UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA AS TRINCHEIRAS DO
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA AS TRINCHEIRAS DO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MÔNICA CELESTINO SANTOS AS TRINCHEIRAS DO MAJOR COSME DE FARIAS (1875-1972) A INTERFACE ENTRE ATUAÇÃO NA IMPRENSA E AÇÕES DE CARIDADE EM SALVADOR (BA) NO ALVORECER DA REPÚBLICA SALVADOR 2011 MÔNICA CELESTINO SANTOS AS TRINCHEIRAS DO MAJOR COSME DE FARIAS (1875-1972) A INTERFACE ENTRE ATUAÇÃO NA IMPRENSA E AÇÕES DE CARIDADE EM SALVADOR (BA) NO ALVORECER DA REPÚBLICA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor. Orientador: Prof. Dr. Israel Oliveira Pinheiro SALVADOR 2011 _____________________________________________________________________________ S237 Santos, Mônica Celestino As trincheiras do Major Cosme de Farias (1875-1972): a interface entre atuação na imprensa e ações de caridade em Salvador (BA) no alvorecer da República / Mônica Celestino Santos. – Salvador, 2011. 405 f.: il. Orientador: Prof. Dr. Israel Oliveira Pinheiro Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2011. 1. Jornalismo. 2. Imprensa. 3. Assistência social. 4. Caridade. 5. Cosme de Farias. I. Pinheiro, Israel Oliveira. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título. CDD – 920.1 MÔNICA CELESTINO SANTOS AS TRINCHEIRAS DO MAJOR COSME DE FARIAS (1875-1972) A INTERFACE ENTRE ATUAÇÃO NA IMPRENSA E AÇÕES DE CARIDADE EM SALVADOR (BA) NO ALVORECER DA REPÚBLICA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor. Salvador, ___/___/_____ Banca Examinadora: _______________________________________________________ Prof. Dr. Israel Oliveira Pinheiro (UFBA) - Orientador _______________________________________________________ Prof. Dr. Aldo José Morais Silva (UEFS) - Avaliador _______________________________________________________ Profa. Dra. Ana Cristina Menegotto Spannenberg (UFU) - Avaliadora _______________________________________________________ Profa. Dra. Lina Maria Brandão de Aras (UFBA) - Avaliadora _______________________________________________________ Prof. Dr. Luis Guilherme Pontes Tavares (NEHIB) - Avaliador Para Cosme de Farias (in memoriam) AGRADECIMENTOS Nestas linhas iniciais, expresso meu agradecimento e reconhecimento às pessoas que, à sua maneira e no seu tempo, contribuíram para a concepção e o desenvolvimento desta tese. Portanto, a quem me acolheu, levantou e indicou fontes e bibliografia, permitiu e/ou facilitou acesso a acervos, debateu ideias e métodos, leu os originais e sugeriu encaminhamentos, acompanhou minhas aventuras pelo universo da pesquisa, acreditou no resultado do meu esforço ou, simplesmente, me trouxe um sorriso. Arrisco citá-las uma a uma na tentativa de evidenciar meu sentimento com transparência e por confiar na complacência daqueles eventualmente omitidos. Agradeço e partilho os méritos desta tese com o Prof. Dr. Israel Oliveira Pinheiro, meu orientador desde a realização do mestrado; os colegas e docentes do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA), por alimentarem um espaço frutífero de discussão determinante para meu amadurecimento intelectual [em especial, Antonio Luigi Negro (Gino), Lígia Bellini, Lina Aras e Maria Hilda Baqueiro, pela solicitude e competência demonstradas a todo momento]; os professores doutores Aldo Moraes, Ana Cristina M. Spannenberg e Luis Guilherme Pontes Tavares, pelas contribuições; Soraia Ariane Ferreira, pela atenção e diligência para resolução de questões administrativas; Cínthia Cunha e Sara Maia Gomes, pelo adjutório na pesquisa; Gina Carla Reis, Anne-Marie Lábreque, Adriana Telles e Alberto Fontoura, pela tradução do resumo e revisão. Sou grata, ainda, ao auxílio dos depoentes (em especial, Antônio Pinto e Zilah Moreira, in memoriam) pelas preciosas lembranças; de Anízio Carvalho, pela disponibilização do seu acervo pessoal; dos colaboradores da Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, dos Arquivos Públicos dos Estados da Bahia e do Rio de Janeiro, da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, da Associação Baiana de Imprensa, da Fundação Clemente Mariani, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Arquivo Municipal de Salvador, da Biblioteca Nacional, do Memorial da Câmara Municipal de Salvador, da Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, celeiros de fontes e bibliografia; e dos colegas de trabalho e aos amigos (em especial, Ana Cristina Spannenberg, Antônio Brotas, Lia Seixas, Leila Nogueira, Sílvio Benevides, Tattiana Teixeira, pelo estímulo e companhia; e Elias Machado, por ter despertado em mim o gosto pela pesquisa). Por fim, ressalto minha gratidão a Magali, Marcelo, Michele, Fabiana, pelo apoio e incentivo a toda hora; a Rafael, por iluminar todos os meus dias; e, sobretudo, a minha mãe, Nelia, que apostou no improvável e tem colhido os frutos da sua ousadia, e a meu pai, Luiz Carlos, meu primeiro leitor. RESUMO A presente tese consiste em uma biografia histórica do Major Cosme de Farias (1875-1972), que objetiva contribuir para o entendimento de aspectos da sociedade de Salvador (BA), no arvorecer da República, sobretudo, através de códigos e da vivência desse indivíduo como promotor de caridade e militante na imprensa e da interface entre sua atuação nestes dois campos pelo bem coletivo. Por meio da abordagem de fatos relativos à sua vida e obra como jornalista, trovador, benemérito, rábula, ativista, oficial da Guarda Nacional, vereador da capital baiana e deputado estadual no Estado da Bahia, o estudo trata da tessitura de redes sociais, dos meios de ascensão social de mestiços e pobres, de práticas de assistência social, da mobilização política e social, e das atividades de periódicos na Cidade da Bahia, nas primeiras décadas do período republicano. Resultante da consulta a documentos diversos (entre os quais, processos judiciais e médicos, peças jurídicas e livros de autoria do biografado, gravações de depoimentos em áudio, carta-testamento, cartões), a veículos de comunicação impressa e à historiografia, de entrevistas semi-estruturadas e da aplicação dos métodos da análise do conteúdo (AC) e da análise do discurso (AD), esta tese constata que o Major Cosme conseguiu reunir condições para a mobilidade social na Salvador do seu tempo, mas preferiu manter-se aprisionado aos estratos “de baixo”, e contribuiu para a modernização das práticas sociais e políticas na capital, de modo particular, utilizando-se da imprensa e da caridade e da associação de ambas. O trabalho, também, caracteriza o uso de duas modalidades específicas do jornalismo por ele – denominadas de Jornalismo Assistencial e Jornalismo Mobilizador – para a assistência social, nos anos 1920 e 1930. Palavras-chave: Cosme de Farias. Caridade. Assistência Social. Imprensa. Jornalismo. ABSTRACT This thesis consists of a historical biography of Major Cosme de Farias (1875-1972), with the objective of contributing to the understanding of aspects of the society of Salvador (State of Bahia), in the early days of the Republic of Brazil, above all by means of the codes and the life experience of this individual as a promoter of charity and a militant figure in the press, and of the interface between his activity in these two fields in favor of the collective welfare. Through the approach to events relating to his life and work as journalist, troubadour, distinguished person, pettifogger, activist, city councilman of the capital of the State of Bahia and member of the state assembly, the study also deals with the range of social networks, with the means for social climbing of half-breeds and poor people, with social welfare practices, with political and social mobilization and with the activities of periodicals in the city of Bahia. Resulting from the consultation of various documents (court cases, medical records, books written by the Major, audio recordings of testimony, letter with his last will, among others), of periodicals and of historiography, of interviews and with the application of the methods for content analysis and discourse analysis, this thesis finds that Major Cosme had the requirements for social mobility, but preferred to remain a prisoner of the “lower” social classes, and characterizes his use of two specific forms of journalism – called Welfare Journalism and Mobilizing Journalism – for social welfare activities. Key words: Cosme de Farias. Charity. Social Welfare. Press. Journalism. RÉSUMÉ La présente thèse consiste en une biographie historique du Major Cosme de Farias (18751972). Cette biographie a pour objectif de contribuer à la compréhension des aspects de la société de Salvador (BA) au début de la République, principalement à travers de codes et l'expérience de Cosme Major comme promoteur de bienfaisance et dans la presse millitant et l’interface entre leurs perfomaces dans ces deux domaines pour le bien collective. Grâce à l'approche des faits concernant sa vie et son travail de journaliste, troubadour, bienfaiteur, escroc, militant, conseiller municipal de Salvador et représentant de l'État, l'étude traite aussi du tissage de réseaux sociaux, de moyens de mobilité sociale pour les métis et les personnes défavorisées autant que les pratiques d'assistance sociale, la mobilisation sociale et politique et les activités courantes dans la Ville de Bahia. Résultant de la consultation de documents divers (processus judiciaire et médical, ouvrages écrits par le Major, des dépositions audios, lettre-testament et autres), ainsi que de revues d'histoire, d’interviews et l'application de méthodes d'analyse de contenu et d’analyse du discours, cette thèse considère que Major Cosme a promulgué les conditions de mobilité sociale mais a néanmoins préféré rester prisonnier des strates «du bas». Cette thèse caractérise aussi l'utilisation par Major Cosme de deux formes spécifiques de journalisme pour l'assistance sociale – le journalisme «d’assistance» et le journalisme «mobilisateur». Mots-clés: Cosme de Farias. Bienfaisance. Assistance Aociale. Médias. Journalisme. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................... 16 COSME DE FARIAS, OBJETO DE ESTUDOS .................................. 21 MÚLTIPLAS FRENTES EM TRÊS FOCOS DE ANÁLISE .............. 30 OS DOIS MÉTODOS PARA APRECIAÇÃO ..................................... 45 1 O INDIVÍDUO SOB A LENTE DO HISTORIADOR .................. 56 1.1 RECRUDESCIMENTO DO GÊNERO BIOGRÁFICO ................. 66 1.2 PERSEGUINDO OS RASTROS DO MAJOR ............................... 77 2 A CONQUISTA DE LUGARES SOCIAIS .................................... 81 2.1 DA INFÂNCIA NO SUBÚRBIO À ESCOLARIZAÇÃO ............. 81 2.2 DOS LAÇOS CONJUGAIS E DE SOLIDARIEDADE À INSERÇÃO PROFISSIONAL .............................................................. 95 2.3 NAS TRINCHEIRAS DA POLÍTICA ............................................ 109 2.3.1 Flertes com o socialismo ............................................................. 135 2.4 JEITO DE SER E VIVER ............................................................... 143 2.4.1 Cordialidade a toda prova ......................................................... 162 2.5 CONSCIÊNCIA TRABALHADORA, SEMPRE ........................... 167 3 CAMINHOS PARA A VIRTUOSE ................................................ 174 3.1 VERTENTES DO ALTRUÍSMO E DA BENEMERÊNCIA ......... 174 3.1.1 Assistência a desamparados ....................................................... 179 3.1.2 Defensoria gratuita e irrestrita .................................................. 187 3.1.3 No front pela alfabetização ......................................................... 204 3.1.3.1 Entre política e pedagogia ......................................................... 215 3.1.4 Batalhas contra a carestia .......................................................... 224 3.1.4.1 Majoração de preços e patriotismo ............................................ 232 3.1.5 Na luta dos trabalhadores .......................................................... 240 3.1.6 Bandeira da redemocratização .................................................. 246 3.2 MOTIVAÇÕES PARA A MILITÂNCIA E ASSISTÊNCIA ......... 249 4 NAS VEREDAS DA IMPRENSA ................................................... 260 4.1 INCURSÕES NO UNIVERSO DA POESIA ................................. 261 4.2 OFÍCIO ENTRE AS PENAS E AS PRETINHAS .......................... 264 4.2.1 Na gestão de periódicos .............................................................. 266 4.2.2 Sob comando de terceiros .......................................................... 271 4.2.3 Relações estratégicas com jornais e jornalistas ........................ 285 4.3 LAMA & SANGUE, LINHAS LIGEIRAS E OUTROS TEXTOS .... 292 4.3.1 Críticas a um momento político histórico ................................. 293 4.3.2 Olhar sobre o dia-a-dia .............................................................. 304 4.3.3 Cosme, pauta jornalística ........................................................... 319 4.4 IMPLICAÇÕES DAS INVESTIDAS NA IMPRENSA ................. 323 4.5 ENTRE O JORNALISMO ASSISTENCIAL E O JORNALISMO MOBILIZADOR ................................................................................... 332 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 349 FONTES ............................................................................................... 357 REFERÊNCIAS ................................................................................... 366 APÊNDICES ........................................................................................ 387 LISTA DE APÊNDICES APÊNDICE 1 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A CONSELHEIRO MUNICIPAL – 1907 APÊNDICE 2 – DESEMPENHO DOS DEPUTADOS ESTADUAIS ELEITOS NO PRIMEIRO DISTRITO – 1915-1917 APÊNDICE 3 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL, CONFORME OPOSIÇÃO – 1915-1917 APÊNDICE 4 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 19171919 APÊNDICE 5 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 191921 APÊNDICE 6 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 19211923 APÊNDICE 7 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 19231925 APÊNDICE 8 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 19251927 APÊNDICE 9 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 19271929 APÊNDICE 10 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 1929-1931 APÊNDICE 11 – DESEMPENHO DOS VEREADORES ELEITOS – 1948-1951 APÊNDICE 12 – DESEMPENHO DOS VEREADORES ELEITOS – 1951-1955 APÊNDICE 13 – DESEMPENHO DOS VEREADORES ELEITOS – 1955-1959 APÊNDICE 14 – DESEMPENHO DOS VEREADORES ELEITOS – 1959-1963 APÊNDICE 15 – DESEMPENHO DOS VEREADORES ELEITOS – 1963-1967 APÊNDICE 16 – DESEMPENHO DE CANDIDATOS A DEPUTADO ESTADUAL – 1967-1970 APÊNDICE 17 – DESEMPENHO DOS DEPUTADOS ESTADUAIS ELEITOS – 19701974 LISTA DE ABREVIATURAS ABI – Associação Baiana de Imprensa AC – Análise de conteúdo ACM – Antonio Carlos Magalhães AD – Análise do discurso AECB – Associação dos Empregados do Comércio da Bahia AFPEB – Associação dos Funcionários Públicos do Estado da Bahia AIB – Ação Integralista Brasileira ALEB – Assembleia Legislativa do Estado da Bahia APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia ARENA – Aliança Renovadora Nacional BA – Bahia BPEB – Biblioteca Pública do Estado da Bahia CF – Cosme de Farias CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores CIA – Centro Industrial de Aratu CMS – Câmara Municipal de Salvador COB – Centro Operário da Bahia CPDOC-FGV – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas CVP – Comissão de Verificação dos Poderes DB – Diario da Bahia DN – Diario de Noticias DO – Diario Oficial DT – Diario da Tarde EdUFBA – Editora da Universidade Federal da Bahia EdUSP - Editora da Universidade de São Paulo FEB – Força Expedicionária Brasileira FSB – Federação Socialista Baiana GLB – Grêmio Literário da Bahia GP – Gazeta do Povo HC – História Cultural HM – História das Mentalidades HS – História Social IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia INL – Instituto Nacional do Livro JA – Jornalismo Assistencial JBa – Jornal da Bahia JC – Jornalismo Cívico JM – Jornalismo Mobilizador JN – Jornal de Noticias LASP – Liga de Ação Social e Política LBA – Liga Bahiana contra o Analfabetismo MDB – Movimento Democrático Brasileiro MG – Minas Gerais MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização NEHIB – Núcleo de Estudos sobre a História dos Impressos na Bahia NHC – Nova História Cultural PCB – Partido Comunista Brasileiro PDC – Partido Democrata Cristão PDT – Partido Democrático Trabalhista PLANDEB – Plano de Desenvolvimento para a Bahia PPGH – Programa de Pós-Graduação em História PR – Partido Republicano PRB – Partido Republicano da Bahia PRD – Partido Republicano Democrata PRP – Partido Republicano Progressista PSB – Partido Socialista Brasileiro PSD – Partido Social Democrático PSP – Partido Social Progressista PST – Partido Social Trabalhista PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PTN – Partido Trabalhista Nacional RJ – Rio de Janeiro RS – Rio Grande do Sul SP – São Paulo SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste TB – Tribuna da Bahia TRE – Tribunal Regional Eleitoral UDN – União Democrática Nacional UEB – União dos Estudantes da Bahia UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana UFBA – Universidade Federal da Bahia UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFU – Universidade Federal de Uberlândia UnB – Universidade de Brasília UNESP – Universidade Estadual Paulista UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo 16 INTRODUÇÃO Primeiros minutos de uma manhã do finalzinho do Verão de 1972, no longínquo bairro de Cosme de Farias (1875-1972), Subúrbio da Salvador, Bahia. Nas vielas e ruas sem calçamento, o vai-e-vem de gente providenciando os ingredientes para o café da manhã, caminhando para a escola ou deslocando-se para o trabalho dá indícios de que aquele é um território populoso. Em teimosos casebres erguidos à revelia do poder público, uns cuidam da prole – e, em geral, ela é imensa – ou preparam a alimentação, outros fazem a higiene do corpo e da residência. Grande parte, entretanto, ainda dorme, enquanto o locutor de rádio anuncia as novas medidas do governo que se instalou em 1964, com a promessa de afastar o Brasil dos riscos de uma derrocada e, logo, promover a escolha de novos gestores, mas se fixou no comando do Estado brasileiro por meio de um regime autoritário que perduraria até 1985. É cedo, o sol apenas começa a colorir o céu com um amarelo-alaranjado energizante. Aos 96 anos, Cosme de Farias bem que poderia estar entre os que desfrutam do ócio merecido aos justos; mas prefere manter-se na labuta. Já ao alvorecer, salta da cama de madeira envelhecida pelo tempo, com planos de um jovem, mas equilíbrio comprometido pela idade. Ele resmunga das limitações impostas pela idade. Todo dia, tem sido assim: a mente comanda, porém as pernas teimam até obedecer. Sem tempo para muita lamúria, cobre-se com peitilho, golas e punhos alvos engomados – que, em conjunto, imitam uma camisa – e paletó bem surrado, como se quisesse disfarçar o corpo esquálido e empalidecido e esconder o chiado que insiste em denunciar a debilidade da sua saúde. Seus pulmões já não funcionam como outrora. O desjejum servido por uma espécie de faz-tudo, chamada Railda Araci Pitanga, parece minguado e não apetece Cosme. A exemplo do que ocorre nas demais refeições do dia, ele apenas belisca. Por anos, é assim: ora falta vontade para comer, ora reparte o pouco que lhe é servido com indigentes. De certo, a dieta diária tem apenas as doses de vermute ou cerveja quente ao meio-dia, postas junto ao almoço, em pontos comerciais da região central da Cidade da Bahia. Mal sai da mesa e já começa a atender a procissão improvisada diante da porta da sua casa. Vizinhos, afilhados, companheiros de bar e uma legião de desconhecidos fazem pedidos de emprego, suplicam por vaga em escola pública ou atendimento médico gratuito, clamam por assistência jurídica gratuita perante a polícia e a justiça, requerem ajuda para sustento de organizações beneméritas, solicitam materiais escolares, alimentos ou outros gêneros de pri- 17 meira necessidade. Um cortejo similar, desde o clarear do dia, risca o Terreiro de Jesus, onde Cosme improvisa um escritório para ouvir rogativas de desvalidos, prostituídos, doentes, acusados pela polícia e justiça, representantes de entidades benemerentes desprovidas de recursos. Escuta a todos. Confere palavras de carinho e esperança à maioria. E só promete empenhar cada fio de energia que lhe resta para assistir todos. “Vou ver! Vou ver! Vou ver!”, afirma, repetidas vezes, como se ditasse um mantra. Cosme tem uma extensa e variada obra assistencial, constituída desde o final do século XIX e mantida até sua morte, com maior ou menor intensidade, a depender do contexto de cada período. Àquela altura, ela inclui a mediação, junto ao poder público e ao empresariado, para obtenção de postos de trabalho e vagas nas redes públicas de ensino, saúde e acolhimento; iniciativas contínuas pela alfabetização de crianças e adultos; doações diretas; e defensoria gratuita. Para sustentá-la e impulsioná-la, ele tanto emprega seu salário recebido do Estado – como funcionário público e parlamentar – e a féria obtida com a venda de livros de sua autoria quanto pede doações a terceiros e capta patrocínios e subsídios governamentais. Diariamente, amparado por um auxiliar (como o jovem afilhado Antônio Fernandes Pinto), Cosme caminha até o ponto para pegar um veículo em direção ao então Centro político e financeiro de Salvador. Lá, além do gabinete improvisado em instalações cedidas por terceiros, atuam pessoas com poder e instrumentos para atenção às demandas da população que lhe procura e instituições públicas e privadas responsáveis pelos serviços requeridos por aquela multidão, como o Fórum Ruy Barbosa, as sedes da Câmara e a Prefeitura Municipal, o Palácio do Governo do Estado e a Assembleia Legislativa, onde ele exerce seu derradeiro mandato como deputado estadual. Portanto, torna-se mais fácil bater de porta em porta ou abordar transeuntes e tecer histórias que comovam e garantam doações para repasse a terceiros. Estão naquelas imediações, igualmente, redações e oficinas dos inúmeros jornais que circulam pela capital, onde profissionais liberais, literatos e servidores públicos como o próprio Cosme de Farias trabalham como jornalistas. Após breve período de dedicação ao comércio de madeira junto com o pai (Paulino Manuel de Farias), aos 19 anos, ele começa sua carreira no jornalismo, na função de repórter. De 1894 a 1972, passa por inúmeros jornais baianos, atuando na reportagem, na diretoria de redação e até como proprietário dos veículos, concomitantemente ao exercício de suas atividades como servidor público do Estado – primeiro, por dois anos, como fiscal externo da Recebedoria de Rendas Estadual e, a partir de 1934, na Imprensa Oficial. Portanto, na imprensa, atua ora como funcionário, ora colaborador esporádico, quando enviava matérias às redações acompanhadas de um pedido de divulgação, 18 ora como empreendedor. Naquelas praças, ruas e edificações, ecoam pronunciamentos de políticos e ativistas, peças jurídicas de autoridades em acusação e defesa de alguém, versos de poetas. Quase sempre, Cosme de Farias está entre esses artífices da palavra. A despeito da parca escolaridade, ele vem manifestando vocação para o universo das letras desde os 13 anos, quando fez seu primeiro discurso1, nas comemorações pela assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel de Bragança para o banimento da escravatura negra no Brasil. Aos 21, publica os primeiros versos em jornal e, então, passa a se expressar, fazendo críticas, elogios, propostas a anônimos, celebridades, instituições públicas e privadas. Não perde o hábito nem na velhice, apesar da sua voz ter se tornado rouca e quase inaudível. Basta surgir uma oportunidade, para que ele busque seduzir a audiência, seja ela composta por parlamentares da Câmara e Assembleia ou por juízes e jurados do Tribunal do Júri ou, ainda, por participantes dos eventos cívicos e comemorativos – muitos dos quais organizados por ele em praça pública, como a homenagem anual ao poeta Castro Alves (14 de março) e o festejo do aniversário da Liga Baiana contra o Analfabetismo (12 de outubro). Discursa2 e declama poesias de sua lavra e de terceiros, destacando-se tanto pela frequência das orações quanto pelo talento verborrágico empregado nesses momentos, em busca da persuasão dos seus interlocutores. Sua profícua produção intelectual também tem vazão em publicações impressas, a exemplo de livros, brochuras e periódicos. A cartilha para alfabetização “Carta do ABC”, editada inúmeras vezes, é doada a professores voluntários da campanha pela erradicação do analfabetismo e a pessoas desejosas de aprender a ler e escrever. Coletâneas3 independentes de poesia – como Estrophes (1933), Trovas e Quadras (s/d), Singellas (1900), Lilases (1900) e Lira do Coração (1902) – prestam-se à difusão dos pensamentos e sentimentos do autor e, sobretudo, à manutenção da obra de caridade implementada por ele. A seleção de artigos políticos “Lama & Sangue” (1926), por sua vez, serve como protesto contra o então governador da Bahia, Francisco de Góes Calmon. Do Centro para toda a cidade, reverberam ainda os ruídos de manifestantes ligados a organizações e movimentos sociais e políticos, reclamando por dias melhores. Entre esses, em 1 Adroaldo Ribeiro COSTA. O Major foi à Hora da Criança. A Tarde. Salvador, 14 de março de 1970. JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 25 de dezembro de 1970. 3 O Descobrimento do Brasil teve a intenção de sua publicação anunciada, porém nenhum exemplar ou notícia sobre a edição foi localizado. Pelo longo tempo de vida produtiva e pela produtividade do autor, considera-se que outras obras possam ter sido lançadas por ele, mas, nessa pesquisa, não se identificaram os trabalhos ou os registros sobre eles. 2 19 reiteradas vezes, está Cosme. Muitas vezes, ele arrebanha os demais militantes, na qualidade de dirigente. Suas causas são muitas: investimento em educação básica, qualificação das condições e relações de trabalho, melhores salários, e combate à majoração de preços de gêneros e serviços de primeira necessidade como alimentos. A vida política da Bahia pulsa na região central da cidade, onde estão instaladas as sedes dos três poderes. Lá, são deliberadas as políticas públicas e ações do governo, em meio a intensos debates sobre os destinos do Estado e da população. Cosme envolve-se em muitos deles, na condição de parlamentar. Ao todo, ele tem quatro mandatos como conselheiro municipal e vereador de Salvador e seis como deputado estadual, incluindo aquele assumido na qualidade de suplente (1967-1970) e o derradeiro (1971-1974), interrompido por sua morte em 1972. Em eleições municipais, ele consegue quatro vitórias (1947, 1950, 1958, 1962) e três derrotas (1907, 1936, 1954) e, em pleitos estaduais, cinco triunfos (1915, 1917, 1919, 1921, 1970) e seis derrotas (1923, 1925, 1927, 1929, 1947, 1966). Em geral, mesmo quando é diplomado e toma posse de uma das cadeiras do legislativo, obtém votação pouco expressiva, incompatível com a dimensão da sua obra e popularidade e os esforços de campanha. A despeito dos parcos recursos, ele mantém seu trabalho assistencial diuturno, visita pontos diversos da cidade, tem sua candidatura divulgada por jornais e faz comícios, sobretudo na área central, que potencialmente tem acesso mais fácil para os eleitores. Apesar de ter formalizado vínculo com legendas como o Partido Republicano Democrata (PRD), Partido Republicano (PR), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Democrata Cristão (PDC) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ele se mostra fiel somente aos princípios do grupo seabrista, liderado por José Joaquim Seabra (governador nos períodos entre 1912-1916 e 1920-1924). Ora integra o bloco oposicionista, ora compunha o situacionista. Independentemente de sua filiação, a pauta do parlamentar sempre prioriza a sustentação e o fortalecimento das organizações e dos movimentos políticos e sociais aos quais pertence ou tem afinidade e a manutenção das suas ações de caridade. Todo dia, Cosme de Farias também amplia sua rede de sociabilidade em bares e estabelecimentos similares das redondezas. Ao meio dia e/ou ao final da tarde, ele almoça e beberica em pontos comerciais, como o Bar Bahia e a Padaria Triumpho, enquanto conversa com quem se aproxima sobre assuntos diversos, faz novos atendimentos a pedintes e até amealha adesões para sua obra de assistência. Quase sempre, tem companhia e, muitas vezes, encontra quem lhe pague a refeição e a bebida. Sua morte, por arteriosclerose cerebral, no Hospital Português, na capital, na madru- 20 gada de 15 de março de 1972, mobiliza cerca de 100 mil pessoas durante o velório na Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus, e o cortejo fúnebre e o sepultamento no cemitério da Quinta dos Lázaros, na Baixa de Quintas. Espontaneamente, a multidão rejeita dois carros mortuários de luxo, oferecidos por autoridades; arrebata o caixão das mãos do governador Antonio Carlos Magalhães e do prefeito Clériston Andrade; e carrega o corpo nos ombros, por quase duas horas, até a necrópole. No trajeto, repete cenas de choro e lamento, tremula uma faixa com o lema de Cosme – “Abaixo o Analfabetismo!” – e exige o fechamento de estabelecimentos comerciais. Aquele é um agradecimento do povo ao seu voraz defensor. Promove-se um adeus à altura do homem que, de tão singular, figura como personagem de Tendas dos Milagres (1969), com a alcunha de Major Damião de Souza, e é mote de crônica na coletânea Bahia de Todos os Santos – guia de ruas e mistérios (1945), livros consagrados do escritor baiano Jorge Amado; tem seu nome atribuído ao plenário da Câmara Municipal de Salvador, a escolas em Salvador e outras cidades e até ao bairro soteropolitano onde residiu por mais de uma década; e fixa-se na memória dos seus contemporâneos. Em 96 anos de vida, Cosme de Farias testemunha inúmeros dos principais fatos históricos da sua época, da Abolição da Escravatura à Proclamação da República, da instauração e declínio do Estado Novo ao golpe civil-militar de 1964, do declínio da monocultura açucareira em solo baiano à lenta retomada da industrialização promovida na segunda metade do século XX, da supremacia das artes de inspiração romântica à inovação modernista expressada em linguagens diversas, do arrefecimento do críquete à importação e incorporação do futebol como uma das mais relevantes manifestações da identidade brasileira. Por vezes, mais que observa; torna-se um ativo participante e até protagonista de capítulos da História contemporânea de Salvador. Ele sagra-se como um major da Guarda Nacional do Brasil sem farda, espada e passagem por caserna e fronts de batalha; poeta, jornalista e orador popular sem, ao menos, ter concluído o curso primário (correspondente ao atual ensino fundamental); líder operário sem histórico de labuta nas incipientes linhas da produção da indústria baiana; defensor público sem diploma universitário ou anel com pedra rubi; parlamentar quase sempre sem um centavo no bolso; benemérito capaz de tirar de si em favor de terceiros; mestiço originário do subúrbio soteropolitano que dialoga com lideranças e intelectuais de uma Bahia com resquícios da escravatura. Porta-se como uma espécie de seguidor dos princípios franciscanos – cede tudo que ganhava, leva pessoas sem abrigo para conviver com sua família, acomoda-se em casas com pouco mobiliário e sem conforto, veste-se com roupas desgastadas e cultiva hábitos simples –, 21 porém a aura de santo não lhe cabe. Afinal, também, tem o arquétipo dos anti-heróis: é um boêmio com picardia – bebe assiduamente; goza da fama de mulherengo, apesar de permanecer casado por mais de 60 anos com uma única mulher (Dona Semíramis) e nunca ter tido filhos biológicos dentro e fora dessa união; e defende algozes, inclusive homicidas, perante a justiça e a polícia. Pela diversidade de frentes de atuação, pela especificidade da sua trajetória e pelos papéis políticos e sociais desempenhados ao longo da vida, faz jus a pesquisas sobre si que iluminem questões do seu espaço e tempo, embora este tipo de análise seja raro no ambiente acadêmico e no mercado editorial, como se atestará adiante nesta Introdução. Portanto, a tese doutoral que ora se inicia busca contribuir para que se preencha esta lacuna na produção científica da História da Bahia. COSME DE FARIAS, OBJETO DE ESTUDOS Desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação do professor doutor Israel Pinheiro, este estudo tenta subsidiar a compreensão do momento em que ele viveu (1875-1972), com ênfase nas décadas de 1920 e 1930, promovendo a articulação entre a História individual e a História da sociedade, ao caracterizar suas ideias, suas ações e seus projetos, à luz do contexto histórico e midiático da sua época. Mais especificamente, esta tese doutoral objetiva contribuir para o entendimento de aspectos da sociedade em um período e ambiente específicos, através das manifestações de códigos e da experiência desse indivíduo, em especial, como promotor de caridade e militante na imprensa. Busca discutir a relação entre o jornalismo e as atividades sociais do Major, considerando-o uma personalidade relevante para a apreensão da História contemporânea de Salvador, por ele ter obtido êxito na sua proposta, a despeito de estar à margem da elite em uma Bahia com características políticas, econômicas e sociais singulares – conservadora, oligárquica, patrimonialista4. 4 “A Bahia, berço da nossa formação econômica e política, exerceu também o controle sobre a colônia nos seus três primeiros séculos. O nosso sistema de capitanias e outras formas de exercício do poder onde o público e o privado nunca estavam delimitados, nos trouxe de forma muito arraigada, o patrimonialismo político. A decadência econômica da Bahia, a partir de meados do século passado, levou as nossas elites a ver no controle da 22 Parte-se da hipótese central de que a imprensa pode ter sido utilizada por ele como mecanismo para divulgação e/ou reforço do seu nome, de suas ideias e de suas ações, como um espaço de visibilidade e sustentação das suas demais atividades, sobretudo a assistencial. Em outros termos, apresenta-se como questão central para o desenvolvimento dessa tese: como pode ser caracterizada a relação entre a atuação jornalística de Cosme de Farias e seu trabalho assistencial à população de Salvador, diante do contexto histórico e midiático em que ele estava inserido? Deste ponto, surgem como indagações secundárias: Quais eram as suas estratégias discursivas? Quais os temas agendados por e sobre ele nos jornais? A obra assistencial de Cosme se constituía enquanto critério para agendamento de temas e fatos pelos jornais? Para quem eram dirigidos os seus textos? Quais os resultados obtidos por ele para as ações filantrópicas? Pretende-se, a partir do mapeamento dos temas recorrentes na sua lavra jornalística, identificar suas estratégias discursivas na práxis jornalística, com ênfase nos textos cujo conteúdo tivesse aproximação com seu trabalho de caridade, e a quem o biografado se dirigia; inferir os resultados obtidos diante de tal cobertura jornalística, contribuindo para a compreensão de aspectos relacionados à História da imprensa em Salvador, bem como para o entendimento de fatos da História da cidade com os quais o Major estava envolvido e, de forma mais ampla, para a constituição de versões diferenciadas sobre tais fatos, sob a perspectiva de quem não detinha o poder político e econômico. Não obstante promova uma retrospectiva de acontecimentos da Cidade da Bahia, a presente tese não necessariamente enquadra-se como um estudo de História Regional, na medida em que trata de temáticas de repercussão nacional e internacional. Devido à atuação do jornalista em searas de interesse dentro e fora de Salvador e junto a instâncias diversas do poder (sindicatos, partidos, governos), a pesquisa sobre ele, a priori, já concilia as escalas local e universal. É possível que tal trabalho colabore, ainda, para o enriquecimento da historiografia sobre o exercício do jornalismo e a imprensa na Bahia. Considerada como “espelho” dos fa- burocracia do Estado a única forma de continuidade do seu antigo poder. Uma continuidade conservadora, porque baseada na idéia de um poder individual, sem implicações coletivas imediatas e sem modernização no sentido da contemporaneidade. Tudo isso faz o passado avançar, se prolongar no presente e com isto seus usos e costumes, onde a figura do ‘coronel’ ainda é sua marca fundamental, pese à versatilidade de suas expressões já neste final do século”. Israel de O. PINHEIRO. A Política na Bahia: atraso e personalismos. Revista Ideação. Ano 3, nº 4. Feira de Santana: Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, jul.-dez. 1999. p. 49 Disponível em: <http://www.uefs.br/nef/israel4.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2008. 23 tos, desde a segunda metade do século XIX, quando se inaugurou o “jornalismo moderno”5, a imprensa, aos poucos, constituiu-se como uma fonte privilegiada para os estudos sobre processos históricos. Aos poucos, os historiadores tomaram o jornalista e suas fontes como sujeitos e o periódico como espaço de registros da memória da atualidade e esfera de debates e mobilização. Também, renovaram suas premissas e seu modus operandi, passaram a investigar com maior intensidade temas sociais e culturais, e começaram a tratar a imprensa como fonte documental, por registrar e difundir relatos de sujeitos de uma determinada época, e também como agente histórico, por intervir na realidade em que vive6. A transição na postura dos historiadores fomenta a perspectiva de que os estudos sobre o jornalismo, mais especificamente sobre a imprensa e o fazer jornalístico, sejam consolidados e legitimados como um domínio da História. Todavia, não necessariamente assegura o desenvolvimento da historiografia sobre objetos deste campo, que, apesar do nítido incremento constatado nos últimos anos, ainda apresenta lacunas com forte impacto no exercício da profissão e no cotidiano da sociedade, muitas vezes desinformada acerca do lugar social e político dos veículos, a despeito da importância deles para a formação da sua visão de mundo. Entre os trabalhos mais recentes da Bahia, se destacam as dissertações De Heróis a Tiranos: jornal ‘A Tarde’, agências internacionais de notícias e a Revolução Cubana como representação jornalística (1959-1964)7, de Bruno de Oliveira Moreira; Um Espectro Ronda a Bahia: o anticomunismo da década de 1930”8, de Cristiano Cruz Alves; O Integralismo na Imprensa da Bahia: o caso de O Imparcial9, de Laís Mônica Ferreira; Cosme de Farias, o Anjo da Guarda dos Excluídos de Salvador, da autora da presente tese; e A Ascensão do Na- 5 Ver Alzira Alves de ABREU. A Modernização da Imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002; Josenildo Luiz GUERRA. O Nascimento do Jornalismo Moderno - uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2-6 set. 2003. Disponível em: <http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4406/1/NP2GUERRA.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2008. 6 Marialva BARBOSA; Marcos MOREL. História da Imprensa no Brasil: metodologia. Florianópolis: Rede Alfredo de Carvalho; Universidade Federal de Santa Catarina, [s.d]. Disponível em: <http://www.redealcar.jornalismo.ufsc.br/metodo.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007. 7 Bruno de O. MOREIRA. De Heróis a Tiranos: jornal A Tarde, agências internacionais de notícias e a Revolução Cubana como representação jornalística (1959-1964). Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2010. 8 Cristiano Cruz ALVES. “Um Espectro Ronda a Bahia”: o anticomunismo da década de 1930. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2008. 9 Laís Mônica Reis FERREIRA. O Integralismo na Imprensa da Bahia: o caso de O Imparcial. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2006. 24 zismo pela Óptica do Diário de Notícias da Bahia (1935-1941): um estudo de caso”10, de José Carlos Peixoto Júnior; e a tese Entre Mudanças e Permanências – itinerário do papel social dos jornais diários soteropolitanos no século XX a partir da análise das coberturas eleitorais do jornal A Tarde em 1919, 1954 e 199011, de Ana Cristina Menegotto Spannenberg. Há, também, os livros Nome para Compor em Caixa Alta: Arthur Arezio da Fonse12 ca , de Luis Guilherme Pontes Tavares; Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia13, também organizado por Tavares; A Primeira Gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brazil14 e Semanário Cívico – Bahia, 1821-182315, ambos de Maria Beatriz Nizza da Silva; Jornalismo na Veia16, de José Curvello; Não Deixe esta Chama se Apagar – história do Jornal da Bahia17 e A História da Revista Seiva – a primeira revista do PCB18, ambos de autoria de João Falcão; A Imprensa e o Coronelismo no Sertão do Sudoeste, de Jeremias Macário 19, e Jorge Calmon, o jornalista20, de Edivaldo Boaventura; as coletâneas de entrevistas Memória da Imprensa Contemporânea da Bahia21, organizada por Sérgio Mattos; e de edições de jornal em fac-símile Tribuna, 40 anos de Bahia – Quando a notícia conta a história22, coordenada por Alex Ferraz. E ainda seus antecessores: A comunicação social na Revolução dos Alfaiates23, de 10 José Carlos PEIXOTO JR. A Ascensão do Nazismo pela Óptica do Diário de Notícias da Bahia (19351941): um estudo de caso. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2003. 11 Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências - itinerário do papel social dos jornais diários soteropolitanos no século xx a partir da análise das coberturas eleitorais do jornal A Tarde em 1919, 1954 e 1990. Tese. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 2009. 12 Luis Guilherme Pontes TAVARES. Nome para Compor em Caixa Alta: Arthur Arezio da Fonseca. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia; Governo da Bahia; Núcleo de Estudos da História dos Impressos da Bahia, 2005. Coleção Cipriano Barata. 13 Luis Guilherme Pontes TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005. 14 Maria Beatriz Nizza da SILVA. A Primeira Gazeta da Bahia: Idade D’Ouro do Brazil, Salvador: EdUFBA; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2005. 15 Id. Semanário Cívico – Bahia, 1821-1823. Salvador: EdUFBA, 2008. 16 José CURVELLO (Org.). Jornalismo na Veia. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 2005. 17 João FALCÃO. Não Deixe esta Chama se Apagar – história do Jornal da Bahia. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006. 18 Id. A História da Revista Seiva – a primeira revista do PCB. Salvador: Ponto & Vírgula Publicações, 2008. 19 Jeremias MACÁRIO. A Imprensa e o Coronelismo no Sertão do Sudoeste. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2005. 20 Edivaldo BOAVENTURA. Jorge Calmon, o Jornalista. Salvador: Instituto Geográfico e História da Bahia, 2009. 21 Sérgio MATTOS. Memória da Imprensa Contemporânea da Bahia. Salvador: Instituto Geográfico e História da Bahia, 2008. 22 Alex FERRAZ (Coord.). Tribuna, 40 anos de Bahia – Quando a notícia conta a história. Salvador: Instituto de Tecnologia, Educação e Gestão Organizacional (Integro), 2010. 23 Florisvaldo MATTOS. A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 1998. 25 Florisvaldo Mattos; Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade24, de Marco Morel; e A Bahia de Outr’ora, Agora25, de Angeluccia Habert; Marco Zero da Rede Alfredo de Carvalho na Bahia26, de Luis Guilherme Pontes Tavares; além de Los Primeros Cien Años de la Empresa Informativa en Bahia27, de José Augusto Ventín Pereira; Os Baianos que Rugem: a imprensa alternativa na Bahia28; de Gleide Vilela e outros autores. Afora esses, são referências relevantes pioneiros como os livros Anais da Imprensa da Bahia29, de Alfredo de Carvalho e João Nepomuceno Torres, de 1911 e reeditado em 2007; A Primeira Imprensa da Bahia e suas Publicações (1811-1816)30, de Renato Berbert de Castro, de 1969; e O Diário da Bahia Século XIX31, de Kátia de Carvalho, de 1979; e as dissertações O Momento - história de um jornal militante32, de Sônia Serra; Formação da Grande Imprensa na Bahia33, de José Welinton Aragão dos Santos; Intervalo Democrático e Sindicalismo – Bahia, 1942-194734, de Petilda Vazquez, acerca do jornal O Imparcial. Os títulos elaborados na Bahia, na sua maioria, são de caráter panorâmico e descritivo e versam sobre a trajetória profissional de jornalistas ou editores e sobre elementos ou fases históricas de veículos, porém há lacunas tanto de perfis institucionais – são raros os trabalhos de fôlego sobre o quase centenário jornal A Tarde, por exemplo – quanto de biografias históricas – não há notícias sobre investigações acerca do legado na área do jornalistadeputado Lellis Piedade e da dedicação ao jornalismo de governadores do Estado como Antônio Ferrão Moniz de Aragão (1916-1920), Luis Viana Filho (1967-1971) e Antonio Carlos 24 Marcos MOREL. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001. 25 Angeluccia HABERT. A Bahia de Outr’ora, Agora. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2002. 26 Luis Guilherme Pontes TAVARES. Marco Zero da Rede Alfredo de Carvalho na Bahia. Salvador: Núcleo de Estudo da História dos Impressos da Bahia, 2003. 27 José Augusto VENTÍN PEREIRA. Los Primeros Cien Años de la Empresa Informativa en Bahia. Madri: Editora Fragua, [s.d]. Trata-se de estimável contribuição ao estudo da História de nossa imprensa. O Nehib possui cópia do livro em CD-rom, pois a edição em papel (356 páginas, organizadas em sete capítulos), publicada pela Fragua, de Madri, está esgotada. 28 Gleide VILELA et al. Os Baianos que Rugem: a imprensa alternativa na Bahia. Salvador: EdUFBA, 1996. 29 Alfredo CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário – 18111911. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007. 30 Renato Berbert de CASTRO. A Primeira Imprensa da Bahia e suas Publicações - tipografia de Manuel Antônio da Silva Serva, 1881 - 1819. Salvador: Prêmio Wanderley Pinho – 1968; Governo do Estado da Bahia; Secretaria da Educação e Cultura; Departamento da Educação Superior e da Cultura; Imprensa Oficial da Bahia, 1969. 31 Kátia CARVALHO. O Diário da Bahia Século XIX. Vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. 32 Sônia SERRA. O Momento – História de um jornal militante. Dissertação. Salvador: Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 1987. 33 José Welinton Aragão dos SANTOS. Formação da Grande Imprensa na Bahia. Dissertação. Salvador: Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 1985. 34 Petilda Serva VAZQUEZ. Intervalo Democrático e Sindicalismo – Bahia, 1942-1947. Dissertação. Salvador: Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 1986. 26 Magalhães (1971-1975, 1979-1983, 1991-1994), por exemplo. O próprio Cosme de Farias somente em 2005 passou a ser mote de uma primeira biografia, aquela com ênfase em aspectos da sua atuação como político. Apesar do risco de induzir uma generalização a partir da narrativa de um caso específico, os trabalhos de natureza biográfica prestam uma indubitável contribuição para a historiografia, desde que atendam à exigência de maior rigor empírico do pesquisador e das propostas de estudo e sejam pautados pela contextualização dos fatos, assegurando o detalhamento e o aprofundamento do objeto e, consequentemente, a compreensão do cenário de uma época, conforme discutido no primeiro capítulo desta tese. Registra-se, também, um lapso no que se refere às análises com foco na construção do discurso, no agendamento de temáticas, na linguagem, nos gêneros jornalísticos, na recepção, nos procedimentos produtivos e na cultura organizacional da imprensa, na perspectiva histórica. Os casos nessas searas são pontuais, conforme se pode atestar com a leitura das obras aqui citadas e de outras depositadas em bibliotecas e arquivos do Estado. A compreensão de propósitos, processo de elaboração, universo do profissional e formas de recepção dos veículos constitui-se como um representativo mecanismo para o desenvolvimento de habilidades e competências entre os jornalistas em formação e, ainda, para que se possa avançar tanto na formulação de conceitos e no desenvolvimento de novas técnicas e linguagens quanto na prática cotidiana. Por outro lado, é relevante salientar que a publicação destas obras na Bahia deriva, em geral, de esforços pessoais e, desde 2001, da motivação do Núcleo de Estudos da História dos Impressos da Bahia (ligado à Rede Alfredo de Carvalho para pesquisa da história da imprensa brasileira e que estabeleceu parcerias com a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia e Academia de Letras da Bahia). Os fatos assim transcorrem, apesar da demanda em potencial para tiragens de títulos da área, considerando-se a existência de 24 cursos para a formação de jornalistas no Estado35 – grande parte com cadeiras dedicadas à história do jornalismo, à história da comunicação e à história da imprensa, com carência de bibliografia – e de centenas de jornalistas profissionais e pesquisadores desta área e de afins. A situação reproduz-se em outros Estados brasileiros, em especial, nos localizados fora do eixo Sudeste-Sul. Presume-se que esta seja uma das implicações do lento processo de 35 INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E CURSOS CADASTRADOS. In: E-MEC/Ministério da Educação. Brasília: Ministério da Educação, 2011. Disponível em: <http://emec.mec.gov.br>. Acesso em: 9 abril 2011. 27 implantação da imprensa no Brasil, inclusive em relação a outras colônias das Américas36, e de modernização da produção37, que só começou a ocorrer em meados do século XX com o surgimento das escolas para formação de jornalistas e de associações de classe, a assimilação de conceitos, técnicas e procedimentos estadunidenses e europeus, entre outros fatores. O quadro agrava-se38 nas unidades do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, devido às diferenças das condições socioeconômicas e políticas entre as regiões do Brasil, que tem raízes históricas. São parcas as iniciativas que tratam designadamente sobre Cosme de Farias ou de aspectos da sua lavra e do seu legado e nenhuma delas faz uma abordagem analítica da interação entre suas atividades jornalísticas e de caridade, à luz do contexto histórico e midiático da sua época, como se propõe agora. Não há obras dedicadas à compreensão do seu papel na história da cidade, de modo geral e, mais especificamente, da sua atuação enquanto jornalista, das atividades exercidas por ele na imprensa e da importância do jornalismo para sustentação da assistência social e dos movimentos sociais promovidos por ele. Até então, conta-se apenas com a reportagem “Advogados dos Pobres” (2001), a dissertação de mestrado ainda inédita “Major Cosme de Farias, o Anjo da Guarda dos Excluídos de Salvador” (2005) e o livro Cosme de Farias (2006), ambos biografias da autora desta tese e com caráter panorâmico e abordagem da trajetória pessoal, política e profissional de maneira ampla e sem análise crítica quanto à sua permanência na imprensa ou a interface entre sua inserção em periódicos e sua obra de caridade. Há, também, monografias realizadas em cursos de graduação, mas esses trabalhos, praticamente, apenas reinterpretam dados apresentados nos trabalhos precursores, sem trazer descobertas e avanços quanto à biografia do Major: “Cósmica Memória: dividida, mas geneticamente incontroversa”39, de Marilene Almeida; “Associação Tipográfica da Bahia e Cosme 36 A própria imprensa chegou ao Brasil somente no ano em que ocorreu a transferência da Família Real Portuguesa para a Colônia (1808), cerca de três séculos depois da invenção da imprensa, pelo alemão Johannes Gutenberg, em decorrência de um conjunto de fatores, a exemplo do predomínio do analfabetismo com forte tradição oral entre índios e negros e do receio da Coroa de se enfraquecer no Brasil, por conta da facilidade de disseminação de informação. 37 Ver Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo - uma comunidade interpretativa transnacional. Vol. II. Florianópolis: Insular, 2005. 38 A criação de escolas de jornalismo e a profissionalização, por exemplo, tardaram na Bahia, ocorrendo apenas a partir do final dos anos 1940 e 1950, respectivamente, anos depois da deflagração do processo em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Ver melhor em Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit. 39 Marilene Sousa Cruz de ALMEIDA. Cósmica Memória: dividida, mas geneticamente incontroversa. Monografia. Salvador: Curso de Arquivologia do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia, 2008. 28 de Farias: defesa da cidadania”40, de Kiaki Tosta Santana; e “Cosme de Farias: o rábula que era tutor – um estudo sobre pós-abolição, menoridade e pobreza (Salvador, 1890 a 1950)”41, de Isis Gois da Silva, além de outras obras que tratam de questões relacionadas à sua história de vida (como a história do bairro Cosme de Farias), mas sem enfocar sua biografia42. Outros papers43 – inclusive alguns apresentados pela autora em congressos científicos e um publicado como capítulo de livro – exploram questões específicas (como sua contribuição como fomentador cultural, sua incursão do jornalismo, sua relação com capoeiristas de Salvador), sem qualquer propósito de análise das estratégias e dos resultados obtidos pela personagem no exercício da carreira jornalística, em suas ações assistenciais ou na interação entre essas duas frentes; e, pela própria natureza deste tipo de texto, são sucintos e/ou descritivos. Por outros autores, o Major é totalmente preterido; ou é apenas citado no decorrer de trabalhos sobre outros objetos, dentro de um arcabouço contextual, para favorecer o entendimento de outras questões – como fazem Consuelo Novais Sampaio em seu texto sobre a “Se- 40 Kiaki Tosta SANTANA. Associação Tipografica da Bahia e Cosme de Farias: defesa da cidadania. Monografia. Salvador: Curso de Biblioteconomia e Documentação do Instituto de Ciência da Informação; Universidade Federal da Bahia, 2006. 41 Isis Gois da SILVA. Cosme de Farias: o rábula que era tutor – um estudo sobre pós-abolição, menoridade e pobreza (Salvador, 1890 a 1950). Monografia. Feira de Santana: Licenciatura em Historia da Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009. 42 São exemplos: Catiane RODRIGUES. De Quinta das Beatas a Cosme de Farias. Monografia. Salvador: Curso de História com Concentração em Patrimônio Cultural da Universidade Católica do Salvador, 2009. João Augusto Lima de OLIVEIRA. República e Alfabetização – história da Liga Baiana contra o Analfabetismo. Monografia. Salvador: Pós-Graduação em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação da Universidade do Estado da Bahia, 2003; Josivaldo Pires de OLIVEIRA. Pelas Ruas da Bahia – criminalidade e poder no universo dos capoeiras na Salvador republicana (1912-1937). Dissertação. Salvador: Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2004; Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Cuidado à Loucura na Bahia do Século XIX. Revista Baiana de Saúde Pública. Vol. 15, nº I-IV. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, jan.-dez. 1988; Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Silêncio dos Inocentes III: o cuidado aos psicopatas e degenerados no Hospício São João de Deus. Revista Baiana de Saúde Pública. Vol. 28, nº I Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, jan.-jun. 2004. 43 São exemplos: Mônica CELESTINO. Cosme de Farias (1875-1972) e a imprensa de mobilização em Salvador. In: José MARQUES DE MELO. (Org.). Imprensa Brasileira - personagens que fizeram história. Vol. 4 São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Universidade Metodista de São Paulo, 2009; Mônica CELESTINO. Cala-te a Boca, Major! – apontamentos sobre censura na Bahia calmonista (anos 1920). In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História, 2009. Vol. 1 Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; São Paulo: Associação Nacional de História, jul. 2009. CD; Mônica CELESTINO. Breve Síntese das Relações entre o Major Cosme de Farias e a Vida Cultural de Salvador no Século XX. III Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2007. Salvador: Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura; Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, 2007. CD; Ronaldo Ribeiro JACOBINA; André JACOBINA. Cosme de Farias e o Manicômio Estatal na Bahia, Brasil (1912-1947). Gazeta Médica da Bahia. Vol. 75, nº II Salvador: Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, jul-dez. 2005; Josivaldo Pires de OLIVEIRA. Cosme de Farias e os Capoeiras na Bahia: um capítulo de história e cultura afro-brasileira. Sankofa - Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Vol. 4 São Paulo: Universidade de São Paulo, dez. 2009, p.51-66. 29 gunda Guerra Mundial na Bahia”44, Luis Henrique Dias Tavares em História da Bahia45, Mário Augusto da Silva Santos na sua obra sobre movimentos sociais e políticos46, Aldrin Castellucci47 em livro e tese, e Sílvia Noronha Sarmento48, em sua dissertação sobre Ruy Barbosa e José Joaquim Seabra; ou é mote de verbetes curtos, publicados em coletâneas de perfis sobre baianos, como as de Antônio Loureiro de Souza49, Gutemberg Cruz50 e Geraldo da Costa Leal51. O acesso à documentação sobre Cosme de Farias e produzida por ele e às fontes orais desafia a quem se arvora em compreender o universo da personagem, sua obra e seu legado. O material textual e imagético está disperso e sujeito às intempéries dos seus curadores e à ação do tempo em acervos públicos e privados; o Major não deixou descendentes e seu único herdeiro oficial, Antônio Fernandes Pinto, já é morto e, em entrevista52, já havia assegurado ter perdido fotografias, manuscritos e outros documentos e não haver qualquer peça relacionada ao jornalista em seu poder; as pessoas que conviveram com ele53 sucumbem sem deixar registro de informações deste relacionamento no âmbito pessoal, afetivo, religioso e profissional; e as missivas em periódicos também se encontram espalhadas por títulos de períodos diversos. Ainda assim, as ideias e as ações de Cosme podem mover pesquisadores e gerar estudos como este, que se diferencia pela abordagem sistemática e aprofundada de aspectos da 44 Consuelo Novais SAMPAIO. A Bahia na Segunda Guerra Mundial. Revista da Academia de Letras da Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1996. Separata. 45 Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. 10. ed. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp); Salvador: EdUFBA, 2001. 46 Mário Augusto da Silva SANTOS. A República do Povo – sobrevivência e tensão – Salvador (1890-1930). Salvador: EdUFBA, 2001. 47 A. A. S. CASTELLUCCI. Industriais e Operários Baianos numa Conjuntura de Crise (1914-1921). Vol. 1. Salvador: Federação das Indústrias do Estado da Bahia, 2004; Aldrin A. S. CASTELLUCCI. Trabalhadores, Máquina Política e Eleições na Primeira República. Tese. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2009. 48 Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia - J. J. Seabra e Rui Barbosa na política baiana da Primeira República. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2009. 49 Antônio Loureiro de SOUZA. Baianos Ilustres – 1567-1925. 3. ed. rev. São Paulo: Ibrasa; Brasília: INL, 1979. 50 Gutemberg CRUZ. Gente da Bahia. Salvador: Editora P&A, 1997. Verbete Cosme de Farias. 51 Ezequiel da Silva MARTINS. A Bahia, Suas Tradições e Encantos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Fundação Cultural do Estado da Bahia; Empresa Gráfica da Bahia, 2000. Verbete Cosme de Farias. 52 Antônio Fernandes PINTO. Entrevista concedida à autora no dia 21 de outubro de 2005, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia (Gravação digital). 53 A maior parte é idosa e tem a saúde debilitada e/ou tem perdido a memória e a capacidade de falar. Várias fontes inclusive já morreram, antes ou logo depois de serem ouvidas ou deixarem apontamentos deste relacionamento no âmbito pessoal, afetivo, religioso e profissional, como o senador Josaphat Marinho, o jornalista Jeová de Carvalho, os jornalistas e ex-deputados Joaquim Cruz Rios e Wilson Lins, e o seu afilhado coronel Octavio Brandão Sobrinho. 30 sua biografia e, ao mesmo tempo, atenua a deficiência da historiografia sobre a imprensa e de Salvador na Primeira e Segunda República, a partir da lógica de quem não tinha poder decisório, mas participava do cotidiano social e político local. Trata-se de um avanço, pois as obras acerca destas temáticas, em geral, apresentam visões de lideranças com representatividade política e lastro financeiro54 sobre os fatos, em detrimento de perspectivas dos e sobre sujeitos subalternos que deram sustentabilidade ao jogo político, econômico e social vigente, a despeito da posição ocupada na hierarquia social do seu tempo. MÚLTIPLAS FRENTES EM TRÊS FOCOS DE ANÁLISE Como Cosme de Farias estabeleceu relações junto a grupos sociais díspares e forjouse a partir do envolvimento em múltiplas atividades, sendo-lhe atribuídas facetas diversas, busca-se compreendê-lo em três dimensões, que se entrecruzam nos capítulos da tese. Na primeira, como homem pertencente – ou se sentindo pertencente – a um determinado estrato social. Faz-se, nesse caso, uma narrativa sob a perspectiva de que fatores como as relações sociais mantidas, a etnia, a escolaridade, a profissão e o envolvimento político influenciavam na inserção social dos sujeitos. Apesar de mulato, nascido no Subúrbio de Salvador em uma família sem tradição, com apenas o curso primário, ele ascendeu socialmente, mas manteve-se fiel a costumes de outrora. Na segunda dimensão, como representante de grupos sociais e políticos, com abordagem da prevalência de interesses pessoais e sociais sobre as normas da política e da administração pública e do poder – simbólico, mas efetivo e real –, evidente pelas redes sociais tecidas pela personagem, por suas práticas da caridade e militância política e social e por sua inserção na imprensa, dentro de um cenário que, embora em movimento, sustentava-se, sobre- 54 A exemplo dos governadores Juracy Magalhães [ver Juracy M. MAGALHÃES. Minhas Memórias Provisórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; Juracy M. MAGALHÃES. O Último Tenente. Rio de Janeiro: Record, 1996]; Antonio Carlos Magalhães (ver Antonio Carlos MAGALHÃES. Política é Paixão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1995; João Carlos Teixeira GOMES. Memória das Trevas – uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães. São Paulo: Geração Editorial, 2001]; Otávio Mangabeira [ver Ives OLIVEIRA. Otávio Mangabeira: alma e voz da República. Rio de Janeiro: Saga, 1971; Afonso ARINOS; Américo SIMAS FILHO et al. Um Praticante da Democracia: Otávio Mangabeira. Salvador: Conselho Estadual de Cultura da Bahia, 1980; Wilson LINS. Otávio Mangabeira e sua Circunstância. Salvador: Conselho Estadual de Cultura da Bahia, s.d.], entre outros. 31 tudo, em um Estado centralizador – por vezes, autoritário, tomando-se como referências os regimes do Estado Novo (1937-1945) e militar (1964-1985) – e com economia frágil, marcada pela produção de matéria-prima. E na terceira dimensão, como um agente de mudanças idealista. Nesse caso, faz-se um relato da condição do biografado como objeto de cobertura da imprensa e, também, autor e difusor de pensamentos sociais e políticos, que fora forjado no decorrer de sua experiência em múltiplos campos – a partir da observação e intervenção na realidade e do diálogo com seus pares – e tinha suas ações, suas ideias e seus projetos propagados em periódicos, reuniões com confrades, meetings, eventos organizados em espaços públicos, entre outros canais difusores, porém que, também, era capaz de alterar o curso dos acontecimentos (principalmente, no âmbito da educação, justiça e assistência social direta por meio de doações), através da atividade militante e reivindicatória, da caridade, da produção literária e jornalística e do exercício de cargos legislativos. O emaranhado de sinais relacionados à combinação dessas dimensões, por certo, auxilia na caracterização da personagem, possibilitando a compreensão tanto de suas redes de sociabilidade e relações políticas quanto de suas intenções e práticas e dos efeitos das suas incursões nos mais diversos campos. E mais: fornece indícios sobre indivíduos que apoiaram, seguiram, opuseram-se a ele e sobre grupos sociais e políticos, nos quais estava inserido ou com os quais se relacionava. Ou seja, aspectos da biografia do Major iluminam pensamentos e ações de outros sujeitos; e favorecem a (re)interpretação de determinados fatos ocorridos no seu espaço e tempo. Das perspectivas captadas junto às fontes, emerge a caracterização física, ideológica, psicológica, emocional do biografado; engendram-se interpretações acerca dele, norteadas pelo saber produzido por outros autores; e procura-se compreendê-lo dentro do seu contexto espacial e temporal na análise, possibilitando o acesso a informações e o entendimento de aspectos do momento histórico vivido por ele. A tese começa com uma discussão, de caráter teórico, acerca da biografia histórica. Os conceitos problematizados nesse capítulo inicial, por um lado, orientam os processos de pesquisa e de interpretação e reflexão sobre as informações obtidas junto às fontes, dando sustentabilidade à execução do estudo; e, por outro, apresentam ao leitor os referenciais teóricos do trabalho, oferecendo melhores condições para a compreensão da proposta e apreensão do conteúdo exposto. O segundo capítulo traz o delineamento das características pessoais e profissionais e as diversas frentes de atuação do biografado – inclusive da carreira política, do exercício de 32 mandatos, do envolvimento com o seabrismo e da sua proximidade com o socialismo –, à luz do contexto cultural, econômico, político e social da época (trabalhado a partir de autores como Thales de Azevedo, Donald Pierson, Gilberto Freire e Kátia Vinhático Pontes) e baseado em referências teóricas relevantes para a compreensão da personagem (como Edward Palmer Thompson). No terceiro capítulo, enfatiza-se o trabalho assistencial prestado por Cosme à população na condição de rábula, filantropo, militante e dirigente de movimentos sociais e organizações não-governamentais como a Liga Bahiana contra o Analfabetismo e, também, sua atuação como uma espécie de porta-voz de grupos sociais diversos (sobretudo, de trabalhadores, pessoas contra a carestia e pela alfabetização), seja por ocupar cargos da hierarquia de movimentos e organizações reivindicatórias (como sindicatos, associações de classe, ligas, comitês), seja por organizar e participar ativamente de manifestações públicas promovidas por estes, a fim de obter melhores condições de trabalho e salários, conter preços de gêneros alimentícios e outros produtos e serviços e, ainda, erradicar o analfabetismo, considerando-se a conjuntura cultural, econômica, política e social. Aqui, tomam-se como referências, para a contextualização e as problematização, autores como Edward Palmer Thompson, Thales de Azevedo, Aldrin Castellucci, Mário Augusto da S. Santos, Ari Guimarães e Paulo Santos Silva. Por fim, no quarto, faz-se um panorama da atuação do Major como literato e jornalista, procurando-se compreender as temáticas agendadas por ele e relacionadas a ele; os critérios para transformação de um fato ou discurso em matéria jornalística e sua relação com as atividades assistenciais; suas estratégias e táticas discursivas no que se referem ao gênero do texto (informativo, interpretativo ou opinativo) e à linguagem (simples x rebuscada, uso ou não de humor, adágios, expressões de baixo calão), entre outros aspectos; e a ressonância das ideias, ações e proposições do jornalista junto à sociedade de Salvador, por meio da observação de novas matérias publicadas pelos diários estudados nos dias subsequentes ao registro de um artigo de Cosme de Farias ou sobre ele. Aqui, a ideia é caracterizar sua atuação nos campos do jornalismo e da assistência social pelo biografado e os modos de interação entre ambas, considerando-se o contexto histórico do seu tempo e espaço, com vistas à formulação de tese sobre a natureza do jornalismo praticado por ele. Nessa etapa, utiliza-se como referências as formulações de autores brasileiros e estrangeiros – como Nelson Traquina, Luiz Beltrão, José Marques de Melo, Nilson Lage, Ana Cristina Spannenberg, entre outros –, mas sem necessariamente promover densas discussões sobre elas, para evitar dispersão do objetivo central deste trabalho. O trabalho resulta da coleta, da sistematização e do cruzamento de dados levantados 33 em documentos manuscritos, impressos e audiovisual (como habeas corpus, carta-testamento, correspondências, documentário audiovisual com depoimento do próprio Cosme de Farias, publicações literárias escritas por ele, entre outros) e em periódicos55 (jornais diários locais, revistas e inclusive o Diário Oficial do Estado da Bahia) localizados em acervos diversos56; em iconografia57; em bibliografia sobre a personagem, as áreas em que ele atuou e temas similares; e, ainda, junto a depoentes que conviveram com ele, como jornalistas, historiadores, operadores do direito, beneficiários por ações do biografado. Uma das etapas mais importantes para alcance dos objetivos é a análise dos textos publicados por ele no livro Lama & Sangue (1926), disponível para leitura no acervo na Biblioteca Pública do Estado da Bahia/Setor Autores Baianos, e nos diários A Noite, entre março de 1925 e março de 1926 e outubro de 1926 e março de 1927, e O Imparcial, entre janeiro de 1934 e dezembro de 1937, cujas coleções podem ser consultadas no Arquivo Público do Estado da Bahia, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). A lavra do jornalista é cotejada com o conteúdo apreendido no contato com matérias desses dois impressos sobre ele e, também, na pesquisa em documentos, outros títulos periódicos como o Diario de Noticias e bibliografia, atinentes ao tema da tese. A seleção destes títulos pela pesquisadora deve-se à relevância de ambos no contexto social, político e econômico da época, embora ocupassem lugares sociais diversos e mantivessem diretrizes técnicas e ideológicas diferenciadas, conforme delineado no quarto capítulo deste trabalho. Não obstante seja salutar a análise do conteúdo e do discurso dos jornais criados por Cosme, tal tarefa é inviável por não terem sido identificados exemplares destes impressos nos acervos consultados. Como, na imprensa, a autoria é legitimada pela assinatura e/ou titulação de seções, o material do Major é identificado pela indicação do seu nome imediatamente acima ou abaixo do texto e/ou pela menção da expressão Linhas Ligeiras (citada, em várias obras, como identificação de artigos dessa personagem). A investigação compreende lapsos distintos dos pontos de vista temporal e contextu55 Textos veiculados em livros e brochuras ou em jornais e revistas editados, sobretudo, nos meses de abril (quando se comemorava o seu aniversário com eventos públicos e costumava-se publicar textos alusivos à sua obra) e de março de 1972 (quando foram publicadas inúmeras matérias motivadas por sua doença, morte e funeral nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia). 56 A exemplo dos que estão sob os auspícios do Arquivo Público do Estado da Bahia, da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Centro de Memória da Bahia/Fundação Pedro Calmon, da Biblioteca e do Museu da Associação Bahiana de Imprensa e do repórter fotográfico Anízio Carvalho, colecionador de fotografias e impressos sobre a temática). 57 Reunida em publicações periódicas e nos acervos do Museu da Imprensa/Associação Bahiana de Imprensa, do Centro de Memória da Bahia/Fundação Pedro Calmon e, sobretudo, de propriedade particular do repórter fotógrafo Anízio Carvalho. 34 al, visando atender às demandas do projeto e, por consequência, atingir seus objetivos e ter condições de execução, graças à garantia de acesso às coleções. Os períodos entre março de 1925 e março de 1926 e outubro de 1926 e março de 1927 integram a amostra porque estes são as únicas fases em que A Noite tem números contínuos disponíveis em acervos de Salvador e, nesse ínterim, o jornalista lançou seu único livro em prosa, Lama & Sangue. Pelo conteúdo contrário ao então governador Francisco Marques de Góes Calmon, o libelo teve circulação proibida e o Major foi preso. Também, neste momento, Cosme estava alijado dos poderes constituídos, sem cargos eletivos e, possivelmente, sob perseguição do governador; e fatos relevantes para a História da Bahia eclodiram no Brasil. Eram tempos de manifestações contra o sistema oligárquico dominante, pela reforma agrária gradativa e pelo voto direto, universal e secreto em todas as eleições no País, mas a maioria dos grupos políticos e econômicos locais se mantinha distante dos debates e reprimia as tentativas de oposição contra o governo central; e da passagem da Coluna Prestes pelo sertão baiano, o que interferiria na configuração política no Estado. A escolha do período janeiro de 1934 e dezembro de 1937 justifica-se porque, naquele momento, o País atravessava intensa movimentação política e social. Sob comando do presidente Getúlio Vargas, o Brasil realizou a eleição para a Assembleia Nacional Constituinte em 1934. O interventor da Bahia, o jovem cearense Juracy Magalhães, manteve seu domínio político no Estado, elegendo bancada majoritária para a Constituinte baiana de 1935 e vencendo o pleito para o governo para o quadriênio 1935-1939. Após interregno de aparente abertura democrática com promoção de eleições e convocação da Constituinte, eclodiu uma convulsão social e política, que repercutiu em todos os Estados e influenciou na instalação de um estado ditatorial e autoritário em 1937, o Estado Novo. A ditadura estadonovista foi uma fase conturbada, também, na Bahia, por motivos diversos: no auge da sua gestão, Juracy Magalhães, que havia chegado ao Estado na condição de interventor federal, tornou-se um dissidente do varguismo; o integralismo fortaleceu-se no território baiano; o Partido Comunista do Brasil (PCB) manteve atividades de caráter antifascista em municípios diversos, a despeito da intensa perseguição imposta aos comunistas por Vargas e seu séquito; e Octavio Mangabeira e outros liberais retornaram ao Estado, dispostos a ascenderem e firmarem-se no poder. Como os atores sociais e políticos fazem recortes do real – de acordo com suas ideologias, seus propósitos – em documentos, depoimentos e publicações, adota-se o confronto dos dados obtidos junto a fontes diversas, em um processo marcado pelo rigor científico, a fim de se chegar a uma reconstituição mais apropriada dos fatos, para posterior análise e tessi- 35 tura de uma narrativa precisa, pertinente e crível. Tal opção metodológica, em detrimento do uso de apenas um tipo de fonte, decorre de três razões: a) a multiplicidade de frentes em que a personagem atuou, gerando documentos com características diversas e essenciais para compreensão do seu universo; b) a dispersão das fontes e a falta de sistematização dos acervos, que dificulta o levantamento de dados elementares, mas relevantes (como datas de nascimento e morte, filiação, quantidade de legislaturas, mandatos como vereador e deputado estadual), em tempo exíguo; c) a necessidade de atenuar os efeitos de certo encantamento dos depoentes e da parcialidade dos produtores da documentação em relação ao perfilado. Dentre as fontes utilizadas nesta tese, pelo menos, os periódicos e as fontes orais têm emprego contestado por uma parcela dos historiadores, por suas especificidades. Ambos foram mantidas pelo potencial para apresentação de dados omitidos ou apenas sinalizados, sem detalhamento, por outros materiais e, também, para dirimir dúvida quanto a questões surgidas no contato com outras fontes. Veículos jornalísticos permitem a aproximação com o pensamento, as proposições e as ações do biografado, registrados pelo próprio Cosme ou por terceiros; as representações de fatos e personagens; e o contexto social, cultural, político e econômico em que os fatos se desenrolaram. Já os depoentes suprem lacunas deixadas pelas demais fontes; ratificam e negam informações obtidas na documentação, em periódicos e na bibliografia; e, também, ofertam dados contextuais. Ao relatar versões acerca do real, o acervo periodístico possibilita ao historiador inferir sobre as estruturas sociais, culturais, econômicas e políticas, o imaginário58 e as apropriações59 de um grupo, as representações do seu objeto de estudo, registradas pelos veículos contemporâneos aos fatos analisados, e só acessíveis após longos lapsos temporais (décadas e até séculos) por meio de documentação escrita, inclusive jornais e revistas. Portanto, faz uma espécie de mediação entre o pesquisador de História que não pode simular em laboratório os 58 Imaginário consiste em um conjunto de ideias e imagens de representação coletiva. Resulta da potência criadora da imaginação, está relacionado ao sonho, mas é uma ordem consistente da realidade, uma representação do real (mas não corresponde ao real). É, portanto, a referência de um outro ausente, pensada e expressa. Nesse sentido, necessariamente, trabalha com linguagem, é sempre representação e não existe sem interpretação. Sandra Jatay PESAVENTO. Em Busca de uma Outra História: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História. Vol. 15, nº 29. São Paulo: Associação Nacional de História, 1995, p. 9, 11-12, 15. 59 Representação é algo que permite a exibição de uma presença e a visão de algo ausente, enquanto apropriação é uma operação que envolve maneiras de utilizar produtos e visa o desenvolvimento de “uma História social das interpretações”, ligada às suas determinações fundamentais de cunho social, institucional e culturais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. O pesquisador Roger Chartier considera que o fenômeno social só tem sentido no mundo das representações, práticas e apropriações culturais e que o indivíduo apropria-se das representações da forma como lhe convém. Roger CHARTIER. Introdução. In: A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988, p.26; Ronaldo VAINFAS. História das Mentalidades e História Cultural. In: Ronaldo VAINFAS; Ciro F. CARDOSO (Org.). Domínios da História – ensaios de teoria a metodologia. 19. reimp. Rio de Janeiro: Elsiever, 1997, p.153-155, 158. 36 fatos a serem focalizados, como ocorre nas ciências naturais, e o objeto do trabalho, ou seja, um evento ou discurso do passado, viabilizando sua apreensão – ainda que parcial – e análise pelo pesquisador. O jornalista, em síntese, subsidia a atuação do historiador, que utiliza a imprensa como corpus documental. Tem-se ciência que, a despeito da importância deste material para o desenvolvimento do campo, ainda que com limitações, historiadores de vários países travam embates epistemológicos sobre a instrumentalização de periódicos impressos na pesquisa histórica como fontes, pois os produtos jornalísticos costumam ser alvo de questionamentos quanto à validade e à legitimidade da sua forma de apreensão do real, com aplicação de técnicas e conceitos específicos, mas sem rigor científico na apuração e redação. Estudos sobre jornalismo de autores diversos (como Adelmo Genro Filho60, Perseu Abramo61, Ignácio Ramonet62, Nelson Traquina63 e Sylvia Moretzsohn64) reconhecem o papel social do jornalismo como mecanismo importante de promoção do exercício da cidadania, mas admitem a ocorrência de falhas nas redações e manipulação das informações que podem distorcer os fatos, distanciando-se do real. A argumentação dos historiadores, contudo, se fragiliza diante da falta de conhecimento do campo do jornalismo, pois, por vezes, sequer se conhece os princípios, as técnicas, a finalidade, o processo produtivo, a linguagem, os constrangimentos intrínsecos à atividade e determinantes das representações, dos significados, do discurso manifestados e/ou produzidos pela imprensa. Efetivamente, há semelhanças entre processos e procedimentos dos campos da História e do Jornalismo evidenciadas pela bibliografia 65, e os critérios institucionais de sele60 Adelmo GENRO FILHO. O Segredo da Pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. 2. ed. Porto Alegre: Editora Ortiz, 1992. 61 Perseu ABRAMO. Padrões de Manipulação na Grande Imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. 62 Ignácio RAMONET. A Tirania da Comunicação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 63 Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo – por que as notícias são como são. Vol. I. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2004. 64 Sylvia MORETZSOHN. Jornalismo em Tempo Real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 65 “Jornalismo e História cultivam relativa identidade e autonomia entre si, firmadas a partir de suas características específicas e fundamentais para a legitimação dos dois campos como ciências – que exige, naturalmente, a definição de objeto e métodos próprios. Porém, é precipitado fazer uma dissociação integral entre tais saberes. Ambos são dinâmicos, pois estão em constante evolução e utilizam múltiplos procedimentos de investigação e narrativas (no caso do jornalismo, inerentes aos gêneros informativo, interpretativo e opinativo; e da História, inspiradas ou não na literatura). Ultrapassam modelos simplistas, de filiação funcionalista e estruturalista. A despeito da busca pela legitimação dos campos, interagem com outras disciplinas e práticas sócio-discursivas como sociologia, ciência política e antropologia – para seu enriquecimento e superação das limitações inerentes à especialização. Aproximam-se na medida em que surgem estudos históricos sobre o tempo presente, fatos imediatos, e projetos jornalísticos voltados à cobertura de processos históricos e que primam pelo uso da História como contexto, por exemplo”. Ver melhor em Mônica CELESTINO. Fronteiras entre Jornalismo e História: por uma reflexão sobre as relações entre dois campos em evolução. In: Anais do VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, 2009. São Paulo: Universidade de São Paulo, Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, 25-28 nov. 2009. 37 ção e hierarquização das notícias e os elementos constituintes da cultura organizacional, determinantes do agendamento e enquadramento da cobertura, podem nortear o uso da imprensa como fonte pelo historiador, elevando-a a condição similar a de demais fontes. O êxito dessa empreitada depende, principalmente, do método empregado pelo pesquisador e das ponderações que se faça a partir desse uso. Um dos primeiros desafios, portanto, é definir esse método, porque são escassas as reflexões teóricas e metodológicas aprofundadas sobre o uso de periódicos em pesquisas históricas. Entre as parcas proposições, está a apresentada pela historiadora Laura Maciel66, que toma a imprensa como espaço privilegiado para construção de sentidos para o presente a partir do passado, e infere sobre critérios para seu uso como fonte histórica: O esforço da análise histórica passa [...] pelo desvendamento dos mecanismos e operações que, na conjuntura estudada, permitem ao texto jornalístico construir uma memória social hegemônica que ‘aprisiona’ a explicação do presente a partir de seus argumentos e interpretações, obscurecendo a correlação de forças sociais nas quais esse texto é forjado. Como pesquisadores, nosso esforço seria buscar o que orientou e quais os caminhos percorridos para a criação da veracidade no texto jornalístico e todos os recursos de linguagem e estilo de redação que procuram apresentar o relato do acontecimento ‘tal como ele teria ocorrido’ e, de preferência, por quem o testemunhou [apesar dos vários crivos e filtros interpostos entre repórter e leitor], como se os fatos fluíssem naturalmente para as páginas dos jornais que só os distribuiria e organizaria por assunto, local etc. Em consonância com Maciel, Carla Luciana Silva67 defende a consulta a impressos pelos historiadores, argumentando que existem padrões de manipulação capazes de interferir no conteúdo e na forma dos veículos – são eles: ocultação, fruto do silenciamento militante; a fragmentação, relacionada à ausência de causas, consequências e condições de ocorrência; a inversão da relevância dos fatos relatados, das fontes empregadas, do conteúdo, ao reordenar ou substituir informações, tratar versões como “verdade absoluta” e apresentar opinião como informação; e a indução, fazendo com que o leitor passe a ver o mundo como eles próprios desejam. Aqui, partindo do pressuposto de que cada periódico estabelece laços sociais, políti66 Laura Antunes MACIEL. Produzindo Notícias e Histórias: algumas questões em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880-1920. In: Dé R. FENELON; Laura A. MACIEL et al. (Org.) Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d´Água, 2004, p.19. 67 Carla Luciana SILVA. Estudando a Imprensa para Produzir História. In: Anais do II Simpósio Lutas Sociais na América Latina. Londrina: Grupo de Estudos de Políticas da América Latina da Universidade Estadual de Londrina, set. 2006. Disponível em: <http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/segundosimposio /carlalucianasilva.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2011. 38 cos e empresariais, em consonância com seus interesses políticos e econômicos, que são determinantes na formação da sua visão de mundo, na definição do seu projeto político-editorial e na sua atuação cotidiana para a (re)construção dos fatos, e dos interesses das limitações pessoais do jornalista, utiliza-se a imprensa considerando estas especificidades e o contexto em que estava inserido à época das coberturas estudadas, na tentativa de apreender eventuais tensões daquele processo de produção. Em concomitância, consulta-se fontes orais, que, por natureza, apresentam deficiências relacionadas sobretudo à limitação da memória e aos interesses pessoais e às motivações para concessão de informações ao pesquisador. Decerto, os depoentes esquecem, omitem deliberadamente, atenuam, realçam e/ou acrescentam dados ao passado vivenciado por ele e buscam validar e legitimar sua narrativa. Em geral, eles (re)constroem os fatos, a partir da sua experiência e dos seus desejos, sonhos, interesses, valores, das suas redes de sociabilidade e formas de interação, do contexto em que está inserido, de maneira em que real e ficcional coexistem no discurso, assim como fazem outros atores sociais ao elaborarem documentos manuscritos e impressos, por exemplo. Em Memória e Sociedade: lembranças de velhos, Ecléa Bosi68 alerta que a memória coletiva desenvolve-se a partir da convivência e, ao longo do tempo, os indivíduos acrescentam, excluem, unificam, distinguem, lembram-se ou esquecem-se dos fatos, portanto, podem reter apenas aspectos significativos para ele, e só para ele, independentemente do acervo comum ao grupo. Por conseguinte, eles constroem um discurso, uma versão própria para os fatos vivenciados. Sobre essa questão, afirma Monique Augras, em História Oral e Subjetividade: É preciso assumir: nenhum depoimento pode ser considerado como rigorosamente fiel a tão sonhada ‘verdade dos fatos’. Pois todo testemunho é, antes de mais nada, autobiográfico. Implica a rearrumação de várias lembranças. Provoca um trabalho de construção, que transforma longínquas reminiscências em um discurso organizado e razoavelmente lógico. A partir do momento em que a pessoa foi convidada a dar seu depoimento, ela repensa o assunto e, aos poucos, vai elaborando o seu discurso [...] O informante não fornece dados, ele nos fornece um discurso69. Uma pessoa depõe porque deseja ser valorizada diante do seu grupo e/ou defender 68 Ecléa BOSI. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 408411. 69 Monique AUGRAS. História Oral e Subjetividade. In: Olga de M. Von SIMSON (Org.). Os Desafios Contemporâneos da História Oral – 1996. Campinas: Área de Publicações CMU; Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 28, 32. 39 uma posição através da exposição legitimadora do estudo de caráter científico e projeta seu discurso em consonância com seus objetivos, a imagem que faz do seu interlocutor e o aparato tecnológico usado para registro da sua história de vida ou descrição e análise do acontecimento. Contudo, uma mesma fonte comporta-se de forma diversa em uma conversa informal com a vizinhança, uma entrevista ao jornalista ou um depoimento ao historiador, porque elabora o seu discurso a partir de seus propósitos, faz uma projeção do que imagina que o interlocutor gostaria de ouvir, e tende a ponderar mais se há documentação da fala por meio de gravação. Não obstante, a História, mais especificamente a História Nova70 (Nouvelle Histoire) – uma corrente inaugurada pela principal referência para os estudos da área no século XX, a Escola de Annales71 (França) –, utiliza-se de depoimentos por sua riqueza qualitativa e quantitativa, inclusive para suprir a carência e debilidade de documentos escritos sobre determinados assuntos, e ratificar ou de negar o conteúdo de outras fontes72. Sobre a relevância do informante em pesquisas históricas, Verena Alberti argumenta a favor do uso: “há verdades que são gravadas nas memórias das pessoas mais velhas e em mais nenhum lugar; eventos do pas70 Com raízes fincadas nos séculos XVIII e XIX, mas sedimentada apenas entre as décadas de 1920 e 1930, como alternativa a processos que já não atendiam às demandas multi e interdisciplinares impingidas à História, a História Nova (Nouvelle Histoire) tem como um dos seus elementos basilares a própria noção de História, substituindo a abordagem pontual de um aspecto dos acontecimentos pela exploração holística, com busca de causas e consequências, atenuando os riscos do historiador tornar-se simplista e superficial e possibilitando a problematização dos fatos, diferentemente da análise do factual ou do reprocessamento de textos. Reativa à perspectiva positivista, substitui a narrativa dos acontecimentos pela análise das estruturas, do fenômeno em "longa duração", dos movimentos lentos dos atores sociais, e o estudo de épocas pela pesquisa sobre estruturas particulares. A História Nova propicia o estudo de novos temas (considera elementos como ambiente, clima, ideias, hábitos) e o emprego de novos tipos de fontes, além da aproximação com outras ciências sociais como a Antropologia e a Geografia, sob a pretensão de fazer uma “História total”. É holística, profunda, contextualizada, problematizante e explicativa, capaz de orientar o público quanto aos motivos e as causas dos acontecimentos. Tem potencial para esclarecer e subsidiar a compreensão dos acontecimentos, sem impor uma posição, desempenhando assim seu papel social. A revelia do aporte destas perspectivas para o avanço da disciplina, sobretudo pela sedimentação do contexto relacional como elemento constituinte do objeto de pesquisa, as ciências sociais contribuíram para o despertar de uma nova crise quanto à investigação e narrativa na História, com foco no indivíduo como agente histórico. Nos anos 1970, na esteira de debates vibrantes em ciências-irmã como a Antropologia, tais modelos apresentaram sinais de saturação. Como em outrora, explodiram várias propostas de temas, narrativas, métodos, técnicas, simultaneamente, muitas das quais sob influência de outras ciências (como a própria Antropologia) e da literatura. Umas são inovadoras; outras, apenas fazem releituras de práticas já utilizadas. Jacques LE GOFF (Dir.). A História Nova. Trad. Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988; Ronaldo VAINFAS. História das Mentalidades e História Culturais. Op. cit. 71 A Escola de Annales, na França de 1929, desencadeou um movimento pela interdisciplinaridade na historiografia, em contraposição à História baseada predominantemente em acontecimentos políticos. Pregava-se a interação entre aspectos políticos, sociais e culturais, através da relação entre ciências (Sociologia, Filosofia, Psicologia etc.), artes e literatura. Os historiadores deste movimento consideravam a biografia histórica como um gênero menor susceptível de reprodução de lugares-comuns, porém Lucien Febvre, um dos pioneiros de Annales, é autor de um estudo sobre Martinho Lutero, um marco do gênero biografia histórica que reúne elementos da psicologia, da História das religiões e da História social para fazer uma discussão temática a partir da trajetória da personagem. VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Culturais. Op. cit. 72 Ver em Marieta de Morais FERREIRA; Janaína AMADO (Org.). Usos & Abusos da História Oral. 8. ed. 1. reimp. