urbanização; densidade
populacional; e taxa de homicídios8 (média dos anos da década de 80). No que
concerne às variáveis independentes, foram utilizados dados do início do período,
ou seja, do ano de 1991. A variável dependente do modelo estimado é a taxa
média anual de crescimento da renda do trabalho entre 1991 e 2000.
Em virtude de apresentarem índices de correlação elevados com outras
variáveis, não foram incluídas no modelo as seguintes variáveis: percentual de
pessoas de 25 anos ou mais de idade analfabetas; percentual de pessoas com
renda domiciliar por habitante abaixo de R$ 37,75; esperança de vida ao nascer
(taxa de urbanização em 1991)^2 e (índice de Gini em 1991)^2 . Com isso,
minimizam-se os problemas decorrentes da multicolinearidade.
Ao se utilizarem as variáveis no início da década, ou o uso da média da
década anterior9, para explicar os fatores que determinam as taxas de crescimento
econômico da década, supõe-se que essas variáveis influenciam por alguns
anos as taxas de crescimento econômico dos municípios. Essa hipótese leva
consigo a idéia de que os efeitos da educação, da infra-estrutura e das condições
de saúde sobre as taxas de crescimento econômico não se dissipam
imediatamente, mas se distribuem uniformemente ao longo do período. Assim,
controla-se, também, a possível endogeneidade do modelo.
6 Resultados
Como proposto inicialmente, na metodologia, para o período 1991-00, apresenta-se o Gráfico de Moran10 (Figura 1) para as taxas médias de crescimento
8
Cálculo da taxa: divisão do grupo populacional (multiplicado por 100.000) pela população de
referência.
9
É o caso da taxa de homicídios.
10
O cálculo da estatística I de Moran, bem como a construção do Gráfico de Moran e todas as
análises posteriores foram feitas utilizando-se o software Geoda 0.95i, disponível no site:
<http://sal.agecon.uiuc.edu/geoda_main.php>.
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil. Destaca-se que,
acima da Figura 1, se encontra a estatística I de Moran.
Figura 1
Taxas médias de crescimento da renda do trabalho dos municípios
da Região Sul do Brasil — 1991-00
FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível em:
<http://www.ipeadata.gov.br>.
Acesso em: jan. 2006.
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
565
A análise visual do Gráfico de Moran sugere a existência de autocorrelação
espacial positiva nas taxas médias de crescimento da renda do trabalho dos
municípios da Região, visto que essas taxas se concentram no primeiro e no
terceiro quadrantes. Verifica-se, pois, que municípios com alta (baixa) taxa de
crescimento da renda do trabalho11, em média, são vizinhos de municípios com
alta (baixa) taxa de crescimento da renda do trabalho. Corroborando a análise
visual, a estatística I de Moran mostrou-se significante em um nível de 0,01%,
a partir de testes com aproximadamente 10.000 permutações.
A fim de ilustrar a autocorrelação espacial verificada por meio da estatística
I de Moran, o Mapa 2 demonstra os resultados da estatística LISA, em um nível
de confiança de 95%, apresentando, pois, quatro regimes espaciais para as
taxas médias de crescimento da renda do trabalho, entre 1991 e 2000, dos
municípios da Região Sul do Brasil.
O Mapa 2 confirma que, em um nível de 95% de confiança, existe um
padrão para a configuração espacial da taxa de crescimento da renda do trabalho
entre 1991 e 2000. Nota-se que, no Paraná, nos municípios que circundam Moreira
Sales, Boa Esperança, Ubiratã, Campina da Lagoa, Cândido Abreu e Jacarezinho,
dentre outros, preponderam municípios no padrão baixo-baixo, ou seja, municípios
com baixa taxa de crescimento da renda do trabalho, que são cercados por
municípios com baixa taxa de crescimento da renda do trabalho. A configuração
espacial baixo-baixo também está presente em alguns municípios do Rio Grande
do Sul, como Caçapava do Sul, Piratini e seus respectivos vizinhos. No Mapa 2,
pode-se também visualizar, ao redor de Curitiba, um cluster de municípios no
padrão alto-alto, isto é, municípios com alta taxa de crescimento da renda do
trabalho que são cercados por municípios com alta taxa de crescimento da
renda do trabalho.
A partir dos resultados apresentados, inspeciona-se, por meio da aplicação
da estatística I de Moran nos erros do modelo MQO, a presença de autocorrelação
espacial. Essa estatística confirmou os resultados apresentados, ao indicar que
os erros do modelo MQO são autocorrelacionados. Concluiu-se, então, que, no
modelo de crescimento econômico dos municípios da Região Sul, há
autocorrelação espacial.12 Desse modo, justifica-se a utilização das técnicas de
econometria espacial na estimação.
11
Ressalta-se que alta (baixa) taxa de crescimento, aqui, se refere à taxa de crescimento
acima (abaixo) da média padronizada das taxas de crescimento dos municípios sulistas.
12
Os resultados da aplicação da estatística I de Moran nos resíduos dos modelos estimados
constam no Quadro 2. Os respectivos gráficos estão na Figura 2.
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Mapa 2
Mapa 2
de “clusterização”
dos
municípios da Região
dodo
Brasil
— 1991-00
Mapa Mapa
de "clusterização"
dos
municípios
RegiãoSul
Sul
Brasil
— 1991-00
FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: jan. 2006.
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
567
Conforme descrito na Metodologia, a fim de se escolher qual modelo
(defasagem espacial ou erro espacial) é o mais adequado para esta análise,
seguiram-se as recomendações de Florax, Folmer e Rey (2003), de modo que
se explicitam, no Quadro 2, os testes MLρ e MLλ . Em virtude de MLλ e
MLρ serem significativos, seguiu-se o passo (d) da seção 4 (Metodologia).
Desde que MLλ > MLρ, no Quadro 2, utiliza-se apenas a coluna erro espacial
na análise de quais são as variáveis que determinam as taxas de crescimento
da renda do trabalho dos municípios do sul do Brasil. Entretanto, ainda no
Quadro 2, reportam-se, também, os resultados dos estimadores MQO e do
modelo de defasagem espacial.
No Quadro 2, é importante salientar que os resultados da aplicação da
estatística I de Moran nos resíduos do modelo estimado erro espacial13 mostram que a autocorrelação espacial foi tratada. Conforme se esperava, o parâmetro λ , que mensura a autocorrelação espacial, foi significativo. Como bem
salienta Rey e Montoury (1999), quando λ ≠ 0 , um choque ocorrido em uma
unidade geográfica espalha-se não só para os seus vizinhos imediatos, mas por
todas as outras unidades. Assim, pode-se afirmar que a ocorrência de choque
em um município da Região Sul do Brasil transborda para toda ela.
É válido destacar que, no que concerne à vantagem em se estimar via
modelo erro espacial em vez de MQO, se pode observar a diferença de magnitude em alguns parâmetros, principalmente número médio de anos de estudo e
índice de Gini. Haja vista que, neste estudo, parece não haver diferença entre os
sinais das estimativas MQO e erro espacial. Em outras palavras, a ausência de
correção de dependência espacial parece não afetar o sinal da estimativa.
Em relação a essa correção, outro ponto importante é que, enquanto o
modelo MQO possui R2 de 0,31, o modelo de erro espacial possui R2 de 0,44.
Isso sugere que, nesse modelo que corrige a dependência espacial, uma parcela
maior dos diferenciais das taxas de crescimento da renda do trabalho dos
municípios da amostra é explicada. Ou seja, no modelo de erro espacial,
aproximadamente 44% dos diferenciais de crescimento entre os municípios da
Região Sul do Brasil são explicados, enquanto, no MQO, apenas 31% são
explicados. Mesmo com essa vantagem explícita do modelo de erro espacial
em relação ao MQO, é válido mencionar que ainda existe um vasto espaço para
identificar outros condicionantes das taxas de crescimento econômico dos
municípios da Região.
13
O gráfico está na Figura 2 deste artigo.