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. 40 sado que só eles podem explicar-nos, vistas sumidas que só eles podem lembrar”73. Para minimizar as desvantagens, o rigor científico do pesquisador deve perpassar a seleção, coleta e instrumentalização do material, procedimentos, por si, realizados sob forte influência do contexto de sua produção (por quem, quando, como, onde)74. Acredita-se que a legitimidade das informações decorra dos procedimentos do historiador, das suas experiências e dos seus objetivos e, também, da fonte em si75. Sobre isso, Carr76 sintetiza: “naturalmente, os fatos e os documentos são essenciais ao historiador. Mas que não se tornem fetiches. Eles por si mesmos não constituem a História”. Do ponto de vista metodológico, a consulta a fontes orais77 pode ser feita individual ou coletivamente. Se individual, como é mais comum em investigações históricas, pode ser Estruturada (aplicação de questionário direta ou indiretamente pelo pesquisador, a partir de um roteiro com questões previamente formuladas, sem liberdade para alteração dos tópicos e nem inclusão de novos aspectos); Semiestruturada (diálogo com alternância de questões abertas e fechadas, elaboradas para que a fonte discorra sobre um tema, sem suposição de resposta ou condições pré-estabelecidas pelo pesquisador, realizado com o intuito de se obter dados que possam ser utilizados em análise quantitativa e qualitativa para solucionar um problema da pesquisa); ou Não-estruturada ou aberta (conversa em que o pesquisador tem autonomia para a formulação de perguntas). É possível, nesse último caso, aplicar três técnicas diferentes. A primeira é a História de Vida, entrevista prolongada para coleta de dados sobre as experiências de uma pessoa, um grupo ou uma organização e, especialmente, sua interpretação dos fatos relatados. Outra é a Narrativa, entrevista breve para a coleta de dados sobre a vivência de um sujeito, visando a compreensão e interpretação do objeto em estudo. E a terceira, denominada de História Oral, destaca-se no campo da História e consiste no registro da memória biográfica ou social através da coleta de depoimentos, para compreensão da experiência individual ou de um grupo, com ênfase em fatos específicos vivenciados pela fonte na condição de ator ou testemunha. Desde as últimas décadas do século passado, registra-se um incremento do uso de fontes orais para elaboração da historiografia, decorrente da aceitação de um dos princípios da 73 Verena ALBERTI. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. Jacques LE GOFF (Dir.). A História Nova. Op. cit. p. 54. 75 Id. Ibid. 76 E. H. CARR. O Historiador e Seus Fatos. In: Que é História? Trad. Lúcia de Alverga. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.20. 77 Aidil de J. Paes de BARROS; Neide Aparecida LEHFELD. Projeto de Pesquisa – propostas metodológicas. Petrópolis: Vozes, 2001; Antônio Carlos GIL. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. 74 41 nova concepção de História inaugurada no bojo das inovações de Annales – a ampliação da noção de documento histórico (antes restrita ao texto escrito ligado ao objeto, predominantemente de caráter oficial) contemplando como tal, por exemplo, fotografias, pinturas, produtos de escavações arqueológicas e até registros orais de pessoas anônimas. Uma dos principais nomes da Escola francesa, Jaques Le Goff78, na obra A História Nova, afirma que a História Nova faz uma “revolução documental”, com o uso de estatísticas, gráficos, filmes, fósseis, ferramentas e ex-votos como documentos de primeira ordem, a despeito da relação ambígua que mantém com a História. Sob influência de outras ciências sociais, a História tem revisado suas técnicas e seus métodos, admitindo a utilização de documentação relacionada aos campos social, cultural e econômico (à vida de anônimos, às atividades produtivas, às formas de crer e consumir etc.) e de origem diversa (oral, estatística, iconográfica, cinematográfica, arqueológica, artística etc.), tornando-se massiva e capaz de revelar as características de estruturas sociais a partir das permanências verificadas no “tempo longo”. Na esteira da diversificação do material empírico, o historiador passa a valorizar a memória coletiva no processo de apuração para entendimento, ao menos, das representações dos fatos, ciente de que os indivíduos lidam com um mesmo fato de formas diversas. Acredita-se que a subjetividade é inerente à natureza destas fontes e ao próprio processo de apropriação do acervo pelo pesquisador. Afinal, as artes e as ciências, sobretudo no século XX, romperam com a proposição de transposição do real para telas, filmes, livros, enfim, suportes diversos, admitindo fazer uma representação subjetiva do real por meio da narrativa, assim como a própria História o faz. Até a documentação escrita é impregnada de subjetividade dos seus autores. O jornalista e historiador Italo Arnaldo Tronca79 defende que ela é uma fonte precária: A obsessão pelo documento não leva em conta, em muitos casos, o óbvio, ou seja, que os tais documentos também são produções subjetivas de seus autores, sejam documentos oficiais, sejam diários íntimos. Nesse sentido, são representações daquilo que chamamos de realidade. Portanto, existe na escrita da História, necessariamente, um caráter ‘ficcional’ que marca qualquer narrativa historiográfica, o que não significa simulacro ou falsificação. São apenas manifestações do alcance e do limite do potencial humano. 78 Jacques LE GOFF (Dir.). A História Nova. Op. cit. p. 28-29. Italo Arnaldo TRONCA. Jornalismo e História: entrevista com Italo Tronca. In: Jardel CAVALCANTI. Digestivo Cultural. Campinas: [s.e.], 12 mai. 2003. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com /colunistas/coluna.asp?codigo=1060>. Acesso em: 25 jul. 2008. 79 42 Ainda assim, o documento tem papel fundamental no fazer histórico por seu pacto com o real, diferente de peças artísticas. Tronca80 classifica como um “equívoco”, por exemplo, considerar uma obra artística, de valor estético, como documento histórico, na medida em que ela não tem o compromisso fundador da História e do Jornalismo com a verossimilhança. As artes comprometem-se com “verdades” possíveis (no plural), que apesar de plausíveis não necessariamente ocorreram; e fazem uma representação poética, muitas vezes alegórica, dos fatos, das personagens, dos discursos, do mundo. Portanto, são polissêmicas e descortinam múltiplos sentidos a respeito de um objeto, distanciando-se de disciplinas que pleiteiam status de ciência baseada na oferta de apenas uma assertiva sobre o evento (embora se saiba que toda assertiva é representacional e, por conseguinte, questionável, por ser manifestada por meio da linguagem, que, na essência, é simbólica). A despeito das críticas, a ampliação da noção de documento facultou a agentes subalternos, comumente chamados como “de baixo” e, em geral, alijados do processo de elaboração de documentos, a participação na pesquisa histórica como atores coadjuvantes ou secundários ou até mesmo testemunhas dos fatos, abrandando a antiga dependência de depoimentos dos líderes, dos atores principais, conforme Phillipe Joutard81. Desde o início, a Escola de Annales incentivou a “História dirigida”, fundamentada em enquetes82. Sobre isso, Joutard83 afirma: Não se pode esquecer que, mesmo no caso daqueles que dominam perfeitamente a escrita e nos deixam memórias ou cartas, o oral nos revela o ‘indescritível’, toda uma série de realidades que raramente aparecem nos documentos escritos, seja porque são considerados ´muito insignificantes´ – é o mundo da cotidianidade – ou ‘inconfessáveis’, ou porque são impossíveis de transmitir pela escrita. É através do oral que se pode apreender com mais clareza as verdadeiras razões de uma decisão; [...] que se penetra no mundo do imaginário e do simbólico, que tanto motor e criador da História quanto o universo racional [...] Mas devemos, em contrapartida, reconhecer seus limites e aquilo que seus detratores chamam de fraquezas, que são fraquezas da própria memória, sua formidável capacidade de esquecer, que pode variar em função do tempo presente, suas deformações e seus equívocos, sua tendência para a lenda e o mito. 80 Italo Arnaldo TRONCA. Jornalismo e História: entrevista com Italo Tronca. Op. cit. Phellipe JOUTARD. História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: Marieta de Moraes FERREIRA; Janaína AMADO (Org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000. 82 Jacques LE GOFF (Dir.). A História Nova. Op. cit. p. 28-29, 35. 83 Phellipe JOUTARD. História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. Op. cit. p. 3334. 81 43 Declarações resultam da memória do depoente, que lembra, esquece, ressalta e negligencia; e lembrança, esquecimento, enquadramento, revelação por verbalização ou metalinguagem (gestos, tom de voz, vestimenta etc.) e omissão de fatos pelas fontes são constitutivos do discurso histórico sobre a realidade84 e podem tanto definir o curso de uma análise quanto facilitar ou limitar ou impedir o seu aprofundamento. Por isso, a Escola de Annales defende que o valor documental do depoimento decorre do êxito da análise do tempo e meio onde ele foi produzido pelo informante e processado pelo pesquisador e, também, da fonte em si, das suas experiências e dos seus objetivos85, assim como ocorre com outros documentos. Para atenuar as limitações das fontes e condições de produção adversas, procedimentos com base científica devem nortear os estudos históricos e orientam esta tese. Preconiza-se que o historiador pondere a partir da ambiência do local da entrevista, da comunicação corporal do entrevistado e do contexto em que o sujeito está inserido na tentativa de aproximar do real. Joutard recomenda: “são necessários o tratamento crítico e a distância não só para sinalizar as distorções em relação à realidade passada, mas também para interpretá-la. Como interpretar o silêncio e o esquecimento? Para nos ajudar, é indispensável a análise da totalidade do documento: hesitações, silêncios, lapsos...”86. Também, tornam-se relevantes a seleção das fontes e o ritual de preparação e coleta do depoimento em si. Em geral, preza-se pela relação de proximidade do depoente com o objeto de estudo (precisão), sua potencialidade (validez) e confiabilidade. As fontes orais são atores ou testemunhas87, selecionadas de acordo com sua relação de proximidade com o objeto (precisão), sua potencialidade (validez) e confiabilidade. O historiador planeja, faz anotações em caderno de campo, grava informações acerca da ambiência da entrevista como as eventuais interrupções, e tenta estabelecer o diálogo, mas evitando cortes nos pronunciamentos do entrevistado. O pesquisador utiliza a gravação e a decupagem dos depoimentos na íntegra e como documento; submete as declarações recolhidas em área privada à autorização de uso pelos depoentes; faz catalogação e arquivo do material coletado em instituição reconhecida. E Joutard88 completa: 84 Clarice G. ESPERANÇA. Encontros e Desencontros entre História e Jornalismo: uma reflexão sobre a entrevista. In: IV Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, 2006. Porto Alegre: Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; São Paulo: Associação Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo, nov. 2006. 85 Jacques LE GOFF (Dir.). A História Nova. Op. cit. p. 54. 86 Phellipe JOUTARD. História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. Op. cit. p. 35. 87 Id. Ibid. 88 Id. Ibid., p. 35. 44 Assinalemos [...] o interesse da gravação em vídeo, que permite capturar também gestos e expressões. Inútil dizer, estamos todos convencidos de que o documento original é a gravação e que a transcrição não passa de acessório, não podendo substituir a audição de fitas gravadas ou, ainda melhor, a visão de videotaipes. [...] É preciso combinar respeito e escuta atenta, de um lado, com procedimentos históricos, não importa quanto isto nos seja penoso. Assim, prima-se pelo rigor científico: o objeto em si, os objetivos e as fontes disponíveis sobre os fatos, assumidamente, determinam a metodologia a ser adotada e, por conseguinte, o discurso acerca do acontecimento histórico, embora variáveis referentes ao lugar de desenvolvimento do estudo interfiram diretamente na condução do trabalho, a exemplo das linhas de pesquisa, da disponibilidade de orientadores para jovens pesquisadores em universidades – que, no Brasil, respondem pela maior parte da produção científica do campo – e das próprias condições materiais das instituições dedicadas à atividade. Há, em certa medida, autonomia para o historiador. No caso desta tese, além de responder a questões não-contempladas pelas demais fontes, as fontes orais atenuam os efeitos da dispersão, das más-condições de manuseio de parte do material e da falta de sistematização dos acervos de e sobre Cosme de Farias e se tornaram mais opção de confronto das informações obtidas na investigação. A seleção dos depoentes e os procedimentos de abordagem foram definidos com base na relação do entrevistado com o objeto e na acessibilidade. Da lista inicial formulada na fase de elaboração do projeto de pesquisa, alguns foram suprimidos por terem morrido ou adoecido antes da consulta, por apresentarem resistência em conceder a entrevista e, principalmente, pelo caráter reiterativo das informações. Entre os consultados, destacaram-se o apreço pela personagem e a repetição de “causos” sobre ele, em geral, ligados ao seu bom humor e à conduta no júri. Na fase de investigação, foram realizadas entrevistas do tipo não-estruturada, que concede autonomia ao pesquisador para formulação de perguntas e permite o diálogo, a interação com o depoente. Adotaram-se técnicas da História Oral. A utilização das informações deu-se à luz do contexto histórico e das relações da fonte com o objeto de estudo, observandose ainda as circunstâncias da coleta (omissão, gestual, tom de voz, local escolhido para entrevista, receptividade etc.), o desejo de omitir/acrescentar/atenuar/ressaltar determinado aspecto, e as eventuais falhas de memória em decorrência do hiato temporal entre os fatos e os dias de hoje, anotadas no caderno de campo. Uma das maiores preocupações foi assegurar a maior precisão dos relatos, décadas após a ocorrência dos fatos, estimulando a lembrança dos depoentes com a menção de episó- 45 dios relatados em periódicos ou na bibliografia, de maneira a evidenciar certo conhecimento do investigador quanto ao assunto e inibir a fantasia deliberada, e permitindo que eles falassem à vontade, como forma de flagrar eventuais incongruências. Outro ponto importante é o confronto de versões, para garantir a validade do estudo. A legitimação deriva tanto das características dos depoentes consultados e dos métodos e das técnicas adotadas pelo pesquisador quanto da menção do conteúdo por outras fontes, inclusive em outros depoimentos. Os dados coletados na pesquisa documental, na pesquisa em periódicos e nas entrevistas sobre Cosme, o espaço e o tempo em que ele atuou e temas afins – como o assistencialismo em Salvador, as práticas de caridade do biografado (como se configurava, quais serviços eram prestados, quem prestava e quem financiava esses serviços, como era a recepção do público) e a História da Imprensa na cidade (quais temas eram agendados, como se caracterizavam os textos, os veículos/jornalistas mantinham atividades sociais/assistenciais fora do expediente, os veículos/jornalistas participavam de manifestações sociais e políticas) – são confrontados e cotejados com a bibliografia relacionada ao objeto de estudos, considerando as hipóteses e as condições das fontes e de produção da pesquisa. Em outras palavras, nesta última fase, organizam-se os indícios do passado amealhados no decorrer do processo de investigação e formulação de conceitos novos – ou seja, unidades de significação que definem o conteúdo e a forma de uma teoria –, por meio da associação entre as “descobertas” e o conhecimento estabelecido anteriormente em outros trabalhos científicos e técnicos do campo, cujos títulos estão elencados no item Referências desse volume. Com este procedimento, minimiza-se os efeitos do tratamento idílico, quase folclórico e passional conferido ao biografado pelas fontes. OS DOIS MÉTODOS PARA APRECIAÇÃO Com a intenção de atenuar os efeitos das limitações das fontes e asseverar o aprofundamento da análise do material, visando a construção de uma tese acerca da personagem que ilumine aspectos da sociedade do seu tempo, combina-se os métodos da análise de conteúdo (AC) e análise de discurso (AD), muitas vezes, alterando um e outro de acordo com o propósito de cada etapa do trabalho e da natureza do material disponível. A ideia é extrair das fontes uma gama de informações que subsidie a resolução do problema de pesquisa e a confirmação e/ou negação das hipóteses levantadas na fase exploratória. 46 Para estudo dos textos de autoria de Cosme de Farias publicados nos periódicos elencados na amostragem e no livro Lama e & Sangue, faz-se necessária a análise de conteúdo89. Trata-se de um método de interpretação e análise de informações, concatenadas em textos diversos (manuscritos, impressos, orais, visuais, audiovisuais) e transmitidas em interfaces diferentes (o papel utilizado pela imprensa; a voz da própria pessoa; placas acrílicas ou metálicas; telas de TV, telefones celulares, computadores e similares etc.) e recolhidas por meio da aplicação de técnicas científicas de coleta. O foco da AC é a mensagem, independentemente da natureza (visual, verbal, escrita)90. O método, conforme Heloísa Herscovitz91, propicia a identificação do conteúdo e da expressão do conteúdo de produtos midiáticos, a partir da sua adequação em categorias previamente testadas, exclusivas e passíveis de replicação, além de permitir a descrição quantitativa e qualitativa de matérias (notícias, reportagens, artigos, críticas, editoriais etc.), a identificação de temas, gêneros e fontes e, ainda, comparações destes aspectos nos jornais pesquisados. Portanto, a AC serve aos estudos históricos como este e permite a construção de hipóteses sobre o conteúdo estudado e a inferência sobre a intenção do texto. Martin Bauer92, por sua vez, destaca que a AC possibilita a reconstrução de representações nas dimensões sintática e semântica. A partir da ocorrência e frequência de uma palavra incomum, do ponto de vista sintático, seria possível identificar o autor do material analisado ou o público; e, a partir do registro de termos com sentidos conotativo e denotativo, por exemplo, se poderia levantar temas, juízos de valor, visões de mundo, subsidiando o delineamento de perfis e biografias, como a do Major Cosme. A AC concede autonomia ao pesquisador para definição das suas estratégias de pesquisa. Entre as opções, está a adoção de um sistema aberto voltado à identificação de tendências e padrões de mudança, como ocorre nesta tese. Já no início do século XX, Harold Lasswell delineava-o como um novo método de descrição objetivo, sistemática e eficaz para identificação do conteúdo manifesto da comuni89 Os estudos sobre análise de conteúdo tiveram as suas primeiras publicações nos anos de 1950 e o modelo passou por frequentes atualizações até os anos de 1970, quando se tornaram mais firmes novas formas de entendimento da mensagem midiática. Em seguida, voltou a ser um instrumento muito utilizado por profissionais das áreas de comunicação que almejam uma melhor compreensão sobre a produção e o consumo da informação. 90 Maria Cecília MINAYO. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Abrasco, 2007, p. 64. 91 Heloiza HERSCOVITZ. Análise de conteúdo em jornalismo. In: Cláudia LAGO; Marcia BENETTI (Org.). Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. 92 Martin W. BAUER. Análise de Conteúdo Clássica: uma revisão. In: Martin W. BAUER; George GASKELL. Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som – um manual prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 189221. 47 cação em determinado lugar e espaço. Uma das principais virtudes da AC é a possibilidade de manuseio e análise quantitativa e quantitativa de um vasto material. As técnicas de análise prevêem uma “contagem de freqüências do conteúdo manifesto e, respectivamente, uma avaliação do conteúdo latente a partir do sentido geral dos textos, do contexto onde aparecem nos meios que os veiculam e/ou dos públicos aos quais se destinam” 93. Outra característica intrínseca ao método é a oferta ao pesquisador de inúmeros artifícios para a compreensão efetiva do material estudado. Herscovitz94, por exemplo, destaca tanto a possibilidade de identificação de características físicas, tipificação, temáticas e estrutura dos veículos jornalísticos analisados quanto de levantamento dos possíveis critérios de noticiabilidade, agendamento95 e enquadramento96 empregados por eles no processo produtivo. Uma das maiores entusiastas da AC, Laurence Bardin97 afirma que este é o único método aplicável a estudos de produção comunicacional para descrição do conteúdo da mensagem, quantitativa ou qualitativa, possibilitando o entendimento na perspectiva tanto da construção quanto dos efeitos causados ao receptor. Cabe ao pesquisador definir o modo de aplicação da AC, de acordo com os objetivos da pesquisa que desenvolve. Se a ênfase for a identificação da presença ou ausência de um dado tema na amostra, realiza-se a análise quantitativa, com a contagem e o cálculo percentual que permitam a classificação e interpretação de aspectos de significação constituintes da mensagem. Se for avaliar os conteúdos explícitos e até implícitos e/ou a que público se destina, faz-se a análise qualitativa com observação de aspectos relacionados ao contexto, à construção do texto e à reação do público, baseada em critérios conceituais no campo em que o 93 Heloiza G. HERSCOVITZ. Análise de Conteúdo em Jornalismo: uma receita para sair do gueto metodológico. In: Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; São Paulo: Associação Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo, 2005. CD, p. 4. 94 Heloiza HERSCOVITZ. Análise de Conteúdo em Jornalismo. Op. cit. 2007, p.124. 95 Agendamento (agenda-setting) diz respeito à reação do público quanto a acontecimento e a influência dele sobre o conteúdo veiculado pelos meios de comunicação. Essa teoria volta-se para a identificação dos textos, que fazem parte da agenda pública, ou seja, se um determinado assunto tem um bom índice de audiência, isso significa que é um conteúdo em pauta nas discussões populares e por conseguinte voltará a ser noticiado. Mauro WOLF. Teorias da Comunicação – mass media: contextos e paradigmas, novas tendências, efeitos a longo prazo, o newsmaking. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 144. 96 Teoria do Enquadramento é um método que permite identificar as influências exercidas sobre a consciência humana, a partir da transformação de uma informação, ou seja, após a seleção dos aspectos que são considerados como realidade pela mídia, a estes são dados uma grande relevância no texto informativo. Leandro COLLING. A economia do Jornal Nacional nas eleições de 1998. Diálogos Possíveis. Ano 1, nº 0. Salvador: Faculdade Social da Bahia. jul-dez. 2002; Jorge Pedro SOUSA. As Notícias e seus Efeitos – as ‘teorias’ do jornalismo e dos efeitos sociais dos media jornalísticos. Beira Interior: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2002. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=sousa-pedro-jorge-noticias-efeitos.html>. Acesso em: 28 fev. 2002; Mauro WOLF. Teorias da Comunicação – mass media: contextos e paradigmas, novas tendências, efeitos a longo prazo, o newsmaking. Op. cit. 97 Laurence BARDIN. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997 apud Aidil de J. P. de BARROS; Neide A. de S. LEHFELD. Op. cit. 48 objeto de estudos está situado98. Sobre isso, Minayo 99 afirma: A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se ocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. Esse viés qualitativo predomina nesta tese pela maior adequação dessa vertente aos propósitos deste trabalho, cujas especificidades do objeto de estudos – Cosme de Farias – teriam difícil quantificação, mas a argumentação, também, sustenta-se em dados quantitativos. Neste caso, opera-se com um complexo conjunto de valores, crenças, ideias, posturas, atitudes, motivações, aspirações de um sujeito que emergiu dos estratos “de baixo” da Cidade da Bahia – por vezes, manifestos explicitamente nos textos do livro e dos periódicos analisados e, em outras, apenas implícitos –, tornando impossível quantificar tais elementos por sua natureza subjetiva. Outro ponto positivo é que a análise de conteúdo pode ser empregada em estudos exploratórios, descritivos ou explanatórios, exigindo-se apenas que o pesquisador paute o trabalho sempre pelo objeto de estudos e o contexto em que ele está inserido; pela amostragem; pelas delimitações e pelos objetivos das inferências da pesquisa. Nesse sentido, aplica-se a esta tese, uma biografia histórica de caráter explanatório de Cosme de Farias, com ênfase na sua inserção na imprensa e na interface entre isto e suas obras de caridade. A AC requer a formulação de indagações dedutivas (para teste da veracidade da teoria) ou indutivas (voltadas ao desenvolvimento da teoria como base de análise para pesquisas anteriores) sobre o objeto de investigação; e a definição das unidades de registro (ou seja, de significação, a exemplo de palavras, frases, parágrafos, imagens ou sons) e das unidades de contexto, a serem enfocadas visando a confirmação ou negação das hipóteses100. Como há uma escassez de bibliografia específica acerca de Cosme e a proposta é fazer uma abordagem inédita da personagem, a tese pauta-se em indagações dedutivas, que devem ser respondidas a partir da leitura, interpretação e reflexão da amostragem determinada 98 Heloiza HERSCOVITZ. Análise de Conteúdo em Jornalismo. Op. cit.; Laurence BARDIN. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997 apud Aidil de J. P. de BARROS; Neide. A. de S. LEHFELD. Projeto de Pesquisa: propostas metodológicas. Op. cit. 99 Maria Cecília MINAYO. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Op. cit. p. 21. 100 Heloiza HERSCOVITZ. Análise de Conteúdo em Jornalismo. Op. cit. 2007, p. 129, 132. 49 por agrupamento, mediante seleção aleatória, dentro de lapsos temporais específicos, composta por textos de autoria de Cosme ou sobre ele publicados pelos jornais impressos A Noite e O Imparcial e pelo livro Lama & Sangue, escrito pelo próprio biografado. Tomam-se como unidades de registro os temas (alfabetização, escolarização e/ou profissionalização de pessoas; combate à carestia; defesa de melhores salários e condições de trabalho; doação de gêneros alimentícios, materiais escolares, medicamentos e outros produtos; defesa de réus perante a polícia e/ou à justiça; mediação da relação de pessoas de baixa renda ou sem renda com instituições públicas e privadas para obtenção de vagas em escolas, abrigos, hospitais e manicômios; elogios, críticas e homenagens a terceiros), as figuras de linguagem (metáfora, metonímia, ironia, alegoria etc.) e categorias morfológicas (sobretudo, adjetivos) utilizados por ele ou em referência a ele, determinados a partir de uma pesquisa exploratória na amostragem, considerando-se a recorrência no material analisado e sua relevância para o perfilado. Já as unidades de contexto são as edições completas dos jornais nos quais estava a amostra. A análise perpassa pela compreensão da mensagem a partir de elementos como uma classe gramatical diretamente relacionada às ações dos sujeitos, ao fato ou a uma série de fatos noticiáveis e reveladora da abordagem de um tema a partir do seu significado; o sujeito ativo das ações e dos projetos relatados, considerando-se que uma pessoa (a depender da posição social, política, econômica e no cenário cultural, entre outros fatores) pode determinar a seleção de uma matéria para publicação e o viés de uma cobertura; e as pessoas e instituições mencionadas, pressupondo-se que elas possam sinalizar as redes de sociabilidade nas quais o jornalista estava inserido, suas táticas de atuação, suas intenções. O material produzido por Cosme de Farias e sobre ele é analisado nesta tese, em concomitância, de acordo com a análise do discurso (AD), um método101 que permite a compreensão da realidade social, por meio do estudo do discurso e das dimensões relacionadas a ele e que lhe constituem (como aspectos psicológicos e sociológicos e o referencial cultural dos comunicantes, o contexto da comunicação, o canal e o código empregados). A AD considera que o discurso se organiza e estabelece a partir da mobilização de sentidos/conceitos diversos, assim como da experiência, da ideologia, da intenção, do desejo inconsciente dos sujeitos envolvidos no processo de comunicação e do código (língua) utilizado e da história. 101 Carla B. FRASSON. Análise do Discurso: considerações básicas. Cadernos da Fucamp. Vol. 6. Monte Carmelo: Fundação Carmelitana Mário Palmério, jan-dez. 2007. Disponível em: <http://www.fucamp.com.br /nova/revista/revista0612.pdf>. Acesso em: 6 mai. 2010; Eni ORLANDI. A Linguagem e seu Funcionamento – as formas do discurso. 2. ed. rev. e aum. Campinas: Pontes, 1987; Michel PÊCHEAUX. Semântica e Discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Universidade de Campinas, 1988. 50 Fundado há cerca de cinco décadas, pelo francês Michel Pêcheux102, a partir de contribuições diversas103, o método é aplicado por autores como os franceses Michel Foucault, Dominique Maingueneau, Patrick Charaudeau e, no Brasil, Eni Pulcinelli Orlandi, em campos diversos do conhecimento, entre os quais a História, o Jornalismo e as Ciências Sociais. Atualmente, ele tem sido empregado de formas diversas. A existência de mais de uma corrente permite análises com perspectivas também distintas104. Uma dessas vertentes prioriza o estudo de aspectos linguísticos, ou seja, dos mecanismos internos do discurso (palavras empregadas, organização dos termos, recursos adotados etc.), em detrimento das características dos comunicantes e do contexto de produção do discurso em foco. Outra busca compreender o discurso e a atuação dos comunicantes a partir do cenário social, cultural, político e econômico em que ocorre o processo comunicacional. Uma terceira, mais tradicional, enfoca a intenção e a produção dos comunicantes à luz das estruturas ideológicas dominantes. A quarta propõe a integração das dimensões linguísticas e situacionais – pois o primeiro interage com o segundo e este último determina o inicial –, porém exige mais tempo para dedicação à análise e domínio em múltiplas áreas do conhecimento (inclusive a linguística), tem aplicação mais recente e tem procedimentos e processos ainda pouco disseminados no Brasil. Nesta tese, optou-se pela terceira corrente como referencial a ser adotado no processo analítico, devido à maior afinidade das suas diretrizes com a proposta deste trabalho e à compatibilidade com as condições de pesquisa desta autora. Emprega-se, portanto, da AD, de matriz francesa105, disseminada no Brasil por pesquisadores como Eni Pulcinelli Orlandi. Ela 102 Ver Michel PÊCHEAUX. Semântica e Discurso. Op. cit. A análise do discurso associa elementos de quatro teorias diferentes: 1) Lógica, que estabelece a relação entre o enunciado e a referência norteada pelo valor de verdade, cujos principais representantes são autores como o alemão Gottlob Frege e Oswald Ducrot; 2) Teoria conversacional, do estadunidense H. Paul Grice, que foca a intenção dos comunicantes; 3) Pragmática, de autores como John Austin e John Roger Searle, que enfoca os “atos de fala” ou a ação entre sujeitos; e a Enunciação, de Émile Benveniste, que se debruça sobre a relação dos comunicantes com a língua. 104 Patrick CHARAUDEAU. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006; Eni ORLANDI. A Linguagem e seu Funcionamento. Op. cit.; Claudio Marques Martins NOGUEIRA. Considerações sobre o modelo de análise do discurso de Patrick Charaudeau. Revista Ensaio. Vol. 6, nº 1. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, jul. 2004; Deise S. RODRIGUES. A Teoria dos Atos de Fala como um Método para a Interpretação de Textos. Revista Litteris. Ano 3, nº 4. Rio de Janeiro: Editora Revista Litteris. Mar. 2010. Disponível em: <http://www.revistaliteris.com.br>. Acesso em: 6 mai. 2010. 105 A adoção do “discurso” como objeto de estudos foi proposta pelo filósofo francês Michel Pêcheux (19381983), na tese Analyse Automatique du Discours, defendida na França em 1969, passando a ser considerado o fundador da AD que concebe o discurso como efeito de sentidos e busca compreender como a linguagem materializa-se na ideologia e vice-versa. Atuante em um laboratório de psicologia social, o autor propunha uma reflexão das práticas das ciências humanas, consideradas por ele elitizadas e segregadas das demais ciências, e a articulação das ciências – sobretudo, da História, psicanálise e linguística – a partir de estudos do discurso. Eni ORLANDI. A Linguagem e seu Funcionamento. Op. cit. 103 51 oferece subsídios para a “atribuição de sentido(s) ao texto, procurando mostrar tanto a materialidade do sentido como os processos de constituição do sujeito, que instituem o funcionamento discursivo de qualquer texto”106, pressupondo então o exame do contexto da enunciação e do “lugar de fala” do enunciador. Pautada em conceitos como “formação discursiva” e “tipos de discurso”107, tal corrente possibilita a exploração de diversos significados do texto em si e o confronto com informações sobre seu autor, editor, leitor, à luz do contexto de produção. Ou seja, faculta a observação da organização interna e das relações externas que interferem na tessitura da narrativa, propiciando a compreensão do sentido histórico dos fatos relatados nas mensagens e dos atores envolvidos neles. Assim, os textos constituintes da amostra são considerados, simultaneamente, “objeto de significação” e “objeto de comunicação”. Nesse sentido, a análise do discurso, largamente difundida entre linguistas, aproxima-se da chamada História do Discurso. A despeito de não ter origem no campo da História, a AD pode subsidiar o historiador no ofício de investigar, relatar e buscar sentido para fenômenos do passado. Sua aplicação, aliás, é defendida por Barros108 como o método mais adequado à História, por tratar o texto como unidade complexa e multidimensional. O autor recomenda que o pesquisador debruce-se sobre aspectos internos da obra (as informações e a disposição delas, a constituição gramatical, a estrutura etc.), o relacionamento entre o objeto de análise e outros textos, e o contexto em que foi elaborado e envolveu-se109: Podemos dizer que a análise de um discurso deve contemplar simultaneamente três dimensões fundamentais: o intratexto, o intertexto, e o contexto. 106 Id. Ibid., p.13. Formação discursiva é aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição e/ou conjuntura estabelecida, determinada pelo estado de luta de classes, indica o que pode ser dito; lugar da constituição do sentido de um discurso. Os Tipos de Discurso são definidos a partir das condições de produção e podem ser lúdico-brincadeira, polêmico-discussão ou autoritário-ordem. Discurso lúdico é aquele que seu objeto se mantém presente, enquanto os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamamos de polissemia aberta. Discurso polêmico mantém a presença do seu objeto, mas os participantes não se expõem e procuram dominar o referente (dá uma direção, indica perspectivas particularizantes), resultando na polissemia controlada. Discurso autoritário é aquele que mantém o referente ‘ausente’, oculto pelo dizer, e não há interlocutores (mas um agente exclusivo), resultando na polissemia contida que pode (caso haja exagero) provocar a transformação do sujeito num instrumento de comando. Ver Eni ORLANDI. A Linguagem e seu Funcionamento. Op. cit. p. 130, 15-16. 108 José D’Assunção BARROS apud Maria Abadia CARDOSO. O Campo da História: especialidades e abordagens. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 2, Ano II, nº 3. Uberlândia: Revista de História e Estudos Culturais, jul.-set., 2005. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br>. Acessos em: 15 out. 2007 e 22 ago. 2008. 109 José D’Assunção BARROS apud Maria Abadia CARDOSO. O Campo da História: especialidades e abordagens. Op. cit. 107 52 O ‘intratexto’ corresponde aos aspectos internos de texto e implica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação, o ‘intertexto’ refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o ‘contexto’ corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e o envolve. Como preconiza a História do Discurso110, as narrativas – inclusive jornalísticas – devem ser consideradas pelo historiador como um objeto complexo de significação e de comunicação, a partir da sua organização interna e do contexto histórico-social em que ele está fincado, em uma análise que contemple três dimensões básicas – intratexto (aspectos internos do texto como objeto de significação), intertexto (relação de um texto com outros textos) e contexto (relação do texto com a realidade em que está inserido). Considera-se que o real é um significado não necessariamente formulado e relacionado a um referente (ou seja, a fatos, discursos que ocorreram) e a narrativa e a interação entre ela e o público, em certa medida, constituem a significação. Porém, embora plausível e viável, a aplicação da AD é uma árdua tarefa para o pesquisador. Afinal, a contextualização é dificultada porque o texto, muitas vezes, tem relação dialética, contraditória, com o leitor, o autor e o editor; um discurso está submetido a múltiplas determinantes (de natureza linguística, econômica, cultural, social, religiosa, política, temporal, espacial etc.); e a análise dos signos (imagens, palavras etc.) nem sempre permite a apreensão do contexto, na medida em que estes podem ser significados variados. De acordo com Carla Frasson111, é importante que sejam considerados os sujeitos, suas inscrições na história e as condições de produção da linguagem. Analisam-se [...] as relações estabelecidas entre a língua e os sujeitos que a empregam e as situações em que se desenvolvem o dizer. O analista do discurso busca, portanto, certas regularidades no uso da língua e sua relação com a exterioridade. Assim sendo, a associação da análise de conteúdo com a análise do discurso possibilita o cumprimento dos objetivos da tese. Ou seja, construir uma narrativa historiográfica que alinhava a descrição de fatos, processos e personagens às interpretações, à luz de teorias da História, das Ciências Sociais e do Jornalismo, em busca de possíveis explicações, culminando com a análise da interface da atuação do protagonista no jornalismo e em obras de caridade. Aqui, Carlo Ginzburg112 inspira a tentativa de apresentar aos leitores o processo de pes110 Maria Abadia CARDOSO. O Campo da História: especialidades e abordagens. Op. cit. p. 8. Carla B. FRASSON. Análise do Discurso: considerações básicas. Op. cit. 112 Carlo GINZBURG. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 111 53 quisa e suas lacunas, como mecanismo de possibilitar múltiplas leituras da narrativa, permitir uma eventual crítica ou reprodução da metodologia empregada e conferir maior credibilidade aos resultados apresentados. Seria possível – a exemplo do que fez Giovanni Levi, ao partir da vida do exorcista piemontês Giovan Battista Chiesa, para contar virtuosamente a vida social e econômica do pequeno povoado italiano Santena e analisar o campesinato no Antigo Regime, em A Herança Imaterial - Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII113 – fazer uma descrição empírica dos atores sociais e eventos, com base documental, e tecer, em seguida, a interpretação e contextualização a partir de hipóteses. Mas esta não é a intenção desta autora. Afora as características pessoais e profissionais de Cosme de Farias, abordam-se, por exemplo, a tessitura de redes sociais locais, os meios de ascensão social de mulatos (como o Major), a prática da caridade e a atuação da imprensa, em um cenário constituído, sobretudo, por um Estado centralizador – por vezes, autoritário, tomando-se como referências os regimes do Estado Novo (1937-1945) e militar (1964-1985) – e uma economia frágil, marcada pela produção de matéria-prima. Busca-se fazer um jogo de escalas capaz de fomentar problematizações de interesse universal e não, somente local ou regional, como se espera da biografia histórica de uma pessoa com trânsito circunscrito a apenas um dos Estados de um país, como Cosme de Farias. Ambiciona-se, portanto, que os resultados ultrapassem o simples registro e sistematização de relatos do Major e sobre ele, embora estas, por si, já sejam contribuições relevantes desse trabalho, pois atenuam os efeitos de certo esquecimento da personagem e da debilidade dos acervos com obras dele e sobre ele. Espera-se que o protagonista e os coadjuvantes da História, por meio dessa tese, contem algo representativo à sociedade, acalmem os eriçados e provoquem quem insiste na inércia. Como se fosse uma criança desafiada a montar um brinquedo do tipo quebracabeças, a pesquisadora identifica peças relacionadas ao jogo e trata de reuni-las, atribuindolhes sentido, significação histórica. Associa umas às outras e ao contexto, utilizando linguagem híbrida – ou seja, que assimila registros da História, do Jornalismo e até da Literatura, mas respeita a norma culta brasileira 113 114 –, pela garantia de inteligibilidade e prazer na leitura. Ver Giovanni LEVI. A Herança Imaterial - trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Prefácio de Jacques Revel. Trad. Cyntia Marques de Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 114 Mantém-se a grafia de documentos e fontes impressas como no original, sem atualizações. Os depoimentos coletados na pesquisa, entretanto, são transcritos nesse trabalho com uso de linguagem atualizada, de acordo com as normas da língua portuguesa atual, a exceção dos trechos cuja atualização compromete a inteligibilidade e a compreensão do conteúdo. Prefere-se a adoção da grafia mais atual de nomes de organizações – como Associa- 54 Age com a finalidade de comprovar ou negar as hipóteses acerca da personalidade, delineadas no começo do processo de investigação. Como no jogo infantil, a pesquisa requer táticas para resolução – ou, pelo menos, amenização – de problemas. No caso dessa tese, há que vencer o encantamento das fontes pela personagem, manifestado por juízo compreensível e condescendente, em detrimento do relato descomprometido dos fatos; a paixão da pesquisadora pelo objeto, que poderia comprometer a objetividade característica da atividade de pesquisa científica; a necessidade da autora de conciliar a pesquisa com a atividade profissional, inclusive para subsidiar os investimentos no estudo, e, contraditoriamente, de concluir o curso de doutorado da forma mais célere possível, sem comprometer a qualidade, visando a conquista de autonomia acadêmica e ascensão na carreira docente. Os primeiros contatos desta autora com o universo de Cosme de Farias datam de 2001, em meio à frenética apuração para a reportagem “Advogado dos Pobres”, publicada naquele ano pelo jornal Correio da Bahia. Em cerca de um mês, percebeu-se a carência de publicações substanciais sobre o Major; a existência de vasto material documental e de periódicos em Salvador, mas cuja identificação e consulta só pode ser feita manualmente devido à falta de informatização e desorganização dos acervos; a dispersão dos dados em títulos diversos e depositadas em locais distantes entre si; e, sobretudo, a relevância histórica e o apreço despertado pelo biografado. À época, restaram apenas as possibilidades de consulta a verbetes em obras panorâ115 micas e sem rigor acadêmico e a textos recém-lançados ; de entrevistas com pessoas que 116 mantiveram relações pessoais e profissionais com ele ; e de análise de notas, notícias e reportagens espaças veiculadas em periódicos e no Diário Oficial do Estado da Bahia. Depois, sucedeu-se a realização da dissertação acima mencionada, como uma tentativa de registro mais amplo e aprofundado dos fatos mais relevantes da vida da personagem, com ênfase nos eventos políticos, e, agora, o desenvolvimento desta tese. Firma-se, desde o início, um compromisso com a personagem, do jeito que ele é, ção Tipographica da Bahia, Associação Bahiana de Imprensa e Liga Bahiana contra o Analfabetismo – que fizeram alterações na forma de escrever suas denominações no decorrer do século XX e acham-se mencionados nas fontes de duas ou mais maneiras. 115 Ver indicações no item Referências. São poucas e a maioria baseia-se em obras desta autora e nas fontes consultadas por ela. 116 Nesta tese, é aproveitado todo o material de pesquisa recolhido inicialmente para a referida reportagem, inclusive os depoimentos, devido à riqueza das informações obtidas e até de algumas fontes não terem condições de saúde para conceder novo depoimento ou já terem morrido. A maioria das entrevistas está registrada apenas em anotações em papel, porque, como o propósito era apenas jornalístico, foram seguidos rigorosamente os procedimentos de não fazer gravações, sedimentados neste campo. 55 com seus méritos, suas fragilidades, suas contradições, suas idiossincrasias. Busca-se fazer História, prestando-se novas contribuições à sociedade para a compreensão da Cidade da Bahia, notadamente de boa parte do século XX, por meio da abordagem da vida, obra, inserção e participação da personagem no cenário social, cultural, político e econômico da capital. Esta tese procura mostrar, antes de tudo, um homem; um homem com virtudes e defeitos, erros e acertos, dotes e vícios; um homem simples e farrista, temente a Jesus Cristo e inveterado pecador. Como, aliás, deve ser uma biografia histórica. 56 1 O INDIVÍDUO SOB A LENTE DO HISTORIADOR Como Cosme de Farias enfronhou-se em frentes de caráter político, econômico, cultural, jurídico, coexistem múltiplas possibilidades de investigação da sua vida e obra, sob a égide de especializações da História como a História Econômica, História Política, História Jurídica, isoladamente. Contudo, em casos como o dele, a complexidade e amplitude da personalidade, do pensamento, das ações e reações humanas inviabilizam a apreensão da realidade somente com a abordagem de aspectos inerentes a uma especialidade exclusivamente, embora o mundo contemporâneo esteja determinando tanto a fragmentação dos procedimentos produtivos e a segmentação inclusive em campos como a História quanto a eclosão de novas formas de sociabilidade e práticas econômicas e políticas117. Não obstante a influência dessas mudanças sobre a disciplina – com a prevalência de um ramo durante a investigação –, objetos historiográficos dessa natureza demandam, em geral, o diálogo com saberes de origens diversas, para sua compreensão, sua apreensão e seu aprofundamento. Baseado nisso, a História Cultural (HC) pode constituir-se como uma alternativa para o estudo de indivíduos cuja biografia ilumina o entendimento de questões sociais, culturais, políticas e econômicas ocorridas em um tempo e espaço, na medida em que ela prevê a abordagem de múltiplos objetos (ciência, artes, jornalismo etc.) e permite a análise de práticas, linguagens, representações, processos e padrões, considerando os atores sociais como produtores e, simultaneamente, receptores de cultura, por meio de mecanismos como a tradição oral, os sistemas de educação e os meios de comunicação de massa. Nela, estariam contidas ramificações como a História das Artes, História da Literatura e História da Imprensa. Aplicam essa perspectiva pesquisas como A Morte é uma Festa118 e A Revolta dos Malês119, do historiador baiano João José Reis. A partir dos anos 1970, a HC ascendeu entre os historiadores em substituição à História das Mentalidades (estudo das sociedades por meio das representações de sujeitos em um determinado momento histórico), sustentando-se na busca do reconhecimento da História como disciplina e ciência e na legitimação dos temas ligados à antecessora com a correção das imprecisões e ambiguidades comuns ao conceito, ao campo teórico e à metodologia dessa 117 Ver Maria Abadia CARDOSO. O Campo da História: especialidades e abordagens. Op. cit. p. 1-10. João José REIS. A Morte É uma Festa - ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do séc. XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 119 João José REIS. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia da Letras, 2003. 118 57 vertente120. As duas correntes mantêm relação dúbia: ora de distanciamento e rejeição, ora de proximidade e afinidade. A chamada Nova História Cultural (NHC), por um lado, tenta suplantar fragilidades da História das Mentalidades (HM) – como a “simplista” descrição dos fatos e omissão ou negligência com relação à possível influência das condições socioeconômicas e culturais sobre sujeitos, grupos e acontecimentos históricos –, propondo a análise contextualizada com valorização de eventuais interferências relacionadas a classes, estratificações e conflitos sociais sobre o objeto de investigação121. Por outro, a NHC admite a relevância da HM e até aproxima-se dela, ao recomendar a adoção de estudos de longa duração, o emprego de procedimentos característicos da antropologia na pesquisa historiográfica, a utilização do cotidiano como tema de estudo e a aceitação da micro-história122 – desde que haja conexão entre os microrrecortes e o contexto global – e o distanciamento da História das Ideias, da História do Pensamento Formal, da História dos Grandes Pensadores. Ainda há outras afinidades. As duas debruçam-se sobre manifestações formais da cultura (das artes, da literatura, da filosofia) e informais; dinâmicas das elites e dos subalternos; formas de ser e viver de letrados e iletrados; crenças e resistências de célebres e anônimos123. Entre outros autores, três historiadores consagrados propõem caracterizações da HC, que a distingue da História das Mentalidades. Calcado nas noções de cultura popular (“o conjunto de atitudes, crenças, códigos comportamentais próprios das classes subalternas num certo período histórico”124, ou seja, oposta à cultura letrada e oficial das classes dominantes) e de circularidade cultural (relações da cultura popular com a erudita, geridas pelas classes subalternas de acordo com seus próprios valores e condições de vida, e da cultura erudita com a popular, administradas pelas classes dominantes a partir da sua visão de mundo e dos seus interesses)125, o italiano Carlo Ginzburg rejeita a ingênua contraposição entre mentalidade 120 A História das Mentalidades é associada às abordagens de aspectos do cotidiano e das representações dos fatos (a microtemas, recortes da realidade acerca do amor, morte, família, bruxas, criança, modos de ser, vestir, comer etc.) e à valorização do texto descritivo e narrativo, em “detrimento da explicação globalizante” predominante na História Total. Há, ainda, uma tendência à confusão entre seus campos de estudo (religiosidades, sexualidades, comportamentos etc.) com a problematização teórica dos objetos, além da sua delimitação em oposição à História econômica e à História das Ideias, que são, respectivamente, disciplinas hegemônicas e de pouco destaque na historiografia francesa. Ronaldo VAINFAS. História das Mentalidades e História Culturais. Op. cit. p. 137-138. 121 Id. Ibid., p.149. 122 Trataremos desse conceito ainda neste capítulo. 123 Ronaldo VAINFAS. Op. cit. p.148-149. 124 GINZBURG, 1976 apud Ronaldo VAINFAS. Ibid., p.151. 125 Ronaldo VAINFAS. Ibid., p.152. 58 coletiva e atitudes individuais, considerando-as inter-relacionadas, e a negligência de divergências e contrastes entre as mentalidades de classes diferentes. Assim, Ginzburg atribui à micro-história três características essenciais. A primeira, a ponderação de evidências epistemológicas e, por conseguinte, a apuração exaustiva em busca de evidências quanto a fatos e personagens, empregando tanto o saber científico quanto a intuição. A segunda, o pressuposto de que a realidade existe, mas o sujeito representa, a partir do repertório reunido em suas vivências. A derradeira, a premissa de que o contexto, pelo menos, influencia a significação e oferece possibilidade de explicação dos acontecimentos, evitando que a narrativa restrinja-se à descrição de fatos observados nas investigações feitas em escala reduzida. Sua proposição determina que “ao historiador cabe, com método e problemáticas teoricamente amplas, captar e decifrar os indícios, à semelhança do que fazem [...] outros ‘investigadores’ que só atingem o geral a partir de sinais particulares, valendo-se de erudição e mesmo de intuição”126. Embora a primeira aplicação de elementos constituintes da micro-história por Ginsburg date de 1976, com a edição de O Queijo e os Vermes127, o historiador sistematizou a proposta como uma corrente historiográfica apenas na década seguinte, nos anos 1980. Junto com outro italiano, Giovanni Levi, ele lançou a coleção Microstorie, entre 1981 e 1988, pela editora Einaudi, na Itália. À época, o autor já apresentou a micro-história128 como um ramo da História que adota objetos relacionados ao cotidiano de uma comunidade a situações-limite e a personagens extremos – especialmente, anônimos –; opera com escala reduzida de observação; explora as fontes exaustivamente, buscando identificar detalhes, minúcias; faz descrição densa, etnográfica, dos fatos; e emprega recursos da narrativa literária, como o diálogo entre as personagens e a descrição de cenários. Já o francês Roger Chartier considera impossível distinguir cultura popular da cultura erudita e substitui a relação dicotômica cultura popular-cultura erudita por uma noção abrangente de cultura, embora não-homogênea; prega a compreensão do processo histórico a partir da particularidade de cada sujeito ou grupo social, ao invés da História Total; e opõe-se a pressupostos da HM como a visão interclassista, valorizando que a cultura seja dimensionada à luz das classes sociais delimitadas pela produção e consumo culturais129. Contrário à “tirania do social” (a existência de um social considerado previamente) ligada à tradição francesa da 126 Id. Ibid., p.148-149. Carlo GINZBURG. O Queijo e os Vermes. Op. cit. 128 VAINFAS, Ronaldo. Os Protagonistas Anônimos da História: micro-História. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p. 77-103. 129 Ronaldo VAINFAS. Ibid., p.153. 127 59 História social, o francês toma a noção de cultura enquanto prática e considera que o fenômeno social só tem sentido no mundo das representações, práticas e apropriações culturais130 e que o indivíduo apropria-se das representações da forma como lhe convém 131. Por fim, o inglês Edward Palmer Thompson, autor de estudos com aplicação de pressupostos marxistas para análise da cultura, pondera que as classes populares podem construir identidades e valores independentes do paternalismo das classes dominantes, mas sem que tenham, necessariamente, caráter revolucionário. Crente que a identidade social se forja no processo de resistência e luta de classes – e não pela difusão de doutrinas –, ele exalta a possibilidade de transformação do cotidiano pelos sujeitos; nutre apreço por métodos da antropologia e pela abordagem de microtemas (festas, crenças etc.); e prevê inter-relações recíprocas entre a cultura popular e a erudita132. Há, notadamente, distinções entre os modelos. Edward Palmer Thompson e Carlo Ginzburg, por exemplo, diferenciam-se em três pontos. Marxista convicto, o inglês parte da noção de marxismo “convencional” (estudo das ideologias, consciência de classe etc.) para um conceito histórico-antropológico flexível de cultura popular; preocupa-se em desvendar a identidade sociocultural das classes subalternas no período da formação do capitalismo; e privilegia a luta coletiva das classes populares. O italiano, por sua vez, instiga-se inicialmente com aspectos da HM, mas termina adotando uma percepção classista (marxista) da História, ao conceituar cultura popular; interessa-se pelo próprio universo cultural, sobretudo as resistências de elementos populares e mudanças culturais na época moderna; valoriza microrrecortes e a resistência e domesticação (ou repressão) da cultura popular na longa duração. Thompson busca compreender a cultura popular através de movimentos sociais ou aos vinculados a eles, em obras como A Formação da Classe Operária Inglesa133, enquanto Ginzburg prefere analisar o popular e a circularidade por meio de casos excepcionais (como o moleiro Menocchio, de O Queijo e os Vermes) ou de 130 Roger Chartier considera que “representação” é algo que permite a exibição de uma presença e a visão de algo ausente, refere-se ao modo de ser e motiva pesquisas sobre as formas de elaboração do significado de objetos literários e visuais, por exemplo. A “apropriação” subsidia a construção de “uma História social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem”. Já a prática tangencia o modo de fazer e impulsiona a problematização de procedimentos de indivíduos e grupos sociais quanto à alimentação, à religiosidade, ao vestuário e ao lazer, por exemplo, favorecendo a interpretação de ações e motivações dos atores históricos. Roger CHARTIER. Introdução. In: A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. p. 26. 131 Ronaldo VAINFAS. Ibid., p.153-155, 158. 132 Ronaldo VAINFAS. Ibid., p.155-156. 133 Edward Palmer THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: a árvore da liberdade. Vol. I, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997; Edward Palmer THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: a maldição de Adão. Vol. II, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Edward Palmer THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: a força dos trabalhadores. Vol. III, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 60 modelos abstratos, estereótipos. A despeito das discrepâncias entre as propostas de Ginsburg, Chartier e Thompson, existem pontos de convergência e até certa relação de complementaridade entre os modelos. Dois dos principais fatores de aproximação entre eles são a diversidade temática, com abertura para abordagem de acontecimentos ligados a sexo, festejos, crenças que evidenciem as múltiplas formas de ser, viver e conviver; e o microrrecorte, que permite a verticalização do estudo e o detalhamento, em favor do aprofundamento da investigação, inclusive com aplicação de procedimentos característicos de outras ciências, como a Antropologia, sem que necessariamente houvesse perda para a legitimação da História enquanto disciplina. Entre proposições comuns entre Ginzburg e Chartier, por exemplo, destacam-se a crença na existência da realidade e a possibilidade do historiador compreendê-la, ainda que haja limites para isso. A ampliação das temáticas abordadas e a exploração de objetos microrrecortados, aliás, são princípios da História Nova (Nouvelle Histoire), corrente apresentada no capítulo anterior dessa tese. A partir dela, surgiram indícios da transição entre a História-ciência, aprisionada à comprovação e explicação dos fatos, e a História-ensaio, preocupada com a apuração micro e antropológica dos fatos e criação de uma narrativa próxima à literária, embora obrigatoriamente vinculada ao real. Além da micro-história, a História Nova teria influenciado o desenvolvimento da Nova História Cultural (NHC), que prima pela apreensão do real através do indivíduo ou grupo; e a versão atual da História Social (HS), que se debruça sobre os objetos a partir de uma perspectiva sócio-estrutural. Em suma, pode-se afirmar que a micro-história valoriza o indivíduo histórico, mas reconhece a necessidade de análise do contexto para compreensão qualitativa dos sujeitos tomados como objeto de pesquisa; prima pela abordagem temática específica (de fatos do cotidiano, sobre comunidades ou até indivíduos anônimos), delimitada em espaço e lapso temporal restritos que permitam consulta exaustiva de fontes, inclusive a observação para descrição etnográfica, mas com aprofundamento da análise; e propõe uma narrativa detalhista e inspirada na literatura, o que propicia a empatia do leitor com a trama. Lacerda Filho 134, na Revista do Museu, sintetiza: “A descrição micro-histórica serve para registrar uma série de acontecimentos ou fatos significativos que, de outra forma, seriam imperceptíveis e que, no entanto, podem ser interpretados por sua inserção num contexto mais amplo, ou seja, na trama do discurso cultural”. 134 Mozart LACERDA FILHO. Nova História Cultural e Micro-História – uma breve reflexão sobre suas origens. Revista do Museu. Rio de Janeiro: Clube de Ideias Comunicação e Sistemas Ltda., 2010. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=5619>. Acesso em: 10 mai. 2010. 61 Confundida com a História Cultural, das Mentalidades e do Cotidiano, a microhistória tem sido tomada, equivocadamente, como uma História descritiva, que pretere o estatuto científico da disciplina, em favor da absorção de elementos antropológicos e literários, e que produz narrativas mais ficcionais do que retrospectivas da realidade passada. Por anos, tornou-se alvo dos adeptos de correntes com análise de caráter macrossocial e estigmatizada como uma “História menor”, negligenciando-se a possibilidade deste meio de abordagem de objetos historiográficos ser associado aos mais diversos aportes teóricos para estudos de aspectos de uma sociedade a partir de um indivíduo, uma comunidade, uma região, por exemplo. Entretanto, de acordo com Ronaldo Vainfas, em Os Protagonistas Anônimos da História: micro-história135, as análises micro e macrossociais são complementares e a combinação de ambas pode ser uma via para o historiador vencer o desafio de apreender, compreender e registrar em narrativa as interseções e tensões de natureza social e cultural, sem rechaçar aspectos econômicos e sociais. No final do livro, o autor sugere136 uma metodologia para isso: não chegaria ao ponto de dizer que a microanálise é a mais esclarecedora, preferindo ‘apostar’ nas possibilidades de compatibilização – embora elas sejam restritas – e reconhecendo, antes de tudo, uma diferença que não implica em hierarquia sobre qual escala se sai melhor na tarefa de reconstruir a História. Havendo pesquisa séria, problemática relevante e clareza expositiva, estarão preenchidas as condições essenciais para que um trabalho historiográfico possa dar contribuição valiosa, independente da escala de observação ou da maior ou menor dimensão do objeto investigado. Entre as vantagens da microanálise, estão a ampliação e o aprofundamento das informações sobre fatos e personagens e a oferta de leitura mais prazerosa e atrativa. Nesse sentido, a obra de Carlo Ginzburg é exemplar. O Queijo e os Vermes ultrapassa a simples enumeração de aspectos do processo inquisitorial sobre o moleiro Menocchio, ao tecer uma rede associativa entre os fatos e seu contexto e, no limite, engendrar uma profunda trama sobre a história de vida de um indivíduo anônimo, que permite ao leitor conhecer o contexto de sua época por meio de uma leitura fluída e instigante. A partir do exposto, pode-se inferir que a biografia pode ser a principal forma de manifestação da micro-história, embora tenha sido forjada ao longo do tempo, a partir da An- 135 136 Ronaldo VAINFAS. Os Protagonistas Anônimos da História: micro-História. Op. cit. p.143-152. Id. Ibid., p. 152-153. 62 tiguidade137. Pela atual perspectiva metodológica, a biografia historiográfica138 busca recuperar sujeitos – célebres ou anônimos, “homens distinguidos social e politicamente” ou “pessoas comuns” – na História, afastando-se da abordagem estrutural-quantitativa comum à História Estrutural139, de inspiração marxista e sob influência das ciências sociais, que tenta analisar estruturas sociais, culturais, econômicas com ingerência nas ações dos sujeitos históricos (e não acontecimentos), a partir da quantificação de variáveis verificáveis em longos períodos, em décadas ou até séculos, a fim de superar a reflexão pontual sobre um acontecimento e produzir História Total. De certa forma, esta perspectiva de biografia historiográfica reage à “História Événementielle”, tradicional, de orientação positivista e pautada na onisciência de determinados sujeitos, voltada a temas factuais e grandes personalidades – os protagonistas dos acontecimentos –, com enfoque no homem (e não, nas circunstâncias), exposições do historiador mais descritivas do que analíticas, construção textual com valorização de elementos retóricos e 137 O gênero foi constituído a partir da articulação de elementos oriundos de gêneros, períodos e correntes diversas da escrita da História, como as histórias de vida tecidas por gregos e romanos na Antiguidade, as hagiografias medievais para difusão e valoração de santos e deuses, as narrativas renascentistas sobre homens proeminentes e seus feitos e, ainda, as biografias descompromissadas com a História Universal comuns nos séculos XVIII e XIX e aquelas que relacionam a experiência individual com o contexto, dotando a vivência de um sujeito de sentido capaz de cooperar para a compreensão das dimensões local, regional, nacional e, quiçá, mundial da História. Rebeca GONTIJO. A Vida Póstuma de um Historiador Nacional: Capistrano de Abreu (1853-1927) – memória e biografia. Londrina: XXIII Simpósio Nacional de História - Universidade Estadual de Londrina; São Paulo: Associação Nacional de História, 17-22 jul. 2005. Disponível em: <http://www.anpuh.uepg.br/xxiiisimposio/anais/textos/REBECA%20GONTIJO.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2007; José Petrúcio FARIAS JÚNIOR. Biografia e Historiografia: contribuições para interpretação do gênero biográfico na Antiguidade. Revista Espaço Acadêmico. Ano VI, nº 68. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, jan. 2007. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/068/68fariasjr.htm>. Acesso em: 6 mai 2010; Ronaldo VAINFAS. Os Protagonistas Anônimos da História: micro-História. Op. cit. 138 Benito Bisso SCHMIDT. Construindo Biografias... Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos. Nº 19. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), 1997. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/207.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2008. 139 Em À Beira da Falésia – a História entre certezas e inquietude, o francês Roger Chartier sintetiza que a aplicação do paradigma estrutural implica na identificação das estruturas e suas relações que organizam os processos econômicos e sociais e determinam as formas do discurso, independente da percepção, intenção, consciência dos indivíduos. Já o protótipo da quantificação pressupõe a formulação das estruturas a partir da classificação numérica, serial, estatística dos fatos e seus atores. As consequências disto são apontadas pelo autor: “A disciplina pôde assim reatar com a ambição que fundara no início deste século a ciência social, em particular em sua versão sociológica e durkheimiana: ou seja, identificar estruturas e regularidades, portanto, formular relações gerais. Ao mesmo tempo, a História liberava-se da ‘bem magra idéia do real’ – expressão de Michel Foulcault – que habitara por muito tempo, já que considerava que os sistemas de relações que organizam o mundo social são tão ‘reais’ quanto os dados materiais, físicos, corporais, apreendidos no imediato da experiência sensível. Essa ‘nova História’ estava tão fortemente apoiada, além da diversidade dos objetos, dos territórios e das maneiras, sobre os princípios mesmos que sustentavam as ambições e as conquistas das outras ciências sociais”. Roger CHARTIER. À Beira da Falésia – a história entre certezas e inquietude. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p.83. Sobre História Estrutural, ver também Jurandir MALERBA. Estrutura, Estruturalismo e História Estrutural. Revista Diálogos. Vol. 12, nº 1. Maringá: Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, 2008, p. 19-55. 63 abordagem multifacetada do objeto de estudos. Das páginas de uma biografia, devem emergir tanto aspectos da vida pública, atividades laborais e feitos notáveis quanto ideias, sentimentos, sonhos, o inconsciente, planos, relações familiares, amorosas e de amizade, usos, costumes, fatos ligados à sexualidade e ao cotidiano, virtudes e fraquezas do biografado e indícios da sua inserção no seu espaço e tempo, que permitam a compreensão do sujeito na sua complexidade e articulações sobre dimensões das vidas pública e privada, permanências e rupturas, dia-a-dia comum e momentos de efervescência social e política. Dela, portanto, devem saltar relatos de experiências individuais e relações políticas e sociais; explicitações de formas e espaços de sociabilidade, reações a códigos de moralidade, influências de terceiros e reelaborações pessoais; interpretações de mundo do biografado, mantendo respeito à memória do sujeito cuja trajetória se tornara alvo de devassa. Ao leitor, deve-se ofertar a problematização da experiência do sujeito no grupo social, diante a conjuntura, visando a apreensão da influência do sujeito sobre os fatos e da interferência de redes sociais e políticas sobre ele. Tal perspectiva tem afinidade com o pensamento do francês Pierre Bourdieu. Por meio de um amálgama de teorias sociológicas composto por objetivismo (baseado nas relações objetivas dos sujeitos), fenomenologia (referente à subjetividade dos sujeitos) e a construção sócio-histórica do real e marxismo, Bourdieu140 pressupôs que o campo (espaço social) seja uma construção subjetiva da realidade delineada a partir de estruturas objetivas (situação social, econômica, política), que interferem na constituição de sistemas duráveis originados da tradução de elementos inerentes a posições dos atores em um estilo de vida, denominados de habitus. Ou melhor, o habitus resulta das relações sociais firmadas pelo sujeito e, por um lado, tende a orientar e formatar suas percepções e ações e, por outro, asseverar a “reprodução” das relações objetivas que o geraram. Pela proposta bourdieuniana141, o capital cultural e econômico interfere142 na produ- 140 Pierre BOURDIEU. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. Id. Ibid.; Denise Morado NASCIMENTO; Regina Maria MARTELETO. A Informação Construída nos Meandros dos Conceitos da Teoria Social de Pierre Bordieu. DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação. Vol.5, nº 5. Rio de Janeiro: Instituto de Adaptação e Inserção na Sociedade da Informação, out.-2004. Disponível em: <http://www.dgz.org.br/out04/F_I_art.htm>. Acesso em: 22 jan. 2010. 142 As posições de classe, para Pierre Bourdieu, correspondem a classes de habitus, desenvolvidas a partir das condições e dos mediadores sociais, dos habitus cultivados e, é claro, da capacidade de ordenamento de bens e patrimônio dos sujeitos. O espaço social – afirma Bourdieu – organiza-se em três dimensões: uma primeira, cujos sujeitos são dispostos de acordo com o volume global do capital que possuem; uma segunda, com o peso relativo do capital cultural e econômico acumulado como patrimônio; e uma terceira, com o crescimento, a es141 64 ção do habitus, que, por sua vez, norteia as percepções, interpretações, preferências, valores, atitudes, ações e reações, do sujeito analisado e, portanto, suas experiências espaciais e temporais e sua posição na “sociedade de classes”. O habitus influi, decisivamente, no surgimento e na manutenção de práticas variadas e capazes de distinguir o indivíduo socialmente, conforme o capital global e a posição social desse sujeito, e dá pistas ao pesquisador para a compreensão de personagens da História, anônimas ou célebres. Atua de maneira compulsória e inconsciente. Nesse sentido, a observação habitus de um indivíduo e das suas condições sociais de produção possibilita inferências acerca de sua subjetividade e posição social. Calcada na visão de que a vida do indivíduo tem momentos de estabilidade e, também, de ambiguidades e contradições, a narrativa biográfica atualmente pode ser definida como a representação coerente do biografado, tecida a partir de uma construção discursiva (de certo modo, a invenção) delineada pela intenção de biógrafo e pelas condições de produção e com sentido flexível, aberto a interpretação pessoal da audiência. Mas nem sempre foi assim. Até os anos iniciais do XX, historiadores143 rotulados de românticos narravam histórias de vida, quase sempre, como uma epopeia. A biografia com foco no sujeito em si gozou de prestígio no bojo da História Positivista e abordava, sobretudo, grandes homens (monarcas, ministros, desbravadores, santos católicos etc.) e seus feitos, em detrimento das estruturas e da população subordinada aos auspícios desses senhores, perpetuando uma versão dos fatos históricos a partir da versão dos vencedores. Em tom laudatório, elaborava-se uma descrição parcial e linear, geralmente em ordem cronológica, dos fatos vividos pelo biografado, marcada pela minimização do contexto histórico, prestando-se como registro lendário de glorificação do protagonista. Elaboradas com a intenção de que se prestassem como exemplos para a sociedade, as biografias predominantes até então eram narrativas cronológicas de caráter híbrido – com elementos da realidade ficcionados – sobre histórias de vida de heróis, com certa exaltação de traços da sua moral e de seus atos grandiosos, e cujo roteiro induzia o leitor a crer que o biografado orientava-se por seu próprio destino. “É a chamada historia magistra vitae, que buscava seu sentido na orientação moral dos homens”, de acordo com Fernanda Lorenzetti144. tagnação ou o retrocesso do volume e da configuração de seu capital global. Pierre BOURDIEU. O Poder Simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2004. 143 Berenice CAVALCANTE. José Bonifácio: razão e sensibilidade – uma história em três tempos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001. Coleção Os que fazem a História. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 4 jan. 2010. 144 Fernanda LORENZETTI. Resenha de François DOSSE. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009. Revista História em Reflexão. Vol. 4, nº 7. Dourados: Universidade Federal da Grande Dourados, jan.-jun. 2010, p. 2. 65 Dentre os biógrafos da primeira fase do formato, destacam-se os pioneiros romanos Plutarco (Vidas Paralelas) e Suetônio (A Vida dos Doze Césares); os hagiógrafos da Europa Medieval; e os modernos Nicolau Maquiavel (A Vida de Castruccio Castracani). Naqueles tempos, conforme Giovanni Levi, no artigo intitulado “Usos da Biografia” 145 , fazia-se a Biografia Modal, com descrição do sujeito quanto à aparência física, ao com- portamento, aos hábitos e às condições sociais estatisticamente mais frequentes no grupo ao qual ele pertencia – “a biografia não é, nesse caso, a de uma pessoa singular e sim a de um indivíduo que concentra todas as características de um grupo”146; e a Prosopografia, ou seja, a reunião de um conjunto de biografias, a fim de identificar as especificidades de um grupo social ou profissional e delineá-lo. O modelo147 fora constituído a partir das primeiras obras, escritas na Antiguidade, e perpassou pelos períodos históricos subsequentes com vigor, até que começou a sofrer críticas severas de historiadores entre o final dos oitocentos e no início do século XX. A partir da constituição da Escola de Annales em 1929, o paradigma estrutural, de inspiração marxista, consolidou-se e tornou-se hegemônico, inibindo o desenvolvimento e a difusão da História Individual. Sob influência especialmente de Lucien Febvre, a biografia – pelo menos, a positivista – passou a ser rechaçada com os argumentos de que ela prestava contribuição insignificante para a História Estrutural e pressupunha objetividade em demasia, a despeito de ser impossível apreender fenômenos sociais e econômicos na sua totalidade e, quiçá, a partir da trajetória de um sujeito. Tentou-se substituir a “biografia individual” pela História Total. Até o terceiro quartel do século XX, por fazer investigação em escala reduzida, no âmbito dos acontecimentos, a biografia era vista como insignificante, dispensável aos amplos estudos estruturais e ultrapassada. Eclodiram críticas contumazes de inúmeros historiadores de importância no contexto internacional, notadamente os filiados à Escola francesa, como Lucien Febvre e Jacques Le Goff. Por um lado, tal posição condenou o formato ao ostracismo por décadas, mas, por outro, contribuiu para a proposição de uma singular forma de fazer História: a biografia histórica cuja proposta foi delineada a partir das ideias e iniciativas de Ginsburg, Chartier e Thompson e, mais tarde, defendida por Le Febvre e Le Goff, ambos já em fase de revisão dos seus conceitos. 145 Giovanni LEVI. Usos da Biografia. In: Marieta de Morais FERREIRA; Janaína AMADO (Org.). Usos & Abusos da História Oral. 8. ed. 1. reimp. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. 146 Giovanni LEVI. Usos da Biografia. Op. cit. p. 175. 147 François DOSSE. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009. 66 1.1 RECRUDESCIMENTO DO GÊNERO BIOGRÁFICO O formato reabilitou-se na década de 1970, em meio ao arrefecimento do paradigma estrutural. Naqueles anos, a Escola francesa começou a repensar seus princípios e suas práticas e convenceu-se da relevância do indivíduo para a (re)construção da realidade e do papel do historiador nesse processo. Nesse sentido, Annales propôs a admissão de novos objetos, de novas abordagens, de problemas inerentes à Nouvelle Histoire – em especial, da História das Mentalidades – pela História; e propiciou a retomada de mecanismos de valorização da narrativa, da História Política e da apreensão do indivíduo como objeto de pesquisa. Por conseguinte, fomentou o retorno da biografia como gênero historiográfico, porém com características diversas das preponderantes até então. Até mesmo os franceses Lucien Febvre e Jacques Le Goff adotaram ao formato. O primeiro desenvolveu as exaltadas biografias Felipe II e o Franco Condado (que aborda tanto a revolta dos Países Baixos e a ascensão do absolutismo quanto a luta entre a decadente nobreza e a ascendente burguesia e estabelece relações entre política, economia e sociedade, por meio da história da região francesa denominada Besançon em fins do século XVI, no governo de Felipe II) e O Problema da Incredulidade no Século XVI: a religião de Rabelais (a partir das caracte- rísticas do escritor François Rebelais, declina sobre as manifestações de crença e os conceitos de crença e ateísmo no século XVI e as dificuldades do sujeito da época romper com os usos e costumes do seu grupo social) e até delineou princípios para a realização de narrativas sobre indivíduos, em textos teóricos e metodológicos e em suas experiências com o gênero. Igualmente, os franceses Michel Vovelle e Georges Duby, especialistas em Idade Média e Idade Moderna, respectivamente, experimentaram o formato biográfico. Vovelle, em 1975, escreveu L’ Irresistible Ascension de Joseph Sec, Bourgeois d’ Aix, livro sobre um filho de um pequeno lavrador que ascendeu à burguesia no século XVIII e cujo legado permite conhecer traços da sociedade burguesa francesa setecentista e possibilita reflexões sobre, por exemplo, a interface entre cultura popular e erudita. Duby lançou, em 1984, Guilherme, o Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo, obra sobre o filho mais novo de um nobre da Inglaterra que se tornou hábil e respeitado cavalheiro no século XIII e cuja história possibilita a compreensão da atuação, das normas e dos valores da cavalaria e, de certa forma, das relações sociais e de poder naquela região. 67 Entre as pressupostos de Febvre, ainda hoje, largamente, seguidos em várias partes do mundo, estão as seguintes: a interpretação é inerente ao fazer científico e, portanto, os fatos são construídos socialmente, tal qual previu o sociólogo Émile Durkheim148 (1855-1917); o surgimento de novos problemas, fontes (observações, fontes estatísticas, documentos impressos), métodos e objetivos é salutar para a pesquisa; os acontecimentos ocorrem em espaço e tempo imbricados, com especificidades que devem ser consideradas no estudo; e a “História historizante”, limitada datas e locais de fatos representativos na vida de ilustres e realce de feitos militares e políticos, deve ser rechaçada. O trabalho de Febvre aponta, ainda, como pressupostos que as estruturas mentais da sociedade devem ser tomadas como objeto da História, em interface com estudos de outras dimensões do real (política, economia etc.), utilizando-se a psicologia como recurso indispensável à análise, por esta disciplina possibilitar a compreensão mais aprofundada da vida material do homem e da civilização da qual ele faz parte; e que os códigos de comunicação apresentam indícios dos modos de ser, sentir, pensar e agir dos comunicantes, mas o pesquisador deve analisá-los à luz do seu dialeto e do espaço e período histórico em que eles viveram. Em vez de deter-se em uma linha temporal linear e progressiva, Lucien Febvre procurava identificar o que tornou os acontecimentos históricos enfocados possíveis, observando, predominantemente, aspectos mentais da sociedade, embora não tenha manifestado prioridade de uma dimensão do real sobre as outras. Em sua lavra, ele esboçou histórias de vida, com abordagem de temporalidades diversas, norteadas pelo contexto e pela memória, com ênfase na inserção em grupos diferenciados (como o familiar e o de amizade) e em características psicológicas (sentimentos, emoções). Assim, os modos de ser, pensar, agir, viver de um indivíduo possibilitaria o estudo de um espaço, em um dado momento histórico, ou seja, as especificidades dele e sua interação com outros e com o mundo iluminavam determinados aspectos da sociedade do seu tempo. Já Jacques Le Goff, de crítico nevrálgico, passou a defensor do formato historica148 O pensador francês Émile Durkheim (1855-1917) defende que o fato social ocorre na sociedade e relaciona-se ao interesse social de, pelo menos, parte das pessoas. Tem três características principais: exterioridade (é exterior ao indivíduo; define-se fora dele, mas é assimilado por meio da educação); coercitividade (impõe-se ao indivíduo, a despeito de sua vontade, sendo percebido ou não por ele); e generalidade (tem natureza coletiva e é repetido nos indivíduos devido à assimilação de práticas, crenças, valores oriundas das gerações antepassadas). Para ele, a ordem social decorre da solidariedade estabelecida a partir da divisão do trabalho. Desse processo, surge (ou não) a harmonia social. O francês é considerado um marco para a Sociologia, por buscar desenvolver uma ciência social – a Sociologia – que tivesse rigor teórico e metodológico similar ao das ciências relacionadas aos fenômenos naturais (Biologia, Física, Química, por exemplo). Da sua obra, recomenda-se quanto a esta questão consultar Da Divisão Social do Trabalho (1893) e Regras do Método Sociológico (1895). Sobre Durkheim, ver Norberto BOBBIO. et al. Dicionário de Política. 5. ed. Brasília: Ed. UnB, 1983. 68 mente hostilizado por ele mesmo e por seus pares. Pressupôs, contudo, que a biografia fugisse da simples descrição da trajetória do biografado, aliando informações da sua história de vida a proposições sobre suas ideias, suas relações sociais e o contexto histórico e cultural em que ele estava inserido, a fim de iluminar aspectos do tempo e do espaço em que ele viveu que sejam de alcance universal. De acordo com o autor da emblemática São Luis: biografia149, entre outras obras, esse modelo exige a definição de um problema de pesquisa relacionado ao sujeito tomado como objeto de pesquisa; o levantamento e a análise crítica das fontes; a abordagem de tempo suficiente para percepção de permanências e rupturas na trajetória da personagem; a busca da explicação através da narrativa; a consciência da distância entre o biografado e o biógrafo; e, ainda, a circunscrição do indivíduo na sociedade. O indivíduo é apenas objeto, enquanto o problema de pesquisa científica é delineado a partir da interface entre ele e a sociedade. As reflexões e práticas dos franceses Febvre e Le Goff parecem estar em consonância com as propostas de outros teóricos de relevância para a História. No artigo “A Ilusão Biográfica”, outro francês, Pierre Bourdieu150, caracteriza a biografia como a descrição rigorosa de posições diversas ocupadas pelo sujeito biografado, em determinado momento, sendo ele constituído socialmente e agente em múltiplos campos com inúmeros atributos e atribuições. A biografia, contudo, seria uma narrativa ilusória, por não ser possível sintetizar a vida total de uma pessoa, condição que obriga o historiador a suprir as lacunas de informações não obtidas junto às fontes por algo criado por ele, ou seja, por suas suposições e inferências. Considerando que houve uma ascensão da crítica entre os biógrafos, a partir do rompimento com o estruturalismo e a tendência a generalizações exacerbadas na interpretação da história, François Dosse151 explica que a biografia, desta nova fase, seria marcada pela valorização do singular, mas com reflexão sobre as heterogeneidades, pelas frequentes mudanças de escala, e pelo registro de rupturas e permanências, de certezas e incoerências do sujeito, afastando-se da percepção casuística dos fatos. Contudo, distingue-se de Bourdieu, sobretudo, por pressupor que o biógrafo precisa estar imbuído da disposição de captar fatos reais em sua obra, mesmo diante da fragilidade dos documentos e ciente da inviabilidade de apreender totalmente a realidade. 149 Jacques LE GOFF. São Luís. Biografia. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro; São Paulo: Editora Record, 1999, p. 20, 26. 150 Explicitado em Pierre BOURDIEU. A Ilusão Biográfica. In: Marieta de Morais FERREIRA; Janaína AMADO (Org.). Usos & Abusos da História Oral. Op. cit. 151 Fernanda LORENZETTI. Resenha de François DOSSE. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Op. Cit. p. 2. 69 Baseado em Bourdieu, o italiano Giovanni Levi152, autor do clássico A História Imaterial - Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII153 (que, por meio da vida do exorcista piemontês Giovan Battista Chiesa, debruça-se sobre o cotidiano social e econômico do povoado italiano Santena e analisa o campesinato no Antigo Regime), desenvolveu princípios para se articular informações da “superfície social” de uma história de vida, dentro do modelo denominado por ele como “biografia e contexto”. Pela proposta, a biografia manteria sua especificidade, voltando-se ao sujeito de forma singular, mas valorizando aspectos como o tempo e o espaço por estes possibilitarem a interpretação das vicissitudes da personagem central e as especificidades da sua época. Apropriadamente, Levi154 considera: “já não é possível – ou, pelo menos, desejável – investigar a vida de um homem, abstraindo de todo o evento histórico, ou, ao invés, explicar um acontecimento histórico, fazendo tábua rasa dos destinos individuais”. É um exagero, no entanto, pressupor que a biografia possa aproximar-se da História Total idealizada na Escola de Annales e explicar a sociedade de um momento histórico, partindo apenas de uma personagem. Sequer é possível apreender a totalidade de um indivíduo em sua complexidade, embora existam possibilidades de compreendê-lo e estabelecer articulações que subsidiem o entendimento de acontecimentos circunscritos a um espaço e ocorridos em um determinado interregno temporal. Afinal, a narrativa, por si, é um fato constituído a partir dos fatos que ela relata e versa sobre recortes – a bem dizer, microrrecortes – do real, da vida do sujeito histórico. Como qualquer outra modalidade de escrita da História, o formato apresenta limitações, embora o estudo biográfico especificamente possa iluminar nuances da História de um lugar, um governo, uma sociedade ou até contestar uma versão consolidada na historiografia. Acerca disso, afirma Benito B. Schmidt, um destacado pensador do fazer histórico contemporâneo no Brasil: “as biografias escritas [...] servem para revelar dimensões de certos problemas de pesquisa não perceptíveis através de enfoques macroscópicos [...] Os estudos biográficos podem ser de grande valia para a comprovação ou para a refutação de diversas teses consagradas”155. Inúmeros fatores teriam contribuído para a ascensão da biografia na década de 1970, 152 Giovanni LEVI. Usos da Biografia. Op. cit. Ver Giovanni LEVI. A Herança Imaterial - Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Prefácio de Jacques Revel; Trad. Cyntia Marques de Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 154 Giovanni LEVI. Usos da Biografia. Op. cit. 155 Benito Bisso SCHMIDT. Construindo Biografias ... Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Op. cit. 153 70 após longo período no ostracismo determinado, sobretudo, pelas críticas advindas de Annales. Entre os quais, destacam-se a existência de uma demanda do público; a inserção do sujeito e da subjetividade na teoria social e sua historicização, em oposição à dicotomia positivista “sujeito-objeto”; a crítica à visão totalizante da sociedade e sua evolução; a valorização da perspectiva de compreensão dos fenômenos sociais, políticos, econômicos à luz de casos concretos; a eclosão da História das Mentalidades; e a renovação dos métodos da História com o surgimento de novos objetos, fontes, angulações e problematizações. Aquele era um momento de retomadas de objetos e procedimentos – com valorização do indivíduo como objeto de pesquisa, da narrativa e da História Política; e de reconhecimento da relevância do sujeito individual e/ou social para a construção da História e do historiador como “produtor e intérprete” das visões do passado, conforme discutido anteriormente. Sendo assim, o contexto favorecia o recrudescimento da biografia histórica enquanto gênero da disciplina. Porém, o formato em ascensão nesse período diferencia-se daqueles vistos outrora. O estudo biográfico 156 conservou a peculiaridade de narrar a história de vida com foco nos feitos da personagem central, mas passou a valorizar e até realçar fatores contextuais que pudessem iluminar singularidades acerca dele como o ambiente e o grupo em que vivia. Desde então, começou-se a considerar intrínseco ao trabalho biográfico o exame das circunstâncias em que vivia o biografado (estrato social, ambiente intelectual e cultural, labor, laços familiares e amorosos etc.) e a formular discursos romantizados e heroicizantes sobre sujeitos históricos até aquele momento excluídos da historiografia, sobretudo subalternos, com ênfase na difusão de suas ideias e visão de mundo. O gênero passou a beneficia-se da aproximação entre a História e outras ciências e a Literatura, caracterizadas pela investigação exaustiva de histórias de vida para entendimento das especificidades de uma comunidade e pelo emprego de recursos narrativos de (re)construção dos personagens, ao invés de se deter apenas à fria descrição física, psicológica, profissional da personagem abordada e ao relato objetivo de fatos envolvendo-a. Do ponto de vista metodológico, a mudança implica no recuo da História quantitativa e serial, em favor do avanço dos estudos de caso e da adoção de princípios da micro-história. Nesse sentido, Giovanni Levi157 delineia os modelos de Casos-extremos, voltado ao esclarecimento do contexto através das “suas margens”, em detrimento da sua integridade e “exaus156 157 Giovanni LEVI. Usos da Biografia. Op. cit. Id. Ibid. 71 tividade estatística”; e Hermenêutica, inspirado na Antropologia interpretativa e relacionada com questões históricas complexas e fatores/relações como individual/coletivo, liberdade/constrangimentos (físicos, psicológicos e sociais), tradição/inovação, homem/meio envolvente, desafios/respostas individuais. Na contemporaneidade, a biografia histórica busca articular individual e coletivo, subjetivo e contextual, na tentativa de esclarecer uma questão mais abrangente relativa a um grupo social ou a toda a sociedade do que uma História particular de uma personagem. Com propriedade, Benito Schmidt158 explica que a atual narrativa biográfica restaura a tensão (não, a oposição) entre o individual e o social: Obviamente que, pelo menos no campo do conhecimento histórico, a relação indivíduo/sociedade não se constitui propriamente num problema novo. Contudo, na maior parte das vezes, os autores tenderam a enfatizar um dos pólos da relação: o homem ou o contexto, o sujeito ou a estrutura, o voluntarismo ou o determinismo, a liberdade ou a necessidade. Hoje, pelo contrário, um número significativo de historiadores procuram pensar a articulação entre as trajetórias individuais examinadas e os contextos nos quais estas se realizaram como uma via de mão dupla, sem cair nem no individualismo exacerbado (como nas biografias tradicionais, do tipo “a vida dos grandes vultos”), nem na determinação estrutural estrita (como nas análises marxistas ortodoxas). Tecer narrativas biográficas, sob esse ponto de vista, desafia o historiador, da fase de definição do objeto de pesquisa e constituição do problema de pesquisa à tessitura da narrativa com a (re)construção do personagem em seu tempo e espaço, por meio da costura de indícios captados na etapa de coleta de dados e da atribuição de sentido histórico a eles. Talvez, a biografia seja uma das formas mais difíceis de fazer História e defronta o pesquisador, de modo exasperado, com questionamentos acerca da significação histórica de uma vida individual e com o recrudescimento de antigos problemas de ordem teórico-metodológica inerentes ao ofício e à disciplina, como a polêmica perspectiva de (re)construção do real por meio da interpretação subjetiva do autor e da produção de um discurso – em oposição à proposição de transposição dos fatos – e a legitimidade e credibilidade de determinados tipos de fontes, como as orais. A argentina María Rosa Carbonari159, entre outros teóricos, defende que a construção 158 Benito Bisso SCHMIDT. Construindo Biografias ... Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Op. cit. 159 María Rosa CARBONARI. ¿Quién Construye la Historia? - la rehabilitación de los sujetos y la biografía renovada. In: II Congreso Interoceánico de Estudios Latinoamericanos. Mendoza (Argentina): Universidad 72 biográfica relaciona-se com questões metodológicas inerentes à historiografía em geral, a exemplo da redução de escala de análise (ou seja, o estudo de questões micro, de ambientes e de indivíduos específicos para compreender o espaço e o grupo social nos quais estão inseridos, ao invés da análise de objetos maiores como vilas, cidades, comunidades) e as relações entre o sujeito e a estrutura. Carbonari160 propõe, então, que a história de vida seja o mote para o entendimento de algo mais amplo: Si el retorno a la biografía se plantea dentro de los debates historiográficos contemporáneos, lo que está en discusión no es la historia de vida de una persona, de un “gran hombre” o de “un hombre común”, sino lo que se pretende mostrar con esa trayectoria. Esto es, arrojar luz a una cultura y contexto determinado, plantear la irreductibilidad de los individuos, identificar estrategias de acción frente a los condicionantes estructurales, reconocer la determinación de la estructura, etc. Por eso la biografía debe formar parte de los debates historiográficos contemporáneos y plantearse como un campo propicio para verificar el carácter intersticial de la libertad de los individuos frente a los sistemas normativos contradictorios. Destarte, o gênero permite diálogo entre a micro e a macro-história, conjuntura e estrutura, tempo e espaço de uma História individual e de um grupo social como um todo – como manifesto magistralmente nas obras de Ginsburg e Levi –, porém exige aplicação de rigorosos procedimentos metodológicos. A narrativa deve articular características e experiências pessoais com acontecimentos coletivos, sem os quais seria inviável a compreensão precisa do personagem objeto de estudos, evitando contar a História de um indivíduo deslocado do espaço social e considerando que ele pode ser, concomitantemente, sujeito e sujeitado dentro do processo histórico. Compete ao biógrafo fugir daquilo que Pierre Bourdieu denomina de “ilusão biográfica”161. Cabe ao historiador identificar um indivíduo, anônimo ou não, cuja vida ofereça subsídios para esclarecer questões coletivas; definir o problema de pesquisa em relação à experiência desse sujeito e do seu grupo social; investigar experiências individuais e coletivas e visões de mundo dessa personagem, a fim de delinear seu perfil à luz do contexto, e interpretar as informações amealhadas com a intenção de apreender características da sociedade em que este indivíduo viveu. É imprescindível, ainda, examinar as relações entre desígnio pessoal e forças convergentes ou concorrentes, distinguindo elementos inerentes ao biografado dos adNacional de Cuyo, 11 al 13 de setiembre de 2003, p.8. Disponível em: <ffyl.uncu.edu.ar/ifaa/archivo /IIInteroceanico/Sujeto/Historia/Carbonari.doc>. Acesso em: 27 jul. 2007. 160 Id. Ibid. 161 Pierre BOURDIEU. A Ilusão Biográfica. Op. cit. p. 190 73 quiridos em outros domínios, estabelecendo conexões entre suas especificidades e as formas de ser, perceber e interagir vigentes na sociedade de então, e fugindo do reducionismo manifestado pela simplista constatação de características e legitimação de ações do biografado. A meta do biógrafo deve ser narrar acontecimentos sociais do passado, por meio da (re)construção do tempo e espaço de uma experiência singular, visando a compreensão de aspectos da sociedade circunscritos àquele lapso temporal e espacial (como os sistemas normativos, as regras de etiqueta, os hábitos). Portanto, o ofício exige disposição para a prática da pesquisa, persistência e certa dose de sorte para identificação e sistematização de documentação escrita (inventário, testamento, certidões de nascimento e óbito, registros de batismo e casamento, processos criminais e cíveis, depoimentos gravados em mídia, manuscritos etc.) – por vezes, desorganizada e sujeita a intempéries, iconografia, artefatos arqueológicos, periódicos, depoentes e bibliografia reveladores de aspectos da trajetória do biografado e tão caros à (re)construção da vida privada e pública de indivíduos. Afora à aproximação com outras ciências e a Literatura, a História Nova trouxe outras contribuições à biografia, do ponto de vista da investigação em si e da tessitura e caracterização da narrativa apresentada ao leitor. Conforme já discutido na Introdução dessa tese, houve, por exemplo, a significativa diversificação dos tipos de fonte, o que não implicou, necessariamente, na flexibilização do rigor metodológico no que tange ao levantamento de vestígios acerca do objeto de estudos; e a crescente preocupação com a forma de apresentação do conteúdo. Destacam-se162 entre os subsídios ofertados ao gênero pela HN, ainda, a distinção das inferências e suposições do historiador da transcrição dos documentos; a rigorosa referência às fontes e à bibliografia utilizada; e a crítica interna e externa às fontes, com problematização do lugar e dos mecanismos de produção – são questões inerentes à investigação: quem produziu determinado vestígio? em que situação? com quais interesses?, franqueando ao leitor a base de elaboração do texto histórico e, por conseguinte, a possibilidade de confronto das fontes com as interpretações do pesquisador. Os depoimentos são coletados seguindo-se procedimentos científicos e são compreendidos e instrumentalizados como leituras da realidade (e não como dados despretensiosos), considerando-se os complexos processos de recriação do passado e da dinâmica de lembrar e 162 Benito Bisso SCHMIDT. Construindo Biografias ... Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Op. cit. 74 esquecer. Nesse sentido, aliás, têm-se desenvolvido no Brasil obras163 norteadoras das práticas de História Oral e memória, como realce para os trabalhos de Eclea Bosi, Marieta Ferreira, Verena Alberti e José Carlos Meihy. Pelo exposto, a biografia assimilou da Antropologia e da Psicologia aspectos que originaram mudanças na forma de apreender o objeto, de determinar o problema de pesquisa e de investigar. Da Literatura, importou recursos na tentativa de assegurar tanto a inteligibilidade do texto quanto o prazer da leitura. Posicionado entre a busca incessante da apreensão do real e a ficção, ela baseia-se em fatos reais do passado, mas emprega elementos inerentes aos trabalhos literários, de caráter predominantemente ficcional. Uma alternativa pode ser o emprego de recursos da comunicação verbal (como figuras de linguagem, funções de linguagem poética ou emocional, verbos imperativos) e literários [exploração de enredo e certa dramaticidade; valorização da intriga; preparação de clímax; uso de flashback; atribuição de densidade humana aos personagens, com apresentação de seus sentimentos, pensamentos, fantasias e aspirações; uso de fluxo de consciência (tentativa de “reprodução” do pensamento da personagem)] e da “criatividade ficcional” (suposição, hipótese devidamente sinalizada ao público) do escritor, para alinhavar o texto com coesão, coerência, clareza e elegância e propiciar o entendimento de diferentes espectros simbólicos de uma cultura, visando que a biografia seja índice referencial do universo no qual vive o biografado. Em A Biografia Histórica, Benito B. Schmidt164 aponta que lacunas sobre um personagem, regras sociais, brechas para criação e atuação individual deixadas pelas fontes podem ser supridas com a elaboração de hipóteses embasadas no contexto de atuação do objeto de análise. Por isso, é relativamente comum biógrafos sapecarem, em seus textos, expressões pouco usuais em relatos científicos como “talvez”, “estima-se”, “supõe-se”, “quem sabe”, “quiçá”, “possivelmente”. A historiadora estadunidense Natalie Zemon Davis, no romance histórico O Retorno de Martin Guerre, da década de 1980, por exemplo, entrelaça o verdadeiro e o possível, empregando termos como “provavelmente”, “talvez”, “pode-se presumir” e “é possível”. 163 Ver Marieta de Morais FERREIRA; Janaína AMADO (Org.). Usos & Abusos da História Oral. Op. cit., entre outros. 164 Benito Bisso SCHMIDT. A Biografia Histórica. In: César A. B. GUAZELLI et al. (Org.) Questões de Teoria e Metodologia. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000, p.123 apud Tânia Regina ZIMMERMANN; Márcia Maria de MEDEIROS. Biografia e Gênero: repensando o feminino. Revista de História Regional 9. Vol. 1 Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Verão 2004. p. 4. Disponível em: <http://www.rhr.uepg.br/v9n1/912zimmermann.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2007. 75 O artifício viabiliza a composição da narrativa e permite ao leitor transportar-se, mentalmente, a um mundo que já não existe165. Contudo, motiva discussões efusivas acerca da aproximação do gênero com a ficção. A “criatividade ficcional” é defendida e aplicada por autores como Natalie Zemon Davis166 – na introdução de O Retorno de Martin Guerre, ela afirma: “o que aqui ofereço ao leitor é, em parte, uma invenção minha, mas uma invenção construída pela atenta escuta das vozes do passado” –, porém também é rechaçada por outros tantos, sob a acusação de oferecer risco de distorção ou má-interpretação do real pelo leitor. Se discordante da adoção desse polêmico recurso, o historiador pode enfrentar as lacunas e a inexistência de lógica e explicação para todas as nuances da vida do ator social e político estudado, substituindo a reprodução de modelos que tratam os sujeitos históricos como indivíduos coerentes e estáveis, em narrativas construídas em ordem cronológica, pelo texto com evidências dos conflitos e das rupturas, contradições e decisões inconscientes ou aparentemente irracionais do biografado. Além da assimilação de elementos de outras ciências e da Literatura e da adoção de novos métodos e procedimentos, o emprego da “criatividade ficcional” é um dos principais alvos de crítica dos pesquisadores que contestam a biografia. Décadas após seu ressurgimento, entre os historiadores mais conservadores, ela ainda suscita dúvidas quanto à sua validade para a compreensão de grupos ou acontecimentos sociais, políticos, econômicos e culturais e quanto ao seu enquadramento como gênero da História. Muitas vezes, é apontado como um formato menor. Outros pesquisadores, contudo, reconhecem sua inegável contribuição para a disciplina e a historiografia, tornando-se uma referência no cenário de renovação do campo da História. No Brasil, usualmente, emprega-se a biografia167 como ferramenta de humanização da História, gerando identificação por parte do público; para homenagem, crítica e saudação; e para difusão de exemplos de vida como recurso pedagógico de orientação cívica da população. Porém, publicação de biografias e autobiografias foi escassa até os anos 1990, embora haja honrosas iniciativas para incrementar a produção. Uma importante contribuição para o fomento do gênero no Brasil foi o trabalho de 165 Nesse quesito, aliás, o historiador baiano João José Reis tem se mostrado como modelar, notadamente, na obra Domingos Sodré, um Sacerdote Africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (2008), em que costura retalhos da vida de um pai-de-santo de modo a levar o público à complexa Cidade da Bahia do século XIX, dimensionando tanto a condição e posição social do negro quanto táticas e manifestações culturais e religiosas até então desconhecidas ou pouco debatidas. 166 Natalie Zemon DAVIS. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 21. 167 Rebeca GONTIJO. A Vida Póstuma de um Historiador Nacional. Op. cit. 76 institutos históricos – em especial, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –, sobretudo, através da Revista do IHGB, que lançou uma seção necrológica dedicada à biografia de mortos ilustres em 1840. Das décadas iniciais da tipografia no Brasil, destaca-se o livro de Joaquim Nabuco, Um estadista no Império (1898), que narra a trajetória do Conselheiro Nabuco de Araújo para iluminar acontecimentos do Brasil Império. Nos anos 1930 e nas duas décadas que seguem, registram-se lançamentos relevantes, como os dez volumes da História dos Fundadores do Império, publicado em 1958 por Octávio Tarquínio de Souza. Entre os brasileiros, a trajetória de sujeitos históricos é explorada em narrativas da História e de outros campos, como a Literatura e o Jornalismo, e as características dos estudos biográficos são aplicadas em formatos textuais de diversos campos168. No Brasil, o curso da vida de indivíduos ora origina publicações historiográficas (como D. João VI e Condessa de Barral, a Paixão do Imperador, de 1908 e 2009, escritos por Oliveira Lima e Mary Del Priore, respectivamente), ora é o tema central de obras sem pretensão historiográfica (como José Bonifácio, o Velho e o Moço, de 1920, do baiano Afrânio Peixoto, e Carmen: uma biografia, de 2005, do jornalista e escritor Ruy Castro). A história de vida, também, subsidia romances históricos (a exemplo de O Príncipe de Nassau, lançado em 1926 por Paulo Setúbal; Olga, publicado em 1985 por Fernando Morais; As Minas de Prata, de 1865/1866, de José de Alencar); inspira romances literários (como Memórias Póstumas de Brás Cubas, feito em 1881, por Machado de Assis); alimenta livros didáticos; e perpassa títulos memorialísticos (como O Meu Próprio Romance, de 1931, de Graça Aranha; A Menina sem Estrela - memórias, de 1967, de Nelson Rodrigues; Anarquistas Graças a Deus, Senhora Dona do Baile e A Casa do Rio Vermelho, de 1979, 1984 e 1999, de Zélia Gattai; Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de 1992, de Jorge Amado; O Partido Comunista que Eu Conheci – 20 anos de clandestinidade e Valeu a Pena – desafios da minha vida, de 1988 e 2010, do baiano João Falcão). A exemplo da mídia internacional, os veículos jornalísticos brasileiros exploram as ideias e ações, os feitos e as desventuras de personalidades de destaque na sociedade ou anônimos por meio de textos jornalísticos em formatos de perfil (quando versa, exclusivamente, sobre uma personagem e enfatiza um ou mais aspectos da sua vida) e de notícia, artigo e reportagem (quando características e/ou aspectos da vida de um sujeito são apresentados como recurso para ilustração, exemplificação, explicação dos fatos relatados). 168 Id. Ibid. 77 Na Bahia, observa-se a inserção de história de vida em periódicos impressos desde o século XIX, à revelia das acaloradas discussões teóricas e metodológicas acerca do gênero. O Diario de Noticias, por exemplo, fez uma série dessas narrativas em formato de perfil em 1924, tendo como foco personalidades políticas da época, como Octavio Mangabeira e João Joaquim Seabra. Os jornais e revistas publicam textos necrológicos e, a depender da proeminência da personalidade, lançam suplementos biográficos especiais em homenagens póstumas. Nesse caso, são exemplos os volumosos cadernos sobre o escritor baiano Jorge Amado e o governador Antonio Carlos Magalhães, editados pelos matutinos Correio da Bahia e A Tarde no dia posterior às suas mortes, ocorridas respectivamente em 6 de agosto de 2001 e 20 de julho de 2007. Esse primeiro impresso, também, editou por anos o suplemento dedicado à história e cultura da Bahia intitulado Correio Repórter169, no qual o perfil jornalístico era um formato recorrente. Entre os publicados nos anos 2000, podem ser destacados os textos sobre a ialorixá do Terreiro do Gantois, Mãe Menininha do Gantois; o babalorixá Joãozinho da Gomeia; o artista plástico Carybé; o reitor e criador da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos; o industrial e fundador do Empório Industrial do Norte, Luis Tarquínio; o compositor Assis Valente; os educadores Anísio Teixeira e Isaías Alves; e o poeta popular Cuíca de Santo Amaro, além do dedicado a Cosme de Farias, elaborado pela autora desta tese. 1.2 PERSEGUINDO OS RASTROS DO MAJOR Na tese ora iniciada, procura-se equilibrar a relação entre o indivíduo Cosme de Fari169 O caderno circulou pela primeira vez em maio de 2000, como encarte dominical do periódico da Rede Bahia de Comunicação – holding de empresas de comunicação, entretenimento, entre outros ramos, da família do senador Antonio Carlos Magalhães. Seu objetivo era abordar fatos da História da Bahia, relacionando-os a questões da atualidade, superando a fugacidade das coberturas diárias da imprensa e aprofundando o conhecimento sobre questões de relevância social. A publicação, ao longo do tempo, oscilou com oito, doze e 16 páginas em formato standart, impressas em papel jornal com capa e contracapa coloridas e miolo em preto e branco. A proposta inicial era publicar duas grandes reportagens sobre temas da história e cultura do Estado da Bahia, elaboradas por uma equipe de jornalistas, com pelo menos um artigo de especialista ligado ao assunto, além de uma síntese dos principais fatos da semana (coluna Resumo), de um perfil de personagem anônimo, duas crônicas de escritores e jornalistas da cidade, uma reportagem e uma coluna (Observatório) sobre ciência e tecnologia. Toda a equipe era constituída por jornalistas contratados pelo jornal, mas havia colaborações de outros jornalistas e escritores (Gilson Nascimento, Cláudio Nogueira, Mayrant Gallo) e de pesquisadores do campo das ciências sociais, sobretudo de História. Pelo trabalho, o jornal conquistou mais de 20 prêmios locais e nacionais em quase oito anos, porém o suplemento deixou de circular em fevereiro de 2008, durante uma reforma gráfico editorial do impresso, sob alegação de contensão de despesas. 78 as, seu tempo e espaço, com diálogo permanente entre esses planos, pressupondo-se que qualquer fato ou indivíduo pode (e deve!) ser tratado socialmente, mas a História só se torna “História Social” quando se busca apreender e problematizar o objeto de pesquisa no bojo do contexto em que ele está inserido. As investigações e reflexões sobre o biografado iluminam, entre outras questões, a organização de redes sociais locais, meios de ascensão social de mulatos (como o Major), práticas inerentes ao exercício do jornalismo e da assistência social, assim como e as formas de poder manifestados em Salvador até meados do século XX. Em síntese, deseja-se oferecer ao leitor um “retrato” do sujeito e a possibilidade de reflexão do tempo e espaço histórico em que ele viveu. Por conseguinte, neste estudo biográfico, opera-se em consonância com a proposta de (re)construção de um acontecimento ou processo histórico por meio do estudo de informações levantadas junto a fontes relacionadas à história de vida de um indivíduo e às suas leituras e às suas interpretações do real, identificadas e apreendidas a partir dos registros de episódios pontuais, sonhos, desejos, ações, interações sociais desse sujeito biografado. Objetiva-se a superação da simples narrativa da vida da personagem, da colagem despretensiosa de fatos do dia a dia do biografado tão cara a pesquisas dessa natureza. Tomase, aqui, a biografia como gênero historiográfico que aborda características físicas, cognitivas, profissionais, emocionais e psicológicas, ações e reações, conflitos individuais e atuação como ser social e inserção em redes de sociabilidade do indivíduo estudado. Ou seja, como instrumento para a reflexão sobre as ideias, a atuação, as escolhas, as estratégias, as negociações, os atos de manipulação, a interpretação das normas e regras sociais de um sujeito, que possibilita a observação do funcionamento de sistemas normativos e suas contradições, em consonância com a proposição do francês Roger Chartier170. Assim, os códigos da linguagem escrita e as experiências do biografado, por exemplo, se constituem como índice referencial do grupo social em que Cosme de Farias esteve inserido. Tal perspectiva baseia-se em ponderações de autores como o sociólogo Pierre Bourdieu 171 , para quem a suposta oposição entre o indivíduo e a sociedade é uma falácia. Ao con- trário, indivíduo constitui-se como tal a partir da sua inserção no espaço social, só existe enquanto parte de uma complexa rede de relações sociais, é um ator com virtudes e limitações forjadas socialmente. E, por consequência, o sujeito histórico e o contexto em que ele está inserido somente podem ser compreendidos se o biógrafo reconhecer o estudo biográfico co170 Roger CHARTIER. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos. Vol. 7, n° 13. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1994, p.102. 171 Ver obras como Pierre BOURDIEU. A Economia das Trocas Simbólicas. Op. cit. 79 mo um mecanismo para a percepção de um universo mais amplo e focar-se tanto no biografado quanto no que está ao seu redor. No entanto, reconhece-se que identificar, conhecer e apreender inteiramente os fatos, as vivências, as redes de relações de uma personagem como Cosme de Farias parece utópico, face ao pressuposto de que o fazer biográfico consiste na (re)construção do real a partir de fragmentos, de retalhos, de rastros deixados no tempo e no espaço pelo sujeito biografado e outros atores com os quais ele se relacionou. A biografia apresenta uma interpretação específica do passado – dentre tantas possíveis! –, considerando-se que a História é uma forma de conhecimento aprisionada ao real, porém tecida a partir de versões de fontes múltiplas (interessadas e passíveis de lapsos e falhas em decorrência da distância temporal), em um processo determinado pela subjetividade do historiador, pelas condições de pesquisa e, também, pelo contexto histórico, social, cultural, econômico, político. O historiador recorre a fontes com interesses, capacidade de lembrar e narrar diversas e experiências específicas, para registro e constituição da memória coletiva; interpreta as informações de maneira subjetiva172; e, por fim, formula a narrativa histórica aproximando-se do real – e não o apreendendo na sua inteireza, amplitude e complexidade. O mesmo aplica-se ao pesquisador dedicado às biografias, a exemplo desta que ora se inicia. Todo fazer histórico – inclusive em estudos biográficos – perpassa tanto pelo planejamento e pela implementação de táticas de investigação voltadas à identificação, à compreensão, à apropriação e ao recorte de um fato ou uma série de fatos constituintes do fenômeno tomado como objeto de estudo quanto pela elaboração estratégica de um discurso inteligível e convincente acerca desse objeto. Indubitavelmente, esse discurso atribui novos significados para o mundo e influencia as formas de ver, sentir, pensar da sociedade e, quiçá, a tomada de decisões dos sujeitos, embora possa ser apreendido de maneiras diversas e não necessariamente o receptor esteja impotente nesse cenário, pois a ele é reservada a autonomia para interpretar e re-significar as mensagens de acordo com suas idiossincrasias. Assim, torna-se necessário se firmar um compromisso de busca incessante pela mais fiel possível apreensão do sujeito estudado. A biografia exige mais do que acesso à documen172 “Carregando suas análises com sua própria visão de mundo, ambos colocam a sua singularidade pessoal, a sua subjetividade ao empreender a narrativa. É preciso, pois, enxergar em ambos os textos – seja do jornalista ou do historiador – a sua carga de textualidade. E não ter a pretensão de buscar a realidade presente na narrativa jornalística e a verdade passada no discurso do historiador. É preciso entender que tanto o jornalista como o historiador produz construções narrativas, nas quais o elemento subjetivo e ficcional estará sempre presente”. Ver Marialva BARBOSA. Jornalismo e História: um olhar e duas temporalidades. In: Lúcia Maria P. das NEVES; Marco MOREL (Org.). Anais do Colóquio História e Imprensa: homenagem a Barbosa Lima Sobrinho – 100 anos. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 88. 80 tação do e sobre o personagem enfocado; ela requer rigor metodológico desde a investigação, sapiência para a interpretação e reflexão acerca dos dados levantados, e talento para a costura de uma narrativa clara, coesa, coerente e, sobretudo, respeitosa ao perfilado e seus descendentes, para garantir maior aproximação do real, legitimidade e credibilidade. No desenvolvimento desta pesquisa doutoral, há a severa aplicação da metodologia explicitada na Introdução e a proposta é não se deixar seduzir pela tentação de suprir, a qualquer custo, inclusive com inferências e suposições infundadas, as lacunas deixadas pela documentação e as dificuldades de obtenção de explicação para os conflitos e as contradições desse indivíduo, evitando a reconstituição do que fora silenciado por ele e sobre ele pelas fontes consultadas e indicando, sem angústia, as incoerências da personagem e das fontes, vislumbrando sempre a composição de um texto inteligível e comprometido com a produção de conhecimento e o próprio biografado. Também, são evitadas lembranças exóticas e anedóticas do passado, salvo nos casos em que esses dados são constitutivos da personalidade do Major. Evoca-se o paradigma bourdieuniano para identificar, compreender e apreender experiências de Cosme de Farias, a fim de propiciar o entendimento do universo dele e da sociedade do seu tempo e espaço. Crê-se que a atenciosa observação do habitus do Major e das condições sociais de produção desse habitus, seguindo-se pressupostos metodológicos científicos, permite à autora tanto a descrição de elementos objetivos como seus traços físicos quanto a possível construção de inferências fundamentada acerca de suas características subjetivas, suas preferências, seus propósitos, seus conflitos, suas contradições e a relações de força e poder que teceu na Cidade da Bahia. Os resultados são explicitados nas páginas que seguem. 81 2 A CONQUISTA DE LUGARES SOCIAIS 2.1 DA INFÂNCIA NO SUBÚRBIO À ESCOLARIZAÇÃO Último quartel do século XIX. Senhores de engenhos173 dos arredores de Salvador bateram à porta da presidência da então Província da Bahia, com um pedido de socorro. Outrora forte reduto e motivo de orgulho da economia baiana – com 892 engenhos pra processamento da cana-de-açúcar instalados em 1875 –, o Recôncavo padecia com o declínio da agroindústria açucareira do Brasil e sentia o amargo sabor de uma crise que já perdurava desde meado dos oitocentos. Imbuídos do desejo de reverter a situação, os produtores queriam auxílio governamental para investir na modernização das propriedades e, assim, poder competir no mercado internacional. O soerguimento do setor açucareiro, àquela altura, no entanto, não dependia apenas da implantação de novas técnicas de manejo, para atenuar as deficiências no plantio e o retardo na assimilação de tecnologias para beneficiamento da cana que substituíssem a moenda movida à tração humana – por escravos – e animal. Era preciso mais. Para adaptar-se ao modelo capitalista em desenvolvimento no mundo, urgiam investimento na infraestrutura, visando, por exemplo, melhorar o sistema de transportes e facilitar o escoamento da produção e de superação do cultivo agrícola ancorado no latifúndio e na mão-de-obra escrava, sob comando de indivíduos em declínio econômico, mas com poder político suficiente para induzir a criação de medidas que lhes pudessem beneficiar pessoalmente. Os senhores conseguiram o apoio ansiado e inúmeras ações foram implementadas pelo governo. Porém, logo, as iniciativas esvaíram-se sem o êxito esperado. A Bahia continuaria sustentando-se na economia agroexportadora, no trabalho escravo e na política balizada nos interesses de um seleto grupo. Por um lado, a Província 174 tinha áreas internas de domínios nas mãos de um exíguo grupo político, uma elite política que se relacionava com o governo central, mas em busca de benesses para si e para os seus. Ali, já priorizavam os interesses individuais, em detrimento da Bahia como um todo. Por outro, definhava ao manter sua 173 Tatiana Brito de ARAÚJO. Os Engenhos Centrais e a Produção Açucareira no Recôncavo Baiano 18751909. Salvador: Federação das Indústrias do Estado da Bahia, 2002. Disponível em: <http://www.fieb.org.br/premioeconomia/engenhos.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2009. 174 BAHIA DE TODOS OS FATOS - cenas da vida republicana 1889-1991. Salvador: Assembleia Legislativa da Bahia, 1996. p. 270-301; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 484-488. 82 economia baseada na exportação de produtos primários – o açúcar, além do fumo, do cacau e de outras mercadorias – e na importação de manufaturados – como tecidos, lã, vinhos, carnes, carvão em pedra –, especialmente da Inglaterra, da França, de Portugal, da Alemanha e dos Estados Unidos. O processo de industrialização até havia sido iniciado, na primeira metade do século XIX, com o fabrico de tecidos de algodão, sobretudo, por ingleses, mas o segmento não ascendeu a ponto de se equiparar ao setor açucareiro em relevância econômica para a Província. Como a indústria local era incipiente, os abastados recorriam a casas comerciais de origem europeia, para conseguir se vestir, ler, servir-se à mesa e até adquirir empréstimos a juros, cedendo bens – inclusive escravos – como garantia de pagamento. Os proprietários das ditas lojas, por serem estrangeiros, tinham facilidade para negociar com os centros de produção no exterior e gozavam da segurança e rapidez dos navios mercantes e de taxas de cabotagem mais baratas. Naqueles tempos, províncias, geridas por presidentes, constituíam o Império. Em 1875, a Bahia175 era administrada por Venâncio José de Oliveira Lisboa, logo sucedido por Luis Antônio da Silva Nunes. E até a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, outros 13 presidentes ascenderiam ao governo da Província da Bahia. À época, no Brasil, havia uma disposição pró-República tanto de camadas urbanas quanto de um grupo agrário que vislumbrava galgar poder político; e de militares que, apesar de manterem disputas internas dentro do Exército, não deixavam as desavenças abalar seus ideais republicanos. A Bahia era um dos poucos lugares do Brasil onde a Monarquia ainda aparentava vigor, embora não estivesse livre dos reclames republicanos que ecoavam desde a sede do Império, no Rio de Janeiro, e espalhavam-se por territórios como São Paulo e Minas Gerais. Em Salvador e no interior, os ideais republicanos disseminaram-se por meio da imprensa e de organizações como o Clube Republicano, criado em 1878. Com o surgimento do Clube Federal Republicano (1888) e do jornal A República Federal (1889), o movimento ganhou suas duas principais referências locais contra o Império vigente desde 1822 e das proposições dos partidos Conservador e Liberal, porém, ainda assim, permaneceu inexpressivo, do ponto de vista político, comparando-se com outras regiões176. Não é à toa que o governo monárquico provincial elegeu a Bahia como espaço de resistência, pela conservação do regime monarquis175 176 Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 270-301 Id. Ibid., p. 294-303. 83 ta e em defesa do imperador Dom Pedro II. Os esforços, contudo, foram em vão. Em 15 de novembro de 1889, ocorreram a Proclamação da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil e a instauração do Governo Provisório presidido por Deodoro da Fonseca, em substituição ao Império e à gestão do imperador com raízes na nobreza portuguesa. Inaugurou-se, portanto, um novo regime. À frente do processo, estavam militares que, a princípio, rechaçavam civis, mas terminaram firmando parceria com políticos diversos, visando assegurar apoio para extinção definitiva da Monarquia com manutenção da “ordem”. De início, o presidente da Província da Bahia, José Luís de Almeida Couto, a Câmara de Salvador – então a única instância de poder da cidade – e o comando das armas das províncias da Bahia e Sergipe protestaram. E não estavam sós. Membros da chamada Guarda Negra177, defensores da Princesa Isabel que apoiavam a Monarquia, sufocaram a comemoração de republicanos realizada nas imediações do Forte de São Pedro, até terem seus ânimos arrefecidos por intervenção policial. As reações, no entanto, apenas retardaram a implantação do novo sistema na Bahia por três dias. E já em 18 de novembro, o médico republicano Virgílio Damásio178 assumiu as funções de governador do Estado. No dia 23, ele transmitiu o cargo a Manuel Vitorino Pereira179, em obediência à determinação do Governo Provisório, do qual o 177 Após a abolição oficial da escravatura pela Princesa Isabel, grupos negros – primeiro, no Rio de Janeiro e, depois, em várias partes do Brasil – engajaram-se para defesa da Redentora e, por conseguinte, da manutenção da monarquia, em detrimento do prenúncio da República, principalmente, como gratidão a quem extinguiu o regime escravagista no Império. Cunhado como isabelismo, o movimento culminou com a formação da Guarda Negra, uma legião composta por ex-escravos, muitos dos quais capoeiras, cujo principal objetivo era suspender manifestações republicanas inclusive com emprego da força física, o que dissipou comícios pró-República e até teria provocado mortes de opositores à Monarquia. Um dos organizadores da Guarda foi o jornalista José do Patrocínio, viceral monarquista, mas um dos primeiros a aderir ao regime republicano após a queda do Império e a posse de Deodoro da Fonseca para gestão do território, em 15 de novembro de 1889. Ver melhor em Clóvis MOURA. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992. 178 Nascido em Itaparica, na Bahia, em 1838, e morto em Salvador (BA), em 1913, o conselheiro de Estado, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e médico Virgílio Clímaco Damásio teve importante papel político na primeira fase da República, na condição de governador (1889), vice-governador (1890), senador (1890-1909) e vice-presidente do Partido Republicano da Bahia, na época da sua fundação, em 1889. Mediou a implantação da República na Bahia, quando, primeiro, houve resistência à nova ordem e, depois, adesão da população. Neste ínterim, ante a recusa do intendente indicado pelo governo provisório - o diretor da Faculdade de Medicina, Manuel Vitorino – de assumir a função em um quartel, Damásio tomou posse e, 13 dias após, transmitiu o cargo ao colega. Este, contudo, não conseguiu sustentar-se no governo e foi substituído pelo marechal Hermes Ernesto da Fonseca, o irmão de Deodoro da Fonseca. Diante da saúde frágil, o marechal declinou e Damásio, que era o vice, passou a gerir o Estado. Entre 14 de setembro de 1890 e 15 de novembro do mesmo ano, ele organizou a reforma do ensino de medicina legal e instituiu a assembleia constituinte do Estado. PERÍODOS LEGISLATIVOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA – 1909-1911 – Virgí lio Clímaco Damásio. In: Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 2009. Disponível em: <http://www.senado.gov.br /sf/SENADORES/senadores_biografia.asp?codparl=2271&li=28&lcab=1909-1911&lf=28>. Acesso em: 1 abril 2009; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 294-301. 179 Manuel Vitorino Pereira nasceu em 1853, em Salvador (BA), e morreu em 1902, no Rio de Janeiro. Médico. Na primeira fase do regime, havia sido intendente do Estado, entre 1989 e 1890, quando prometeu priorizar a 84 baiano Rui Barbosa180 era Ministro da Fazenda e um dos principais mentores. Erguida sobre uma montanha com vista para a Baía de Todos os Santos, a velha Cidade da Bahia181, ainda, cultivava o aspecto de capital da América Portuguesa, era uma espécie de metrópole do Atlântico Sul. Em pontos estratégicos da terra e do mar, mantinha fortificações concebidas outrora, a fim de guarnecer a então capital da Colônia, além de canhões à espreita, prontos para o combate a eventuais inimigos. Em edificações imponentes das imediações do Terreiro de Jesus, no núcleo inicial da cidade, funcionavam órgãos das instâncias do poder constituído – o executivo, o legislativo e o judiciário –, o que pode ter motivado a proliferação do comércio nos arredores. Quem andava por lá se deparava com casarões, sobrados e igrejas, com traços, predominantemente, coloniais e neoclássicos, construídos, sobretudo, a partir do século XVII, por proprietários rurais ávidos para demonstrar seu poderio através da arquitetura e da localização privilegiada dos seus imóveis. Nos derradeiros anos oitocentistas, latifundiários, industriais, comerciantes, intelectuais, políticos, funcionários públicos começavam a usufruir de serviços capazes de lhes assegurar conforto e até maior eficiência nos negócios e na produção em Salvador. Em parte da cidade, aqueles que podiam custear privilégios tinham acesso, em casa e/ou no ambiente de trabalho, a iluminação a gás, água canalizada pela Companhia do Queimado, meios de comueducação, dissolveu os partidos imperiais e criou a milícia civil. Também, foi senador pelo Estado de origem. Em seguida, tomou posse como vice-presidente na gestão de Prudente de Moraes, o primeiro presidente civil eleito por voto direto na República. Em virtude do titular ter passado por uma cirurgia para extração de cálculos biliares, o baiano assumiu a presidência do Brasil, em caráter interino, e permaneceu no cargo entre novembro de 1896 e março de 1897, período de crise econômica e política. Após tentativa frustrada de permanecer no cargo com a renúncia de Moraes, voltou à vice-presidência e, ao fim do mandato, resolveu recolher-se à vida privada na Bahia. MANUEL VITORINO PEREIRA. In: Portal Uol. São Paulo: Portal Uol/Grupo Folha, 2009. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u718.jhtm>. Acesso em: 21 mar. 2009. 180 Rui Barbosa de Oliveira, nascido em Salvador (BA), em 1849, e morto em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 1923, formou-se em direito e atuou como jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador. Em 1870, no Rio de Janeiro, passou a pregar a abolição da escravatura. Em seguida, como deputado provincial e deputado geral, defendeu um novo sistema federativo, ao lado de Joaquim Nabuco. Após a proclamação da República, em 1889, foi alçado pelo governo provisório ao cargo de ministro da Fazenda e, depois, da Justiça. Como senador pela Bahia, integrou a Assembleia Constituinte, interferindo, diretamente, na Constituição de 1891. Mais tarde, colocou-se contrário ao presidente Floriano Peixoto. Assim, requisitou habeas-corpus para os presos políticos da época e fez campanha na imprensa contra a gestão florianista, tendo sido exilado entre 1893 e 1895. No regresso ao país, retornou ao Senado, foi reeleito várias vezes e manteve-se no parlamento até a morte, sendo redator do Código Civil. Em 1905, teve seu nome indicado por confrades da Bahia para concorrer à presidência da República, mas recusou a oferta em favor de Afonso Pena. Depois, organizou a campanha civilista no país contra a candidatura à presidência do Marechal Hermes da Fonseca e chegou a contestar no Senado sua eleição, em 21 de julho de 1910. Em 1913, fundou o Partido Liberal e voltou a ser indicado para a presidência, mas refutou. Seis anos depois, em 1919, implementou uma campanha vitoriosa contra os malgrados costumes políticos no país e foi, de novo, lembrado na composição de chapa para a presidência da República. Os efeitos da iniciativa, entretanto, foram anulados pela intervenção militar do governo Epitácio Pessoa. BIOGRAFIA. In: Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=193&sid=146&tpl =printerview>. Acesso em: 23 mar. 2009. 181 Antonio RISÉRIO. Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004, p.378-379. 85 nicação a cabo submarino e telefone. Para uns, tornava-se possível até cuidar de males diversos do corpo com uso de medicamentos comprados em farmácia. Novos meios de transporte davam um novo ritmo ao cotidiano. Os veículos a vapor, que ligavam o Centro a vários pontos, e o Elevador Lacerda, inaugurado em 1873 para locomoção entre as áreas alta e baixa da cidade, exigiam menos esforço e tempo para o deslocamento e reduziam a dependência da condução por animais e escravos, muitas vezes, obrigados a carregar senhores e senhorinhas no próprio colo por longas distâncias. Pelas águas e pela linha férrea, pessoas e mercadorias alcançavam até outras províncias, com mais agilidade e menor custo e livres do desconforto da cavalgada no lombo de animais ou em veículos tracionados por animais. O investimento em navegação e na estrada de ferro Bahia-Minas passou a facilitar o trânsito pelo litoral e interior, exatamente, nos últimos anos do século XIX. Nem todas as inovações, entretanto, chegavam aos rincões da Cidade da Bahia, que tinha cerca de 110 mil habitantes, conforme recenseamento de 1872, e aproximadamente 150 mil pessoas, em 1890182. À sombra do Centro, a área banhada pelas águas calmas da Baía e o interior da urbe tinham rotina bem diferente. A longínqua Península Itapagipana e o atual Subúrbio Ferroviário serviam, muitas vezes, como espaço de lazer e estação de veraneio para industriais, grandes comerciantes e outros abastados economicamente, além de abrigar pessoas da classe baixa183, sem posses suficientes para moradia no Centro. Já os terrenos mais distantes do litoral – localizados na área, genericamente, chamada em meados do século XX de miolo – prestavam-se ao cultivo de frutas, legumes, hortaliças, e à criação de animais para produção de leite, ovos e carne. Por lá, se formaram inúmeros sítios e chácaras que abasteciam às famílias de toda a parte. 182 Id Ibid., p. 457. Toma-se como classe baixa a tipificação do antropólogo Thales de Azevedo, em As Elites de Cor numa Cidade Brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio (1996. p. 174): “A classe baixa ou ‘pobreza” compreende todos os que se situam em níveis econômicos e de prestígio ocupacional inferiores aos descritos [para as classes alta e média], especialmente os que vivem do trabalho manual e braçal: os funcionários públicos, os empregados do comércio, os operários não especializados, os ‘artistas’ ou artesãos, os operários das construções civis e da indústria, os pequenos comerciantes como vendeiros, quitandeiros, feireiros, vendedores ambulantes, os empregados domésticos, finalmente os roceiros. Os critérios que se combinam para a classificação neste estrato são o dos níveis de propriedade e de renda e o do baixo prestígio do trabalho manual que desde o período colonial determinava o status inferior dos escravos, dos roceiros e dos ‘oficiais mecânicos’”. O trabalho baseia-se no estudo de Azevedo, sobretudo, por esse oferecer uma compreensão pertinente e objetiva da realidade de Salvador e por ser aplicável ao objeto e contexto em que se lida agora. Acredita-se que Azevedo refina o pensamento quanto à formação da sociedade, ultrapassando, por exemplo, as limitações dos princípios do processo dialético da luta de classes e da constituição das classes burguesa e proletária associada à exploração dos proletários pelos burgueses, imprescindíveis ao funcionamento do sistema capitalista e apresentados por Karl Marx e Friedrich Engels [ver em K. MARX; F. ENGELS. O Manifesto Comunista. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p.9 e seg.], ao distinguir classes de estratos e caracterizá-los considerando as especificidades de natureza econômica, política, cultural e étnica de grupos e a possibilidade de mobilidade. 183 86 Num destes arrabaldes, em São Tomé de Paripe, nasceu, aos dois dias de abril de 1875, um menino chamado de Cosme de Farias184. O mulato pequenino e magricela era filho do casal Paulino Manuel e de Júlia Cândida de Farias e teria um irmão gêmeo, cuja morte precoce selaria o destino de Cosme como filho único. À época, sequer se arriscava imaginar um futuro para aquele bebê, mestiço do Subúrbio, herdeiro de um pequeno comerciante do ramo de madeira com uma dona-de-casa (que, depois, tornou-se vendedora de comida), pelo que consta, sem antepassados apatacados financeiramente ou com liderança política ou considerados intelectuais. À primeira vista, os traços comuns entre africanos e seus descendentes denunciavam sua origem. Em si, o biótipo já contava contra ele. O rebento dos Farias não era da cor de azeviche, mas o tom da sua epiderme, no mínimo, colocava-o no rol dos mulatos. Tinha, também, lábios carnudos; nariz protuberante; e cabelos ondulados, com fios tão grossos quanto aqueles observados no seu vasto bigode e nas suas sobrancelhas grossas exibidos na maturidade, que, de certa forma, ajudavam a desviar a atenção dos olhos graúdos e fundos. Mais tarde, somente o corpo franzino e a baixa estatura (por volta de 1,60 metro), se comparada à altura média dos brasileiros, contrastaria à imagem do negro de porte avantajado e músculos bem definidos, sedimentada a partir dos trabalhos dos pintores documentaristas que registraram com arte cenas do cotidiano do Brasil Colonial e Imperial. Embora não se tenha localizado documentação sobre a origem étnica dos seus ancestrais nesta pesquisa, sua aparência não deixava dúvida: ele era um mestiço, de ascendência negra. Quando Cosme veio ao mundo, em 1875, o escravismo estava em declínio, sobretudo, em decorrência da contestação do sistema pela Inglaterra, movida pelo interesse de ampliar seu mercado consumidor no Brasil por meio do crescimento da população com poder de compra. Contudo, o preconceito e a discriminação contra africanos e seus descendentes permaneciam arraigados nas relações sociais do dia a dia. A determinação oficial de extinção do tráfico negreiro, através da Lei Eusébio de Queiróz (1850), não pôs fim à importação de africanos para trabalho forçado no Império do Brasil. As leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários ou Saraiva-Cotegipe (1885), que previam liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir de então e aos idosos com mais de 60 anos, não asseguraram autonomia nem possibilidade de inserção social dessas pessoas. E a Lei Áurea aboliu o regime em 13 de maio de 1888, do ponto de vista oficial, e até fez o menino Cosme festejar, mas não foi capaz de asseverar igualdade de direitos entre brancos e não-brancos. 184 A TARDE. Salvador (BA), edição de 18 de março de 1972. 87 Aos 13 anos, Cosme de Farias185 teria ido às ruas de Salvador, como tantas outras pessoas, comemorar a extinção da escravidão no Império. Na ocasião, talvez embalado pela notícia vinda do Rio de Janeiro, manifestou sua alegria em discurso, o primeiro da sua vida. Não previa que a dita lei, assinada pela princesa imperial regente Isabel, em nome do imperador D. Pedro II, e resultante de uma longa campanha abolicionista, não garantiria, necessariamente, melhores condições de sobrevivência a africanos e crioulos. Desde então, muitos regressaram à África, em busca de elementos que pudessem lhes propiciar a reconstrução da vida. E outros permaneceram no Brasil, sem qualquer indenização pelo trabalho realizado na qualidade de escravos e, muitas vezes, sem emprego, sem moradia, sem garantia de alimentação. Até meados do século XX, era sintomática a herança do escravagismo em Salvador, outrora chamada de Cidade da Bahia: É somente em parte verdadeira a idéia de que na Bahia não existem preconceitos e discriminações por motivos de cor. A gente de cor ainda é colocada por muitas pessoas em uma categoria biológica e social com características inferiores às dos brancos. Acreditam essas pessas que a capacidade intelectual, os traços de personalidade, a moralidade, as possibilidades de progredir socialmente e de enculturar-se na civilização dominante diferem dos indivíduos de cor para os brancos, dizendo que a Bahia não progride mais ‘por causa dos pretos’. [...] Em virtude desses sentimentos, que são aliás muito tênues, verificam-se discriminações contra os escuros em alguns setores da organização social. É evidente, todavia, que as discriminações são muito brandas e que dificilmente se podem distringuir dos antagonismos de classes [...]186. Provavelmente, Cosme celebrou sem a plena ciência do imbricado contexto em que vivia e das limitações impostas a pessoas como ele – mulato, originário do Subúrbio e pertencente a uma família com parca dotação econômica, política ou cultural –, justo quando esta tríade era de extrema relevância para qualquer ascensão social em Salvador. A sociedade187 dividia-se em duas camadas principais – uma superior, a dos brancos (ou socialmente brancos), ricos; e uma inferior, a dos pretos, pobres –, relacionadas aos bens materiais, às propriedades, à renda e à ocupação das pessoas que as constituíam. Dessas camadas, emergiram as classes sociais – a alta ou elite188, a média189 e a baixa190 ou dos pobres –, conforme Thales de 185 Adroaldo Ribeiro COSTA. O Major foi à Hora da Criança. Op. cit. Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. Salvador: EdUFBA; Empresa Gráfica da Bahia, 1996, p.163. 187 Id. Ibid., p.169-174. 188 Este grupo é formado por três categorias de indivíduos, cujo status é atribuído pelas condições ligadas ao nascimento, em detrimento das virtudes adquiridas. A primeira reúne pessoas de “‘famílias tradicionais’, ainda um tanto endógamas, extensas e patriarcais, de proprietários de terras, de lavouras de cana e de engenhos e usi186 88 Azevedo, na exaltada obra As Elites de Cor numa Cidade Brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. A cor da pele191, sem dúvida, era um fator determinante de posição social, a despeito de se somarem outros (como educação e posses) a ele e dessas variáveis terem pesos diversos, dependendo do indivíduo e do contexto. Na Salvador daqueles tempos, a mobilidade era limitada pela origem étnica, econômica e social e pelas características físicas. A princípio, qualquer pessoa192 tinha chance de ascender socialmente, alçada pela ocorrência isolada ou acumulada de fatores diversos, como a fortuna acumulada, a qualificação profissional, o mérito intelectual, as virtudes morais. Não obstante, se fosse negra, mestiça, mulata, poderia ser alvo de resistência, em decorrência do preconceito contra os africanos e seus descendentes e o segmento socioeconômico mais baixo. Portanto, a possibilidade existia, mas o percurso era sinuoso, cheio de percalços. Mais difícil nas de açúcar, bem como de titulares do Império; essas famílias perderam quase toda a sua antiga fortuna e os seus títulos mas conservaram ‘o nome’ [...]”. Denominada de conservadora ou produtora, a segunda congrega “‘famílias ricas’, algumas descendentes de imigrantes europeus entrados no Estado em fins do século passado” e agora é composta por “comerciantes, fazendeiros e uns poucos industriais, além de profissionais liberais e raros burocratas”. A classificação neste segmento vem da fortuna e só, em parte, da família. Já a terceira abarca membros de famílias sem ‘tradição’, mas prósperas nos negócios, nas profissões liberais e na política. Id. Ibid., p.171172. 189 Encontra-se entre as classes alta e baixa, no que se refere aos níveis de vida, prestígio pela ocupação e papel no controle dos meios de produção. “Compõem-na os pequenos e médios comerciantes, proprietários e profissionais, os funcionários públicos médios, os técnicos, os empregados no comércio, como ocorre em toda a América Latina, isto é, os economicamente autônomos de recursos médios e os dependentes e salariados que empregam sobretudo as faculdades intelectuais em suas ocupações. Os mais modestos dessa camada, os que não tem [sic] folgas mas procuram viver com ‘decência’, são os ‘remediados’. Mas estes, como os demais componentes do estamento, identificam-se com a alta sociedade por seus sistemas de valores, por certos padrões de comportamento e por suas aspirações. Id. Ibid., p.173. 190 “A classe baixa ou ‘pobreza’ compreende todos os que se situam em níveis econômicos e de prestígio ocupacional inferiores aos descritos, especialmente os que vivem do trabalho manual e braçal: os funcionários públicos, os empregados do comércio, os operários não especializados, os ‘artistas’ ou artesãos, os operários das construções civis e da indústria, os pequenos comerciantes como vendeiros, quitandeiros, feireiros, vendedores ambulantes, os empregados domésticos, finalmente os roceiros. Os critérios que se combinam para a classificação neste estrato são o dos níveis de propriedade e renda e o do baixo prestígio do trabalho manual que desde o período colonial determinava o status inferior dos escravos, dos roceiros e dos ‘oficiais mecânicos’. Dentro deste estrato podem-se encontrar subgrupos diferentes, segundo o prestígio de certas ocupações. [...] Neste amplo setor, que engloba pelo menos a metade da população, encontra-se a imensa maioria das pessoas de cor – pretos e mestiços – enquanto os brancos são minoria; nesse nível, reduzem-se ao mínimo os preconceitos de cor no convívio quotidiano [...] Praticamente o analfabetismo ou a capacidade de apenas ‘assinar o nome’ só se encontram nesse [sic] classe”. Id. Ibid., p. 174 191 O estadunidense Donald Pierson reitera a proposição de Thales de Azevedo quanto ao papel da cor para a definição da posição social do sujeito, mas explicita que outros critérios interferem nesse processo: “Não há dúvida de que a côr é um dos critérios de posição social no Brasil, e, sendo todos os outros critérios iguais, quanto mais escura a pigmentação da pele, mais baixa é a posição, e quanto menor a pigmentação, mais elevada é a posição. Contudo, esta é simplesmente a mesma situação que existe com referência a todos os outros critérios: quanto mais baixo o status da família a que uma pessoa pertence, sendo todos os outros critérios iguais, tanto mais baixa a posição social e, quanto mais elevada a posição social da família, sendo todos os outros critérios iguais, tanto mais elevada a classe social da pessoa em apreço; quanto menor fôr a sua instrução , sendo todos os outros critérios iguais, tanto mais elevada a sua classe social etc.”. Ver Donald PIERSON. Brancos e Pretos na Bahia – estudo de contacto racial. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 29-65. 192 Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 163-164. 89 ainda era a elevação de um grupo de pessoas inteiro, de uma só vez 193. Figura 1: Cosme de Farias ainda jovem Fonte: REALIDADE. São Paulo, edição de abril de 1971. Crédito: Amâncio Chiodi O tratamento distinto para brancos e não-brancos se sedimentou nas ações cotidianas, de maneira explícita ou velada. O jeito de lidar com alguém variava de acordo com aspectos ligados à inserção social do sujeito, como prestígio, círculo de amigos, educação recebida194. Talvez, Cosme até sentisse as dores da discriminação, por vezes, já subliminar no último quartel do século XIX. Porém, ele devia ser jovem demais para entender as nuances e implicações disso e as relações da ascendência étnica com as camadas sociais e, também, para apreender que estava incluído na “classe baixa” e tinha poucas chances de migrar de estrato social. A princípio, era como se estivesse preso àquela condição, por sua origem mestiça, seus traços físicos, sua escolaridade (apenas ensino primário completo), seu local de nascimento e pela ocupação dos seus pais. A resistência à mobilidade tinha origem complexa: a Bahia nutria um gosto pela permanência, uma aversão às mudanças de qualquer ordem desde a época colonial. Entre os séculos XIX e XX, perduravam 195 coronelismo 196, clientelismo197, conservadorismo e outros 193 Sobre isso, consultar Kátia Vinhático PONTES. Mulatos: políticos e rebeldes baianos. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2000. 194 Kátia Vinhático PONTES. Mulatos: políticos e rebeldes baianos. Op. cit. p. 51. 195 Kátia Mattoso de QUEIROZ. Bahia – Século XIX: uma província no Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 196 Faz-se aqui uma interpretação dos conceitos de coronelismo, mandonismo e clientelismo à luz da realidade baiana, a partir das considerações de José Murilo de Carvalho, em Pontos e Bordados – escritos de história e 90 elementos ligados a esta trindade (como o mandonismo e uma espécie de servidão institucionalizada nas relações sociais, políticas e econômicas baianas), a despeito das tentativas de implantação de planos desenvolvimentistas capazes de superar as dificuldades da economia e recolocar a Bahia em destaque no cenário nacional e de alguns baianos gozarem de boa reputação e certo poder político junto ao governo central. Intrínsecas às relações entre governantes e governados, patrões e empregados, práticas como troca de favores, com interação entre sujeitos por conveniência, resistiram na Bahia e até superaram os desafios impostos pelo liberalismo, pelos novos meios de comunicação e transportes, pela competitividade internacional e pela substituição do regime monárquico pelo republicano no Brasil. Tais aspectos tornaram a Bahia um território singular, caracterizado pela permanência de famílias específicas no poder por longos períodos; pela incessante tentativa de um seleto grupo da manutenção do vínculo com o poder central (ora como protagonista, ora como coadjuvante), para conservação do seu próprio nicho e patrimônio; por relações interpessoais e profissionais balizadas por uma contraditória amálgama de assistencialismo, autoritarismo, punição, gratidão, permissividade e preconceito quanto à cor e ao status. Os laços198 afetivos e de consanguinidade determinavam a estrutura das instituições privadas e públicas e as relações sociais; não houve cisão entre as esferas familiar e estatal, mesmo após o período imperial; e predominavam os interesses particulares, em detrimento dos coletivos, impedindo a racionalização da administração pública. Preponderava o individualismo, com interesses pessoais e familiares sobre os objetivos da Bahia como um todo. Concomitantemente, a despeito das disputas entre os estratos da camada superior quanto, por exemplo, à urbanização da Cidade da Bahia, sustentava-se inabalável a disposição de colaborar com o governo central como mecanismo de controle dos demais segmentos da população. Ou seja, havia uma homogeneidade pautada pela busca de poder. Entre os séculos XIX e XX, Salvador experimentou processo análogo ao registrado no Brasil, em que “os indivíduos pertencentes à elite urbana, por meio de experiências comuns herdadas e/ou partilhadas, buscaram articular uma identidade de seus interesses entre si, política. Acredita-se, entretanto, que, ao contrário do que considera Carvalho, o coronelismo político é um sistema deflagrado antes mesmo da República e que ainda sobrevive e o mandonismo permanece fortalecido em regiões específicas como na Bahia, embora, naturalmente, manifestados de formas diversas daquelas predominantes na Primeira República. Ver José Murilo de CARVALHO. Pontos e Bordados – escritos de história e política. 1. reimp. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. Coleção Humanitas. p.130-153. 197 Ver conceitos em José Murilo de CARVALHO. Pontos e Bordados. Op. cit. p. 130-153. 198 Conforme afirma Araújo, a partir da interpretação das obras de autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Ver Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 2006, p.116-117, 135-136. 91 em oposição aos outros indivíduos cujos interesses se opunham aos seus” 199. Os jovens asseguravam a continuidade do modelo patriarcal e da patronagem ao assimilarem o modus operandi dos mais velhos, adaptando-o à sua realidade. As brincadeiras infantis de Cosme, portanto, foram vividas em um lugar tomado por uma elite urbana fechada em si mesma e pelo coronelismo 200. Ou seja, um ambiente marcado pelo personalismo político de oligarquias constituídas, principalmente, por representantes de famílias abastadas do ponto de vista econômico ou que, por gerações, dominavam o cenário político local (como os Calmon201) e seus agregados (como José Joaquim Seabra202) e por um modelo político em que o governo da Província (e, depois, do Estado) afiançava apoio ao governo central e garantia, aos chefes locais, instrumentos necessários para domínio dos seus redutos – em especial, a concessão de cargos públicos para livre distribuição –, enquanto os “coronéis” asseveravam fidelidade ao gestor da Bahia, manifestada através do voto nas eleições. Com tamanha disputa de forças, era um mérito e tanto sobressair-se sem pertencer a uma linhagem influente junto ao governo – seja pela fortuna acumulada, pela influência polí199 E. P. THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10 apud Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Op. cit. p.136. 200 Ver conceito de coronelismo em José Murilo de CARVALHO. Pontos e Bordados. Op. cit. p.130-153. 201 Miguel Calmon Du Pin de Almeida ocupou, entre outros cargos, as funções de ministro de aviação e obras públicas e de ministro da Agricultura do governo Artur Bernardes, no início do século XX; Pedro Calmon Moniz de Bittencourt era destacado historiador e professor universitário e, também, foi deputado estadual da Bahia (antes da “Revolução de 1930”, deputado federal (1935-1937), ministro da Educação e Saúde (1950-1951); o advogado comercialista e banqueiro Francisco Marques de Góes Calmon tornou-se governador da Bahia (19241928); Miguel Calmon du Pin e Almeida Sobrinho exerceu mandato como deputado federal até 1962 e foi ministro da Fazenda (1962-1963), entre outros cargos. FRANCISCO MARQUES DE GÓES CALMON. In: Governo do Estado. Salvador: Governo do Estado, 2009. Disponível em: <http://www.governador.ba.gov.br/governadores/franciscomarques.htm>. Acesso em: 22 mar. 2009; MIGUEL CALMON DU PIN. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), 2001. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/miguel_calmon_du_pin>. Acesso em: 22 jul. 2011; PEDRO CALMON MONIZ DE BITTENCOURT. In: Biografias. Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande, 2011. Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias /ABLPCMBi.html>. Acesso em: 22 jul. 2011; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.346-353. 202 O bacharel em direito soteropolitano José Joaquim Seabra exerceu os mandatos de deputado federal (18911893, 1897-1899, 1900-1902, 1909-1911 e 1933-1937), senador da República (1917-1920) e vereador (1926) e governou a Bahia em duas oportunidades: de 1912 a 1916 e de 1920 a 1924. É considerado um modernizador, pelo pioneirismo na realização de comícios em locais públicos, estreitando o contato com a população, e pela gestão do Estado. Em torno de si, criou-se uma corrente política, o seabrismo. PERÍODOS LEGISLATIVOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA – 1915-1917 – José Joaquim Seabra. In: Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 2009. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/senadores/senadores_biografia.asp?codparl=1943 &li=30&lcab=19151917&lf=30>. Acesso em: 2 abril 2009; Edilton Meireles de Oliveira SANTOS. J. J. Seabra, sua Vida, suas Obras. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1990; Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia: J. J. Seabra e Rui Barbosa na política baiana da Primeira República. Dissertação. Salvador: Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2009; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.327-334, 346-349. 92 tica ou pelo capital intelectual adquirido – ou sem a chancela de um coronel. Porém, alguns insurgiam. E o inesperado ocorreu: Cosme de Farias trilhou um caminho pouco provável para alguém com sua origem e suas características, em meio a uma sociedade elitista e escravista, e conquistou lugar próprio dentro deste cenário. Em 96 anos de vida produtiva203, desenhou para si uma trajetória bem diversa daquela galgada pela maioria dos seus colegas de infância: trabalhou como funcionário público do Estado; atuou como jornalista; escreveu poesias e editou livros; advogou; tornou-se militante de causas sociais e políticas como o combate ao analfabetismo e à carestia; cumpriu quatro mandatos como vereador de Salvador e cinco como deputado estadual da Bahia. É certo que ter como genitor um comerciante de madeira, embora de pequeno porte, já o distinguia dos demais mulatos suburbanos, colocando-o em um subgrupo social de destaque dentro da camada inferior. Afinal, a madeira era matéria-prima para quase tudo (embarcações, veículos de transporte urbano, residências, galpões de fábricas, mobiliários e utensílios domésticos). Por conseguinte, a mercadoria tinha demanda assegurada, tornando possível – não obstante a falta de documentação comprobatória – a inflexão de que a família Farias, se não fosse abastada, miserável também não era. Em contrapartida, suspeita-se que aquela família tenha vivido momentos de instabilidade financeira. Um dos fatos que podem ter contribuído para isso foi a possível separação do casal, ainda na infância do único filho204. Ao invés de se dedicar, exclusivamente, aos afazeres domésticos e aos cuidados dos maridos e da prole, como as senhoras de posses, Júlia Cândida cultivava clientela em uma barraca de iguarias no Mercado do Ouro. Enquanto ela despachava as refeições, seu rebento corria pelo Mercado205. 203 Mônica CELESTINO. Réus, Trabalhadores, Analfabetos e um Major – a inserção social e política do parlamentar Cosme de Farias em Salvador. Dissertação. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2005. 204 O casal teria se separado na infância do filho, de acordo com o escritor Jorge Amado, no livro Tenda dos Milagres [Jorge AMADO. Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins Fontes, 1969. p.43-44], obra ficcional inspirada em fatos e pessoas reais, cuja personagem Damião de Souza guarda certa similaridade com Cosme de Farias e nunca foi retrucada por ele. Sobre isso, ver Bobby J. CHAMBERLAIN. Jorge Amado. Vol. 767. Boston: Twayne Publishers, 1990, p. 77. Série Autores da Literatura Latino-americana. 205 O Mercado do Ouro foi edificado pela Companhia Edificadora Pilar em estilo neoclássico, na Rua do Pilar, número 2, nas imediações do Cais do Ouro, e inaugurado em 1879, quando o mar batia quase à porta. Por lá, além de pratos da gastronomia baiana, os citadinos encontravam frutos, verduras, cereais, especiarias. Em 1910, ele foi arrematado em leilão pelo comerciante Francisco Amado da Silva Bahia. Em 1912, com o aterro da região do Comércio, separou-se em definitivo do mar, perdeu seu cais natural e começou uma lenta e gradual mudança do seu perfil até transformar-se em simples agrupamento de salas comerciais e escritórios. Mabel ZAMBUZZI. Novo Mercado do Ouro: especiarias da Bahia. Natal: Grupo de Pesquisa em Projeto de Arquitetura e Percepção do Ambiente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002. Disponível em: <http://projedata.grupoprojetar.ufrn.br/dspace/handle/123456789/238>. Acesso em: 23 mar. 2009; Karliche BITENCOURT; Marta ERHARDT. O bairro do Comércio abriga importantes pontos turísticos e históricos de 93 Pouco havia mudado na estrutura da cidade206, desde o século XVII: na parte alta, funcionavam os centros da administração pública, da política e da religião e residências e, na parte baixa, o centro comercial, impulsionado pelo porto. Portanto, na Cidade Baixa, onde ficavam mãe e filho, aglomerava-se a maioria das casas comercias, muitas vezes, de propriedade de pessoas residentes em outras freguesias. A falta de infraestrutura era comum tanto aos distritos urbanos da Cidade Alta (Brotas, Passo, Sant’Anna, São Pedro, Santo Antônio Além Carmo, Sé e Vitória), que abrigavam a maioria da população, quanto aos da Cidade Baixa (Conceição, Mares, Penha e Pilar). Apesar do distanciamento entre seus progenitores, Cosme teria mantido os laços com o pai, pelo menos até a adolescência e iniciou vida profissional como seu auxiliar, no negócio de madeira. A atividade, por um lado, sinaliza a manutenção do vínculo e, por outro, constitui-se em nova evidência das condições socioeconômicas dos Farias, afinal, se houvesse recursos disponíveis, o mais lógico era que ele procurasse dedicar-se aos estudos como faziam os rapazolas mais abastados de Salvador207. Ao contrário disso, ele aprendeu apenas o elementar à sobrevivência. Após o curso primário, nada de ginásio, curso científico e curso superior. Entre a audição de histórias e piadas e as brincadeiras no Mercado, o menino conheceu as primeiras letras. Talvez, seu primeiro mestre tenha sido o antropólogo republicano, liberal e abolicionista Manuel Raimundo Querino208, com quem convivia na barraca e por quem sua mãe teria mantido certo afeto209. Aos seis anos, ainda pequenino, foi matriculado na Salvador. A Tarde On-line. Salvador: A Tarde, 2009. Disponível em: <http://www3.atarde.com.br/infograficos /comercio/comercio.swf>. Acesso em: 23 mar. 2009. 206 Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Op. cit. p. 180-182. 207 E. P. THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 apud Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Op. cit. 208 Pintor, decorador, designer, projetista, político, jornalista e escritor, Manuel Querino foi um negro autodidata que conquistou respeito através de suas pesquisas antropológicas sobre cultura e religião afrobrasileira. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e, depois, na Academia de Belas Artes. Na Guerra do Paraguai, atuou como escritor do batalhão, graças à sua boa caligrafia. Abolicionista, participou da Sociedade Protetora dos Desvalidos, que comprava alforria de escravos. Ainda criou dois jornais e atuou na causa trabalhista, participando da criação da Federação Socialista Baiana, do Partido Operário e da Liga Operária Baiana. Era uma espécie de revolucionário e, mesmo sem formação superior, produziu academicamente e se opôs a um dos maiores intelectuais da época, o professor da Escola de Medicina Raimundo Nina Rodrigues, autor de teses sobre medicina legal, cultura afro-brasileira e, em especial, relações entre etnia, ciência e Nação. Atuou como conselheiro municipal de Salvador. Agnes MARIANO. Galeria de Notáveis. Memórias da Bahia/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia. Março de 2002; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. 209 Em Tenda dos Milagres, livro ficcional criado a partir de fatos e personagens reais e nunca rechaçado por Cosme de Farias, o escritor Jorge Amado afirma que Pedro Arcanjo (nome atribuído a Manuel Querino) teria ensinado ao menino Cosme e, também, que Dona Júlia Candida dava-lhe café da manhã e teria mantido “uma queda” por ele. [In: Tenda dos Milagres. Op. cit. p. 43-44]. Contudo, não foram localizados outras fontes que atestem tais informações. 94 escola (ou na Benvindo Barbosa210 ou na Conceição da Praia211), também em funcionamento na freguesia da Conceição da Praia, nos arredores do Mercado. Dali, teria prosseguido apenas até conclusão do ensino primário, o correspondente ao atual ensino fundamental de nível um. Desde os anos iniciais do Império, gradativamente, a fisionomia brasileira212 alterava-se devido à escolarização na Europa e, por conseguinte, assimilação de novo estilo de vida pelos rapazes da burguesia, fatores propulsores de promoção social. Era comum que jovens “pretos e mulatos”, depois de escolarizados no exterior, retornassem à terra natal “embranquecidos” – socialmente iguais aos filhos das antigas e poderosas famílias dos senhores proprietários de terra –, por terem título de bacharel e reproduzirem valores e hábitos europeus. Processo similar ocorria com quem obtinha cargos públicos213. A despeito da ínfima escolarização, somente por ingressar no ensino regular, Cosme se tornou uma exceção entre a maioria dos garotos com origem e características físicas similares a dele. À época, o acesso à educação formal era restrito, sobretudo, para os negros e mestiços como ele. Em 1881, quando ele entrou na Benvindo Barbosa, a população de toda a Província era estimada em 1,5 milhão de habitantes, porém apenas 21.626 pessoas estavam matriculados em escolas. Não existia um sistema educacional público e gratuito capaz de abrigar crianças, jovens e adultos, indistintamente, independentemente da cor da pele e classe social, apesar das promessas de expansão da rede já serem recorrentes nos discursos dos políticos de então. Na juventude, os atributos herdados da família e amealhados ao longo dos anos passaram a lhe dar status e começaram a acenar com a probabilidade de mobilidade de estrato social. Até então, considera-se que ele estivesse no estrato social “de baixo”, entre aqueles de níveis econômicos e prestígio ocupacional inferiores e dedicados predominantemente ao trabalho manual e braçal, entre a maioria “preta ou mestiça” analfabeta ou semiletrada. Como era comum entre os menos abastados, ele nasceu no Subúrbio214 e trabalhava no pequeno ne- 210 A TARDE. Salvador (BA), edição de 18 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 2 de abril de 1965; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 14 de março de 1973. 211 A TARDE. Salvador (BA), edição de 18 de março de 1972. 212 Gilberto FREYRE. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 2º tomo. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL/Ministério de Educação, 1977, p. 574. 213 Id. Ibid., p. 576. 214 “As maiores diferenças nos padrões arquitetônicos, no tamanho, no arranjo espacial das habitações são as que distinguem os bairros pobres, as invasões e favelas, dos bairros dos grupos superior [sic], embora nestes já se possa diagnosticar os de classe média (na Cidade do Salvador (BA), S. Antônio Além-do-Carmo, Nazaré, Santana, Brotas, Rio Vermelho etc.) e os da classe alta (Vitória, Graça, Barra)”. Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p.178. 95 gócio do pai desde a mais tenra idade215, ao invés de se dedicar aos estudos; e sua mãe participava ativamente da economia doméstica, preparando iguarias para terceiros216. 2.2 DOS LAÇOS CONJUGAIS E DE SOLIDARIEDADE À INSERÇÃO PROFISSIONAL Cosme de Farias chegou à juventude e, bem cedo, encantou-se por uma mulher esguia, de pele parda, cabelos ondulados, olhos graúdos e origem socioeconômica similar à sua. Apaixonado, aos 23 anos, em 12 de novembro de 1898, contraiu núpcias com a jovem Semíramis217 Maria de Andrade. À época, ele trabalhava como repórter e já gozava de algum prestígio no meio jornalístico, a despeito da brevíssima trajetória na imprensa, tanto que o casório mereceu até menção em jornal: “Consorciou-se no dia 12 com a Exma. Sra. D. Semírames Maria de Andrade o Sr. Cosme de Farias, nosso distincíssimo amigo e intelligente cultor das letras. Ao jovem par auguramos perene lua de mel”218. O enlace com uma mulher de cor e condição social e econômica análoga à sua, em caráter oficial, afastava qualquer possibilidade de mobilidade social por meio da nupcialidade219. Já nos oitocentos, o matrimônio com uma senhorinha ou viúva de família da elite política e econômica se tornou um dos fatores propulsores de “embranquecimento” e ascensão de mulatos como Cosme, assim como a educação europeizada. Todavia, ele optou pela junção a uma jovem que não poderia lhe proporcionar status e acesso a um estrato social mais alto. O casamento durou 65 anos, até que Cosme enviuvou. Contra ele, não foram locali- 215 “Neste estrato, as crianças, em especial os meninos, cedo começam a trabalhar; as meninas antes da puberdade já tem deveres como auxiliares do trabalho doméstico ou da vigilância e cuidado dos irmãos menores”. Id. Ibid., p.174-175. 216 “Enquanto na classe alta a mulher raramente tem ocupação profissional e na classe média só recentemente tenha começado a dedicar-se ao ensino, ao trabalho na burocracia, no comércio e nas profissões liberais, na classe pobre a mulher participa em sua quase totalidade de atividades econômicas que complementam os orçamentos domésticos ou lhes dão uma certa autonomia financeira em face de maridos e ‘companheiros’, que muitas vezes mal contribuem para as despesas de manutenção da família; emprega-se, pois, como cozinheira, copeira, operária fabril, comerciaria [sic], ou trabalha autonomamente como lavadeira, engomadeira, costureira, vendedora nas feiras e mercados, ou tem uma pequena quitanda em casa e faz doces para vender, alia cabelo, borda”. Id. Ibid., p.174. 217 O prenome é grafado “Semíramis” e “Semírames” nas fontes primárias e bibliografia. Como a primeira grafia é mais recorrente, ela será adotada na tese, salvo em casos de citação direta que traga a segunda forma. 218 A COISA. Salvador, edição de 20 de novembro de 1898. 219 “O casamento inter-racial é um dos canais de acesso e de integração da gente de cor nas classes mais altas. Uma vez que os indivíduos mais claros têm maiores possibilidades de se tornarem socialmente brancos, o casamento entre escuros e brancos confere prestígio aos primeiros e oferece expectativa de filhos mais próximos do tipo preferido”. Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p.73. 96 zados registros documentais de infidelidade, mas a fama de impudico e boêmio disseminou-se após a viuvez. “Cosme gosta de mulher – agora diz que está apenas com uma namorada. Seus amigos, entre línguas, sugerem que ele já enterrou a esposa – dona Semíramis – e quatro filiais”, delatou uma reportagem da revista de circulação nacional Realidade220, publicada em abril de 1971, meses antes da sua morte aos 96 anos. Com a licença outorgada aos literatos, Jorge Amado, também, lhe atribuiu três amásias, em Tenda dos Milagres, uma obra de ficção pontuada por verossimilhança, cuja personagem Damião de Souza tem aparência e comportamento parecidos aos de Cosme de Farias221: Na Liberdade, gorda e tranqüila crioula, bem servida de seios e quadris, com seus quarenta e vários anos, reside Emerência, que prepara almoços baianos para casas ricas, dona de freguesia selecionada o mais antigo dos atuais amôres de Major – há mais de 25 anos ele a roubou de casa. Em Cosme de Farias, costura para fora a meiga Dalina, costura e borda: mãos de fada, rosto picado de bexiga, trintona, loiraça, graciosa. Em Itapagipe, numa casinhola de fachada verde e janelas cor-de-rosa, Mara, cabocla e linda com dezoito anos e dois dentes de ouro, faz flor de papel crepom para um armarinho da Avenida 7 e quantas faça, vende. O dono do armarinho, aliás, já lhe propôs outros acordos e vantagens; também Floriano Coelho, artista pintor, bonito e falante – um ou outro querendo tomá-la a seus cuidados. Mara, porém, é fiel a suas flores e a seu homem. Quando o Major chega, ela se aninha em seus braços magros, sente-lhe o hálito forte, ouve a rouca voz noturna: ‘- Como vai, meu passarinho?’. Independentemente da existência ou não de Emerência, Dalina e Mara e outras tantas amásias, as memórias de estripulias amorosas envolvendo-o perduraram até décadas após sua morte. Em 1998, o A Tarde noticiava que Cosme havia deixado viúva e desamparada Adalgisa Araújo de Jesus222, senhora que então vivia nas imediações da Ladeira do Taboão, da catação de material reciclável para venda, e sempre negou ter mantido relacionamento amoroso com o jornalista. Porém, seu único casamento oficial foi aquele com Semíramis e inexistem provas que atestem seu vínculo afetivo ou compartilhamento de alcova com outras mulheres. É possível que a notoriedade como amante incansável decorra de uma distorcida associação da volúpia ao seu jeito de ser e viver, pois ele cultivou a cordialidade a terceiros (inclusive mulheres!) e a boemia como traços da sua personalidade, como se verá adiante. Mulher de pouca conversa e muita discrição, Semíramis passava a maior parte do 220 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Revista Realidade. São Paulo, edição de abr. 1971, p.126. 221 Jorge AMADO. Tenda dos Milagres. Op. cit., p.44-46. Ver também Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p.126. 222 A TARDE. Salvador (BA), edição de 8 de janeiro de 1998. 97 tempo a cuidar dos afazeres domésticos, receber os amigos do marido e acolher os beneficiários das suas ações sociais, hospedando-os, de improviso, no sótão e subsolo da própria morada ou, ainda, nos cômodos principais da residência. Executava, sozinha, da arrumação à lavagem de roupas e cozinha, mas, ao contrário de muitas senhoras da sua época, não estendeu suas obrigações para além da casa nem auxiliava o cônjuge no custeio das demandas essenciais. De certa forma, era conivente com os rompantes do esposo, que, muitas vezes, abrigava “afilhados” no seio da família e até cedia a própria comida para atenuar a fome de pedintes. Pelo menos em público, ela não reclamava. “D. Semíramis apoiava (Cosme) em tudo”, recordou Antônio Pinto, “filho adotivo” de Cosme, explicando que, em tom de brincadeira, ela “às vezes, ela dava um tapinha (nele), chamava ‘moleque descarado’”223. Por si, o enlace formal já distinguia o casal Farias de parte da sociedade do período, na qual se tornara corriqueiro o simples concubinato, sobretudo, em decorrência dos altos custos financeiros para tramitação burocrática e promoção da cerimônia civil e religiosa. Por mais prosaico que pudesse parecer um casamento entre os estratos com poder econômico e político elevado, aquela não era uma prática usual entre os indivíduos pobres na Cidade da Bahia. Em geral, medianos e ricos contraiam matrimônio, firmavam um contrato por escrito; os pobres se amancebavam, empenhavam apenas a palavra. A vida conjugal tão longa, igualmente, era inesperada no contexto em que viviam, quando uniões conjugais em famílias menos abastadas224 ruíam mais comumente, sob influência das adversidades econômicas, com a recorrente partida dos homens para frentes de trabalho e fronts de guerras distantes dos seus domicílios, e da falta de intimidade, devido às condições de moradia. Ao contrário das expectativas, o direcionamento de grande parte dos recursos financeiros disponíveis para a assistência a terceiros – como explicitado no próximo capítulo –, em detrimento até das necessidades básicas da família225, e a dificuldade para manter a mínima privacidade, em meio ao entra-e-sai, ao acolhimento constante de estranhos e à intensa circulação de visitas em casa, não se tornaram estorvos incontornáveis à aliança. Quiçá, houvesse certo consenso entre ambos, quanto ao rateio da receita familiar e às limitações 223 Antônio Fernandes PINTO. Entrevista concedida à autora no dia 21 de outubro de 2005, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. (Gravação digital). 224 Sergio Maurício Costa da Silva PINTO. Famílias de Negros: entre a pobreza e a herança cultural. Rio de Janeiro: e-papers, 2009, p.76-77. 225 A vizinha Sandra Marisa da Silva Costa, embora, na época, fosse apenas uma criança, diz recordar que havia escassez de gêneros alimentícios na residência de Cosme de Farias, a despeito dele ter renda fixa. Entrevista concedida para reportagem da autora desta tese, publicada no jornal Correio da Bahia em outubro de 2001 e reeditada em março de 2002. Ver Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Memórias da Bahia/Correio da Bahia. Vol.1 Salvador: Correio da Bahia, março de 2002. 98 do convívio como marido e mulher, garantindo a sobrevida conjugal. Decerto, a cumplicidade – seja motivada por amor, seja impingida por fé católica que pressupunha o respeito ao sacramento do casamento, seja forjada pela pressão masculina sobre Semíramis ou por qualquer outra razão – determinou a durabilidade da união. Nem mesmo a falta de filhos biológicos abalou o casamento. Cosme de Farias não deixou herdeiros naturais, dentro ou fora do matrimônio. É possível que ele ou a mulher sofressem de esterilidade, mas não foram localizados documentos que comprovassem isso. Ao que se sabe, ele sequer tinha parentes consanguíneos de primeiro grau vivos. Talvez, a ausência de descendentes o tenha levado a nutrir o sentimento paterno com filhos de terceiros. Junto com a esposa, ele auxiliou a educação de crianças, como a guia de turismo Creuza Carqueija, concedendo desde alimentos até a garantia de acesso à escolaridade básica; tomou para si a responsabilidade pela criação de, pelo menos, uma jovem – chamada Delza Santiago da Cruz, morta antes de dar-lhe “netos”226 –; e teve uma legião de afilhados, cultivando um hábito comum na Bahia de outrora de agradecer um favor recebido ou manifestar o carinho através do compadrio. Em Salvador, há dezenas deles, a exemplo do empresário Clarindo Silva 227, proprietário do famoso restaurante Cantina da Lua, situado no Terreiro de Jesus, a poucos metros do último local de trabalho de Cosme, o corredor da Igreja de São Domingos de Gusmão. A paternidade, também, teria sido exercida por meio da adoção. Ao longo dos anos, a imprensa lhe atribuiu a guarda de diversos garotos, inclusive um rapaz conhecido como Jayme228 e outro de Carlos229. Contudo, o jornalista considerou, publicamente, filho adotivo apenas Antônio Fernandes Pinto 230. Afrodescendente, baixola e franzino como o próprio Cosme, ele acompanhava as atividades diárias do “pai postiço” e contribuía para o atendimento assistencial prestado por ele à população desde 1954, quando fez 15 anos, mas se mantinha morando com a família biológica, de origem paupérrima. Em contrapartida, recebia apoio para estudar e ascender socialmente: fez o curso de magistério para a docência no ensino primário; formou-se em direito, na Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro; e abraçou a advocacia como profissão. A despeito de ter conduzido a carreira jurídica longe da égide caridosa do “patriarca”, amparou-se na memória positiva deixada por ele para se eleger para sucessivos 226 Antônio Fernandes PINTO. Entrevista concedida à autora no dia 21 de outubro de 2005, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. (Gravação digital). 227 Clarindo SILVA. Memórias da Cantina da Lua. Salvador: [s.e], 2004, p.12. 228 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1972. 229 A TARDE. Salvador (BA), edição de 11 de março de 1972. 230 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 4 de setembro de 1971 e 15 (primeiro e segundo clichês), 16, 17 e 21 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 e 17 de março de 1972 e 14 de fevereiro de 1973. 99 mandatos como vereador da capital baiana, entre 1974 e 1988. Por meio do apadrinhamento e acolhimento de agregados, Cosme recriava um padrão de vida familiar e estabelecia um parentesco simbólico, forjado no cotidiano eivado por ações de benemerência que induzia o espectador a imaginar que se tratavam, também, de variações do assistencialismo comum à sua vida, como se verá no próximo capítulo desta tese. Porém, se, por um lado, essas práticas podem sinalizar a solidariedade para com pessoas vulneráveis do ponto de vista social ou rejeitadas por suas famílias biológicas, por outro, podem ser interpretadas como artimanhas para suprir as lacunas deixadas por uma organização familiar fragilizada pela inexistência de prole ou até para atender suas necessidades concretas de companhia na labuta diária. Há muito, era desse modo em Salvador: bendiziam as famílias numerosas, por se considerar que a quantidade elevada de filhos proporcionava maior guarida aos pais, inclusive por asseverar mais braços para o trabalho. Se for assim, Cosme utilizava-se de tática conhecida desde o século XIX, mais comuns entre os estratos inferiorizados. Negros cativos ou libertos231 articulavam redes de solidariedade capazes de lhes propiciar maior amparo, a partir do parentesco simbólico ou ritual firmado no acolhimento de pessoas sem vínculos consanguíneos em casa e em relação de compadrio. A relação entre o agregado e o chefe da residência em que esse morava envolvia dependência econômica e certa subserviência por parte do primeiro, porém tinha amizade e solidariedade imbricadas e prestava-se à sobrevivência de ambos, em meio àquele contexto político, social e econômico instável. Pela tradição católica, o compadrio (por batizado, crisma, casamento ou consagração a Nossa Senhora) pressupunha a partilha entre pais biológicos e “espirituais” da responsabilidade de prover a formação moral e religiosa de uma criança ou um adolescente, mas, também, desencadeava ou fortalecia processos de cooperação econômica e submissão política de um indivíduo frente a outro. O jornalista, concomitantemente, forjou parentesco ritual por meio da associação a irmandades e ordens religiosas. Em carta-testamento de 1964232, ele reconheceu pertencer a uma série delas, a saber: Ordem Terceira (de Nossa Senhora da Conceição) do Boqueirão, Ordem Terceira do Carmo, Irmandade de São Benedito, Irmandade de Nossa Senhora das Angústias, Ordem Terceira da Santíssima Trindade, Irmandade do Senhor (Bom Jesus das Necessidades) da Redenção, Irmandade do Senhor (Bom Jesus) dos Passos e Irmandade do Senhor da Paciência. 231 232 Sergio Maurício Costa da Silva PINTO. Famílias de Negros. Op. cit. p.159-168. Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Salvador, 2 de abril de 1964 (mimeo). 100 Com atuação em Portugal desde, pelo menos, o século XVIII, confrarias desta natureza233 serviam para auxiliar nas ações de catequese promovidas pela Igreja Católica e suprir demandas de associados e pessoas carentes não-filiadas com serviços sociais sonegados pelo Estado (como assistência à saúde e jurídica, enterro decente e até socorro financeiro), mantidos por meio da coleta de anuidades dos sócios, doações, esmolas, legados de testamentos, entre outras fontes de renda. Todas precisavam ser acolhidas por uma igreja, até que pudessem construir seu próprio templo e ter regras de conduta aprovadas pelas autoridades católicas locais, além de venerar um santo patrono. Eram constituídas234 principalmente por leigos, mas as ordens terceiras necessariamente se vinculavam a congregações religiosas conventuais (franciscana, dominicana, carmelita etc.) e, por isso, em geral, tinham mais conceito do que as irmandades. Essas, embora mais numerosas, gozavam de menor prestígio na sociedade do século XIX. Muitas funcionavam sob severos critérios, que perpassavam pela inserção social dos pleiteantes à filiação, como a propriedade, profissão e etnia. Inúmeras eram exclusivas para indivíduos de uma origem específica, a exemplo da Santa Casa da Misericórdia e da Ordem Terceira de São Domingos, que excluíam, de antemão, os mestiços, mulatos e descendentes de mouros ou judeus. Em geral, nos oitocentos, brancos alijavam pessoas negras e mestiças de suas congregações, porém, por vezes, estes eram aceitos pelas associações “de cor”. Há indícios de que a determinação da cor para efeito de acolhimento ou não de um novo sócio, pelo menos na primeira parte do século XX, dependia da combinação de fatores como herança étnica e posição social, ou seja, um “embranquecido” poderia ter acesso franqueado em uma organização de brancos. O trânsito do mestiço e mulato e dos “de baixo” em corporações brancas e da elite econômica e política poderia não ser habitual, mas existia. Um exemplo é Cosme de Farias, que, concomitantemente, pertenceu à Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão, à Irmandade de Nossa Senhora das Angústias e à Irmandade do Senhor da Redenção (Bom Jesus das Necessidades), surgidas como congregações de mestiços e mulatos, de portugueses e de negros, respectivamente. E, ainda, à Ordem Terceira do Carmo, cujos membros deveriam possuir bens, e à Ordem Terceira da Santíssima Trindade, formada principalmente por comerciantes, mesmo sem ter posses afora casa onde residia e sem possuir empresa comercial. Como reflexo da configuração colonial e imperial, as confrarias constituídas majori233 João José REIS. A Morte é uma Festa. Op. cit. p.49-72; Kátia Vinhático PONTES. Mulatos: políticos e rebeldes baianos. Op. cit. 234 João José REIS. A Morte é uma Festa. Op. cit. p.49-72. 