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Resíduos da regressão do modelo de Mínimos Quadrados Ordinários (MQO) à esquerda
e modelo de erro espacial à direita, para a amostra de municípios
da Região Sul do Brasil
Figura 2
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
Quadro 2
Resultados das estimativas econométricas
VARIÁVEL DEPENDENTE: TAXA ANUAL DE CRESCIMENTO
DA RENDA DO TRABALHO ENTRE 1991 E 2000
Variáveis
Constante
λ
ρ
Dummy para os municípios do Estado
de Santa Catarina
Dummy para os municípios do Estado
do Rio Grande do Sul
Ln (renda do trabalho em 1991)
Número médio de anos de estudo em
1991
Percentual de domicílios com água
encanada em 1991
Percentual de domicílios com energia
elétrica em 1991
Mortalidade infantil em 1991
Densidade populacional em 1991
Taxa de urbanização em 1991 (%)
Taxa de homicídios média entre 1980 e
1990 (%)
Índice de Gini em 1991
R2
Mínimos Quadrados
Ordinários
Defasagem
Espacial
Erro Espacial
16,8287
14,3265
16,6207
(0,000)
(0,000)
(0,000)
-
-
0,52
-
-
(0,000)
-
0,3995
-
-
(0,000)
-
0,2752
(0,462)
-0,1282
(0,716)
0,7380
(0,126)
-1,0586
(0,001)
-0,8376
(0,024)
-0,8150
(0,137)
-0,5339
(0,000)
-0,4626
(0,000)
-0,5152
(0,000)
1,5398
(0,000)
1,1649
(0,000)
1,0654
(0,000)
-0,0381
(0,005)
-0,0302
(0,015)
-0,0302
(0,018)
-0,0189
(0,165)
-0,0145
(0,250)
0,0036
(0,801)
-0,02
(0,283)
-0,0001
(0,747)
-0,0143
(0,292)
-0,0005
(0,275)
-0,02
(0,219)
-0,0006
(0,202)
0,0306
(0,008)
0,0282
(0,008)
0,0342
(0,002)
-0,0244
(0,071)
-0,0250
(0,045)
-0,0307
(0,012)
-17,8647
(0,000)
-15,4970
(0,000)
-19,2735
(0,000)
0,31
0,40
0,44
(continua)
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
Quadro 2
Resultados das estimativas econométricas
VARIÁVEL DEPENDENTE: TAXA ANUAL DE CRESCIMENTO
DA RENDA DO TRABALHO ENTRE 1991 E 2000
Variáveis
Mínimos Quadrados
Ordinários
Defasagem
Espacial
Diagnóstico para dependência espacial
Teste I de Moran (teste dos resíduos)
0,245
(1)
(0,00)
MLρ
(lag)
MLλ
(erro)
Teste LR
Erro Espacial
0,025
(0,15)
-0,023
(0,21)
72,03
(0,00)
-
-
92,53
(0,00)
-
-
-
60,44
(0,00)
84,66
(0,00)
NOTA: 1. Vale ressaltar que, na metodologia para a escolha do modelo espacial adequado, os
resíduos devem ter distribuição normal, o que se verifica no caso de grandes amostras, de acordo com o teorema central do limite.
2. Valores p entre parênteses.
te(1) O teste I de Moran, feito a partir dos resíduos da regressão de Mínimos Quadrados Ordinájrios, rejeitou a hipótese nula, ou seja, rejeitou a hipótese de ausência de autocorrelação espacial.
As dummies para os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul não
foram significativas, mostrando que, entre eles, não há diferença significativa
nas taxas de crescimento da renda de trabalho. Mais uma vez, isso mostra que
o modelo utilizado corrige para o efeito da dependência espacial e, mais
importante, mostra a importância dos atributos capturados nas variáveis
explicativas (responsáveis pelos diferenciais de crescimento dos municípios da
Região Sul), pois, observando-se apenas a Figura 1, se ficaria com a impressão
de que, em relação aos municípios dos outros dois estados da Região Sul, os
de Santa Catarina possuíam taxas significativamente maiores de crescimento
da renda do trabalho.
Em um nível de 95% de confiança, foram seis as variáveis estatisticamente
significativas: renda do trabalho em 1991, número médio de anos de estudo das
pessoas de 25 anos ou mais de idade em 1991, percentual de pessoas com
acesso à água encanada em 1991, taxa de urbanização em 1991, taxa de
homicídios em 1991 e Índice de Gini em 1991.
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Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
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À exceção do coeficiente do percentual de pessoas com acesso à água
encanada, todos os coeficientes significativos estão em consonância com os
sinais esperados pela teoria econômica, conforme Quadro 1.
O coeficiente do nível da renda do trabalho é negativo e significativo,
mostrando que municípios com níveis iniciais de renda do trabalho mais baixos
tendem a crescer mais rapidamente que os municípios com maiores níveis de
renda14. A proxy do grau de escolaridade da população, número médio de anos
de estudo, apresentou um sinal positivo, demonstrando, portanto, que, quanto
maior for o nível de escolaridade da população, maior será a taxa de crescimento
da renda do trabalho do município.
O coeficiente da taxa de urbanização também foi positivo e significativo,
mostrando que, quando se aumenta o percentual de urbanização em 1%, a taxa
de crescimento da renda do trabalho dos municípios estudados se eleva em
0,03%. As estimativas mostraram também que, nesses municípios, a
concentração de renda e a criminalidade impactam negativamente a taxa de
crescimento da renda do trabalho.
Na Região Sul do Brasil, quanto maior for o índice de Gini115, que mensura
a desigualdade de renda, menor será a taxa de crescimento da renda do trabalho.
Em uma sociedade mais desigual, seus habitantes têm menor poder de barganha
para negociar as perdas; isso implica que as relações de trabalho se desenvolvem
de maneira menos eficiente, diminuindo, portanto, o produto marginal do trabalho
e, conseqüentemente, a taxa de crescimento da renda do trabalho.
Nos municípios da Região, quanto maior for a taxa de homicídio (média do
número de homicídios na década de 80), que é uma proxy da criminalidade,
menor será a taxa de crescimento da renda do trabalho. Nesse caso, a análise
sugere que municípios mais violentos geram uma pior qualidade de vida para
seus habitantes, diminuindo a utilidade fornecida pela renda do trabalho e, assim,
impactando negativamente as taxas de crescimento da renda do trabalho.16 No
que concerne ao percentual de pessoas com acesso à água encanada, o sinal
do coeficiente foi negativo, ao contrário do que se esperava, conforme consta
na seção 3, no Quadro 1. Não se encontrou uma explicação razoável para
o sinal negativo desse coeficiente.
14
Pode-se afirmar a ocorrência de convergência beta condicional, ou seja, os municípios não
estão convergindo para um mesmo nível de renda do trabalho, mas, sim, para os próprios
níveis de estado estacionário.
15
O índice de Gini varia de 0 a 1; quanto mais próximo estiver de 1, maior será a concentração
de renda.
16
Outra possível explicação para esse coeficiente da taxa de homicídio é que, em virtude de o
modelo aqui apresentado não incluir o logaritmo da população das AMC, essa taxa pode
estar captando possíveis deseconomias de aglomeração. Isso se explica, porque a violência
tende a ser maior nas áreas metropolitanas, usualmente já saturadas.
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Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva
7 Conclusões
Neste artigo, investigou-se que variáveis são determinantes das taxas de
crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul. Investigou-se,
também, se existe autocorrelação espacial na taxa de crescimento da renda do
trabalho desses municípios. No que diz respeito a essa autocorrelação, verificou-se que, na Região Sul do Brasil, municípios com alta (baixa) taxa de crescimento
da renda do trabalho, em média, são vizinhos de municípios com alta (baixa)
taxa de crescimento da renda do trabalho.
No modelo de erro espacial estimado, constatou-se que a ocorrência de
choque em um município da Região transborda para toda ela. No que concerne
à vantagem em se corrigir a dependência espacial, dois pontos merecem ser
destacados: há diferença de magnitude em alguns parâmetros, e uma parcela
maior dos diferenciais das taxas de crescimento da renda do trabalho dos
municípios sob enfoque (da amostra) é explicada.
Além disso, em um nível de confiança de 95%, foram seis as variáveis
estatisticamente significativas que mostraram determinar o crescimento da renda
do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil: renda do trabalho em 1991,
número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade
(proxy de educação), percentagem de domicílios com acesso à água encanada
(proxy de infra-estrutura social), taxa de urbanização (proxy para economias de
aglomeração), taxa de homicídios (proxy para o nível de criminalidade) e índice
de Gini (proxy para o nível de desigualdade de renda).
À exceção do coeficiente da percentagem de domicílios com acesso à
água encanada, todos os outros coeficientes significativos estão em consonância
com os resultados apontados pela teoria econômica. Ressalta-se que não se
obteve uma explicação razoável para a taxa de crescimento da renda do trabalho
variar em sentido contrário ao aumento do acesso das pessoas à água encanada.
Sendo assim, nos municípios estudados, quanto maiores forem os níveis
de escolaridade e as taxas de urbanização, maiores serão suas taxas de
crescimento da renda do trabalho. Por outro lado, quanto menores forem o número
de homicídios, a concentração de renda e os níveis iniciais da renda, maiores
serão as taxas de crescimento da renda do trabalho.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007
Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil...
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
577
Reestruturação e consolidação do sistema
bancário privado brasileiro*
Patrícia F. F. Arienti**
Doutora pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do
Departamento de Ciências Econômicas
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Resumo
A perda das receitas inflacionárias após a introdução do Plano Real levou o
setor bancário brasileiro a iniciar um processo de reestruturação baseado tanto
no aumento da concentração bancária como na internacionalização do setor.
Acreditava-se que, com a internacionalização do sistema bancário, seria possível solucionar a grande fragilidade estrutural do setor financeiro brasileiro: a
ausência de mecanismos privados domésticos de financiamento de longo prazo. Percebe-se, no entanto, que, embora o setor bancário brasileiro se tenha
fortalecido e consolidado, não ocorreram mudanças significativas referentes à
oferta de crédito para o setor produtivo, uma vez que o sistema bancário optou
por um tipo de estratégia e rentabilidade que privilegia a liquidez dos títulos de
dívida pública em detrimento do crédito.
Palavras-chave
Reestruturação do setor bancário; internacionalização do setor bancário;
concentração bancária.
Abstract
The end of inflationary process after the introduction of the Real Plan took the
Brazilian banking sector to undertake a process of reorganization by the increase
* Artigo recebido em fev. 2005 e aceito para publicação em maio 2007.