101 tariamente por branco – como a Santa Casa, inaugurada na época da colonização portuguesa e eivada por valores e normas ditadas pela legislação de Portugal – eram mais ricas que aquelas formadas por negros africanos e da terra (em especial, escravos, libertos e descendentes destes), por terem, em seu seio, senhores de engenho, negociantes de escravos e outras mercadorias de primeira necessidade, fabricantes de produtos diversos, alfabetizados. A múltipla filiação, como ocorreu com Cosme, era comum desde o século XIX. Um indivíduo poderia, ao mesmo tempo, manter-se em duas ou mais organizações. Nessas corporações seculares, os sujeitos estabeleciam relações sociais e articulavam redes de ajuda recíproca entre os “irmãos”, coordenadas por um grupo específico, mediante votação entre postulantes pré-determinados de acordo com a posse de bens, a atividade econômica e a origem étnica. Com o tempo, elas passaram a ser instituídas, inclusive por negros cativos ou libertos, no afã de se asseverar maior amparo no seu dia a dia. Um novato podia, por exemplo, firmar laços com um negociante que lhe facilitaria o ingresso ou a prosperidade naquele ramo econômico. Sobre o assunto, sintetiza João José Reis, em A Morte é uma Festa235, referindo-se à realidade dos oitocentos, mas que perdurou pelo século XX devido à tendência de manutenção das normas por estas corporações: As irmandades tinham [...] a função implícita de representar socialmente, se não politicamente, os diversos grupos sociais e ocupacionais da Bahia. Na ausência de associações propriamente de classe, elas ajudavam a tecer solidariedades fundamentadas na estrutura econômica, e algumas não faziam segredo disso em seus compromissos quando exigiam, por exemplo, que seus membros possuíssem, além de adequada devoção religiosa, bastantes bens materiais. Mas o critério que mais frequentemente regulava a entrada de membros nas confrarias não era ocupacional ou econômico, mas étnicoracial. Em irmandades e ordens, as relações interpessoais, de algum modo, assemelhavamse àquelas das organizações familiares, que se prestavam como espaço de comunhão e nas quais ao patriarca era conferida autoridade máxima e a tarefa de coordenar ações solidárias entre os participantes do grupo. Elas tornaram-se núcleos consolidados a partir de relações de uma espécie de parentesco ritual, assim como ocorria nas “famílias de santo”236. 235 Id Ibid., p.53. No candomblé, as redes formavam-se em torno de uma ialorixá (mãe-de-santo) ou de um babalorixá (pai-desanto) determinado a partir de consulta a orixás (as divindades africanas) – geralmente, uma pessoa com sabedoria acumulada quanto aos ritos, a partir da vivência na religião –, a quem os demais seguidores da religião devem respeito e obediência. Esses mesmos sentimentos deveriam ser nutridos por pessoas mais velhas e com maior 236 102 Para Cosme de Farias, a inserção nestas entidades prestava-se para a convivência, por um lado, com pessoas com origem similar à sua e, por outro, aparentemente de forma controversa, com sujeitos e grupos étnicos e econômicos diversos do seu, capazes, inclusive, de facilitar a aquisição de prestígio e a ascensão social de terceiros. Os rastros dele sinalizam que o envolvimento com essas confrarias ampliou sua rede social e, por conseguinte, potencializou suas ações na sociedade e seu prestígio. Também, pode ter proporcionado a ele uma sensação de acolhimento semelhante àquela experimentada no convívio com a família. Não obstante, Cosme manteve um modus vivendi como os “de baixo”, a despeito da aproximação com a elite política e econômica local, por meio da entrada em irmandade e ordens e outros artifícios. O consórcio com mulher do mesmo estrato social, o cotidiano do casal caracterizado pelo orçamento adstrito e pela falta de privacidade, e manifestações comportamentais, como o acolhimento de terceiros e o apadrinhamento, induzem sua associação aos estratos dos menos abastados e da maioria “de cor”. À época, ele vivia como as pessoas de nível econômico e prestígio ocupacional inferiores, voltados, sobretudo, ao labor manual e braçal e entre a maioria “preta ou mestiça” analfabeta ou semi-letrada, numa condição estabelecida mais por sua escolha pessoal do que pelo contexto social, econômico e político. Se desejasse, ele poderia ter tido dias bem diversos dos que viveu. A eloquência, igualmente, era um dos atributos de Cosme de Farias que poderiam distingui-lo. Embora seja possível contar seu tempo de escolaridade nos dedos de uma só mão e tenha se envolvido, precocemente, com afazeres no comércio, ele incursionou pelo universo das letras desde a adolescência, em concomitância às demais atividades. Subiu à tribuna até na velhice, mesmo com voz rouca e quase inaudível. Sem embaraço, fazia pronunciamentos237, em verso e prosa, em sessões no Conselho Municipal (a Câmara Municipal de Salvador) e na Câmara dos Deputados do Estado (a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia); no decorrer de julgamentos no Tribunal do Júri; em eventos públicos; e até em despedidas fúnebres de personalidades do cenário político local e nacional, como o sepultamento do conselheiro Luís Viana, governador da Bahia entre 1896 e 1900238. tempo de dedicação ao culto dos orixás. A ialorixá ou o babalorixá de cada terreiro responsabilizava-se pela orientação espiritual dos frequentadores da casa e o fomento e até a condução de práticas solidárias, além da disseminação dos saberes da religião. Sergio Maurício Costa da Silva PINTO. Famílias de Negros. Op. cit. p.159-168. 237 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 25 de dezembro de 1970. 238 Sebastião NERY. A Retórica do Ibope. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro: Tribuna da Imprensa, 3 jul. 2004. Disponível em: <http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2004/julho/03-04/coluna.asp?coluna=nery>. Acesso em: 27 jul. 2004. 103 Após a oração de estreia aos 13 anos239, ele teve a primeira chance de explicitar sua aptidão para a escrita. Por indicação do jornalista Amaro Lelis Piedade240, em 1894, começou a acompanhar acontecimentos da cidade, em especial no júri, na condição de repórter do Jornal de Noticias241. Do periódico de propriedade de Aloysio de Carvalho e irmãos, migrou para outros impressos242. Assim, teria atuado na condição de funcionário ou colaborador, redigindo, sobretudo, artigos rotulados genericamente de Linhas Ligeiras e Ineditoriais; e como proprietário de jornais243. De mero aprendiz, um “foca”244, ele tornou-se um profissional245 com uma das carreiras mais duradouras da história do jornalismo na Bahia – exatos 78 anos dedicados ao ofício –, que são analisados adiante nesta tese. Aflorada nas brincadeiras da adolescência e cultivada através do exercício regular do jornalismo, a vocação para as letras, também, levou o jovem Cosme a outra modalidade da escrita: a literatura. Aos 21 anos, apenas dois após o ingresso na imprensa local, ele teve publicada sua primeira poesia246. De tão volumosa sua produção nesse segmento, ele tornou-se integrante de entidades representativas e de fomento ao setor no Estado, como o Grêmio Lite239 Adroaldo Ribeiro COSTA. O Major foi à Hora da Criança. Op. cit. Defensor da abolição da escravatura, do regime republicano e das vítimas da Guerra de Canudos, Lelis Piedade foi uma referência do jornalismo baiano da virada do século XIX para o XX. Atuou como diretor do Jornal de Notícias de 1886 até sua morte, em 1908, e foi deputado estadual. Seu estilo pacificador e sua defesa de direitos de pessoas pobres, viúvas e órfãos, através da seção Chronica do Bem, marcaria profundamente toda a trajetória de Cosme. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 21 de janeiro de 1935. 241 JORNAL DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 3 de outubro de 1899. 242 Os dados pessoais e profissionais, no campo do jornalismo, constam na ficha de inscrição de Cosme de Farias na Associação Baiana de Imprensa (ABI), preenchida na época da fundação da entidade [FARIAS, Cosme de. Ficha de Inscrição na Associação Baiana de Imprensa (ABI). Salvador (BA), [s.d]. Manuscrito]; AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos – guia de ruas e mistérios. Ilustrações de Carlos Bastos. 27. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977, p.199-200; Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Salvador: [s.e], 1926; A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972. 243 FOIA DOS ROCÊRO. Salvador (BA), edição do 2ª domingo de janeiro de 1901, p. 2; A COISA. Salvador (BA), edição de 11 de março de 1900; ESTABELECIMENTOS DE OFICINAS DE IMPRESSÃO: 18331927. Salvador: Núcleo de Estudos da História dos Impressos da Bahia, 2009, p.43-44, entre outras fontes. 244 Jargão utilizado na imprensa nacional para designar o jornalista iniciante. 245 A formação deu-se na labuta diária, entre as calandras, sob os auspícios dos colegas mais experientes. À época, não havia cursos específicos para forjar jornalistas no Brasil, quiçá na Bahia. A primeira lei brasileira sobre ensino de jornalismo surgiu em 1937 e o primeiro bacharelado, apenas em 1947, em São Paulo. A graduação pioneira na Bahia foi implementada em 1962 pela Universidade Federal da Bahia, apesar da iniciativa ter sido autorizada pelo governo federal desde 1950, no bojo da implantação do projeto de universidade do reitor Edgard Santos, que tornaria a UFBA reconhecida no país, sobretudo, pela inovação na criação de cursos no campo das artes (música, teatro, dança). Antes, um curso extensionista para formação e aperfeiçoamento de jornalistas foi ofertado em 1949 pela própria Universidade, porém fracassou, em pouco tempo, por falta de candidatos às vagas. Jorge CALMON. Oito Razões (de entre muitas outras) para que Exista Curso de Jornalismo. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005; Jorge CALMON. Palácios Vazios. A Tarde. Salvador: A Tarde, 9 dez. 2003; Sérgio MATTOS. Jorge Calmon, Ponto de Referência no Jornalismo Baiano. Tribuna da Bahia. Salvador: Tribuna da Bahia, 28 jul. 2003; Eduardo MEDITSCH. Primeiras Escolas. Florianópolis: Curso de Especialização em Estudos de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, 2008 (mimeo). 246 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 4 de setembro de 1971. 240 104 rário da Bahia (GLB)247 e o Grêmio Brasileiro dos Trovadores248. Indicador de certo reconhecimento pela obra do autor, a inserção em associações dessa natureza proporcionava a aproximação com intelectuais e personalidades de visibilidade entre segmentos diversos, a troca de experiências e debates e a oportunidade de desenvolvimento de novas amizades e, quiçá, poderia conferir aos associados parcerias para empreendimentos e certo status na sociedade. O ingresso no GLB, por exemplo, tornou-se profícuo: dentro da entidade, surgiu a Liga Baiana contra o Analfabetismo, pilar de sustentação da principal atividade beneficente e política de Cosme, como será demonstrado nesta tese. Junto com intelectuais, políticos e professores como Álvaro Cova, Bráulio Xavier, Custódio Teixeira, Adolfo Sanches e Antônio Fragoso, ele fundou a Liga, exatamente, dentro da sede do Grêmio, então em funcionamento na Rua Chile. A associação ao Grêmio, também, pode ter facilitado o contato com a biografia e a lavra de autores já resplandecentes no cenário nacional. Cosme de Farias nutria admiração explícita por um dos principais literatos da história do Brasil, o “Poeta dos escravos”, Castro Alves, e pelo mais renomado orador do País, a “Águia de Haia”, Rui Barbosa. Talvez, tenha buscado inspiração em ambos. Pelo menos, na temática. Assim como se constata no trabalho 247 Criado em janeiro de 1958 por violeiros e trovadores como Rodolfo Cavalcante, como uma derivação da Associação Nacional dos Trovadores e Violeiros, reuniu por anos poetas populares que tiravam dos versos o sustento próprio e da família e intelectuais trovistas diletantes, residentes em várias cidades brasileiras, em especial, de Salvador e do Rio de Janeiro. Proposta: possibilitar o intercâmbio entre os escritores do país, fortalecendo o gênero originário da quadra popular portuguesa. A Associação Nacional dos Trovadores e Violeiros foi desfeita em 1956 porque o presidente e líder da agremiação, Rodolfo Cavalcente, demitiu-se do cargo, em protesto contra a politização da associação desde que parte da diretoria tentou transformá-la em instrumento do Partido Comunista. Álvaro FARIA. Trovadores Brasileiros: antologia. São Paulo: Francisco Alves, 1963; Oswaldo Francisco MARTINS. Breve Abordagem da Trova. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Vol. 101 Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2006; Eno Theodoro WANKE. O Trovismo. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1978. 248 Fundado em 20 de maio de 1860, por um grupo de rapazes idealistas e advindos do setor comercial, em Salvador (BA), tornou-se uma confraria de intelectuais representativa, reunindo, entre seus confrades, personalidades como o juiz Bráulio Xavier. Antecessor da Academia de Letras da Bahia, promoveu o intercâmbio de escritores inclusive em âmbito nacional e internacional, através de ações como a leitura de textos inéditos e edição de uma relevante publicação literária ilustrada com circulação mensal, a Revista do Grêmio Literário da Bahia. Sua relevância pode ser atestada a partir de dois fatos: em seu benefício, o poeta Castro Alves escreveu O Livro e a América, em 1868, e o jornalista Euclides da Cunha, prestes a lançar a segunda edição de Os Sertões: campanha de Canudos, em 1903, negociou com o editor, além do pagamento dos direitos autorais em espécie, o recebimento de 45 exemplares e o envio de outros a algumas instituições brasileiras, inclusive à Revista do Grêmio Literário da Bahia. Era mantido por meio das doações dos associados, de ações beneficentes e da subvenção governamental. Uma das atividades em favor da entidade, mais especificamente da biblioteca, foi um espetáculo da atriz portuguesa Eugênia Câmara, conhecida como Dama Negra, por quem o adolescente Castro Alves nutriu paixão. Outra foi a performance da companhia Naghel e Milone, em 1886, na inauguração do Teatro Politeama Bahiano. Em 1935, assim como ocorria com outras instituições literárias do Estado, o Grêmio agonizava. INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA. Anais do IGHB. Vol. 5, publicado em 1955. Salvador (BA): Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1955; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p.152; Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p.14; Mônica CELESTINO. Réus, Trabalhadores, Analfabetos e um Major. Op. cit. 105 destes dois consagrados baianos, a defesa da liberdade e a justiça eram assuntos recorrentes na obra daquele menino que se fez orador, escritor e jornalista. Igualmente, eram motes corriqueiros a realidade das ruas, a crítica ácida aos governos e governantes, o tributo a homens e mulheres que beneficiavam um grupo social ou instituição beneficente. Até o cinquentenário, Cosme de Farias, provavelmente, na maior parte do tempo, viveu do trabalho como jornalista. Era um caso quase atípico, pois essa atividade, na maioria das vezes, servia apenas como complemento da renda familiar, porque a imprensa ainda não havia profissionalizado seu processo produtivo e suas relações trabalhistas na Bahia da época. Exercida, sobretudo, por profissionais liberais, como advogados, o jornalismo inspirava status, mas concedia pouco ou nenhum retorno financeiro àqueles que se aventuravam entre calandras, imbuídos da tarefa de divulgar fatos e difundir ideias. A verve literária e jornalística e a manifestação do dom da oratória em eventos públicos poderiam lhe facilitar a mobilidade social. Bacharéis, oradores, jornalistas e intelectuais249, mesmo pobres e mestiços, desde a segunda metade do século XIX, passavam a ter chance de status e mudança de estrato social, por demonstrarem conhecimento publicamente, galgarem admiração e, é claro, poderem influenciar a opinião pública sobre temas diversos. Pelo raciocínio vigente, quem se distinguia merecia alçar lugar compatível com suas habilidades e competências. Sobressaia-se o poder da pena. Porém, Cosme não percebeu o verbo como uma oportunidade de melhorar de vida ou não se interessou por essa diferenciação, pois se manifestava, por meio de discursos escritos e orais, a favor e contra o grupo dominante que poderia acolhê-lo como um dos seus, como será exposto adiante. Com o passar dos anos, ele conseguiu um posto de fiscal externo da Recebedoria de Rendas Estadual, tornando-se funcionário público do Estado e conquistando direito à remuneração compatível com a espinhosa atribuição de acompanhar a arrecadação tributária em 1932. Contudo, permaneceu no cargo por apenas dois anos. Sob alegação de que não conseguia multar àqueles que sonegavam tributos250, requereu sua transferência da Secretaria da Fazenda e Tesouro do Estado para a Imprensa Oficial, sem perda de remuneração. O pleito foi atendido251 em 1934 e, naquele órgão, cumpriu expediente até aposentadoria, encarregado por atividade desconhecida, mas militava no jornalismo concomitantemente. Aquela era uma nova oportunidade para Cosme elevar-se a outro estrato social. “Pre- 249 Gilberto FREYRE. Sobrados e Mucambos. Op. cit. p.585. JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 29 de março de 1967. 251 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 5 de janeiro de 1934. 250 106 tos e mestiços”252, também, ascendiam socialmente por ingresso no serviço público. Embora a maioria dos não-brancos exercesse funções modestas em cargos subalternos, alguns galgavam cargos de destaque por mérito profissional e, por conseguinte, a chance de mudar de estrato social, a despeito da origem e das posses. Contudo, não era fácil: brancos, inclusive os que tinham alguma ascendência africana, atrapalhavam a construção de carreiras no funcionalismo público e nas Forças Armadas de mulatos e negros, desde os tempos coloniais e imperiais253. Não obstante, ao que parece, Cosme desprezou essa chance, primeiro, ao se transferir voluntariamente de um cargo que propiciava alto poder de barganha e, portanto, maior destaque na sociedade e, depois, por destinar a maior parte da receita obtida com o trabalho para o Estado às ações sociais, em detrimento do acumulo de bens materiais e do uso de luxo, de acordo com explicitação no próximo capítulo. O reconhecimento da falta de habilidade para “multar” evidencia a indisposição do servidor para o jogo de poder com comerciantes, industriais, prestadores de serviços, que, embora nem sempre pautado pela moralidade e zelo pelo patrimônio público, poderia lhe conferir dividendos simbólicos e até materiais. Outra chance obtida por Cosme para a mobilidade social foi o ingresso na Guarda Nacional254 como Major255, em 1909. A inserção na organização trouxe-lhe mais oportunidade 252 Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p.95; Gilberto FREYRE. Sobrados e Mucambos. Op. cit. p. 576. 253 João José REIS. A Morte é uma Festa. Op. cit. p. 39. 254 Criada, oficialmente, em 1831 para auxílio ao Exército e às tropas de linha durante expedições, a Guarda Nacional, de início, substituiu milícias, ordenanças e guardas municipais com unidades de infantaria, cavalaria e artilharia e tinha prioridade na divisão de verbas. Contudo, entrou em decadência após a Guerra do Paraguai. Nos anos 1870, começou a ser esvaziada até tornar-se uma espécie de “clube para a elite política”. Em 1873, foi proibida de atuar em causas governamentais, enquanto o Exército voltou a ser considerada a principal força armada nacional. Sob efeitos da Primeira Guerra Mundial, nos anos 1910, o Brasil adotou duas medidas em relação à Guarda: deslocamento da instituição do âmbito do Ministério do Interior e Justiça para o Ministério da Guerra e a suspensão das suas atividades, através do Decreto nº 1.790 de 12 de janeiro de 1918, assinado pelo então presidente da República, Wenceslau Braz (1914-1918). A partir da extinção, seus cerca de 44 mil homens, inclusive o Major Cosme, passaram a integrar a tropa de reserva não-remunerada do Exército brasileiro, porém continuaram a gozar do prestígio conferido pela patente. Boris FAUSTO. História do Brasil. 8. ed. São Paulo: EdUSP; Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 2000, p.612; Robert Ames HAYES. Nação Armada a mística militar brasileira. Trad. Delcy G. Doubrawa. Rio de Janeiro: BiBliEx, 1991. Disponível em: <http://cadete.aman.ensino.eb.br/histgeo/HistMildoBrasil /GdNac.htm>. Acesso em: 4 de abril de 2005; EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA ORGANIZACIONAL. Revista Verde-Oliva. nº 170 Brasília: Exército Brasileiro, [s.d]. Disponível em: <http://www.exercito.gov.br/01Instit /Historia/Artigos/0021405.htm>. Acesso em: 10 nov. 2005. 255 À época, o título poderia ser comprado do governo. Nos primeiros anos da existência da Guarda nacional, a nomeação de praças e oficiais cabia ao Governo Imperial e aos presidentes das províncias, mas, depois, passou a depender de eleições presididas pelo juiz de paz local. Mais tarde, o governo começou a vender títulos de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel – a única exceção era o de general, que continuava sendo prerrogativa exclusiva de homens com carreira militar –, em atenção à demanda de proprietários rurais ávidos pela conquista de privilégios pessoais ou de classe para si e como mecanismo de barganha em negociatas para garantia de alianças políticas. Afinal, os membros da Guarda gozavam de foro militar e participavam de paradas e cerimônias cívicas e religiosas, podendo aproximar-se de grupos sociais e políticos específicos por esta via. Dos candidatos do campo, exigia-se renda anual de 100 mil réis e, das cidades, o dobro disto, além da verba para aquisição 107 para aproximação e troca de experiências com indivíduos dos grupos sociais, econômicos e políticos mais altos da sociedade da época, da capital e do interior, facilitando sua ascensão a um estrato mais elevado, a disseminação de suas ideias e a articulação de parcerias para viabilização de suas ações assistenciais em benefício da população menos abastada. Por si, a diplomação como Major já era representativa na Bahia da época, afinal, até as primeiras décadas do século XX, as corporações militares256 admitiam negros, mestiços e mulatos, mas, em geral, na condição de praça, em detrimento dos postos de oficial. Embora o preconceito estivesse arraigado nestas organizações, inclusive com a distinção de regimentos por cor da pele em dado momento histórico, as forças armadas mantiveram-se abertas para a ascensão social de pessoas “de cor”257 e, com o tempo, se constituíram como uma das principais arenas dos conflitos étnicos no Brasil, havendo elevado quantitativo de não-brancos em suas fileiras. Tal abertura258, registrada desde o período colonial, só ocorreu devido à escassez de brancos com interesse em integrar estas organizações, exceto para o oficialato. Ainda assim, para o não-branco259, deter um título de militar, sobretudo de patente de uniformes e armamento. Graças a essa brecha legal, Cosme obteve a patente. Como lhe faltava recurso próprio para tal investimento, foi patrocinado por amigos. A Guarda Nacional firmou-se, desde então, como uma força armada vinculada à aristocracia rural, com organização descentralizada. Não obstante fosse subordinada às câmaras municipais e aos juízes de paz, era uma milícia civil armada ligada, em especial, a proprietários de terra, substituta das forças tradicionais destituídas pelos revolucionários. A certa altura, cada localidade tinha seu próprio regimento, gerido pelo chefe político local (o “coronel”), mediante pagamento de emolumentos. Assim, a corporação contribuiu para a constituição do coronelismo político no Brasil, sistema caracterizado pela concentração de poder nas mãos de um proprietário de terras e, oficialmente, vigente até a época da República Velha (1889-1930). Seus procedimentos desencadearam uma forma de fazer política – o “coronelismo” – e uma cultura peculiar no Brasil, mas não há evidências de que o jornalista baiano tenha filiado-se a um destes coronéis do interior. José Murilo de CARVALHO. Pontos e Bordados. Op. cit. p.130-153; Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit. p.612; Robert Ames HAYES. Nação Armada. Op. cit.; EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA ORGANIZACIONAL. Revista Verde-Oliva. Op. cit. 256 Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p.99-102; Kátia Mattoso de QUEIROZ. Bahia – Século XIX: uma província no Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.225. 257 A Guarda Nacional surgiu em 1831, sob intensa ebulição política e onda de protestos de negros africanos e da terra, adotando como critério para admissão que o candidato fosse branco, livre, com idade entre 18 e 60 anos e renda superior a 200 mil réis para as províncias do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão e a 100 mil réis para as demais províncias. Somente as exigências da condição de livre e de possuir renda já excluía a maior parte da população de negros, mestiços e mulatos. Ainda assim, não-brancos alistavam-se, ocupando corpos inferiores – rechaçados pelos brancos –, e puderam ascender ao oficialato, já que os postos, por um período, foram distribuídos por meio de eleição. Jeanne B. de CASTRO. A Milícia Cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p.141-142 apud Kátia Vinhático PONTES. Mulatos: políticos e rebeldes baianos. Op. cit. p.99; Kátia Mattoso de QUEIROZ. Bahia – Século XIX. Op. cit. p. 244. 258 “Constituía-se então as forças militares em espaços abertos aos homens de cor. A falta do homem branco foi um elemento que limitou as pretensões do estabelecimento de uma organização militar com estrutura rígida. Esta falta devia-se, é claro, não apenas à menor densidade de homens brancos na Colônia, mas também pela recusa do homem branco a realizar trabalhos considerados da ‘repartição dos negros’ e ‘povos mulatos’, expressões de Vilhena, pois, brancos pobres não queriam trabalhos que fossem considerados destinados a estes. Provavelmente, muitos dos serviços de soldados eram considerados desonrosos para um homem branco o que era potencializado pelos baixíssimos soldos e condições precárias, ou ainda, devido à hierarquização na qual ‘odebeder’, também fazia parte do não ser livre”. Kátia Vinhático PONTES. Mulatos: políticos e rebeldes baianos. Op. cit. p. 93. 259 Kátia Vinhático PONTES. Ibid. p. 88-110. 108 acima da de soldado ensejava orgulho, lhe conferia consideração e distinguia dos demais “homens de cor”, no período pós-abolição da escravatura, mas, ainda, eivado pelo preconceito étnico. Cosme parecia perceber isso e, desde a posse, passou a ostentar sua condição de oficial, atendendo pela alcunha de “Major Cosme”. Desta forma, tornou-se conhecido na cidade. Era um oficial sem espada, sem divisas, sem uniforme, e não tinha armaria, nem indumentária própria e nem soldo, mas gozava do prestígio conferido pela corporação. Enfatiotado em uma imponente farda e protegido por espada chamejante presa à cintura, o jornalista260 passou a manhã do dia 4 de setembro de 1909 alinhado às fileiras de militares da Guarda Nacional261, no Quartel General de Salvador, Bahia. Naquele dia, ele recebia de presente o título de Major R-2 do 224º Batalhão de Infantaria262. O novo oficial trajava vestimenta emprestada de amigos, sequer sabia manipular canhões, fuzis e mosquetes e não tinha experiência em batalhas militares, mas teria feito jus à honraria adquirida pelo tenente Pedro Celestino Brandão e outros confrades por 350 mil réis, graças à sua fecunda obra assistencial e a intensa e contínua militância em movimentos por justiça social e pela democracia no Brasil (ver capítulo III desta tese). Em cerimonial com os rituais e a pompa comuns a estes atos, o comandante geral, coronel Deraldo Leite, diplomou o Major recém-nomeado pelo presidente da República e, em discurso, exaltou seu trabalho pela alfabetização de crianças, jovens e adultos da capital e do interior. Ainda na solenidade, Cosme pronunciou o juramento de fidelidade à instituição e ao País. Àquela altura, ele já era um jornalista relativamente conhecido e suas virtudes e ações sociais eram bem disseminadas na capital. Da primeira fase da “Campanha do ABC”, iniciada em 1892, até ali, se somavam 17 anos de voluntariado sem institucionalização. As atividades mais pulsantes, até então, eram contra o analfabetismo, pelo tratamento de indigentes e em defesa gratuita de réus dos estratos mais baixos. Mais recentemente, havia despontado a intervenção em relações trabalhistas, por melhores condições de trabalho e remuneração. Após cerca de duas horas de cerimônia, Cosme saiu do Quartel General na qualidade de oficial. Para celebrar o presente, o tenente Pedro, ainda, ofereceu-lhe um almoço comemo- 260 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 5-6 de setembro de 1971. PARADAS DA GUARDA NACIONAL. In: Annaes do Archivo Publico da Bahia. Vol. 25. Alfredo Vieira PIMENTEL (Dir.). Salvador: Imprensa Official do Estado, 1937, p.341-348; Robert Ames HAYES. Nação Armada. Op. cit. 262 Tratava-se de uma distinção da tropa constituída a partir de proposta do padre Diogo Antônio Feijó, então ministro da Justiça, e da aprovação da Câmara em 18 de agosto de 1831, no começo do período regencial pósabdicação de Dom Pedro I (1831-1842), em tempos de acirrada disputa por poder, para auxílio do Exército na defesa do Brasil. PARADAS DA GUARDA NACIONAL. In: Annaes do Archivo Publico da Bahia. Op. cit., p. 341-348; Robert Ames HAYES. Nação Armada. Op. cit. 261 109 rativo em sua residência, regado a iguarias e bebidas. A partir de então, o Major passou a comparecer à paisana às solenidades organizadas pela Guarda, por falta de um uniforme próprio no guarda-roupa263. Estava feliz, afinal, a patente era uma das raras gratificações recebidas em vida, pela realização da sua obra social. Na sua trajetória, inúmeras vezes, por exemplo, perdeu em eleições para os parlamentos estadual e municipal. A principal manifestação de gratidão a ele ocorreu somente após sua morte, em março de 1972. A despeito das faltas de traquejo com armas e de utensílios fundamentais para que se mantivesse alinhado às tropas em eventuais batalhas, Cosme de Farias foi estimado como “um Major com todas as significações semânticas da palavra, de um maior dos nossos serviços”264. O conceito positivo, amealhado na instituição, pode ser decorrente tanto da participação em eventos realizados pela corporação e das frequentes manifestações de patriotismo, iniciadas antes mesmo da recepção do título, quanto da iniciativa de servir continuamente à população, por meio do exercício da obra assistencial, da militância, do jornalismo, da literatura e, também, da política. 2.3 NAS TRINCHEIRAS DA POLÍTICA Já no arvorecer da República, em 1907, Cosme de Farias buscou conciliar as atividades laborais (como jornalista e escritor), assistência social e militância em movimentos políticos e sociais à atuação parlamentar. Desde então, construiu longínqua carreira política, elegendo-se quatro vezes para o posto de vereador, com mandatos iniciados em 1947, 1950, 1958 e 1962, e para cinco legislaturas como deputado estadual, deflagradas em 1915, 1917, 1919, 1921 e 1971. Nesse ínterim, acumulou, também, infortúnios. No exercício legislativo265, o trabalho era árduo, embora esteja pouco documentado. 263 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 4, 5 e 6 de setembro de 1971, e 15 de março de 1972. Cid TEIXEIRA. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador em homenagem a Cosme de Farias pela passagem dos seus 30 anos de morte, requerida pelo vereador Gilberto Cotrim e bancada do Partido dos Trabalhadores. Salvador (BA), 15 mar. 2002. (Fita-cassete). 265 Quase todos os dias, o Diário Oficial do Estado da Bahia e jornais locais publicavam informações relacionadas ao trabalho de Cosme de Farias, mas o acervo da Assembleia Legislativa conta apenas com o registro de sete requerimentos impetrados por ele entre 1967 e 1971 (súplicas para o reconhecimento da utilidade pública da Hora da Criança, atividade educacional promovida pelo educador Adroaldo Ribeiro Costa, e do Orfanato Mansão do Caminho; a concessão de pensão a um menino; a reativação do Departamento Estadual da Criança; e a construção pelo governo de casas destinadas a juízes, promotores e professores primários), em decorrência de 264 110 Cosme concentrava-se266, principalmente, em ações que pudessem contribuir para sua obra assistencial e a defesa de causas humanitárias (como a integridade de detentos) e de grupos em risco (como crianças e idosos) e na fiscalização da prestação de serviços públicos e pressão de autoridades e do empresariado para a garantia de condições de sobrevivência ao trabalhador267. Entre as prioridades, estavam a busca por oferta e ampliação de serviços essenciais à população268, relacionados ao acesso à educação, a atendimento de saúde, ao acolhimento e à alimentação, inclusive por meio de pleitos de caráter assistencial voltadas a indivíduos ou pequenos grupos269; e a luta por garantia de funcionamento de obras sociais270, através de subsídios, parcerias e anistia a organizações da sociedade civil. E, também, a defesa de condições incêndios nas suas instalações. COSME DE FARIAS – LEGISLATURAS 1967/1975. Ficha. Vol. único. Salvador (BA): Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, [s.d]. Datilografado. 266 Com o objetivo de identificar o conteúdo dos projetos de lei, pronunciamentos e moções escritas ou subscritas pelo parlamentar Cosme de Farias, foram analisadas as seções Diário da Assembleia (ou Diário da Assembleia Geral) e Câmara Municipal de Salvador do Diário Oficial do Estado da Bahia e edições dos jornais A Noite, A Tarde, Gazeta do Povo, Jornal da Bahia e O Imparcial, com amostragem aleatória, mas concentrada, preferencialmente, nos meses anteriores às eleições (janeiro, fevereiro, outubro e novembro, a depender do período), nos quais divulgava-se os resultados dos pleitos e dos preparativos e da promoção dos festejos de seu aniversário natalício do jornalista (março e abril), considerando-se que tais eventos aumentam as chances de agendamento de ações e discursos dele pela imprensa. Para propiciar a identificação de eventuais alterações no direcionamento do trabalho parlamentar de Cosme, a pesquisa foi direcionada para mandatos diferentes (1916, 1917, 1950, 1954, 1959, 1962, 1963 e 1971), escolhidos aleatoriamente. Como os focos desta tese eram as ideias e a natureza das iniciativas do parlamentar, a amostra foi composta com requerimentos, independente dos resultados das votações. Os materiais pesquisados pertencem aos acervos de instituições como o Arquivo Público do Estado da Bahia, a Biblioteca Pública do Estado da Bahia e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, entre outros. 267 A TARDE. Salvador (BA), edição de 21 de dezembro de 1970; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 8 de outubro de 1971. 268 Já no seu primeiro mandato, em 1916, enviou requerimento à mesa diretora da Assembleia Geral, pedindo que a capacidade do Asylo da Mendicidade dobrasse de 10 para 20 leitos destinados a homens e mulheres com mais de 60 anos. GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 1º de março de 1916. 269 Cosme de Farias solicitou, à Prefeitura Municipal, a concessão de pensão aos trigêmeos Wilson, Antônio Wilson e Maria Alice Gomes até seus 18 anos, no valor de Cr$ 2.000, porque seus pais tinham baixo poder aquisitivo e dificuldade em educá-los, e de recolhimento pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia de quatro tuberculosos abandonados nas ruas Nilton Prado e da Independência, no Centro. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 23 de outubro de 1962. 270 Os exemplos são inúmeros. No primeiro ano de mandato, em 1916, Cosme de Farias solicitou subvenção para entidades em que tinha vínculo (Centro Operário da Bahia, Lyceu de Artes e Officios e Associação Typographica Bahiana), em contrapartida da oferta de 15 vagas nos cursos de cada um destes estabelecimentos. Mais tarde, ele requisitou o reconhecimento como entidade de utilidade pública do Instituto Santo Antônio, em 1954, e da Associação de Jornalismo Periodista da Bahia, em 1962, entre outras entidades. Em 1959, requereu os subsídios devidos à União ao Abrigo do Salvador; pleiteou auxílio financeiro para a Associação Bahiana de Imprensa, visando a conclusão das obras da Casa do Jornalista da Bahia; denunciou o fechamento por descaso das autoridades do Abrigo São Geraldo, voltado para o acolhimento de crianças sem lar; e clamou na tribuna que os baianos apoiassem as obras de Irmã Dulce. Também, subscreveu projetos para que o Grêmio Literário da Bahia, do qual participava, e a Associação das Senhoras de Caridade de Itapetinga fossem considerados estabelecimento de utilidade pública, em 1917 e 1971, fazendo jus a uma série de benefícios concedidos a entidades desta natureza pelos governos. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 14 de junho de 1917, 23 de novembro de 1954, 28 de abril de 1959, 7 e 16 de maio de 1959, 13 de dezembro de 1962, 1º de dezembro de 1971; GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1916. 111 dignas de sobrevivência a detentos e presidiários271, do acesso irrestrito a equipamentos urbanos (como escolas) e serviços públicos (como saneamento básico, asfaltamento, limpeza urbana, transportes, policiamento, iluminação, saúde e habitação)272 e dos interesses de categorias profissionais diversas (como os servidores públicos)273; e o combate ao abuso de preços de gêneros de primeira necessidade e em prol do incremento dos salários274. Ainda que pouco recorrente no material analisado, o lobby era realizado por Cosme275. Já o posicionamento público, oral ou escrito, acerca de temas relevantes era comum no dia a dia do parlamentar 276. As moções e homenagens a instituições e personalidades com proeminência social ou política (professores, intelectuais, políticos etc.), também, eram usuais e serviam, oficialmente, para parabenizar, felicitar, expressar solidariedade ou pesar277. Na prática, elas podiam cativar o beneficiário e seus familiares, contribuindo para constituição ou consolidação da imagem positiva do parlamentar; agenda um fato ou assunto na sociedade e na imprensa; ou indicar sua disposição para o diálogo quanto a algo. 271 Neste caso, há inúmeros exemplos, entre os quais o pedido de intervenção da Câmara Municipal, junto ao governo do Estado, pela extinção do uso de algemas e do espancamento em unidades prisionais baianas, por estes atos atentarem contra os sentimentos cristãos e a civilidade, e pelo respeito às decisões judiciais pela Secretaria de Segurança Pública (SSP); a solicitação de que o governo atenuasse a crise de fome dos encarcerados da Casa de Detenção de Salvador; o requerimento de visita do secretário do Interior e Justiça, Josaphat Marinho, à mesma Casa de Detenção para verificar às más condições de funcionamento, por escassez de verbas para manutenção; a defesa de que as práticas de jogo do bicho e prostituição pudessem ser mantidas no Centro da cidade, ao contrário do que decidira a SSP. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 28 de abril de 1959, 23 de outubro de 1962, 6 de fevereiro de 1963. 272 Há vários exemplos, tais como o pedido de interferência do governo estadual, junto ao Ministério da Viação, para acelerar a construção da Avenida Jequitaia, no Comércio, onde ocorriam inúmeros acidentes de bonde, e edificação de prédios escolares pelo poder público; e a solicitação de calçamento para ruas da cidade, distribuição de água potável, criação de sistema de contensão da maré, instalação de mictórios públicos e de habitação popular, em bairros diversos de Salvador. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 9 de junho de 1917, 8 de outubro de 1954, 14 e 23 de novembro de 1954, 21 de dezembro de 1954, 28 de abril de 1959, 13 de dezembro de 1962, 2 e 3 de março de 1963. 273 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 30 de abril de 1959, 8 e 9 de dezembro de 1962. 274 A TARDE. Salvador (BA), edição de 24 de novembro de 1962, 19 de janeiro de 1963; DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 2 e 3 de março de 1963. 275 Em 1963, ele subscreveu requerimento para que a Câmara Municipal solicitasse à Presidência da República a permanência do professor baiano Manuel Pinto de Aguiar no cargo de diretor da Petrobras, estatal brasileira do ramo de petróleo. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 2 e 3 de março de 1963. 276 Em 1971, Cosme de Farias repudiou o ataque do governador Antonio Carlos Magalhães ao Poder Judiciário. Antes, em 1963, posicionou-se contrário ao aumento dos subsídios dos vereadores no final do mandato, devido às precárias condições das finanças da cidade, e resolveu doar, a organizações sociais, o montante recebido da Câmara Municipal. A TARDE. Salvador (BA), edições de 23 de janeiro de 1963, 9 de março de 1963, 5 de abril de 1963; Antônio Fernandes PINTO. Entrevista concedida à autora, em 21 de outubro de 2005, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. (Gravação digital). 277 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 14 e 23 de novembro de 1954, 7 de maio de 1959, 17 e 23 de outubro de 1962, 8 e 9 de dezembro de 1962, 2 e 3 de março de 1963, 16 de abril de 1963. 112 Cosme era persistente278 e encaminhava um mesmo pleito inúmeras vezes, até que ele fosse atendido. Por vezes, ele apenas requeria às mesas diretoras das casas legislativas que encaminhassem a terceiros seus pleitos, por estes não serem da alçada do parlamento. Desta forma, tais requerimentos nem sempre tinham efeito direto sobre a sociedade e, no máximo, causavam constrangimento e, por conseguinte, pressão ao Poder Executivo para execução do que fora demandado e como recurso retórico para a construção de uma imagem positiva do parlamentar. Na análise, percebe-se que ele se debruçava, principalmente, sobre questões de cunho mais imediatistas, em detrimento de políticas públicas, e tinha como prioridade a ação assistencial. Portanto, sua atividade parlamentar convergia para a obra assistencial. Há uma linearidade e coerência entre sua plataforma e suas realizações, dentro e fora das organizações legislativas. Na estreia, em 1907, Cosme foi alçado à condição de candidato279 por iniciativa de trabalhadores da indústria fumageira Martins Fernandes & Cia, portanto, de um dos ramos mais pulsantes da economia baiana naqueles tempos e tornou-se o postulante mais votado entre os concorrentes avulso, mas não garantiu uma das vagas do Conselho Municipal da capital (a Câmara Municipal). Então, era um novato no cenário político local, lançado sem lastro de partidos, sem parcerias que lhe pudessem favorecer no jogo político, sem a recomendação de nenhuma das duas facções concorrentes [a situacionista, do governador José Marcelino de Sousa (1904-1908), e a oposicionista, vinculada ao seu antecessor, Severino Vieira (19001904)]. Aquela pode ter sido uma candidatura precipitada, impulsionada pela euforia de operários grevistas agradecidos pelo auxílio de Cosme, como membro do Centro Operário da Bahia, na negociação com os patrões por melhorias nas condições de trabalho. Naquele ano, os trabalhadores organizaram, inclusive, uma manifestação popular na cidade, em homena278 Em março de 1963, por exemplo, Cosme de Farias pediu quatro vezes consecutivas que o prefeito Heitor Dias Pereira providenciasse a demolição de ruínas localizadas entre as ruas Padre Vieira e Saldanha da Gama, no Centro, para melhorar as condições de tráfego pelo local. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1963. 279 Os candidatos ao parlamento, nas primeiras décadas da República, não dependiam de legenda para concorrer à eleição. Com o advento do Estado Novo (1937-1945), a Justiça Eleitoral e os partidos políticos foram extintos, e as eleições, canceladas. Então, o Poder Executivo estadual e municipal passou a ser exercido por interventores e os parlamentos foram dissolvidos. Somente em 1945, a Justiça Eleitoral e o parlamento federal retomaram suas atividades, após realização de pleito para escolha de representantes da população no Poder Legislativo. Com o início do processo de redemocratização do país, também, foram convocadas eleições para presidente da República e governadores dos Estados. O Código Eleitoral de 1945 determinou a exclusividade dos partidos políticos na apresentação de postulantes a cargos eleitorais. Em 1950, a Lei nº 1164 regulamentou a atuação das legendas, o alistamento de votantes, as eleições e a propaganda eleitoral. Ver Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit. 113 gem a ele280, porém a mobilização e a popularidade foram insuficientes para determinar sua vitória, pois não se sobrepunham no jogo político regido pelas forças hegemônicas da Bahia. Faltava-lhe articulação com a elite política local. Santos281 atribui a derrota à falta de relação com marcelinistas ou severinistas. O jornalista conseguiu apenas a 26ª colocação entre os postulantes ao Conselho, com 453 votos282. Carlos Freire, o concorrente com melhor desempenho, por exemplo, contabilizou cerca de seis vezes mais ao seu favor. O pleito, contudo, foi coalhado de queixas de fraude, talvez, pela magnitude do sucesso do Partido Republicano da Bahia (PRB). Pertenciam à legenda os quinze pretendentes à vereança283 com melhor performance e o intendente eleito, Antônio Carneiro da Rocha. Após um breve interregno, em 1914, Cosme de Farias voltou a se candidatar. Desta vez, pleiteando uma das vagas da Câmara dos Deputados do Estado da Bahia (a Assembleia Legislativa do Estado) e sob a influência e os auspícios do seabrista Álvaro Cova, chefe de polícia de prestígio no governo de José Joaquim Seabra (1912-1916), com experiência acumulada em mandatos como conselheiro municipal e deputado, e um dos seus confrades na Liga Bahiana contra o Analfabetismo 284. Aliado a Seabra – então uma das principais lideranças da Bahia285 –, integrante do Partido Republicano Democrata (PRD) e já famoso pela obra assistencial e mediação de conflitos trabalhistas e pelo envolvimento em protestos contra a caresti- 280 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 62 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 131, 144. 282 A BAHIA. Salvador (BA), edições de 9 e 16 de novembro de 1907; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 131. 283 A BAHIA. Salvador (BA), edições de 9 e 16 de novembro de 1907. 284 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 3 de abril de 1937. 285 José Joaquim Seabra governou a Bahia em duas ocasiões (de 1912 a 1916 e de 1920 a 1924). Em suas gestões, implantou o Tribunal de Contas e fez a reforma urbana de Salvador (BA), aterrou o mar para a construção do porto da cidade e criou sedes para a Imprensa Oficial, a Biblioteca Pública, o Fórum, a Secretaria da Fazenda (Tesouro) e o Hospício João de Deus, destinado a pessoas com transtorno ou distúrbio mental. Ele, também, concluiu o trecho da Avenida Oceânica entre a Barra e o Cristo, assinou acordos para delimitação do Estado, e privatizou os serviços de transporte marítimo e fluvial. Para custear os trabalhos, o executivo tomou empréstimo internacional e emitiu apólices. Nesse período, entretanto, registrou-se o agravamento do quadro sócioeconômico do Estado, a divisão do seabrismo e a insatisfação popular ocasionada pelas constantes viagens de Seabra. O governador enfrentou manifestações contra o alto custo de vida e o atraso no pagamento dos salários dos funcionários públicos civis, policiais e bombeiros; e acirrada oposição dos coronéis do interior, que deu origem à “Revolta Sertaneja” em protesto contra a restrição dos poderes das lideranças interioranas nas suas áreas de domínio. Em 1922, ele foi alçado para compor a chapa à Presidência dissidente, rotulada de “Reação Republicana” e liderada por Nilo Peçanha. À época, o grupo tinha obtido apoio das oligarquias situacionistas da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul, mas, ainda assim, foi derrotado pela chapa oficial, encabeçada por Artur Bernardes. Depois de não conseguir fazer seu sucessor, Seabra entrou no ostracismo e morreu, em 1942, praticamente isolado. PERÍODOS LEGISLATIVOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA – 1915-1917 – José Joaquim Seabra. In: Senado Federal. Op. cit.; Edilton Meireles de Oliveira SANTOS. J. J. Seabra, sua Vida, suas Obras. Op. cit.; Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia. Op. cit.; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 327-334, 346-349. 281 114 a, o jornalista foi declarado eleito em 1914. Obteve, oficialmente, 2.782 sufrágios, ocupando o quinto lugar entre os sete eleitos no primeiro distrito286, de acordo com a Primeira Comissão de Verificação dos Poderes (CVP), designada pela própria Câmara287 e responsável por homologar resultados eleitorais desde a proclamação da República, em 1889. Cosme, no entanto, teve o mandato ameaçado porque eclodiram denúncias de antiseabristas (severinistas, vianistas e marcelinistas) de manipulação eleitoral pelo governador Seabra, principalmente, no primeiro distrito, onde a situação arrebatou todas as sete vagas disponíveis. Por meio do jornal Diario da Bahia288, a oposição divulgou resultados divergentes dos oficiais, reconhecendo a eleição de apenas um representante do PRD (Pedro Frederico Rodrigues da Costa) e colocando Cosme como nono colocado com 1.522 votos e, portanto, derrotado; e até noticiou a diplomação dos eleitos de acordo com os oposicionistas, mas o ato não foi confirmado. O relator do caso, deputado Antônio Sampaio289, garantiu não haver protesto oficial em tramitação na CVP. Os novos parlamentares, inclusive Cosme, tomaram posse em 1915. A despeito das contestações, aquele pleito impulsionou sua carreira política. O mandato exercido no parlamento estadual de 1915 a 1917 foi o primeiro de uma série, encerrada somente em 1923. Nas consultas realizadas a cada dois anos, ele foi reconduzido, principalmente, por eleitores290 de Itaparica e Salvador, regiões onde concentrava sua atuação beneficente e militância social e política. Filiado ao PRD291, mantinha-se aliado ao líder democrata Seabra, que, por muito tempo, esteve em intensa disputa de prestígio nacional com o jurista baiano Rui Barbosa292. No pleito seguinte, ele conseguiu apenas a sétima e última colocação no primeiro distrito293, totalizando 3.308 votos, apesar de ter concorrido em um colégio com a menor média de sufrágios entre os eleitos (3.925)294 e contar com o apoio de Seabra e do seu sucessor, o 286 A eleição era distrital: cada uma das seis áreas do Estado elegia seus representantes (no total, de sete). O primeiro distrito era composto por Salvador, Matta de São João, Pojuca, Sant´Anna do Catú, Abrantes, Itaparica e Villa de São Francisco. 287 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 6 de abril de 1915. 288 A TARDE. Salvador (BA), edições de janeiro a abril de 1915; DIARIO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de janeiro a abril de 1915. 289 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 6 de abril de 1915. 290 DIARIO OFFICIAL. Salvador (BA), edições de 18 de fevereiro de 1917, 19 de fevereiro de 1919, 1º de março de 1921. 291 Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia. Op. cit.; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 132. 292 Ver em Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia. Op. cit. 293 DIARIO OFFICIAL. Salvador (BA), edição de 18 de fevereiro de 1917. 294 As médias foram de 8.282 (segundo distrito), 9.179 (terceiro), 8.847 (quarto), 9.622 (quinto) e 9.537 (sexto). 115 seabrista Antônio Muniz Sodré de Aragão (1916-1920)295. Contudo, reelegeu-se para a segunda legislatura como deputado estadual (1917-1919). Na eleição posterior, reafirmou apoio a Seabra, então articulando-se para voltar a gerir o Estado, e obteve 3.333 adesões manifestadas nas urnas. Quinto mais bem votado do primeiro distrito, comemorou por ter resultado mais positivo do que aquele registrado na vez anterior, embora a concorrência tivesse sido mais acirrada296, e tomou posse do cargo para o mandato entre 1919 e 1921297. Em meio à intensa concorrência para o exercício 1920-1924 e de renovação de cinco dos sete deputados estaduais do primeiro distrito, a população298 concedeu 3.896 votos a Cosme em 1920, mantendo-o no parlamento estadual. Porém, outra vez, ele era o sétimo e último colocado entre os eleitos, não obstante tivesse amealhado 563 mais sufrágios do que na consulta anterior. O desempenho preocupava, pois a adesão a ele estava muito aquém da conseguida pelos demais candidatos do seu distrito: o concorrente de melhor performance teve 2.115 votos a mais que ele e a média alcançada pelos diplomados cresceu de 3.925 para 4.800, apesar de ainda ser a menor299 entre todas as unidades distritais. A ascensão à Câmara de Deputados de um mulato, de origem popular, sem bens, sem curso de bacharel e sem inserção em família dos estratos mais alto por meio de casamento, na Bahia conservadora, patrimonialista e dominada por uma elite restrita, como o jornalista Cosme de Farias, era incomum nas primeiras décadas da República. Sobretudo, homens brancos, com formação superior, advindo de famílias abastadas e com posses, compunham o legislativo estadual. Sobre isso, afirma Sílvia Sarmento300: “Até então, os líderes operários mais destacados e articulados ao poder vigente, como Prediliano Pitta e Ismael Ribeiro dos Santos, haviam chegado apenas ao Conselho Municipal”. Os quatro mandatos exercidos por Cosme, naquele período, intrigavam pela singularidade. Tal conquista pode ser atribuída a fatores como o carisma pessoal do político e a grati295 Antônio Muniz Sodré de Aragão enfrentou o aumento do custo de vida após queda na oferta de produtos, provocada, sobretudo, pela Primeira Guerra Mundial (1916-1918) e decorrente da produção baiana estar aquém da necessária; e um conflito com os coronéis da Chapada Diamantina e do São Francisco, resistentes à imposição de candidatos ao parlamento e autoridades para atuação em sua área de domínio e a constante ameaça de intervenção policial. Teria sido indicado por J. J. Seabra à sua sucessão, em uma manobra para criar condições propícias ao retorno do líder democrata ao governo baiano, na gestão seguinte. Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 334-335. 296 Os votos foram diluídos entre mais candidatos e houve uma queda na média de sufrágios destinados aos sete eleitos, em todos os distritos. O primeiro distrito registrou a menor média (3.418). Os demais obtiveram 5.349 (segundo distrito), 5.995 (terceiro), 6.805 (quarto), 3.415 (quinto) e 4.295 (sexto). 297 DIARIO OFFICIAL. Salvador (BA), edição de 19 de fevereiro de 1919. 298 DIARIO OFFICIAL. Salvador (BA), edição de 1º de março de 1921. 299 Naquele ano, as demais médias dos sete melhores por distrito foram de 7.103 (no segundo), 8.781 (terceiro), 8.422 (quarto), 5.082 (quinto) e 6.231 (sexto). 300 Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia. Op. cit. p.63. 116 dão e a admiração popular por seu trabalho assistencial e sua defesa de causas sociais e políticas (como o combate à carestia e o analfabetismo e a busca por relações trabalhistas mais justas), porém, possivelmente, também, decorreu da ingerência de governadores (Seabra e Antônio Moniz) a seu favor, considerando-se a relevância do jornalista para a disseminação do seabrismo junto ao operariado e a constante manipulação dos resultados eleitorais, inclusive com anuência das Comissões de Verificação dos Poderes. Já na campanha eleitoral de 1911, Cosme discursou, em praça pública, em defesa da candidatura de Seabra ao governo da Bahia 301. Ambos, provavelmente, firmaram laços no início da década de 1910, por interesse mútuo. Bacharel mas originário de uma família sem tradição política, o chefe democrata necessitava da ajuda de líderes populares, como o jornalista, capazes de articular apoio dos estratos baixos e médios da população ao seabrismo, visando seu fortalecimento no fechado espaço político baiano. Cosme, por sua vez, estava sempre em busca de aliados, que pudessem lhe auxiliar na sua obra assistencial e defesa de bandeiras sociais, e encontrou, no poderoso e carismático Seabra, um parceiro útil. A relação entre eles é explicada por Sarmento302: Firmou-se, então, uma relação vantajosa para ambos. Sem bases na política baiana tradicional, dos chefes do interior, Seabra conquistou um extraordinário promotor de seu grupo junto ao povo de Salvador [...]. Em troca, Cosme tinha acesso a um político que, além de se esforçar em atender pedidos, era capaz de se comunicar bem com a população menos escolarizada. A adesão de Cosme durou para sempre. Até morrer, em 1972, ele ainda se declarava seabrista. Ademais, ambos tinham afinidades. Cosme era um representante do operariado; Seabra, um governante que se mostrava sensível às lutas dos trabalhadores303. Cosme era um defensor da moralidade pública; Seabra, um vereador, senador, ministro (da Justiça e dos Negócios Interiores, da Agricultura e do Comércio, da Viação e das Relações Exteriores) e governador que sempre teria se apresentado com “mãos limpas e unhas curtas”304, conforme o Major. Cosme emergiu das camadas populares e destes estratos nunca se afastou; Seabra portavase como “amigo do povo como nenhum outro”305 , de acordo com o próprio jornalista. Cosme era um dos maiores oradores da Bahia, promotor de meetings na Primeira República; Seabra, 301 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 131. Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia. Op. cit. p. 63. 303 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1916. 304 Ibid. 305 Ibid. 302 117 afeito ao contato com o público e entusiasta dos comícios. Cosme era o patrono do combate ao analfabetismo; Seabra, um gestor público que investia em educação. Com o declínio de um, a partir de 1923, o outro, igualmente, tombou. Desde a transição de governo entre J. J. Seabra e Francisco Marques de Góes Calmon306, em 1923/1924, Cosme concorreu a vagas no parlamento estadual, reiteradas vezes, mas acabou alijado do Poder Legislativo por três legislaturas. À época, ele havia migrado da situação para a oposição e preteria Góes Calmon, em benefício de Seabra, em meio a uma intensa disputa por poder entre ambos, iniciada, em 1923, quando o então governador307 lançou o banqueiro e bacharel como candidato à sua sucessão e, posteriormente, abandonou a ideia, mas viu o exaliado insurgir, manter a campanha e eleger-se sem seu apoio. Seabristas, como Cosme, tomaram o caso como uma traição e romperam com o governo eleito. Com ajuda do presidente da República, Arthur Bernardes, o empresário derrotou Arlindo Baptista Leoni, com 87.757 votos contra 11.479, e foi, oficialmente, proclamado vitorioso. Os governistas, contudo, anunciaram outro resultado, em sessão secreta presidida pelo seabrista Antônio Moniz: Leoni eleito governador com 46.686 sufrágios, contra 26.714 obtidos pelo oposicionista. Sem consenso, Salvador foi tomada por clima de forte tensão. Tropas do Exército e da Marinha passaram a vigiar a capital e, ao mesmo tempo, a polícia local começou a organizar-se para um possível conflito contra as forças federais e a manter, sob vigilância, os parlamentares estaduais que compunham a Comissão de Verificação dos Poderes. O quadro perdurou até que, por despacho, o presidente promulgou Góes Calmon como o novo chefe do executivo baiano, com gestão entre 1924 e 1928, decisão ratificada pelo Supremo Tribunal em resposta a um recurso; e determinou estado de sítio por 30 dias na Bahia, visando asseverar a posse do governador eleito e o funcionamento do parlamento estadual. Só assim, Seabra reco306 O banqueiro Francisco Marques de Góes Calmon exerceu mandato entre 1924 e 1928, secretariado por jovens bacharéis (como o educador Anísio Teixeira). Comprometido com os presidentes Artur Bernardes e Washington Luís, cedeu tropas para lutar na Revolução de 1924, em São Paulo, e a Sergipe, para coibir o levante organizado pelo tenente Augusto Maynard Gomes. Também, apoiou a candidatura de Júlio Prestes à sucessão presidencial, que teria desencadeado a Revolução de 1930. Portanto, parece ter dado continuidade à postura da elite baiana, associando-se ao poder central. Sem perceber a crescente insatisfação com o governo federal no país, perseguiu seus opositores na Bahia, como Cosme de Farias. Mais tarde, nos anos 1930, integraria o grupo dos autonomistas, liderado por Octavio Mangabeira e constituído por membros da aristocracia dos primeiros tempos da República na Bahia. FRANCISCO MARQUES DE GÓES CALMON. In: Governo do Estado. Op. cit.; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 346-353. 307 Enfraquecido por múltiplos fatores (como a fragmentação do grupo seabrista e suas constantes viagens para fora do Estado), J. J. Seabra surpreendeu correligionários lançando o banqueiro como candidato ao governo do Estado, na tentativa de se aproximar do então presidente da República, Artur Bernardes, e reabilitar-se no cenário político, provavelmente, considerando a possibilidade de que o irmão de Góes Calmon, Miguel Calmon do Pin e Almeida, recém-empossado como ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, exercesse alguma influência nesse processo. FRANCISCO MARQUES DE GÓES CALMON. In: Governo do Estado. Op. cit.; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 346-353. 118 nheceu a derrota, rogou habeas corpus à Justiça Federal e exilou-se no exterior até 1926. A primeira derrota de Cosme na concorrência por uma vaga na Câmara de Deputados, em 1923, coincide com o final do segundo governo de Seabra e o início de uma longa contenda entre ele e o governador eleito, Góes Calmon (1924-1928). Oficialmente, ele obteve apenas 2.569 votos (cerca de 34% a menos que da vez anterior), ficando na 12ª posição entre os postulantes do primeiro distrito. Assim, teria perdido eleitores, justamente, no momento de demanda por maior adesão, considerando-se que a média contabilizada pelos eleitos na sua unidade distrital havia subido de 4.800 para 5.085 e a diferença entre ele e o deputado de melhor desempenho (Odilon Alves Peixoto de Athayde) era de 3.945. A brusca queda causou estranheza, devido, sobretudo, à sua popularidade, e alimentou a cisma quanto à lisura das eleições. Em meio às denúncias de fraudes formuladas por seabristas, até então acostumados com a predominância da facção no parlamento, Cosme de Farias escreveu uma constatação oficial, em tom brando, contra a condução do processo eleitoral em Salvador (Mares, Penha e Santo Antônio) e nas vilas de São Francisco e Mata de São João. O documento foi encaminhando por ele à Junta Apuradora, então presidida pelo cel. Frederico Costa, e publicado em ata, no dia 9 de março de 1923, porém não surtiu o efeito almejado. Não houve a inclusão do seu nome na lista dos eleitos. Dois anos depois, em 1925, Cosme deixou de ser diplomado e empossado, de novo, na Câmara de Deputados, mas em circunstâncias diversas daquelas registradas em 1923. A Comissão não reconheceu sua vitória, apesar de ele obter a sétima melhor votação do primeiro distrito (com 2.277 sufrágios) e, portanto, estar eleito, à luz da legislação vigente, que previa a nomeação dos sete primeiros colocados de cada unidade distrital. A soma, contudo, era menor do que a conseguida por ele no pleito anterior (2.569 votos) e a média atingida pelos sete melhores do primeiro distrito (8.478) e cerca de quatro vezes menor do que o obtido pelo candidato com melhor desempenho, Octaviano Rodrigues Pimenta (10.406). O mau-êxito pode guardar relações com a falta de aliança sólida com representantes da elite dominante, afinal, ele era um candidato avulso, sem partido e sem laços com facções políticas. O cenário mudava no Estado: as votações eram as maiores desde 1915; e políticos experientes tiveram desempenho aquém do esperado, considerando-se os resultados oficiais. Naquele ano, as médias dos sete mais bem votados por distrito saltaram para 10.542 (segundo distrito), 10.042 (terceiro308), 12.065 (quarto), 6.049 (quinto) e 11.601 (sexto). No terceiro, 308 Neste caso, só havia dados na ata referentes aos quatro primeiros colocados. Portanto, a média refere-se a estes quatro. 119 ninguém se reelegeu; no quarto, somente três deputados mantiveram-se no parlamento, sendo que Carlos Seabra – o campeão de votos no pleito anterior – ficou na derradeira posição; no quinto, somente dois foram reconduzidos, ainda assim em antepenúltimo e último lugar; e, no sexto, somente Francisco de Magalhães Flôres conseguiu se reeleger. Desta vez, Cosme, aparentemente, empregou discurso mais contundente. Inconformado com a derrota, o jornalista reagiu por meio da imprensa, ao publicar vários artigos em jornais e organizar, em 1926, uma coletânea de textos de sua autoria e produzidos por terceiros, editados por periódicos diversos, levantando a suspeita de fraude no processo eleitoral e na administração calmonista (1924-1928). Intitulado Lama & Sangue309, o livro reúne uma série de acusações de corrupção e má-gestão contra o governador Góes Calmon e seus auxiliares diretos, conforme será analisado no capítulo IV. Entre as reações, está, também, um recurso encaminhado ao presidente da Junta Apuradora, Baptista Márquez310. Redigido a punho por terceiro e corrigido por ele próprio, conforme análise da grafia e das canetas utilizadas, o documento afirma ter ocorrido a prevalência do “bico de penna” (ou seja, a criação ou substituição de votos) nas 2ª, 3ª, 4ª e 5ª sessões da Sé e em todas as sessões de São Pedro, Sant´Anna, Rua do Paço, Santo Antonio, Pilar, Mares, Penha, Conceição da Praia, Vitória, Brotas, Itapuã, Pirajá, Maré, Passe, Matoim, Cotegipe, Aratu, Periperi e Plataforma (em Salvador) e em todas as sessões dos municípios de Itaparica, Vila de São Francisco, Sant´Anna de Catu, Pojuca, Abrantes e Mata de São João. Como suposta prova, ele apresentou, em anexo, um texto do jornal Diario de Noticias, do dia 2 de fevereiro de 1925311. A matéria denunciava ilegalidades no pleito; rememora que, apesar de acusados de oligarcas e opressores do voto livre pela oposição, Seabra e Antônio Moniz asseguravam aos concorrentes visita ao local de apuração (o Palácio do Rio Branco) e consulta aos boletins de resultados, então fixados nas paredes da sede do governo e publicados em Diário Oficial; e lamentava (ou duvidava) que Cosme não tivesse sido eleito. Os protestos não lograram êxito. Apesar dos dois resultados adversos, ele persistiu na política e, em 1927, candidatouse, de novo, a uma das vagas para composição do legislativo estadual. Contudo, nesta ocasião, sofreu sua maior derrota em volume de sufrágios, dentre todas as registradas na década de 1920. Para ter sucesso, era imprescindível incrementar a quantidade de adesões, porém, seu 309 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Legislativa. Grupo: Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia. Atas das Eleições – capital e interior; livro 1238 – 1871/1929. 311 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 2 de fevereiro de 1925. 310 120 rendimento decaiu, em comparação às médias anteriores. Ele teve somente 624 (apenas 27,4% do total conquistado em 1925, ou seja, 1.653 a menos; e 24,2% da soma de 1923, 1.945 a menos), de acordo com os dados oficiais. Pela lei, os sete concorrentes com maior quantidade de escrutínios por unidade distrital seriam diplomados e empossados, mas Cosme ficou na 12ª posição entre os postulantes do primeiro distrito, onde Pedro Calmon Moniz de Bittencourt conseguiu a melhor votação (12.970 adesões), a média alcançada pelos eleitos subiu de 8.478 para 11.284 e quatro deputados reelegeram-se. Também, em 1927, eclodiram denúncias da oposição de suposta manipulação no processo eleitoral, em favor da situação, mas não houve alteração na lista de eleitos. Com aquela derrota, ele completara três sucessivos mandatos fora da Câmara estadual. Pelo teor das contestações de Cosme após cada insucesso desta fase, percebe-se que ele atribuía seu ocaso a Góes Calmon e, em tese, teria maior chance de retornar ao legislativo estadual após o encerramento da gestão do banqueiro, previsto para 1928. Possivelmente, entusiasmado com esta possibilidade, o jornalista candidatou-se a deputado em 1929, em oposição ao calmonismo, por dois distritos simultaneamente, ao invés de apenas um312. Contudo, desistiu da concorrência, às vésperas da eleição, em benefício de Moniz Sodré, sob o argumento de que agia por “disciplina partidária”. Ainda assim, galgou a 11ª e 10ª posição entre os postulantes do primeiro (com 136 votos) e do segundo distrito (com 210). Os mais bem votados nas duas regiões, Pedro Calmon e Alfredo Pereira de Mascarenhas, alcançaram 11.426 e 9.463, respectivamente. As médias alcançadas pelos sete eleitos foram de 9.857 (no primeiro distrito) e 8.454 (segundo). O Partido Republicano da Bahia era a legenda da maioria dos eleitos no primeiro distrito. Um calmonista, Vital Henriques Batista Soares (1928-1930)313, venceu a disputa pelo governo do Estado. Seabrista e oposicionista ferrenho do líder calmonista, Cosme de Farias, neste período, teve dificuldade para conquistar volume suficiente de sufrágios para ser eleito e/ou ter a 312 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Legislativa. Grupo: Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia. Atas das Eleições – capital e interior; livro 1237 – 1923/1936. Ata de 7 de março de 1929; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 166. 313 O advogado Vital Henriques Batista Soares foi eleito governador da Bahia para a gestão entre 1928-1932, mas renunciou ao cargo antes de concluir o mandato, para se candidatar a vice-presidente da República na chapa encabeçada pelo paulista Júlio Prestes. Elegeu-se para o governo baiano com apoio do antecessor, Góes Calmon, e, como uma das suas principais ações, anulou o imposto de terras, criado na administração anterior. PERSONALIDADES HISTÓRICAS. In: Memorial da Câmara Municipal de Valença. Valença: Memorial da Câmara Municipal de Valença, 2011. Disponível em: <http://www.cmvalenca.ba.gov.br/memorial/personalidades.asp>. Acesso em: 17 jul. 2011; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.350-351, 368, 379, 382, 478; VICE-PRESIDENTE. In: Biblioteca da Presidência da República. Brasília (DF): Presidência da República, 2011. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/julio-prestes/vice-presidente>. Acesso em: 17 jul. 2011. 121 vitória reconhecida pela CVP, composta por indicação dos poderes constituídos e responsável por homologar os resultados da apuração desde a eleição de Góes Calmon, em 1923. A situação era oposta àquela vivida de 1915 a 1923, quando ele conquistou quatro mandatos, apesar de obter, quase sempre, apenas a votação necessária para a garantia da vaga, a despeito da sua grande popularidade. Talvez, ele tenha deixado de se beneficiar das farsas eleitorais, como ocorria no auge do seabrismo, ou, ao contrário, tenha sido preterido nas novas fraudes, desta vez, promovidas na gestão calmonista314. Os infortúnios, daquela época, poderiam advir da adesão ao seabrismo, da carência de suporte de uma legenda ou facção forte, capaz de exercer influência sobre a CVP, e da voracidade da oposição do jornalista a Góes Calmon, este, sim, quiçá, com alguma possibilidade de interferir na decisão da Comissão; e/ou da falta conhecimento da candidatura pela população e de associação do seu nome à disputa por espaço nas instâncias do poder público, considerando-se que suas campanhas (baseadas na divulgação “boca a boca”, em comícios e na publicação de textos por ele mesmo ou por confrades em jornais locais) restringiam-se a um círculo específico de pessoas; sua popularidade originou-se, sobretudo, das obras sociais e da mobilização popular; e/ou do contexto eleitoral, em que se exigia cada vez maior quantidade de votos dos concorrentes, entre outros fatores. Portanto, os dois aspectos iniciais estão imbricados à sua postura em defesa dos estratos sociais mais baixos e conduta, notadamente, próxima ao universo destas camadas, como discutido neste capítulo. Mesmo depois de encerrados os governos calmonistas, o afastamento de Cosme das casas legislativas perdurou. O jornalista permaneceu afastado do cargo de parlamentar, também, nos anos 1930 e no início da década de 1940. Desta vez, em decorrência da implantação da ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) no País. Aqueles eram anos de instabilidade econômica e política. Por um lado, o Estado estava descapitalizado e mantinha um sistema tributário ultrapassado e, por outro, grande parte da elite local315 opôs-se a Vargas na “Revolução 314 Em geral, não havia transparência na votação e apuração em gestões diversas, ocorridas nas primeiras décadas da República. Subordinada aos poderes constituídos, a Comissão de Verificação dos Poderes divulgava a lista dos sete primeiros colocados em cada distrito, a despeito da existência de recursos e protestos contra os procedimentos e os resultados, por suspeitas e/ou evidências de fraude. 315 Na campanha à presidência da República, grande parte da elite local já havia apoiado a chapa composta pelos governadores de São Paulo e da Bahia, Júlio Prestes de Albuquerque e Vital Henriques Batista Soares, em oposição à Aliança Liberal e à candidatura do gaúcho Getúlio Vargas. Contudo, apesar de Prestes vencer o pleito (com 1.079.360 de sufrágios), Vargas liderou uma “Revolução”, em outubro de 1930, que impediu a posse dos eleitos e levou ao poder uma Junta Governativa, cujo principal expoente era ele mesmo. Assim, deu início a um longo período de regime autoritário no país e adiou a realização do desejo da elite baiana de resguardar certa autonomia da Bahia, em relação ao governo central, e distinguir-se no cenário nacional. A Bahia, à época, passou a ser gerida por interventores nomeados pela administração central. As primeiras experiências foram malsucedidas, até que o então tenente cearense Juracy Magalhães, de 26 anos, assumiu o governo do Estado em 122 de 1930” – determinante para a tomada do poder por ele e seu séquito –, fazendo com que a Bahia perdesse prestígio junto à administração central. O novo presidente dissolveu a Câmara de Deputados e o Senado Federal, encerrou as atividades partidárias e suspendeu as eleições, entre outras medidas. Como o projeto getulista, baseado na centralização do poder, contrariava os interesses de grupos políticos locais por restringir seu poder, diversos líderes e facções baianas316 superaram as divergências – pelo menos, temporariamente – e passaram a defender, em conjunto, a autonomia das unidades da federação. Até Seabra e os seabristas – que, de início, haviam apoiado Vargas, na expectativa de beneficiar-se com a situação – aderiram à proposta. Mais tarde, parte deles constituiu um grupo denominado de Concentração Autonomista317. A oposição baiana preparava-se para as eleições, convocadas pelo governo, mas fora derrotada pelo partido do interventor Juracy Magalhães318, já no pleito de estreia, para a Assembleia 1931, permanecendo no cargo até romper com Vargas em 1937. Ver melhor Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; PERSONALIDADES HISTÓRICAS. In: Memorial da Câmara Municipal de Valença. Op. cit.; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit.; VICE-PRESIDENTE. In: Biblioteca da Presidência da República. Op. cit. 316 Aprofundar em Paulo Santos SILVA. Âncoras de Tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso histórico na Bahia (1930-1949). Salvador (BA): EdUFBA, 2000. 317 O grupo autonomista (formado pelo engenheiro Octavio Mangabeira, pelos irmãos Francisco de Góes Calmon e Miguel Calmon e pelo jornalista Ernesto Simões Filho, entre outros), do início dos anos 1930 a 1945, reuniu baianos com orientações políticas diversas, mas igualmente resistentes a qualquer projeto político que desconsiderasse a preeminência da regionalidade e subtraísse deles os privilégios conquistados outrora. O nacionalismo centralizador delineado por Getúlio Vargas, após a “Revolução de 1930”, fez com que diferentes facções locais (antigos adversários, velhas e jovens lideranças) superassem, pelo menos, temporariamente, suas divergências políticas e formassem um bloco coeso de oposição ao governo varguista e seus representantes na Bahia. O autonomismo tornou-se uma forte corrente política. O bloco, em 1932, criou a Liga de Ação Social e Política (Lasp), buscando a devolução da direção política do Estado a um baiano e civil; em 1933, nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, lançou chapa “A Bahia ainda é Bahia”, sendo derrotada pelo partido do interventor Juracy Magalhães; e, em 1934, concorreu no pleito para o legislativo estadual por meio da Concentração Autonomista da Bahia, uma reunião de forças de resistência à “invasão dos forasteiros” que defendia a autonomia das unidades da federação. Em seguida, a Concentração fragmentou-se. Afonso ARINOS; Américo SIMAS FILHO et al. Um Praticante da Democracia: Octavio Mangabeira. Salvador: Conselho Estadual de Cultura da Bahia, 1980; Wilson LINS. Octavio Mangabeira e sua Circunstância. Salvador: Conselho Estadual de Cultura da Bahia, 1986; Ives OLIVEIR. Otávio Mangabeira: alma e voz da República. Rio de Janeiro: Saga, 1971; Paulo Santos SILVA. Âncoras de Tradição. Op. cit.; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 393-398. 318 Quando tenente do Exército Brasileiro, o cearense Juracy Montenegro Magalhães foi nomeado pelo governo getulista como interventor federal da Bahia em 1931, depois do fracasso de interventores civis, com a incumbência de consolidar os propósitos da “Revolução de 1930” no Estado. Enfrentou forte oposição de parte da elite, que desejava ter um governador baiano, mas obteve êxito, sobretudo, por buscar construir um novo pacto político no Estado, estreitando laços com chefes políticos dos municípios. Assim, conseguiu implantar as medidas propostas pela “Revolução” na Bahia e eleger maioria para a Assembleia Constituinte estadual, que, mais tarde, lhe escolheria como governador para mandato entre 1935 e 1939. Nesse período, também, contribuiu com o governo provisório de Getúlio Vargas na repressão às manifestações do movimento constitucionalista, deflagrado em 1932, em São Paulo. Em abril de 1935, tomou posse e implementou inúmeros projetos (criou o Instituto do Fumo e da Pecuária, o Conselho de Assistência Social e o Departamento Estadual da Criança; construiu a Pupileira, o Lactário Martagão Gesteira, o pronto-socorro de Salvador, uma escola modelo para crianças e adolescentes, o prédio da Secretaria de Segurança Pública na Praça da Piedade, a Vila Militar em Dendezeiros, o 123 Nacional Constituinte, em maio de 1933. O quadro repetiu-se em outubro de 1934, na disputa para a composição da Assembleia Estadual e da Câmara Federal319. Os processos foram repletos de denúncias e protestos de fraude, tais quais ocorria na República. O desempenho aquém do esperado em 1934 anulou a chance de vitória de Octavio Mangabeira, o líder autonomista, na eleição indireta para governador, realizada em abril de 1935. A Assembleia concedeu a Magalhães o direito de gerir o Estado entre 1935 e 1939. Contudo, ele abandonou o cargo, em 1937, por divergência com a política varguista. Naquele contexto, políticos experientes, como Cosme de Farias320, seguiam afastados do poder. Sequer o jornalista integrou a lista de delegados fundadores de partidos na Bahia, conforme registro de partidos no Tribunal Regional Eleitoral321; ou tornou-se deputado estadual classista, na condição de representante de entidades profissionais. A despeito de sua vasta experiência em associações dos Funcionários Públicos da Bahia, Tipográfica da Bahia, Baiana de Imprensa (ABI) e dos Empregados no Comércio da Bahia e em intervenções em conflitos trabalhistas, ele foi preterido na eleição indireta para definição dos parlamentares, realizada em abril de 1936. Preferiu-se indicar personalidades patrocinadas pelo governador322. A partir de então, a população ficou quase uma década sem direito a escolher seus representantes. Com a implantação do Estado Novo (1937-1945), suspenderam-se as eleições e o funcionamento da Justiça Eleitoral; interromperam-se os mandatos dos deputados federais e extinguiu-se a Câmara Municipal e demais instância do Poder Legislativo. Na luta pela reafirmação do Estado de direito no País, os autonomistas aliaram-se a Juracy Magalhães, que, quando governador, havia evitado medidas radicais e tentado aproximar-se de lideranças locais para garantir a estabilidade da sua gestão e rompeu com Vargas, diante da instauração do “novo golpe” em 1937. Juntos, eles reivindicavam uma nova Constituição com previsão de Quartel dos Aflitos e a sede do Instituto do Cacau; desenvolveu o plano rodoviário para nortear a criação de estradas de rodagem no Estado; negociou com o governo federal a construção do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, desde os anos 1940 vinculada à Universidade Federal da Bahia). Contudo, renunciou em novembro de 1937, ao receber a notícia da instauração do Estado Novo, e reassumiu suas atividades no Exército. Somente no processo de redemocratização do país, retomou a carreira política. JURACY MONTENEGRO MAGALHÃES. In: Governo do Estado. Salvador: Governo do Estado, 2010. Disponível em: <http://www.governador.ba.gov.br/governadores/juracymontenegro.htm>. Acesso em: 5 jan. 2010; Juracy M. MAGALHÃES. Minhas Memórias Provisórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; Juracy M. MAGALHÃES. O Último Tenente. Rio de Janeiro: Record, 1996; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 382-413. 319 Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.393-397. 320 O nome de Cosme de Farias não consta na lista de candidatos a deputado constituinte em 1933, nem entre os eleitos para o parlamento em 1934 e para a vereança, pela Concentração Autonomista, em janeiro de 1936. A TARDE. Salvador (BA), edições de 31 de janeiro, 28 e 29 de fevereiro de 1936; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.393-397. 321 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 1º de dezembro de 1945. 322 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edições de 14 e 21 de fevereiro e 17 de abril de 1936. 124 autonomia dos poderes da República (particularmente, do Judiciário); liberdade de pensamento, organização e manifestação político-partidária; anistia dos presos políticos (inclusive Mangabeira323); e convocação de eleições livres com sufrágio universal. Embora com objetivos e estratégias diversos, os liberais e comunistas, também, tinham afinidade com esta proposta. Somente em 1945, registrou-se o declínio do Estado Novo e deflagrou-se o processo de redemocratização do País. Então, surgiram novos partidos e o Brasil voltou a ter eleições para a presidência da República e a composição de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. O general e ex-ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra (Partido Social Democrático, PSD) venceu a disputa contra o engenheiro Iêdo Fiúza (Partido Comunista Brasileiro, PCB) e o brigadeiro Eduardo Gomes (União Democrática Nacional, UDN), o candidato apoiado por juracisistas, autonomistas e pela Esquerda Democrática (grupo que daria origem ao Partido Socialista); e uma nova Carta Magna foi promulgada em setembro de 1946. Apesar da mudança no cenário político, Cosme de Farias manteve-se afastado do legislativo nesta retomada da democracia. Àquela altura, ele já somava mais de duas décadas alijado do parlamento. Fiel às ideias seabristas e simpatizante dos autonomistas, mas ainda desconfiado do ex-interventor Juracy Magalhães, ele ocupava-se com sua obra social e vivia envolvido em movimentos por causas de natureza política e social – como o combate à carestia e ao analfabetismo e a busca pelo posicionamento oficial do Brasil quanto à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) –, aparentemente, em detrimento da política partidária. Apenas em 1947, ele voltou às disputas eleitorais324. Naquele ano, vários partidos habilitam-se, junto ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), para dispor candidaturas ao governo da Bahia e aos cargos de deputados estaduais constituintes (60 vagas), deputado federal (uma) e senador (uma). Ascendeu ao comando do Estado Octavio Mangabeira (1947-1951)325, lan323 Aprofundar leitura em Afonso ARINOS; Américo SIMAS FILHO et al. Um Praticante da Democracia: Octavio Mangabeira. Op. cit.; Wilson LINS. Octavio Mangabeira e sua Circunstância. Op. cit.; Ives OLIVEIRA. Otávio Mangabeira: alma e voz da República. Op. cit. 324 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 1º de abril de 1947, 1º e 4 de junho de 1947. 325 Auxiliado por um secretariado com especialistas, Octavio Mangabeira destacou-se, sobretudo, pelo investimento em hospitais; construção da Escola Parque e de novas escolas de 2º grau, do Fórum Rui Barbosa, do Hotel da Bahia e da Avenida Centenário; início das obras da Fonte Nova; criação do Conselho Estadual de Educação e da Fundação para o Desenvolvimento das Ciências; apoio à fundação da Universidade Federal da Bahia; ampliação da Orla até o Aeroporto, entre outras ações. Também, aproximou-se da população. Porém, a despeito da aceitação popular e do grande volume de obras, não conseguiu superar a crise econômica (a economia da Bahia seguia estagnada, devido ao parco volume de investimentos federais em obras no território baiano, entre outros fatores) nem promover as mudanças políticas que desejava, sofreu retaliações dos colegas autonomistas, sob suspeita de afastamento dos princípios do grupo ao estreitar laços com o governo federal, e foi preterido na escolha dos postulantes à presidência da República em 1950. Desapontado, preferiu abster-se na campanha e 125 çado por uma coligação partidária ampla, que envolvia até integralistas e comunistas, visando fortalecer seu nome para a campanha à presidência da República, em 1950. O autonomista, também, garantiu uma vasta base aliada na Assembleia Constituinte baiana, composta por 53 dos 60 eleitos. Embora filiado ao Partido Republicano (PR) e ligado à vitoriosa aliança mangaberista, Cosme classificou-se apenas como sétimo suplente da legenda, ao obter 565 votos nas eleições regular e suplementar, enquanto o concorrente do PR eleito com pior desempenho, Antonino Fontes Mascarenhas, teve quase o dobro disto (1.059). O jornalista não desistiu, mas mudou a estratégia: migrou para a Câmara Municipal da capital. Em dezembro de 1947, concorreu pelo PR ao cargo de vereador e sagrou-se vitorioso326. Pela primeira vez, tornou-se edil de Salvador. Contudo, obteve apenas 553 votos, foi o último colocado na classificação geral dos eleitos e só conquistou a vaga devido ao coeficiente eleitoral da sua legenda. Seu êxito foi celebrado até por políticos de outros partidos. Aquele pleito fora dominado pela UDN, que compôs uma bancada com dez vereadores. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) teve três; o Partido Trabalhista Nacional (PTN) e PSD, dois cada; e PR, um. Pairaram dúvidas quanto ao processo eleitoral. Várias siglas, inclusive o próprio PR, impetraram recursos para revisão da contagem de sufrágios327, mas a Comissão Apuradora decidiu não conceder vista aos resultados da apuração. A variação de estratégia pode ter decorrido do entusiasmo com a concentração de votos obtidos por ele, na eleição para deputado estadual, em Salvador, em 1947; e da necessidade de se adaptar à legislação eleitoral vigente. A instauração da eleição proporcional, ao invés de distrital, para escolha dos parlamentares lhe prejudicava – pois seus eleitores, historicamente, concentravam-se em Salvador, Itaparica e adjacências, área onde vivia a minoria do eleitorado – e exigia o fortalecimento de sua imagem no interior, onde as atividades assistencialistas (sobretudo, jurídica e de combate ao analfabetismo), mantidas por ele, chegavam, mas não tinham difusão suficiente para lhe asseverar uma vaga no legislativo estadual. Juracisistas e autonomistas cabalaram votos, juntos, em 1950, para o candidato à presidência Eduardo Gomes, que fora derrotado por Getúlio Vargas (1951-1954), porém, se dividiram entre dois postulantes ao governo estadual. Juracy Magalhães (UDN) era apoiado pela afastou-se de cargos públicos por quatro anos, retomando suas atividades, na condição de deputado federal, somente em 1955. Durante sua gestão, a nova Constituição determinou a realização de eleições diretas para escolha de prefeito e vereadores, a cada quatro anos, e a fixação da quantidade de parlamentares de cada casa legislativa por número de habitantes. Afonso ARINOS; Américo SIMAS FILHO et al. Um Praticante da Democracia. Op. cit. p. 124; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 453-467. 326 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 7 de março de 1948. 327 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 9 de fevereiro de 1948, 28 de março de 1948. 126 maioria dos udenistas, mas preterido por muitos autonomistas acolhido na legenda, favoráveis ao engenheiro Lauro Farani Pedreira de Freitas (PSD). Diante da precoce morte de Freitas, em acidente aéreo dias antes do pleito, o deputado federal e ex-autonomista Luís Régis Pacheco tornou-se o candidato do PSD, tendo vencido a consulta e gerido328 o Estado no período entre 1951 e 1955. Na perspectiva da administração pública, o mandato foi profícuo, mas, no campo político, foi conturbado devido a conflitos com deputados, às denúncias de desvio de verbas e à exoneração do prefeito da capital, Osvaldo Gordilho. Leal aos princípios do seabrismo, mesmo após a morte do líder Seabra ocorrida em 1942, Cosme de Farias conduziu329 uma dissidência do PR, em 1950, por discordar do apoio concedido pela legenda ao ex-interventor udenista Juracy Magalhães, na campanha pelo governo baiano. Então, transferiu-se do PR para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), superando o ressentimento contra Getúlio Vargas, e integrou-se à base aliada de Lauro de Freitas (e, depois, de Régis Pacheco), em episódio que revela uma faceta política de Cosme. Não obstante fosse essencialmente voltado à assistência social e militância por causas pelo bem-estar da população, ele, também, era um político no sentido estrito – e mais comum – atribuído a este termo. Pelo novo partido, o PTB, Cosme reelegeu-se para o exercício do mandato de vereador entre 1951 e 1955, com 1.060 votos, quase o dobro da vez anterior330. Osório Vilas Boas teve o melhor desempenho, com 1.713 sufrágios. A UDN perdeu seis dos seus dez edis, se enfraquecendo, enquanto a Coligação Baiana e o PTB ampliaram suas bancadas. Desta vez, ocorreu, na capital, uma eleição suplementar nas seções onde se registrou suspeita de manipulação dos votos331. Como seus candidatos alçaram às condições de governador e presidente da República, o jornalista tornou-se um situacionista, embora, ao final da vida, tenha declarado que sempre fora de oposição. 328 Régis Pacheco buscou desenvolver a agricultura; inaugurou o Estádio da Bahia (depois chamado de Octavio Mangabeira e popularizado como Fonte Nova); e começou as obras da hidrelétrica do Funil e de pavimentação da rodovia Salvador-Feira de Santana. Na sua gestão, realizou-se a ampliação da Refinaria Landulpho Alves, em Mataripe, e ações para a construção de portos no Estado. Contudo, Pacheco enfrentou processo, impetrado pela Assembleia Legislativa, quanto à legalidade da nomeação de juízes para o Estado; e acusação de desrespeito à autonomia do Poder Legislativo e à Constituição e de desvio de Cr$ 10 milhões do empréstimo para a construção da Estrada de Ferro de Nazaré, além de favorecimento à Navegação Baiana e Viação São Francisco na área de exploração de transporte. Em 1954, exonerou a pedido o prefeito Osvaldo Gordilho e nomeou Aristóteles Góes para substituí-lo. Também, neste ano, Salvador deixou de ser base militar nacional, resgatando sua autonomia político-administrativa; e reconquistou o direito de eleger por voto direto seu prefeito. BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 211-222. 329 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p. 18-20. 330 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 18 de janeiro de 1951, 30 de março de 1951. 331 Ibid. 127 Os oito anos de vereança de Cosme, entre 1948 e 1955, foram interrompidos pela derrota nas eleições regular e suplementar, de outubro de 1954 e fevereiro de 1955. Após trocar a legenda situacionista pelo Partido Democrata Cristão (PDC)332 – sigla que, em 1951, obteve apenas 3.345 votos e não elegeu representante para a Câmara Municipal de Salvador –, ele conquistou apenas 610 adesões no pleito regular333 e ficou dependendo da consulta suplementar para garantir a vaga. Até então, estava como primeiro suplente. Então, retomou-se a campanha334, porém a cabala não logrou êxito 335. Em uma disputa equilibrada, cada partido elegeu, em geral, dois ou três edis por coeficiente partidário, pois ninguém alcançou o coeficiente eleitoral de cerca de 5.500 votos. Lutgard Macedo e Dionizio Azevedo tomaram posse pelo PDC, em detrimento de Cosme. Não se localizou a lista dos suplentes desta suplementar. O insucesso lhe abateu. Após a votação inicial, ele reduziu sua frequência no plenário da Câmara e, como se previsse a derrota, publicou um desabafo em versos na imprensa336. À época, o engenheiro Hélio Ferreira Machado, lançado por uma coligação que continha o PDC, elegeu-se prefeito para o mandato de 1955 a 1959; e Antônio Balbino de Carvalho Filho (PSD), apoiado pelo governador Régis Pacheco, tornou-se o novo gestor do Estado (1955-1959)337, derrotando o historiador e professor universitário Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, ligado à maioria pessedista, a UDN juracisista e ao PTB. Ao final, Balbino indicou para a disputa por sua sucessão o engenheiro José Pedreira de Freitas (PSD), descumprindo um acordo interpartidário, firmado na campanha eleitoral de 1954, que previa adesão ao udenista Juracy Magalhães. O ex-interventor elegeu-se338, voltando 332 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 4 de março de 1955. A TARDE. Salvador (BA), edição de 19 de janeiro de 1955. 