** A autora agradece as contribuições de um parecerista anônimo. O apoio do Funpesquisa-UFSC é reconhecido.
E-mail: [email protected]
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
578
Patrícia F. F. Arienti
of the banking concentration as well as the internationalization of the sector. It
was supposed that the internationalization of the banking system would solve
the great fragility structural of the Brazilian financial sector: the absence of
domestic private mechanisms of financing of long run credit. It is perceived,
however, that even so the Brazilian banking sector has been fortified and
consolidated, changes of credit supply for the productive sector has not occurred
once the banking system has opted for a strategy that has privileged the liquidity
of the of public debt at the expenses of the credit.
Key words
Bank system restructuring; financial globalization; bank sector
concentration.
Classificação JEL:
E65, G21.
1 Introdução
A implementação do Plano Real e o conseqüente controle da inflação impossibilitaram ao setor bancário a manutenção de sua rentabilidade através da
receita inflacionária.
A inviabilidade da manutenção da receita inflacionária indicava que o sistema financeiro teria de passar por um processo de ajuste, de forma a adaptar sua
dinâmica operacional ao novo contexto macroeconômico. Dessa forma, logo
após a implementação do Plano Real, a primeira estratégia de ajuste adotada
pelos bancos que operavam no País foi compensar a perda da receita inflacionária com o crescimento da oferta de crédito, mantendo, dessa forma, o mesmo
nível de rentabilidade anterior à estabilidade econômica.
A manutenção da rentabilidade do setor através da adoção de uma estratégia de ajuste baseada numa postura mais agressiva no que concerne à oferta
de crédito evitou, temporariamente, uma reestruturação mais profunda do setor
bancário após a implementação do Plano Real.1
1
Ao explicar a manutenção da rentabilidade dos principais bancos nesse período, deve-se
também destacar o papel desempenhado pelo significativo aumento das receitas provenientes de prestação de serviços, especialmente beneficiada pela liberalização da cobrança de
tarifas.
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
579
O crescimento do crédito no período inicial do Plano ocorreu, apesar da
adoção de uma política restritiva por parte das autoridades monetárias como
forma de controlar a explosão do mesmo. Na época, o pensamento econômico
do Governo era o de que a estabilidade econômica, na medida em que eliminasse os ganhos inflacionários, levaria os bancos a compensarem essa perda de
receita através da expansão das operações de crédito. Conforme Soares (2001,
p. 10),
[...] aparentemente, em virtude dessa unanimidade, a preocupação principal
do governo era a de como evitar a explosão do crédito. O crescimento
exagerado do crédito poderia fragilizar os bancos e criar uma bolha de
consumo, ameaçando a estabilização de preços. Para evitar esse
crescimento, o Banco Central estabelece uma política rigorosa de depósitos
compulsórios sobre depósitos à vista, a prazo e sobre outras operações,
e adota normas mais restritivas para a concessão de créditos. Entretanto,
apesar da política restritiva, os estudos mostram que os créditos cresceram.
A política monetária restritiva adotada pelas autoridades monetárias no
início do Plano Real acabou por reforçar a tendência de queda do ritmo de crescimento econômico do País, que começava a aparecer já em 1995. O cenário
econômico recessivo de 1995, somado à manutenção de uma taxa de juros
bastante elevada, reduziu fortemente a capacidade dos devedores de saldarem
suas dívidas. Diante desse quadro, a inadimplência no setor bancário aumentou
substancialmente, especialmente no segundo semestre de 1995, após a crise
do México. De acordo com Baer e Nazini (1999) apud Salviano Jr. (2004), para o
conjunto do sistema financeiro, a taxa de inadimplência passou de 5% em setembro de 1994 para 15% em 1997.
Dessa forma, embora, no primeiro momento do Plano Real, o setor bancário tenha sido capaz de se adaptar ao novo contexto macroeconômico através
de uma postura mais ousada de aumento no seu nível de crédito, essa postura
tornou-se mais conservadora após o delineamento de uma crise bancária, em
1995. Nessas condições, evidenciou-se a fragilidade tanto dos vários bancos
que haviam entrado no mercado, a partir da reforma financeira de 1988, apenas
com o intuito de servirem de balcão de aplicações, como daqueles que não
conseguiram se ajustar ao fim da inflação e, conseqüentemente, à perda dos
ganhos de floating. Além disso, a intervenção nos Bancos Nacional e Econômico
provocou a perspectiva da instauração de uma crise bancária.
A partir de 1995, observou-se um cenário de crescente fragilidade
macroeconômica, marcado por um brutal aperto de liquidez, juros altos e recorrentes choques externos — a partir da crise mexicana — e elevado grau de
inadimplência dentro do setor bancário. Diante da forte ameaça de uma crise
bancária em 1995 e 1996, iniciou-se a reestruturação do setor bancário brasileiro, baseada em duas grandes alterações: o aumento da concentração bancária
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580
Patrícia F. F. Arienti
e a internacionalização do setor, ambas interligadas. Além disso, paralelamente
ao processo de reestruturação, o sistema bancário brasileiro buscou ajustar seu
funcionamento aos condicionamentos impostos pela adesão do Acordo da Basiléia, ocorrida em 1994.
O objetivo deste artigo é avaliar os resultados da reestruturação do sistema bancário brasileiro ao longo da década de 90 do século XX e a sua consolidação no período de 2000 a 2003, considerando a dupla dimensão dos bancos
numa economia capitalista: por um lado, o desempenho do setor como reflexo
da procura de novas fontes de lucro por parte dos bancos individuais; por outro,
o impacto da reestruturação do sistema bancário do País, após a entrada de
instituições estrangeiras e após o aumento do seu grau de concentração, no
desempenho do papel indispensável do sistema bancário para o dinamismo da
economia capitalista, ou seja, no fornecimento de crédito aos outros agentes
econômicos. Assim, ao longo da segunda seção, buscar-se-á avaliar o processo dessa reestruturação do setor bancário brasileiro. Na terceira seção, a rentabilidade e a oferta de crédito serão analisadas, considerando apenas os bancos
privados. Finalmente, conclui-se o artigo afirmando que, embora o setor bancário brasileiro se tenha fortalecido e consolidado a partir da reestruturação
implementada, não ocorreram alterações significativas no que diz respeito à
oferta de crédito para o setor produtivo, uma vez que o setor optou por um tipo
de estratégia que privilegia a liquidez dos títulos de dívida pública em detrimento do crédito.
2 A crise e a reestruturação do sistema
bancário: concentração bancária e
internacionalização do setor
2.1 A concentração bancária
A fim de evitar uma crise de insolvência e de possibilitar o processo de
reestruturação do sistema bancário, as autoridades governamentais
implementaram, dentre outras medidas prudenciais, o Programa de Estímulo à
Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (Proer), em 1995, e
o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade
Bancária (Proes), além do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), em agosto de
1996.
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
581
O Proer foi instituído como um mecanismo de financiamento, para que
instituições saudáveis pudessem absorver bancos em dificuldades. Através dele,
os passivos e ativos recuperáveis das instituições insolventes foram transferidos para outras instituições, enquanto os débitos irrecuperáveis foram absorvidos pelo Banco Central. Além disso, o Banco Central também financiou a absorção, pelos bancos adquirentes, da parcela recuperável da carteira da instituição
insolvente (Freitas, 1998). Dessa forma, através dos referidos programas, o
Estado arcou não apenas com o ônus do ajuste, mas também com o próprio
movimento de encerramento de bancos que não conseguiram se ajustar ao
novo contexto macroeconômico e à perda dos ganhos inflacionários.
Nos anos seguintes à implementação do Proer, ocorreu uma significativa
redução do número de instituições financeiras, através de processos de transferência de controle, incorporações, cancelamentos e liquidações, financiados,
em grande medida, por ele próprio. Segundo Salviano Jr. (2004, p. 69-70),
[...] exemplos mais significativos desse movimento de consolidação dentro
do sistema financeiro foram as aquisições do Banco Econômico pelo Excel
(1995 — vendido em 1998 ao Banco BilbaoVizcaya), do Banco Nacional
pelo Unibanco (1995), do Bamerindus pelo HSBC (1997), do Banco de
Crédito Nacional (BCN) pelo Bradesco (1998) e, mais recentemente, do
Banco Real pelo ABN Amro (1999).
O Proer destinava-se apenas aos bancos privados. Os bancos estaduais,
no entanto, devido à menor flexibilidade para a redução dos custos e à existência de carteiras de operações de crédito em situação muito fragilizada, foram
ainda mais duramente atingidos pela perda dos ganhos de floating. Segundo
Salviano Jr. (2004), os mais afetados foram aqueles responsáveis pelos maiores fundos de liquidez das dívidas estaduais.
Assim, em agosto de 1996, através da Medida Provisória n° 1.514, foi
instituído o Proes, com a finalidade de sanear o sistema financeiro público estadual. Segundo Salviano Jr. (2004, p. 81), a proposta fundamental do Programa é
“[...] reduzir ao mínimo a presença das instituições financeiras controladas por
governos estaduais no sistema financeiro”.