334 A TARDE. Salvador (BA), edição de 24 de fevereiro de 1955. 335 A TARDE. Salvador (BA), edição de 2 de março de 1955. 336 A TARDE. Salvador (BA), edição de 1º de dezembro de 1954; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p.220. 337 Antônio Balbino investiu em ações sociais (construção de lavanderias públicas em Salvador e centros sociais com oferta de atendimento médico gratuito); inaugurou o sistema de abastecimento de água em Feira de Santana, durante intensa seca na região; retomou a obra do Teatro Castro Alves. No campo econômico, defendeu a pacificação política no país como atenuante da crise, defendeu a cultura cacaueira e criou na Bahia a Comissão de Planejamento Econômico (CPE), coordenada pelo economista Rômulo Almeida e voltada à busca de soluções para o desenvolvimento baiano, cujos projetos não seriam implementados naquela gestão. Seu mandato, também, foi marcado por denúncias de irregularidades na administração, apuradas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito. BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 222-237; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 471. 338 Em abril de 1959, Juracy Magalhães voltou a governar a Bahia, após ser eleito pela União Democrática Nacional (UDN). Tentou unir correntes políticas diversas, visando recuperar o prestígio da Bahia no cenário nacional, porém não logrou resultados positivos. Desta vez, implantou mais de 3 mil quilômetros de estradas; ampliou o sistema de abastecimento de água e de fornecimento de energia elétrica; adquiriu novos navios para a Companhia de Navegação Baiana; criou a Avenida do Contorno em Salvador (BA), além de escolas, postos de saúde e 333 128 ao comando da Bahia para o mandato entre 1959 e 1963. Ainda filiado ao PDC, Cosme de Farias recobrou uma cadeira no parlamento de Salvador em 1958339. Desta vez, teve um desempenho positivo, somando 1.545 sufrágios, mais do que o dobro do obtido no pleito anterior, e tornou-se o vereador mais votado da sua legenda e o sexto de melhor performance entre todos os concorrentes. Ele e Carlos Barbosa Romeu compunham a bancada pedecista entre 1959 e 1963. A concorrência foi equilibrada: nove partidos obtiveram, igualmente, duas vagas cada e outros, uma. Quatro anos depois, em 1962, ele teve o mandato renovado para o período entre 1963 e 1967340. Com 1.737 votos, contabilizou quase 200 sufrágios a mais do que em 1958; sagrou-se o vereador mais votado do PDC, pela segunda vez consecutiva; e conquistou o quarto maior volume de adesões entre todos os candidatos. Ainda assim, o quadro era preocupante, porque ele mantinha-se distante do coeficiente eleitoral (7.005 sufrágios). Nesta concorrida eleição 341, só sete vereadores reelegeram-se, mas houve pouca variação da formação das bancadas (a maioria das siglas ficou com uma ou duas cadeiras). Em decorrência da suspeita de fraude no processo, a 18ª vaga foi disputada a partir do julgamento sobre a validade de votos de Paranema. Em meio a uma nova convulsão política, desencadeada desde a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, havia ocorrido um rebuliço entre as legendas, com a migração de políticos de partidos de grande e médio porte para outros menores. Assim, a composição das bancadas na Assembleia Legislativa tornou-se atípica: pequeninos (como PDC, PST, PSP e PRP) foram fortalecidos, enquanto opulentos, como o PSD, enfraquecidos. O PDC, de Cosme, ficou com seis cadeiras, dobrando sua representação na casa. À época, o engenheiro Virhospitais na capital e no interior; e investiu no aperfeiçoamento de professores. A exposição do Plano de Desenvolvimento para a Bahia (Plandeb), também coordenado por Rômulo Almeida e supervisionado pelo próprio governador, assinalou este período, ao prever uma complexa política de recuperação econômica para o Estado, calcada na industrialização e no investimento em infraestrutura. Contudo, em meio à crise política nacional registrada entre 1961 e 1962, o Plano sequer foi aprovado pela Assembleia Legislativa. Baseado em investimento em projetos agrícolas e industriais, o Plandeb nunca foi implementado. A previsão era de implantação entre 1960 e 1963, a partir da captação de recursos privados e públicos fora do Estado (inclusive da União ou assegurados através dela), porém o Plano foi inviabilizado pela dificuldades econômicas da Bahia e pela crise política nacional, cujo ápice foram a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961 e a disputa pelo cargo entre militares e o vice-presidente eleito João Goulart. BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p.234; JURACY MONTENEGRO MAGALHÃES. In: Governo do Estado. Op. cit.; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.470-472. 339 A TARDE. Salvador (BA), edição de 11 de novembro de 1958. 340 De acordo com o somatório das apurações antes do julgamento da denúncia de fraude na urna de Paranema, cujo resultado não influenciaria na posição daqueles candidatos com maior votação, como Cosme de Farias. Ver A TARDE. Salvador (BA), edições de 20 e 24 de outubro de 1962, 1º e 7 de novembro de 1962; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 10 de novembro de 1962. 341 A TARDE. Salvador (BA), edições de 20 e 24 de outubro de 1962, 26 de janeiro de 1963; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 10 de novembro de 1962. 129 gildásio Sena342 venceu o edil Osório Vilas Bôas na disputa pela Prefeitura de Salvador e, ao assumir o posto, prometeu gerar empregos, promover a industrialização e administrar em parceria com o governador eleito, Antônio Lomanto Júnior (1963 e 1967)343. A instabilidade política nacional culminaria com o golpe civil-militar de 1964 para a deposição do então presidente João Goulart, em protesto contra sua suposta ligação com o comunismo, manifestada através das reformas de base; e com a instauração do autoritarismo, vigente no País até 1985. Entre as medidas adotadas pelos militares, destacam-se a cassação dos direitos políticos de parlamentares e chefes do Poder Executivo; a dissolução dos partidos; a implantação do bipartidarismo; e, visando forjar um ambiente de normalidade, a fundação de duas legendas – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), constituído, principalmente, por filiados do PSD e PTB remanescentes das cassações; e a Aliança Renovadora Nacional (Arena), composta, sobretudo, conservadores da UDN e do PSD. A relação do governo central com os Estados mudou. Os chefes da Nação e dos Estados brasileiros voltaram a ser escolhidos de forma indireta e o poder do presidente da República foi ampliado, tendo sido outorgado a ele o direito de intervir nos Estados, suspender o funcionamento das casas legislativas, emitir decretos-lei e atos complementares, inclusive com restrição dos direitos individuais do cidadão, e determinar estado de sítio. O primeiro governador da Bahia selecionado dentro deste modelo foi o professor universitário e escritor Luiz Viana Filho (19671971)344. Dentro dessa configuração política, Cosme de Farias filiou-se ao MDB e se assumiu como um homem de oposição. Pela nova legenda, sofreu mais uma derrota, ao tentar retornar à Assembleia Legislativa, para o mandato de 1967 a 1971. Recebeu 4.690 sufrágios, ficando apenas na terceira suplência 345, enquanto o parlamentar eleito pelo Movimento com menor 342 A TARDE. Salvador (BA), edições de 31 de outubro de 1962, 15 de novembro de 1962, 3 de janeiro de 1963; DIÁRIO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 27 de outubro de 1962; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 20 de novembro de 1962. 343 A candidatura do então prefeito de Jequié, Antônio Lomanto Júnior, havia sido uma surpresa, porque se imaginava que o concorrente a ser indicado pela aliança dos udenistas com os autonomistas (PL) seria o advogado, professor de direito e ex-secretário da Fazenda da gestão juracisista, Josaphat Marinho. Partidário da retomada do sistema presidencialista, recém-definida por meio de plebiscito nacional, e confiante na atuação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Lomanto Júnior dedicou seu mandato, principalmente, à área social, inclusive à reforma agrária, embora tenha atuado, em parte dele, sob regime autoritário. BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 251; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.472-477. 344 Substituto de Lomanto Júnior, Luiz Viana Filho iniciou, entre 1967 e 1970, um processo de industrialização baiana, com a instalação do Centro Industrial de Aratu (CIA), da Usina Siderúrgica da Bahia (Usiba), entre outros projetos, e a negociação para que um pólo petroquímico fosse criado no município de Camaçari. Administrou o Estado em consonância com o governo militar, justamente, no momento de “endurecimento” do regime autoritário. Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 484-488. 345 A TARDE. Salvador (BA), edição de 26 de dezembro de 1966. 130 adesão, Luís Sampaio da Costa, obteve 5.727 votos. O coeficiente partidário definiu as bancadas, porque poucos candidatos alcançaram o coeficiente eleitoral de 15.505 sufrágios. Dos 60 eleitos, só 27 tinham mandato antes. A Arena venceu, confortavelmente, o primeiro desafio pós-golpe, elegendo 48 deputados contra 12 do MDB, e cedeu apoio aos militares. Já a oposição demonstrava fragilidade frente ao regime. Muito se questionou a licitude deste processo eleitoral na Bahia. Os principais indícios de fraude eram a queda brusca de rendimento de postulantes com histórico de bom desempenho e grande popularidade (como o empresário assistencialista Cristóvão Ferreira, que havia sido o mais bem votado em 1962 e ficou apenas em 30º lugar em 1966); e a eleição de parentes de renomados políticos com votações expressivas (como Valter Lomanto, irmão do governador Lomanto Júnior; Francisco Benjamim, “irmão de criação” do então deputado Jutahy Magalhães; e Angelo Mario Peixoto de Magalhães, irmão do presidente da Arena na Bahia, Antonio Carlos Magalhães). Para o jornalista, as derrotas deste período seriam decorrentes da falta de gratidão do povo. A despeito da derrota nas urnas, Cosme de Farias voltaria a exercer o cargo de deputado estadual346 ainda naquele mandato. Entre 5 de outubro de 1967 e 29 de junho de 1968, ele substituiu o colega Walson Lopes. Oficialmente, Lopes fora afastado do cargo por doença, mas, talvez, este tenha sido um álibi para possibilitar o revezamento dos emedebistas no parlamento. Tal tática era comum entre os oposicionistas e visava propiciar que tanto o deputado eleito quanto os suplentes defendessem suas bandeiras na Assembleia Legislativa. Anos depois, o jornalista regressaria àquela casa, na condição de titular, para o derradeiro mandato da sua vida. Aos 95 anos, Cosme elegeu-se com 7.812 votos em Salvador e 1.000 no interior em 1970, sagrando-se como o deputado mais velho do mundo347. Então, teve o melhor resultado do MDB na capital e o quarto, no Estado; e o maior volume de sufrágios da sua carreira. Apesar da debilidade física em decorrência da idade avançada, ele recusou o título de deputado honorário – que dispensaria sua frequência diária à Assembleia, mas garantiria uma pensão no valor do subsídio pago ao parlamentar ativo –, oferecido pelos colegas emedebistas, e tomou posse em 1971348. Como emedebista, ele deveria fazer oposição ao governador, o médico e 346 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 272. JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 20 de maio de 1971. 348 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 de outubro de 1971, 12 de março de 1971. 347 131 jornalista Antonio Carlos Magalhães (1971-1975)349, mas, em março de 1972, ele morreu, sendo substituído por Hildérico Pereira de Oliveira350, coincidentemente, também, um homem voltado à educação e ao direito, embora com fins lucrativos. O êxito de Cosme em 1970 surpreendeu: as derrotas de 1967 e outros pleitos haviam demonstrado que o carisma e o apelo da sua obra assistencial não eram suficientes para lhe asseverar uma vaga no parlamento; ele concorria pelo MDB, partido enfraquecido na Bahia351; e até líderes locais, inclusive ex-governadores, não conseguiram elegeram correligionários. Ademais, a população mostrava-se incrédula e apática352 (só havia cerca de 1,9 milhões de aptos a votar), devido ao contexto de crise política353. A princípio, esse sucesso pode ser atribuído à gratidão do povo a Cosme de Farias, por seu intenso trabalho assistencial e mobilização popular, e à tentativa do eleitorado de demonstrar indignação pela situação política, por meio da votação em um sujeito diferente do arqué- 349 Antonio Carlos Magalhães assumiu o cargo em março de 1971, após eleição indireta da Assembleia Legislativa e aprovação do presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici. Naquela gestão, ele implementou a reforma urbana de Salvador; garantiu a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari, através de negociação com a administração federal e empresários; e ampliou sua rede de relações políticas dentro e fora da Bahia, fincando as bases do carlismo. Contudo, não conquistou apoio para a candidatura do pastor batista e advogado Clériston Andrade à sucessão. Seu ex-assessor foi preterido em favor do médico e professor universitário Roberto Figueira Santos, que, mais tarde, elegeu-se governador. Havia administrado a cidade de Salvador (1966-1970) e, mais tarde, voltou a gerir o Estado da Bahia (1979-1983; 1991-1995), ancorado na modernização da gestão pública, na realização de obras e na obediência de uma legião de seguidores, incluindo parlamentares e prefeitos. Paulo Fábio DANTAS NETO. Tradição, Autocracia e Carisma – a política de Antonio Carlos Magalhães na modernização da Bahia (1954-1974). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2006; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 484-492. 350 A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972. 351 O MDB da Bahia, àquela altura, estava, praticamente, restrito à capital e a municípios como Feira de Santana, enquanto a Arena contava com representação na maioria dos 336 municípios baianos, expoentes como exgovernadores (Juracy Magalhães, Luís Viana Filho e Lomanto Júnior) e apoio do governo federal, além de deter o controle do governo estadual. Apenas seis dos 46 deputados estaduais eleitos e seis dos 32 deputados federais eram emedebistas. A Arena ocupou 40 vagas da Assembleia Estadual e 26 da Câmara Federal e, também, alcançou as dez melhores votações para o parlamento estadual, sendo Ângelo Mário Peixoto de Magalhães, irmão do governador eleito, Antonio Carlos Magalhães, o postulante de melhor desempenho. Clodoaldo Campos teve a melhor performance entre os oposicionistas, com 15.356 votos. Ari GUIMARÃES. As Eleições Baianas de 1970. Tese. Salvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, 1973, p.118, 140-189, 265-299. Sobre o cenário nacional, ver melhor em Maria Helena Moreira ALVES. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Trad. Clóvis Marques. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p.189. 352 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 1º de janeiro de 1971. 353 A crise decorria do esvaziamento do Poder Legislativo; da falta de votação direta os principais cargos do Poder Executivo; e das restrições à livre expressão do pensamento e à mobilização. O governo militar, entre outras medidas, determinou o recesso do Congresso Nacional e a cassação do mandato e dos direitos políticos de inúmeros deputados federais, por desobediência ou “ameaça” à governabilidade; promovia intensa repressão a movimentos populares, veículos de comunicação, comunicadores e líderes populares; e escolhia, por votação indireta, presidente da República, governadores dos Estados e prefeitos das capitais. À época, elegeram-se, indiretamente, o presidente da República Arthur da Costa e Silva e o vice-presidente Pedro Aleixo; e o governador Antonio Carlos Magalhães, por exemplo. Ver melhor em Maria Helena Moreira ALVES. Estado e Oposição no Brasil (19641984). Op. cit. p. 141-224; Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; Ari GUIMARÃES. As Eleições Baianas de 1970. Op. cit. p. 1-18, 140-189, 265-299; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 282-290. 132 tipo de político convencional, conforme Ari Guimarães354. Como reivindicava e negociava com certa autonomia, independentemente da legenda e do posicionamento político e ideológico do interlocutor, tendo se relacionado, por exemplo, com Juracy Magalhães e ACM 355, o jornalista tornou-se uma opção para quem rejeitava a Arena, mas desconfiava da oposição e temia perder as conquistas alcançadas pelos militares, como o crescimento da economia. Tais variáveis, contudo, não influenciaram sozinhas no resultado. Afinal, o trabalho social e sua popularidade não lhe garantiram vitórias anteriormente356, possivelmente, por ele não manter com o público uma relação clientelista 357, como era comum na Bahia do seu tempo; a concorrência por votos dos beneficiários e admiradores da sua obra era acirrada porque outros prestadores de assistência disputavam votos com ele na capital, inclusive mais abastados financeiramente e/ou com apoio governamental frequente e/ou clientelistas, como o empresário Cristóvão Ferreira; e o volume de suas ações caia, naquele período, devido à sua saúde debilitada, em detrimento da pujança de outras frentes assistenciais. Outros fatores repercutiram naquelas eleições, entre os quais seu comprometimento com a atividade parlamentar no transcurso de mandatos anteriores, ausentando-se do legislativo apenas por doença358 e lutando por causas sociais e políticas legítimas (combate à carestia e ao analfabetismo, melhores salários etc.); seu carisma pessoal e a comoção desencadeada por ele próprio, diante da derrota em 1966359; e, sobretudo, sua atuação mais voltada à prática do bem-estar imediato da população do que a qualquer debate ideológico, distinguido-se do perfil de político então comum. Esse e outros êxitos eleitorais, talvez, também, decorreram da percepção do eleitorado de que os atributos intelectuais e profissionais e de conduta; a circulação entre esquerda e direita; e o status social conquistado pelo candidato – a despeito da origem familiar, étnica e no Subúrbio, entre outras questões – poderiam facilitar uma desejável articulação entre os poderes constituídos e as camadas inferiores da sociedade, comumente excluída dos centros 354 Ari GUIMARÃES. As Eleições Baianas de 1970. Op. cit. p. 160. Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. 356 Sua popularidade não necessariamente revertia-se em votos. Ao contrário, o montante de sufrágios destinados a ele, desde os primeiros anos da República, era incompatível com sua notoriedade. Ao todo, conforme boletins oficiais, ele teve três derrotas nos processos eleitorais para os cargos de conselheiro municipal e vereador e seis, para deputado estadual. Ver tabelas com resultados nos apêndices desta tese e a indicação dos boletins na lista de fontes. 357 Neste sentido, Cosme de Farias distinguia-se até de parte dos “de baixo”, porque, ao invés de melhorar a própria vida e a dos seus, revertia os louros do poder em caridade para terceiros, dedicando seus mandatos à ampliação do seu trabalho assistencialista e ao fortalecimento das bandeiras dos movimentos políticos e sociais aos quais pertencia, como ser verá no próximo capítulo. 358 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 16 de outubro de 1971. 359 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p. 20. 355 133 decisórios. Neste sentido, ele seria, então, tomado como um legítimo “representante do povo”, pelo menos, por uma pequena fatia dos eleitores. Aliás, esses fatores, possivelmente, já refletiam sobre o desempenho de Cosme desde o período de democratização do País, pós-Estado Novo. Embora tenha conquistado vitórias e derrotas nesta fase, ele teve votação ascendente na capital e adjacências, nos pleitos para vereador e deputado estadual, realizados entre 1947 e 1970, a exceção daquele promovido em 1954. Registrou-se um crescimento de 553 para 8.812 votos (7.812 em Salvador), para vereador em 1947 e deputado em 1970, respectivamente. Deve-se ponderar, porém, que houve o incremento do volume de eleitores neste período, decorrente do crescimento populacional e da abertura do perfil exigido pela legislação para se conceder o direito ao voto. Mudanças no contexto, por um lado, beneficiavam e, por outro, prejudicavam o rendimento de Cosme nas urnas. Contra, ele tinha, principalmente, a legislação, que passou a privilegiar candidatos com eleitorado disperso por áreas cada vez maiores, devido à substituição do sistema de votação distrital pelo proporcional. A seu favor, tinha os avanços dos sistemas de comunicação (com a consolidação do rádio nos anos 1940 e a implantação da TV no Brasil em 1950) e dos transportes, facilitadores da difusão e do debate de ideias, sobretudo, pelo interior, onde tinha acesso restrito; e a redução da ingerência dos chefes do Poder Executivo na escolha de parlamentares, positiva para quem, como ele, não costumava contar com apoio de governadores e prefeitos. A despeito disso, ele manteve muito do seu jeito de ser, pensar, operar e interagir no campo da política. Sustentou suas bandeiras sociais e políticas, por meio de ações assistenciais e do envolvimento em movimentos populares; e o investimento em campanhas eleitorais baseadas, principalmente, em encontros presenciais com eleitores (comícios, “boca a boca” etc.) e na divulgação de seu nome e suas propostas na imprensa. As alterações mais significativas foram a migração do parlamento estadual para o municipal, em 1947, e, depois, o retorno à Assembleia Legislativa; e a tentativa de atuação com independência política, após um longo período de lealdade ao seabrismo. Em 1942, Cosme perdeu seu principal referencial político, o democrata Seabra, e, desde então, passou a buscar agir com autonomia. Até simpatizou com as proposições de outras lideranças locais, como o autonomista Octavio Mangabeira, porém não há indícios que comprovem a manutenção de vínculo sistemático com estes. Tal postura fora sustentada inclusive mediante a exigência pela legislação de filiação partidária dos postulantes a cargos políticos e, por conseguinte, compromisso dos associados com a proposta das legendas aos quais estavam vinculados, a partir de 1945. Para atender à lei, ele filiou-se a cinco diferentes 134 legendas (PRD, PR, PTB, PDC e MDB) ao longo da vida, de acordo com documentação levantada para esta pesquisa, mas não demonstrava fidelidade a eles como fazia com Seabra. Foi, portanto, um homem leal a um líder; não, a uma sigla. Ao contrário do que dizia360, Cosme de Farias, também, não se dedicou, exclusivamente, à oposição. Ao longo dos anos, transitou entre a oposição e a situação. Por vezes, esteve alinhado ao governo, como ocorreu nas gestões de Seabra e do seabrista Antônio Moniz, nos anos 1910 e no início da década de 1920, e na administração de Régis Pacheco, na década de 1950, por exemplo. E enfileirou-se com os oposicionistas, notadamente, no governo de Góes Calmon, de 1924 a 1928, no regime autoritário após o golpe-civil militar de 1964 e, possivelmente, em parte da ditadura varguista (1930-1945). A relação sólida de Cosme com Seabra era uma exceção na sua carreira. Em geral, a elite política e econômica da Bahia não lhe concedia expresso apoio, possivelmente, porque ele não era um candidato adicto do poder; e gerava desconfiança por transitar entre grupos diversos, manifestar-se com autonomia e reivindicar benefícios para a população, independentemente do ônus que suas ideias e ações pudessem provocar a políticos e empresários. Sua condição de insurgente em potencial, por vezes, fez-lhe ficar alijado dos centros decisórios. Afora isso, ele preenchia requisitos para ascender socialmente aos estratos mais elevados, mas transparecia maior identidade com os grupos “de baixo”, quando cor e classe social eram predicados que poderiam interferir, diretamente, na inserção ou não de um sujeito na política361. Admitiam-se pessoas dos estratos “baixos” – ou seja, a maioria africana ou afrodescendente – mais como cabo eleitoral do que como associadas a partidos políticos e inscritas como candidatas para cargos eletivos dos poderes Executivo ou Legislativo. Em mais de um século de sistema republicano, a Bahia sempre foi governada por brancos ou por sujeitos que se portam como tal, uma herança dos tempos coloniais, de escravidão, de subjugação dos “homens de cor” em relação ao restante da sociedade. Entre as frestas abertas por esta elite, alguns poucos pretos e mestiços conseguiam, nas primeiras décadas da República, postular vagas e ocupar cargos desta natureza362, em decorrência, em geral, de gozarem de elevado conceito social e intelectual (como ocorreu com o engenheiro, historiador e deputado federal Teodoro Sampaio; e o etnólogo, pintor, líder abolicionista e operário Manuel Querino) e/ou de terem candidatura lançada em meio à articulação com grupos ou indivíduos relevantes no contexto eleitoral. Conquanto, aqueles que alcançam 360 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 20 de maio de 1971, 15 de março de 1972. Ver Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 90. 362 Id. Ibid., p.94. 361 135 posições políticas, comumente, eram alvo de hostilidade ou agressão, por conta da origem363. O próprio Cosme conquistou seguidos mandatos para deputado, entre 1915 e 1923, depois de ter se consolidado como jornalista, filantropo, mediador de relações conflituosas entre patrões e empregados e correligionário do governador de então, Seabra, ou seja, reunir condições para a mobilidade, embora resistisse em se tornar um remediado. Assim, Cosme de Farias até aproximou-se, mas inviabilizou uma união definitiva com os “de cima” – afora Seabra – por se colocar, incondicionalmente, entre os “de baixo” e em defesa deles. Decerto, seus laços políticos pautavam-se muito mais por afinidade com a proposta pragmática e a perspectiva de fortalecimento da sua capacidade de ação como assistencialista e mobilizador do que por convicção ideológica e interesse pessoal, o que torna compreensível sua relação com o socialismo, por exemplo. 2.3.1 Flertes com o socialismo Imerso no universo de luta por remuneração compatível com as atividades e responsabilidades atribuídas ao trabalhador e por melhores condições de trabalho, Cosme de Farias aproximou-se de categorias às quais sequer pertencia, como o operariado da indústria fumageira e da rede férrea; inseriu-se em associações de categorias diversas; envolveu-se em conflitos e até flertou com o socialismo, corrente disseminada na Bahia nos primeiros anos do século XX que, em oposição ao liberalismo e capitalismo, propôs a tomada do poder e controle do Estado pelo proletariado, assim como a extinção da propriedade privada dos meios de produção, o domínio dos setores econômicos pelo Estado e a distribuição igualitária da renda e oportunidades. A simpatia pelo socialismo e afinidade com a proposta de suplantar a exploração dos trabalhadores por meio deste corrente manifestou-se explicitamente em, pelo menos, duas ocasiões. Ainda jovem, sem filiação partidária e sem proximidade comprovada com grandes líderes da política local e nacional, o jornalista integrou, em 1902, a comissão executiva da Federação Socialista Baiana364 (FSB), entidade oficialmente de inspiração socialista e constituída por dois destacados ativistas do operariado da Bahia (os conselheiros da cidade Predilia363 364 Id. Ibid. Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 106-107, 110, 112, 115-116. 136 no Pitta365 e Manuel Raimundo Querino366). Cerca de 15 anos depois, em 1917, já na qualidade de deputado estadual, ele teria feito uma menção a Sebastião de Magalhães Lima, um republicano e adepto do socialismo utópico367, na Assembleia Legislativa do Estado, transcrita pelo Diário da Assembléia Geral do Estado da Bahia de 1º de junho de 1917. O jornalista disse em plenário: O capitalismo explora, e a guerra mata e aniquila. O operário encontra-se em frente destes dois inimigos; e ele, que representa o trabalho e a produção, combate os exploradores; e ele, que significa paz, amor e concórdia, detesta e odeia a guerra. Reivindicar para a coletividade os benefícios do trabalho e da paz – eis a aspiração do proletariado moderno. A essas aspirações chamamos nós de socialismo...368 . A aproximação com o socialismo pode ter ocorrido através de Manuel Querino, profundo conhecedor e entusiasta da cultura baiana, militante em defesa dos trabalhadores, líder da Federação Socialista e uma referência para Cosme desde a infância, quando teria convivido com ele na barraca de iguarias de propriedade de sua mãe, Júlia Cândida. Os dados evidenciados nesta tese possibilitam inferir que Querino teria mesmo exercido papel importante na vida daquele menino mulato nascido no Subúrbio de Salvador, sem tantas expectativas de inserção e ascensão social, mas que terminou conquistando um lugar na sociedade e na política da Cidade da Bahia. A simpatia de Cosme pelo ideal socialista – que fora manifestado por Querino, pelo menos, desde a constituição do Partido Operário, no começo dos anos 1890 – seria mais um dos fortes sinais desta influência. A Federação Socialista Baiana369 surgiu exatamente em 1902, ano em que Cosme passou a constituir sua comissão executiva. Naqueles tempos, no Rio de Janeiro e em São 365 Prediliano Pereira Pitta, como outros membros do Conselho Deliberativo de Salvador (posteriormente, denominado de Câmara Municipal), era empreiteiro, líder do operariado da capital e membro efetivo do Centro Operário da Bahia, onde atuou como presidente do Conselho Executivo no início da década de 1910. Portanto, detinha certo prestígio social. À época, lideranças como Pitta reivindicavam a proporcionalidade na composição das instâncias decisórias dos destinos da cidade e da Bahia, garantindo-se aos estratos “de baixo” o acesso ao sistema político e social vigente, porém, sem problematizar explicitamente a ordem social estabelecida (o direito de propriedade e o domínio oligárquico). Aldrin CASTELLUCCI. Política e Cidadania Operária em Salvador (18901919). Revista de História. Vol. 162. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1º sem. 2010. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rh/n162/a09n162.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011, p.240-241. 366 Ler sobre ele em Agnes MARIANO. Galeria de Notáveis. Op. cit.; e Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. 367 Sobre socialismo utópico, ler coletânea de textos de Charles Fourier (1772-1837), incluindo “Política e pobreza”, “A crítica do liberalismo econômico”, “Crítica dos ideais revolucionários” e “Harmonia universal”. Ver, entre outros, a obra: Jonathan BEECHER; Bienvenu RICHARD (ed. e trad.). A Visão Utópica de Charles Fourier. Textos selecionados sobre trabalho, amor e da atração apaixonada. Londres: Cape Jonathan, 1972. 368 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 120. 369 Id Ibid., p.106-107, 110, 112, 115-116. 137 Paulo, respectivamente a capital federal e uma cidade em franca expansão industrial potencializada pela imigração, eclodiam greves de trabalhadores, fomentadas pelas primeiras associações de resistência brasileiras, mas nunca foram localizados documentos que atestem a relação desses movimentos com a entidade baiana. A organização local, ao contrário, não se envolveu em conflitos, apesar de reunir, em suas fileiras, muitos sindicatos e uniões. Afirma Silva Santos que, em 1907 e 1908, seriam, pelo menos, oito associações profissionais370. Assim como não há registros precisos do seu lançamento, não há indicativo confiável sobre o encerramento das atividades da Federação Socialista. É possível que ela tenha sido dissolvida ou substituída pela Federação Operária, órgão responsável pela publicação do jornal A Voz do Trabalhador em 1908371. Muitos dos seus filiados participaram do Congresso Operário da Bahia, realizado em 1907 com propósito de organizar os trabalhadores locais, mas cujas diretrizes teriam se distanciado dos princípios marxistas disseminados no Congresso Nacional Socialista de 1902 e de cunho anarquista propalados no Congresso Operário de 1906. Pelo menos nesse segundo evento, sequer havia representantes da Bahia. A discrepância entre as ações da entidade baiana, em relação às organizações similares constituídas em estados do Sudeste e Sul, de caráter mais combatente, é nítida até final da década de 1910. A situação só começou a mudar em 1919, quando ocorreu a primeira greve geral da história republicana na Bahia. Naquele momento, teria havido a aproximação das lideranças locais com confrades de outros estados, sob a mediação do advogado, editor do jornal O Germinal372 e entusiasta do socialismo Agripino Nazareth373. 370 Id Ibid., p.121. Id Ibid., p.106-107. 372 O Germinal surgiu em 1902, como um dos primeiros jornais brasileiros de ideais sindicalistas. Era, portanto, voltado à cobertura de questões de interesse do operariado, categoria então recém-constituída no Brasil, após longo período de utilização da mão-de-obra escrava. Em 1913, ele uniu-se ao periódico La Barricata, publicado por Luigi Damiani em língua italiana, dando origem a O Germinal-La Barricata, direcionado à defesa de ideais libertários e editado em português e italiano, pelo imigrante espanhol Primitivo Raymundo Soares, sob o pseudônimo Florentino de Carvalho visando evitar repressão do governo. O editor atuava no movimento operário, tendo inclusive participado de greves, e, por seu trabalho nesta frente, foi preso e extraditado para a Argentina. Nelson CADENA. 1º de Maio: a imprensa operária no contexto do dia do trabalhador. In: Almanaque da Comunicação. Lauro de Freitas (BA): Comunicação, Mídia e Planejamento Ltda., 2011. Disponível em: <http://www.almanaquedacomunicacao.com.br/noticias/239.html>. Acesso em: 18 jul. 2011. 373 O jornalista e advogado baiano Agripino Nazareth tornou-se referência socialista após a Conspiração dos Sargentos, organizada em 1915, no Rio de Janeiro, para instituir uma República parlamentarista no Brasil. Em 1917, ele reapareceu como colaborador do jornal de divulgação da Revolução Russa, O Debate; e, em 1918, envolveu-se no movimento para instaurar a anarquia no Brasil e acabou deportado para a Bahia. Na terra natal, começou a prestar serviços como advogado a associações de trabalhadores e sindicatos; e liderou a greve geral de 1919, na qual grupos de várias profissões reivindicaram jornada de trabalho de oito horas diárias, reajuste salarial, equiparação salarial entre homens e mulheres, e nenhuma punição para os participantes do movimento grevista. Como houve adesão e o empresariado atendeu a parte das reivindicações, Nazareth saiu fortalecido daquela manifestação. Em 1921, entretanto, ele foi expulso do Estado, regressando para o Rio, de onde só volta371 138 Um dos principais movimentos de trabalhadores da República, a greve de 1919 irrompeu em Salvador e, rapidamente, expandiu-se para o Recôncavo baiano. O protesto foi desencadeado pela conjugação das oscilações econômicas, decorrentes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da crise política instaurada desde as eleições estaduais e federais de 1919, com mudanças internas na organização sindical e política374, conforme Aldrin Castellucci375, e, talvez, também, tenha sido motivado pelo cenário internacional, considerando-se que, no período de 1917-1919, existiram intensas agitações operárias em vários países do mundo. O Brasil vivia um momento inédito, com greves em diversos segmentos376, ocorrendo em várias cidades e regiões e com força capaz de paralisar um setor econômico inteiro. Já no ano posterior à grande greve377, em 1920, 15 representantes de agremiações baianas, além de um do jornal operário O Germinal, participaram do Congresso Operário de âmbito nacional, que discutia as diretrizes do movimento de trabalhadores no País; e se reativou inúmeras organizações de resistência participantes de greves do período, como União e Progresso dos Operários da Bahia, Sindicato dos Marceneiros, Sindicato dos Pedreiros, Sociedade dos Condutores de Carroça, Associação dos Marinheiros e Remadores, Sociedade União Geral dos Tecelões, Sociedade dos Empregados de Bondes, União dos Sapateiros, Associação dos Padeiros, e Sociedade União dos Operários de Padaria. Adiante, em 1925, surgiu, também sob a liderança de Nazareth, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), porém a agremiação teve dificuldades para conquistar a adesão do operariado. Isso, em parte, porque teriam interpretado que o PSB tinha proposta similar àquela do Centro Operário da Bahia (COB), então consolidado por promover intensas atividades assisria em 1936, mas na condição de preposto do Ministério do Trabalho recém-lançado pelo presidente Getúlio Vargas. Antônio RISÉRIO. Uma História da Cidade da Bahia. Op. cit. p.469-474. 374 Ver em Aldrin CASTELLUCCI. Flutuações Econômicas, Crise Política e Greve Geral na Bahia da Primeira República. Revista Brasileira de História. Vol. 25, nº 50. São Paulo: Associação Nacional de História, juldez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882005000200006&script=sci _arttext>. Acesso em: 16 set. 2010. 375 Aldrin CASTELLUCCI. Flutuações Econômicas, Crise Política e Greve Geral na Bahia da Primeira República. Revista Brasileira de História. Op. cit. 376 As greves tiveram, à época, uma dimensão inédita no Brasil, por envolver diversos ramos e ocorrer em cidades, regiões e setores econômicos inteiros, evidenciando o desejo de profundas reformas para melhoria ou transformação radical das condições de vida dos trabalhadores. Entre 9 e 16 de julho de 1917, anarquistas de São Paulo, junto com socialistas, articularam a maior greve geral do período, que ajudou o operariado a compreender sua força e influenciou trabalhadores do interior de São Paulo e outros estados (como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) a adotarem estratégia similar. Em outubro de 1918, uma nova greve geral ocorreu em Rio Grande (RS) e, em novembro de 1918, uma manifestação anarquista eclodiu no Rio de Janeiro, sendo violentamente sufocada. Ao longo de 1919, surgiram greves gerais em Rio Grande (RS), Salvador (BA), Recife (PE) e Porto Alegre (RS). Contudo, apesar da relação e da semelhança entre os movimentos da Bahia e de outros estados (inclusive São Paulo), cada um tinha suas especificidades, quanto às dinâmicas e reivindicações. CASTELLUCCI, Aldrin. Flutuações Econômicas, Crise Política e Greve Geral na Bahia da Primeira República. In: Revista Brasileira de História. Op. cit. 377 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 107. 139 tenciais, dentro dos seus propósitos de prestar amparo material aos filiados e reivindicar melhorias para os trabalhadores, sem ferir os limites institucionais, ou seja, sem opor-se aos interesses oligárquicos. Cosme de Farias, por exemplo, fazia parte do COB, embora estivesse prestes a romper oficialmente com a entidade por esta se coadunar com o governo de Góes Calmon, e, possivelmente, não se filiou ao PSB378. As referências, contudo, não parecem suficientes para qualificar Cosme de Farias como um socialista. No máximo, permitem inferir que ele era um simpatizante das bandeiras dessa corrente. Afinal, há apenas dois indícios da sua afinidade com o socialismo e não há vestígios, por exemplo, da sua defesa de revoluções proletárias, ideias marxistas, ações leninistas, não obstante existam provas inequívocas de que sua busca por melhoria das condições de vida para a população tenha sido constante. Possivelmente, sua menção na Assembleia a Magalhães Lima, em 1917, meses após as primeiras evidências da Revolução Russa379 e, por conseguinte, da ascensão do socialismo no mundo, foi motivada por fatores locais como o acelerado aumento do custo de vida e da precariedade das relações trabalhistas, duas das suas maiores preocupações. Não há documentos que atestem seu contato com notícias da Revolução e sua sensibilização com as causas russas especificamente, ainda que ele tivesse o combate à tirania e a advocacia pelos proletários em comum com os bolcheviques. Como simpatizante do socialismo, ele estreitara laços com a vertente utópica da corrente. Tanto sua filiação à FSB – uma entidade reivindicatória, mas moderada – e citação pública ao socialista utópico Magalhães Lima quanto sua conduta na mediação (em geral, pacífica) de conflitos sociais e políticos, em especial, entre empregados e empregadores, sinalizam que ele tivesse mais afinidade com os princípios do socialismo utópico. Assim, buscava melhores condições de trabalho e vida para os trabalhadores, mas não ensejava uma ação arrebatadora para a tomada do poder e dos meios de produção pelo proletariado. Ao contrário, ele desenvolveu, por si, uma série de táticas e ações sociais, sem uso da força, sem violência, e com ênfase na prestação de serviços e na mediação de contendas diversas, embora fosse um contumaz crítico social e político, inclusive de governos. Além desses, outros dois predicados – a inserção social e política entre grupos soci378 Não se encontrou registro da participação de Cosme de Farias na legenda lançada por Agripino Nazareth. Oficialmente, as primeiras evidências da Revolução Russa foram registradas em março de 1917, com a derrubada da autocracia e do czar Nicolau II e a tentativa de estabelecimento de uma república liberal na União Soviética. Meses depois, em novembro de 1917, o Partido Bolchevique, liderado por Vladimir Lênin, impôs a substituição do governo provisório pelo governo socialista soviético. Ver Orlando FIGES. A Tragédia de um Povo – a Revolução Russa 1891-1924. Trad. Valéria Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1999; John REED. Dez Dias que Abalaram o Mundo – história de uma revolução. Trad. Denise Tavares Gonçalves. Rio de Janeiro: Sinergia; Ediouro, 2009, entre outros. 379 140 ais e políticos diversos e o poder de argumentação e persuasão de seus interlocutores – consolidaram Cosme como um dos oradores com maior capacidade de mobilização popular do seu tempo e mediador aclamado em negociações como a de 1907, na greve dos empregados da fábrica de cigarros Martins Fernandes & Cia, uma das quatro ocorridas naquele ano na cidade, e, em 1909, no protesto de trabalhadores da Companhia União Fabril380, que ameaçavam depredar a empresa, diante da iminência de fechamento de unidades fabris e da consequente geração de desemprego381. Cosme pleiteava, junto às instâncias competentes (empresariado, governo do Estado, prefeituras), por meio de movimentos sociais e políticos (como a Liga e o Comitê contra a Carestia e a Liga Bahiana contra o Analfabetismo), a garantia de cumprimento dos direitos humanitários e/ou previstos em lei, através de ações pontuais ou de políticas públicas destinadas a solucionar, em definitivo, os problemas que afetavam a população. E, ao mesmo tempo, investia recursos próprios e adquiridos por ele, junto a terceiros, para assegurar condições essenciais de sobrevivência a quem lhe pedia ajuda, como será discutido no próximo capítulo. Ao que parece, ele até nutria expectativa de obter alguma contrapartida das pessoas beneficiadas por seu trabalho, mas não interrompia sua obra quando a compensação tardava ou não vinha, afastando-se da prática clientelista arraigada na cultura local da época explorada nesta tese. Aparentemente, agia mais por valores humanitários, morais e, quiçá, cristãos do que por convicção ideológica. Não tinha vínculo ideológico e partidário com a esquerda; preferia transitar entre grupos e denominações diversas, interagindo com governantes díspares (como Seabra, Mangabeira, Juracy Magalhães e Antonio Carlos Magalhães) e prestando homenagens a personalidades de frentes diversas (como D. Pedro II, o Papa, o presidente João Goulart e até o empresário estadunidense John Rockfeller). Provavelmente, aproximou-se dos socialistas com propósito similar aos que lhe levaram a uma aliança duradora com Seabra, nos 380 Originada em 1891 da junção de seis fábricas de tecidos, a Companhia União Fabril detinha o controle sobre as indústrias Santo Antônio do Queimado, Nossa Senhora da Conceição, Modelo, São Salvador e Nossa Senhora da Penha, em Salvador (BA), e São Carlos do Paraguassu, em Cachoeira, totalizando, 358 teares e 15.885 fusos; e empregava 805 pessoas. Tendo como diretor presidente o Comendador Bernardo Martins Catharino, fundiu-se com a Companhia Progresso Industrial, também criada em 1891, que detinha as plantas São Braz e Bonfim (com 208 teares e 7.997 fusos) e mantinha 500 empregados. Surgiu, então, o maior parque industrial de tecidos da Bahia, denominado de Companhia Progresso União Fabril, com aproximadamente dois mil operários. Nas décadas de 1930 e 1940, este era o maior credor do governo da Bahia e tinha participação como acionista de grandes corporações, como os bancos Econômico e da Bahia, as companhia de seguros Aliança da Bahia e Sul América, o Empório Industrial do Norte e a Usina Cinco Rios. HISTÓRIA. In: Cia. Progresso. Salvador (BA): Cia. Progresso, 2011. Disponível em: <http://www.ciaprogresso.com.br /historia.cfm>. Acesso em: 10 ago. 2010; Webber STELLING. Indústria Têxtil na Bahia – o apogeu no século XIX e tendências atuais. Salvador: Desenbahia, 2010. Disponível em: <http://www.desenbahia.ba.gov.br /recursos/news/video/%7BFA3F2072-1B70-46DD8F4D-FDB4DC4A1C3B%7D_Artigo_10.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. 381 Ver Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. 141 anos 1910: incrementar sua capacidade de ação pelo bem-comum, ora por meio de ações assistenciais, ora pela mobilização popular. Sua conduta, em certa medida, está em consonância com o perfil da Federação Socialista Baiana. Apesar da nomenclatura, a instituição consistia em uma organização trabalhadora reivindicatória, mas não necessariamente pressupunha a tomada do poder pelo proletariado, nos moldes implementados a partir de 1917, em países como União Soviética 382. Depois de uma fase com foco em ações assistenciais, a FSB passou a adotar uma postura mais reivindicatória e aguerrida, porém buscando que as ensejadas melhorias pudessem decorrer de táticas sem violência, como a negociação e as greves. Não há registros de quaisquer tentativas de insurreição para a derrubada do poder constituído. Nos primeiros anos da República Velha, os socialistas baianos concentravam esforços na concessão de benefícios assistenciais de trabalhadores e tinham atuação acanhada em discussões e conflitos pela qualidade de vida da população em geral, como atos públicos pela redução dos preços dos alimentos e tributos. Eles ensaiaram uma mudança de procedimento apenas no início do século XX, talvez sob influência da legislação sindical recém-lançada no País 383 e do crescimento do movimento operário em outros estados. Ainda na primeira década 382 O socialismo ascendeu como modelo de organização política e econômica no mundo apenas em 1917, mediante a substituição da monarquia por um governo socialista na União Soviética por ação de bolcheviques, no decorrer da Revolução Russa. À época, contudo, possivelmente não se imaginava que a ideologia iria se espraiar por outras partes do mundo até ser introduzida em países do Leste Europeu, da Ásia, como a China, e em Cuba após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e entraria em declínio apenas no final do século XX com a queda do regime na União Soviética. Ver John REED. Dez Dias que Abalaram o Mundo. Op. cit., entre outros. 383 Em 1907, instaurou-se os decretos legislativos 1.637, de 5 de janeiro de 1907, e 1641, de 7 de janeiro de 1907 (conhecido como Lei Adolfo Gordo), que, de maneira dissonante, legalizavam os sindicatos urbanos (muitos dos quais gestados por imigrantes) e suas formas de atuação e previam a expulsão de estrangeiros participantes de ações indesejáveis ao Estado, possivelmente, com a intenção de transformar as entidades em órgãos colaborativos e afastá-las do anarcosindicalismo (corrente em ascensão no Brasil, que negava a ingerência do Estado na organização dos trabalhadores e buscava a transformação da sociedade, sem qualquer forma de governo) por meio do banimento das suas lideranças, em geral, de origem europeia. Assim como o Decreto n° 979, de 6 de janeiro de 1903, estabelecia a organização híbrida com empregados e empregadores rurais para análise, defesa e custeio de interesses desses segmentos, ou seja, de caráter mais cooperativo do que sindical, o Decreto n° 1.637, de 5 de janeiro de 1907, previa a associação de trabalhadores diversos, a despeito dos interesses opostos, porém voltado à “harmonia entre o capital e o trabalho”, o que correspondia mais à defesa da classe patronal do que dos trabalhadores urbanos. Ver BRASIL. Decreto-lei nº 979, de 6 de janeiro de 1903. Faculta aos profissionais da agricultura e indústrias rurais a organização de sindicatos para defesa de seus interesses. Rio de Janeiro (RJ), 6 jan. 1903. In: Presidência da República. Brasília: Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil/Presidência da República, 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil _03/decreto/Antigos/D0979.htm>. Acesso em: 18 jul. 2011; BRASIL. Decreto-lei nº 1637, de 5 de janeiro de 1907. Cria sindicatos profissionais e sociedades cooperativas. Rio de Janeiro, 5 jan. 1907. In: Collecção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil de 1907. Vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908. p.17-22. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/novoconteudo/Legislacao/Republica /leisocerizadas/Leis1907vIleg.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011; BRASIL. Decreto-lei nº 1641, de 7 de janeiro de 1907. Providencia a expulsão de estrangeiros do território nacional. Rio de Janeiro, 7 jan. 1907. In: Collecção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil de 1907. Vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 142 do novo século, surgiram, em Salvador, entidades classistas (sindicatos e uniões) de caráter menos mutualista e assistencial e mais reivindicatórias, voltadas à criação de dispositivos legais de proteção das relações de trabalho e, portanto, bem distintas daquelas forjadas até então. Em meio à efervescência vivida no final dos anos 1910, provocada pelos inúmeros protestos realizados Brasil afora, os socialistas baianos integraram-se ao movimento e participaram, ativamente, da greve geral de junho de 1919. O modus operandi da Federação tinha afinidade com outras organizações do período, com destaque para o Centro Operário da Bahia, do qual Cosme tornou-se ativo associado e presidente na década de 1910, mas, nos anos 1920, afastou-se sob alegação de que os propósitos da entidade se desvirtuaram desde o acostamento com o governador Góes Calmon. Associação beneficente com atuação sob constante tutela da elite política baiana, o COB384 fora fundado a partir da dissolução do Partido Operário – agremiação instituída em Salvador, nos primeiros anos da República, por dez artistas e operários oposicionistas ao governo, entre os quais Manuel Querino – e, em seus eventos, reunia tanto trabalhadores quanto proprietários de fábricas, o que inibia qualquer tentativa de iniciativa mais combativa. As ideias e ações de Cosme distanciavam-se da inexorável exigência de uma revolução contra os modos de produção capitalista, que subjugavam um estrato social em benefício de outro. Se socialista, ele almejava um socialismo sustentado pelo desenvolvimento da consciência coletiva, em favor da igualdade de oportunidades para toda a sociedade – e não, necessariamente, uma sociedade sem classes, sem economia de mercado, sem governo. O jornalista ansiava por mudar a realidade do seu tempo, mas sem que, necessariamente, houvesse o rompimento por completo com a estrutura vigente. Portanto, não aspirava uma insurreição comunista. Assim sendo, a relação com os socialistas sem radicalismo poderia ser, antagonicamente, positivo e negativo para a sobrevivência política e social de Cosme naquele contexto. Por um prisma, o vínculo com uma corrente que questionava o domínio dos meios de produção por um grupo seleto poderia lhe afastar da elite local e, por conseguinte, dificultar sua mobilidade para estratos mais elevados da sociedade, se ele fosse interpretado como um adversário, um inimigo em potencial. Por outro, poderia gerar uma associação com os mais abastados, com o intuito de facilitar a interlocução entre as facções políticas e econômicas he1908. p.24-45. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/novoconteudo/Legislacao/Republica /leisocerizadas/Leis1907vIleg.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011. 384 Consuelo Novais SAMPAIO. Partidos Políticos da Bahia na Primeira República – uma política de acomodação. Salvador: EdUFBA, 1998, p. 67-68. 143 gemônicas na Bahia e os trabalhadores, por ora representados pelos socialistas. 2.4 JEITO DE SER E VIVER A aparência física e as condições materiais de sobrevivência de Cosme de Farias distanciavam-no do estereótipo de quem atuava no jornalismo, serviço público e parlamento, consideradas atividades de relevância e geradoras de indubitável status social. Nada de figurino da moda, nada de joias, nada de imóvel, afora a própria moradia. Ele sequer teve automóvel, embora um veículo pudesse facilitar sua locomoção e agilizar as intervenções a favor da população, sobretudo, após o envelhecimento e a consequente dificuldade para caminhar. Em geral, circulava a pé, de bonde ou de ônibus, por vezes, acompanhado por uma espécie de séquito formado por seus afilhados e amigos385. Outras vezes, usou carroça ou carros emprestados de amigos, como a bacharel em direito e jornalista Zilah Moreira386, que lhe cedeu seu Fusca (modelo popular da Volkswagen) para a cabala de votos por localidades dos arredores do Centro, como o Barbalho, na última campanha para deputado. Não carregava dinheiro e mal contava com o que encobrir seu corpo franzino e pequenino, fragilizado devido ao tempo e às lutas que travou. Quando morreu, em março de 1972, tinha387 apenas dois ternos de linho, um par de sapatos e outro de sandálias, camisas brancas, um chapéu, e acessórios, como gravatas e fitinhas verdes e amarelas. Em geral, suas vestes eram brancas ou em tom escuro, amarronzado. Por vezes, andava pelas ruas do Centro com o pescoço esticado por uma gola alta, típica do século XIX, e uma gravata com nó duplo; abdômen e pulsos protegidos por peitilho e punhos cuidadosamente engomados, para esconder a falta da camisa sob o paletó surrado; chapéu de palhinha posto sobre a cabeça; e indefectíveis fitas nas cores-símbolo da Pátria, que denunciavam seu civismo. 385 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 14 de fevereiro de 1970, 4 de setembro de 1971. Zilah MOREIRA. Entrevista concedida para reportagem da autora desta tese, publicada no jornal Correio da Bahia em outubro de 2001 e reeditada em março de 2002. Ver Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. 387 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1972. 386 144 Figura 2: Cosme de Farias, com a indefectível gravata verde e amarela Fonte: REALIDADE. São Paulo, edição de abril de 1971. Crédito: Amâncio Chiodi A indumentária era parca e desgastada pelo uso frequente, mas, até a primeira fase do século XX, atendia às exigências para que ele pudesse circular pelos corredores de delegacias e tribunais como advogado provisionado, era suficiente para ele ser recebido por autoridades e impunha certo respeito. O uso do chapéu na Cidade da Bahia, por exemplo, poderia distingui-lo dos de outros mulatos. Contudo, com o tempo, devido à falta de atualização do modelo e, principalmente, à insistência no modelo com gola suspensa, o figurino se tornou extemporâneo e passou a permitir a associação da sua imagem ao ultrapassado, ao obsoleto. Depois de morar em São Tomé de Paripe, ele migrou para um imóvel próprio na Rua das Verônicas (atual Rua São Francisco), número 26, bem próxima ao Convento e à Ordem Terceira do São Francisco. Era uma casa ampla, mas sem requinte. A existência de apenas duas janelas à frente da construção logo denunciava que, por lá, residiam pessoas sem muitas posses, apesar dos cômodos serem de alvenaria e a cobertura, de telha cerâmica. Em um terreno de sete metros de largura e 22,68 metros de comprimento, estavam distribuídos, no andar térreo, dois quartos, duas salas, um largo corredor, uma cozinha externa e o quintal, todos com poucos móveis e utensílios. No subsolo, havia cinco lojas, com divisórias de madeira, e um sótão interno, por vezes, cedido para a acolhida gratuita de desabrigados. Cosme viveu por lá, ao lado da esposa, a dona-de-casa Semíramis de Andrade Farias, por cerca de quatro décadas. Arrematada em hasta pública em 1917, do acervo do coronel Carlos Augusto de Barros Palácio, por três contos e quinhentos réis, a residência foi registrada 145 em nome de Semíramis388. Por motivo desconhecido, em novembro de 1960, essa casa foi vendida por Cr$ 600.000,00 ao alfaiate Adrião Evangelista da Silva, um vizinho a quem o jornalista atribuía certa amizade. Anos depois, o prédio passou a ser habitado pela filha deste profissional, Sandra Marisa da Silva Costa, que era apenas uma meninota a bisbilhotar o convívio dos adultos, na época da negociação entre seu pai e Cosme. Ainda em 1960, o casal teria se transferido para a Rua 28 de Setembro389, número 37, próxima à Rua das Verônicas, onde moraria por pouco tempo, em um sobrado, cujas características não são conhecidas. Tanto a Rua das Verônicas quanto a Rua 28 de Setembro estavam cravadas na Sé, o principal distrito da Cidade Alta, por reunir edifícios da administração pública e templos religiosos e constituir-se como o centro do debate político na Bahia, no final do século XIX e início do século XX. Na circunvizinhança da Praça do Palácio, estavam a Casa da Câmara e Cadeia, o Palácio dos Governadores e o Fórum, além do Terreiro de Jesus (oficialmente, denominada de Praça XV de Novembro), da Igreja da Santa Sé (demolida em 1933, para instalação do sistema de bondes), da Santa Casa de Misericórdia, do Palácio Arquiepiscopal e da Faculdade de Medicina da Bahia, pioneira no Brasil. Habitar naquela região era um privilégio, algo comum entre os mais abastados economicamente, até a segunda metade do século XIX. Porém, após a migração de famílias da elite para áreas como a Vitória e um processo de intensa ocupação devido à crise da economia açucareira e à abolição da escravatura, a Sé390 perdeu o esplendor e passou a asilar famílias, sobretudo, das classes média e pobre, tornando-se um celeiro de degradação que pouco lembrava os sobrados imponentes bem povoados de outrora. Já nas últimas décadas oitocentistas, o trecho final da Rua das Verônicas era habitado por pardos e negros, livres, libertos e até escravos, que se ocupavam, em especial, da prestação de serviços autônomos. Parte deles acomodava-se em subdivisões dos sobrados e em cômodos improvisados em pátios e quintais. Era comum a falta de infra-estrutura urbana, a sujeira e até esgoto a céu aberto no local. Como se negligenciasse a habitual fartura de terras na Bahia, esta população começou a comprimir-se naquele território, talvez, pela comodidade de estar próximo ao centro de 388 ESCRITURA DE COMPRA E VENDA. Juízo de Direito da Vara Civil, número 6.715, livro 3-E. Salvador (BA), 8 de abril de 1920; ESCRITURA DE COMPRA E VENDA. Cartório do Terceiro Ofício, livro 46, fl. 135. Salvador (BA), 25 de novembro de 1960. Documentos originais do acervo pessoal de Sandra Marisa da Silva Costa. 389 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 14 de fevereiro de 1973; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 4 de setembro de 1971, 21 de março de 1972. 390 Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Dez Freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador (BA): EdUFBA, 2007. Coleção Bahia de Todos, p.71-73, 112-119; Fernando da Rocha PERES. Memórias da Sé. Salvador (BA): Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 1999. 146 decisões e ao comércio mais efervescente da cidade, considerando-se a dificuldade de locomoção pela escassez de meios de transporte públicos, conforme afirma Anna Amélia Vieira Nascimento, em Dez freguesias da cidade do Salvador391. Na fase de deterioração, as ruas mal recebiam a luz do Sol. Eram estreitas e apinhadas de casas, principalmente térreas, amontoadas umas às outras e erguidas sobre terreno íngreme, com paredes meeiras, além de portas e janelas dando para a via pública ou varandas. Havia, também, sobrados com de um a quatro andares – embora em minoria –, ocupados por famílias abastadas inteiramente ou por famílias de baixa renda, em geral, em sistema de compartilhamento. Além da Sé, outros onze distritos urbanos (Nazaré, Rua do Passo, Santo Antônio, São Pedro, Vitória, Sant’Anna, Brotas, Conceição da Praia, Pilar, Mares e Penha) e oito suburbanos (Itapoan, Maré, Pirajá, Paripe, Aratu, Cotegipe, Passé e Matoim, nas imediações do rio (homônimo) compunham a cidade392 nos primeiros decênios do século XX. Cosme transitou, em fases diferentes da vida, pelos dois mais relevantes da zona urbana – a Sé, na parte alta, e a Conceição da Praia, na porção baixa da capital – e nasceu em Paripe, lugar dotado de vasta vegetação nativa e de vista privilegiada para a Baía de Todos os Santos. Naquele período, quanto mais afastados deste Centro, menos povoados eram os distritos. Já na segunda metade do século, em 5 de dezembro de 1963, Cosme de Farias enviuvou. A lacuna deixada por Semíramis parece ter aflorado a solidão, impingindo-o para outra área da cidade, Brotas. Na tentativa de atenuar a dor pela perda da companheira de mais de seis décadas, ele deixou, definitivamente, a região da Sé e migrou para um casebre na Quintas das Beatas, renomeada de bairro Cosme de Farias em homenagem ao ilustre morador, através de projeto formulado por Americano da Costa e aprovado no plenário da Câmara Municipal. Adquiriu o imóvel por Cr$ 900.000,00 ou Cr$ 1.100.000,00, recurso obtido a partir da venda da casa da Rua 28 de Setembro, número 37, em 1965, quando amargava os primeiros meses da viuvez393. Seu último pouso, situado à Travessa Heitor Dias, número 4, era ainda mais simples do que as edificações da Sé. Tratava-se de uma tapera com apenas duas salas, um quarto, um sanitário e uma cozinha de poucos metros e com chão batido, por onde espalhava a cama em que dormia, uma mesa com cadeiras para assento dos visitantes, um retrato pendurado na parede, que podia relembrar-lhe o vigor dos seus 45 anos, a imagem de Santa Bárbara, além de 391 Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Dez Freguesias da Cidade do Salvador. Op. cit. p.71-73. Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Op. cit. p. 179. 393 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 14 de fevereiro de 1972. 392 147 utensílios domésticos394 essenciais para o dia a dia, porém insuficientes para lhe garantir qualquer conforto. Incapaz de conter a frieza e a umidade comuns nos tempos de Inverno, a construção tosca impunha improvisos a Cosme. Nos períodos de chuva, por exemplo, ele chegou a mudar-se para a residência de amigos, na área do Santo Antônio Além do Carmo, para evitar que doenças respiratórias devastassem seu corpo já abatido pela idade e pelo incansável trabalho. O imóvel estava localizado em uma transversal da avenida principal, sem calçamento ou infra-estrutura urbana. À época, a região 395 – nomeada como Quinta das Beatas em decorrência de, em parte, pertencer a pessoas ligadas à Igreja Católica – tinha recebido um dos seus primeiros benefícios do poder público: o asfaltamento da principal via, feito em 1956. Ainda era rica em árvores frutíferas, como mangueiras, jaqueiras, cajueiros e coqueiros, e desprovida de vida comercial própria. Também, era quase isolada. Chegar por lá exigia o esforço de trafegar sobre o lombo de animais ou andar a pé por algumas léguas, pelo menos, entre a chamada Boca da Mata, o atual Largo dos Paranhos, onde findava a linha de bonde, e o local de destino. Um mapa de 1851 mostra a formação de primeiras ocupações em áreas periféricas de Salvador, entre os quais esta Quinta396. Os pioneiros ergueram choupanas com paredes de barro e cobertura de telha, em decorrência da proibição de uso de outros materiais imposta pelos proprietários da terra. Como outros pontos da cidade, a localidade foi ocupada de forma desordenada, devido à proliferação de loteamentos ilegais, invasões de encostas e baixadas, e arrendamento de imóveis. Da fazenda, surgiram casas e loteamentos, que, ao longo dos anos, receberam nomes diversos – Alto do Cruzeiro, Campo Velho, Alto do Formoso, Baixa da Paz, Baixa do Sossego, Baixa do Silva, Baixa do Tubo, entre outros. Apenas em 1985, os imóveis foram legalizados pela Prefeitura Municipal397. Em meio ao improviso nas construções tocadas por pessoas de baixa renda e sem qualquer orientação profissional, perdeu-se um pouco da história da cidade, escondida por ali desde o início do século XX. Parte da cantaria talhada, dos florões de pedra e da pedra lavada, que haviam sido depositados no terreno após a demolição da Igreja da Sé em 1933, foram 394 A TARDE. Salvador (BA), edições de 11 e 12 de fevereiro de 1973; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 14 de fevereiro de 1972. 395 Luiz Eduardo DOREA. Histórias de Salvador nos Nomes das Suas Ruas. Salvador: EdUFBA; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2006, p. 47-48. 396 Pedro de Almeida VASCONCELOS. Pobreza Urbana e a Formação de Bairros Populares em Salvador na Longa Duração. Nº 20. São Paulo: Geousp – Espaço e Tempo, 2006, p. 25. 397 Luis Eduardo DOREA. Histórias de Salvador nos Nomes das suas Ruas. Op. cit. p. 48. 148 utilizados como material na feitura da fundação das novas casas da Quinta das Beatas398. Literalmente, enterrou-se relíquias do templo erguido pelos portugueses, em sinal da fé, a partir de 1553, nos primeiros anos de colonização da récem-criada Cidade de Salvador, e demolido na década de 1930, para dar espaço à infraestrutura do transporte por bondes da empresa da Companhia Linha Circular de Carris da Bahia. Embora formalmente vinculada a católicos, o terreno era um reduto negro e de ritos religiosos afro-baianos desde o período da escravatura. Em análise sobre as lutas escravas na Bahia, o historiador João José Reis399 evidencia isso: “Em fevereiro de 1859, em um local conhecido como a Quinta das Beatas, onde as casas de candomblé prosperaram, 42 pessoas foram presas, entre elas sete fugitivos escravos africanos400”. Segundo Renato da Silveira401, a área congregou casas religiosas de raízes angolanas e congolesas e um cemitério angolano, onde se realizava o culto à entidade Tempo Kiamuilo. A partir da fundação do Alaketo (em 1616 ou 1636), outros terreiros de candomblé e demais manifestações de matriz africana multiplicaram-se, inspirando a denominação de logradouros públicos como a rua Giri Giri402 e influenciando o cotidiano da população, pois, comumente, funcionavam também como centros comunitários, de prestação de serviços sociais, políticos, religiosos e culturais403. A despeito do parco valor real do casebre e da precariedade da Quinta das Beatas, o casebre de Cosme de Farias tornou-se alvo de uma disputa pública404 entre Antônio Fernandes Pinto405, o “filho adotivo”, e Railda Araci Pitanga, uma espécie de governanta designada pelo próprio “filho” para cuidar do jornalista durante sua estada no Rio de Janeiro, enquanto cursava o bacharelado em Direito. De um lado, o rapaz alegava ter dedicado sua mocidade ao benfeitor, guiando-o. Do outro, a mulher contra-argumentava que iria continuar a ação pela alfabetização do jornalista naquele domicílio e que merecia recompensa por ter cuidado dele. Por 398 Cid TEIXEIRA. Palestras - Igrejas da Bahia. In: Cid Teixeira (site oficial). Salvador, 2007. Disponível em: <http://www.cidteixeira.com.br/Template.asp?Nivel=00030009&IdEntidade=462>. Acesso em: 23 jun. 2007. 399 João José REIS. Afrobrazilian Religión in 19th Century Bahia: Slave Resistance to Slavery. In: Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico Project – First project seminar. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 27-30 mar. 2007. Disponível em: <http://www.socialsciences.manchester.ac.uk/disciplines /socialanthropology/postgraduate/clacs/documents/SlaveResistance_Reis.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011. 400 Livre tradução do trecho: “In February, 1859, in a site known as Quinta das Beatas, where Candomblé houses thrived, 42 persons were arrested, among them seven fugitive African slaves”. 401 Renato SILVEIRA. Sobre a Fundação do Terreiro do Alaketo. Revista Afro-Ásia. nº 29-30 Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 2003, p.172. 402 Expressão de um canto em homenagem ao orixá Oxossi, deus da caça, que se refere à forma de segurar rédeas do cavalo durante a montaria. 403 Renato SILVEIRA. Sobre a Fundação do Terreiro do Alaketo. Op. cit. p. 367. 404 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 14 de fevereiro de 1973; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 4 de setembro de 1971, 21 de março de 1972. 405 A TARDE. Salvador (BA), edição de 11-12 de fevereiro de 1973. 149 dez anos, ela teria preterido da vida pessoal e do trabalho (com venda e aluguel de imóveis) a fim de cozinhar, lavar roupas, arrumar a casa, pernoitar à cabeceira da cama do seu paciente, sem qualquer remuneração. Em meio à contenda, recorreu à imprensa e chegou a acusar a esposa de Pinto de agressão. Sobre a querela, afirmava406: Nos últimos anos a luta foi dura. Era noite adentro levantando de minuto a minuto para atendê-lo. Ele ansiava muito com uma falta de ar de fazer dó. Aí eu tinha que providenciar chá, água de flor com açúcar, garapa com limão e remédios caseiros, os únicos que ele aceitava. Nas noites frias a luta era maior. O Major nem conseguia dormir e eu tinha que fazer vigília. [...] Ficou certo que a casa seria adquirida pela Câmara de Deputados para funcionar como sede da Liga Bahiana contra o Analfabetismo e eu ficaria ali morando e tomando conta ao mesmo tempo. Railda não obteve êxito. Pinto recebeu a casa e, logo, vendeu-a a terceiros. Os novos proprietários destruíram as lembranças deixadas pelo jornalista, ao desmanchar o casebre e construir sobre o terreno uma residência conjugada com uma loja tipo armarinho, onde se comercializa miudezas em geral. O adversário da governanta tinha como trunfo um documento407, escrito à mão pelo “pai”, sete anos antes da sua morte, cedendo-lhe os direitos sobre o patrimônio como prova de gratidão: Eu abaixo firmado, Cosme de Farias, 89 anos de idade, viúvo, solicitador provisionado, sem parentes e sem herdeiros, declaro pelo presente documento que por meu falecimento a casinha que possuo, casinha esta que tem duas janelas, e uma porta, localizada na Travessa Heitor Dias, número quatro, na Rua Cosme de Farias, Distrito de Brotas, desta capital, ficará pertencendo ao Senhor Antônio Fernandes Pinto, como justa recompensa pelos justos auxílios valiosos que me tem prestado como meu companheiro de trabalhos forenses e como Primeiro Secretário da Diretoria da Liga Bahiana contra o Analfabetismo revelando-se assim meu distinto e dedicadíssimo amigo. De certa maneira, o documento surpreendeu Railda e amigos próximos do jornalista. Eles não acreditavam que Cosme, um homem que sensível e afetuoso por natureza, teria sido ingrato com quem cuidou dele por cerca de uma década, em favor de um “filho postiço” que estaria distanciado dele desde que passou a estudar direito no Rio de Janeiro; e desconfiavam de ele ter omitido a existência de patrimônio material e o papel de Antônio Fernandes Pinto 406 Ibid. O documento foi transcrito pela imprensa. Ver JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1972. 407 150 em seu cotidiano, na carta-testamento intitulada Minhas Últimas Vontades408 redigida, distribuída para publicação em jornais e encaminhada para arquivamento na Associação Baiana de Imprensa (da qual era sócio-fundador) em 1964, no mesmo período da suposta redação do documento de designação do “filho” como beneficiário do casebre. A migração do Centro para uma localidade como a Quinta das Beatas e o aspecto do imóvel só endossam a opção de Cosme de Farias, por hábitos módicos. Com a frase “não tenho parente nem dentes”409, ele sintetizava sua condição utilizando-se de um arranjo retórico para ele dizer que não tinha parentes a quem recorrer e era desprovido de bens materiais. Endividado por ter contraído empréstimo junto à Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, para custear obras filantrópicas, ele sequer tinha recursos para subsidiar despesas com a própria saúde. E só teve assistência médica graças à benevolência de terceiros. Na sua derradeira crise410, ele padecia de cegueira, surdez e desnutrição, além dos já costumeiros problemas respiratórios. Então, alguns dos seus amigos solicitaram auxílio do parlamento estadual para a caução requerida por unidades hospitalares para internamento do então deputado estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), estimada em Cr$ 2 mil. Não obtiveram êxito. À época, era presidente interina da casa, a arenista Ana Oliveira, a mesma que fora recebida naquela casa legislativa, anos antes, com flores, por Cosme. Talvez, sua posição de oposicionista, em meio ao acirramento dos ânimos do governo militar deflagrado desde o golpe civil-militar de 1964, tenha determinado a decisão. Sem alternativas, os amigos Genebaldo Figueiredo (um antigo companheiro de mandato parlamentar), Antônio Luiz de Oliveira Franco (este, amigo desde 1921) e Carlos Alberto Roque dos Santos intercederam por Cosme junto a uma equipe médica (formada pelos médicos Luiz Vieira Lima, Jaime Rodrigues e Jaime Viana, enfermeiros, auxiliares) e ao Hospital Português, na Barra Avenida, para que pudessem tratá-lo adequadamente. Era um ato de desespero. E surtiu efeito: os profissionais e a instituição concederam atendimento gratuito ao jornalista. Em poucos dias, vieram os primeiros indicativos de recuperação411. Após apresentar sinais de recobramento, ele recebeu alta médica em um sábado, 11 de março de 1972. Estava tão lúcido que planejava continuar com a campanha pela alfabetização, “no duro e na raça”, e retomar a oposição ao governo de Antonio Carlos Magalhães, na Assembleia Legislativa. Seu 408 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 129. 410 A TARDE. Salvador (BA), edições de 11 e 15 de março de 1972, 21 de outubro de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972. 411 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972. 409 151 quadro de saúde, porém, agravou-se três dias depois. Às pressas, foi levado por amigos à clínica particular Sames - Serviço de Assistência Médica Salvador, no bairro de Nazaré, e transferido para o Português. Entrou em coma. Horas depois de receber a extrema unção do padre Antônio Pithon, às 4h40min do dia 15, morreu por arteriosclerose cerebral. Caracterizada pelo adensamento e enrijecimento da parede arterial, a doença pode ter sido a causa da sua cegueira, um dos danos associados à enfermidade por especialistas médicos. Àquela altura, somente a ocupação como deputado estadual já deveria assegurar a Cosme de Farias proventos suficientes para um tratamento médico menos conturbado e uma morte mais tranquila, se não fosse a destinação da maior parte dos seus recursos à atividade assistencial a terceiros, como demonstrado no próximo capítulo. Ao invés disto, ele estaria endividado, por ter firmado empréstimos para custeio da obra social412. A rotina simples, sem qualquer luxo ou conforto, era uma opção pessoal, uma manifestação da sua forma de ver o mundo mantida até o fim da vida. O jornalista explicitou sua visão ao delinear como deveria ser seu funeral. Queria uma despedida sem pompa, que expressasse a simplicidade em que viveu. Na cartatestamento Minhas Últimas Vontades413, escrita em duas laudas datilografadas e mimeografadas, resumiu seu trabalho assistencial, elencando as instituições beneficentes, religiosas e classistas das quais era membro, e planejou seu velório e sepultamento 414: Caso o gôverno do Estado, a Assembléia Legislativa da Bahia, a Prefeitura deste Município e a Câmara dos Vereadores do Salvador, queiram, num belo gesto de fidalguia espiritual, fazer o meu enterro, dispenso esta delicada atitude. Quero ser sepultado em cova raza, na Quinta dos Lázaros, sendo o meu caixão de 3ª classe, tendo por cima, apenas umas florizinhas. Se algumas pessoas generosas quiserem oferecer-me coroas, e flores, capelas, peço-lhes encarecidamente, que apliquem o dinheiro destinado a compra das mesmas, em favor das casas-pias, como por exemplo: a Vila Vicentina Instituto Alberto de Assis, antigo Instituto dos Cegos da Bahia, Orfanato Ruth Aleixo, Abrigo do Bom Pastor, Orfanato Conde Pereira Marinho e do Colégio dos Órfãos de São Joaquim. Faço questão para que ao descer o meu corpo à terra fria, um corneteiro civil ou militar dê o toque de silêncio. Em parte, os pedidos registrados na carta foram atendidos415 na cidade, então, enlutada. Em 15 de março de 1972, logo cedo, o clima de pesar espalhou-se mediante o anúncio 412 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 414 Id. Ibid. 415 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 15 (primeiro e segundo clichês), 16 e 17 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 e 17 de março de 1972. 413 152 do falecimento, feito pelos veículos de comunicação. A consternação alastrou-se, sobretudo, na região da Sé, onde Cosme, diariamente, atenuava as dores de crianças, jovens, adultos e idosos, de origens diversas, por meio da atividade assistencial. Muitos ainda relutavam a acreditar na notícia, quando os ex-vereadores da capital Newton Macedo Campos e Genebaldo Figueiredo trasladavam o corpo do Hospital Português para a Igreja de São Domingos de Gusmão, no Terreiro de Jesus, lugar onde improvisou um escritório para atendimento à população, por anos, e receberia homenagens póstumas. Como se recordasse do clamor de Cosme, uma multidão rechaçou o luxo dos dois carros mortuários, com forro de veludo e corbelhas encaminhados por representantes do poder público, e, mesmo sem que houvesse demanda específica dele por peregrinação, pessoas vindas de todos os cantos de Salvador preferiram carregar o corpo por quilômetros, do Terreiro de Jesus à Quinta dos Lázaros, em Baixa de Quintas. Provavelmente, seus amigos adquiriram a esquife talhada em madeira, de terceira categoria, e providenciaram o depósito em caixão em cova rasa na Ala Nossa Senhora do Pilar do cemitério, escavada na terra fria, como faziam, na época, as famílias de baixo poder aquisitivo para sepultar os seus mortos. E músicos fizeram ecoar o “toque de silêncio” por todo o cemitério. Porém, outras solicitações foram preteridas, inclusive, em decorrência da multidão mobilizada nos atos de despedida. Não seria fácil conter os ânimos de cerca de 100 mil pessoas. Ao contrário do desejado por Cosme, viu-se ostentação na decoração do ataúde, com flores à mancheia, cedidas em corbelhas, pequeninos buquês ou individualmente por milhares de pessoas; e não transferiram seus restos mortais para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, localizada nas imediações de Santo Antônio Além do Carmo. Ao invés disso, em 1975, a administração do cemitério416 inaugurou um mausoléu para guardar as relíquias, aonde se lê a inscrição “Aqui repousa o defensor dos pobres e daqueles que viviam na ausência completa do ABC”. Mais tarde, em 2002, a Prefeitura Municipal417 investiu R$ 16 mil para recuperar o jazigo. O túmulo, desta vez, recebeu revestimento de granito polido e uma nova lápide com o retrato do benfeitor sobre medalha em bronze e identificação da catacumba. Um gradil impõe certo distanciamento entre o corpo e parcos visitantes que passam por ali. Portanto, as obras sinalizam certo desconhecimento sobre o jornalista e aquilo que ele pregou. 416 417 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 3 de abril de 1975. CORREIO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 19 de julho de 2002. 153 Dos órgãos dos poderes Executivo e Legislativo418, também, emergiram condolências e tentativas de condução das homenagens póstumas a ele, à revelia dos planos de Cosme. Embora o governador arenista, Antonio Carlos Magalhães, tenha prometido atender à vontade do parlamentar, setores do governo estadual encaminharam até banda marcial para o sepultamento e carros mortuários para trasladar o corpo. Já a deputada Ana Oliveira, presidente interina da Assembleia Legislativa, lamentou os fatos e fez publicar anúncios fúnebres nos meios de comunicação. A renúncia aos préstimos dos gestores públicos não era soberba; era sinal de respeito a si e à própria história de vida. Afinal, o País vivia um período de privação da liberdade de expressão, um dos fatores determinantes à sua postura oposicionista naquela época, e ele nem sempre foi bem-quisto pelas lideranças políticas locais, com exceções como o governador José Joaquim Seabra, como se discutirá adiante. Sua condição de insurgente em potencial, por vezes, fez-lhe ficar alijado dos centros decisórios. O primeiro tributo post mortem a Cosme foi uma missa de corpo presente419 para recomendação da alma a Deus, celebrada pelo arcebispo primaz do Brasil recém-chegado à capital baiana, Dom Avelar Brandão Vilela, na Igreja de São Domingos Gusmão. Em ato singelo organizado por amigos, o sermão reverberou pelo templo, enquanto um exemplar da Carta do ABC repousava sobre o corpo e bandeirinhas do Estado da Bahia de papel tremulavam por vários cantos da Igreja, em uma alusão à campanha cívica travada por ele, durante décadas. Fora dali, milhares de pessoas lotavam o Terreiro de Jesus e adjacências, aguardando o cortejo fúnebre. Umas estavam ávidas para prestar seus últimos tributos ao seu guardião; outras queriam apenas aliviar a curiosidade. Os episódios que sucederam à missa 420 foram uma livre manifestação destas pessoas. Ainda na Praça da Sé, a população tomou o féretro de assalto, das mãos do governador do Estado e do prefeito de Salvador, Clériston Andrade. “É nosso. Vai em nossas mãos”, alguém esbravejou, em nome dos demais. Enquanto os carros mortuários seguiram somente com flores, o corpo corria de mão em mão, em cortejo cumprido a pé, por quase duas horas, até as Quintas. Ao fundo, trovadores ditavam versos. A multidão passou pela Rua da Misericórdia, 418 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 15 (primeiro e segundo clichês), 16 e 17 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 e 17 de março de 1972. 419 Newton M. CAMPOS. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador (BA), dia 15 de março de 2002, em homenagem a Cosme de Farias pela passagem dos seus 30 anos de morte. Requerida pelo vereador Gilberto Cotrim (PT) e bancada do PT. (Fita-cassete). 420 Jehová de CARVALHO. Êste é Nosso - vai em nossas mãos. Diario de Noticias. Salvador (BA): Diário de Noticias, 19-20 mar. 1972; VEJA. nº 185. São Paulo: Editora Abril, edição de 22 de março de 1972, p.78. 154 Ladeira da Praça, Baixa dos Sapateiros, Sete Portas e Dois Leões e, muitas vezes, exigiu que comerciantes fechassem as portas dos pontos comerciais em sinal de luto. Por todo o trajeto, viram-se olhos lacrimejantes, gestos de despedida e até uma faixa decorada com bordas verde e amarela, aonde se lia o lema de Cosme, “Abaixo o Analfabetismo!”. No cemitério, os retardatários quase não conseguiam transitar até a cova. Gritos desesperados e choro tornavam inaudíveis, para a maioria, as notas fúnebres tocadas por corneteiros e as derradeiras orações proferidas em tributo a Cosme, pelo padre Heleno Medeiros, amigo e companheiro do jornalista na Liga Bahiana contra o Analfabetismo421. Mãos e lenços alçados ao alto demonstravam o anseio por participação da multidão, que entoou, ao entardecer, o Hino Nacional brasileiro, tão cantado pelo jornalista em atos cívicos e eventos culturais. Ali, a dor da perda unia políticos, intelectuais, artistas, artesãos, estudantes, professores, feirantes, advogados, hippies, prostitutas e até infratores que foram despedir-se do seu protetor, sem medir possíveis consequências disto. Entre eles, estava Carlos Costa422, o “Rei dos Pássaros”, um homem procurado pela polícia, por suspeita de crimes contra o patrimônio alheio, que se arriscou para homenagear aquele que lhe garantiu assistência judiciária e acabou capturado. Além disso, executou-se o toque do silêncio, em atenção a uma antiga aspiração de Cosme, o único luxo que ele reclamou para si. O anseio havia surgido durante o sepultamento do governador Octavio Mangabeira, em novembro de 1960. Naquele dia, ele até desmaiou de emoção. A partir de então, providenciou algo similar para si. Por volta de 1968, para contratação do músico, entregou Cr$ 10 ao provedor do Colégio dos Órfãos de São Joaquim – ao qual costumeiramente fazia doações – e pediu que outros Cr$ 10 fossem cedidos em caso de majoração do custo de vida. Para disseminar a ideia e garantir a implementação, escreveu uma quadra: “Quando eu morrer corneteiro,/ alma piedosa e nova/ tocai, por favor, Silêncio,/ Junto da minha cova!”423. Fez-se o toque, mas a condução da homenagem fugiu à simplicidade cobiçada por ele. Havia até banda marcial do Corpo de Bombeiros e, ao invés de um, sugiram dois corneteiros424: o cabo bombeiro Nestor de Jesus, encaminhado pela corporação, e o cabo da Polícia Militar Adelvando Barbosa, que teria sido contratado por ele mesmo. A dupla iniciou uma 421 Jehová de CARVALHO. Êste é Nosso. Op. cit.; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972. 422 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972. 423 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 424 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972. 155 disputa por primazia e só arrefeceu seus ânimos, após um acordo para alternância na execução da música fúnebre. De tão inusitada, a história tornou-se uma das muitas manifestações com tom folclórico atribuídas ao jornalista425, morto em uma quarta-feira, dia consagrado à Santa Bárbara, entidade padroeira de diversas categorias profissionais (como mineiros e bombeiros) e dos presidiários, cuja imagem guarnecia sua última moradia. Aliás, a devoção à Santa, assim como outras ações rotineiras, demonstra que Cosme professava a fé católica. Além de manter a imagem no seu lar, ele encomendava missas em ação de graças por seu aniversário 426 (em 2 de abril) e pela fundação da Liga Bahiana contra o Analfabetismo (12 de outubro); frequentava celebrações religiosas realizadas em datas cívicas como os dias de comemoração da Abolição da Escravatura (13 de maio)427 e da Independência do Brasil na Bahia (Dois de Julho); e integrava ordens e irmandades428. E, na cartatestamento, solicitou que tivesse seus restos mortais depositados na tumba 56 da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde havia colocado os despojos de seu pai, Paulino, sua mãe, Júlia, e seu irmão, Cícero, e para onde planejou levar os ossos de sua mulher, Semíramis. Já debilitado, ele recebeu do padre Antônio Pithon a extrema-unção, sacramento concedido a enfermos com risco de morte e uma das formas de representação das graças cristãs. No dia anterior à morte, agarrou-se a uma imagem de Jesus Cristo429, como se adivinhasse o que estava por vir. Manifestou a orientação religiosa, também, na sua obra jornalística e literária. No livreto Trovas & Quadras, publicada em ano desconhecido, por exemplo, disse: “JESUS, pregando a Justiça,/ Falou assim, para os Judeus: - ‘Daí a César, o que é de César!’/ - ‘Daí a DEUS, o que é de DEUS!’”430. A afinidade com a religião e a intimidade com instâncias diversas do catolicismo – do padre Heleno Medeiros às ordens e irmandades –, associadas ao trabalho assistencial contínuo, podem ter sido determinantes para a conquista da concessão de espaço nas dependências do santuário voltado à devoção a São Domingos de Gusmão, para improvisação do seu 425 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 15 (primeiro e segundo clichês), 16 e 17 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 e 17 de março de 1972. 426 Para celebrar os seus aniversários, até comissão organizadora era composta para articular a programação. Reclames com o programa eram anunciados em jornais da cidade. Para os seus 80 anos, por exemplo, segundo o jornal A Tarde, foram previstos alvorada na manhã do dia 2 de abril, missa celebrada na Igreja de Nossa Senhora de Sant´Anna e sessão magna no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. A TARDE. Salvador (BA), edição de 31 de maio de 1955; GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1916. 427 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 25 de dezembro de 1970. 428 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 429 Newton M. CAMPOS. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador. Op. cit. 430 TROVAS & QUADRAS. In: Saudades do Velho Cosme de Farias. Salvador (BA), [s.d.]. mimeo. Acervo da Academia de Letras da Bahia. 156 escritório de atendimento ao público durante seus últimos anos de vida. Desde então, ele passou seus dias no corredor da sacristia do templo destinado ao fundador da Ordem dos Pregadores, os dominicanos, e um dos responsáveis pela inauguração de uma nova forma de pregação das designações papais, marcada pela simplicidade e mendicidade. Não obstante a indubitável fé católica, Cosme pode ter se aproximado do candomblé, de maneira discreta. Um dos indícios seria a preferência do jornalista por se vestir de branco, cor dedicada a Oxalá431, seu guia, de acordo com as escrituras literárias amadianas, redigidas com inspiração na realidade432. Outro forte indicativo seria a realização de um ritual característico da religião afrobrasileira, logo após a celebração cristã realizada no cemitério. Em meio à balbúrdia da despedida, representantes de um terreiro de candomblé do bairro de IAPI sacolejaram o corpo e entoaram cânticos sagrados433, crendo estarem auxiliando na elevação espiritual do jornalista e na transição dele entre a terra (Aìyê) e o céu (Òrun). O rito teria sido providenciado por Antônio Conceição Moraes, um benfeitor e defensor das tradições afrobaianas conhecido na capoeiragem como Mestre Caiçara434. A associação de Cosme de Farias ao candomblé baseia-se em vestígios recolhidos entre seus rastros e, portanto, tem certa fundamentação. Porém, deve-se ressaltar que há apenas sinais deste vínculo, que pode ser tanto real quanto mais uma invencionice sobre esse homem que, de tão singular, figurou como personagem na literatura e no cinema 435. Mas, se pro- 431 Considerado o “pai de todos os orixás” e o “orixá da procriação”, ele manifesta-se de duas maneiras – jovem, chamado de Oxaguian, e idoso, de Oxolufã – e teria como correspondente católico o Nosso Senhor do Bonfim, se adotada a proposição sincrética comum na Bahia daqueles tempos. Aliás, habitualmente, as festas religiosas ao orixá e ao Bonfim, em território baiano, realizam-se no mês de janeiro. Jorge AMADO. Bahia de Todos os Santos. Op. cit. p. 185-186. 432 Jorge AMADO. Tenda dos Milagres. Op. cit. p. 208. 433 Ver Jehová de CARVALHO. Êste é Nosso. Op. cit. 434 Capoeirista natural de Cachoeira de São Félix (Recôncavo baiano), "feito" filho de Logun Edé pela própria mãe biológica (Adélia Maria da Conceição) e ávido defensor das tradições africanas, cuja relação com Cosme de Farias pode ter sido estabelecida a partir do trabalho social que desenvolvia, junto a meninos moradores de ruas da capital, das suas demonstrações de capoeira Angola no Centro, onde o jornalista também mantinha atividades, e de encontros em festas populares da Bahia. Carlos ARAÚJO. Mestre Caiçara. In: Capoeira (blog). Salvador, 16 mai. 2007. Disponível em: <http://contramestrecarlosaraujo.blogspot.com/2007/05/biografia-de-algunsmestres.html>. Acesso em: 22 jan. 2011; Waldoloir REGO. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Editora Itapoã, 1968. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/58191715/Capoeira-Angola-Ensaio-socioetnografico>. Acesso em: 22 nov. 2011. 435 Inspirou a criação de Damião de Souza, da obra amadiana Tendas dos Milagres, e foi mote de crônica de Bahia de Todos os Santos – guia de ruas e mistérios, livro de referência consagrado do escritor grapiúna Jorge Amado, além das inúmeras menções em publicações literárias. Tornou-se personagem central do documentário do cineasta Tuna Espinheira, intitulado Major Cosme de Farias – o último deus da mitologia baiana, lançado em Salvador em 1971 e exibido no Brasil e em festivais no exterior. E, ainda, sagrou-se como personagem-título do curta-metragem Major Cosme, primeiro filme da Associação dos Críticos Cinematográficos do Estado, dirigido pelo então presidente daquela entidade, Alberto Silva, anunciado em 1966, mas sem finalização e distribuição confirmada. Bobby J. CHAMBERLAIN. Jorge Amado. Op. cit. p.77; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 6 de outubro de 1966. 157 cedente, esse pode ser mais um mecanismo para o estabelecimento de relações sociais e redes de solidariedade a fim de garantir amparo futuro para ele, em um espaço com hierarquia estabelecida, mas sem segregação étnica e social. Cosme de Farias, até a morte, cultivou uma vida sem luxo, sem conforto, embora a condição de jornalista, funcionário público e parlamentar pudesse garantir a ele dias mais cômodos e aparência garbosa. Manifestado, sobretudo, por sua relação com os bens materiais, pelo desgaste das peças de roupa que usava e pelas colocações verbais nas quais ressaltava a própria pobreza, o padrão módico distinguia-se – e muito – dos costumes da elite política e econômica local, acostumada à exuberância e à ostentação, e, por conseguinte, dificultava que ele fosse reconhecido como um dos seus pelos mais abastados. Em certa medida, a assimilação de modos comuns aos estratos “de baixo”, naquele contexto, era quase um estorvo para sua promoção social. Uma possível relação com as religiões afrobrasileiros e inserção maior no universo de mestiços e pretos, também, poderia distanciá-lo, ainda mais, dos representantes dos altos estratos da sociedade de pele clara, tornando-se um obstáculo para que lhe concedessem algum status e, portanto, permitissem a ascensão social. Integrar ritos do candomblé, frequentar rodas de capoeira, entre outros hábitos, eram fortes indícios de afinidade e/ou adesão e/ou comprometimento com a cultura de origem africana, então renegada e até hostilizada pela elite local. O afastamento do modus vivendi do grupo social mais abastado perpassava por outras ações de Cosme. A despeito da religiosidade e de manter uma vida modesta, Cosme era um homem afeito à boemia436. E nunca negou isso. Diariamente, bebericava e fumava charuto, dois vícios adquiridos na mocidade e mantidos até a morte. No almoço, a cerveja quente acompanhava a comida, como se fosse capaz de acentuar o sabor dos alimentos. Ao cair da tarde, era hora de seguir, entre outros pontos de encontro, à Padaria Pastelaria Triumpho – um reduto de advogados, magistrados e autoridades da capital, especializado em massas, situado na Rua Manoel Vitorino –, ao bar Bahia ou Confiança, no Centro. Por lá, revia seus confrades, colocava em debate temas diversos e, é claro, degustava doses de cerveja, vermute ou cachaça. Muitas vezes, bebia até sem pagar. O consumo etílico seria tão intenso que, certa feita, alastrou-se na cidade o boato de 436 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 e 18 de março de 1972; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit.; DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edições de 19 e 20 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 15 (primeiro e segundo clichês), 16 e 17 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 16 e 17 de março de 1972. 158 que ele seria capaz de, sem, ao menos, ficar trôpego, acabar com o estoque dos alambiques do Recôncavo, um dos principais produtores canavieiros da Bahia437. E ele mesmo alimentava a notícia. Como pilhéria, afirmava438 que sua longevidade devia-se à ingestão de bebida alcoólica e à cessão de alguns anos de vida por seu irmão gêmeo, morto precocemente. A rotina até se tornou mote de uma das suas rimas439 – “Bebedores de cerveja,/ Bravos à vossa alegria!/ Tristezas não pagam contas/ Viva, pois, a boemia!” –, atestando que ele cunhou este estilo para si, crédulo na possibilidade de ser feliz a partir do cultivo daqueles hábitos. Despido das pretensões ficcionais que tomou a maior parte da sua obra, o escritor Jorge Amado registrou, em Bahia de Todos os Santos – guia de ruas e mistérios, suas memórias relativas a lugares, manifestações culturais e personagens da Bahia, incluindo aquilo que encontrava de peculiar no jeito de ser e viver de Cosme de Farias. E não lhe escapou notas sobre a faceta de bebedor440, desenhada, notadamente, com certo exagero: Durante decênios (Cosme) sustentou, fundou, manteve escolas primárias, imprimiu cartas de ABC, cuidou de loucos, escreveu nos jornais diariamente pedindo auxílio para as campanhas sociais e de caridade. E encontrou ainda tempo para beber muita cerveja e muita cachaça no Bar Bahia e em todos os outros botequins da cidade, em companhia de amigos, conversando com o poeta Áureo Contreiras, que usava indefectivelmente uma flor vermelha na lapela e era o mais modesto dos poetas e o mais ativo dos jornalistas. [...] Pobre, por suas mãos passara milhares de contos de réis; jamais conseguiu que os bares recebessem dinheiro seu em pagamento. Quando se levantava da mesa onde bebera a cerveja gelada, a boa cachaça, o garçom tinha ordens para não cobrar. Mas o Major fazia questão de pagar, metia a mão no bolso, cadê dinheiro? Já naquela época, a beberagem não era bem quista por parte da população. O consumo etílico, em geral, era associado à irresponsabilidade, à malandragem, à vadiagem. Sobretudo, se ocorresse fora de casa e se não tivesse motivação aparente, como a comemoração por uma vitória profissional, bodas ou aniversário. Porém, para o jornalista, as doses diárias eram apenas justificativas para (re)encontrar amigos, trocar ideias com terceiros, divertir-se, saudar o dia, razões inconcebíveis para indivíduos ciosos da sua reputação e da conexão da sua imagem pessoal com a desordem moral e a afronta dos “bons costumes”. Tal comportamento, talvez, tenha contribuído para a criação de certa resistência dos 437 Ezequiel da Silva MARTINS. A Bahia, Suas Tradições e Encantos. Op. cit. A TARDE. Salvador (BA), edição de 14 de março de 1970; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p.129. 439 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 129. 440 Jorge AMADO. Bahia de Todos os Santos. Op. cit. p.198-199, 203. 438 159 extratos mais elevados da sociedade quanto a Cosme. Já na idade adulta, ele era um jornalista, escritor, servidor público e parlamentar conhecido na cidade, além de benemérito com ampla atuação, frequentava espaços públicos com representatividade como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e dialogava com personalidades de destaque político e econômico, porém o convívio com esse universo, costumeiramente, não evoluía para uma amizade pessoal que, por exemplo, levasse a uma interação nos momentos de lazer e divertimento pela cidade, a cordiais visitas nas tardes de domingo, a conversas informais despretensiosas ao lado da prole. Era como se as relações com os estratos mais elevados estivessem sempre pautadas pela formalidade, por questões profissionais ou político-partidárias. Uma das exceções é o laço estabelecido com J. J. Seabra, conforme explicitado nesta tese. Além do gosto pela bebida alcoólica, Cosme de Farias causava certo incômodo àquele grupo por ser um entusiasta de festas de rua animadas com músicas populares, como o então discriminado samba, e brincadeiras com mascarados, por exemplo. Na Primeira República, como integrante oficial da Grande Comissão Organizadora e Executiva dos Festejos de Dois de Julho441, presidida pelo representante do IGHB, ou voluntário para a preparação do evento 442 pela independência do Brasil do jugo português, por diversos anos, incentivava as comemorações animadas por muito samba e outras manifestações de como os baianos compunham, reelaboravam, assimilavam e difundiam leituras acerca do mundo no qual estavam inseridos, denominadas por Wlamyra R. de Albuquerque443 de “civismo popular”. Àquela altura, a cidade já contava com as farras do entrudo e, pelo menos, um segmento da população, identificado normalmente pela imprensa da época como negros e mestiços, tentava estender parte das características do Carnaval para a festa de julho, à revelia de uma elite insatisfeita com o que chamavam de “atentado à moral pública” e que buscava distinguir-se dos demais em ocasiões festivas. Mas Cosme, assim como outras personalidades, compreendia o desejo dos “de baixo” e envidava esforços para sua viabilização. Um deles era o desfile dos caboclos, esculturas indígenas que simbolizam a luta do povo brasileiro pela autonomia do Brasil, acompanhados por uma multidão “barulhenta” por ruas, largos e praças. 441 Em 1959, por exemplo, era ao lado do parlamentar Arthur Guimarães Cova o representante da Câmara de Vereadores na dita Comissão. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 27 de maio de 1959. 442 COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 124. 443 Wlamyra R. de ALBUQUERQUE. Patriotas, Festeiros, Devotos... As comemorações da Independência da Bahia (1888-1923). In: Maria Clementina P. CUNHA. Carnavais e Outras F(r)estas. 1. reimp. Campinas: Ed. Unicamp, 2005. 160 Cosme de Farias compunha comissões para angariar donativos, convidava autoridades e inventiva o desfile dos carros dos caboclos mesmo nos anos em que o IGHBA (Instituto Geográfico e Histórico da Bahia) não os incluía no cortejo oficial. Ele também se incumbia de manter o costume de autorizar a soltura de presos em comemoração do Dois de Julho. Esta foi a justificativa para que, no dia 4 de julho de 1914, o chefe de polícia Álvaro Cova atendesse um seu pedido (sic) e colocasse em liberdade ‘todos os presos que estavam correncionalmente (sic) recolhidos à casa de detenção’444. Nessa e em outras festividades, ele era presença constante 445. Ao raiar o dia, logo cedo, em geral, ele446 encobria o corpo magérrimo de branco, para desfilar pelas ruas a pé ou sobre um carro ou uma carroça. Acima da cabeça, ia uma faixa com o lema “Abaixo o Analfabetismo!”, desenhado em letras garrafais. Nas mãos, cartilhas para distribuição gratuita entre voluntários para alfabetização e pessoas sem letramento. A todo instante, saudava a população e, sempre que tinha oportunidade, destacava os feitos dos batalhões patrióticos. Cosme saía em meio aos grupos de seguidores das esculturas do casal de caboclos, ora considerados os representantes da participação popular nas lutas pela Independência, ora tidos como divindades capazes de reverter as agruras da vida da sofrida população baiana. Com o cortejo, pela manhã, desfilava da Lapinha ao Terreiro de Jesus, enquanto pessoas, de idades e origens diversas, louvavam as imagens e teciam seus pedidos. Após breve intervalo para discursos e descanso, à tarde, ele retomava a caminhada em direção ao Largo Dois de Julho, vulgarmente conhecido como Campo Grande. À beira do monumento aos caboclos, ao pousar do Sol, ele tomava parte da cerimônia cívica oficial, junto às autoridades locais447, em comemoração à desocupação da Bahia pelos portugueses através da lembrança da trajetória das tropas do Brasil e de populares entre Cachoeira, Cabrito-Campinas-Pirajá, Lapinha-Soledade e Centro de Salvador. Sempre que franqueada a palavra, proferia discursos sobre os feitos e os participantes das batalhas. Agia embalado pelas manifestações culturais da comunidade, sob música e em meio a danças e performances. Os eventos organizados por ele, contudo, guardavam muito mais o ar sisudo e solene dos festejos cívicos e religiosos do que similaridade com o entrudo e outras celebrações popu- 444 Id. Ibid. p.187. Diz Luis Henrique Dias Tavares: “O 2 de julho ficou na reverência patriótica dos baianos que desde logo estabeleceram a tradição de comemorá-lo anualmente com a repetição da entrada do Exército Pacificador na cidade do Salvador. Aos batalhões e aos heróis mais conhecidos foram acrescentadas, posteriormente, as figuras simbólicas do Caboclo e da Cabocla”. Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 237-246. 446 Sebastião NERY. A Retórica do Ibope. Op. cit. 447 Jorge AMADO. Bahia de Todos os Santos. Op. cit. p. 140. 445 161 lares. As homenagens448 ao poeta baiano Castro Alves, nos meses de março, e comemorações do aniversário da Liga Baiana contra o Analfabetismo, em 12 de outubro, contavam com a execução do Hino Nacional, discursos em lugares públicos como a Praça Castro Alves e, no caso do segundo, missa em ação de graças. Para descontrair o público, havia declamação de versos por ele e outros trovadores da Cidade da Bahia. A audiência, composta inclusive por estudantes vinculados ao trabalho da Liga, vinha de toda parte e parecia apreciar e aprovar o que via e ouvia. Em julho, ele promovia, junto com confrades, uma romaria cívica a Pirajá449 para homenagem aos participantes das lutas pela Independência da Bahia, diante do Pantheon onde foram depositados os restos mortais do general Pedro Labatut e retratos de combatentes (como o almirante Lord Alexandre Thomaz Cockrane e o general José Joaquim de Lima e Silva) e das heroínas Joanna Angélica e Maria Quitéria de Jesus Medeiros. Em 13 de maio, fazia eventos cívicos450 em escolas, na Praça Castro Alves e até na sede de jornais, com hasteamento do pavilhão nacional, para rememorar a Abolição da Escravatura. O próprio nascimento451 do jornalista era lembrado com festa, todo mês de abril. Com antecedência, beneficiários por suas ações, admiradores e amigos compunham comissões, a fim de conceber e implementar uma programação ampla. Reclames em jornais da cidade informavam a população sobre os festejos. Celebração religiosa, prosa e verso preenchiam o dia daqueles que iam parabenizá-lo. Para os 80 anos, por exemplo, estavam previstos alvorada na manhã do dia 2 de abril, missa na Igreja de Nossa Senhora de Sant’Anna, em Nazaré, e sessão magna no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, no Paço do Saldanha, na Sé. Para uns, as performances populares como aquelas vistas no Dois de Julho poderiam ser diversão, formas de se incluir ou consolidar em determinado grupo, maneiras de expressar o pertencimento àquela “tradição” e de rechaçar os conceitos de civilidade e modernidade que começavam a ser incorporados ao dia a dia de Salvador. Para outros, eram algazarra, balbúrdia, subversão à ordem pública com prática de vadiagem e expressão do atraso e constituíamse como espaço para a ratificação das diferenças entre seu abastado grupo social, formado principalmente por brancos e “embranquecidos”, e os grupos “de baixo”, predominantemente negros e mestiços. Em qualquer hipótese, o encaminhamento do pleito de parte da população e a pro448 Jorge AMADO. Tenda dos Milagres. Op. cit. p. 44-46. A NOITE. Salvador (BA), edição de 18 de julho de 1925. 450 A TARDE. Salvador (BA), edição de 13 de maio de 1942. 451 A TARDE. Salvador (BA), edição de 31 de maio de 1955; GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1916. 449 162 moção de atividades de natureza festiva davam visibilidade e prestígio ao jornalista, frente a um grupo em situação de vulnerabilidade, mesmo sem que houvesse essa pretensão. Assim, desencadeava uma imagem positiva para si, baseada no aparente pertencimento àquele universo, e conquistava a empatia da população dos estratos médio e pobre, devido à identificação dos indivíduos com sua forma de pensar e agir. Em uma visão mais ingênua, pode-se afirmar que ele atuava por gosto, afinal, amava os prazeres terrenos, celebrações, mulheres, rodas de amigos, uma boa bebida à mesa. O apreço de Cosme pela boemia e sua aproximação com o modo de festejar dos estratos mais baixos e até apoio às suas reivindicações, não obstante, evidenciavam a maior afinidade do pensamento e da conduta dele com estes grupos menos abastados, dificultando o estreitamento das relações com os melhor dotados econômica e politicamente e, é claro, sua aceitação por esta elite. Esta situação, portanto, deixava-o mais próximos de medianos e pobres e afastava-o dos mais apatacados. 2.4.1 Cordialidade a toda prova Entre as características de Cosme de Farias, também, destacava-se a gentileza com pessoas de ambos os sexos, de idades diversas, achegadas a ele ou não. Já em 1947, ele atestou sua sensibilidade no Fórum da Rua da Misericórdia452, então um território dominado por homens e pouco receptivo às senhoras e senhoritas. Ao perceber a presença de uma mulher no júri – que seria a primeira a participar de um julgamento em Salvador, a estudante de direito Expedita453 –, ele teria solicitado ao juiz que providenciasse flores para a jovem, acompanhante de um colega de curso, Cid Teixeira, substituto do advogado Edgar da Matta naquele dia, que se tornaria seu marido anos depois. Para fazer o gesto de cavalheirismo, entretanto, ele acabou provocando o adiamento da sessão por cerca de meia-hora, até que o funcionário designado para a tarefa encontrasse o mimo, raro naquela área da capital. Além das homenagens públicas, como a destinada a Expedita, o jornalista encaminhava correspondências com mensagens afetuosas e presentinhos a terceiros. Em 1950, em seu nome e da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, ele encaminhou felicitações ao baiano 452 O Fórum só foi transferido para o Campo da Pólvora em 1949, recebendo o nome de Rui Barbosa, famoso bacharel e político republicano baiano. 453 Cid TEIXEIRA. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador. Op. cit. 163 Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, pela nomeação ao cargo de ministro da Educação454 e pela passagem do seu aniversário455. Naquela fase, pertencia a uma das legendas da base aliada (o Partido Republicano) do governador da Bahia eleito, Octavio Mangabeira, mas estava alijado da administração pública de âmbito estadual e, ao que consta, não tinha estreitas relações com seu grupo político, apesar de nutrir certa simpatia por ele. Cosme, também, não era amigo íntimo do jornalista Ernesto Simões da Silva Freitas Filho, mas, em outubro de 1944, remeteu telegrama ao fundador e proprietário do jornal A Tarde456 com votos de boa acolhida no regresso à Bahia. Após apoiar o interventor estadonovista Landulfo Alves457 (1938-1942), Simões Filho procurava manter-se neutro em relação ao seu substituto, Renato Pinto Aleixo458 (1942-1945), enquanto Cosme era um simpatizante dos autonomistas – com restrições ao ex-interventor Juracy Magalhães – e continuava sua obra em várias frentes humanitárias e em lutas políticas e sociais. Já o recém-eleito deputado estadual Newton Macedo Campos459 mereceu um gesto de afeto, devido à amizade. Em 1971, ele espantou-se, durante a comemoração do seu aniversário (em 18 de abril), no bairro da Pituba, quando recebeu, das mãos de um rapazote, um embrulho acompanhado por um bilhete redigido com letras trêmulas, em um taco de papel. 454 CENTRO DE MEMÓRIA DA BAHIA/FUNDAÇÃO PEDRO CALMON. Setor de Documentação. Fundo: Pedro Calmon. Série Correspondências, sub-série Passiva, caixa 08, documento 8269, de 3 de agosto de 1950, 01 de 14 páginas. Telegrama pela nomeação como ministro da Educação e Cultura. 455 CENTRO DE MEMÓRIA DA BAHIA/FUNDAÇÃO PEDRO CALMON. Setor de Documentação. Fundo: Pedro Calmon. Série Ministro da Educação e Saúde, sub-série Passiva, caixa 96, documento 7284, de 23 de dezembro de 1950. Telegrama. 456 ERNESTO SIMÕES FILHO. In: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), 2005. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/nav_gv/htm/Biografias/Ernesto_Simoes_Filho.asp>. Acesso em: 22 mar. 2009. 457 Landulfo Alves de Almeida foi indicado para a interventoria da Bahia durante o Estado Novo, em substituição ao coronel Antônio Fernandes Dantas, graças à capacidade como técnico agrícola. Empossado em março de 1938, investiu na economia interiorana, a partir da fruticultura e do cultivo de hortaliças e algodão, da modernização da atividade agropecuária em cerca de 70 municípios, da criação de duas escolas rurais e da reformulação da Secretaria de Agricultura. Também, construiu aproximadamente 800 km de rodovias e realizou obras de urbanismo na capital. Desde a declaração de guerra do Brasil aos países do eixo, passou a sofrer retaliações antigermânicas fomentadas por adversários políticos, por ser casado com uma descendente de alemães. Em novembro de 1942, entregou o governo ao então secretário do Interior e Justiça, Lafayete Pondé, que, posteriormente, transmitiu o cargo ao novo intendente, o comandante da 6ª Região Militar, Renato Onofre Pinto Aleixo. LANDULFO ALVES DE ALMEIDA. In: Governo do Estado. Salvador (BA): Governo do Estado, 2010. Disponível em: <http://www.governador.ba.gov.br/governadores/landulfoalves.htm>. Acesso em: 5 jan. 2010. 458 O coronel Renato Onofre Pinto, em 1940, depois de passagem por Minas Gerais, tornou-se o responsável pela 6ª Região Militar na Bahia, mantendo-se no cargo até março de 1943, quando, a pedido, afastou-se para assumir a função de interventor no Estado. Na sua gestão, priorizou investimentos em transportes e no serviço judiciário e na construção da BR-101, além de incentivar o plano de desenvolvimento agrário e urbano. Organizou e presidiu o diretório do PSD na Bahia, em 1945. Na véspera do fim do governo Getúlio Vargas, em 28 de setembro de 1945, ele exonerou-se para se candidatar ao cargo de senador constituinte e foi eleito. RENATO ONOFRE PINTO ALEIXO. In: Governo do Estado. Salvador (BA): Governo do Estado, 2010. Disponível em: <http://www.governador.ba.gov.br/governadores/renatoaleixo.htm>. Acesso em 5 jan. 2010. 459 Newton M. CAMPOS. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador. Op. cit. 164 Dizia a mensagem, seguida de assinatura: “Toda criança que nasce toma logo um banhozinho, por isso vai para você esse sabonetezinho”. Após a brevíssima leitura, entendeu do que se tratava. Aquela era uma manifestação de afeição do companheiro de partido (o MDB) e de mandato na Assembleia Legislativa, Cosme de Farias. Outro artifício era a publicação de artigos e poemas na imprensa local. Um desses textos foi editado pelo jornal A Noite460, em homenagem a D. Pedro II, em 4 de dezembro de 1925, na ocasião do primeiro centenário de nascimento do imperador (Poeta e sábio,/ homemgentil,/ a tua fama,/ vale o Brasil!). O monarca já havia sido alvo de tributo, por meio de prosa divulgada pelo Diario de Noticias461, em abril daquele ano, na qual incentivava a organização de festejos pelo centenário de D. Pedro. No mesmo periódico, em 5 de maio de 1925, em espaço similar, ele saudou e clamou por reconhecimento ao operário José de Oliveira Castro462, um dos trabalhadores responsáveis pela construção da Faculdade de Direito (desde a década de 1940 vinculada à Universidade Federal da Bahia). Na condição de parlamentar, entretanto, Cosme de Farias extrapolava o simplório envio de bilhetes, telegramas, cartas e cartões a personalidades políticas, pessoas de destaque na sociedade (como professores, servidores públicos, médicos e intelectuais) e até instituições, para prestar homenagem, felicitar, congratular ou solidarizar-se. Dono de eloquência admirada desde a juventude, ele recorria a corteses manifestações de respeito e carinho através de moções pronunciadas no plenário do legislativo e encaminhadas por escrito aos beneficiados, aos seus familiares e/ou às repartições em que trabalhavam. Exemplos não faltam. Já em 1917 usou a tribuna para rememorar a passagem do cinquentenário da Batalha do Riachuelo e, em seguida, requereu envio de congratulações ao Ministério da Marinha e a designação de comissão para cumprimentar, pessoalmente, o capitão do Porto de Salvador463. Em 1962, pediu para registrar em ata um voto de pesar pela morte do ex-vereador e colega de legislatura Izidoro Bispo dos Santos, além da remessa de condolências à família dele e à Superintendência da Leste Brasileiro464; e pleiteou o envio de felicitações à diretoria do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, pelo 90º aniversário de fundação da organização465. Ainda em 1962, proferiu um discurso na Câmara Municipal, durante os festejos do 460 A NOITE. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1925. DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 4 de abril de 1925. 462 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 5 de maio de 1925. 463 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de junho de 1917. 464 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 8 e 9 de dezembro de 1962. 465 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 23 de outubro de 1962. 461 165 cinquentenário do periódico diário A Tarde466. No ano posterior, requisitou moção ao médico Pedro Seixas, que acabara de se afastar da diretoria de assistência médica do centro clínico da Prefeitura de Salvador467; rubricou moções a Walter Drumond de Carvalho, por sua condução à presidência da Associação dos Funcionários Públicos do Estado da Bahia, e ao jornalista e professor universitário Zitelmann de Oliva, pelo lançamento do livro Um Homem e sua Sombra468; e agradeceu em público ao Banco da Bahia, pela doação prestada à Liga contra a Mortalidade Infantil469. As missivas ultrapassavam, inclusive, os limites da municipalidade, chegando à capital federal e à Presidência do Brasil. Cosme de Farias, em 1963, por exemplo, incitou a Câmara de Salvador a parabenizar o então presidente da República, João Goulart, por sua decisão de manter os recursos orçamentários da União destinados à educação, em detrimento da pressão por ajuste das contas470. Nem decisões da alta cúpula da Igreja Católica passaram incólumes: em 1963, ele posicionou-se favorável à encíclica Paz na Terra, assinada pelo Papa João XXIII, que desejava dias de paz a todas as pessoas do mundo independentemente de opção política, religião, classe, e conquistou a adesão dos confrades na Câmara de Vereadores471. Tornaram-se recorrentes, também, o encaminhamento de projetos parlamentares e a indicação ao poder executivo de pleitos a fim de nomear edifícios e logradouros públicos em tributo a pessoas públicas e anônimas. Assim, uma via da Vitória passou a se chamar Rua Viscondessa de Barral472 e a Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia denominou uma unidade escolar primária, do município de Brotas de Macaúbas, de Escola Isabel Miranda Amorim, em reconhecimento aos 42 dedicados à educação pela professora473. Nesta linha, até o empresário estadunidense John Davison Rockefeller Nixon474 seria distinguido, caso fosse aprovado que a Rua da Assembléa fosse renomeada como Rua Rockefeller, em gratidão pelos investimentos que ele fez em assistência gratuita à saúde na Bahia. A frequente demonstração de apreço, por via como estas, de certa forma, era esperada naquele contexto, pois a cordialidade era uma das características das relações sociais, cul- 466 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 23 de outubro de 1962; A TARDE. Salvador (BA), edição de 17 de outubro de 1962. 467 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 2 e 3 de março de 1963. 468 Ibid. 469 A TARDE. Salvador (BA), edição de 20 de março de 1963. 470 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 2 e 3 de março de 1963. 471 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de abril de 1963. 472 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 14 e 23 de novembro de 1954. 473 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 23 de outubro de 1962. 474 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 2 de maio de 1925. 166 turais, políticas e econômicas da Bahia daquela época. Os mais abastados, comumente, adotavam-na por esta ser um indicativo de civilidade e servir para alimentar o clientelismo. Os menos, em geral, por subserviência, em decorrência do miasma escravocrata ainda vigente, e na tentativa de se identificar com o padrão comportamental dos “grupos superiores”475 e ascender na sociedade. Oficialmente, as ações de Cosme prestavam-se para parabenizar pelo aniversário de nascimento, expressar solidariedade ou pesar em caso de morte, homenagear, felicitar por conquista de prêmios, promoções funcionais, desempenho profissional, vitórias eleitorais, entre outras utilidades; e ocorriam, inclusive, mediante o uso da estrutura dos poderes constituídos – em especial, o Poder Legislativo –, conforme exposto neste capítulo. Na prática, contudo, poderiam atender quatro objetivos, mais relacionados à viabilização e ao fortalecimento do seu trabalho de assistência e mobilização do que à conquista de benefício para si. São eles: a) simplesmente, cativar o beneficiário, influindo, ainda que despretensiosamente, para formação/consolidação de opinião pública positiva sobre si e sua obra; b) conferir visibilidade ao beneficiário e/ou construir/sedimentar uma imagem pública dele relacionada à prontidão, à prestação de serviço pelo bem-comum e a sentimentos como gratidão e afeto; c) agendar socialmente um fato ou uma ideia e, quiçá, incitar o debate; e d) indicar sua disposição para diálogo sobre assuntos específicos. Contudo, o emprego de tais iniciativas por Cosme demonstra sua busca por um comportamento dito civilizado476, que, mesmo se despretensiosa, pode ter colaborado para a constituição e, depois, a sedimentação de uma imagem positiva dele e, em tese, ter contribuído para sua aquiescência pelo “grupo social superior”, considerando-se que a elite distinguia-se dos estratos médios e populares por meio da expressão de “civilidade” – que envolvia a forma de se vestir, portar à mesa, interagir na sociedade etc., em geral, em consonância com os costumes europeus –, mas aceitava, em seu meio, quem adequasse seu jeito de ser e viver às regras de convivência demandadas por este grupo477 e se submetesse às excentricidades e ao 475 Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 68. Norbert ELIAS. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Vol. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 90-91 apud Jean Marcel Oliveira ARAUJO. Bahia: negra, mas limpinha. Op. cit. 477 Thales de Azevedo explica: “Numa sociedade de tradições aristocráticas, como a baiana, a etiqueta no trato entre pessoas de níveis sociais diferentes é muito importante. Uma pessoa ‘adiantada’, que ultrapassa os limites que lhe são fixados por seu status ou por sua situação de estranho, usando inadequadamente de maneiras que revelam intimidade ou identidade de posição, é sempre mal vista mesmo que seja branca”. Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 69. 476 167 tratamento que lhe fosse concedido por ele478. Consciente ou não das possibilidades e dos instrumentos para distinção social e/ou política na Bahia da época, Cosme de Farias adotou uma conduta capaz de determinar sua aproximação e, quiçá, admissão nos grupos detentores do poder político e econômico no território baiano. Entre os procedimentos com tal potencial, destacam-se o investimento no acúmulo e na explicitação de capital cultural; a inserção no funcionalismo público, na política local e no parlamento, em organizações religiosas, classistas e beneficentes (ver no próximo capítulo); a preocupação com a aparência (o uso de gola e punhos engomados para forjar uma camisa, por exemplo) e a etiqueta (oficializou a união com Semíramis e até teve isso divulgado na imprensa, por exemplo; e a manifestação de amabilidade e respeito a terceiros. Tal comportamento, contudo, não significa uma adesão estratégica de Cosme aos mecanismos do grupo dominante que deu à Bahia feições de um reduto patriarcal, patrimonialista, clientelista, aprisionado ao poder central para preservar seus próprios interesses, delineadas desde os tempos coloniais e descritas, com certo determinismo, por Kátia Mattoso de Queiroz479, em Bahia – Século XIX: uma província no Império. Ao que parece, ele envidou esforços para deflagrar (e, depois, manter) diálogo com este grupo e evitar a animosidade com ele, sem se constituir, necessariamente, como um sujeito patriarcal, patrimonialista, clientelista, aspirante do poder para obtenção de benesses pessoais. 2.5 CONSCIÊNCIA TRABALHADORA, SEMPRE Se considerados apenas elementos inerentes às relações capitalistas de produção, Cosme de Farias, na idade adulta, seria classificado como membro do estrato480 social médio 478 Sobre isso, um depoente preto do antropólogo Thales de Azevedo teria dito: “as pessoas de cor, para subirem socialmente, ‘devem evitar certas coisas’. Algumas dessas coisas, segundo vários informantes, são as atitudes agressivas, os modos pernósticos e afetados, os gestos espalhafatosos, a pose”. Id Ibid., p. 69. 479 “Favores, recomendações ou benefícios eram cuidadosamente divulgados e evocados. Todos se situavam em função das suas relações. Ninguém podia ignorar ou desprezar constrangimentos sociais enraizados, pretendendo colocar-se individualmente em evidência [...] A sociedade baiana, alegre e expansiva, de aparência aberra e amável, parecia desconfiar profundamente de tudo o que pudesse vir a alterar esses sutis intercâmbios. Autoritária mas flexível, ela se esmerava em apertar as tramas vertical e horizontal de um tecido social no qual a riqueza, embora importante, não desempenhava o papel principal”. Kátia Mattoso de QUEIROZ. Bahia – Século XIX: uma província no Império. Op. cit. p.14. 480 Deve-se ressaltar que não é propósito da presente tese fazer a discussão do conceito de classe, por compreender-se que, desta forma, se desvirtuaria o debate central proposto para tal trabalho, em torno da personalidade de Cosme de Farias. Por isso, toma-se apenas algumas considerações de autores diversos como referencial para 168 da sociedade baiana da época. Àquela altura, tinha um imóvel (a casa onde morava) e remuneração fixa que possibilitava aquisição de bens materiais duráveis, até então de acesso limitado, como aparelhos eletroeletrônicos e automóvel. Nasceu em meio à pobreza, mas poderia ascender de posição a partir da renda obtida graças à atuação remunerada na imprensa, desempenhando funções diversas em veículos de comunicação locais, no funcionalismo público e na Câmara de Salvador e Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, como vereador e deputado, entre outros mecanismos. Não obstante tal compreensão seja plausível e aceitável nos meandros da academia e pela população em geral, a vida e obra de Cosme sugere uma problematização da leitura do seu lugar social, em consonância com o que assevera o historiador marxista E. P. Thompson481 nas suas tentativas de entender a formação, a luta e a consciência de classes. Para ele, a determinação da classe de um sujeito histórico, com notoriedade ou anônimo, não perpassa somente pela origem econômica, não se reduz à simplista medida quantitativa482: Em primeiro lugar, nenhum exame das determinações objetivas e, mais do que nunca, nenhum modelo eventualmente teorizado podem levar à equação simples de uma classe com consciência de classe. A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a elas transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural. [...] Em segundo lugar, muito da teoria marxista e, igualmente, embora em menor parte, muito da historiografia marxista foram distorcidos pelo exame da classe segundo as categorias de ‘base’ e ‘superestrutura’. As forças e as relações produtivas nos forneceriam a ‘base’ (que se supõe real e objetiva), e delas a consciência de classe emergiria como uma superestrutura ‘derivada’. Ou seja, tal noção fundamenta-se tanto pelas relações produtivas em que está inserido e, é óbvio, por sua renda quanto por suas orientações ideológicas e políticas e manifestações culturais, embora, para alguns autores, este primeiro aspecto ainda possa ser preponde- tentar compreender teoricamente a inserção social dele. Até porque, segundo E. P. Thompson, em Algumas observações sobre classe e "falsa consciência", “nenhum modelo pode dar-nos aquilo que deveria ser a ‘verdadeira’ formação de classe em um certo ‘estágio’ do processo. [...] Na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou mais real que outra. As classes se definem de acordo com o modo como tal formação acontece efetivamente”. E. P. THOMPSON. Algumas Observações sobre Classe e “Falsa Consciência”. Trad. Antonio Luigi Negro. In: Sergio SILVA; Antonio Luigi NEGRO (Org.). As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos. 2. reimp. Campinas: Ed. Unicamp, 2007, p. 169-181. 481 Id. Ibid. 482 Id. Ibid., p. 277. 169 rante. Sobre isso, se posiciona a pesquisadora Verena Stolcke483: “noções ideológicas e culturais podem ser exploradas no interesse da acumulação de capital e ter um efeito decisivo para a coesão de classe. Mesmo nas formulações analíticas, porém, é ainda o sistema de produção que fornece o derradeiro lócus da luta de classes”. Feito o exame cuidadoso do caso à luz desta nova perspectiva, ponderando quanto a aspectos políticos e culturais e relações econômicas, conclui-se que Cosme de Farias tinha características cultivadas pelos sujeitos do estrato social médio, composto por funcionários públicos médios como ele, além de pequenos e médios comerciantes, empregados do setor comercial, proprietários de terra, profissionais liberais, técnicos, entre outros, porém com variações significativas como a discrepância da ideologia, da perspectiva de vida, entre o Major e a maioria dos integrantes desse grupo. Assim, Cosme estaria próximo à classe mediana da sociedade baiana 484, assentada entre a elite – formada, basicamente, por proprietários dos meios de produção das áreas urbanas e rurais, exportadores, grandes comerciantes, aristocratas com ou em busca de influência junto ao governo central – e a camada de baixo poder aquisitivo – constituída, nas primeiras décadas da República, em geral, por sobreviventes do trabalho manual e braçal; “pretos e mestiços”; e pessoas sem letramento ou com capacidade de apenas assinar o próprio nome. Sob a ótica do antropólogo Thales de Azevedo485, o jornalista, também, teria maior proximidade com as feições da “classe média”. Explica-se. Na maturidade, ele já acumulava predicados que lhe distinguiam da maioria dos “de baixo”: tinha imóvel (a casa onde morava) e remuneração fixa que possibilitava aquisição de bens materiais duráveis, até então de acesso limitado, como aparelho eletroeletrônicos e automóvel; era poeta, orador, jornalista, servidor público, parlamentar; mantinha vínculo com entidades classistas, religiosas e beneméritas; tinha relações com expoentes da época (como José Joaquim Seabra) e facções e partidos políticos; e cultivava costumes ditos “civilizados”. Contavam a seu favor a cor da pele, relativamente clara, apesar de outros traços físicos denunciarem a origem mestiça; e o fato de ser filho de um comerciante de madeira, matéria-prima com alta demanda. Em outras palavras, ele detinha atributos comuns à camada média, além da posição favorável no processo produtivo capitalista, tais como a ocupação intelectual e política com exercício de atividades voltadas à reflexão, à articulação do saber formal, ao emprego do inte483 Verena STOLCKE. Sexo Está para Gênero Assim como Raça para Etnicidade? Estudos Afro-Asiáticos. Vol. 20 Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, jun. 1991, p.110. 484 Ver Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. 485 Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. 170 lecto, em detrimento de operações técnicas e/ou manuais; o reconhecimento de instituições e o trânsito entre governantes, parlamentares, magistrados, artistas, intelectuais e trabalhadores de vários segmentos; a filiação partidária e inserção em grupos políticos como aquele liderado por Seabra, personalidade que, embora tenha morrido no ostracismo, permaneceu mais dentro do que fora das rodas aristocráticas da Bahia daqueles tempos; o rendimento acima do recebido pela maioria; a conduta, em alguns aspectos, “civilizada”; o tom da pele, que gerava confusão de nomenclatura para referir-se a ele variável entre branco, preto e outros matizes; e o ofício paterno. Cosme galgou esta condição na idade adulta, mas nem sempre foi assim. Ele nasceu no estrato486 atribuído àqueles com volume de propriedade, renda e prestígio ocupacional inferiores e sem escolarização e suspeita-se que tenha sofrido privações na infância e adolescência. Porém, com o tempo, suplantou as dificuldades comuns nas vidas de mulatos do Subúrbio e as divergências de visão de mundo, interesses e comportamentos entre pobres e remediados; e assemelhou-se aos sujeitos de outro grupo, no qual os indivíduos487 gozavam de prestígio pela ocupação, detinham algum controle dos meios de produção, empregavam, principalmente, o intelecto no trabalho e tinham afinidade com ideais, valores e comportamento da alta sociedade. Decerto, aproveitou a tolerância das camadas superiores para ascensão de indivíduos – não, necessariamente, de um grupo –, conferida mediante o desenvolvimento econômico e provas de “progresso moral e de civilização” do postulante488. Entretanto, Cosme, em concomitância, sustentou a visão de mundo e muitos anseios, princípios morais e costumes de outrora, voltando-se aos interesses dos “de baixo”. Na maioria das vezes, pensou e atuou como aqueles que constituíam o proletariado. Morou somente em casas sem conforto e luxo; casou com uma mestiça; nutriu hábitos comuns aos “subalternos” (como o “ritual” de beber em botequins; andar, principalmente, a pé ou em transporte coletivo público; estabelecer redes de solidariedade por meio do parentesco simbólico com acolhimento de agregados e compadrio, a fim de assegurar mais amparo); alinhou-se com trabalhadores em momentos de disputa frente a forças antagônicas e filiou-se a entidades operárias, mesmo sem exercer funções laborais inerentes a estas, como será exposto posteriormente nesta tese. Assim, pode-se afirmar que Cosme tinha consciência dos “de baixo” e, portanto, per486 Conforme descrição de Thales de Azevedo, na obra As Elites de Cor numa Cidade Brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. Ver Thales AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 174. 487 Sobre o estrato médio, ver Thales de AZEVEDO. Ibid. p. 173. 488 Id. Ibid. 171 tencia às camadas inferiores, considerando-se o pressuposto de E. P. Thompson489 de que classe é uma categoria histórica, derivada de processos sociais envolvendo indivíduos que podem ser reconhecidos a partir da repetição do comportamento característico do grupo social, quando expostos a situações análogas, e representam ao serem questionados sobre seu estrato490. Era, portanto, um dos “de baixo”, porque sua consciência e cultura eram compatíveis com àquelas inerentes aos trabalhadores, pobres, pretos e mestiços, homens e mulheres de parca ou nenhuma escolaridade e posse, aos subjugados nas relações capitalistas de produção e, costumeiramente, rotulados na historiografia como “de baixo”. A experiência de Cosme no mundo forjou nele um sentimento de pertencimento a este estrato – e não, à camada média –, a despeito de ter traços inerentes aos sujeitos remediados. Ele cresceu, obteve oportunidade de migrar de classe, mas manteve-se imbricado àquele grupo dos seus tempos de criança e adolescência. Estava aprisionado a ele, pelo menos, no plano da consciência e cultura de classe. Enxergava-se e agia como um proletário, sustentando costumes que possibilitavam seu reconhecimento, por terceiros, como membro do estrato hierarquicamente abaixo e representando-se como integrante desta camada e não, da outra, seja por questões afetivas e lealdade à origem, por transtornos de ordem psicológica ou por tática para alimentar sua obra, entre outros fatores. Sem dúvida, ele experimentou a possibilidade de mobilidade ascensional na hierarquia social, conforme delineada por Thales de Azevedo491, por meio do “embranquecimento” pelo que amealhou e da assimilação de traços daqueles indivíduos dos estratos médios, devido à condição econômica, intelectual e política que conquistou. Porém, seu modo de ser, pensar, viver e interagir, seus trejeitos, suas escolhas do dia a dia indicavam que a pobreza já havia deixado nele marcas indeléveis, mantendo firmes seus princípios e valores do passado. Sua biografia sugere que ele não ambicionava integrar a elite local. Ao invés disto, desejava a conquista de voz e vez para os estratos inferiores. Quanto a isto, seguia a perspec489 E. P. THOMPSON. Algumas observações sobre classe e "falsa consciência". Op. cit. Afirma E. P. Thompson, em texto escrito em 1977 e publicado no Brasil em 2001: “As pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção, fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real. [...] Quando digo que classe e consciência de classe são sempre o último estágio de um processo real, naturalmente não penso que isso seja tomado no sentido literal e mecânico. Uma vez que uma consciência de classe madura tenha se desenvolvido, os jovens podem ser “socializados” em um sentido classista, e as instituições de classe prolongam as condições para sua formação. Podem-se gerar tradições ou costumes de antagonismo de classes que não correspondam mais a um antagonismo de interesses”. E. P. THOMPSON. Algumas observações sobre classe e "falsa consciência". Op. cit. 491 Ver Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. 490 172 tiva492 adotada por representantes do operariado, calcada na busca pela inserção dos estratos “de baixo” no centro decisório da Bahia, sem, contudo, protestar com veemência contra a ordem política, econômica e social já estabelecida (o direito à propriedade, o sistema oligárquico etc.) ou subvertê-la, embora os princípios e procedimentos então usuais beneficiassem a elite local em detrimento de trabalhadores, pretos e mestiços. Assim como outros líderes operários, ele pleiteava representação política e social e melhores condições de vida para o proletariado, sem destituir a classe dominante do seu lugar político e social, como bem explica Aldrin Castellucci: Os operários vinculados ao Partido Operário da Bahia, à União Operária Bahiana e ao Centro Operário da Bahia que lograram se eleger para os cargos de conselheiros municipais, administradores e membros das juntas distritais e juízes de paz, cumpriram, efetivamente, um papel de representação política da classe operária. Isso transparece no encaminhamento que aqueles indivíduos deram às demandas operárias por geração de postos de trabalho, controle de preços dos gêneros de primeira necessidade, construção e / ou subvenção estatal de habitações proletárias, expansão do sistema educacional público e por uma legislação de proteção ao trabalho. Essas questões foram apresentadas junto aos Legislativos municipal, estadual e nacional como parte desse conjunto abrangente de lutas encampadas pela máquina política operária493. A despeito de não ser um operário de fato – e somente ocupar um lugar social e político como se fosse –, Cosme enfronhou-se nas mesmas frentes dos lideres proletários: a geração de postos de trabalho, o combate à carestia de gêneros e serviços essenciais (como alimentos e transportes), a construção de habitações para o operariado, o acesso à alfabetização e escolarização por crianças e adultos, e a criação de melhores condições de trabalho e salários justos, como será explicitado no capítulo seguinte. As estratégias, porém, se diferenciavam porque ele investia na assistência social como mecanismo para minorar os problemas que afligiam o proletariado, além de utilizar, como os colegas de front, a política partidária, a imprensa, a mobilização (por meio de manifestações públicas e da organização de entidades mutuarias, religiosas e classistas). Cosme não temeu alinhar-se com aqueles que (sobre)viviam na pobreza, circunstância influenciada pela inexistência ou destituição de direitos de cidadão para subsistência e desencadeadora de discriminação contra indivíduos vulneráveis pela origem étnica e pelas condi492 Tal perspectiva é bem delineada por Aldrin Castellucci, em Aldrin CASTELLUCCI. Política e Cidadania Operária em Salvador (1890-1919). Revista de História. Op. cit. p.241. 493 Id Ibid. 173 ções sócio-econômicas, no contexto social, cultural, econômico e político pós-abolição da escravatura e Proclamação da República. Preferiu (ou foi levado a) se manter preso às raízes e essa escolha pode ter exercido influência sobre os rumos da sua atuação como filantropo e militante político e social, aspectos discutidos no capítulo a seguir. Seu caso, certamente, não era único, mas era raro. 174 3 CAMINHOS PARA A VIRTUOSE 3.1 VERTENTES DO ALTRUÍSMO E DA BENEMERÊNCIA Caso fosse erguida uma galeria com as principais referências da prática da caridade nos trópicos, no século XX, seria imperativo fixar a imagem de um soteropolitano mestiço, de lábios carnudos disfarçados por um bigode espesso, nariz protuberante e olhos graúdos e fundos, sob óculos de lentes grossas, com estatura mediana e corpo franzino quase sempre encoberto com vestes surradas de moldes que rememoravam os figurinos bem talhados e engomados dos tempos do Império. O altruísta digno desta distinção atuou na imprensa como repórter e até chefe de redação, escreveu poesias, trabalhou como funcionário público do Estado, cumpriu quatro mandatos como vereador de Salvador e cinco como deputado estadual da Bahia, mas ganhou notoriedade, sobretudo, por “fazer o bem sem olhar a quem” na Cidade da Bahia e nos mais longínquos arrabaldes baianos. O jornalista fazia doações de materiais escolares, exemplares da Carta do ABC (cartilhas para alfabetização), alimentos, medicamentos; fazia a mediação para aquisição de vagas de emprego, em abrigos para idosos e indigentes, hospitais e unidades escolares; cedia consolo e conforto aos aflitos; defendia réus desconhecidos, perante à polícia e à justiça, inclusive aqueles rechaçados por outros advogados; e doava recursos e prestava assistência a casas pias e outras organizações beneméritas494, instaladas na Bahia. Conforme sua carta-testamento495, em 1964, fazia parte do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, das bolsas (Patriotas e Caridade), do Montepio dos Artífices, da Sociedade Beneficente de Santana, de associações (Funcionários Públicos da Bahia, Baiana de Imprensa, Tipográfica da Bahia e dos Empregados do Comércio da Bahia), do Centro Operário da Bahia (COB), além de ordens terceiras, irmandades e da Liga Bahiana contra o Analfabetismo. Ouvia as necessidades da população na própria residência e em escritórios improvisados, em espaços cedidos por amigos, no Centro da cidade496. Um funcionou em uma sala, na Rua da Oração. Outro, na Rua do Bispo. O último foi instalado no corredor esquerdo, 494 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 7 de maio de 1959, 7 de julho de 1959; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 212. 495 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 496 Geraldo da Costa LEAL. Pergunte Ao Seu Avô... Histórias de Salvador – Cidade da Bahia. Salvador: [s. e.], 1996. Verbete Cosme de Farias; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. 175 meio-escuro, de acesso à sacristia da Igreja de São Domingo Gusmão, no Terreiro de Jesus. Nele, havia apenas uma mesa tosca envelhecida, um banco de madeira, duas cadeiras de lona, uma caixa de biscoito utilizada como cesto de lixo, uma folhinha na parede, uma faixa já corroída na qual se lia o lema “Abaixo o Analfabetismo!”, fotografias e boa vontade para oferecer socorro a quem já não tinha mais a quem recorrer. Ele quase não descansava: por dia, recebia de 25 a 30 pleitos advindos, principalmente, de pessoas “pretas e pobres”497, originárias de Salvador e do interior. Donas de casa, profissionais de ramos diversos, prostitutas, mendigos, bicheiros batiam à sua porta, apresentando demandas individuais ou coletivas, e, em geral, retornavam, pelo menos, com a esperança de terem dias melhores. Em comum, as pessoas amparadas por ele tinham a fragilidade diante do sistema social e, por conseguinte, a necessidade de auxílio para garantia de condições mínimas de sobrevivência e, ainda, a falta de acesso a serviços públicos essenciais atribuídos ao Estado. Embora a assistência fosse extensiva, independentemente de idade, cor, credo e origem, as crianças recebiam prioridade, conforme relatou, em 1971, meses antes da sua morte, o próprio Cosme ao Jornal da Bahia, periódico que divulgava reiteradas notícias sobre ele: “Tenho dedicado toda minha existência à causa dos pobres e dos que sofrem, mas a minha atenção especial tem sido para as crianças humildes de nossa terra, a quem, se não posso dar fortuna, pelo menos tenho dado o calor de meu afeto e solidariedade da minha pobreza”498. A precedência ao infante, provavelmente, era facultada devido à sua maior vulnerabilidade social, em relação a outros grupos sociais, e à visão de que só haveria um futuro com mais justiça social se oferecido anteparo para formação de pessoas com condições de manter uma vida produtiva. Contudo, a despeito da omissão na fala do filantropo, a documentação acerca de suas atividades indica que réus de investigações policiais e processos judiciais, presidiários, idosos, enfermos e pacientes com transtornos psiquiátricos, também, contaram com certa primazia nas ações implementadas por ele, como detalhado a seguir. Afora isto, instituições assistenciais, como o Hospital das Creanças499, e escolas de ensino primário vinculadas à Liga Bahiana contra o Analfabetismo, eram beneficiadas por ele com destinação de recursos em dinheiro e, no caso da segunda, cartilhas e materiais escolares. Por elas, também, impetrava, junto à administração pública, pedido de subvenção governamental, como ocorreu com o Hospital Al497 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 124. JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 20 de maio de 1971. 499 DIÁRIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 14 de janeiro de 1924. 498 176 fredo de Magalhães, com sede no Rio Vermelho 500, em Salvador. Cosme sustentava o trabalho social501 com recursos próprios – recebidos pelo exercício de cargos públicos na Fazenda Estadual e na Imprensa Oficial (e, posteriormente, a aposentadoria) e de parlamentar; pelo trabalho como jornalista, embora esta atividade nem sempre fosse remunerada no seu tempo; e pelos raros préstimos, como advogado, que eram remunerados –; a redação, edição e venda de livros, em prosa e verso; a arrecadação de doações e a prestação de serviços de terceiros; a obtenção de patrocínios (como o de Tofik Habib, proprietário da firma “A Boneca”); e eventuais repasses financeiros governamentais. Os cofres públicos destinavam verbas à obra assistencial de Cosme, de maneira assistemática, mas cedia. Em 1967, ainda sob efeito da derrota na eleição para deputado estadual, ele chegou a reclamar, dizendo que só teria recebido auxílio para desenvolver ações educacionais no Estado nas gestões dos governadores Seabra e Antônio Moniz de Aragão, na Primeira República502. “(Antônio) Lomanto (Júnior) nunca me deu nada, só faz dizer quando encontra comigo: ‘Como vai o velho patriota?”, criticou503. A historiadora Consuelo Pondé de Sena, em Cosme de Farias e a Liga Bahiana, confirma que Seabra apoiou a obra, através da construção de escolas em bairros proletários e da distribuição gratuita de materiais escolares504. Entretanto, no Diário Oficial, a Câmara Municipal de Salvador anunciava a cessão de subsídio, também, pela Prefeitura. Em 1951, por exemplo, foi de $ 5.000,00 (dos $ 2.238.000,00 destinados a organizações sociais naquele ano)505. Um dos seus artifícios recorrentes era a organização de campanhas506 e/ou o apoio a subscrições realizadas por jornais507, que possibilitavam angariar os fundos necessários para determinada ação e davam visibilidade a ele e à sua obra. Em agosto de 1942, por exemplo, 500 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 23 de agosto de 1937. A TARDE. Salvador (BA), edições de 21 de dezembro de 1970, 18 de março de 1972; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p.129; DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 19-20 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de março de 1971. 502 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de outubro de 1971. 503 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 29 de março de 1967. 504 Consuelo Pondé de SENA. Cosme de Farias e a Liga Bahiana. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, [s.d.]. (mimeo). 505 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 30 de novembro de 1951. 506 A nota que segue comprova isto: “Um gesto nobre. Recebemos para o Hospital para as creanças a quantia de 10$000, angariada entre amigos, pelos srs. Professor Raimundo Gomes e Cosme de Farias, na sede da Sociedade União dos Mechanicos, em Itapagipe. A referida importancia ficará nesta redacção á disposição do dr. Alfredo de Magalhães, benemérito instituidor daquelle estabelecimento”. O DEMOCRATA. Salvador (BA), edição de 7 de maio de 1916. 507 A matéria transcrita adiante atesta isso: “Procedimento digno. ‘A Noite’, futuroso jornal de Mello Barretto Filho, abriu, hontem, um subscrição popular em favor da viúva e dos innocentes filhos do operário Aurélio da Silva, carbonizado horrivelmente, por um fio electrico, a 13 do corrente mês, no bairro do commercio. Esa humanitaria lembrança é deveras merecedora do apoio público [...]”. DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 15 de abril de 1925. 501 177 ele lançou na Associação Baiana de Imprensa a “Campanha Tostão”, visando arrecadar verba para a criação de dez mil escolas no País 508, meta que nunca foi alcançada. Outros dois recursos adotados pelo benemérito eram a coleta de donativos em eventos, inclusive festas privadas509, e a solicitação de empréstimo financeiro 510. Contudo, em situações extremas, ele teria cometido atos511 que poderiam ser confundidos com sandices, como a retirada da porta do imóvel em que vivia, a fim de abrigar indigentes; a divisão do próprio almoço em pedaços de papel, para doação a quem sequer conhecia; e a cessão a terceiros até daquilo que recebia como presente. Por vezes, Cosme recorria a comerciantes, empreiteiros, industriais, intelectuais, jornalistas, funcionários do setor público, autoridades que pudessem solucionar os problemas alheios512 ou, pelo menos, auxiliar na busca de recurso. Uns eram seus amigos ou colegas de ofício; outros, desconhecidos. As providências variavam, a depender do caso: formulava pedidos polidos em seu nome e/ou de alguma entidade que dirigia, a quem pudesse ajudá-lo; coagia ou causava constrangimento, a fim de garantir um desfecho positivo para a situação; ou empregava os dois meios concomitantemente. A forma mais afável era a elaboração do pleito diretamente a quem poderia prestar o serviço ou oferecer a quantia ou mercadoria desejada, por meio de abordagem pessoal em ambientes privados ou públicos – até na rua. Em geral, ele dirigia-se pessoalmente à pessoa; encaminhava um bilhete ou telegrama, acompanhado ou não por presentinhos (sabonetes, bolacha etc.); ou encaminhava proposições formais ao destinatário, explorando sua condição de parlamentar, principalmente, se o caso envolvesse os poderes Legislativo ou Executivo. Já os mecanismos de pressão perpassavam pela publicização da demanda, por meio de discursos em eventos públicos e privados, em sessões do júri ou no plenário; da organização de comícios, com orações que variavam da denúncia de irregularidades no governo à solicitação de obras de infraestrutura na cidade; e da publicação de textos prosa e verso, em jornais e obras literárias, com as reivindicações da população. Possivelmente, isso ocorria tanto para agilizar e assegurar o recebimento da mensagem pelo destinatário quanto pressioná-lo a 508 Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Salvador: Associação Bahiana de Imprensa, 1980, p.39. 509 Em janeiro de 1924, o Hospital das Creanças, por exemplo, recebeu 10$000 angariado por Cosme de Farias, de amigos, no decorrer de uma festa íntima na casa do capitão Paulino Caribe. DIÁRIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 14 de janeiro de 1924. 510 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p.14-16; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de outubro de 1971. 511 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit.; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 2 de abril de 1971; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1972. 512 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p. 23. 178 adotar alguma medida, por receio de que a opinião pública se voltasse contra ele. Muitas vezes, o jornalista enviava a solicitação por escrito, pelas vias oficiais, e simultaneamente empregava a coerção ou o constrangimento público, como se observa na nota a seguir: Contra o muro513 O jornalista Cosme de Farias solicitou providências do prefeito, por intermédio da Camara dos Vereadores, no sentido de mandar demolir um muro que está obstruindo a entrada da rua Professor João Luiz Barreira em Amaralina. Aqui, o clamor público, através de um dos jornais de maior circulação na Bahia, A Tarde, tinha a intenção de provocar certo constrangimento ao gestor da Prefeitura de Salvador e, por conseguinte, asseverar a demolição da alvenaria indesejada, em atenção à comunidade local. Administradores do município cediam e atendiam à solicitação, diante da propagação de informações acerca de um fato negativo para sua imagem pública, inclusive com menção a si (como nesse caso, no qual é responsabilizado o prefeito). O modelo reproduziu-se, em inúmeros momentos, no século XX. Em paralelo, ele convocava a população para a mobilização pela exigência de ações governamentais em favor de grupos sociais específicos, como crianças e adolescentes, em textos com exposição do problema pontuados por críticas especialmente ao poder público, mesmo que de forma implícita. Registrou-se um desses exemplos no ano de 1925514, no decorrer da gestão do governador Góes Calmon, a quem o jornalista fazia oposição. O artigo tem um trecho transcrito a seguir: Linhas Ligeiras Alerta, patriotas! [...] Há dinheiro para tudo, menos para a creação da “Escola dos menores abandonados”... Isto, porém, carece ter um paradeiro e eu consito [sic], hoje, os homens de boa vontade e os verdadeiros patriotas a enfrentarem o triste caso, resolutos, e seremos dando ao mesmo uma solução humanitária [...] À lucta, portanto, meus dignos concidadãos. Outra tática comum era a exposição pública da necessidade de uma pessoa ou grupo, 513 514 A TARDE. Salvador (BA), edição de 12 de abril de 1954. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 8 de maio de 1925. 179 junto a possíveis doadores ou prestadores de serviços. Neste caso, Cosme desenvolvia, inclusive, um enredo dramático e, por vezes, pontuado por invencionices, a fim de instigar as emoções, sensibilizar e provocar uma reação dos interlocutores. Em um dos casos mais lembrados, ele515 criou que a irmã do famoso etnógrafo, pesquisador e conselheiro municipal Manuel Querino estava passando fome, enquanto se celebrava com pompa seu centenário de nascimento, com o intuito de angariar fundos nas altas rodas da cidade para a mulher, que sequer ouvira falar do intelectual antes. Esta é uma das astúcias dele, para sanar demandas de pessoas que sequer conhecia. 3.1.1 Assistência a desamparados Entre inúmeras famílias dos estratos menos abastados da população, a falta de comida à mesa, de medicamentos para alívio das dores, de caderno e lápis para ir à escola era atenuada por meio das ações de Cosme de Farias. Se dispusesse do que fora pedido, ele destinava imediatamente. Se não tivesse em mãos, não fazia promessas explícitas da conquista do bem/serviço reclamado, mas garantia empenho na busca de solução. Para quem não tinha nada, era o bastante para recobrar a esperança, criando, pelo menos, a expectativa de reversão do problema. Em geral, algum tempo depois, o pedinte recebia o que havia requerido. Crianças, jovens, adultos e idosos, de ambos os sexos, sem abrigo para suprir suas necessidades essenciais à sobrevivência, como dormir com segurança, podiam ser atendidos com a oferta de leito na própria casa do jornalista ou o encaminhamento para vagas em asilos, 515 Um exemplo está na memória do historiador Cid Teixeira. Na pomposa celebração do centenário de nascimento do etnógrafo, pesquisador e vereador Manuel Querino, o salão nobre do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), na Praça da Piedade, em Salvador (BA), estava apinhado. O folclorista Antônio Viana acabava de proferir uma oração de exaltação ao homenageado, quando, de repente, Cosme ergueu-se da audiência e pediu a palavra. Constrangidos, os organizadores do evento decidiram subverter o protocolo e cederam um tempo a ele. E, no discurso, sem pudor, ele denunciou que, enquanto festejava-se o aniversário de Querino, sua irmã padecia em pobreza extrema; solicitou contribuição financeira em nome da mulher; correu o chapéu; contou a renda aferida e repassou, de imediato, à senhora esquálida de feições parecidas às do autor – negra de rosto pequeno, alta e magra – que aguardava no próprio IGHB. Ouriçados com a possibilidade de obter manuscritos inéditos do intelectual, dois jovens editores, Cid Teixeira e Nelson de Araújo, questionaram a mulher sobre tais documentos e, surpresos, ouviram que ela sequer conhecia Querino. Teria dito: “Moço, eu hoje de manhã estava sem nada para comer, fui ao escritório do jornalista Cosme de Farias. Ele disse que eu aparecesse aqui à noite, que ele me dava esse dinheiro, e Deus que abençoe o jornalista”. Toda a trama era mais uma astúcia de Cosme para sensibilizar a plateia e arrecadar verbas para aliviar o sufoco de quem ele sequer conhecia. Cumpriu seu objetivo, a despeito das questões éticas intrínsecas a esse caso. TEIXEIRA, Cid. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador. Op. cit. 180 albergues e hospitais públicos ou filantrópicos. A jovem Delza Santiago da Cruz516, por exemplo, morou na residência do casal Farias, no imóvel da Rua das Verônicas (atual Rua São Francisco), onde outras pessoas também encontravam guarida em sobrelojas improvisadas como quartos. Gestores de unidades de acolhimento e até o prefeito da cidade eram acionados por Cosme, a fim de afiançar amparo a anciãos, migrantes e mendigos, sem habitação e assistência familiar. Um dos principais destinos de indigentes saudáveis era o Asylo da Mendicidade517. Vítimas de hanseníase, doença carregada de estigma e motivo para afastamento total do paciente do convívio social, era tratadas no Hospital dos Lázaros, instituição especializada em “lepra”518. Alcoólatras, depressivos, psicopatas, dementes precoces (depois, denominados como esquizofrênicos), com idades diversas e de ambos os sexos, iam para a Casa de Correção, criada em 1874 e implantada no Forte de Santo Antônio Além do Carmo, na freguesia homônima, para recolhimento de infratores, mas que passou a atender, também, pacientes psiquiátricos rejeitados pela Santa Casa da Misericórdia; e para o Hospício São João de Deus (renomeado em 1936 como Hospital Juliano Moreira), então situado no Alto da Boa Vista (Brotas), como atestam notas publicadas em jornais de períodos diversos519. Pelo levantamento em jornais, esse era o grupo de maior demanda. Os argumentos empregados por Cosme para convencimento das autoridades quanto à necessidade de internação variavam de acordo com o perfil da pessoa a ser beneficiada e a relação resguardada entre o jornalista benemérito, o destinatário do pedido e a instituição envolvida. Conforme a documentação do São João de Deus, ora, ele pregava solidariedade ao enfermo, que precisava ser “devidamente tratado” 520, ora, reclamava pelo cultivo da imagem positiva de Salvador, extinguindo os loucos das vias públicas por esses demonstrarem “deprimente espetáculo para os créditos desta cidade”521. É possível que Cosme fosse atendido devido à relação de cooperação mútua, de troca de favores pelo bem da população, estabelecida com inúmeras dessas instituições: ele conce- 516 Antônio Fernandes PINTO. Entrevista concedida à autora no dia 21 de outubro de 2005, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. (Gravação digital). 517 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de13 de outubro de 1930. 518 O DEMOCRATA. Salvador (BA), edições de 20 de abril de 1916, 29 de julho de 1916, 4 de janeiro de 1917. 519 A NOITE. Salvador (BA), edição de 8 de janeiro de 1926; DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 4 de novembro de 1930; O DEMOCRATA. Salvador (BA), edição de 4 de abril de 1917. 520 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 24 de outubro de 1930. 521 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1906-1914; caixa 3188. Ofício de 31 de dezembro de 1913. 181 dia auxílio financeiro522, requeria títulos de utilidade pública que eram pré-requisitos para obtenção de isenções e subsídios governamentais523 e solicitava subvenções do Estado em benefício das entidades524 e, em contrapartida, podia fazer encaminhamentos de abandonados e desamparados para internação e assistência. Em geral, ele seguia o trâmite oficial, requisitando a internação diretamente ao órgão gestor da unidade (à Prefeitura, à Secretaria de Estado etc.), ou providenciava o pedido simultaneamente à divulgação do pleito na imprensa local, em notas que descreviam rapidamente as condições do beneficiado e traziam o clamor525. Em relação ao São João de Deus, por exemplo, buscava atender ao protocolo ordinário: providenciava, junto ao delegado do distrito, uma declaração de indigência do enfermo e pareceres de dois médicos quanto à saúde mental da pessoa e dirigia-se ao secretário Geral do Estado com o pedido de internação. Repetia os procedimentos mais de uma vez por semana, devido à demanda. Por vezes, recorreu à justiça526, a fim de garantir aos loucos o direito ao recolhimento e abrigo, inclusive como mecanismo para salvaguarda da população transeunte e passível de atentado dos insanos. Em geral, esses pacientes eram acusados de crimes contra pessoa ou o patrimônio com sinais de transtorno mental, que, portanto, requeriam tratamento em unidade médica. Em dezembro de 1925, por exemplo, Cosme peticionou ao juiz da segunda vara crime, Alfredo Gaspar, a transferência de Avelino Manoel do Sacramento527, conhecido como Mar Grande, da Casa de Correção, onde dividia espaço com infratores saudáveis e de alta periculosidade, para o São João de Deus, por esse “estar soffrendo das faculdades mentaes e furioso”. O homem era acusado de furto e venda dos objetos do crime ao comerciante espanhol Aniceto Jorge, estabelecido no Largo da Preguiça. 522 Há inclusive doações ocorridas em situações inusitadas, como uma destinada ao Albergue Noturno e ao Orphanato São José em 1930, em memória de uma jovem. O Diário de Noticia relatou na época: “Para o Albergue e o Orphanato. Comemorando o 7º dia do [...] fallecimento da bondosa e intelligente senhorinha Nair Pacheco de Oliveira, distincta filha do illustre deputado Pacheco de Oliveira, o sr. Cosme de Farias enviou-se 20$ sendo 10$ para auxiliar a construcção do ‘Albergue Noturno’ e 10$ para o ‘Orphanato São José’ desta cidade. Agradecidos, pela delicada lembrança. DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 13 de outubro de 1930. 523 Há vários exemplos. Um deles o clamor através de artigo em jornal para que aumentassem o subsídio do governo à Santa Casa da Misericórdia. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 12 de maio de 1925. 524 Há inúmeros exemplos. Um deles foi o envio de pedido de recursos, ao poder executivo, ainda na qualidade de deputado, para ampliação do Hospital Santa Izabel pela Santa Casa da Misericórdia. O pleito foi atendido. A NOITE. Salvador (BA), edição de 21 de dezembro de 1925. 525 Exemplo: “Pela velhice desamparada. Ao prefeito Francisco de Souza, o Sr. Cosme de Farias requereu permissão para recolher ao Asylo da Mendicidade a velhinha Paulina dos Santos, que se acha em penuria e sem abrigo. Este justo pedido é justo de ser attendido”. DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de13 de outubro de 1930. 526 Ronaldo Ribeiro JACOBINA; André JACOBINA. Cosme de Farias e o Manicômio Estatal na Bahia, Brasil (1912-1947). Gazeta Médica da Bahia. Vol. 75, nº II. Salvador: Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, jul.-dez. 2005, p.120-126. 527 A NOITE. Salvador (BA), edição de 10 de dezembro de 1925. 182 Contudo, com intenção de abreviar o sofrimento do paciente, de forma esporádica, Cosme burlava as normas, formulava o requerimento de internação diretamente ao administrador da instituição e obtinha êxito. A atitude motivou repreensão oficial à diretoria do manicômio528. Nos trâmites com o Hospício, ainda cometia outras infrações: utilizava atestados assinados pelos médicos em branco529 e substituia a petição ou guia remetida por autoridade policial por seus bilhetes530. Rechaçado pelo diretor Aristides Novis sobre esse segundo caso, insistiu no expediente, mas passou a destinar as missivas ao médico assistente do hospital, José Júlio Calasans. O trabalho de Cosme em benefício de pessoas com transtornos mentais, de início, seguia duas vertentes: a mobilização rotulada de “campanha dos loucos”, pela transferência de doentes recolhidos indevidamente na cadeia pública (a Casa de Correção, do Forte de Santo Antônio Além do Carmo) para o manicômio São João de Deus531, ocorrida ainda no final do século XIX e de caráter precursor na trajetória de Cosme de Farias; e a intercessão, junto a gestores dessas e outras instituições, para a obtenção de acolhimento de pacientes. Conforme notícias recolhidas na imprensa, homens e mulheres, com idades variadas, eram os principais beneficiários das ações por internações movidas pelo benemérito. Talvez, nesse primeiro momento, ele procedesse em favor do internamento hospitalar por compreender que esses indivíduos careciam, de fato, de tratamento médico adequado para ganhar qualidade de vida. Porém, essa era uma visão, ao menos, ingênua, que negligenciava as reais condições de funcionamento dessas organizações. O quadro encontrado em ambas era incompatível com as necessidades de sujeitos com a mente combalida. Na Casa de Correção532, os loucos, de todas as idades e ambos os sexos, permaneciam confinados junto a encarcerados por crimes, em espaço físico sem ventilação e alimentação adequadas. 528 Ronaldo Ribeiro JACOBINA; André JACOBINA. Cosme de Farias e o Manicômio Estatal na Bahia, Brasil (1912-1947). Gazeta Médica da Bahia. Op. cit., p. 122. 529 “Em 1925, uma comissão apurou denúncias da imprensa contra a instituição e constatou que a grafia dos pareceres de internamento de uma pessoa registrada sob o nº 596 era diversa das assinaturas dos profissionais de saúde. No inquérito, o comitê conclui que “evidentemente se reconhece que o attestado foi escripto pelo Snr. Faria (sic), em vez de ter sido por um dos medicos que o assignaram”. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Inquérito do Hospício (1925) e outros documentos; caixa 3161. Inquérito de 1925, p.3. Sobre essa infração, ver também BARRETO, Luciana. Vida à Deriva – jeito de tratar maluco. Correio Repórter/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 16 mar. 2004. 530 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1936-1937; caixa 3196. Memorandum nº 9, de 11 de julho de 1936; Ronaldo Ribeiro JACOBINA; André JACOBINA. Cosme de Farias e o Manicômio Estatal na Bahia, Brasil (1912-1947). Gazeta Médica da Bahia. Op. cit. p. 123. 531 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 2 de abril de 1965. 532 Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Cuidado à Loucura na Bahia do Século XIX. Revista Baiana de Saúde Pública. Vol. 15, nº I-IV. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, jan.-dez. 1988, p. 8-9. 183 No interregno das ações do jornalista para internar pacientes com indícios de distúrbios no São João de Deus, a imprensa local publicava denúncias sobre a má qualidade das instalações e dos serviços prestados pela casa, criticando até o atendimento técnico e as refeições oferecidas na unidade, denominada de “vulgar deposito de loucos”533; e a venda indiscriminada de medicamentos psiquiátricos por farmácias da cidade, favorecendo o consumo indiscriminado e prejudicial à saúde. Também, havia registros de violência física e psicológica, praticada por funcionários e por internos contra outros pacientes, superlotação e até casos de morte, principalmente, por fome e pelo surgimento de doenças decorrentes das condições inadequadas de sobrevivência, como impaludismo e beribéri534. Há relatos de maus tratos até no transporte para o hospital. Em 1922, por solicitação de Cosme, um indigente 535 foi encaminhado para internação pela Delegacia de Brotas e chegou ao São João de Deus, de carroça, com os membros amarrados por cordas ao veículo e escoriações pelo corpo. Diante do quadro desumano, o então diretor da unidade, Aristides Novis, requisitou à Diretoria de Saúde Pública providências junto à Secretaria de Polícia do Estado, na tentativa de que o caso não se repetisse. Instituição privada com atendimento gratuito e particular, mediante pagamento de diárias, o São João de Deus acolhia os doentes em pavilhões de acordo com o sexo e a condição financeira. Havia discriminação social. Indigentes e trabalhadores sem posses para custeio da terapia e pensão ou aposentadoria536, geralmente de baixa qualificação, como aqueles encaminhados por Cosme, ficavam em enfermarias ou em alas destinadas a casos agudos ou crônicos, a indóceis, a paraplégicos, a tuberculosos e a “imundos” e, ao que parece, eram preteridos em relação aos pagantes, que podiam até ter quartos individuais, recebiam alimentação distinta, contavam mais facilmente com atividades de lazer (jogos, leitura, passeios) e não precisavam trabalhar no decorrer do tratamento537. Em pesquisa nos arquivos daquela organização, o assistente médico Murillo Celesti533 A NOITE. Salvador (BA), edição de 19 de abril de 1925. A NOITE. Ibid.; Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Silêncio dos Inocentes III: o cuidado aos psicopatas e degenerados no Hospício São João de Deus. Revista Baiana de Saúde Pública. Vol. 28, nº I. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, jan.-jun. 2004, p.57; Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Cuidado à Loucura na Bahia do Século XIX. Revista Baiana de Saúde Pública. Op. cit. p. 7-18. 535 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas; caixa 3190. Ofício 216, de 10 de setembro de 1922. 536 As caixas de aposentadoria e pensão, criadas por algumas empresas do ramo agro-mercantil a partir de 1923, não atendiam à totalidade de trabalhadores. O quadro melhorou com a constituição de institutos de previdência, nos anos 1930. 537 Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Silêncio dos Inocentes III. Revista Baiana de Saúde Pública. Op. cit. p.5152. 534 184 no dos Santos538 constatou que, entre 1912 e 1922, havia o predomínio de homens (955 dos 1.552 internos) e de pessoas com demência precoce (26%). Outras enfermidades recorrentes eram alcoolismo (19%), psicose maníaco-depressiva (11,5%), psicose epilética (6,2%) e paralisia geral (3,5%). Mais tarde, entre 1925 e 1929, de acordo com Ronaldo Jacobina 539, tornouse mais frequente a psicose relacionada ao alcoolismo, que atingia cerca de um quinto dos pacientes, seguida da demência precoce e da psicose maníaco-depressiva. A posteriori, somou-se o interesse pela evolução (ou involução) do tratamento dos internos às vertentes de mobilização na “campanha dos loucos” e mediação para acolhimento de novos pacientes. Talvez, influenciado pelas evidências das condições deficitárias das instituições psiquiátricas da cidade, Cosme começou a questionar a eficiência e eficácia dos seus serviços e passou a acompanhar o estado de saúde das pessoas, através da administração da casa ou de contato com a Diretoria de Saúde Pública do Estado540, demonstrando, por um lado, prestígio junto às autoridades locais ao acionar as instâncias do poder com certa facilidade e sem perda da sua autonomia e, por outro, preocupação com o bem-estar de terceiros e crença na possibilidade de recuperação da sanidade por meio da terapia. Se necessário, o jornalista intervinha em favor do doente. Porém, em alguns casos, não lograva êxito. Em junho de 1943, ele pediu541 a transferência de um interno do pavilhão Manoel Vitorino para outro, sob o argumento de que o réu era processado por ferimento leve e não trazia perigo em convívio social, mas achava-se em ala destinada a pessoas de alta periculosidade. O então diretor do Hospício e perito forense, João Mendonça, indeferiu, alegando que aquele era uma das melhores áreas do hospital, contrariando o que afirmara meses antes ao Secretário de Segurança. Algumas das ações vislumbravam o bem-estar dos pacientes, inclusive os não assistidos judicialmente por ele. Assim ocorreu em fevereiro de 1917, quando rogou com êxito ao Corpo de Bombeiros para que animasse os internos do manicômio, nas tardes dominicais, com performances da banda marcial da corporação. Prontamente, o major 538 Murillo Celestino dos SANTOS. Moléstias Mentais mais Freqüentes na Bahia. Gazeta Médica da Bahia. Salvador, Bahia. V. 54, nº 1, jul. 1923, p. 239-257 apud Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Silêncio dos Inocentes III. Revista Baiana de Saúde Pública. Op. cit. p.53. 539 Ronaldo Ribeiro JACOBINA. O Silêncio dos Inocentes III. In: Revista Baiana de Saúde Pública. Op. cit. p.53. 540 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1934-1936; caixa 3195. Ofício de 6 de fevereiro de 1934. 541 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1939-1946; caixa 3199, Documento de 16 de maio de 1944; e caixa 3200, Ofício 267, de 23 de dezembro de 1941. 185 bombeiro Alcebíades Calmon atendeu à solicitação542. Em concomitância, o filantropo interferia para garantir a liberdade àqueles internados por abuso de delegados e juízes, em especial do interior, através de ação judicial impetrada, primeiro, no Superior Tribunal de Justiça e, depois, na Corte de Apelação do Estado da Bahia (fundada em 1934), inclusive no decorrer da ditadura do Estado Novo (1937-1945), quando o direito a habeas corpus foi restringido pelo governo autoritário. Ao perceber que utilizavam o manicômio para punir acusados de crimes, Cosme protagonizou uma das primeiras manifestações antimanicomiais da Bahia 543, requerendo liberdade para asilados544, mesmo após registro de surto. À época, sequer havia na Bahia um movimento organizado por esta causa. Obviamente, ele formulava pedido de habeas corpus contra o sequestro e a internação, também, de pacientes sem indícios de distúrbio545. A concessão da liberdade por decisão judicial tornou-se mais escassa no período ditatorial (1937-1945), mas Cosme persistiu no uso desse recurso e obteve êxito em inúmeros casos546. Após o fim da ditadura estadonovista em 1945 e o início do processo de redemocratização do País, registrou-se o incremento da aprovação de pedidos de habeas corpus547 a internos do Juliano Moreira, sobretudo, a réus e condenados em processos criminais. Àquela 542 O DEMOCRATA. Salvador (BA), edição de 14 de fevereiro de 1917. Luciana BARRETO. Vida à Deriva – jeito de tratar maluco. Op. cit. 544 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 40; caixa 1440. Documento 06, ano 1943, Salvador. 545 Em um dos episódios, um homem, sem qualquer alteração psíquica, permanecia recolhido por mais de 20 anos, por ação do juiz de Amargosa, e ele interveio. “Nenhuma perturbação mental lhe poude (sic) ser verificada”, constatou o diretor Aristides Novis, em correspondência destinada à Corte de Apelação. (Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1934-1936; caixa 3195. Ofício 18, de 28 de janeiro de 1935). Em outro caso, pelo menos, dois requerimentos de liberdade foram encaminhados, sem sucesso, em favor de Guilherme de Deus Figueiredo, acusado do assassinato da esposa com 120 ferimentos de facão, em Ilhéus, em 1937, por impulsão psicopata, e internado por anos. Em 1942, o paciente demonstrava-se saudável e até fazia serviços de manutenção do manicômio. (Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 40; caixa 1441. Documento 07, ano 1942, Salvador). 546 Em um deles, um homem pobre, acusado de agressão com ferimento leve da vítima, teve liberdade conferida pelo Tribunal de Apelação, mediante a constatação de que sofria apenas de epilepsia, ao invés de loucura. Havia permanecido aprisionado, no Juliano Moreira, por mais de dois anos, a pedido do juiz de Jequiriçá. (Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1939-1946; caixa 3199. Documento de 16 de maio de 1944). Em outro, um homem, recolhido para exame de sanidade entre 1940 e 1942, só obteve alta após sucessivas ações de Cosme e a comprovação de que tinha condições de trabalhar e retomar a vida. De início, foi transferido da ala destinada a acusados de crimes para uma voltada a pacientes tranquilos e, posteriormente, recebeu habeas corpus. (Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1939-1946; caixa 3200. Ofício 267, de 23 de dezembro de 1941; Ofício 192, de 18 de setembro de 1942). 547 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Republicana. Fundo: Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM. Série Correspondências expedidas e recebidas, 1946-1947; caixa 3203. Ofício 172, de 24 de maio de 1947; Ronaldo Ribeiro JACOBINA; André JACOBINA. Cosme de Farias e o Manicômio Estatal na Bahia, Brasil (1912-1947). Gazeta Médica da Bahia. Op. cit. p. 120-126. 543 186 altura, o filantropo já havia se tornado o principal peticionário de benefícios a pessoas com este perfil, conhecido na cidade por sua atuação nessa e em outras frentes. Aparentemente, ele mudou seu comportamento em relação à atenção à pessoa com transtorno mental, de uma postura de defesa do recolhimento em manicômio para a de ponderação quanto aos procedimentos do hospício, demonstrando maturidade e análise crítica quanto à própria conduta. De certo, suas ações eram forjadas pela busca do bem-estar do doente e, também, do asilado sem sinais de loucura, em um primeiro momento, por crer nos efeitos da terapia hospitalar e, depois, por cautela quanto ao funcionamento da organização. A posição crítica do benemérito quanto ao internamento causava estranheza, destoava do que até então era preconizado na maior parte do País. Havia apenas experimentos isolados548, mal-interpretados e recriminados, na tentativa de recuperar e ressocializar internos sem uso das técnicas dolorosas que tornavam os casos crônicos, como o confinamento por longo período e o eletrochoque. Eram casos pontuais, sobre os quais raramente se ouvia falar em Salvador. O movimento antimanicomial organizado549, por exemplo, só surgiria no Brasil na década de 1970, após a sua morte, em meio à eclosão de manifestações sociais e sindicais em oposição do regime militar autoritário. Nesta seara, Cosme gozava de certa autonomia de pensamento e ação, possivelmente, porque nunca rompeu, em definitivo, com a proposta de internamento e estrutura vigente na Bahia da época, apesar de manter postura crítica frente às fragilidades do sistema e lutar pela alta médica e reinserção de pacientes na sociedade. Esta tática possibilitou a sustentação 548 O exemplo mais emblemático ocorria no Rio de Janeiro, por iniciativa da psiquiatra Nise da Silveira, que, já nos anos 1930, manifestou-se contra técnicas de tratamento então usuais, como o confinamento em hospitais e o eletrochoque. Ela chegou a ser presa no governo de Getúlio Vargas, sob acusação de subversão. Somente em 1944, foi reintegrada ao serviço público e, diante da recusa em aplicar eletrochoques e mecanismos similares, foi alocada em um setor preterido pelos médicos, a terapia ocupacinal do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. Lá, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional, criou o Museu de Imagens do Inconsciente e inaugurou uma terapia alternativa usando artes, cultura e animais, contrapondo-se aos procedimentos coercitivos e invasivos. Com seu método, revolucionou o tratamento de psicóticos – em geral, internados por longos períodos. Jacileide GUIMARÃES; Toyoko SAEKI. Sobre o tempo da loucura em Nise da Silveira. Ciência & Saúde Coletiva. Vol.12, nº 2. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, mar.-abr. 2007. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S1413-81232007000200029&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 jul. 2010. 549 Como muitos outros movimentos sociais brasileiros, esta iniciativa surgiu no transcurso da abertura do regime militar, em meados dos anos 1970. À época, criavam-se espaços para discussão sobre a área de saúde e fundouse o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que viria criticar o sistema nacional de assistência psiquiátrica e denunciar práticas de tortura, fraudes e corrupção neste setor. Este grupo passou a reivindicar melhores condições de assistência à população (com redução do volume de consultas por turno de trabalho e humanização) e remuneração, além de criticar a cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque. O tema repercutiu na sociedade, sobretudo, a partir de uma greve de oito meses, em 1978, que teve cobertura da mídia. Lígia Helena Hahn LÜCHMANN; Jefferson RODRIGUES. O Movimento Antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Vol.12, nº 2. Rio de Janeiro (RJ): Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, mar.abr. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid =S141381232007000200016&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 jul. 2010. 187 de uma relação de confiança com as instituições prestadoras de serviço nessa área e seus agentes e, também, o trânsito facilitado – e, em determinados períodos, até livre – do benemérito em organizações como o Asylo da Mendicidade e o Hospício São João de Deus. Para tanto, alguns fatores, isolados ou articulados entre si, podem ter interferido a favor. São exemplos o contato frequente com os responsáveis pela administração das unidades, devido à recorrência dos pedidos de abrigo e assistência; o estabelecimento de cooperação mútua fomentada pela concessão de auxílio financeiro e requerimentos para aprovação de subvenções do Estado às entidades; e o status social conquistado por Cosme, inclusive a partir de seu ingresso em instituições beneméritas, como ordens e irmandades. 