Pacotes que incluíam 100% dos recursos necessários ao saneamento dos
bancos estaduais foram oferecidos aos estados. Em contrapartida, caberia ao
estado receptor desses recursos comprometer-se a adotar uma das seguintes
estratégias para com seus bancos estaduais: (a) liquidação; (b) privatização; (c)
transferência do seu controle para o Governo Federal, a fim de futura privatização;
ou (d) transformação do banco numa agência de desenvolvimento. Naqueles
casos em que houvesse apenas o saneamento, sem a transferência de controle
acionário ou a transformação em agências de fomento, a ajuda do Governo
Federal limitar-se-ia a apenas 50% dos recursos necessários. Caberia aos governos estaduais assumirem o restante.
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Patrícia F. F. Arienti
O resultado foi que o processo de saneamento se deu mediante uma combinação entre as várias alternativas: as privatizações representaram a principal
estratégia, ocorreram algumas liquidações, e, em alguns casos, como o do
Banrisul, o banco permaneceu com seus controladores mesmo após o saneamento (Salviano Jr., 2004). De acordo com Paula e Marques (2005, p. 13),
Dos 35 bancos estaduais existentes em 1996, 10 foram extintos, 6
privatizados pelos governos estaduais, 7 federalizados para posterior
privatização, 5 reestruturados com recursos do Proes e apenas 3 não
participaram do programa, conforme dados de julho de 1998.
O objetivo desse programa não foi apenas reduzir a participação do Estado na atividade bancária, mas também resolver o problema do déficit público.
De fato, de acordo com Puga (1999), o relacionamento entre bancos estaduais,
Governo Estadual e Governo Federal era marcado pela seguinte prática: como
havia poucas restrições ao volume de financiamentos que os governos estaduais podiam obter de seus bancos, o abuso no endividamento implicava que
os fluxos de caixa dos estados se tornavam insuficientes para atender aos
serviços da dívida, gerando problemas de liquidez para os seus bancos. Pressões políticas exercidas pelos governadores levavam o Banco Central a socorrer essas instituições, seja através do redesconto ou de um empréstimo de
liquidez, seja mediante a injeção de liquidez no mercado. Essa prática terminava dificultando a condução da política monetária.2
A partir da implementação do Proes e do Proer, começou a se delinear a
primeira das transformações que iriam alterar a configuração do sistema bancário nacional: o crescimento da concentração do setor. Conforme mostra a Tabela
1, entre 1996 e 2003, 67 bancos foram eliminados como resultado desse processo.
A partir dos dados da Tabela 1, pode-se perceber que a concentração do
setor bancário reflete dois movimentos distintos. Primeiramente, ocorreu uma
profunda alteração na composição da propriedade dos bancos, no Brasil, com o
aumento da participação dos bancos estrangeiros (como será visto na seção
seguinte) e com uma significante redução da participação dos bancos nacionais
e dos bancos públicos.
Em segundo lugar, o processo de concentração ocorrido no País vai além
da mudança de propriedade dos bancos, uma vez que o aumento da participação dos bancos privados no setor tem acontecido paralelamente à redução da
participação dos bancos públicos, como pode ser visto na Tabela 1.
Conforme Corrêa e Almeida Filho (2001), a concentração bancária não é,
em si, uma novidade no País. A grande novidade na década de 90 está no fato
2
Ressalta-se, no entanto, que o Proes se destinava apenas aos bancos estaduais.
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
de que ela vem se realizando a partir de uma mudança de propriedade dos
bancos, com maior participação dos bancos estrangeiros em detrimento da participação dos bancos estaduais. Pode-se, portanto, constatar que o aumento da
participação do setor privado e, principalmente, de bancos estrangeiros, paralelamente à redução da participação dos bancos públicos, é, de fato, uma mudança estrutural na configuração do sistema bancário operante no Brasil.
Tabela 1
Número de instituições financeiras no Brasil — 1996-03
TIPOS DE
INSTITUIÇÃO
Bancos privados
nacionais ..............
Bancos com controle estrangeiro ...
Bancos com participação estrangeira .........................
Bancos públicos
nacionais e Caixa
Econômia Federal
TOTAL .................
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
130
119
105
96
93
82
75
78
40
45
58
67
69
70
65
62
29
26
17
12
13
14
11
10
32
231
27
217
23
203
19
194
17
192
16
182
16
167
14
164
FONTE: Bacen/Cosif.
2.2 A internacionalização do setor bancário
Além do movimento de crescimento da concentração bancária, a outra
grande transformação ocorrida no desenho do sistema bancário nacional foi a
crescente desnacionalização do setor, através da entrada dos bancos estrangeiros. Deve-se ressaltar, no entanto, que a concentração e a internacionalização
do sistema bancário estão intimamente interligadas, uma vez que o próprio
movimento de fusões e aquisições de bancos nacionais pelos bancos estrangeiros implica um aumento do grau de concentração bancária.3
3
Ressalta-se, no entanto, que a internacionalização do sistema bancário brasileiro, quando se
toma a participação dos estrangeiros no total de ativos, pode ser considerada tímida frente
ao resto da América Latina, do Leste Europeu e mesmo de alguns países asiáticos.
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Patrícia F. F. Arienti
Em agosto de 1995, num contexto de fragilidade crescente do sistema
bancário nacional (através da Exposição de Motivos n° 311, encaminhada pelo
Ministro da Fazenda ao Presidente da República e aprovada por este), o Governo brasileiro determinou serem do interesse nacional tanto a entrada como o
aumento da participação de instituições estrangeiras no sistema financeiro nacional.4
Vasconcelos, Fucidji e Strachman (2002) ressaltam que um dos principais
argumentos a favor do ingresso de bancos estrangeiros no Brasil é o de que
eles possuem elevada experiência e técnica em operações de crédito adquiridas em seus países de origem. Dessa forma, a abertura aos bancos estrangeiros poderia contribuir para o aumento do fornecimento do crédito.
Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 64):
A expectativa de muitos analistas, inclusive a do governo, era que os
bancos estrangeiros viriam para o Brasil com o objetivo de explorar o
segmento de crédito, oferecendo, para isso, taxas de juros e prazos mais
atraentes que os dos bancos nacionais. As armas que utilizariam para
tanto seriam a maior expertise na concessão de crédito e os menores
custos operacionais.
Entre os defensores da abertura do sistema financeiro às instituições estrangeiras havia a expectativa de que, com a entrada desses bancos, aumentaria a qualidade dos serviços e a concorrência. Uma vez que as instituições
estrangeiras trazem consigo tecnologias de gerenciamento de recursos e inovações de produtos e serviços ao mercado brasileiro, um melhor serviço a um
menor preço e com maior eficiência seria oferecido. Devido à concorrência, o
setor bancário como um todo passaria a buscar maior eficiência operacional, o
que ajudaria a reduzir os elevados custos bancários no Brasil, barateando a
oferta de crédito. Havia implícita a hipótese do mainstream econômico de que a
eficiência microeconômica levaria, automaticamente, à eficiência macroeconômica (Carvalho; Studart; Alves Jr., 2002).
Conforme já visto na Tabela 1, no período entre 1996 e 2001, a participação
dos bancos estrangeiros no País aumentou consideravelmente. A partir de
2002, no entanto, observa-se um movimento de redução da participação desses
bancos. Com relação a essa reversão, Paula e Marques (2005, p. 15) ressaltam
que
[...] recentemente, a turbulência do mercado financeiro na América Latina
e a aversão global ao risco em 2002 provocaram uma retração na expansão
dos bancos estrangeiros, no continente e no Brasil. No caso brasileiro, a
4
Para um relato da legislação referente à entrada de bancos estrangeiros no País desde a
Constituição de 1946, ver Freitas (1998).
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
tentativa de venda do Sudameris do Brasil (Grupo Intesa) ao Banco Itaú,
posteriormente vendido ao ABN Armo, e a venda do BBV Banco para o
Bradesco, no início de 2003, são sinais claros de que alguns bancos
estrangeiros que não conseguiram criar escala suficiente para competir
no varejo decidiram vender seus ativos no Brasil.
Ainda com relação à Tabela 1, deve-se destacar que, embora os bancos
estrangeiros tenham aumentado sua participação no sistema bancário brasileiro
ao longo do período, os grandes bancos nacionais (principalmente Bradesco,
Itaú e Unibanco) também participaram ativamente do processo de fusões e
aquisições bancárias, “[...] através de aquisições de bancos estaduais em leilões de privatização e de bancos domésticos estrangeiros de porte médio”
(Paula; Marques, 2005, p. 16), mantendo, dessa forma, uma participação importante no setor.
A Tabela 2 permite uma avaliação do grau da ampliação da participação
das instituições estrangeiras no sistema bancário nacional.
Tabela 2
Participação percentual dos bancos estrangeiros no
sistema bancário brasileiro — 1994-03
ANOS
PATRIMÔNIO
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
9,57
13,08
10,29
14,29
21,86
25,46
28,31
30,72
32,89
28,06
DEPÓSITOS
4,58
5,4
4,36
7,54
15,14
16,80
21,14
20,14
19,82
17,56
ATIVOS
7,16
8,39
9,79
12,82
18,38
23,19
27,41
29,86
27,38
20,73
FONTE: Bacen/Cosif.
O acentuado aumento da participação estrangeira no patrimônio líquido do
setor explica-se pelas aquisições de importantes instituições nacionais a partir
de 1997. A partir de 2002, a venda de bancos estrangeiros explica a redução. A
participação estrangeira nos depósitos do sistema bancário nacional também
foi crescente ao longo do período, com exceção do ano de 1996. Finalmente, no
que diz respeito ao ativo total do setor bancário nacional, a participação do setor
estrangeiro aumentou de 7,16% em 1994 para 29,86% em 2001. A reversão dos
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586
Patrícia F. F. Arienti
dados a partir de 2002 representa a contrapartida da “[...] vigorosa reação do
setor privado nacional à investida das instituições estrangeiras no mercado brasileiro” (Paula; Marques, 2005, p. 20).
2.3 A adesão ao Acordo da Basiléia5
Um outro fator que passou a interferir diretamente nas operações dos bancos foi a adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia, em agosto de 1994, no mesmo
momento em que a economia se estabilizava. Buscava-se adotar medidas
prudenciais mais restritivas ao setor bancário, de forma a garantir-lhe maior
solidez .
O Comitê da Basiléia foi criado, em 1975, pelo Bank for International
Settlements (BIS), com o objetivo de harmonizar os princípios de supervisão
bancária em todos os países. O Acordo da Basiléia foi discutido e aprovado em
julho de 1988 pelos representantes dos bancos centrais do grupo dos países
denominado G10. O objetivo do Acordo é fixar um padrão comum na forma de
determinação do capital dos bancos, visando reduzir as diferenças entre as
normas aplicáveis às instituições financeiras dos diversos países. Para tal, o
Acordo padronizou o conceito de capital e estabeleceu os requerimentos mínimos para a capitalização dos bancos. Para padronizar o conceito de capital, o
Acordo instituiu o que pode ser considerado como componente do capital, sendo a soma desses componentes denominada Patrimônio Líquido Ajustado (PLA).
Para determinar os requerimentos de capital dos bancos, o Acordo criou uma
nova sistemática de cálculo do capital, onde são considerados vários ativos
dos bancos e os seus riscos de perda. A partir dessa sistemática de cálculo,
estima-se, então, o capital que o banco deve ter, ou seja, o seu Patrimônio
Líquido Exigível (PLE). Segundo Soares (2001, p. 27),
[...] nessa nova sistemática, o montante de capital de um banco é
determinado em função de dois conceitos. O primeiro refere-se à razão
capital-ativo — corresponde ao inverso da alavancagem [...] e mostra a
relação entre capital e ativo que o banco deve manter [...]. O segundo
conceito refere-se ao risco diferenciado das operações ativas. Assim, um
banco que assume grandes riscos na sua carteira de empréstimos, por
exemplo, deve ter mais capital do que se fosse mais conservador na sua
política de empréstimos.
A adesão ao Acordo implica o compromisso, por parte da autoridade monetária do país, de exigir dos bancos nacionais um nível de capital compatível
5
Esta seção está baseada principalmente em Soares (2001).
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com o volume de suas operações ativas, ou seja, que o Patrimônio Líquido
Ajustado dos bancos seja igual ou superior ao Patrimônio Líquido Exigível. Assim, segundo Soares (2001, p. 28),
[...] para tanto, o Banco Central do país deve estabelecer quais contas do
balancete patrimonial os bancos podem considerar como componente do
capital ou seja, do PLA, e, além disso, deve fixar a alavancagem do sistema
financeiro e estabelecer o risco — ponderação — dos vários ativos
bancários, o que permite calcular o PLE.
O Brasil só aderiu ao acordo em agosto de 1994, com a Resolução n°
2.099 do Banco Central. Através dessa resolução, estabeleceu-se a nova sistemática de cálculo do Patrimônio Líquido Exigível dos bancos em função do
risco dos ativos, conforme recomendado pelo Acordo da Basiléia, embora o
procedimento para o cálculo do Patrimônio Líquido Ajustado só viesse a ser
estabelecido em agosto de 1998, com a Resolução n° 2.543.
Segundo Soares (2001, p. 30-31), a
Resolução n. 2099 estabelece que as instituições financeiras que operam
no Brasil devem calcular o capital exigível (PLE), considerando a razão
capital-ativo igual a 0,08 (alavancagem de 12,5) e quatro classificações de
risco dos ativos, com ponderação de 0%, 20%, 50% e 100%, a saber:
1) risco nulo (fator de ponderação 0%) — atribuído aos ativos como
recursos em caixa, reservas junto à autoridade monetária, títulos públicos
federais e reservas em moeda estrangeira depositadas no BC;
2) risco reduzido (fator de ponderação 20%) — atribuído aos depósitos
bancários de livre movimentação mantidos em bancos, aplicações em
ouro, disponibilidades em moeda estrangeira e créditos tributários;
3) risco reduzido (fator de ponderação 50%) — atribuído aos títulos
estaduais e municipais, financiamentos habitacionais e aplicações no
interbancário;
4) risco normal (fator de ponderação de 100%) — atribuído às operações
de empréstimos e financiamento, aplicações em ações, debêntures,
obrigações da Eletrobrás, Títulos da Dívida Agrária (TDA), operações
vinculadas a bolsas de valores, de mercadorias e futuros.
Na prática, o que passou a ocorrer é que, para cada R$ 100,00 que os
bancos estejam dispostos a aplicar em créditos, eles precisam ter R$ 8,00 de
capital. Contudo, para uma aplicação de R$ 100,00 em títulos do Governo Federal, não é necessário nenhum comprometimento do seu patrimônio. “Ou seja, a
limitação de os bancos comprarem títulos do Governo Federal passa a ser a
sua capacidade de captar recursos a um custo inferior ao rendimento desses
títulos.” (Soares, 2001, p. 31).
Ao longo dos últimos anos, ocorreram várias alterações na Resolução n°
2.099 por parte do Banco Central, todas com o objetivo de aumentar ainda mais
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
588
Patrícia F. F. Arienti
a segurança do sistema bancário nacional. “De modo geral, são alterações do
índice de alavancagem e do nível de riscos dos ativos” (Soares, 2001, p. 31).
Observa-se, contudo, que, a cada alteração da Resolução n° 2.099, o limite do
banco para aplicar em crédito foi diminuído. Além disso, mesmo os bancos com
folga para concederem crédito podem não o fazer, com receio de que uma próxima alteração nessa resolução os leve a aumentar o capital e/ou a reduzir o
volume de crédito.
A Resolução n° 2.099 também introduziu novas restrições, que acabaram
por favorecer os grandes bancos, como o aumento do nível absoluto de reserva
de capital mínimo para operar uma instituição financeira, além da imposição de
um período extremamente curto para que os bancos pequenos se adaptassem
a ela. Segundo Troster (2004), o capital mínimo absoluto necessário para a
abertura de uma instituição financeira teve seus valores dobrados com a Resolução n° 2.099. De acordo com Troster (2004, p. 71-72),
[...] nenhum banco comercial pode operar com um nível de capital inferior
a R$ 7 milhões. Este é aplicável unicamente às atividades bancárias que
constituem padrões dos bancos comerciais. Para outros tipos de atividades,
como os empréstimos imobiliários, operações de investimento bancário,
etc., é necessário um capital adicional. Se um banco pretende operar em
dois setores, ele deve ter um capital mínimo maior do que se pretendesse
operar em apenas um, independentemente de suas operações correntes.
A adesão ao Acordo da Basiléia interferiu tanto na estrutura de mercado do
setor como na operacionalidade dos bancos. No que diz respeito à estrutura de
mercado, a exigência do Governo brasileiro de capital mínimo, ponderado pelo
risco das operações ativas do banco em níveis elevados, dificultou a sobrevivência de algumas instituições de pequeno e/ou de médio porte que atuavam
normalmente com alavancagem maior do que das grandes instituições (Paula;
Marques, 2005).
Além disso, o aumento do capital inicial para a autorização de funcionamento dos bancos foi “[...] importante para a intensificação das F&A, pois, na
impossibilidade de novos aportes dos controladores, restaria a solução da venda do banco, da admissão de novos sócios ou da redução das operações ativas”
(Rocha, 2001, p. 11, apud Paula; Marques, 2005, p. 18).
A busca de solidez do setor bancário muitas vezes entra em conflito com
o estímulo à competitividade do mercado bancário. No caso brasileiro, ao privilegiar a solidez do sistema, deu-se pouca atenção aos princípios de defesa da
concorrência (Paula; Marques, 2005), de tal forma que a regulamentação
prudencial terminou por estimular o aumento da concentração bancária no período. De fato, segundo Belaisch (2003, p. 6), não apenas o número de bancos
tem sido gradualmente reduzido desde 1996, como cerca de dois terços dos
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
589
seus ativos estão concentrados em 10 instituições, as quais mantêm cerca de
70% dos depósitos e fornecem 75% dos empréstimos.
Segundo Belaisch (2003), essa concentração do sistema bancário brasileiro sugere a existência de uma estrutura de mercado não competitiva, fazendo
com que os bancos se comportem como monopólios ou oligopólios e levando a
uma situação na qual o diferencial entre juros pagos pelos bancos sobre os
depósitos e os juros recebidos pelos empréstimos seja alto, desencorajando
maiores depósitos e volume de empréstimos.