3.1.2 Defensoria gratuita e irrestrita A eloquência, manifestada na mais tenra idade, conduziu Cosme de Farias à advocacia, uma carreira pouco provável para um mulato nascido no Subúrbio e com parca instrução formal. Sua trajetória no direito começou no ano de 1895, por acaso. Após estágio no comércio ao lado do pai, aos 19 anos, ele assumiu o cargo de repórter do Jornal de Noticias, assumindo a cobertura de eventos policiais e casos judiciais. Devido à atribuição recebida no periódico, passou a frequentar o Fórum, então instalado na Rua da Misericórdia, para apurar fatos relativos à transgressão da lei e dos bons costumes. Lá, em meio à apuração jornalística, teve o primeiro convite para advogar como provisionado. Certo dia, pouco antes do julgamento, Abel do Nascimento, negro e pobre acusado de roubo de 500 mil réis, achava-se sem defensor. Preocupado com a situação, o juiz Vicente Tourinho questionou à plateia se alguém poderia alegar pelo réu desamparado. Mesmo inexperiente e sem qualquer formação jurídica, o jovem repórter550, tocado pelo silêncio da audi550 Com a licença literária facultada aos ficcionistas, o escritor Jorge Amado substitui os nomes das personagens e o tipo de crime cometido pelo réu, mas conta, em Tenda dos Milagres, como teria sido aquele júri. Em um primeiro julgamento, o advogado nomeado para o caso, preocupado com a traição da mulher, mais ajudou a promotoria que defendeu Zé da Inácia, homem acusado do assassinato de Afonso da Conceição, enquanto assediava sua esposa, chamada de Caçula. Destituído do posto, o advogado foi substituído por Damião de Souza (personagem inspirada em Cosme de Farias) no julgamento da apelação formulada após condenação do réu a pena máxima. Após pífia exposição do promotor, o jovem Damião tornou-se uma sensação, emocionou a plateia e os jurados, rotulando a vítima de “Boca Suja” e lhe atribuindo comportamento desajustado, e alegando que o réu agiu para salvar a honra do seu lar e a própria vida. Por unanimidade, o Conselho de Sentença absolveu Zé e o juiz Santos Cruz, na leitura da decisão, anunciou a concessão da carta de rábula ao defensor, a fim de que nunca faltasse defesa aos pobres. “Assim se deu a formatura de Damião. Formatura em anel de grau, sem canudo de 188 ência, aceitou o desafio. Sequer conhecia os autos do processo e a íntegra da legislação penal. Então, em meio à argumentação, comparou o tratamento dado no Brasil ao negro ladrão e aos criminosos de “colarinho branco” e citou uma oração atribuída ao padre Antônio Vieira551 (“Nesta terra, quem rouba pouco é ladrão; quem rouba muito é barão!”). Pela exposição, asseverou a liberdade para Abel e o direito de atuar como rábula para si552. A carta emitida pelo juiz trazia, imbricada, a responsabilidade da defesa de acusados de crimes abandonados à própria sorte, sem advogado, na medida em que a Defensoria Pública do Estado só seria constituída como órgão após a Constituição Federal de 1988 e eram escassas as pessoas habilitadas e desejosas de prestar tal serviço ex oficio. O título, embora não proporcionasse o status no mesmo âmbito daquele conferido aos raros bacharéis de direito, possibilitava ao portador alguma distinção em relação à população em geral, por resultar de clara demonstração de conhecimento e/ou astúcia e poder de convencimento. Portanto, dava ao novo rábula maior chance de mobilidade na sociedade da época. A carreira consolidou-se nos anos subsequentes. Em 73 anos de trabalho na área judicial, o jornalista interveio em mais de 30 mil processos penais ou cíveis, a maior quantidade na defesa553. Teria atuado até no leito de morte554. Parte das cerca de 30 súplicas diárias advinham de mães, pais, mulheres, irmãos, filhos aflitos, em decorrência da prisão de um ente querido. A partir da análise do conteúdo de 45 petições de habeas corpus impetradas por Cosme e localizadas no acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)555, pôde-se caracterizar o perfil da sua clientela: os réus eram de Salvador e do interior (de municípios como Candeias, Vitória da Conquista, Itaparica, Correntina, Nilo Peçanha, Jaguaquara), predominantemente do sexo masculino, negro ou mestiço, inclusive internos de manicômios, detidos em cadeias ou até foragidos da justiça. Os processos indicam, sobretudo, a defesa de doutor, sem quadro, em retrato de beca, sem baile, sem paraninfo, sem colegas, ele só e único”, escreve Amado. Jorge AMADO Tenda dos Milagres. Op. cit. p. 202-205. 551 Nesta pesquisa, não se conseguiu confirmar a autoria dessa oração. 552 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 21 de outubro de 1972; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 124, 126. 553 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. Ibid. p.124, 126. 554 TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 21 de outubro de 1972. 555 Para essa análise, foram identificados e consultados todos os 25 processos catalogados no sistema do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) com o nome de Cosme de Farias como impetrante, além de outros 20 escolhidos aleatoriamente, em estantes da Seção Judiciária, nas quais permaneciam petições de habeas corpus encaminhados em períodos de exceção, do Estado Novo e do estado autoritário implantado após golpe civil-militar de 1964. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 219, caixa 128, documentos 27, 55, 54, 53, 39, 02, 42, 28, 10, 08, 09, 01; estante 40, caixa 1440, documentos 02, 03, 06, 13, 14, 20, 24, 01, 22; estante 40, caixa 1441, documentos 04, 05, 06, 07; estante 216, caixa 15, documentos 14, 12, 07, 19, 18, 33, 30, 24; estante 93, caixa 14, documentos 10, 07, 06, 21, 20, 17, 26, 30, 23, 31, 15, 14. 189 acusados de autoria de crimes diversos, a exemplo de agressão com ferimentos leves ou graves, homicídio, sedução e estupro, além da mediação em casos cíveis. A maioria buscava auxílio pessoalmente, mas, vez por outra, surgiam correspondências remetidas por parentes de réus ou pelos próprios acusados com solicitações de ajuda. Em junho de 1943, Barbelino Prates da Luz556 pediu providência para sair do “inferno”, o Hospital Juliano Moreira. O rapaz estava preso desde dezembro de 1939 e, em junho de 1941, havia sido recolhido no Juliano Moreira como psicótico, por ter lesionado um homem, em Itabuna, no sul da Bahia. Acabou recebendo habeas corpus, no terceiro pedido. Quando o cliente morava fora da capital, Cosme pedia a descrição do caso por escrito e obtinha resposta557. Entre os pedintes, a maioria era originária dos estratos mais baixos da sociedade e não tinha como arcar com os custos de um advogado, porém chegavam, também, requisições de sujeitos com renda familiar suficiente para contratação de defensor, mas que escolhiam o rábula pela confiança na sua destreza. Portanto, ele atendia a qualquer pessoa, independentemente da natureza da demanda, da situação financeira, dos prejuízos causados à sociedade e do risco que representassem em convívio social; e cobrava apenas de quem podia desembolsar pelo serviço, a fim de reverter o dinheiro auferido em outras ações sociais. Cosme pautava-se pelo direito de defesa do réu, mesmo que isso lhe custasse animosidade entre seus pares e até políticos. Fez a defesa do sergipano Manoel Virgílio da Silva, um dos acusados de causar lesões corporais ao redator do jornal A Tarde, Wenceslau de Souza Galo558, seu colega de ofício e confrade na Associação Bahiana de Imprensa (ABI), provocando protesto até da entidade559. 556 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 40, caixa 1440. Documento 06, ano 1943, Salvador. 557 Um exemplo é um caso de São Sebastião do Passe. Ver processo em Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 93, caixa 14. Documento 26, ano 1965, São Sebastião do Passé. 558 Junto com José Pedro, conhecido como Piloto, Manoel Virgílio da Silva teria tentado assassinar o jornalista nas proximidades de sua casa, na Rua do Gravatá, em Salvador (BA), em 1934, dias depois de um atentado contra o proprietário do vespertino e seu irmão, Ernesto Simões Filho e Antônio Simões. O trio agiu munido de soqueira, punhal e revólver, provocando ferimentos na vítima até que populares intercederam. Enquanto Piloto evadiu para local desconhecido, Manoel foi preso em flagrante pela polícia e, nesse momento, atacado por João Zenon da Fonseca Filho, que passou a responder pelo ato. Tentativas de habeas corpus não lograram êxito. Ao final de todo o processo, inclusive de apelação, o sergipano foi condenado a três anos e três meses de prisão. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Lesões Corporais. Estante 34; caixa 1199. Documento 2, ano 1935, Salvador. 559 Noticiado na capital como tentativa de homicídio, o caso repercutiu e a defesa de Cosme de Farias gerou indignação de Wenceslau de Souza Galo e outros jornalistas, inclusive com registro em ata da Associação Bahiana de Imprensa. Considerava-se uma afronta o agressor (Manoel Virgílio da Silva) ter encontrado guarida de um colega de profissão do convívio da vítima. Em ata, a entidade notificou que o redator fora agredido a socos e golpes de punhal, por quatro pessoas, nas imediações do local onde morava. Dias depois, em reunião da diretoria da casa, Cosme explicou sua posição, dizendo que aceitou defender um dos agressores por motivos humanitários 190 A reação ao pleito da clientela variava de acordo com as motivações e nuances de cada caso. A depender da demanda, ele fazia diligências em delegacias e na Secretaria de Segurança Pública; encaminhava petições de habeas corpus para soltar presos ou para transferilos de acomodação, visando sua integridade; ou rumava ao Fórum da Misericórdia (e, depois, do Largo da Palma e Rui Barbosa). Em julgamentos ou recursos peticionados, reclamava a absolvição e, por vezes – principalmente, até as primeiras décadas do século XX –, se constatada a gravidade e barbaridade do crime, o recolhimento em hospital psiquiátrico, por compreender a maldade como explicitação da loucura560. Também, requeria a libertação de réus absolvidos pela justiça e mantidos reclusos indevidamente, seja na penitenciária, na Casa de Custódia ou em manicômios, como visto anteriormente. Para José Francisco Pires561, o capoeira Três Pedaços, ele reclamou a soltura, meses após a absolvição no processo de lesão a cabeça do espanhol José Raymundo Santos, após desavença no bar em que a vítima trabalhava, na Rua das Flores. Apesar de arrolado em, pelo menos, outros quatro processos criminais (um por furto e três por lesões) e cultivar a fama de desordeiro e faquista perigoso e de três testemunhas confirmarem a autoria do crime contra o migrante, o réu foi considerado inocente. A decisão do juiz pautou-se no resultado do exame de corpo de delito, em que peritos negaram a existência de ferimento. A partir da observação de 45 petições de habeas corpus localizadas no acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)562 nesta pesquisa, pode-se afirmar que ele tanto atuava em processos com tramitação em primeira instância quanto recorria das decisões desse âmbito, formulando recursos para reverter as disposições desfavoráveis junto a instâncias mais altas da justiça. Era persistente, não desistia facilmente. Por vezes, não se rendia a um indeferimento. Em caso de habeas corpus, por exemplo, após ter um pedido negado, fazia novas solicitações, na tentativa de proporcionar a liberdade ao seu cliente. As petições reproduziam algumas fórmulas. Quase sempre evocavam bondade e juse que, portanto, nada tinha contra Galo. Até então, nenhum defensor havia reclamado em favor de Manoel. Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit. p. 31. 560 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1972. 561 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 39; caixa 14-2. Documento 3, ano 1927, Salvador. 562 Para essa análise, foram analisados todos os 25 processos catalogados no sistema do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) com o nome de Cosme de Farias como impetrante, além de outros 20 escolhidos aleatoriamente, em estantes da Seção Judiciária, nas quais permaneciam petições de habeas corpus encaminhados em períodos de exceção, do Estado Novo e do estado autoritário implantado após golpe civil-militar de 1964. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Estante 219, caixa 128, documentos 27, 55, 54, 53, 39, 02, 42, 28, 10, 08, 09, 01; estante 40, caixa 1440, documentos 02, 03, 06, 13, 14, 20, 24, 01, 22; estante 40, caixa 1441, documentos 04, 05, 06, 07; estante 216, caixa 15, documentos 14, 12, 07, 19, 18, 33, 30, 24; estante 93, caixa 14, documentos 10, 07, 06, 21, 20, 17, 26, 30, 23, 31, 15, 14. 191 tiça e eram encerradas com pedido de isenção das taxas de selos, sob alegação de falta de verba dos arrolados para arcar com tais despesas, mesmo quando o réu tinha posses563. Nem sempre suscitavam a lei mais adequada para a caracterização dos crimes e indicação das penalidades aplicáveis àqueles casos, por tática – como é comum entre os profissionais desta área –, erro crasso de interpretação ou desconhecimento da legislação. Em geral, preteria a comum citação à lei. Muitos documentos eram redigidos, a mão, pelo próprio rábula. Outros, pela diferença entre as caligrafias do texto e da assinatura, devem ter sido escritos por terceiros e corrigidos, a punho, por ele. Por vezes, tinham anexados telegramas, bilhetes e cartas dos acusados ao advogado, com detalhes do episódio e processo. Em certas oportunidades, as petições apresentavam falhas de informação, posteriormente reveladas pelo pretor na sentença ou por policiais. Um dos exemplos é a solicitação de habeas corpus para um acusado de furto em Salvador564, sob argumento de que o rapaz estava recluso há meses sem julgamento, um dia após o réu ter acabado de cumprir a sentença de três anos de reclusão reduzida para dois terços disso. Tal iniciativa pode revelar desinformação ou um lapso de tempo entre o pedido de intervenção do réu e/ou parentes e o encaminhamento da rogativa tão grande que a pena expirou, devido à sobrecarga de atividades, por desleixo ou por esquecimento. Outro caso trazia a afirmação categórica, em tom de crítica à lentidão e ao disparate na condução do processo, de que sequer havia sido formulada formalmente a culpa contra o réu565, apesar de preso por longo período, quando o procedimento já tinha ocorrido. Nesse caso, o que aparentemente seria uma falha podia ser um recurso persuasivo, ou seja, um exagero para maior sensibilização das autoridades judiciais ou policiais e, por conseguinte, acelerar a tramitação. O rábula atuava como titular ou servia como auxiliar de advogados conhecidos566, inclusive sem ler os autos e sem sequer conhecer o réu. Se alguém lhe solicitasse intervenção ou ele percebesse a necessidade de atuação, Cosme ingressava no julgamento e recorria a um arsenal retórico, constituído desde a época da conquista do direito de advogar, visando atenuar 563 Em um dos processos do acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia, por exemplo, o réu tinha posses no Conde (Bahia), era fazendeiro, mas teve pedido de abono das custas por Cosme de Farias. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 219; caixa 128. Documento 10, ano 1948, Conde. 564 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 216; caixa 15. Documento 7, ano 1962, Salvador. 565 Como ocorreu em um dos processos do acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia consultados nessa pesquisa. Ver Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 93; caixa 13. Documento 23, ano 1964, Salvador. 566 Luciana BARRETO. Júri do Povo. Correio Repórter/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 16 mar. 2004. 192 a falta de informações sobre o acusado, a vítima e os fatos. Utilizava, então, um repertório com poesias, trechos dos sermões do padre Antônio Vieira e de textos de intelectuais diversos – e não, doutrinas do direito. Concebia sua argumentação, nestes casos, a partir da manifestação do promotor e/ou advogado de acusação e dos demais defensores. Astuto, mordaz e ágil contra os adversários, o advogado provisionado preferia recursos da retórica, em detrimento da lógica e da razão jurídicas. Assim sendo, em suas defesas, ele procurava desviar a atenção da gravidade do caso; minimizava a culpa do réu e o crime; fazia apelo emocional aos júris e juiz para sensibilizá-los a favor do acusado; e, também, desconcertava e surpreendia os promotores e advogados de acusação. Ora aplicava os artifícios isoladamente, ora combinados entre si. Entre as táticas567, destacam-se a redução do impacto de atos brutais sobre a consciência do magistrado e/ou do corpo de júri com artifícios da linguagem, como o diminutivo568; a tentativa de emocionar e sensibilizar os interlocutores (inclusive provocando o choro da plateia, dos jurados e dos operadores do direito), vitimizando o acusado com o realce de desigualdades sociais comuns no País e atribuição do crime a causas externas569 e de doenças (sobretudo, psiquiátricas570), entre outros artifícios; e abordagem do episódio penal de forma estapafúrdia, como se fosse pilhéria, destituindo o tom formal de eventos judiciais e desfocando o juiz e/ou dos jurados do cerne da questão em julgamento571. 567 Mário CABRAL. A Bahia de Luto. A Tarde. Salvador: A Tarde, 16 mar. 1972; Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit.; Samuel CELESTINO. Uma Crise, o Telefone e o Jornalista Cosme. A Tarde. Salvador (BA): A Tarde, 5 jul. 2003; Edson O’DWYER. Advogados Criminais. Salvador (BA): [s.e], 2004. Disponível em: <http://ool.adv.br/pdfs/advogados_criminais.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2004; Andréia SANTANA. Verbos da Justiça. Correio Repórter/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 2004. Disponível em: <http://www.correiodabahia.com.br/2004/09/30/noticia.asp?link=not000098979.xml>. Acesso em: 30 set.2004. 568 Em artigo de caráter memorialístico, o advogado Edson O’Dwyer lembra dois desses julgamentos. No primeiro, após pronunciamento da acusação, Cosme de Farias teria dito: “Srs. jurados, o promotor, que gosta muito de exagerar, falou todo o tempo em facão, facão, facão. Mas ele não entende nada de facão. Ele é um homem da cidade que nunca pegou num facão. Esse facão de que fala, não passa de um facãozinho!”. No segundo, retrucou: “Meu cliente está acusado de ter dado quatro tiros na vítima. Foram quatro, sim. Mas não foram tiros (e dava ênfase especial em tirooooos) foram quatro tiros, com um revolverzinho”. Edson O’DWYER. Advogados Criminais. Op. cit. 569 No julgamento de estreia, por exemplo, alegou que Abel do Nascimento teria roubado porque “a falta de oportunidades na vida o conduzira ao crime”. E, mais tarde, para atenuar os efeitos causados por uma confissão de homicídio, teria argumentado que “O homem não matou ninguém porque só quem tira a vida é Deus”. José CASTELO BRANCO. Entrevista concedida para reportagem da autora desta tese, publicada no jornal Correio da Bahia em outubro de 2001 e reeditada em março de 2002. Ver Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. 570 Há inúmeros exemplos, entre os quais, o do capoeirista Pedro Celestino dos Santos, o Pedro Porreta, acusado de lesão corporal por espancamento da concubina Josepha Alves de Araújo. Alegação: “perturbação de sentido e inteligência”, associada ao alcoolismo e à epilepsia. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Estante 210; caixa 220. Documento 1. 571 Um exemplo ilustrativo disso foi apresentado por Sebastião Nery: “Um ladrão entrou na Igreja do Senhor do Bonfim e roubou as esmolas que o povo joga lá dentro. Cosme de Farias foi para o júri: - Senhores jurados, não houve crime. Houve foi um milagre. Senhor do Bonfim, que não precisa de dinheiro, é que ficou com pena da 193 O rábula, também, provocava o constrangimento dos jurados e do juiz, para pressioná-los a decidir a favor do réu572, e do promotor e do advogado de acusação, para emudecêlos e possibilitar a preponderância da sua argumentação, visando asseverar a absolvição ou, pelo menos, a redução da pena. Neste sentido, tecia elogio explícito e em público ao alvo ou crítica a injustiças e erros diversos (no trato com a língua portuguesa, de postura, de interpretação da lei etc.)573, cometidas por operadores do direito, inclusive com uso da ironia 574. Em episódios de crimes de honra e costumes graves, ele, em geral, evocava princípios morais e subjugava a mulher na sua relação com o sexo oposto, presumindo como obrigações a obediência ao pai e ao marido, a execução de tarefas domésticas, o cuidado com a família e a circulação restrita ao espaço da própria residência575. Também, buscava defender o miséria dele, com mulher e filhos em casa com fome e lhe deu o dinheiro, dizendo assim: - ‘Meu filho, este dinheiro não é meu. Eu não preciso de dinheiro. Este dinheiro foi o povo que trouxe. É do povo com fome. Pode levar o dinheiro’. E ele levou. Que crime ele cometeu? Se houve um criminoso, o criminoso é Senhor do Bonfim que distribuiu o dinheiro da Igreja. Então vão pegá-lo agora lá e o ponham aqui no banco dos réus. E ainda tem mais. Senhor do Bonfim é Deus, não é? Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro, tinha impedido. Se não impediu, é porque deixou. Se deixou, não há crime.O réu foi absolvido”. Sebastião NERY. Folclore Político: 1950 histórias. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 313. 572 Já na estreia defendeu um réu acusado de roubo, Abel do Nascimento, comparando o tratamento conferido a ele e a criminosos de “colarinho branco” e manifestando-se temeroso quanto a uma possível injustiça contra seu cliente. Certa feita, ainda na primeira metade do século XX, inconformado com “a injustiça que estavam cometendo contra o réu”, ele levantou-se da plateia e aproximou-se do juiz e dos jurados, gesticulando como se procurasse um objeto perdido pelo chão. Andava, esquadrinhava o Tribunal como se tivesse perdido algo, no decurso do julgamento da procedência de uma acusação. Intrigado, o magistrado questionou ao advogado o que ocorria. A resposta veio apronto: “A Justiça, meu senhor, que nesta casa anda escondida”. Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p. 10. 573 Em um julgamento, Cosme de Farias teria interrompido o eloquente promotor Joaquim José de Almeida Gouveia, famoso por impressionar a audiência com a leitura de citações doutrinárias: “Permite, Vossa Excelência, que eu também ofereça aos jurados uma citação?”. Com o aparte consentido pelo juiz, leu (ou fingiu ler) um trecho de um livro favorável ao réu. Inquirido quanto a autoria do texto, respondeu: “Ninguini”, com disfarçado sotaque italiano. Em outra vez, insistentemente chamado por Cosme de “José Joaquim de Almeida Gouveia”, este mesmo promotor corrigiu: “Jornalista, eu já lhe disse que meu nome é Joaquim José tal, como o alferes”. Com rapidez, foi retrucado pelo rábula com certo sarcasmo: “Que ironia do destino! Tiradentes morreu na forca, lutando pela liberdade, e Vossa Excelência continua vivo, lutando contra ela”. Andréia SANTANA. Verbos da Justiça. Op. cit. 574 Joaquim José de Almeida Gouveia, ainda, teria protagonizado outro episódio que evidencia uma das formas do rábula emudecer seus adversários e, por conseguinte, anulá-los enquanto acusação. Conta o jornalista Sebastião Nery: “No Tribunal do Júri, o promotor Joaquim de Almeida Gouveia, famoso por sua dureza, terminava uma acusação: - Agora, vocês vão ouvir as razões da defesa, na palavra de Cosme de Farias, o campeão das absolvições. Pois eu me honro de ser o campeão das condenações. E sentou-se. Cosme de Farias ficou também sentado, calado. O promotor o provocou: - V. Exa. está triste, jornalista Cosme? Já está sentindo o amargor da derrota? Não, doutor promotor. Estou triste mas é de pena de V. Exa., de seu sofrimento, indo todas as noites para casa carregando nas costas tantos anos de condenações. E mais triste ainda por saber que as varizes de V. Exa. são essas condenações que estão explodindo para fora de seu corpo. O réu foi absolvido”. NERY, Sebastião. Folclore Político: 1950 histórias. Op. cit. p. 313. 575 Um exemplo é a defesa ao capoeirista Pedro Celestino dos Santos, o Pedro Porreta, acusado de lesão corporal por espancamento da concubina Josepha Alves de Araújo, porque ela não lavou sua roupa nem providenciou a refeição e, ao invés disso, foi beber em um armazém na Rua da Assembléa, nas imediações da Sé. Conhecido na cidade pela valentia, o capoeira foi preso em flagrante e confessou o crime, mas conseguiu a absolvição, sob o argumento de que ele não tinha a intenção de ferir a amásia e sofria de “perturbação de sentido e inteligência”, possivelmente associada ao alcoolismo e à epilepsia. A vítima, atendida na Assistência Pública, passou à condi- 194 réu descaracterizando a sedução, o defloramento e o estupro (inclusive, quando presumido pela legislação, se envolvesse prática sexual com menor de 16 anos), por meio da desqualificação da argumentação da acusação calcada na menoridade, na miserabilidade e/ou na indução da vítima ao sexo através, por exemplo, da promessa de casamento 576. Por vezes, as táticas do rábula surtiam efeito. Em outras, não. O êxito dependia, inclusive, dos parâmetros morais empregados para a interpretação dos fatos. Contudo, há indícios de que ele enxergava a mulher como um sujeito inferior ao homem, como recorrente na sociedade de outrora; e imputava-lhe certa responsabilidade pela ocorrência do crime sexual, retirando-a da condição de vítima e colocando-a na posição de co-responsável (quiçá, culpada), a fim de salvaguardar a liberdade do réu, a despeito da gravidade do delito cometido e do risco que pudesse oferecer à sociedade. Os exemplos dessa natureza eclodem tanto em periódicos quanto em depoimentos e na bibliografia com menções a Cosme de Farias. De tão comuns e inusitados, situações nunca vividas pelo advogado passaram a ser atribuídas a ele577. Parece consenso, contudo, a caracteção co-responsável, senão de única responsável, pelos ferimentos, na medida em que fora acusada de fuga do papel a ela imputado e insulto aos ânimos de um homem doente. Na defesa, Cosme de Farias, também, enalteceu o juiz. O processo penal do capoeirista evidencia, ainda, outro instrumento empregado pelo rábula ao longo da carreira: a vitimização do réu. Neste caso, por meio da negação de que estivesse com pleno controle sobre suas faculdades mentais no momento do crime e da acusação de quem teve sua integridade violada graças à omissão do Estado e da própria sociedade e, por conseguinte, foi impelido ao crime. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Estante 210; caixa 220. Documento 1. 576 Assim ocorreu com Euclides Iglesias Dias, acusado em 1939 de estupro de uma garota com 14 anos de idade, paupérrima, mediante a jura de matrimônio. Em pedidos de habeas corpus preventivo de 1939 e 1942, o rábula alegou não estar comprovada a idade da menina nem o “elemento moral”, ou seja, a ilação ao sexo através do compromisso de núpcias. Á época, qualquer prática dessa natureza com menor de 16 anos era considerado estupro, passível de condenação, e os pleitos formulados por ele foram negados por terem sido atestadas a menoridade e a situação de miséria da adolescente. Outro episódio emblemático quanto ao trato de Cosme com a mulher vítima de crimes de honra e costumes, registrado pelo jornalista Sebastião Nery, suscita a conivência da vítima através da manipulação do órgão sexual masculino (“o ceguinho”): “Era do tempo em que os crimes contra a honra e os costumes eram julgados no Tribunal do Júri. O réu foi acusado de estupro. Na acusação, o promotor descreveu: - O Réu, com as duas mãos, segurou pelos ombros a vítima já caída, impossibilitando qualquer reação, e deflorou-a. Cosme de Farias perguntou apenas: - Epa, quem guiou o ceguinho? O réu foi absolvido”. Tanto no processo contra Euclides Iglesias Dias quanto naquele caso estão evidentes a tentativa de atenuar a culpabilidade do réu, baseado em uma pretensa conivência da vítima. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 40, caixa 1440. Documento 24, ano 1940, Salvador; estante 40, caixa 1441. Documento 05, ano 1942, Salvador; Sebastião NERY. Folclore Político: 1950 histórias. Op. cit. p.312. 577 Um exemplo é o episódio em que Cosme de Farias teria desbancado o famoso autor de clássicos do direito Caio Monteiro de Barros, no julgamento do estivador Agdo Eleotério, acusado pelo homicídio de João da Conceição Costa. O crime abalou a cidade, na primeira metade do século XX, quando havia intensa disputa por poder nas docas entre grupos vinculados aos interesses dos exportadores de cacau e ao advogado Agripino Nazareth, um dos precursores socialistas no Estado. O conflito culminou com o assassinato: Agdo matou o filho de um dos seus opositores, o Adão. O homicida teria sido representado na justiça por Cosme de Farias, enquanto a promotoria era auxiliada por um dos maiores penalistas do país, Monteiro de Barros, trazido de São Paulo para Salvador por exportadores, em sinal de apreço a Adão e seu grupo. Estudantes, bacharéis, profissionais de diversas áreas teriam lotado o Fórum da Misericórdia para acompanhar o julgamento. Solitário, o rábula mal sabia as nuances do crime. Envaidecido, Monteiro de Barros teria ido à tribuna e começado sua oração com algo como 195 rização das táticas argumentativas do jornalista: eivada de apelo emocional e escassa de alegação racional e citação à legislação vigente. Em memórias publicadas em meio à comoção pela morte do colega, o advogado Mário Cabral578, um dos seus contemporâneos, comenta o desempenho do rábula: [Ele] agigantava-se na tribuna com o argumento do bom senso, com a dialética da rotina e do cotidiano, com uma pitoresca oralidade popular que logo o identificava com a massa dos assistentes e, principalmente, com o conselho de jurados. E tudo isso ele misturava a ironia, a anedota, o detalhe peculiar, o aparte xistoso e contundente que ia atingir o adversário no seu ponto mais vulnerável, confundindo-o, deixando-o atônito e muita vez sem saber prosseguir. Em depoimento concedido em sessão especial da Câmara Municipal, o advogado João de Melo Cruz, que também dividiu a tribuna com Cosme, reiterou a análise do colega de profissão 579: Cosme de Farias era um homem de poucas letras - e quase nenhuma delas jurídicas -, que não poderia valer-se da dogmática e da jurisprudência, que é o saber sedimentado pelos tribunais superiores. [...] Incapacitado para elaborar arrazoados que os processos exigem do profissional técnico, a atuação do Jornalista no foro da Bahia deu-se marcantemente através da impetração de habeas corpus, o chamado remédio heróico, para livrar os pacientes de prisões ilegais e que as constituições sempre reservaram a qualquer do povo a faculdade de requerer. Também sua atuação completava-se no tribunal do júri, que, por ser um tribunal popular, o cidadão jurado é concitado a examinar a causa com imparcialidade e a proferir a sua decisão de acordo com a sua consciência e os ditames da justiça. Reconhecido pelas suas virtudes e abnegação, Cosme de Farias, que atuou muitas vezes sozinho, premido pela circunstância de quem não se dispusesse de fazer o patrocínio da defesa, [...] era também constantemente convidado a participar de julgamentos patrocinados pelos grandes tribunos do júri da Bahia, quando o foro ainda era na Misericórdia e [...] também no Convento da Palma. Então, Edgar Matta, Carlito Onofre, Arnaldo da Silveira, Rui Penalva, Dorival Passos, professor e querido mestre Raul Chaves valiam-se todos do carisma de Cosme para respaldar suas defesas. “Sr. juiz, Srs. jurados, quem supor que o direito...”, sendo interrompido pelo baiano. Cosme disse: “É por isso que eu presido a Liga Bahiana contra o Analfabetismo. Supuser, doutor; o verbo é irregular. O senhor não sabe português, quanto mais direito. [...] Quando o senhor souber que Ivo viu a uva e que A bola é de Lili, volte para conversar comigo” e lhe entregou uma Carta do ABC ao oponente. Envergonhado, o penalista teria se calado, possibilitando a sentença favorável a Agdo. O advogado de defesa, entretanto, foi Bernardino Madureira de Pinho, famoso criminalista baiano, conforme documentação da época. Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. 578 Mário CABRAL. A Bahia de Luto. Op. cit. 579 João de Melo CRUZ. Sessão especial na Câmara de Vereadores de Salvador em homenagem a Cosme de Farias pela passagem dos seus 30 anos de morte, requerida pelo vereador Gilberto Cotrim e bancada do Partido dos Trabalhadores. Salvador (BA), 15 mar. 2002. (Fita-cassete). 196 Tais esquemas táticos empregados, no âmbito policial e judicial, por Cosme de Farias podem ser tanto uma evidência da sua personalidade – centrada em elementos morais (a mulher tem como função servir à família e ao marido etc.) e religiosos (compaixão etc.) e em sentimentos humanitários (ampla e irrestrita defesa da liberdade humana etc.) – quanto consequências da falta de formação formal específica para o exercício da advocacia, embora a vivência nesse meio, de certo, tenha lhe proporcionado aprendizado acerca dos trâmites e das determinações das leis em vigor. Esses mecanismos eram recorrentes, também, em casos de alta complexidade. Os réus do homicídio do coronel Horácio de Matos e da tentativa de assassinato do governador da Bahia entre 1904 e 1908, José Marcelino de Sousa; capangas capoeiristas do líder J. J. Seabra e seus correligionários; a cangaceira Dada (Sérgia Ribeiro da Silva), do bando de Lampião; e Theodomiro Romeiro dos Santos, primeiro condenado à pena de morte no Brasil no período republicano; têm em comum serem representados perante à justiça por Cosme de Farias, a despeito de seus casos apresentarem alto grau de complexidade, seja pelo alvoroço desencadeado em diferentes fases da história baiana, seja pela gravidade dos atos e pelo lugar político e social das personagens envolvidas. Por vezes, outros advogados declinaram da possibilidade de defesa. Inúmeros desses trabalhos tinham ou ganharam contorno político. A documentação traz indícios de que os primeiros datam do início do século XX, ainda na Primeira República. Cosme representou em júri, por exemplo, José da Circuncisão da Silva, denunciado por atentado a tiros contra a vida do então governador José Marcelino de Sousa580, ocorrido em 13 de outubro de 1905581. Alheio às desavenças políticas e as consequências que elas poderiam ter, 580 José Marcelino de Sousa tomou posse sob clima tenso, em meio à repressão a manifestantes severinistas, mas conseguiu manter-se no governo do Estado da Bahia entre 1904-1908. Conforme a acordo pré-eleitoral, ele procurou fortalecer o antecessor, Severino Vieira; apoiou sua indicação para a presidência do Partido Republicano da Bahia (a legenda oficial); e atuou pela sua eleição para o Senado Federal. O trabalho, contudo, enfraqueceu José Joaquim Seabra na Bahia, gerando insatisfação desse líder e dos seabristas. Em 1907, após rompimento de Vieira com Marcelino, Seabra voltou a aproximar-se deste segundo. Mais tarde, os dois se afastaram de novo e cada um apoiou um candidato na campanha à Presidência da República. Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 314-334. 581 A bordo do vapor Maurício Wanderley, Marcelino foi alvejado com dois tiros – um no crânio e outro no abdômen – por outro passageiro, quando o navio atracava em Salvador (BA), vindo de Nazareth, no Recôncavo. O governador só teria sobrevivido porque o ataque foi a longa distância. Preso em flagrante, José da Circuncisão confessou o crime, porém, de início, disse que agiu em vingança pela perseguição sofrida por sua família e, depois, que atuou sob pressão do farmacêutico Clemente Tanajura Guimarães e do proprietário da casa e da roça onde vivia, Adolpho Tavares, que lhe ofereceram recompensa financeira e garantia de impunidade, além de ameaçá-lo de morte, para que ele cometesse o crime. Apurou-se que, também, desejariam este homicídio o conselheiro Luiz Vianna, então ex-presidente da Bahia (1896-1900), e o administrador de uma de suas fazendas, Adolpho Felisberto Pires de Aragão. Em recesso político e irritado com Marcelino por este fortalecer seu desafe- 197 ele manteve-se íntegro ao compromisso de atuar em prol de réus carentes sem defensores e assumiu a causa. Sagrou-se vitorioso neste caso, argumentando que o réu era vítima do contexto e havia sido manipulado por líderes políticos da época582. Outras ações com indubitável potencial para geração de crises políticas envolviam políticos como o líder democrata, José Joaquim Seabra. Capangas e aliados políticos de Seabra, capoeiras de Salvador (Pedro Porreta, Samuel da Calçada, Chico Três Pedaços, entre outros)583 compunham um dos grupos defendidos pelo rábula, em especial, nas primeiras décadas do período republicano584. Protegidos pelas autoridades as quais prestavam serviços, inclusive ao chefe de polícia do primeiro governo seabrista, José Álvaro Cova, eles ameaçavam a ordem pública, causavam transtornos nas ruas, envolviam-se em agressões e homicídios, a fim de fazer valer as determinações dos seus “chefes” e contribuir para eleição deles. Um dos golpes usuais eram as cabeçadas, muitas vezes mortais, mas havia emprego de armas como to pessoal e inimigo político, Severino Vieira, Vianna teria incentivado a ação e assegurado impunidade ao réu, mas se livrou das acusações por falta de provas. Dias antes do ataque, o governador havia sido informado da trama, mas teria negligenciado. Diante da gravidade do ato e da representatividade da vítima, o episódio provocou indignação de grande parcela da população. Possivelmente, temendo rechaça e uma derrota no tribunal, nenhum advogado quis representar José da Circuncisão perante a justiça. Comovido com a situação e alheio à possível reação popular e dos políticos da época, Cosme apresentou-se, voluntariamente, para a defesa e montou sua tática para conter os ânimos e evitar, em juízo, a punição do réu, desqualificando as motivações apresentadas pela acusação. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Apelação e Revista. Série: Tentativa de homicídio. Estante 39; caixa 1379. Documento 1, ano 1905, Salvador; A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972; MEMORIAL DOS GOVERNADORES. In: Fundação Pedro Calmon (site oficial). Salvador: Centro de Memória da Bahia, Arquivo Público do Estado da Bahia da Fundação Pedro Calmon, 2010. Disponível em: <http://www.fpc.ba.gov.br/arquivo_cmemo_memgovs_governadores_08.asp?arquivo_cmemo_memgovs=1&arq uivo_cmemo_memgovs_governadores=1>. Acesso em: 18 jan. 2010; Sebastião NERY. Pais e Padrastos da Pátria. Recife: Editora Guararapes, 1980, p.18; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 314-334. 582 O próprio rábula relatou os fatos ao jornalista Sebastião Nery: “Todo mundo dizia que o homem seria condenado. Na hora do júri, escandalizei a Bahia. Provei que aquele homem não tinha motivo nenhum para querer matar o governador, que ele nunca tinha visto antes. O homem tinha sido instrumento de outros chefes políticos que queriam, com a morte do governador, ocupar seu lugar no Estado. E eu citei os nomes dos chefões que tinham mandado Circuncisão matar José Marcelino. Foi um escândalo e o homem foi absolvido por unanimidade”. Sebastião NERY. Pais e Padrastos da Pátria. Op. cit. p. 185. 583 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edições de 14, 20 e 21 de janeiro de 1915, 24 de março de 1915; Josivaldo Pires de OLIVEIRA. Pelas Ruas da Bahia. Op. Cit. p. 83-108. 584 Em um desses casos, Cosme de Farias fez a defesa de Sebastião Pereira de Almeida, o Bastião, e de Conrado José dos Santos, réus em processo judicial para apurar a responsabilidade pelas mortes de dois marinheiros do caça-torpedo Piauhy e do capoeira “secreta” do chefe de polícia e carregador de mercadorias, Pedro Mineiro, em 1914, na Rua Saldanha da Gama, nas proximidades da Sé. O primeiro, indiciado por homicídios, e o segundo, por participação no conflito, tiveram liberdade deferida, apesar dos desdobramentos do evento. O crime desencadeou uma crise política na Bahia, por ter o governador Seabra omitido o episódio, em seu balanço anual remetido ao legislativo, possivelmente para preservar a dupla de réus, e intervenção do governo central, culminando com a solicitação do presidente da República, Wenceslau Braz (1914-1918), para adoção de providências pelo governador para apuração da responsabilidade pelos assassinatos. Sob pressão política e acusação da imprensa de envolvimento no caso – e até ser o mandante da ação –, o chefe de polícia pediu exoneração do cargo em uma tentativa de conter a repercussão negativa do triplo homicídio, mas teve a solicitação indeferida. GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edições de 14, 20 e 21 de janeiro de 1915 e 24 de março de 1915; Josivaldo Pires de OLIVEIRA. Pelas Ruas da Bahia. Op. cit. p. 83-108. 198 faca e punhal para provocar lesões e até matar. Se consideradas as relações políticas entre Cosme e Seabra, esmiuçadas nesta tese, não causa estranheza a dedicação do advogado provisionado à defesa de capoeiras atuantes como cabos eleitorais seabristas585 e reiteradas vezes acusados de arruaça e infrações diversas na cidade. Contudo, o envolvimento nessas causas pode ter ocorrido como tantas outras, em decorrência da sua oferta ampla e irrestrita de defensoria gratuita como ação assistencial, independentemente da ligação deles com grupos políticos. Outro caso político ocorreu nos anos 1930. Na qualidade de auxiliar do advogado Edgar da Matta, Cosme defendeu o guarda civil Vicente Dias dos Santos586, denunciado pelo assassinato de Horácio de Queiroz Mattos587, ocorrido em 15 de maio de 1931, e absolvido tanto em primeira instância, em júri popular ocorrido no Fórum do Largo da Palma, em outubro de 1932, quanto em julgamento de apelação em novembro de 1934. Sob alegação de sofrimento contínuo de atos de violência promovidos pelo “Coronel da Chapada”, o servidor 585 Tratava-se de uma prática usual desde os tempos do Império, comum em diversos grupos políticos, inclusive o seabrista. “[...] Como um coronel, o poderoso chefe político e seus militantes seabristas contavam com cabos eleitorais (em substituição aos jagunços), capangas políticos conhecidos pelas suas capadoçagens e arruaças na Cidade do Salvador. Nesse contexto, era comum a utilização de cabos eleitorais de questionável conduta, por parte de figurões políticos. Além dos já citados encontramos referência, também neste sentido, a Ernesto Simões Filho, importante liderança da política baiana deste período. Muitos dos indivíduos contratados para serviços de capangagem eram conhecidos como exímios na prática da capoeiragem. Podemos citar, dentre outros, os irmãos Duquinha e Escalbino, Pedro Mineiro, Inocêncio Sete Mortes, Samuel da Calçada e Beimol do Correio”. Josivaldo Pires de OLIVEIRA. Ibid. p. 85-86. 586 Como tática, adotou-se a descaracterização de que aquele seria um crime político, como alegava a imprensa, e um crime de mando, como pressupôs a polícia; e alegou-se motivação pessoal de Vicente, sem premeditação. Na acusação, estava o promotor João José Senna Machado, auxiliado pelo bacharel Mário Monteiro de Almeida. Em sua fala, Cosme recomendou serenidade e evocou a consciência dos oito jurados e defendeu que o guarda teria agido por emoção, para vingança das agressões praticadas pelo coronel contra si e sua família. Seria a vítima responsável pela depredação de duas fazendas de seu pai, pelo espancamento de seu irmão Pedro Dias dos Santos, garimpeiro vinculado ao coronel Aurélio Gondim, e pela ameaça de morte ao próprio réu, caso fosse a Morro do Chapéu, no interior baiano, onde residiam seus parentes. A argumentação coincidia com o que manifestara o réu: logo após sua prisão em flagrante, Vicente contou ter encontrado o Coronel por acaso, desferido os disparos com arma adquirida de um soldado, e evadido correndo, até ser aprisionado por outro guarda, sem oferecer resistência. À época, afirmou ter extinguido “uma fera do sertão” com dois tiros, quando essa passava pelo Largo Dois de Julho, distrito de São Pedro, cerca de sete e meia horas da noite do dia 15. Desde a noite do crime, o guarda esteve recolhido à Casa de Detenção. Seu julgamento tornou-se um concorrido evento social. Magistrados, advogados, estudantes de direito e até comerciantes e profissionais liberais disputaram lugar no Fórum do Largo da Palma. Por determinação do magistrado presidente da sessão, Santos de Souza, porteiros exigiram apresentação de ingresso especial para entrada no tribunal. Isso pode ser atribuído à repercussão do caso e representatividade política da vítima e à inevitável conotação política do crime. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Habeas Corpus. Estante 220, caixa 171. Documento 33, ano 1941, Salvador; Luciana BARRETO. Júri do Povo. Op. cit. 587 Por décadas, Horácio de Mattos “chefiou” o Sertão, formando uma espécie de “estado independente” dentro da Bahia – onde as eleições legitimavam sua indicação, por exemplo – e participando de ações políticas, como a campanha contra a candidatura de J. J. Seabra ao governo, que uniu anti-seabristas a coronéis. Após longa disputa e negociação, Mattos comprovou seu poder, sendo nomeado pelo próprio Seabra como delegado de polícia da região entre a Chapada Diamantina e o Rio São Francisco. Era acusado de atos de violência para garantia de poder na Chapada Diamantina e dono de grande poder político na região. Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 341-346. 199 público aposentado do Senado Federal Manuel José Machado, também, livrou-se das acusações de ser mandante do assassinato e fornecedor de arma e dinheiro ao guarda. O caso foi tratado como homicídio comum, a despeito da vítima, meses antes, ter provocado a ira de muitos588 ao apoiar às forças de resistência à “Revolução” de outubro de 1930, que tomaria o poder sob o comando de Getúlio Vargas. Até mesmo nos períodos de exceção, como o Estado Novo e o sistema autoritário instalado pós-golpe civil-militar de 1964, o rábula advogou por pessoas que desafiavam o regime, por contingência ou ideologia contrária ao governo vigente. Ele impetrou pedido de habeas corpus para Sergia Ribeiro da Silva (Dadá)589, viúva do alagoano Cristiano Gomes da Silva (Corisco ou Diabo Louro), substituto de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião) na liderança do cangaço, em meio aos esforços do governo para a extinção do “banditismo” nos arrabaldes do Nordeste brasileiro e às severas restrições à liberdade civil impostas pelo presidente Getúlio Vargas, no decurso do estadonovismo. Alheio aos interesses governamentais, Cosme intercedeu590 em favor da bandoleira, enquanto esta tratava do ferimento que lhe levaria à amputação do membro inferior. O rábula baiano, também, desdenhou a autoridade dos militares no pós-1964, mesmo diante da possibilidade de retaliações e punição por desafio ao governo. Como exemplo, po588 Em atenção a pedido do então presidente da República, Washington Luís (1926-1930), formulado através do governador eleito da Bahia, Pedro Lago, e outros políticos, coronéis da Bahia fortaleceram as tropas governistas contra “Revolução de 1930”, cedendo-lhes homens e armas para os combates. Então, acreditavam estar agindo em uma nova investida contra a Coluna Prestes. Como retaliação, as forças revolucionárias do Norte ordenaram a prisão de todos e a apreensão do seu armamento. Horário de Matos e mais quatro coronéis foram presos no Quartel da Guarda Civil, em Salvador. Aos poucos, a medida foi relaxada pelo interventor local, Artur Neiva (1931). A decisão provocou irritação de setores políticos, militares etc. Inconformado, o encarregado da captura em Lençóis e do transporte do Coronel até Salvador (BA), tenente Hamilton Pompa de Oliveira, armou-se e invadiu o Palácio do Rio Branco, prometendo, aos gritos, depor Neiva e prender o secretário de Justiça, Bernadino José de Sousa, mas terminou alvejado pela guarda da interventoria. Dois dias depois, o Coronel tornou-se alvo do guarda Vicente e fora assassinado. A associação entre as duas mortes era inevitável. Havia indícios de ligação entre os casos, embora Vicente negasse. Já no funeral do oficial, militares e civis, no cortejo até o cemitério do Campo Santo, protestaram contra a suposta proteção aos coronéis e clamaram punição para Neiva e Sousa. No dia seguinte, o general Raimundo Barbosa substituiu o interventor, confirmando a inauguração de um novo cenário político na Bahia. Luís Henrique Dias TAVARES. Ibid. p.386-387. 589 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de homicídio. Estante 37; caixa 1310. Documento 01, período 1931-34, Salvador. 590 Baleada na perna direita e presa pelas Forças Volantes em maio de 1940, no distrito de Barra do Mendes, no interior da Bahia, em uma ação encerrada com a morte do seu marido (Corisco ou Diabo Louro), a cangaceira permanecia detida no Hospital Santa Izabel, em Nazaré, em Salvador (BA), à disposição do secretário de Segurança Pública, havia mais de um ano, a despeito de inexistir flagrante lavrado, mandado de prisão preventiva ou despacho de prisão por delito de qualquer natureza contra ela. Única mulher do bando de Lampião a manipular armas, Dadá era acusada de participação, entre as décadas de 1920 e 1930, nas ações do grupo que atazanou o cotidiano no interior do Nordeste com roubo de latifúndios e crimes de mando, mas que, também, promoveu a doação de alimentos e utensílios a comunidades de baixa renda. Encarregada da feitura das bolsas utilizadas nas viagens do grupo, ela amputou a perna ferida, porém, ainda assim, sustentou a família com o trabalho como costureira até a morte em 1994. Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p.10-13; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 169-178. 200 de-se citar seu envolvimento na defesa dos militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) Theodomiro Romeiro dos Santos e Paulo Pontes da Silva, acusados de crimes políticos, inclusive homicídio591. Por meio de sentença do Conselho Especial de Justiça da Aeronáutica, fundamentada na Lei de Segurança Nacional vigente e expedida em 18 de março de 1971, o potiguar Theodomiro se tornou o primeiro condenado à morte do Brasil republicano e deveria ser morto por fuzilamento592. No mesmo julgamento, foi imputada a pena de a prisão perpétua Paulo Pontes. Diante da impossibilidade de ir ao Rio de Janeiro para atuar por Theodomiro e Paulo nas instâncias superiores da justiça, Cosme de Farias tratou de manifestar apoio ao advogado Sobral Pinto, que, voluntariamente, ofereceu-se para representar a dupla perante a Justiça Militar. Ao criminalista, em 24 de março de 1971, remeteu correspondência em seu nome e pela Liga Bahiana contra o Analfabetismo solidarizando-se. Uma cópia do documento acabou arquivada no acervo do historiador e professor Pedro Calmon593. 591 Ambos foram presos em 27 de outubro de 1970, por flagrante do assassinato do sargento da Aeronáutica Walder Xavier de Lima. Naquele dia, Theodomiro Romeiro dos Santos, Paulo Pontes e outros dois militantes, Getúlio de Oliveira Cabral e Dirceu Régis, fizeram uma rápida reunião às margens do Dique do Tororó, em Salvador. Logo, Dirceu retirou-se. Enquanto o trio remanescente ainda conversava, Getúlio viu a aproximação de um jipe e avisou aos colegas, desferindo tiros enquanto corria. De costas para a rua, Theodomiro e Paulo tardaram a reagir e foram detidos, algemados e jogados no fundo do automóvel por quatro homens – o sargento morto, o cabo do Exército Odilon Costa e os agentes federais Hamilton Nonato Borges e José Freire Felipe Júnior –, além de terem uma pasta preta e uma sacola de roupas recolhidos. Enquanto o cabo tentava atingir Getúlio, os demais faziam a perseguição de carro até que Theodomiro recuperou sua pasta, onde guardava um revólver calibre 38. Ávido pela chance de fugir com os companheiros, retirou a arma com a mão esquerda, única livre das algemas, e efetuou disparos. Primeiro, contra a cabeça do sargento, que, depois de saltar do jipe, ficara de pé próximo à porta. E, depois, contra José Felipe, que saiu ileso, e Hamilton, ferido sem gravidade. Getúlio fugiu. Theodomiro e Paulo, não. Ensandecidos, os militares levaram os comunistas, sob espancamento, à sede da Polícia Federal, na Cidade Baixa, antes mesmo de prestar socorro à vítima. Na sede da PF e no Quartel do Barbalho, onde foi recolhido, Theodomiro apanhou e sofreu tortura, em sessões de “pau-de-arara”, choques e tentativa de afogamento. Em outros processos, também, foi condenado por assalto a banco e organização do Partido Comunista. Na ocasião do julgamento, em 1971, Theodomiro já estava preso na Penitenciária Lemos Brito, na Mata Escura, e, acometido por uma úlcera estomacal, quase não pôde acompanhar a sessão que selaria seu futuro. Emiliano JOSÉ. Galeria F: lembranças do mar cinzento - segunda parte. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2003. 592 Contraditoriamente, a condenação de Theodomiro Romeiro dos Santos pode ter lhe assegurado a vida. Desde a decretação da pena capital contra ele, militantes de defesa dos direitos humanos da Europa deflagraram uma campanha contra o tratamento concedido aos presos políticos no Brasil, podendo sua morte gerar uma crise política internacional. Ainda em junho de 1971, o Superior Tribunal Militar substituiu a pena por prisão perpétua e, em 1975, o Supremo Tribunal Federal, por 30 anos de reclusão. Antes da anistia, contudo, ele fugiu, em uma ação com detalhes nunca esclarecidos. Os militares vingaram-se do homicídio através da tortura e morte de pessoas caras aos réus. Em 29 de dezembro de 1972, na Rua Walder Xavier de Lima, no Rio de Janeiro, nomeada assim em homenagem ao sargento assassinado, encontrou-se um automóvel com quatro corpos mutilados por detonação de granadas e tortura. Eram Getúlio de Oliveira Cabral (que estava com Theodomiro no dia da prisão), José Zilton Pinheiro, Lourdes Maria Vanderlei Pontes (esposa de Paulo Pontes, outro comunista condenado neste caso) e Valdir Sales Sabóia, seus companheiros de militância no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Emiliano JOSÉ. Ibid. 593 Centro de Memória da Bahia/Fundação Pedro Calmon. Setor de Documentação. Fundo: Pedro Calmon. Série Correspondências, sub-série Terceiros (carta), caixa 85, documento 6526. Correspondência de terceiros. 201 Apesar do envolvimento em casos de grande repercussão e relevância política, o rábula apontava como seu maior mérito jurídico a obtenção de habeas corpus para 36 grevistas da empresa Leste Brasileiro594, em um contexto de grandes manifestações de trabalhadores no País. Em 1934, em um momento de efervescência política595, eclodiram no Brasil paralisações em vários setores da economia, principalmente, por reajuste de salários e redução da jornada de trabalho. Na Bahia, mobilizaram-se telefonistas, telegrafistas, empregados da Leste e dos serviços de transporte por bonde, com pleitos similares aos exigidos em outros estados, e portuários, contra irregularidades no pagamento de aposentadorias e pensões. As greves eram reprimidas com rigor pela polícia e lideranças (àquelas do ramo ferroviário), detidas596. Não obstante as causas cíveis, quantitativamente, tenham sido menos relevantes na carreira de Cosme de Farias, ele, também, tinha ações dessa natureza em juízos do Estado. Processos do acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)597, datados entre 1931 e 1950, revelam que ele requereu neste ramo, sobretudo, tutoria em favor de menores de idade órfãos, com pais desconhecidos ou de paradeiro ignorado, com os propósitos de que estes pudessem migrar de orfanatos para lares de famílias substitutas, oficializar casamento, matricular-se em instituições como a Escola de Aprendizes de Marinheiro da Bahia e até prestar 594 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 4 de setembro de 1971. A tentativa de revolução paulista havia terminado em novembro de 1933. Getúlio Vargas mudava de tática para manter-se no poder, através da edição do Código Eleitoral que ampliava o direito de voto, da nomeação de uma comissão para elaborar uma nova Constituição e da convocação de eleição para Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Ele conquistou o direito de permanecer na presidência, por meio do voto indireto dos constituintes, em 1934, com a promessa de que seria promovida eleição direta da próxima vez. As greves do operariado – sobretudo dos setores de transportes, comunicações e bancos – e a efervescência da classe média, além dos conflitos entre comunistas e integralistas em São Paulo, em outubro de 1934, foram respondidos pelo governo com o envio da proposta de uma Lei de Segurança Nacional ao Congresso, no início de 1935. Apesar dos protestos de sindicalistas, da imprensa e de oficiais da Marinha e do Exército, foi aprovado pelos deputados um substitutivo do projeto, com apoio de políticos liberais. A lei de 4 de abril de 1935 estabeleceu os crimes contra a ordem pública, inclusive “a greve dos funcionários públicos, a provocação de animosidade nas classes armadas, a incitação de ódio entre as classes sociais, a propaganda subversiva, a organização de associações ou partidos com o objetivo de subverter a ordem política ou social, por meios não permitidos em lei”. Em seguida, em 1936, foram instalados órgãos específicos para a repressão, como a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, do Ministério da Justiça, e o Tribunal de Segurança Nacional, e fortaleceu-se o poder da polícia do Rio de Janeiro. Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit. p.331-363. 596 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 148. 597 Foram analisados todos os 15 processos envolvendo o nome de Cosme de Farias catalogados no sistema do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), como Cível 1, e localizados nas estantes da instituição durante esta pesquisa, mas apenas 13 se referiam a tutoria. Os demais eram reclamações sobre casos penais. Nas buscas, três processos com menção a Cosme ou não foram localizados ou não efetivamente envolvem o jornalista. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Cível 1. Estante 115, caixa 19, documento 11; estante 115, caixa 14, documentos 42 e 09; estante 115, caixa 11, documento 09; estante 115, caixa 18, documentos 04 e 11; estante 115, caixa 26, documento 18; estante 115, caixa 20, documento 04; estante 115, caixa 25, documento 34; estante 115, caixa 31, documento 06; estante 115, caixa 29, documento 27; estante 115, caixa 17, documentos 32 e 20; estante 115, caixa 28, documento 12; estante 116, caixa 47, documento 10; estante 120, caixa 17, documento 11; estante 120, caixa 07, documento 20; estante 136, caixa 27, documento 11. 595 202 queixa-crime por defloramento contra adultos, porque a legislação vigente determinava que só o responsável legal poderia intervir em episódios deste tipo contra menores. Treze processos cíveis, datados de 1931 a 1950, consultados no APEB598, atestam sua inserção no direito civil. O próprio rábula, a pedido, foi nomeado tutor pela justiça em 12 dos 13 casos599 desta natureza analisados nessa pesquisa. Em 1931, por exemplo, de uma só vez, por decisão do Juízo de Órfãos, tornou-se tutor600 de três internos do Asylo dos Expostos da Santa Casa da Misericórdia da Bahia (Maria Josephina de Mattos, parda com oito anos, João Borges, “preto” com dez anos, e Cícero Jeronymo, pardo com dez anos). Após requerimento, bastaram dez dias para receber a autorização de resgatar as crianças. Não foram localizados registros sobre o destino do trio. Como se viu nesta tese, a residência do benemérito era ocupada por agregados e, possivelmente, alguns deles eram os beneficiários desses processos. Afora as causas judiciais, Cosme protagonizou ações mais amplas pela justiça e liberdade, de cunho político, através do jornalismo, da literatura, da atividade parlamentar e da participação em eventos601. Nestas frentes, ele denunciava que só permaneciam na cadeia do Estado os “desprotegidos” e quem desconhecia a necessidade de ter um advogado; rogava tratamento humanitário para os detentos; e pregava uma política de prevenção e combate à criminalidade através da oferta de empregos e da escolarização. Por vezes, até pediu a extinção do “bárbaro uso de algemas e de espancamentos de presos” por policiais e agentes de presídio, por atentarem contra sentimentos cristãos e a civilidade602. Portanto, à margem do poder constituído, ele implementou em Salvador uma obra precursora da defensoria pública e gratuita na Bahia – criada apenas em 1966 – e da sistematização da atuação de órgãos dessa natureza no País, que seria efetivada apenas com a Constituição Federal de 1988. Atuou em duas frentes: oferta da possibilidade de defesa a quem o procurava e em discursos pela justiça e liberdade, que ecoavam fora de tribunais, delegacias e da Secretaria de Segurança, e impregnavam sua vasta produção jornalística e literária, seus pronunciamentos e projetos parlamentares. 598 Dos 15 processos cíveis envolvendo Cosme de Farias catalogados no sistema do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), como Cível 1, e localizados nas estantes da instituição durante esta pesquisa (ver indicações na nota acima), 13 se referiam a caso de tutoria. Todos os 13 foram analisados para esta tese. 599 A única exceção é o caso de Elvira dos Santos, jovem de 16 anos “ofendida em sua honra” por um motorista que se negava a “reparar a sua falta consorciando-se”. Como tinha pais vivos e residentes em local conhecido, no município de Alagoinhas, ela foi estimulada a procurar a família biológica. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Cível 1. Estante 115; caixa 17. Documento 20. 600 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Cível 1. Estante 115; caixa 14. Documento 42. 601 Mônica CELESTINO. Cosme de Farias. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2006. Perfil do Parlamentar da Bahia. 602 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 6 de fevereiro de 1963. 203 A atuação de Cosme, no campo jurídico, era um dos pilares da sua ação de caridade voltada aos estratos “de baixo”. Aparentemente destemida ou até inconsequente, ela tornouse, também, um importante elemento na trama de construção e consolidação de sua imagem e seu poder no Estado, devido à extensão da sua carreira (77 anos), à sua persistência na defesa (ao invés, da acusação), ao volume de causas que ele abraçou gratuitamente (mais de 30 mil), ao seu êxito em causa de grande comoção e/ou popularidade e alta complexidade jurídica, e à sua coragem de desafiar grupos políticos e econômicos dominantes, inclusive durante períodos de autoritarismo, quando prisões para averiguação eram recorrentes apesar de ilícitas. Publicado no seu livro Estrophes603, o Hymno do Encarcerado apresentou indícios da sua postura no que concerne a esse assunto. No texto, ele atribuía o envolvimento de pessoas na criminalidade a uma fatalidade e, por conseguinte, eximia os réus de culpa; e acenava com a possibilidade de recuperação através da religiosidade (“O destino impiedoso/Jogou-me nesta prisão,/ JESUS CHRISTO, pae bondoso,/ Dae-me a vossa compaixão”). Também, solicitava oportunidade de reinserção social para o presidiário (“O vadio é typo morto,/ a caridade é virtude,/ Quem trabalha tem conforto,/ Paz, alegria e saúde”) e realçava o efeito da criminalidade na vida do marginal (“Conquistam louros e palmas/ Todas as grandes acções,/ O crime corrompe as almas/ E degrada os corações”). Por fim, anunciava crença no arrependimento (“Dos erros da minha vida/ Eu tenho arrependimentos,/ Virgem-Santa, mãe querida/ Confortae meus sofrimentos”). Ávido pelo sucesso em processos policiais e judiciais, ele até maculava a honra da vítima para atenuar a culpa do réu, revelando, para uns, certa contradição entre seu discurso em defesa dos direitos do homem e pela cidadania e sua prática. Talvez, agisse assim, exatamente, por acreditar que todos tinham direito à defesa e poderiam se redimir do erro e reinserir-se na sociedade. Tais bandeiras foram levantadas por ele antes mesmo da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948, e da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, em abril de 1948, que abriram o processo de criação de instrumentos legais internacionais de direitos das pessoas e, posteriormente, de grupos sociais específicos, como mulheres, negros, homossexuais, presidiários. Ao que consta, esse modus operandi fora forjado de defesa em defesa, naturalmente, a partir de sua crença inabalável na capacidade de recuperação e ressocialização do homem ou, ao menos, na sua evolução no ponto de vista psicológico, psiquiátrico e moral. Tal conduta está em consonância com traços de sua personalidade, aparentemente, ancorada em princí603 Cosme de FARIAS. Estrophes. Salvador: Officinas Graphicas d’A Luva, 1933, p. 36-37. 204 pios morais e religiosos e em sentimentos humanitários, evocados em seus textos literários e jornalísticos, conforme discutido adiante. Pelas evidências coletadas nesta pesquisa e aqui expostas, Cosme desafiava o status quo e afrontava os poderes estabelecidos, inclusive a própria instância judiciária que lhe conferiu o direito de advogar por terceiros, menos por querelas políticas e mais por solidariedade, por ideal de vida. Era, portanto, um homem sensível à tragédia cotidiana, independentemente de quem fossem os atores arrolados nela. Era um engajado na luta pela justiça e liberdade, que agia com os instrumentos que tinha em mãos e conquistou respeito no meio jurídico em função da sua contribuição como defensor público voluntário e pioneiro no Estado e pregador voraz da liberdade. Porém, a despeito da inexistência de interesses pessoais, o desempenho de Cosme nesse ramo pode ter interferido no seu processo de mobilidade social. Por demonstrar conhecimento, excelente capacidade de argumentação e convencimento, coragem e simpatia por desamparados, pode ter despertado admiração e certa identidade, sobretudo, junto à maioria então sem representação nas instâncias decisórias do poder. Junto à elite econômica e política, também, pode ter desencadeado sentimentos similares, porém o mais plausível é que a nata da sociedade baiana tenha se ressentido das defesas do rábula, em prol de quem atentou contra um dos seus e em detrimento de seus interesses. Ainda assim, ele preferia atacar, ao invés de cultivar hábitos previsíveis nesse cenário (como a subserviência) que facilitavam a ascensão de um estrato a outro. 3.1.3 No front pela alfabetização Não obstante a defensoria seja uma das bandeiras mais duradouras e vigorosas na vida de Cosme de Farias, sua principal causa era a educação, mais especificamente, a alfabetização de crianças, jovens, adultos e idosos. Em 1892, com cerca de 17 anos, ele encampou a “Campanha do ABC”, movimento social, sem fins lucrativos, pela erradicação da ignorância por meio da disseminação da leitura e escrita entre os baianos, independentemente de origem, estrato social, sexo, idade e etnia. O menino mulato do Subúrbio, que cursou apenas o primário e enfrentava as agruras do começo da vida profissional, desejava difundir o letramento entre os conterrâneos. O acesso à escola, à época, era um problema com raízes profundas, fincadas nos 205 tempos coloniais604. O ensino primário público era deficitário e o secundário, embrionário. A maior parte da população – sobretudo, negros e mestiços – sequer tinha cursado o primário e parecia acomodada com a situação, em decorrência da contínua falta de escolas para todos e do trabalho remunerado exigir, na maioria das vezes, baixa tecnologia e apenas esforço manual. As famílias mais abastadas providenciavam atenuar o drama ao seu modo: contratavam professores particulares para as crianças aprenderem as primeiras letras e enviavam os jovens a instituições europeias, principalmente em Coimbra, Portugal. Os demais ficavam à margem. As mulheres, por exemplo, eram segregadas até do ensino primário regular. A situação começou a ser amainada com o acirramento dos debates sobre a questão nas cidades e a consequente pressão ao poder público para a adoção de medidas pela solução do problema. Já no segundo governo seabrista (1920-1924), houve crescimento considerável das matrículas em turmas iniciais, em particular em Salvador, mas os avanços mais sólidos foram sentidos apenas nos anos 1930. Na Bahia, a política de educação implementada pelo secretário da pasta, Anísio Teixeira605, durante o mandato de Góes Calmon (1924-1928), já previa a ampliação da oferta de vagas no ensino primário e secundário e a qualificação e valorização dos docentes. Contudo, a obrigatoriedade do primário para crianças com idade acima dos sete anos foi determinada pela União apenas em 1963. Em meio a este terreno árido, aquela campanha, abraçada por Cosme no ímpeto da juventude, tornou-se o embrião de um trabalho mais amplo. Mais maduro, aos 40 anos, ele criou a Liga Bahiana contra o Analfabetismo (LBA), junto com confrades como o chefe de polícia, Álvaro Cova, o magistrado e político que chegou a ocupar interinamente o governo da Bahia em 1912, Bráulio Xavier da Silva Pereira, e o fundador da Academia de Letras da Bahia e secretário geral do Estado, Arlindo Fragoso, entre outros intelectuais, professores e profissionais liberais. Compunham o grupo606 inicial, além deles quatro, Ladislau Figueiredo 604 Ver Braz AMARAL. Recordações Históricas. 2. ed. rev. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2007; Jaci Maria Ferraz de MENESES; Juvino Alves SANTOS FILHO. O Pós-abolição, Escolarização de Negros e Formação para o Trabalho na Bahia, Brasil. Cultura Escolar Migrações e Cidadania. In: Actas do VII Congresso Luso-brasileiro de História da Educação. Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, 20-23 jun. 2008. Disponível em: <http://web.letras.up.pt/7clbheporto /trabalhos_finais/eixo4/ID1975.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2009. 605 O bacharel em direito Anísio Teixeira, em 1924, recebeu do governador eleito, Góes Calmon, a surpreendente proposta para ocupar a função de Inspetor Geral do Ensino da Bahia. De início, recusou o convite por se considerar despreparado para o cargo, mas, depois, aceitou preparou-se com leituras e viagens ao exterior para atuar na área. Entre outras medidas, ele promoveu a reforma do ensino e investiu na qualificação docente, com a criação da escola normal. Mais tarde, em 1929, desligou-se do cargo e voltou-se ao magistério, na cadeira de Filosofia e História da Educação da Escola Normal de Salvador. Edivaldo M. BOAVENTURA. Ensino com entusiasmo. A Tarde. Salvador: A Tarde, 8 jul. 2000, p.9-10; Mônica CELESTINO. Mestre do Brasil. Correio Repórter/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 9 jul. 2000. 606 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de outubro de 1965. 206 Seixas, Ambrósio Gomes, Adolfo Ribeiro Sanchez, Gerúsio Carvalho e Cantilho Teixeira de Sousa. Em 12 de outubro de 1915, a equipe reuniu-se para organização do movimento 607, na sede do Grêmio Literário da Bahia, instituição a qual o próprio Cosme estava vinculado, localizada na Rua Chile. Apronto, a Liga recebeu o apoio do então governador, José Joaquim Seabra, possivelmente por influência do chefe de polícia e secretário geral do seu governo, e deflagrou campanha para a distribuição de materiais escolares (lápis, borracha, régua, às vezes do livro A Sciência do Bom Homem Ricardo608, de autoria de Benjamin Franklin) e a construção de escolas, predominantemente, em bairros povoados por pessoas de baixa renda ou sem receita. Por décadas, a Liga Bahiana funcionou em locais cedidos por terceiros no Centro político e financeiro de Salvador. Por um tempo, as atividades foram coordenadas na Rua Chile, em um escritório instalado no Edifício Bráulio Xavier e emprestado à organização. Por outro, foram desenvolvidas no Paço do Saldanha, localizado na Rua Guedes de Brito, onde estava sediado o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, outra entidade da qual Cosme era associado; e no Terreiro de Jesus, no corredor de acesso à sacristia da Igreja de São Domingos de Gusmão, onde o benemérito atendia à população, ao final de sua vida. Por meio dos seus sócios, especialmente Cosme, que ocupou a presidência da instituição por muitos anos, a Liga Bahiana inaugurava unidades educacionais próprias, inclusive com docentes remunerados; incentivava pessoas da sociedade a tornarem-se professores leigos voluntários e a ensinarem a crianças, jovens e adultos, de origens e etnias diversas, transformando suas residências em salas de aula improvisadas; reivindicava aos governos a implantação de colégios; e estimulava a criação de escolas de ensino primário por políticos, operadores do direito, policiais, religiosos, membros de sociedades beneficentes, médicos, comerciantes e donas de casa e, como contrapartida, oferecia o apoio às atividades, cartilhas609 e outros materiais escolares e, em alguns casos, o título de delegados da entidade aos entusiastas do projeto. Não foram localizados dados precisos sobre o número de membros da agremi- 607 Sobre esse evento e outras ações da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, pouco se pode afirmar com propriedade, considerando-se a falta de informações sobre o destino dado a documentos como atas de reuniões, relatórios de atividades e estatutos. Diante dessa limitação, os periódicos, que constantemente divulgavam seu trabalho, se constituem como a principal fonte histórica para registro e compreensão da trajetória do movimento. 608 A obra traz ensinamentos de Benjamim Franklin para a vida cotidiana, publicados, originalmente, em um almanaque no ano de 1733. 609 A TARDE. Salvador (BA), edições de 8 de dezembro de 1938, 4 e 7 de dezembro de 1939, 4 de abril de 1963; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 6 de abril de 1937, 28 de novembro de 1937, 29 de dezembro de 1937. 207 ação, mas, entre eles, esteve o advogado Antônio Pinto, “filho adotivo” do rábula. As investidas eram dirigidas a quem pudesse contribuir com a causa, de acordo com o julgamento da administração da Liga ou, quiçá, de Cosme. Os exemplos, neste sentido, são inúmeros. Certa feita, na condição de secretário da entidade, o rábula610 solicitou que autoridades do município de Cachoeira, com auxílio da população local, adquirissem o imóvel onde nasceu o jurista Teixeira de Freitas611 e transformassem a residência em uma escola. Em outra ocasião, ele reclamou que o governo do Estado criasse turmas de educação primária na penitenciária, visando a alfabetização e facilitação da reinserção social dos internos após o cumprimento da pena. A medida viria a ser implementada anos mais tarde. Afora isso, a entidade enfronhou-se em outras frentes, inclusive de âmbito nacional. Dois exemplos foram a adesão à campanha pela uniformização do livro didático no Brasil, cujo principal propósito era contribuir para a melhoria da qualidade de ensino 612; e ao Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral)613. Cosme e, por conseguinte, a Liga Bahiana, já que a história de ambos está imbricada, apoiaram o Mobral mais pela proposta de alfabetizar do que pela forma como o trabalho seria desenvolvido. O então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, solicitou sua colaboração por telegrama e, em resposta, recebeu a promessa de ajuda. Aos amigos, o baiano teria dito, em tom ironia: “Oxente, então eu ia ser contra? Não estou fazendo isso desde esse Passarinho nascer?!”614. Dentre as ações da Liga, duas tinham relevância destacada por viabilizarem o aprendizado no decurso do processo de alfabetização: a publicação para distribuição gratuita da cartilha denominada Carta do ABC, de autoria do rábula, e a oferta de material escolar, dire610 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 90. Nascido em 1816, em Cachoeira (BA), e morto em 1883, em Niterói (RJ), o advogado e jurista baiano Augusto Teixeira de Freitas é autor de obras de referência para o Direito nas Américas, tanto pela técnica empregada para separação e sistematização das disciplinas quanto pelo potencial doutrinário manifestado nos textos, a exemplo da Consolidação das Leis Civis e o famoso Esboço de Freitas. Douglas Santos ARAÚJO. A Influência de Teixeira de Freitas no Brasil e no Mundo. In: Jus Navigandi. Teresina: Jus Navigandi Ltda., abr. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1907>. Acesso em: 18 jan. 2010. 612 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p.14-16; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de outubro de 1971. 613 O Mobral é um programa criado através da lei federal 5.379, de 15 de dezembro de 1967, no auge do Estado autoritário deflagrado após o golpe civil-militar de 1964, visando que as pessoas pudessem adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo, porém sem preocupação com a formação para o exercício da cidadania a partir da valorização do universo do educando, como pregavam métodos contemporâneos como o do educador Paulo Freire. BRASIL. Decreto nº 62.484, de 29 de março de 1968. Aprova o Estatuto da Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Brasília (DF), 29 mar. 1968. In: Senado Federal. Brasília: Subsecretaria de Informações/Senado Federal, 2011. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao /ListaPublicacoes.action?id=193554>. Acesso em: 18 jul. 2011; PAULO FREIRE: PEQUENA BIOGRAFIA. In: Instituto Paulo Freire. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2010. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/... /Vida_Biografias_Pequena_Biografia_v1.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2010. 614 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 124. 611 208 tamente, aos analfabetos ou a pessoas que se dispunham a ensinar a vizinhos, parentes ou amigos. Com isto, o grupo sinalizava seu compromisso em assegurar, aos voluntários, condições para o pleno cumprimento das metas estabelecidas. Editada várias vezes com tiragens de 5 mil a 10 mil exemplares e distribuída até a década de 1970, às vésperas da morte do jornalista, a Carta615 tinha 48 páginas616, de tamanho aproximado de 10,5 x 15 cm – correspondente ao atual A6 –, e era impressa com tinta preta sobre papel branco, sem ilustrações ou fotografias. Afora o alfabeto, as sílabas, as palavras e as frases curtas para ensino da leitura, o livreto era ilustrado com hinos patrióticos617, frases anedóticas e um texto informativo sobre o Centro Industrial de Aratu; trazia trovas e hinos de autoria do próprio jornalista [como Versos à Infância, no qual roga às crianças dedicação aos estudos, e Hino d´a Campanha do ABC], e destacava personalidades baianas (músicos, militares, oradores sacros, oradores como Rui Barbosa, jornalistas, poetas, estadistas como Getúlio Vargas, magistrados, “médicos populares”, “engenheiros distintos”, marujos, “professores primários brilhantes, benfeitores como Alberto de Assis, criador do Instituto de Cegos da Bahia, e Valdir Oliveira, sócio da LBA), em detrimento das personagens estrangeiras e de visibilidade nacional. Tanto a inserção dos hinos patrióticos e do Hino d´a Campanha do ABC, que tem trechos de exaltação ao civismo (Pelo bem de nossa Pátria,/ Florão gentil do Civismo,/ Moços e velhos erqguei-vos/ Contra o Analfabetismo!), e quanto a menção a personagens contemporâneas de destaque em segmentos diversos na cartilha indicam que o patriotismo e certo bairrismo eram constitutivos da personalidade do autor. Décadas depois, o alfabetizador Paulo Freire defenderia, com êxito, a alfabetização a partir de nomes de objetos e pessoas ligadas ao universo do alfabetizando, com a intenção de contribuir para a valorização da sua cultura e para a formação crítica dele. Até 1970, a Carta do ABC baseava-se no método de ensino 618 da “parte para o todo", 615 Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Salvador: Liga Bahiana contra o Analfabetismo, 1970. Fac-símile da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2006. 616 Esse conteúdo refere-se à edição de 1970, mas podem ter ocorrido variações em relação a outras versões da cartilha. Isso não foi confirmado por não terem sido localizadas outras edições da Carta. 617 Os hinos Nacional Brasileiro, ao Dois de Julho, à Bandeira Nacional, da Proclamação da República e da Independência do Brasil, respectivamente, de autoria de Osório Duque Estrada; Ladislau dos Santos Titara e José dos Santos Barreto; Olavo Bilac; Medeiros e Albuquerque; e Dom Pedro I e Evaristo da Veiga. Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Op. cit. 618 Na marcha sintética, parte-se do nome das letras, dos sons correspondentes às letras e das sílabas, de acordo com o grau crescente de dificuldade, para a formação de palavras com essas letras e/ou sons e/ou sílabas, até a leitura de frases isoladas ou agrupadas em textos. Elaboradas por professores fundamentados na própria experiência docente, as primeiras cartilhas brasileiras empregavam esse método e, apesar de editadas principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e circularam por inúmeras cidades do Brasil, a partir do final do século XIX. 209 denominado marcha sintética, que previa a soletração do alfabeto, fônica e silabação e era característico do Império e dos primeiros anos da República. Por ela, o estudante aprendia, primeiro, o alfabeto (em fontes de forma e cursiva maiúsculas e minúsculas) e famílias silábicas (ba – be – bi – bo – bu) e, posteriormente, soletrava para formar palavras que, interligadas entre si, compunham frases completas619. A partir de 1890, o método da marcha sintética começou a ser problematizado, frente ao surgimento de outras opções no Brasil, como o método analítico, pelo qual se ensinava “do todo para a parte”, ou seja, da palavra ou frase ou historieta para as sílabas e letras. Afora a adoção desse método, outros problemas na publicação poderiam retardar o aprendizado da leitura ou até comprometer o domínio desta competência pelos alfabetizandos. São exemplos a ocorrência de nomes pessoais longos e de textos extensos, e a falta de sequência lógica do conteúdo (frases apareciam antes de palavras; palavras com dígrafos, antes de palavras sem dificuldade de silabação etc.), depois de diversos abecedários. A inexistência de exercícios, por outro lado, poderia dificultar o desenvolvimento da escrita. Porém, também, pode revelar que o autor preocupava-se mais com a leitura do que com a escrita, priorizando a recepção, em detrimento da emissão de informações pelo aprendiz. Agia, portanto, em consonância com as ideias vigentes na Primeira República, com prioridade para o ensino e a aprendizagem da leitura, no transcurso de organização do “aparelho escolar”. Sozinha, a leitura já é capaz de promover mudanças abruptas na vida de um indivíduo e no cotidiano de uma sociedade. A despeito da compreensão, da interpretação e do uso da palavra impressa ocorrerem a partir de variáveis específicas relacionadas a quem escreve, publica e lê e ao contexto em que estão inseridos, a leitura implica em assimilação e apropriação de conhecimento e, por conseguinte, proporciona novas formas de apreensão do mundo, a disseminação da cultura – inclusive de manifestações “folclorizadas” pela elite desejosa de se distinguir das demais camadas sociais – e da língua nacional, a melhoria de desempenho profissional e a valorização do sujeito leitor pela sociedade, o que facilita a ascensão social. Diverso deste, o método analítico foi influenciado pela pedagogia estadunidense, abalizado por princípios didáticos derivados da concepção de que a criança apreende o mundo de forma sincrética, e ganhou fôlego no país após ser institucionalizado em São Paulo, mediante a publicação do documento “Instrucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico – modelos de lições”. Sobre isto, consultar Maria Rosário Longo MORTATTI. História dos Métodos de Alfabetização no Brasil. Secretaria Municipal de Educação (site oficial). Salvador: Secretaria Municipal de Educação, 2010. Disponível em: <http://www.smec.salvador.ba.gov.br /site/documentos/espaco-virtual/espaco-alfabetizar-letrar/lecto-escrita/artigos/historia%20dos%20metodos.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2010. 619 Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Op. cit. 210 A leitura ressignifica relações de poder. Em análise da sociedade europeia, Nathalie Davis620 explica que a leitura promoveu a ruptura de um ciclo de dependência de uns poucos, para garantia do amplo acesso ao texto, e a oportunidade de circulação e perpetuação de ideias e práticas na Europa. As práticas da leitura, conforme pesquisadores como Roger Chartier621, tiveram implicações nas sociedades ocidentais, da valorização do ambiente familiar e constituição de laços de amizade, por meio da leitura oral e em grupo, à autonomia para escolha do que ler e de interpretar fatos relatados em obras escritas. Na cartilha de Cosme, a prioridade à leitura pode ser indício de uma falha da técnica do autor, compreensível, considerando-se que ele não tinha formação específica em educação; ou da influência, sobre ele, do pensamento preponderante quando iniciou seu trabalho pela alfabetização, em 1892; ou, também, de uma forma distorcida de perceber a autonomia das pessoas, na medida em que a leitura facultava independência para a apreensão de conhecimento e prestígio aos leitores, permitindo a apropriação de capital simbólico e distinguindo-os em uma sociedade com altos índices de analfabetismo, mas não proporcionava a propagação mais célere e eficaz de informações produzidas por eles, porque isso só a escrita permite. As ações da Liga multiplicaram-se pela capital e pelo interior do Estado. Em 1939, por exemplo, o capitão Wanderlino de S. Nogueira foi escolhido por Cosme de Farias para ser delegado geral da entidade nas localidades de “Camassary, Matta de São João, Catú, Pojuca e Alagoinhas”622. Ao assumir o cargo, teria como atribuição de intensificar o trabalho contra o analfabetismo naquela região, através da realização de conferências, da fundação de pequenas escolas e da instalação de núcleos de combate à ignorância com participação da comunidade local, inclusive “senhoras e senhorinhas”. O destaque à necessidade de envolvimento de mulheres no projeto pode, aliás, ter sido uma tática para assegurar mais adesões à causa e, consequentemente, a expansão das atividades. Afinal, à época, em geral, as “senhoras e senhorinhas” tinham a tarefa de educar e, como viviam restritas ao espaço do lar, gozavam de tempo livre para dedicação ao voluntariado, enquanto os homens tinham a função de prover a família e, naturalmente, de dedicar suas horas ao trabalho não-remunerado. 620 Nathalie Zemon DAVIS. Culturas do Povo: sociedade e cultura no inicia da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.168-169, 179, 182. 621 Roger CHARTIER. As Práticas da Escrita. In: Philippe ARIÉS; Roger CHARTIER (Org.). História da Vida Privada 3: da renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.113-161; Roger CHARTIER. A Ordem dos Livros – leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priori. Brasília: Ed. UnB, 2004, p. 7-31. 622 A TARDE. Salvador (BA), edição de 7 de dezembro de 1939. 211 Outra tática utilizada pela Liga para cooptação de alfabetizadores era a divulgação das ações realizadas pela organização e pelo próprio Cosme de Farias através da imprensa, prerrogativa rara entre as demais sociedades beneficente em funcionamento na cidade, conforme percebe-se na análise de periódicos locais. Um exemplo foi a nota editada pelo jornal A Tarde, em 1963: O Major Cosme de Farias, presidente da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, nomeou o sr. Arlindo Andrade, para exercer funções desta patriótica e humanitária instituição em todo o município de Itarantim, sendo conferida a incumbência de incrementar por ali a meritória jornada pelo desenvolvimento de Instrução Primária, principalmente entre crianças pobres. A diretoria da Liga, confiante nos seus sentimentos cívicos e na sua boa vontade, espera que a sua atuação por aquelas plagas seja muito eficiente 623. Assim, a cobertura jornalística era uma forma de reconhecimento de beneméritos do grupo – neste caso, o recém-agregado Arlindo Andrade – e prestava-se à socialização sobre o modo de funcionamento e os afazeres da Liga – neste caso, a interiorização – e à construção e/ou consolidação da imagem da entidade e de do seu principal gestor, Cosme. O saldo era positivo, porque se estimulava o voluntariado, novas manifestações de apoio ao projeto ou até doações para investimento na obra. Com os mesmos propósitos e efeitos similares, também, disseminava-se informações, acerca da instituição e de seus associados, em pronunciamentos realizados em eventos públicos, como as celebrações da abolição da escravatura (13 de maio)624, do nascimento do poeta Castro Alves (14 de março), do aniversário da LBA (12 de outubro) e da independência do Brasil na Bahia (02 de julho). Em datas como estas duas primeiras, o rábula promovia atos públicos patrióticos e de difusão da necessidade de alfabetização, em geral, acompanhado por crianças. Na terceira, encomendava missa em ação de graças e, tendo oportunidade, manifestava-se. Na quarta625, participava dos festejos oficiais. O diálogo e a atuação conjunta com setores díspares eram usuais no processo de implantação e fortalecimento da obra. Formalizavam-se parcerias, para a inauguração de novas salas de aula e/ou manutenção de turmas e escolas, com pessoas físicas, entidades privadas com e sem fins lucrativos e instâncias diversas do governo, independentemente de ideologia 623 A TARDE. Salvador (BA), edição de 22 de março de 1963. JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 25 de dezembro de 1970. 625 Em 1959, por exemplo, fez isso ao lado do parlamentar Arthur Guimarães Cova, então representante da Câmara de Vereadores na dita Comissão. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 27 de maio de 1959. 624 212 política ou religião. O período entre os anos 1930 e 1940 foi emblemático porque, neste ínterim, Cosme estava alijado do poder constituído e o País passava por um regime ditatorial, porém, ainda assim, a Liga manteve-se firme. Já como presidente da LBA626, em 1938, o rábula apelou a 95 prefeitos da Bahia a construção de escolas primárias para crianças de baixa renda, em localidades ainda sem instituição oficial de ensino. Em 1940 e 1941, quando o Estado era gerido pelo interventor Landulpho Alves (1938-1942), ele requisitou a implantação de grupos escolares em municípios carentes, ao então secretário de Educação do Estado, Isaías Alves, e deflagrou campanha para que o governo estadual comprasse a casa onde nasceu J. J. Seabra, em uma roça na Rua do Uruguai, em Salvador, e criasse ali um educandário com o nome do líder seabrista. Pleitos desta natureza, pela relevância da temática e possível abrangência dos seus efeitos, poderiam gerar repercussão na imprensa e no rádio e, por conseguinte, na sociedade, contribuindo para a constituição e consolidação da imagem do próprio Cosme e da Liga, a despeito dos resultados práticos que pudessem desencadear. Em decorrência deste modus operandi, a LBA recebeu apoio até mesmo de integralistas nos anos 1930. Algumas das manifestações dessa aproximação com a Ação Integralista Brasileira (AIB) foram artigos publicados no jornal diário de orientação integralista O Imparcial, exaltando a “Jornada da Luz” – denominação pela qual intitulava as campanhas da Liga – e o próprio Cosme de Farias627, escritos pelo rábula e por jornalistas do veículo. Um desses libelos começa com o seguinte trecho: Há, na Bahia, um louco, dessa loucura bendita de amor ao próximo. É o jornalista Cosme de Farias. Não nos ligam os laços de campanha política nem entretemos relações. Admiro, entretanto, esse humilde batalhador das causas justas que não se sente bem quando sabe que alguém sofre. Tornou-se o patrono dos indigentes e o esteio máximo da “Jornada da Luz”, pugnando pela alfabetização dos seus conterrâneos. [...]628 Contudo, não foi localizada documentação que estabeleça vínculo formal ou evidencie qualquer acordo de ordem político-partidário entre o jornalista, então presidente da Liga, e a AIB ou os integralistas. Alijado do parlamento desde a ascensão do governador Góes Calmon, em 1924, ele, à época, dedicava-se apenas à obra assistencial e às mobilizações sociais e políticas, discutidas adiante nessa tese, algumas delas com envolvimento, também, de militan626 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 158, 169, 174, 178. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 13 e 14 de maio de 1936, 28 de novembro de 1937. 628 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de abril de 1936. 627 213 tes camisas-verdes. O próprio chefe integralista na Bahia, Joaquim de Araújo Lima, nesse mesmo artigo, ressaltou o distanciamento político entre eles: “Não nos ligam os laços de campanhas políticas”629. Um leque de opções abre-se na tentativa de compreender a relação entre a Liga – e Cosme – e a Ação Integralista. A AIB teria, pelo menos, quatro motivações para empreender a favor da “Jornada”. Duas parecem mais óbvias: a empatia com o jornalista, sobretudo pelo convívio no decorrer da atividade jornalística; e o compartilhamento com ele e a Liga de referenciais patrióticos e do interesse no combate à ignorância. Outras duas denotam táticas políticas da organização, então perseguida pelo interventor Juracy Magalhães, em meio aos conflitos no interregno entre a “Revolução de 1930” e o Estado Novo: a possibilidade de ter, como contrapartida ao apoio à “Jornada”, a disseminação dos ideais e das atividades integralistas, por meio da participação de camisas-verdes nos constantes eventos contra o analfabetismo promovidos pela LBA; e de contar com a ingerência da Liga e dos seus sócios, em especial de Cosme, contra o acossamento que a AIB passava, inclusive com o fechamento de escolas primárias mantidas por ela630. Portanto, em ambos, estaria buscando influenciar a opinião pública ao seu favor, considerando o status da entidade e do jornalista cultivado junto a estratos diferentes da sociedade. Edições de O Imparcial, do ano de 1936, trazem evidências da pertinência dessas duas últimas hipóteses. Após a publicação de inúmeros desses artigos, a Sociedade Beneficente Cosme de Farias oficializou convite aos integralistas para a “Parada do ABC”, um desfile, em via pública, de estudantes, professores e outros profissionais, organizado pela Liga, para rememorar a Abolição da Escravatura no dia 13 de maio. O chamamento foi atendido e, antes e depois da “Parada”, o periódico da AIB publicou material que anunciava a participação integralista no evento, sugeria que aquela era uma reação tática à perseguição sofrida pela Ação Integralista e clamava a intervenção do jornalista e da Liga junto a autoridades, a fim de impedir a suspensão das suas atividades educacionais: Solidários com o jornalista Cosme de Farias muito poderíamos dizer, nós integralistas, pela alfabetização dos baianos. Não poderíamos para isso que nos auxiliassem as autoridades do interior do estado, mas apenas que não nos criassem embaraços, fechando as escolas que vamos abrindo com esforço, porque elas não estão rigorosamente de acordo com o último modelo recomendado pela pedagogia. Atendendo as exigências do ensino já temos algu629 Ibid. Laís Mônica Reis FERREIRA. Integralismo na Bahia: gênero, educação e assistência social em O Imparcial: 1933-1937. Salvador: EdUFBA, 2009, p. 97-127. 