No que diz respeito à operacionalidade dos bancos, a principal alteração
ocorrida a partir da adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia foi a realocação dos
recursos das aplicações bancárias, os quais passaram a privilegiar os ativos de
pequena ponderação de risco em detrimento dos de elevada ponderação. Segundo Soares (2001), antes da adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia (em
1994), a proporção crédito/ativo total era praticamente estável. Após a adesão,
contudo, a relação apresentou tendência à diminuição. Ou seja, após 1994, houve crescimento dos bancos, mas os créditos tiveram uma importância menor
nesse crescimento. Por outro lado, o acréscimo dos seus ativos deve-se basicamente ao aumento da carteira de títulos públicos federais. De fato,
[...] os bancos, desde a crise bancária de 1995, vêm realizando um ajuste
profundo na sua estrutura patrimonial, expresso tanto na diminuição da
alavancagem de suas operações ativas, em particular do crédito, como na
elevação da participação relativa de títulos públicos na composição do
ativo bancário (Alves apud Soares, 2001, p. 36).
3 Análise dos efeitos da reestruturação do
sistema bancário brasileiro
A avaliação dos efeitos da reestruturação do setor bancário brasileiro requer que se leve em consideração a dupla dimensão das instituições bancárias
em uma economia capitalista. Por um lado, os bancos são agentes econômicos
submetidos à lógica da valorização da riqueza num mundo incerto e no qual
decisões são irreversíveis (Freitas, 1997). Os bancos compartilham da mesma
lógica de concorrência capitalista de qualquer outro agente econômico e, portanto, possuem preferência pela liquidez e expectativas relativas ao futuro
norteando suas estratégias de valorização. Por outro lado, a atividade bancária é
indispensável ao dinamismo do capitalismo, não apenas porque os bancos “[...]
ocupam um lugar central no processo de criação monetária, na economia capitalista moderna, em que a moeda de crédito é o principal meio de liquidação dos
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
590
Patrícia F. F. Arienti
contratos econômicos” (Freitas, 1997, p. 62), mas também porque o finance
necessário para o investimento é decorrente da atividade bancária.
Assim, uma avaliação da performance do sistema bancário brasileiro após
ter passado por um processo de reestruturação necessita considerar sua dupla
dimensão: por um lado, o desempenho do setor como reflexo da procura de
novas fontes de lucro por parte dos bancos individuais; por outro, o impacto da
reestruturação do sistema bancário do País sobre o desempenho do seu papel
indispensável para o dinamismo da economia capitalista, ou seja, no fornecimento de crédito aos outros agentes econômicos.
3.1 Avaliação da performance do setor bancário
após a reestruturação
3.1.1 Critérios de eficiência
Os bancos brasileiros têm aumentado sua lucratividade nos últimos anos.
Em estudo recente, Belaisch (2003) afirma que os retornos sobre os ativos
(ROA ou a taxa de lucro antes dos impostos e/ou ativos) e sobre as ações (ROE
ou taxa de lucros antes dos impostos e/ou ações) dos bancos comerciais no
País vêm aumentando.
O grau de rentabilidade, calculado pela proporção do lucro líquido sobre o
patrimônio líquido, mede a capacidade que a instituição tem de, administrando
seus ativos e passivos, gerar renda para os seus acionistas, ou seja, a taxa de
retorno para os proprietários de seu capital. Os resultados estão indicados na
Tabela 3.
Tabela 3
Percentual de rentabilidade de bancos selecionados — 1994-03
DISCRIMINAÇÃO 1994
1995
1996 1997
1998
1999
2000
2001
2002 2003
Rentabilidade ....... 14,36
11,87
12,32
16,26
23,0
19,2
19,2
27,0
8,54
14,7
FONTE DOS DADOS BRUTOS: PAULA, Luiz Fernando Rodrigues de; ALVES JÚNIOR,
Antônio José; MARQUES, Maria Beatriz Leme. Ajuste
patrimonial e padrão de rentabilidade dos bancos privados
no Brasil durante o Plano Real. Estudos Econômicos,
São Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-319, abr./jun., 2001.
Bacen/Cosif.
NOTA: Os bancos selecionados até 1999 são América do Sul, Bandeirantes, BCN, Boavista,
Bradesco, HSBC, Bamerindus, Itaú, Mercantil de São Paulo, Noroeste e Unibanco; a partir de
2000, Bradesco, Unibanco, Itaú, Safra, HSBC, Bank Boston, Citibank e ABN AMRO.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
591
Os dados apresentados na Tabela 3 mostram que os principais bancos
privados operando no País, nacionais e estrangeiros, apresentaram uma alta
taxa de rentabilidade patrimonial, acima de 11% no período entre 1994 e 1999,
com exceção do ano de 1997. Para o período de 2000 a 2003, a rentabilidade
foi, em média, de 20%. Sem dúvida, os bancos vêm apresentando um desempenho cada vez mais satisfatório, desde o início da reestruturação do setor.
3.1.2 O sistema bancário brasileiro e a oferta de crédito
A expectativa do Governo e dos defensores da abertura financeira era de
que a estabilidade da moeda, a internacionalização e a reestruturação bancária,
facilitada pelos recursos do Proer, promoveriam o ajustamento dos bancos, de
modo que estes acabariam não apenas por expandir suas operações de crédito
(como forma de compensar a perda das receitas decorrentes dos ganhos inflacionários), como também ocorreria uma redução nos spreads bancários.
A ampliação da presença estrangeira no sistema bancário brasileiro e as
modificações geradas por ela no âmbito do mercado bancário nacional não tiveram, contudo, o impacto esperado pelos seus defensores em termos de aumento da oferta de crédito e redução dos custos do crédito. Observa-se que, no que
diz respeito à relação entre crédito bancário e PIB, no período 1993-00, houve
uma queda na participação do crédito bancário em relação ao Produto Interno
Bruto brasileiro, a qual estava no patamar de 29,2% em 1993 e caiu para 26,9,7%
em 2000, mesmo após a entrada dos bancos estrangeiros no sistema financeiro
doméstico (Soares, 2001). Em dezembro de 2004, essa relação foi de 27%
(Bacen, 2005). Além disso, Belaisch (2003, p. 4) observa que o sistema bancário brasileiro tem uma relação ativo/PIB semelhante à dos EUA, mas oferece
apenas metade do crédito em proporção ao PIB.
Conforme já exposto anteriormente, no início do Plano Real houve um
forte crescimento nas operações de crédito, apesar da política restritiva adotada
pelas autoridades monetárias.6 A partir de 1996, devido à ameaça de uma crise
bancária em 1995, à instabilidade do nível de atividade econômica e ao aumento do nível de inadimplência, começou a desaceleração nas operações de crédito, que se intensificou no período 1997-98; já a partir de 1999, ocorreu uma
reversão nessa tendência.
6
Ressalta-se, no entanto, que a elevação das operações de crédito já vinha ocorrendo antes
mesmo do Plano Real. De janeiro de 1989 a junho de 1994, os bancos privados haviam
ampliado sua participação no mercado de crédito, respectivamente, de 10% para 42%
(Soares, 2001, p. 17).
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
592
Patrícia F. F. Arienti
A Tabela 4 mostra a evolução do crédito no País e permite algumas conclusões no que diz respeito ao papel dos bancos privados, nacionais e estrangeiros, na oferta de crédito.
De acordo com a Tabela 4, percebe-se que, de fato, os bancos estrangeiros
aumentaram sua oferta de crédito, que passou de 11,71% em 1997 para 31,51%
em 2001. No entanto, constata-se que, até 2002, mesmo após a redução do
número de bancos nacionais (devido às fusões e incorporações) e o aumento
dos bancos estrangeiros, os bancos nacionais ainda eram os principais responsáveis pela oferta de crédito por parte dos bancos privados, sendo que, até
2000, os bancos públicos ainda eram os principais ofertantes de crédito. Os
dados de 2003 refletem o movimento de redução da participação dos bancos
estrangeiros no sistema bancário brasileiro e o aumento da participação dos
bancos nacionais (já visto anteriormente).
Tabela 4
Participação percentual das instituições bancárias nas operações
de crédito desse segmento — dez. 1997-03
BANCOS
Bancos públicos e caixas econômicas ...........
Bancos privados nacionais ...............................
Bancos com controle
estrangeiro ...................
Cooperativas de crédito ..................................
TOTAL ..........................
DEZ/97
DEZ/98 DEZ/99 DEZ/00 DEZ/01 DEZ/02
DEZ/03
52,2
53,22
47,45
39,07
24,75
28,56
32,75
35,35
30,97
31,66
34,53
42,13
39,73
41,31
11,71
14,88
19,75
25,16
31,51
29,94
23,82
0,74
100,00
0,93
100,00
1,14
100,00
1,24
100,00
1,61
100,00
1,77
100,00
2,14
100,00
FONTE: Bacen/Cosif.
Considerando que, mesmo no período de queda dos empréstimos (a partir
de 1996), a rentabilidade do setor bancário permaneceu elevada (como pode ser
visto na Tabela 3), percebe-se que o setor bancário brasileiro foi capaz de buscar formas alternativas de rentabilidade num novo contexto econômico, marcado não apenas por uma conjuntura de instabilidade macroeconômica (especialmente a partir da crise asiática, em 1998), mas também, e principalmente, por
um ambiente econômico, dentro do próprio setor bancário, distinto daquele do
início do Plano Real.
Na verdade, o setor bancário brasileiro “[...] manteve o seu comportamento histórico, através do qual, em momentos de aumento do risco dos empréstimos, substitui a oferta de crédito por aplicações em outros instrumentos capa-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
593
zes de continuar garantindo uma alta rentabilidade” (Corrêa; Almeida Filho, 2001,
p. 16). Assim, parece muito significativo o fato de que o aumento dos títulos
públicos em carteira no ativo dos grandes bancos múltiplos privados tenha crescido. Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 65), para os bancos estrangeiros, no “[...] biênio 1994/1995, a participação dos títulos e valores se situa
acima dos 23% do total do ativo. Com a queda dos juros ao longo dos anos 1996
e 1997, a participação dos títulos e valores chega a 12%. Daí em diante, essa
rubrica atinge a casa dos 28,9% em 2000”. Os bancos privados nacionais tiveram um comportamento muito semelhante, “[...] excetuando-se aí o fato de
suas aplicações em títulos terem chegado, no fim de 1994, a 12% dos ativos:
reflexo da remonetização de parte da dívida pública e do aumento dos empréstimos durante o primeiro semestre do Plano Real. A partir de 1995, a tendência
inverteu-se” (Carvalho; Studart; Alves Jr., 2002, p. 65).
No entanto, a expansão das aplicações em títulos tiveram como
contrapartida uma redução no crescimento da oferta de crédito. Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 65),
[...] os bancos estrangeiros mantiveram a participação das operações de
crédito flutuando em um intervalo, cujo mínimo se situou em dezembro de
1994 (23%), e o máximo, em dezembro de 2000 (25%). Já os bancos
privados nacionais, depois de experimentarem um aumento significativo
na participação das operações de crédito sobre o ativo, que atingiu a
marca de 38% em dezembro de 1994, reduziram-na regularmente, como
que compensando o aumento dos títulos em carteira, chegando até 26%
do ativo em 1999, para subir a 27,3% em 2000.
Além disso, chama atenção o fato de que a postura dos bancos estrangeiros em nada se diferenciou da dos bancos nacionais. De fato, esses dados
refletem a adoção de uma posição mais conservadora por parte dos bancos
estrangeiros, a partir dos momentos de crise e incerteza, semelhante ao comportamento dos bancos privados nacionais. A lógica dos bancos privados em
momentos de instabilidade, sejam os bancos nacionais, sejam os estrangeiros,
é a de expressar uma maior preferência pela liquidez. Além disso, deve-se ressaltar que a adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia também impeliu o setor
bancário a aplicar em títulos públicos federais e, ao mesmo tempo, desestimulou
as operações de crédito.
Observa-se, no entanto, que, se, por um lado, esse tipo de comportamento
é característico da própria dinâmica bancária em período de instabilidade, por
outro, para que os bancos sejam capazes de manter, ao mesmo tempo, rentabilidade e preferência pela liquidez, é necessário que exista a disponibilidade de
instrumentos adequados a esse tipo de estratégia.
De fato, a adoção por parte dos bancos desse tipo de estratégia conservadora, baseada na redução da oferta de crédito e no aumento das operações com
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Patrícia F. F. Arienti
títulos públicos, só se viabilizou devido à política econômica executada pelo
Governo. Por um lado, não se pode negar que, passado o período inicial da
implementação do Plano Real, as autoridades monetárias atuaram no sentido
de tentar reverter essa tendência do setor bancário de encarecimento e redução
da oferta de crédito. Assim, a redução da oferta de crédito em favor do aumento
das operações com títulos públicos ocorreu, apesar de o Banco Central ter
implementado um conjunto de medidas objetivando a redução das margens cobradas do tomador final e da busca da queda dos juros básicos da economia.7
Por outro lado, a própria condução da política econômica estimulou o setor
bancário a aumentar suas operações com títulos públicos. Diante da necessidade de captação de recursos externos e do fracasso em controlar o déficit público, o Governo viu-se obrigado a manter taxas de juros reais elevadas durante
todo o período. A política de juros elevada levou ao crescimento acelerado das
despesas com serviços da dívida, enquanto a entrada de recursos do exterior
obrigou as autoridades monetárias a adotarem uma política de esterilização,
com o intuito de reduzir pressões inflacionárias. O resultado dessas opções de
política econômica foi o aumento do déficit público e a necessidade de novas
emissões de títulos públicos, sempre com taxas de juros elevadas.
Além disso, a partir de 1997, buscando manter a política cambial vigente,
o Governo passou a ofertar crescentemente títulos públicos com correção cambial. Na medida em que o sistema bancário possuía parte de seu passivo
dolarizado, a oferta de títulos cambiais, na ocasião, efetuou-se justamente com
o intuito de oferecer uma oportunidade de hedge cambial, demandada pelos
investidores externos, bancos e empresas. Paula, Alves Jr. e Marques (2001, p.
313) afirmam que
[...] em dezembro de 1998, os bancos (públicos e privados) teriam cerca
de US$ 65,5 bilhões em títulos cambiais, em suas carteiras, montante que
superava em muito as obrigações externas do sistema bancário, ou seja,
em US$ 5,67 bilhões. [...] Estes dados mostram que os bancos estavam
protegidos ante uma possível desvalorização cambial, e as informações
veiculadas na imprensa mostram que eles tiveram elevados ganhos nos
meses de janeiro e fevereiro de 1999, com a flexibilização da política
cambial efetuada no início do ano e a desvalorização cambial ocorrida a
seguir.
7
A fim de promover a redução dos spreads bancários, em outubro de 1999, reduziu-se o
compulsório sobre os depósitos a prazo e à vista. Segundo o então Presidente do Banco
Central, Armínio Fraga, essas mudanças nas normas levariam à redução dos juros e ao
aumento da oferta de crédito. Posteriormente, outras reduções foram efetuadas. “Um ano
depois de lançar esse pacote de medidas, o Banco Central anunciou nova rodada de mudanças. Reconhecendo, desta forma, que as inúmeras medidas adotadas não tinham surtido o
efeito esperado” (Soares, 2001, p. 5-6).
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
595
Desse modo, o Governo, repetindo o mesmo papel desempenhado nos
anos 70 e no início dos anos 80, assumiu novamente o risco cambial dos agentes privados.
Neste ponto, é interessante ressaltar a suposição exposta anteriormente,
ou seja, a de que os bancos estrangeiros ingressantes no País, ao invés de
adotarem uma postura mais agressiva com relação à concessão do crédito
bancário, terminaram por assumir comportamento semelhante ao dos bancos
privados nacionais e estrangeiros que já operavam no País antes da flexibilização
das condições da entrada dos bancos estrangeiros, a partir de 1995. De fato, os
bancos estrangeiros, assim como os bancos privados nacionais, vêm priorizando
as aplicações em títulos públicos, os quais, devido ao elevado nível da taxa de
juros, vêm possibilitando ao setor bancário brasileiro como um todo expressiva
rentabilidade com baixa assunção de riscos. “Em 2000, os bancos estrangeiros
adquiriram 52% do total de títulos emitidos pelo Tesouro como pelo Banco Central” (Freitas; Prates, 2001, p. 100), o que demonstra que, ao longo do período, os
novos bancos ingressantes no País vêm direcionando suas aplicações em ativos
para títulos públicos, de forma a se tornarem os principais compradores nos
leilões primários. Os bancos são, portanto, agentes dinâmicos, impulsionados
pela lógica concorrencial, sejam eles nacionais, sejam estrangeiros.
No que diz respeito aos spreads bancários, ressalta-se que, embora tenha
ocorrido uma redução substancial no nível de spread bancário brasileiro, estes
permanecem bastante elevados. Os spreads praticados nas operações bancárias podem ser definidos como a diferença entre a taxa de aplicação nas operações de empréstimos e a taxa de captação de recursos pelas instituições financeiras. Oreiro et al. (2006) observam que, embora os spreads bancários tenham
caído vertiginosamente, desde a implementação do Plano Real, ainda permanecem em níveis muito elevados. Em 1994, antes da implementação do Plano
Real, o spread médio dos empréstimos para pessoas físicas e jurídicas praticados no sistema bancário brasileiro era de, aproximadamente, 120%. No início de
1995, devido à adoção, por parte do Banco Central, de uma política monetária
fortemente contracionista no período após a implementação do Plano Real, o
spread médio cobrado pelos bancos brasileiros alcançou um valor máximo de
150%. Em 1996, esses valores foram reduzidos significativamente, “[...] em
função de um relaxamento das medidas de arrocho monetário e uma diminuição
da desconfiança dos agentes em relação ao processo de contágio da crise
mexicana até atingir o patamar de aproximadamente 40% ao ano no início de
2000” (Oreiro et al., 2006, p. 12), permanecendo, a partir de então, nesse nível
elevadíssimo.
Em estudo recente (Oreiro et al., 2006), apontam-se evidências de que um
dos principais determinantes macroeconômicos para o elevado spread bancá-
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
596
Patrícia F. F. Arienti
rio brasileiro seria a elevada volatilidade da taxa de juros no País. A alta volatilidade
da taxa de juros afeta o spread bancário, uma vez que eleva o risco de taxa de
juros enfrentado pelos bancos e aumenta seu grau de aversão ao risco; além
disso, a volatilidade da taxa de juros implica um baixo crescimento da produção
industrial, o que “[...] impacta negativamente tanto no crescimento dos níveis
de inadimplência dos empréstimos, quanto na menor demanda por crédito, diminuindo os ganhos de escala que poderiam ser obtidos nas operações de crédito”
(Oreiro et al., 2006, p. 25).
3.1.3 O impacto da abertura do setor bancário sobre o
sistema bancário nacional
A avaliação da contribuição da entrada dos bancos estrangeiros para a
performance do setor bancário brasileiro como um todo permite que se chegue a
duas conclusões.
Primeiramente, é possível constatar que a mudança no controle patrimonial
dos bancos e o aumento da concentração bancária, de fato, provocaram uma
alteração estrutural no desenho do sistema bancário brasileiro.8 A estabilização
da moeda levou a um profundo ajuste no sistema bancário, na segunda metade
da década de 90. A abertura financeira, a criação do Proer e do Proes e a
adoção de uma regulamentação prudencial foram os pilares desse ajuste, o
qual gerou uma mudança estrutural no sistema bancário nacional, caracterizada
por um forte movimento de concentração e desnacionalização dos bancos.
Uma vez aceito que houve, de fato, alteração estrutural na configuração do
sistema bancário operante no Brasil, pode-se perceber que essa alteração criou
dois movimentos internamente. O primeiro deles diz respeito à resposta dada
pelos bancos nacionais à pressão competitiva gerada pelo ingresso de bancos
estrangeiros. Os grandes bancos nacionais, visando fortalecer suas posições
no mercado, também optaram pela aquisição de outras instituições. Esse foi o
caso, por exemplo, do Bradesco, que adquiriu o Banco de Crédito Nacional (BCN)9;
do Unibanco, que comprou o Banco Nacional e o Banco Diben; e do Banco Itaú,
que adquiriu o Banerj e o Bemge através dos leilões de privatização. Além disso,
o Itaú associou-se ao Bankers Trust.
Freitas e Prates (2001, p. 99) ressaltam que
[...] durante os sete anos do Plano Real, os três maiores bancos privados
nacionais consolidaram sua liderança no sistema, mas houve significativas
8
9
Esse ponto é desenvolvido por Corrêa e Almeida Filho (2001).
O BCN passava por dificuldades após ter adquirido o Credireal.
Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007
Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
597
mudanças nas demais posições. Os bancos Bamerindus e Nacional, que
ocupavam lugar de destaque em junho de 1994 (respectivamente, terceiro
e quarto lugares), faliram, e tais posições eram ocupadas, em dezembro
de 2000, pelo Unibanco (comprador do Nacional) e pelo espanhol Santander,
que adotou uma postura agressiva de aquisição de bancos nacionais.
Conclui-se, dessa forma, que alguns dos grandes bancos nacionais foram
capazes de se ajustar à entrada dos bancos estrangeiros, mudando suas estratégias concorrenciais, no intuito de enfrentar positivamente a competição dos
novos entrantes internacionais.
O segundo movimento ocorrido dentro dessa nova configuração do sistema bancário operante no Brasil diz respeito à atuação dos próprios bancos estrangeiros no mercado bancário nacional. Vários autores têm ressaltado em suas
análises que a atuação dos bancos com controle estrangeiro no País não tem
sido diferente daquela empreendida pelos bancos privados nacionais, o que
sugere, portanto, que outros fatores são mais determinantes na explicação do
desempenho desses agentes do que propriamente a nacionalidade do controlador.
A hipótese de vários autores (Corazza, 2000; Carvalho, 2001; Vasconcelos; Fucidji;
Strachman, 2002) é a de que os bancos estrangeiros, em certa medida, se
adaptam ao ambiente e às condições encontradas no País em que se estabelecem. Ou seja, os impactos da entrada de agentes estrangeiros em sistemas
bancários domésticos dependem das condições do setor previamente à entrada. Corrêa e Almeida Filho (2001) e Carvalho (2001) afirmam que os bancos
estrangeiros, ao operarem no mercado bancário nacional, acabaram desenvolvendo a mesma lógica de funcionamento dos bancos privados nacionais. No
caso brasileiro, essa lógica é especulativa, a qual está fundamentada na possibilidade de ganhos alternativos aos da oferta de crédito, principalmente do crédito de longo prazo. Dessa forma, contrariando todo o discurso otimista no que
diz respeito à internacionalização do setor bancário, os bancos de controle estrangeiro operando no País não têm aumentado o volume de crédito a um custo
reduzido; antes, eles têm optado pela aplicação de recursos nos ativos classificados com menor risco, ou seja, os títulos públicos federais, seguindo, dessa
forma, o comportamento dos bancos nacionais.
Do que foi exposto até aqui, pode-se perceber que os bancos atuam
como qualquer firma capitalista, tomando suas decisões de portfólio de acordo
com suas expectativas de rentabilidade e de risco, sua preferência pela liquidez
e tendo como principal objetivo a obtenção de lucro, independentemente da
origem de sua propriedade. Dessa forma, no ambiente de instabilidade
macroeconômica observada no País, desde 1995, com recorrentes choques
externos, as decisões das instituições bancárias privadas têm sido afetadas
por um elevado grau de incerteza. A estratégia dominante da firma bancária tem
sido conciliar rentabilidade, preferência pela liquidez e aversão ao risco, priorizando
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aplicações em títulos públicos federais, que são ativos de menor risco, em
detrimento das operações de crédito para o setor privado, que, embora possam
oferecer um elevado retorno, possuem também maior grau de risco de crédito,
principalmente em um contexto de grande instabilidade macroeconômica. Não
se trata apenas de uma estratégia conservadora, mas também de uma opção
extremamente rentável, que só tem sido possível devido às políticas
macroeconômicas seguidas pelo Governo.
4 Conclusão
A introdução do Plano Real e a conseqüente queda dos índices de inflação
levaram os bancos a se adaptarem ao novo ambiente macroeconômico. O
ajuste inicial por parte do sistema bancário foi feito através do aumento da
oferta de crédito. Contudo, a partir de 1995, com a perspectiva da instauração
de uma crise bancária, iniciou-se a reestruturação do setor bancário brasileiro,
através da internacionalização, do saneamento do setor e da adesão ao Acordo
da Basiléia.
Embora o setor bancário brasileiro se tenha fortalecido e consolidado, não
ocorreram mudanças referentes à oferta de crédito para o setor produtivo, uma
vez que se adotou um tipo de estratégia que privilegia a liquidez dos títulos de
dívida pública em detrimento do crédito.
Tal estratégia é explicada, em parte, pelo fato de os bancos serem agentes
econômicos que buscam seus lucros, que têm aversão ao risco e que trabalham num ambiente marcado pela incerteza, visando, assim, sempre conciliar
risco e lucratividade em suas decisões de portfólio. Logo, dadas as incertezas
geradas pela fragilidade macroeconômica que tomava conta do País a partir da
segunda metade da década de 90, a opção por operações de títulos públicos
indexados ao câmbio parece bastante coerente.
Por outro lado, no que diz respeito ao Governo, a crença num projeto de
desenvolvimento baseado no espontaneísmo do mercado não possibilitou que
ele atuasse criando oportunidades de investimentos de longo prazo. O seu projeto estava baseado na crença de que o mercado bancário, após o fim da inflação, se auto-regularia em direção ao aumento do crédito como resposta à
internacionalização e à reestruturação do setor. Além disso, a ausência de
outras formas de financiamento do setor público levou-o a garantir aos aplicadores
em títulos públicos uma grande rentabilidade e sem riscos, mantendo a lógica
de aplicação especulativa e de curto prazo.
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Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro
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a) livros - POCHMANN, Márcio. O emprego na globalização: a nova internacionalização do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu.
São Paulo: Boitempo, 2001, 151p.
CASTRO, Antônio B. de; SOUZA, Francisco E. P. de. A economia brasileira em marcha forçada. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,
1985, 217p.
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MIRANDA,José
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Rocha. Dinâmica
Dinâmicafinanfinanb) capítulo
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C.; FIORI, J. L. (Org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes,
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c) periódico - CONJUNTURA ECONÔMICA. Rio de Janeiro: FGV, n. 12, dez.
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d) artigo de periódico - BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. O declínio
de Bretton Woods e a emergência dos mercados
d) artigos de periódico - “globalizados”. Economia e Sociedade, Campinas,-n. 4,
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PARTICIPAÇÃO do Brasil nos investimentos diretos
mundiais. Carta da SOBEET, São Paulo, v. 1,
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e) artigo de jornal - SALGUEIRO, Sônia. Autopeças brasileiras conquistam mercado externo. Gazeta Mercantil, São
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PARTICIPAÇÃO de salários no PIB cai para 38%.
Folha de São Paulo, São Paulo, p. 2-5, 12 dez.1997.
f) informação ou texto obtidos pela internet
- livro eletrônico (monografia)
DICIONÁRIO da língua portuguesa. Lisboa: Priberam
Informática, 1988. Disponível em:
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