630 214 mas escolas oficialmente registradas. Se nos dessem franca liberdade, porém, eu assumiria, hoje, um compromisso com a Bahia. Temos no Estado 30 núcleos integralistas alguns em inicio de coordenação, com inscrições de centenas de alunos. Dentro de 60 dias eu lhe daria 300 escolas organizadas com um mínimo de 15 mil alunos inscritos. Para isso bastaria que os vanguardeiros da “Jornada da Luz” conseguissem das autoridades a declaração de que as nossas escolas não seriam fechadas. Nós não o pediremos Aguardaremos a manifestação do povo. Um dia, esse povo brasileiro, reconhecendo a elevação das nossas intenções, entregar-se-á confiante aos novos bandeirantes do Brasil. Portanto, ao menos, houve a franca tentativa dos integralistas associarem a sua imagem à da Liga e à dos seus sócios. Não foram encontrados documentos nem periódicos, entretanto, que indiquem a intervenção da sociedade e de Cosme, junto ao governo getulista, ao interventor Juracy Magalhães, à polícia ou a quaisquer outros órgãos, para evitar o fechamento das escolas integralistas ou beneficiar os camisas-verdes. Quaisquer que fossem as motivações da Ação Integralista, esses episódios prestamse, ainda, como demonstração dos mecanismos utilizados pela Liga, estrategicamente planejados ou ocasionais, para garantia de seu funcionamento, sua consolidação e sua expansão na Cidade da Bahia e no interior. A documentação, também, evidencia o papel inexorável de Cosme de Farias, sócio-fundador e presidente por longo período do movimento, para a manutenção da entidade por mais de sete décadas, em contextos sociais, políticos e econômicos variados, e o êxito das suas investidas. 3.1.3.1 Entre política e pedagogia A ideia da constituição da Liga Bahiana contra o Analfabetismo em 12 de outubro de 1915 era oportuna, diante das carências educacionais do País e da Bahia, mas não, inédita. Possivelmente, o grupo havia se inspirado na então recém-lançada Liga Brasileira contra o Analfabetismo631, constituída meses antes, em 21 de abril de 1915, no Clube Militar do Rio de 631 Vanessa Carvalho NOFUENTES. Construindo a Nação: Liga Contra o Analfabetismo no Estado do Rio de Janeiro (1916-1919). In: XII Encontro Regional de História/Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense; São Paulo: Associação Nacional de História, 2006; Vanilda PAIVA. História da Educação Popular no Brasil: educação popular e educação de adultos. 6. ed. rev. amp. São Paulo: Edições Loyola, 2003. 215 Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro, por advogados, médicos, escritores, militares, entre outros profissionais, com a audaciosa meta de erradicar o analfabetismo do Brasil em sete anos, até o centenário da Independência do jugo português, em 1922. Somente cinco meses depois, em 7 de setembro de 1915, a Liga632 foi inaugurada e começou a funcionar na sede do Liceu de Artes de Ofícios do Rio de Janeiro, fundado em 1858, por Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, e então mantida pela Sociedade Propagadora das Belas Artes com a finalidade de proporcionar à população o estudo das artes e de ofícios diversos. Sob o lema “Combater o analfabetismo é dever de honra de todo brasileiro”, a entidade fluminense definiu princípios fundamentais para si633. Entre os quais, destacam-se: a junção de forças com a União, os Estados e os municípios e a sociedade civil para extirpar o analfabetismo do País; a promoção do ensino de leitura, escrita, aritmética, desenho geométrico e noções de civismo dentro do processo de alfabetização; a criação de escolas gratuitas, urbanas e rurais, diurnas e noturnas; a arregimentação de professores para atuação nas turmas; o incentivo à concepção e implementação de leis de exclusão de analfabetos das funções públicas, de qualquer natureza, a partir do dia 7 de setembro de 1920, e tributação de estabelecimentos privados comerciais, agrícolas e industriais que admitissem analfabetos de qualquer sexo e idade, como formas de promover turmas dentro dos locais de trabalho e desestimular que o trabalhador insistisse em ficar sem letramento, sob pena de desemprego. Em consonância, a Liga Brasileira determinou seus principais objetivos634, a saber: disseminar a bandeira do combate ao analfabetismo pelo Brasil; fomentar o funcionamento de cursos noturnos, dedicados, sobretudo, à educação de jovens, adultos e idosos com afazeres domésticos e trabalho para autossustento no decorrer do dia, que lhes impedissem de estudar em turmas diurnas; e tornar obrigatório o ensino primário em território brasileiro – o que seria alcançado apenas em 1934 –, a partir da criação de sessões da entidade nos demais estados e de ações conjuntas com o poder público federal, estadual e municipal e a sociedade civil. A proposta era garantir a educação integral, inclusive com intervenções para orientação quanto às relações familiares, em reconhecimento ao papel da família na formação do indivíduo, à saúde, à moral e ao civismo, demonstrado através do respeito e da valorização da Pátria. As atividades da Liga Brasileira, portanto, ultrapassavam a busca por oferta de vagas 632 João Augusto Lima de OLIVEIRA. República e Alfabetização. Op. cit. p.49; HISTÓRICO. Liceu de Artes e Ofícios (site oficial). Rio de Janeiro: Liceu de Artes e Ofícios, 2010. Disponível em: <http://www.liceudearteseoficios.com.br>. Acesso em: 21 jan. 2010. 633 João Augusto Lima de OLIVEIRA. República e Alfabetização. Op. cit. p.55. 634 Vanessa Carvalho NOFUENTES: Liga Contra o Analfabetismo no Estado do Rio de Janeiro (1916-1919). Op. cit.; Vanilda PAIVA. História da Educação Popular no Brasil. Op. cit. 216 em quantidade compatível com a demanda e a qualificação da infraestrutura e do currículo escolar. Os associados organizaram, por exemplo, duas conferências que atestam seus anseios, com os temas “Família, Escola e Pátria” e “Saúde do Corpo e Saúde do Espírito”. Também, promoviam o culto à Bandeira Nacional, a celebração de festas cívicas e o escotismo. Nos sete anos iniciais, a Liga Brasileira fomentou ou colaborou, diretamente, para a implantação de unidades regionais em 20 estados brasileiros, inclusive no Rio de Janeiro, no Espírito Santo, em Pernambuco, em Sergipe e, possivelmente, na Bahia, porém não alcançou sua meta inicial. Não obstante pôde contar com resultados positivos na comemoração do centenário da Independência do Brasil, em 1922, entre os quais a criação de cursos noturnos e a instalação de escolas primárias pelo País, viabilizadas com recursos advindos de instituições diversas (como a imprensa, lojas maçônicas, igrejas). Uma dessas, era a Liga Fluminense635, instituída em 1916 visando a disseminação do ensino primário no Brasil, através do trabalho de comissões escolares em cada distrito dos municípios fluminenses. Oficialmente, a intenção era, sobretudo, alfabetizar pessoas com idade entre 14 e 50 anos, em turmas noturnas com funcionamento gratuito, utilizando livros doados. Uma das primeiras atitudes foi fazer um diagnóstico das condições físicas, da proposta pedagógica e da demanda das escolas de cada município. Aquela Liga, aos poucos, se tornaria uma mediadora entre a população e o poder público, uma porta-voz das reivindicações de melhorias no segmento educacional. No ano seguinte, em 24 de setembro de 1916, surgiu a Liga Sergipense contra o Analfabetismo636, em Aracaju, sob presidência de um conhecido defensor da causa pelo desenvolvimento nacional, Ávila Lima. Os sergipanos articularam uma rede de escolas alternativas, populares e com aulas noturnas para alfabetização, principalmente, de adultos. De acordo com Andrade637, é possível que tenha tido propósito político, como a organização de eleitorado em favor de determinado indivíduo ou grupo ideológico, mas não se deve desprezar o caráter pedagógico e a contribuição educacional da iniciativa em Sergipe. As principais iniciativas para angariar recursos eram as “caixas escolares”, criadas em 1918, no Rio de Janeiro, fundamentadas no decreto n° 1616 de 5 de julho de 1918 (que regulamentava a Lei n° 1169 de 29 de outubro de 1913), e mantidas através de um discurso 635 Vanessa Carvalho NOFUENTES. Construindo a Nação: Liga Contra o Analfabetismo no Estado do Rio de Janeiro (1916-1919). Op. cit. 636 Rita Leoser da Silva ANDRADE. O Caráter “Extra-pedagógico” da Liga Sergipense contra o Analfabetismo. In: IV Encontro Regional de História/Bahia. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; São Paulo: Associação Nacional de História, 2008. 637 Id Ibid. 217 cívico-patriótico de associação da colaboração financeira e/ou material ao amor à Pátria e preocupação com o futuro da Nação. Com a renda e o material aferido com as doações às caixas, pretendia-se atrair e manter os estudantes na escola, assegurando-lhes o ensino e auxílio alimentar e para vestuário. Este instrumento de coleta resistiu, inclusive, ao desaparecimento da Liga Brasileira, sentido a partir de 1919, sendo sustentado em localidades como o Rio de Janeiro, por anos. Diante do cenário propício, com grande parcela da população sem letramento e carência de infraestrutura e mão-de-obra para atenuar o quadro, outras iniciativas surgiram nos anos 1910 com propósitos similares aos da Liga Brasileira e suas sessões regionais. Uma delas foi a Liga de Defesa Nacional (LDN), cujo diretório do Rio de Janeiro, criado em 1917, era gerido pelo presidente da Liga Fluminense contra o Analfabetismo, Leopoldo Teixeira Leite. Um dos objetivos da LDN era formar linhas de tiros e associações de escoteiros no País, possivelmente, visando instruir grupos para atuação em eventuais frentes de defesa e dar uma ocupação à população ociosa, sobretudo jovem. Associados da Liga Brasileira, como Luiz Palmier, contribuíram para cumprimento dessa meta. Com o envolvimento das mesmas pessoas em ambos e o acúmulo da direção nas mãos de Leite, a convergência de ações entre os movimentos tornou-se quase inevitável. Em contraposição às abordagens que definem as ligas concebidas na década de 1910 no Brasil como movimentos de caráter essencialmente político, voltados à organização do eleitorado e à formação de opinião pública, a documentação– diz Nofuentes638 – sinaliza a existência de um propósito cívico-nacionalista com preocupação pedagógica da Liga Brasileira, manifestado através da busca de um diagnóstico das condições de ensino em um primeiro momento, da realização de conferências e da tentativa de manter o estudante em sala de aula, por meio da garantia de alimentação e vestuário. Essa proposta, possivelmente, foi um dos legados dos militares que apoiaram a constituição da Liga. O contexto social e político, também, favorecia639: a iminência dos altos índices de analfabetismos atraírem a atenção de outras Nações, no decorrer dos festejos pelo centenário da Independência em 1922, atiçou o espírito nacionalista do brasileiro; e, desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, surgiu a demanda pela extinção de escolas mantidas por estrangeiros e pela criação de unidades escolares nacionais, com oferta de educação moral e cívica, como uma das formas de combate ao estrangeirismo no Brasil, sobretu638 Vanessa Carvalho NOFUENTES. Construindo a Nação Construindo a Nação: Liga Contra o Analfabetismo no Estado do Rio de Janeiro (1916-1919). Op. cit. p. 6-7. 639 Vanilda PAIVA. História da Educação Popular no Brasil. Op. cit. p. 106-107. 218 do, à germanização dos estados do Sul. Há que se investigar os efeitos quantitativos e qualitativos do trabalho da Liga e o custo-benefício da introdução de aspectos cívicos e nacionalistas, no projeto pedagógico e nas atividades didáticas, para a formação da visão de mundo e o desenvolvimento de postura crítica dos estudantes. Contudo, apesar de fértil, este debate científico acerca dos discursos e das práticas do movimento ainda está por vir640 e escapa aos propósitos dessa tese, por exigir um esforço que obrigaria o desvirtuamento dos objetivos centrais aqui firmados. A despeito das suas motivações, a Liga pode ter influenciado a concepção de políticas públicas de educação implantadas no País a partir dos anos 1920 e, quiçá, outras ações pela alfabetização, governamentais, de igrejas, da sociedade civil organizada e até de empresários. Após a entidade, surgiram iniciativas como a Cruzada ABC (1932), a Bandeira Paulista de Alfabetização (1932), a Campanha de Educação de Adultos (1947), a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958), o Movimento de Educação de Base (1961), o Programa de Alfabetização pelo Método Paulo Freire (1964), o projeto De Pé no Chão Também se Aprende RN (1964), o Movimento Brasileiro de Alfabetização (1970/1985), o Programa Nacional de Educação e Cidadania – PNAC (1990), o Programa de Educação para Todos (1993), do Programa Alfabetização Solidária (1997), o Programa Brasil Alfabetizado (2002) e o Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos do Serviço Social da Indústria (2006). Ao que consta, a sessão baiana da Liga Brasileira logrou êxito. A despeito de deficiências e de falhas que tenham ocorrido, a Liga da Bahia tornou-se singular na história da educação pela obra realizada por mais de 70 anos, sobretudo, por iniciativa de Cosme. Os registros são controversos, mas, em geral, revelam números grandiosos. De acordo com o jornal diário A Tarde e a revista Realidade641, até o ano de 1972, ela manteve cerca de 200 escolas de ensino primário gratuito; implementou medidas que propiciaram a alfabetização de mais de 10 mil pessoas; e editou e distribuiu cerca de 2 milhões de cartilhas, além da oferta de material escolar. Já o Jornal da Bahia642 cita a emissão de 20 mil unidades de Carta do ABC por ano e a manutenção de 2 mil unidades escolares na Bahia. Outros dois méritos são a intervenção, junto ao governo, para a inauguração de uma pioneira escola pública destinada à educação de adultos e a sensibilização da diretoria do Co640 Infelizmente, não cabem nessa tese, sob pena de desvio do enfoque proposto. A TARDE. Salvador (BA), edição de 18 de março de 1972; Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 124. 642 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 15 (2º clichê), 17 de março de 1972. 641 219 légio Ipiranga – uma das unidades de ensino da rede privada mais famosas da capital – para acolher, gratuitamente, analfabetos e ensiná-los a leitura e escrita. Dentre as escolas643 criadas e/ou sustentadas pelo movimento, estão a Escola São Roque (Federação), Cosme de Farias (Centro de Salvador), Joviniano dos Passos e Antônio Viana. Em 1937, na Capelinha de São Caetano, em Salvador, por exemplo, ela promoveu comício pela erradicação do analfabetismo e inaugurou a Escola Livino de Amorim, então com 35 crianças matriculadas, nomeada em homenagem ao professor homônimo. A Liga foi a organização social mais representativa e a educação, a bandeira mais relevante da vida de Cosme. Neste segmento, ele atirou-se na luta, combatendo a ignorância principalmente com ações sociais e a mobilização popular, apesar de a obrigação em fazê-lo ser do poder público. Havia uma indissociação entre os afazeres da entidade e de Cosme, o principal líder da sociedade até sua morte, em 1972. Em algumas fases, a Liga parecia reduzir-se a ele. O benemérito redigia a cartilha; providenciava a verba para custear a impressão e a aquisição de materiais escolares; fazia a distribuição; e saia para encontros corpo a corpo com a população, visando conquistar a adesão de voluntários. Assim como no campo da justiça, Cosme buscou abater uma chaga nacional com o que estava ao seu alcance, ainda que a causa tivesse raízes profundas e dependesse de uma firme e duradora aliança da sociedade civil com o governo para ter solução definitiva. O Estado estava ausente da LBA; no máximo, destinava-lhe, de forma assistemática, subsídios para suas ações. Talvez, a apropriação da causa pelo jornalista, com tais métodos, e a falta de parceiros que verdadeiramente fizessem o mesmo tenham sido determinantes para a extinção das atividades. Não havia substituto para ele, após sua morte (ocorrida em 1972). Mesmo sem fundos e sede própria, a Liga sobreviveu por mais de seis décadas. Em 1975, apenas 14 escolas primárias de Salvador ainda estavam vinculadas a ela. Suas atividades foram suspensas gradualmente 644, até serem encerradas em definitivo entre 1976 e 1977, contrariando um dos derradeiros desejos do seu principal benfeitor, esboçado no texto Minhas Últimas Vontades645: Rogo aos distintos confrades da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, espe643 A TARDE. Salvador (BA), edição de 8 de março de 1954; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 3 de agosto de 1971; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 6 de abril de 1937; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 90, 158. 644 A TARDE. Salvador (BA), edição de 16 de março de 1976; DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 3 de abril de 1975; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 2 de abril de 1965. 645 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 220 cialmente ao professor Valdir Oliveira, tenente Arthur Brandão de Barros, Claudionor Ribeiro Sanches, Antonio Fernandes Pinto, Capitão Bernardo Assis, professor Demosthenes do Bonfim Alves e Antônio Luiz de Oliveira Franco, que, não deixem, absolutamente, a instituição desaparecer, porque será isto uma tristeza e vergonha para a Bahia. Há muitos anos, a LBA já definhava. Sua estrutura parecia combalida, minada pela escassez de recursos para manutenção da extensa obra – seguramente, relacionada à ausência dos repasses pessoais do Cosme e da renda angariada por ele – e pela sobreposição de ações com o Movimento Brasileiro pela Alfabetização (Mobral) e outros programas governamentais646, que impunham uma concorrência, de certa forma, desigual, na medida em que eram subsidiados sistematicamente com verbas orçamentárias e contavam com melhor infraestrutura e divulgação. Sua falência, após a morte de Cosme, é mais uma evidência de que o movimento sustentava-se, sobretudo, pelo trabalho dele. Em todo o tempo que esteve à frente a Liga Bahiana, ele, aparentemente, seguia os princípios norteadores da Liga Brasileira, em especial, o viés cívico-nacionalista com preocupação pedagógica, inclusive diante das mudanças sociais e políticas ocorridas no País e no mundo. Indubitavelmente, promovia a alfabetização e, mais que isso, alimentava a crença no poder do letramento e da escolarização. Não houve recuo após o desaparecimento da matriz, ainda nos anos 1910, nem da assimilação do discurso nacionalista por dirigentes dos dois regimes autoritários instalados no Brasil republicano – o Estado Novo e o governo militar pósgolpe de 1964 –, que poderia promover uma falsa associação da Liga e do próprio jornalista aos regimes de exceção e limitações dos direitos civis dos brasileiros. Talvez, a LBA tenha conservado o princípio cívico-nacionalista por fidelidade às bases firmadas na sua inauguração ou mesmo por compreender que o amor à Pátria contribuiria para o desenvolvimento do País. Então, tarefas como a organização de eventos com hasteamento da Bandeira Nacional e execução do Hino brasileiro em espaços públicos, assim como a inclusão de hinos patrióticos e de personalidades do Brasil na Carta do ABC e a colagem de fitas verdes e amarelas nas correspondências, seriam apenas formas de demonstrar seu patriotismo. Sentimento similar seria demonstrado por Cosme, ainda, em outras atividades do cotidiano como a composição do vestuário, quando incluía na lapela fitas nas cores predominantes no pavilhão nacional. Os periódicos locais sinalizam, contudo, que o grupo baiano nem sempre reproduzia as práticas empregadas pela Liga Brasileira no Rio de Janeiro e demais estados. Ou seja, os 646 Mônica CELESTINO. Advogado dos Pobres. Op. cit. p.14-16. 221 princípios eram os mesmos, mas as formas de viabilizar o cumprimento dos objetivos propostos variavam, adequando-se à realidade local e, sobretudo, ao perfil e às relações de Cosme. Por exemplo, ao menos com essa nomenclatura, as “caixas escolares”, criadas em 1918 com amparo legal e apoio governamental, não foram implementadas na Bahia. Houve a coleta de doações e a arregimentação de subsídios do poder público, mas não há vestígios na documentação da constituição de “caixas” formais com normas e regras para os contribuintes. E, ao contrário do que aparentemente ocorreu em outras unidades da federação, a Liga na Bahia esteve muito mais amparada pela sociedade civil do que pelos governos, postura que pode ter lhe assegurado a permanência por mais de sete décadas. Com a multiplicidade de fonte de renda, incluindo a reiterada aplicação de recursos pelo próprio Cosme, a LBA, voluntariamente ou não, sobreviveu por muito mais tempo do que suas similares. Diferente das demais, não corria risco de se caracterizar como ação de um governo específico e, por isso, ser rechaçada em uma eventual alternância de governante e/ou regime. A confirmação dessa inferência, contudo, só pode ser feita mediante um estudo comparativo, aprofundado e preciso sobre o tema, o que foge aos objetivos dessa tese. Também, não há evidências de que Cosme tenha adotado uma lógica clientelista, aproveitando-se, de forma deliberada e planejada, do trabalho e da sua forte inserção em diversos estratos sociais para se projetar, ter proveito pessoal, garantir sua mobilidade na intrincada pirâmide social da Cidade da Bahia. Ao contrário: ele destinava recursos financeiros próprios para manter as ações da sociedade beneficente, inclusive enquanto esteve alijado do parlamento (entre as décadas de 1920 e 1940). Contudo, existem registros pontuais do clamor de outros sócios do movimento na imprensa, em campanhas eleitorais, por Cosme, rememorando sua dedicação à Liga. Ou seja, seus confrades buscaram vincular o benemérito à LBA, na expectativa de amealhar votos em seu favor, mesmo sem a anuência dele. Uma destas iniciativas ocorreu em 1955647: Aos dignos votantes das Urnas Suplementares. O Comitê Cívico, instituído especialmente para pugnar pela vitória da candidatura do major Cosme de Farias, para Vereador, pelo município de Salvador, [...] pede a todos os eleitores das urnas da Liberdade, Pirajá e Água Comprida que vão ser renovadas em 27 do corrente mês, que sufraguem o seu festejado nome, dando assim, uma prova eloqüente de nobreza dos seus sentimentos. Cosme de Farias é um homem que, há 56 anos, sem interrupção, defende, 647 A TARDE. Salvador (BA), edição de 24 de fevereiro de 1955. 222 aqui, os infelizes, os desamparados, os desvalidos, e os desprotegidos da sorte. E, também, neste Estado o pioneiro patriótico e audaz d´A Campanha contra o Analfabetismo’. Ás urnas, pois, dignos e conscienciosos votantes com o nome do incansável Cosme de Farias. Salvador, 23 de fevereiro de 1955. Prof. Valdir Oliveira, Claudionor Ribeiro Sanches, Antonio Luiz Franco, Benedito Ribeiro Caldas, Manoel Abilio de Jesus, Adolpho Ribeiro Sanches, Heraclio Cardoso de Melo, João de Barros Barbosa, Paulino Joviniano Caribe, Cassiano Cardoso da Silva, Ponciano Pereira da Fonseca, Antonio de Matos, Joaquim de Jesus, Florisvaldo Atalico de Assunção, Fabio Trindade, Arnaldo Francelino Pereira, José Joaquim de Carvalho, Leônidas da Cunha, professora Elza Ferraro de Melo, Oto Brandão Filho e Edmundo de Almeida. Os documentos desta natureza, porém, não trazem vestígios de participação direta do próprio Cosme nestes atos e não permitem inferir o uso da LBA como instrumento eleitoral por ele. Ademais, possivelmente, não seria uma excrescência fazê-lo, porque os mandatos políticos dele sempre estiveram comprometidos com a defesa da educação e, em especial, da obra da própria Liga. Somente em um estudo específico, pode-se confirmar se integrantes do movimento tinham propósitos políticos, em concomitância às intenções cívico-nacionalistas e pedagógicas, e como estes teriam se manifestado. Por ora, sabe-se que, mesmo de maneira involuntária, a Liga Bahiana agia em consonância com parte da elite brasileira, por desejar alfabetizar os brasileiros, mas com finalidade diversa. A primeira, melhorar a qualidade de vida das pessoas; e a segunda, seduzi-las para manipulá-las. A partir dos anos 1920, grupos de destaque político se voltaram à educação popular no Brasil648, apostando na alfabetização em massa como mecanismo para conquista e manutenção no poder. Se usavam o movimento para fins eleitoreiros, os militantes reiteravam a condição de inferioridade do não-letrado perante a população alfabetizada na sociedade da época, que tinha a educação como um dos pré-requisitos para ascensão social. Pressupor essa hipótese como procedente implica admitir uma lógica perversa: todos seriam alfabetizados e orientados a partir dos princípios da sociedade, tendo assegurado o direito a sufrágio nas eleições649, mas, 648 Ana Maria FREIRE. Analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 1989 apud João Augusto Lima de OLIVEIRA. República e Alfabetização. Op. cit. p. 62. 649 A Lei 3.029, de 9 de janeiro de 1881, conhecida como Lei Saraiva, proibiu o analfabeto de votar em pleitos oficiais. Desde então, o eleitor deveria ter qualidades como o domínio da leitura e escrita. O direito a voto só foi restabelecido para quem não sabia ler e escrever a partir de 1985 e foi previsto na Constituição Federal vigente, de 1988. Alceu Ravanello FERRARO. Analfabetismo no Brasil: desconceitos e políticas de exclusão. Perspec- 223 em contrapartida, por gratidão, medo ou interesse em receber novos benefícios, votariam nos nomes bem-quistos ou indicados por ela. Afora isso, também, todos seriam induzidos às práticas cívico-nacionalistas e a simpatizar com correntes políticas parceiras como o integralismo. Assim, as pessoas passariam a dominar a leitura, a escrita, a matemática, mas perderiam a autonomia como cidadãs. Tal suposição, pelo menos a princípio, parece improcedente. Mantém-se a expectativa que, estritamente, os aspectos educacionais eram o foco da LBA. A trajetória de Cosme, líder inconteste do movimento, confere sustentação a tal afirmação. Além do combate duradouro contra o analfabetismo, ele teve participação ativa em outras iniciativas pela educação. Exemplos não faltam. Ainda na juventude, no início da vida profissional e muitos anos antes da primeira candidatura, ele envolveu-se na “Campanha do ABC”, o embrião da Liga. Depois, filiou-se e dirigiu o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, fundado em 20 de outubro de 1872, para amenizar o drama sócio-econômico de escravos libertos e, mais tarde, de descendentes de escravos beneficiados pela Lei do Ventre Livre, sancionada em 1871. Com didática calcada na relação entre o mestre e o aprendiz, o Liceu promovia cursos de capacitação e qualificação de mão de obra, em áreas como marcenaria e tipografia, e propiciava debates e exposições na sua sede, no Paço do Saldanha, que teriam originado, inclusive, as discussões para implantação da Escola de Belas Artes (hoje anexada à Universidade Federal da Bahia)650. Apesar de ser privado, mantinha relações com os governos e, em determinadas fases, demonstrou sua fidelidade a governadores como Seabra, a quem prestou homenagem em 1916. Nele, o benemérito teve papel fundamental: era comum que lhe prestasse ajuda financeira; presenteasse seus melhores alunos de cada ano651 – em 1919, por exemplo, Agostinho Alves de Almeida foi laureado, por seu desempenho, com o Prêmio Cosme de Farias 652 e recebeu abotoaduras –; e defendesse seus interesses no legislativo, solici- tando subvenção do governo baiano653 para a casa. Pelos préstimos, foi eleito e reeleito presidente da instituição, na década de 1910654. Ao que parece, Cosme apostava na educação como uma espécie de redenção e possibilidade de ascensão social de pessoas pobres, de semelhantes a ele. E fazia isso por convictiva. Vol. 22, nº 1. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, jan.-jun. 2004, p.111-126. Disponível em: <http://ced.ufsc.br/nucleos/nup/perspectiva.html>. Acesso em: 21 jan. 2010. 650 HISTÓRIA. Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (site oficial). Salvador: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 2004. Disponível em: <http://www.liceu.org.br/portugues>. Acesso em: 20 jul. 2004. 651 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 3 de agosto de 1971. 652 O DEMOCRATA. Salvador (BA), edição de 14 de abril de 1920. 653 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 5 de março de 1916. 654 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 17 de dezembro de 1915. 224 ção. Sobre isso, afirmou na Assembleia Legislativa do Estado, ao reassumir em 1971 o cargo de deputado estadual: “A todos, crianças e adultos, tenho procurado colocar nas mãos uma cartilha de ABC como o instrumento maior de conquista da liberdade. [...] O povo não pode ser escravo de ninguém”655. A sua visão é evidente, também, em peças como a poesia Versos à Infância, criada em 1920 e largamente disseminada na Carta do ABC (“Correi, portanto, às escolas,/ Para o batismo da Luz.../ Palpita na voz dos mestres/ A doce voz de JESUS!/ Firmes, então, na porfia,/P´ra obterdes o saber,/ Provai ser nobres e fortes,/Cumprindo o vosso dever!”)656 e os versos declamados durante a instalação da Liga (“Brasileiros, meus amigos/ Pelo amor de Jesus/ Aos pobres analfabetos/ Daí um punhado de luz”657). Portanto, agir diferente disso seria contrariar seu próprio discurso e, de certa forma, negligenciar a oportunidade de possibilitar inserção social de pessoas como ele. 3.1.4 Batalhas contra a carestia Em consonância às lutas por alfabetização, pelo direito de defesa perante à justiça e à polícia e acesso à saúde e trabalho, Cosme de Farias enfronhou-se na peleja por condições de sobrevivência, por meio da organização de manifestações populares contra o aumento do custo de vida e a perda do poder de compra do consumidor. O enfrentamento da carestia permeou, pelo menos, cinco décadas da sua vida. Os primeiros indícios de seu envolvimento na causa datam dos anos 1910. Aqueles foram anos difíceis para a Bahia, diante de incertezas políticas provocadas por disputas internas de um grupo político e econômico pelo poder e de desconfianças quanto ao futuro da economia, ainda instável e baseada na agro-exportação658. O quadro agravou-se com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a consequente escassez de produtos industrializados659. 655 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 20 de maio de 1971. Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Op. cit. 657 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972 (2º clichê). 658 Exportavam-se, sobretudo, produtos primários, matéria-prima com baixo valor agregado. Nove dos 11 principais itens exportados pela Bahia eram primários, com baixo valor agregado. Na agricultura, mantinha-se o sistema de compra antecipada de safras, com pagamento em dinheiro e em artefatos utilizados na agricultura (como enxadas e foices). A indústria baiana era incipiente: ela restringia-se, principalmente, à produção de alguns tipos de tecidos (os finos eram importados), açúcar e derivados, enquanto a maioria dos produtos manufaturados vinha de fora do Estado. Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.362-365. 659 Houve queda na oferta de produtos, sobretudo manufaturados – cuja maioria era trazida do exterior – e, por conseguinte, aumento dos preços de mercadorias, inclusive gêneros de primeira necessidade como alimentos e 656 225 Inconformada com o alto custo de vida, a população manifestava sua indignação, especialmente, em eventos públicos e pela imprensa. As primeiras intervenções teriam ocorrido já em 1911. Dali em diante, somaram-se inúmeras outras. Diante do cenário desfavorável, militantes, organizados em ligas ou comitês, tornaram os protestos contra carestia frequentes nesses anos de Guerra, mas as mobilizações já ocorriam mesmo antes do primeiro disparo de arma de fogo e perseveraram por décadas, embora sem a existência de um fluxo contínuo e permanente. Nos anos 1910, multiplicaram-se mobilizações contra a incompatibilidade dos salários em relação aos custos de vida, a perda de poder aquisitivo e as dificuldades para obtenção de materiais de uso corrente, devido a falhas de abastecimento provocadas pelo conflito mundial. Contudo, a reivindicação mais comum era a redução dos preços de gêneros alimentícios e dos valores cobrados por aluguel e serviços de transportes. As táticas eram diversificadas, dependiam do contexto e do modo de agir da liderança. Viam-se a brusca interrupção do funcionamento e a destruição do patrimônio de umas empresas, acusadas de práticas abusivas; a dilapidação da imagem pública de outras, em eventos públicos e nas páginas de jornais; a promoção de marchas coletivas e assembleias populares; e requerimentos formais de intervenção no assunto pelos governantes. Por vezes, as ações surtiam algum efeito, inclusive com apoio do governo. Em outras, nada era alterado. Entre os protestantes, encontravam-se profissionais liberais, estudantes, militantes sociais e políticos e até comerciantes que repudiavam a prática de preços exorbitantes. O primeiro registro de participação de Cosme no movimento data de 19 de outubro de 1911. Naquele dia, fez-se uma passeata e um comício em prol da causa, além de um ato público para entrega de solicitação de intervenção da Intendência contra a carestia 660. As manifestações mais intensas, entretanto, ocorreram apenas entre março e abril de 1913, após a destruição de casas erguidas ilegalmente na cidade, sem previsão de construção de novos imóveis em substituição àqueles destroçados pelo serviço de Higiene Pública661. Indignados, os manifestantes promoveram comícios e passeatas dirigidos, em especial, a artistas, operários, trabalhadores em serviços de bondes, saveiristas, carroceiros, carregadores de trapiches, tecidos, porque organizações com capital alemão e de países aliados à Alemanha suspenderam as operações com o Brasil, em retaliação ao apoio brasileiro aos seus inimigos (Inglaterra, França e Estados Unidos), deixando o comércio interno desprovido de inúmeras mercadorias industrializadas. Até então, os estrangeiros (alemãs, ingleses, franceses etc.) dominavam o comércio exterior na Bahia; e a precariedade das vias de transporte e comunicação atrapalhava o trânsito e a distribuição no interior. Consuelo Novais SAMPAIO. A Bahia na Segunda Guerra Mundial. Revista da Academia de Letras da Bahia. Salvador (BA): Academia de Letras da Bahia, 1996. Separata. 660 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p. 153. 661 Id. Ibid., p. 153-154, 164-165. 226 vendedores de frutas, pão e carne, carvoeiros, marinheiros, remadores, além de praças do Exército, Regimento Policial e Corpo de Bombeiros, guardas civis e municipais, funcionários públicos, caixeiros e até comerciantes que não estavam entre os “exploradores”; e tentaram sensibilizar empresários, parlamentares e líderes do poder executivo municipal e estadual em seu favor, encaminhando documentos a eles ou publicando artigos na imprensa. Sob a presidência de Cosme de Farias, o Comitê Popular Contra a Carestia de Vida662 levantou possíveis medidas para solucionar (ou, pelo menos, atenuar) o aumento do custo de vida em Salvador e, consequentemente, os empecilhos para a sobrevivência da população, em especial, de baixo poder aquisitivo. Entre as propostas, estavam a edificação de casas para a camada proletária; a redução das tarifas cobradas para transportes em ferrovias, veículos para navegação costeira e embarcações para tráfego no Rio São Francisco, o que melhoria a distribuição de mercadorias e desoneraria os custos dos produtos; e, ainda, a isenção de taxas municipais para atuação de vendedores de gêneros trazidos de localidades vizinhas a Salvador, também, como recurso para diminuir os custos. Mário Augusto Santos, em A República do Povo – sobrevivência e tensão, explica os procedimentos dos militantes nesse período, sob a liderança do benemérito 663: Dirigiram-se ofícios à Linha Circular e ao secretário Geral do Estado a respeito do preço de transportes urbanos e interurbanos. Criticou-se a derrubada de casas pela Higiene Pública e foi solicitado que não se continuasse a operação enquanto outras não fossem concluídas. [...] De 3 a 16 de março realizaram-se comícios em vários pontos da cidade, logradouros centrais para onde afluía a população trabalhadora, ou áreas residenciais populares (Garcia e Baixa da Soledade). O movimento de rua culminou em um ‘comício mostro’ na Calçada (zona residencial popular, comercial e onde se localizava o terminal ferroviário). Depois do comício, formou-se uma passeata rumo ao Palácio do Governo, levando-se cartazes onde se lia: ‘O povo tem fome’ e ‘Abaixo a exploração’. Recebidos pelo governador, os manifestantes entregaram uma mensagem, na qual se analisavam as causas do encarecimento dos gêneros e se indicavam medidas a tomar. Depois, o Comitê passou a agir em reuniões no Centro Operário e, em seguida, no Montepio dos Artistas. Só voltou à rua no dia 20 de abril, quando Cosme de Farias leu um manifesto do Comitê Popular ao País, que narrava o movimento, as esperanças iniciais e as desilusões finais diante de promessas não cumpridas pelo Governo. Escolhido por aclamação em 1913, Cosme, em geral, buscava o diálogo para ter seus pleitos atendidos. Em sua gestão, apenas em situações pontuais, o Comitê664 promoveu ações 662 Ver também em Id. Ibid., p. 147-183. Id. Ibid., p. 153-154. 664 Ver também em Id. Ibid., p. 147-183. 663 227 mais agressivas, como “fecha-fecha” e quebra-quebra de casas comerciais e bens de terceiros. Como administrador de organizações reivindicatórias, ele era comedido, de tom moderado e estilo conciliador. Já no início do mandato, evitou acusar diretamente o governador José Joaquim Seabra pela carestia665, e, somente meses depois, passou a atribuir responsabilidade a ele e aos comerciantes, a quem chamava de “exploradores do povo”, talvez, impulsionado pela falta de resultados definitivos sobre a questão nas tentativas de acordo. Com essa política pacificadora666, chegou a manter uma comissão com trabalho junto ao Conselho Municipal para discussões ligadas à sua bandeira e a negociar com o líder da bancada seabrista na Câmara Federal, deputado Mário Hermes, a indicação da carestia como um dos temas prioritários dos parlamentares no legislativo. Tal modus operandi, entretanto, gerava polêmica entre os integrantes do Comitê baiano 667 . De um lado, sob o lema “União, prudência, critério e perseverança”, Cosme e outros militantes (como Gomes Vinhas, Antinas Sento-Sé, Miguel Paranhos, Artur Soares da Silva) sobressaíram-se por pregar e envidar esforços pela cautela e persistência, em respeito às leis. De outro, em contraposição, havia um grupo mais exaltado, que pleiteava ações mais combativas como a paralisação das atividades comerciais à força, cujos expoentes eram o alfaiate Cipriano Luis de Melo, o operário Paulo José Reis, o pintor Alexandre Borges de Barros e o professor José Maria de Bittencourt. Talvez, por iniciativa ou pressão dessa corrente, foram implementadas as poucas ações exasperadas registradas nessa fase do movimento, cujos resultados (a repressão policial e o repúdio do Centro Operário da Bahia, entidade que abrigava o Comitê em sua sede) desencadearam a exoneração dos mais exaltados da direção do grupo e o enfraquecimento da comissão. Ainda assim, no final daquele ano, Cosme e outros membros do Comitê tiveram fôlego para se engajar na campanha da Liga Popular Pró-Rui Barbosa e recomendaram à população a escolha do jurista baiano para a presidência da República668. Aquele prometia ser um pleito histórico, porque, pela primeira vez, Rui Barbosa encontrava apoio na Bahia junto a facções até então adversárias, como a seabrista. Depois de apoiarem em 1910 a candidatura do marechal Hermes Rodrigues da Fonseca contra a Campanha Civilista liderada por Rui, 665 Id. Ibid., p.163-174. Id. Ibid., p.172. 667 Ver melhor em Id. Ibid. 668 O marechal Hermes da Fonseca venceu a disputa pela substituição de Nilo Peçanha na presidência, com cerca de 403 mil votos, embora o baiano Rui Barbosa, apoiado por cafeicultores paulistas, tivesse conquistado votação expressiva (aproximadamente 222 mil no total), sobretudo, em capitais importantes, como São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador (BA). Ver melhor em Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit. 666 228 José Joaquim Seabra e seu séquito aderiram ao nome do conterrâneo na escalada pela sucessão de 1913, em um curto período de entendimento entre ambos na história política do Brasil669. As divergências entre os dois grupos contra a carestia enfraqueceram o Comitê e, provavelmente, contribuíram para o arrefecimento de suas atividades até 1917, embora houvesse, nesse lapso temporal, ações pontuais e organizadas por grupos isolados, sobretudo contra varejistas, como a imposição da retomada de preços antigos e a aquisição de mercadorias por manifestantes sem pagamento, em retaliação contra uma possível especulação de preços por parte dos comerciantes. Acredita-se, inclusive, que esses protestos eram gerados mais por temor das consequências da Primeira Guerra Mundial do que em reação ao aumento real do custo de vida e, portanto, distanciavam-se das motivações do Comitê, que surgiu antes mesmo da eclosão do conflito bélico mundial e do seu impacto sobre a oferta e os preços de mercadorias em Salvador e em demais cidades do País. Nesse ínterim, Cosme de Farias envolveu-se novamente em campanha eleitoral, lançando-se como candidato a deputado estadual pelo Partido Democrata, cujo expoente era o governador José Joaquim Seabra. Em 1914, ele elegeu-se e, no ano seguinte, tomou posse como integrante da bancada situacionista, conforme discutido no capítulo anterior desta tese. A conquista aumentou suas chances em negociações relativas à carestia e a outros temas que lhes eram caros. Cosme não abandonou a causa. Ao contrário, criou670 uma Comissão Popular e passou a coordená-la, junto com Targino de Matos. Entre as iniciativas desse novo comitê, estavam o encaminhamento de petições à Intendência da Cidade e ao governo da Bahia, para intervenção no assunto em busca da facilitação do acesso a alimentos e outros produtos e serviços de primeira necessidade. De novo, na fase inicial, o grupo resguardou as autoridades, possivelmente, na tentativa de estabelecer um consenso, mas, depois, protagonizou ataques a governantes e comerciantes. Os episódios marcados pela afronta, mais uma vez, provocaram a cisão do movimento entre moderados e exasperados. O ano de 1917 foi marcado por greves de inúmeras categorias profissionais, em pontos diversos do País, inclusive em Salvador, motivadas pela redução do poder de compra da população em decorrência da estagnação da economia e da remarcação de preços. A Cidade da Bahia voltou a ter momentos de intensa mobilização contra a carestia, desta vez, organiza669 Ver melhor informações de contexto em Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 321334. 670 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. 229 da, em especial, por trabalhadores braçais e manuais. Em assembleias e marchas, debatia-se a majoração dos preços e se tecia críticas severas à administração pública. Em julho daquele ano, manifestantes focaram-se, sobretudo, ao custo do pão, mas adotaram medidas moderadas visando uma solução: requisitaram, ao Conselho Municipal, a extinção dos intermediários entre o fabricante e o consumidor final e pediram, ao governador seabrista Antônio Moniz, uma ação mais efetiva quanto ao assunto. Adiante, em agosto, os ânimos se exaltaram. Periódicos registraram a ocorrência da suspensão forçada das atividades comerciais em algumas localidades, de quebra-quebra e até de tiroteio com casos de morte. A polícia baiana e o Exército Brasileiro intervieram para restabelecer “a ordem” e fizeram a detenção de pessoas suspeitas de participação dos eventos. Ainda no início desse mês, em 9 de agosto, policiais proibiram a realização de novos comícios ou atividades similares, para conter os manifestantes. Com a repressão, as ações tornaram-se escassas nos meses subsequentes. Há registro, contudo, de que, em 1918, ainda na condição de deputado, Cosme retomou a questão, presidindo uma sessão, no Centro Operário da Bahia, em que se determinou a formulação de requerimento pela intervenção do governador, junto ao Comissariado da Alimentação, objetivando melhorar as condições da população. Em 1919, a Primeira Guerra Mundial já havia acabado, mas a escassez, sobretudo de produtos manufaturados (a maioria importada), associada à infraestrutura débil do País e à fragilidade da economia brasileira, incitava diferentes camadas da sociedade para se mobilizarem em busca de alternativas671. Os protestos em espaços públicos passaram a ser recorrentes. Greves em vários segmentos produtivos e manifestações sociais diversas eclodiram em todo o Brasil. Em meio a isso, surgiram iniciativas contra o alto custo de vida em Salvador, sem a organização vista outrora e, muitas vezes, de cunho violento. Houve suspensão do funcionamento de pontos comerciais; depredação de bonde; incineração de carne; e até ameaça a proprietários de abatedouros e trabalhadores do ramo, além de seus familiares. O movimento era instável. Após essa fase efusiva, ele entrou em cálido período, apenas com o registro de protestos espontâneos e esporádicos. Entre 1927 e 1928, aparentemente, houve um recrudescimento, gerado pela insatisfação com o sistema de transporte e com o custo da carne verde. Primeiro, em 1927, houve a tentativa de incêndio a bondes e a agressão a um policial, em protesto contra a superlotação dos veículos em circulação pela zona urbana. De acordo com periódicos da época, ainda em 1927 e no ano seguinte, o custo da carne moti671 Sobre isso, ver Aldrin CASTELLUCCI. Flutuações Econômicas, Crise Política e Greve Geral na Bahia da Primeira República. Op. cit.; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit.; Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit., entre outros. 230 vou a realização de comícios e tentativas de que a Intendência Municipal e o então governador, Góes Calmon, adotassem medidas contra a carestia. Até houve um acordo, com redução do valor cobrado pelo produto, mas a decisão não foi suficiente para conter os ânimos. Cosme estava na liderança, pelo menos, de parte dessas manifestações. Em assembleias populares, era orador habitual. Desta vez, agia através do jornal A Noite, diário de circulação local, dirigido por ele e patrocinador de ações dessa natureza na cidade. Além de combater a majoração, a atuação do veículo tinha uma interface com a campanha eleitoral prevista para aquele ano e poderia beneficiar diretamente seu diretor, dando visibilidade à sua imagem pública como um defensor da população e, possivelmente, à sua candidatura a uma das vagas disponíveis para o parlamento estadual, em oposição ao governador, a quem ele acusava de perseguição, que terminou abortada às vésperas das eleições672. Em A República do Povo, Mário Augusto Santos descreve a situação: Ao findar o ano de 1928, a alta pronunciada da carne verde levou o jornal oposicionista A Noite a promover comícios. O primeiro deveria realizar-se na praça do Mercado Modelo, mas por imposição do Chefe de Polícia fez-se no Terreiro, no dia 4 de dezembro. Nos dias seguintes, houve mais dois e, em todos, falou o Major Cosme de Farias, diretor da folha e candidato a deputado estadual. Dos comícios resultou uma comissão encarregada de declarar perante o Intendente que o ‘proletariado’ não aceitaria o rebaixamento irrisório de 2.000 para 1.900 réis por quilo, concedido após conferência entre o Executivo Municipal e representante da Sociedade Defensora dos Pobres. Mas, segundo respondeu a autoridade, não havia força legal que obrigasse os abatedores a cederem. Finalmente, os comícios foram proibidos pela polícia673 . Abatido pelos resultados das recentes investidas, o movimento experimentou um novo descenso até que cerca de dois anos depois, em 1930, em meio à crise política eclodida com a “Revolução de 1930”, a população voltou às ruas, em um episódio que se tornou conhecido como Quebra-bondes674 (ver abaixo). Rigorosamente combatido, até pela dimensão alcançada, o quebra-quebra de 1930 encerraria uma fase de manifestações relativamente frequentes, embora instáveis e organizadas por atores sociais diferentes. O clima esfriou por um longo período. O alto custo de vida e o combate à carestia só voltaram à agenda da capital em 1951, 672 A NOITE. Salvador (BA), edições entre 8 de novembro e 5 de dezembro de 1928. Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.161. 674 Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação – o legislativo da Bahia na Segunda República, 19301937. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 1992, p.42-44; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.161-162; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.381-382. 673 231 com a criação da Liga Popular Contra a Carestia. E, novamente, por iniciativa de Cosme, então vereador do município de Salvador. O momento era oportuno para a retomada. Uma onda de protestos tomava a cidade, por uma soma de fatores que contribuíam para a queda do poder aquisitivo e perda da qualidade de vida da população. À época, através da imprensa e de eventos em locais públicos, trabalhadores reclamavam da majoração dos preços de alimentos e da tarifa de transporte coletivo; clamavam por reajuste salariais, em consonância com reivindicações registradas em outras cidades brasileiras; e criticavam a ameaça de aumento dos impostos municipais. Os manifestantes encontraram guarida do edil, que, inclusive, discursou na Câmara Municipal local sobre o tema675, em favor dos protestos. O assunto, conforme documentação coletada nesta pesquisa, voltou à pauta da Câmara de Salvador em 1963, ano em que o País atravessava por uma série de protestos, inclusive contra o aumento dos preços dos combustíveis e de outros produtos, e de instabilidade política que culminaria com o golpe civil-militar de 1964 e a instauração do estado autoritário, posteriormente. De novo, em procedimentos com a participação de Cosme, ainda que nem tudo tivesse ocorrido por iniciativa dele. Ele subescreveu requerimento do colega, o vereador Ebert de Castro, para que a Câmara remetesse solicitação ao presidente da República, João Goulart, para adoção de medidas visando a contenção da majoração diária de alimentos, causadora de desespero na população e, de maneira antagônica, geradora do acúmulo de fortuna por comerciantes desonestos676. Já em sessão parlamentar plenária, ele criticou “a alta vertiginosa do custo de vida” e pleiteou providências das autoridades para conter a exploração677. De acordo com os documentos e periódicos analisados, esta teria sido a derradeira ação de Cosme contra a carestia, exatamente 50 anos depois da primeira. Tão extensa e persistente campanha, de certo, guarda relações com o comprometimento pessoal de Cosme de Farias com a garantia de condições mínimas de sobrevivência à população, em especial, ao trabalhador. Assim, a causa tem uma interface tanto com suas ações assistenciais, que, por vezes, incluía o abrandamento do impacto dos efeitos do aumento desenfreado dos preços através de ações como a distribuição de alimentos ou a oferta de dinheiro para aquisição de gêneros de primeira necessidade por indigentes e desempregados, quanto com o movimento sindical e de associações profissionais, por melhores condições de trabalho e remuneração compatível com as funções desempenhadas, e o contexto político e econômico. 675 A TARDE. Salvador (BA), edição de 24 de novembro de 1962. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 6 de fevereiro de 1963. 677 A TARDE. Salvador (BA), edição de 19 de janeiro de 1963. 676 232 3.1.4.1 Majoração de preços e patriotismo A indignação contra a carestia e o amor à Pátria, associados, guardam relações com, pelo menos, duas grandes manifestações nas quais Cosme de Farias esteve envolvido – a campanha pelo ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sob alegação de defesa da soberania do País; e o movimento Quebra-bondes –, ambas ocorridas no transcurso do período ditatorial do gaúcho Getúlio Vargas e, portanto, de intenso uso da força contra insurgentes contra às determinações do governo vigente. No início dos anos 1940, em meio ao regime autoritário, a população pressionava, nas ruas de todo o País, o presidente Vargas678 a se posicionar quanto ao sangrento conflito internacional que desencadeou, no Brasil, a escassez e o racionamento de gêneros de primeira necessidade (alimentos como carne, combustíveis etc.) e o aumento desenfreado dos preços e provocou o bombardeiro de embarcações na costa brasileira. O Brasil, oficialmente, era neutro, mas espalhavam-se notícias de que alemães infiltravam homens e equipamentos, em solo brasileiro, para observação da sua conduta e de outros países, em guerra ou não. Alheias aos desejos do chefe da Nação e às duras sanções impostas aos desafiantes do Estado Novo, milhares de indivíduos fizeram várias cidades entrarem em ebulição. Uma onda de eventos patrióticos e antifascistas eclodiu na Bahia e no Brasil, sobretudo após a morte de aproximadamente 600 brasileiros em bombardeios a navios mercantes por submarinos do Eixo, exigindo de Vargas um posicionamento quanto ao conflito e o envolvimento direto do País na Guerra, ao lado dos aliados e contra o Eixo. Em Salvador679, organizavam-se comícios e passeatas com presença principalmente de estudantes, mas, neles, representantes de diversos grupos sociais e políticos teciam discursos marcados pelo clamor ao civismo e pela crítica ao autoritarismo. Imbuído do patriotismo, Cosme de Farias680 tornou-se um desses oradores. A historiadora Consuelo Novais Sampaio, em A Bahia na Segunda Guerra Mundial, busca descrever o clima da época: 678 Getúlio Vargas evitava autorizar a entrada brasileira no conflito bélico de maior proporção do século XX, que começou na Europa (oficialmente, com a invasão da Polônia pelo exército alemão em 1939), espalhou-se também pela África e Ásia e dividiu o mundo em dois grupos – o dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e o dos Aliados (liderados por Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos, além da China) – por expansão territorial e, no caso da Alemanha, pela hegemonia branca. Vargas resistia, possivelmente, por afinidade com procedimentos nazi-fascistas – embora não admitisse isso explicitamente – e, quiçá, por interesse em tornar o Brasil em exportador de produtos que deixaram de ser fabricados nas localidades envolvidas nas batalhas. Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; Consuelo Novais SAMPAIO. A Bahia na Segunda Guerra Mundial. Revista da Academia de Letras da Bahia. Op. cit. 679 Consuelo Novais SAMPAIO. Ibid., p.139-140. 680 Id. Ibid. 233 Estimulados por mecanismos diversos e submetidos aos meios de propaganda da época, os baianos foram-se aproximando do palco da guerra. Ninguém melhor para estabelecer essa aproximação que os estudantes. Possuíam o entusiasmo próprio da juventude e conhecimento suficiente para defender com ardor a causa que se desejava fosse defendida. Tornaram-se alvo preferido das autoridades. Mas estas pareciam haver esquecido que, atrás dos estudantes, estavam professores, médicos, advogados, engenheiros e outros profissionais de formação liberal, que abraçaram com entusiasmo a causa dos aliados. Entre muitos deram o melhor de si, em defesa da liberdade e da democracia, nas praças públicas ou nos jornais, lembramos: Nestor Duarte [...]. Ainda merecem destaque Cosme de Farias, rábula a serviço dos pobre e fundador da Liga Baiana Contra o Analfabetismo, e Edite da Gama e Abreu, líder feminista e membro da Academia de Letras da Bahia [sic]681 . Em paralelo à mobilização interna, o Brasil sofria pressão dos Estados Unidos para que se posicionasse a favor dos Aliados682. Como contrapartida, os estadunidenses, receosos de que os brasileiros cedessem apoio e matéria-prima ao Eixo, ofereceram ao País um empréstimo de 20 milhões de dólares para investimento na construção da usina de Volta Redonda, no Rio de Janeiro. As ações, aos poucos, começaram a surtir efeito. Em 22 de janeiro de 1942, o Brasil e os outros países das Américas – a exceção de Argentina e do Chile –, em reunião no Rio, resolveram romper relações diplomáticas com os alemães e seus coligados, o que, na prática, implicava na suspensão de atividades comerciais com os rivais. Adiante, em 20 de agosto de 1942, declarou-se em guerra contra Alemanha e seus aliados. Contudo, isso não assegurava o envolvimento em batalhas. Somente em 1943, novamente sob intensa coação, começaram as negociações para envio de tropas ao front. Novos eventos pró-aliados surgiram em várias cidades, inclusive em Salvador. No dia 2 de abril de 1943683, por exemplo, a Comissão Central Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-aliados, a Legião dos Médicos para a Vitória, a União dos Estudantes da Bahia (UEB), entre outras instituições, com apoio prévio da 6ª Região Militar (Exército) e da interventoria federal na Bahia, realizaram um comício pela causa na Praça da Sé. Uniram-se naquela manifestação antigos juracisistas, autonomistas e até estadonovistas. Discursaram o juracisista Manuel Novais; o médico e professor autonomista Luís Rogério de Sousa; o diretor do jornal O Imparcial, jornalista Wilson Lins; o presidente da UEB, Álvaro Rubim de Pinho; e Cosme, fundador da Liga Bahiana contra o Analfabetismo e já uma referência da filantropia no Estado. 681 Id Ibid., p.138. Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; Consuelo Novais SAMPAIO. A Bahia na Segunda Guerra Mundial. Op. cit. 683 Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 431-433. 682 234 Finalmente em 1944, formou-se a Força Expedicionária Brasileira (FEB)684. Apesar dos interesses divergentes, o Brasil teve uma das atuações mais efetivas pró-aliados, entre as nações americanas. Gradativamente, auxiliou os Aliados por meio do fornecimento de matérias-primas para uso da população civil e de militares (em especial, a borracha); da cessão de espaço e condições para instalação de bases de observação dos Aliados; da patrulha do Oceano Atlântico e escolta de navios mercantes das nações-amigas com emprego de embarcações e homens da Marinha, contra ataques de submarinos alemães; do encaminhamento de pilotos da Força Aérea Brasileira para compor grupamento junto estadunidenses; e do envio da FEB para trincheiras na Itália. Em meio aos embates, os civis passaram por dias de aflição685, por temer as consequências das batalhas em si – sobretudo, se tivesse parentes e amigos na FEB – e pelas dificuldades impostas à sua sobrevivência. A mobilização popular, em certa medida, pode ter sido influenciada e até estimulada pelas más condições de vida. Houve brusco aumento do custo de vida e racionamento de combustível e inúmeros produtos (como carne e leite), devido à redução da oferta de mercadorias desencadeada pela crise na produção agrícola, pecuária e industrial nos países envolvidos na disputa; cobrança de “obrigações de guerra” (tributos compulsórios baseado no imposto de renda); e corte do fornecimento de energia em localidades específicas, como medida para reduzir os riscos de bombardeio à costa brasileira. A Segunda Guerra Mundial reverberou na Bahia, bem longe das frentes de batalha, trazendo à tona duas questões, há décadas, caras a Cosme de Farias: a defesa da Pátria e o combate à carestia. Essa coincidência, possivelmente, lhe estimulou a se enfileirar junto àqueles que combatiam a neutralidade do Brasil em relação ao conflito e o levou a sagrar-se como um dos principais oradores do movimento pró-aliados na Cidade da Bahia. Dois dos principais propósitos dessa mobilização, que uniu correntes políticas até então antagônicas, eram idênticos a algumas das bandeiras de luta firmadas pelo jornalista desde, pelo menos, os anos 1910, ou seja, o patriotismo e a peleja contra a majoração dos preços. Bem antes da eclosão da Guerra, Cosme já havia se envolvido em outro movimento 684 A FEB foi composta por voluntários e, também, por um contingente recrutado através de convocação compulsória. Para atender o quantitativo necessário, até enfermos e dependentes de álcool e tabaco foram incorporados ao grupo. Após triagem, os recrutas de Salvador seguiam para o Rio de Janeiro, onde recebiam orientações e passavam por treinamento. A partir dali, passavam a ter relações com familiares e amigos mediadas por agentes designados pela Força. Além da saudade dos entes e do frio italiano, eles enfrentaram as dificuldades impingidas pelo despreparo brasileiro, pois, no front, faltavam aos pracinhas roupas adequadas e em quantidade suficiente e até armamento. Ao todo, cerca de 25 mil pessoas integraram a expedição nacional, sendo que centenas delas morreram na missão. A Guerra se encerrou apenas em 1945, após a “queda de Berlim”, o principal reduto dos países do Eixo. FAUSTO, Boris. História do Brasil. Op. cit.; Consuelo Novais SAMPAIO. Op. Cit. 685 Consuelo Novais SAMPAIO. Ibid., p.150-155. 235 que, igualmente, tangenciava essas duas vertentes prioritárias em sua vida de militante. Tratase do manifesto identificado na historiografia como Quebra-bondes686. Na noite de 4 de outubro de 1930, dia da eclosão da “Revolução de 1930”, um grupo com participação de Cosme de Farias destruiu 83 bondes (2/3 do total), oficinas e edifícios de subsidiárias da Electric Bond and Share Company (Companhia Linha Circular de Carris Urbanos e a Energia Elétrica da Bahia, responsáveis pelos serviços de transporte urbano e energia da Cidade) e obstruiu linhas de bonde pela cidade, provocando um prejuízo à organização estrangeira estimado em 20.000 contos de réis; atacou a sede recém-construída do jornal A Tarde, no Centro, e danificou parte do maquinário importado do exterior pelo veículo, então já considerado um dos mais importantes do Estado; e apedrejou prédios da Prefeitura Municipal e da Chefia de Polícia. Aparentemente, bem planejada, a manifestação envolveu dezenas de pessoas e, em pouco tempo, espalhou-se por vários pontos da cidade. Ao todo, durou cerca de seis horas. O jornal Diário da Tarde, publicado em Ilhéus687, no Sul da Bahia, foi um dos poucos a relatar os fatos, enquanto a maioria preferiu omitir, pelo menos, parte das informações: O povo, num assomo de revolta, depreda edifícios e incendeia bondes da Linha Circular. A Cidade viveu hontem uma noite de intensa agitação por ter um grupo numeroso de pessoas do povo, depois de engrossado e dividido por outros grupos, atacado o prédio da Companhia Circular apedrejando-o e modificandoo. Em seguida o referido grupo voltou-se para os bondes que desciam o Saldanha, rumo ao Terreiro, apedrejando-os rapidamnte. Appareceu logo ahi kerosene e gazolina e vários carros foram incendiados [...] Após tentativas frustradas, a Polícia conseguiu reprimir a multidão, favorecida pela dispersão natural do grupo por locais diversos. O saldo, contudo, foi de, pelo menos, quatro mortes e inúmeras pessoas com ferimentos, além de prejuízos financeiros e da suspensão de serviços de transportes por alguns dias. Ocorreram detenções para averiguação, inclusive de Cosme, mas não há confirmação dos nomes dos líderes do movimento. Ainda no dia 4 de outubro de 1930, Cosme de Farias foi detido, em uma ação em que, também, foram reclusos os jornalistas Joel Presídio e Alfredo Lopes, em Salvador, e Franklin Queiroz, no interior. Cosme 686 Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.42-44; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.161-162; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.381-382. 687 DIÁRIO DA TARDE. Ilhéus (BA), edição de 6 de outubro de 1930 apud Cristiano ALVES. As Referências ao Comunismo no Início dos Anos 30 no Diário de Notícias. Revista Tema Livre. Vol. I, nº12. Niterói: Revista Tema Livre, 25 abr. 2007. Disponível em: <http://www.revistatemalivre.com/bahia12.html>. Acesso em: 20 jul. 2010. 236 era um suspeito natural, por militar contra majoração dos preços. Somente quatro dias depois, os jornalistas foram liberados, após pleito da recém-fundada Associação Bahiana de Imprensa (ABI) junto à Secretaria de Segurança Pública e ao governador interino, Frederico Augusto Rodrigues da Costa (1930), e, quiçá, protestos contra a censura de jornais, que passaram a circular com espaços em branco. À época, combater os organizadores do movimento tinha dupla relevância. De forma mais pragmática, significava coibir novos levantes reivindicatórios com causa social, mas, também, poderia ser uma maneira de inibir a expansão de grupos políticos contrários ao governo (como os comunistas), então já excessivamente desestabilizado em decorrência da “Revolução”. Em meio ao conflito, havia o burburinho de que o movimento era uma ação comunista. Sobre isso, diz o Diário da Tarde, de Ilhéus: “Parece que há germem de comunismo nos graves acontecimentos de sabbado último”. “Para alguns se tinha que tomar todo cuidado por parte do governo para que o comunismo não pudesse se expandir e instituir a ´anarquia´”, afirma Alves688. A associação da violência daquele episódio ao comunismo, no mínimo, reforçava a imagem negativa àquela corrente política, comumente acusada de promotora da desordem e de atos desregrados, prejudiciais ao desenvolvimento de qualquer Nação. A suposta ligação entre os manifestantes do Quebra-bondes e comunistas nunca foi comprovada e, possivelmente, não existiu, porque os “vermelhos”689 não faziam ofensivas dessa natureza e com essas proporções na Bahia. Se procedente a liderança de Cosme, reduz-se as possibilidades da existência de relação entre os ataques e a tentativa de sedimentação de um grupo comunista na Bahia, pois a documentação acerca deste benemérito não traz indícios de qualquer aproximação entre eles. Contudo, independentemente de quem sejam os autores dos ataques e da sua ideologia, o mais provável é que ele tenha aderido ao movimento por fatores menos complexos, os mesmos que motivaram a adesão da massa popular – o civismo exacerbado, a oposição à alta dos preços ou a combinação de ambos. A motivação do protesto nunca foi esclarecida. Há três versões para tanta fúria: insatisfação com a majoração das tarifas de energia e dos preços das passagens de bonde, do Elevador Lacerda e dos planos inclinados Gonçalves e do Pilar e, também, com a qualidade dos serviços prestados pelas subsidiárias da Electric Bond and Share Company; protesto contra empresa estadunidense por ato desrespeitoso à Pátria – funcionários da organização estariam 688 Cristiano ALVES. As Referências ao Comunismo no Início dos Anos 30 no Diário de Notícias. Revista Tema Livre. Op. cit. 689 Dessa forma, eram designados os militantes do comunismo no Brasil. 237 usando a Bandeira Nacional como tapume nas obras do Plano Inclinado Gonçalves, na Sé –; e, ainda, reação à tomada do poder pelo gaúcho Getúlio Vargas e seus aliados, por meio da “Revolução”. Pela primeira versão, o episódio foi o ápice de uma série de reações contra empresas de capital estrangeiro instaladas na Bahia, vistas, muitas vezes, como usurpadoras da população ao cobrar valores exorbitantes pelos serviços que prestavam. Para inúmeros indivíduos, essas organizações vieram ao Brasil apenas para explorar o território e não tinham qualquer compromisso com o povo. O uso indevido da Bandeira Nacional – o principal símbolo da Nação – seria uma prova efetiva dessa tese e, por isso, teria estimulado os ataques, em protesto contra a presença de forasteiros na economia e o aviltamento do Pavilhão brasileiro. Pela segunda, o conflito, também, estaria relacionado à forma de atuação da corporação, mas não, à sua origem estrangeira. Ele seria uma reação contra a carestia e os serviços em si. A organização, no início daquele ano, havia elevado os valores cobrados pelos serviços de transporte e energia das passagens, mediante a promessa de aumentar a frota para ligação entre as cidades alta e baixa, mas descumpriu o acordo. Ademais, eram constantes os acidentes envolvendo os bondes. Se procedente esta proposição, não seria a primeira incursão dessa natureza na cidade, pois, em 1919, em meio a greves e protestos diversos, veículos de transporte público foram depredados em protesto contra o alto custo da tarifa e, em 1927, a superlotação dos carros ocasionou a tentativa de incêndio de unidades e a agressão a um policial. O jornal A Tarde e unidades da administração pública tornaram-se alvos por conferirem apoio à prestadora dos serviços. Em concomitância, há quem defenda a combinação desses dois fatores, a ressalva aos estrangeiros rotulados de exploradores e a indignação contra os preços e serviços praticados naquele momento. Cristiano Alves, no artigo As referências ao comunismo no início dos anos 30 no Diario de Noticias, explica: “A insatisfação em relação aos aumentos de passagem aliada ao fato da companhia ser estrangeira fizeram surgir uma associação do explorador com a exploração. O culpado era o americano, que além de tudo usava a bandeira brasileira de maneira vil”690. A terceira interpretação relaciona a convulsão de Salvador ao cenário político nacional, atribuindo aos líderes do movimento, inclusive Cosme de Farias, a articulação com manifestantes de fora da Bahia. O quebra-quebra teria sido uma ofensiva contra o processo “revolucionário” que eclodiu naqueles dias, em vários estados (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, 690 Cristiano ALVES. Ibid. 238 Paraíba e Pernambuco), mas, até então, sem irradiação em território baiano. No limite, seria uma ação patriótica interestadual, pela soberania e pelo pleno desenvolvimento do Brasil. Esta última trata-se da hipótese menos crível, em função das dificuldades de comunicação comuns à época e do curto período em que os episódios da Bahia e de outros estados ocorreram. Também, faltam evidências de que houvesse alguma aproximação entre os protestantes daqui e de outras localidades, nesse momento e posteriormente. Apenas no dia 5 de outubro, o movimento nacional teria alcançado o Estado, com a nomeação do general Santa Cruz Pereira de Abreu como responsável pela execução do estado de sítio na Bahia. Pela documentação levantada nesta pesquisa, o combate à carestia e o patriotismo são motivações mais prováveis para a participação de Cosme de Farias ações desta natureza, pois estas eram causas abraçadas por ele desde, pelo menos, os anos 1910. Ademais, não foram identificados indícios da aliança entre ele e aqueles que reagiram à “Revolução” na Bahia, pelo menos, na fase inicial. Pelo contrário: seu líder, J. J. Seabra, no começo, aderiu à proposição de Vargas, na expectativa de que conseguisse obter algum benefício com o “golpe”. Atestava-se o sentimento patriótico intenso de Cosme em um simples fitar de olhos nas suas vestes ou nas correspondências escritas e encaminhadas por ele a autoridades, empresários, profissionais liberais com pedidos, homenagens, felicitações, congratulações e expressão de solidariedade. Por vezes, o paletó de tecido já surrado e cartas, cartões e convites traziam ornamentos nas cores da Bandeira Nacional (verde e amarela) pendurados. Em 10 de setembro de 1969, por exemplo, ele remeteu à Associação Bahiana de Imprensa (ABI) um cartão de felicitações691 à diretoria e aos demais sócios, pela passagem do dia do jornalista, em que se via no rodapé um taco de fita verde-amarela colado. O patriotismo, também, era explicitado na seleção dos textos que compunham a cartilha Carta do ABC692, publicação, em geral, ilustrada com hinos cívicos e citações a personalidades baianas; em pronunciamentos e projetos apresentados à Câmara Municipal de Salvador e à Assembleia Legislativa ou propostas destinadas ao Poder Executivo, chegando a solicitar que o Estado distribuísse bandeiras do Brasil entre escolas baianas, sob os argumentos de que, em dezenas delas, o símbolo nacional era desconhecido e que “uma casa de ensino sem o Pavilhão da Pátria equivale a um bosque sem passarinho”693; e em festejos históricos, culturais ou religiosos, como demonstrado nessa tese. 691 Cosme de FARIAS; LIGA BAHIANA CONTRA O ANALFABETISMO. [Cartão de felicitações] 10 set. 1969, Salvador (BA) [para] ASSOCIAÇÃO BAHIANA DE IMPRENSA. Salvador (BA). 1f. Felicitações à entidade pela passagem do dia da imprensa. 692 Cosme FARIAS. Carta do ABC. Op. cit. 693 A TARDE. Salvador (BA), edição de 18 de março de 1972. 239 As lições de civismo teriam sido aprendidas com o líder político Seabra694. Talvez, aquele experiente político já soubesse que isso poderia despertar um sentimento de pertencimento no outro e a identidade entre quem se exprime e a audiência. Manifestado através do apego a símbolos nacionais, como o pavilhão e o Hino Nacional, o patriotismo, potencialmente, serviria para explicitar que havia, pelo menos, um ponto em comum entre Cosme e a população em geral e entre ele e os estratos mais elevados da política e a economia local – a Pátria. Ademais, sem dúvidas, ele auxiliava na composição de um tipo, na construção da imagem pública de Cosme, que lhe seria útil tanto nas ações de cunho assistencial e nas suas atividades como militante em prol de causas sociais e políticas quanto em ocasiões como as campanhas eleitorais para o parlamento. 3.1.5 Na luta dos trabalhadores A inserção de Cosme de Farias no movimento de trabalhadores antecede à sua participação no combate à carestia e coincide com a fase embrionária de sua obra social, com a prestação de assistência jurídica gratuita, a campanha pela alfabetização, as doações a terceiros e a mediação para acesso das pessoas a serviços essenciais e ao trabalho. De certa forma, até tangencia sua luta pela soberania nacional, na perspectiva de que implica no desenvolvimento da Nação e prevê a garantia de direitos básicos à população. O primeiro registro dele nesta frente data de 1901, conforme a documentação atinente à sua trajetória militante. Naquela experiência inicial, trabalhadores reuniram-se no Centro Operário da Bahia (COB)695, entidade de classe com representatividade política à época, para discutir quanto o desemprego que assolava o território baiano, quando ele fez um pronunciamento acerca da temática, problematizando a questão, mas resguardando a imagem do então governador, Severino Vieira (1900-1904). Então, era um jovem repórter, com 26 anos, arriscando-se a debater um tema de alta complexidade, na instituição baiana do gênero de maior influência na Primeira República na Bahia. À época, o COB tinha como prioridades propiciar instrução a operários; ofertar auxílio material a seus sócios, em caso de necessidade; e reivindicar a melhoria das condições de 694 695 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 5-6 de setembro de 1971. Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.120, 130-131. 240 trabalho, distinguindo-se das organizações mutualistas, porém sempre em atenção às leis vigentes e, muitas vezes, em harmonia com os governos em vigor. Portanto, não costumava ter atitudes exasperadas ou desafiadoras e, em certa medida, colaborava com o jogo oligárquico liderado pela elite política e econômica na Bahia, apesar de ter como um dos objetivos centrais representar o operariado contra abusos do patronato e, possivelmente, também, da administração pública696. Participantes do COB transitavam junto a autoridades e vice-versa. Alguns exemplos evidenciam a existência dessa estreita relação desde a fundação do Centro, em 1895, quando o então presidente da Bahia, Rodrigues Lima (1892-1896), participou do seu lançamento oficial. Nos anos subsequentes, a instituição firmou laços com outros governantes do Estado, como Severino Vieira (1900-1904) e José Marcelino de Sousa (1904-1908), e obteve benesses, como empréstimos e subvenções governamentais mediante intervenção de autoridades políticas e até o lançamento de alguns dos seus líderes como candidatos da situação, como ocorreu com o próprio Cosme em 1914. Em contrapartida, apoiou candidatos governistas, mesmo em momentos de crise. Adaptou-se tanto ao seabrismo quanto ao calmonismo, correntes políticas surgidas na República Velha, mas com influência na política local até meado do século passado. Em prol de alguns governos, chegou a contrariar seu princípio gerador, de defesa do operariado. O Comitê Popular contra a Carestia de Vida, por exemplo, ao radicalizar suas ações e afrontar o governo, foi obrigado a deixar de se reunir na sede do COB, por exigência da entidade, a despeito do movimento ser constituído, também, por integrantes da casa, como Cosme. Em 1916, prestou homenagens públicas a Seabra, no encerramento do seu primeiro mandato. Um dos muitos governadores brasileiros que colaboraram com o presidente Artur Bernardes no combate ao tenentismo, Góes Calmon contou com o apoio da organização operária em 1924, no início da sua gestão, para a formação de um batalhão patriótico em ‘defesa da legalidade’697. Os parcos interregnos de postura crítica frente à realidade política local e até oposição ao governo eram curtos, mas merecem registros. Um deles ocorreu ainda em fins da década de 1910, quando houve uma breve aproximação da oposição, em meio aos conflitos de 1919, e obteve-se resultados negativos nas eleições municipais, mas logo a entidade retomou os contatos com o governo, afastando-se dos oposicionistas. O mais comum, pelo menos até a década de 1930, era a adesão às proposições dos estratos mais abastados e das autoridades 696 697 Id. Ibid., p.106. Id. Ibid., p.128-129. 241 políticas no exercício do poder. Por isso, a instituição passou a ser rotulada por sindicalistas e lideranças sociais e oposicionistas como pelega. Tal posicionamento decorre, possivelmente, da experiência de alguns dos fundadores do COB no Partido Operário698, a exemplo do parlamentar governista Antônio Bahia da Silva Araújo. Uma série de fatores pode ter determinado a aproximação e o duradouro vínculo de Cosme com o COB, entre os quais se destaca a coincidência de propósitos e postura. Ambos explicitavam como prioridade a educação; e costumavam adotar atitudes moderadas – que, aliás, muitas vezes, no caso do Centro, foram interpretadas como adesistas –, embora haja momentos de ostensivo combate nas trajetórias dos dois. Não se pode confundir, entretanto, o estilo do benemérito àquele característico dos prosélitos, dos asseclas. O temperamento conciliador e o caráter moderado não lhe impediram de tecer crítica social e política contumaz, de se opor a governos, de censurar personalidades com poder econômico e político, como visto no capítulo anterior. Possivelmente, graças a seu modus operandi, Cosme inseriu-se no universo de luta de categorias diversas de trabalhadores, a despeito de se ocupar como jornalista e funcionário público e até reunir condições para a ascensão a estratos remediados da sociedade. Não era operário ou comerciário, mas defendeu essas classes como se fosse. Assim, envolveu-se em entidades como as associações dos Funcionários Públicos do Estado da Bahia (AFPEB), Tipográfica da Bahia, Baiana de Imprensa (ABI) e dos Empregados no Comércio da Bahia699. Com as três primeiras, tinha ligação por atuar no serviço público e em periódicos locais. Com a última, o único vínculo reportava-se à remota e curta experiência na adolescência, como auxiliar nos negócios do pai e às manifestações contra a carestia. Fundada oficialmente no dia 20 de agosto de 1918, em sessão solene no Ginásio da Bahia (depois, denominado de Colégio Central), e em funcionamento desde setembro daquele ano, a Associação dos Funcionários Públicos era uma organização classista, de defesa dos interesses de servidores de repartições do poder público. Ou seja, primava pela assistência ao 698 O Partido Operário havia sido constituído quatro anos antes do Centro Operário da Bahia, em julho de 1890, por personalidades como Manuel Querino, e reunia, principalmente, artesãos, operários e industriais. Sob o lema “Ordem, firmeza e trabalho”, pregava-se a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, por meio do acesso à educação, da concessão de melhor remuneração pelo trabalho e da desoneração do consumidor através de uma política fiscal. Como estratégia, a legenda buscou, primeiro, a eleição de parlamentares próprios para combate à permanência do poder nas mãos de um grupo específico, mas fracassou diante da pressão dos estratos dominantes e da coexistência de facções operárias divergentes. Derrotada no pleito, a facção tentou desvincular-se de candidaturas específicas para sobreviver, mas acabou extinta, deixando uma lacuna que viria a ser preenchida com a inauguração do COB. Id. Ibid., p.106, 125-130. 699 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit; A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de janeiro de 1972. 242 trabalhador da administração pública, com garantia de remuneração compatível com as funções e condições de trabalho adequadas. Como servidor público de âmbito estadual, ele pertencia, de fato e direito, à categoria profissional representada pela entidade e, através dela, poderia aliar a luta pela garantia dos próprios direitos à defesa da atenção às demandas de um grupo social com algum destaque na sociedade da época. Já a Associação Tipográfica da Bahia 700, lançada em outubro de 1870 e inaugurada por 68 operários em abril de 1871, no Paço Municipal, distinguia-se por ser uma agremiação classista, mas, também, de caráter beneficente, artístico e educacional, com oferta de aulas especialmente de português, matemática e corte e costura. Em seu quadro, havia associados brasileiros e estrangeiros, atuantes no ramo tipográfico e na imprensa, a exemplo do sócio honorário Rui Barbosa e do próprio Cosme. Seu ingresso nesta entidade deve ter, pelo menos, dois motivos. Primeiro, o envolvimento com a categoria, devido à histórica proximidade das atividades exercidas pelo jornalista e pelos tipográficos, inclusive por ser comum no Brasil a prática de redação, edição e impressão pela mesma pessoa, desde os tempos coloniais701, quando instaladas a Impressão Régia em 1808, no Rio de Janeiro, e as primeiras iniciativas privadas autorizadas pelo governo, em 1811, na Bahia. Segundo, a afinidade com a proposta da instituição, de conjugar a representação classista no âmbito das lutas trabalhistas com ações beneficentes e educacionais, focos de Cosme desde fins do século XIX. A inserção na Associação Bahiana de Imprensa702, por sua vez, decorre do exercício do jornalismo em mais de uma dezena de jornais da imprensa de Salvador, inclusive como fundador de alguns títulos, conforme explicitado no capítulo IV desta tese. Entidade constituída por iniciativa do farmacêutico e assíduo colaborador de jornais Tales de Freitas, na sede da Associação Tipográfica da Bahia, em 17 de agosto de 1930, a ABI teve como primeiro presidente o próprio Tales de Freitas e, já no começo de suas atividades, elegeu 10 de setembro como Dia do Jornalista, em uma referência à data do início da circulação do primeiro periódico editado no Brasil – a Gazeta do Rio de Janeiro 703. Sua principal atribuição era organi700 Kátia de CARVALHO. et al. As Práticas Editoriais do Século XIX e Início do Século XX e o Papel da Associação Tipográfica da Bahia. In: Anais do XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2002. Salvador: Universidade do Estado da Bahia; São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, set. 2002. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/2002/np04 /NP4CARVALHO.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2004. 701 Ver Juarez BAHIA. Jornal, História e Técnica, vol. I – História da Imprensa Brasileira. 4. ed. São Paulo: Editora Ática, 1990; Nelson Werneck SODRÉ. História da Imprensa no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 702 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 703 Em 1999, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), determinou a mudança do Dia da Imprensa no Brasil, de 10 de setembro para 1º de junho. Assim, ao invés de celebrar a instalação do 243 zar os trabalhadores do ramo. De início, inscreveram-se 72 jornalistas. Um dos fundadores da entidade, Cosme foi o 14º associado da ABI, membro do comitê fiscal e de rendas por seguidas gestões704 e ativo participante de assembleias e reuniões da instituição. Em uma delas, propôs aos sócios a criação da bandeira da Associação 705, mas teve a sugestão rechaçada. Em lugar da bandeira, lançou-se um escudo, que serviria até para a autenticação de documentos. Na condição de parlamentar, defendeu os interesses da ABI, garantindo-lhe benefícios. Em 1961, Cosme encaminhou projeto de lei à Câmara Municipal para isentá-la do pagamento de taxas municipais e imposto predial relativo à sede localizada na Praça da Sé, após pleito idêntico remetido pela direção da Associação ao prefeito Heitor Dias (1959-1962); e, o decorrer dos seus mandatos, a Associação recebeu auxílio financeiro da Prefeitura de Salvador, do governo estadual e da Assembleia Legislativa do Estado706. Concomitantemente, o jornalista gozou da assistência prestada aos sócios pela ABI. Quando preso em outubro de 1930, por suspeita de envolvimento com o movimento do Quebrabondes, por exemplo, só foi libertado após interferência da casa707. Mesmo sem atuação extensa no comércio, ele se tornou sócio-benemérito da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia (AECB), fundada no primeiro quarto do século XX com os objetivos de representar os interesses da categoria nas relações do mercado, promover ações beneficentes e fomentar atividades culturais e pela profissionalização. É possível tecer inferências sobre as motivações de Cosme para o envolvimento no movimento dos comerciários. Talvez, o vínculo tenha se firmado por afinidade com a categoria, decorrente da sua experiência com o comércio na adolescência, como auxiliar do pai no empreendimento de madeira, ou com seus propósitos relacionados à beneficência e à formação profissional; ou decorra dos laços com os sócios da AECB e da participação em debates e atos públicos na sua sede, localizada na Rua do Tira Chapéu, no Centro. Das sacadas do sobrado, por vezes, ecoa- primeiro jornal no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro – que tinha caráter oficial e era produzido na Impressão Régia –, o brasileiro passou a homenagear o lançamento do primeiro jornal em circulação no Brasil, o Correio Braziliense – que tinha conteúdo independente e era impresso na Inglaterra e trazido à Colônia Portuguesa clandestinamente. A sugestão da Associação Riograndense de Imprensa (RS) deu origem a um projeto de lei do deputado Nelson Marchezan (PSDB-RS), que, depois de aprovado, transformou-se em lei em 1999. DIA DA IMPRENSA - SAI A GAZETA, ENTRA O CORREIO. Boletim do Instituto Gutenberg. Série eletrônica, nº 29. São Paulo: Instituto Gutenberg, nov.-dez. de 1999. Disponível em: <http://www.igutenberg.org>. Acesso em: 22 jul. 2010. 704 Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit. p. 1-19, 49, 51,53, 54, 56, 62-64, 66, 69, 72, 74, 77, 79, 81, 83, 84, 87-90, 93, 97. 705 Id Ibid., p. 28. 706 Id Ibid. 707 Id Ibid., p. 20-21. 244 vam clamores708 por melhores condições de vida ou repúdios por fatos, sobretudo, de ordem política. Além do benemérito, outras personalidades sem ocupação no comércio frequentavam a AECB. Entre os visitantes, estavam os governadores Seabra e Juracy Magalhães (1931-1937; 1959-1963), o deputado e, depois, senador Josaphat Marinho, e o prefeito Heitor Dias. Em concomitâncias às ações nas e pelas instituições as quais estava filiado e pelas categorias representadas por estas entidades, Cosme defendia outras classes, muitas vezes, sem qualquer relação com seu cotidiano profissional e sua atividade assistencial. Entre elas destacam-se os os trabalhadores da indústria fumageira e os professores. Por estes, reivindicava melhorias nas condições de trabalho, remuneração justa e benefícios como moradia, em rodadas de negociação junto ao patronato e por meio de manifestações públicas e da imprensa. Em petições remetidas à Câmara dos Deputados e artigo publicado em O Imparcial709, em 1937, por exemplo, reclamou a construção e cessão de casas para o proletariado. Dois anos antes, reivindicou ao prefeito da cidade, Joaquim Pinho, pela imprensa710, o pagamento do salário dos docentes de escolas municipais, que estava atrasado há meses. É plausível que a filiação de Cosme a organizações operárias, combinada ao seu estilo moderado e conciliador, tenha influenciado, de maneira positiva, na inserção dele em entidades de outra natureza, as mutalistas, voltadas ao amparo assistencial a associados, em casos de doença ou morte do sócio ou de necessidade de suprimento de órfãos e viúvas deixadas por eles. A adesão, possivelmente, ocorria mais como uma tática para o fortalecimento das sociedades, em mais uma ação de caridade, do que como tentativa de assegurar algum benefício para si. A carta-testamento intitulada Minhas Últimas Vontades, escrita por ele em 1964711, evidencia essa falta de pretensão pessoal, quando dissocia as bolsas e os montepios aos quais pertencia das providências a serem tomadas na ocasião da sua morte, mesmo essa sendo uma das incumbências das instituições mutualistas. Em 1964, ele pertencia à Bolsa dos Patriotas, à Bolsa de Caridade e ao Montepio dos Artífices da Bahia, de acordo com a carta-testamento712. Sobre as duas primeiras, quase nada se sabe. Já as menções ao Montepio, possivelmente, referiam-se a uma instituição oitocentista do Recôncavo. Trata-se de uma das primeiras entidades constituídas por trabalhadores do 708 Pablo REIS. Em Algum Lugar do Passado. Correio Repórter/Correio da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 25 set. 2002. Disponível em: <http://www.correiodabahia.com.br/2002/09/25/noticia.asp?link =not000062538.xml>. Acesso em: 20 jul. 2004. 709 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 2 de setembro de 1937. 710 A NOITE. Salvador (BA), edição de 16 de dezembro de 1925. 711 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 712 Id Ibid. 245 Brasil713, com cunho beneficente e estrutura similar àquela adotada pelas ordens e irmandades religiosas já comuns à época, embora laica. A Sociedade Imperial Montepio dos Artistas surgiu em 1853 da cisão da Sociedade dos Artífices714, devido à discordância quanto ao destino da receita, pois um grupo preferia manter a sobra penhorada e outro, na Caixa de Comércio recém-inaugurada. Dezenove dissidentes fundaram o Montepio dos Artistas, em 1853, com a pretensão de conceder benefícios e socorrer os mutualistas em um cenário de luta pela abolição da escravatura e introdução do trabalho livre no Brasil. A maioria era negra, mulata e mestiça, mas não havia clivagem étnica bem definida. Adiante, em 1859, detalharam os propósitos, destacando os objetivos de oferecer assistência médica, remédios e recursos para sobrevivência a sócios enfermos; garantir funeral digno aos contribuintes mortos e assegurar aos seus herdeiros (filhos e viúva ou mães e irmãs, caso não houvesse esposa e prole) meios de subsistência; e custear dotes para filhas e irmãs dos associados. A renda advinha de mensalidades e outras contribuições dos sócios; subvenções do governo; donativos e recursos arrecadados em reuniões nas denominadas “bolsas de caridade”. Tornavam-se sócios remidos aqueles que contribuíssem por 20 anos ou morressem em dia com suas obrigações. Talvez com a intenção de estimular o auxílio governamental, a entidade, de imediato, elegeu o imperador D. Pedro II como patrono. Em geral, submetia-se ao governo provincial, em troca de benefícios como a concessão do direito de organizar loterias para angariar fundos. No final do século XIX, passou a enfrentar dificuldades para a manutenção das atividades. Em meio à crise, em 1925, Cosme elegeu-se presidente da assembleia geral da entidade715, atestando sua liderança também nesta seara. 3.1.6 Bandeira da redemocratização Afora às atividades assistenciais e à mobilização pelo operariado e contra a carestia, 713 Luiz CARAIVA; Rita de Cássia ALMICO. Casa Montepio dos Artistas: pecúlio e auxílio mútuo numa sociedade do Recôncavo da Bahia. In: Anais do Congresso Internacional de Historia de Las Cajas de Ahorros. Murcia (Espanha): Universidad de Murcia. Murcia, 16-18 out. 2008, p.19-27. Disponível em: <http://www.um.es/congresos/cajahorro/documentos/P_SaraviaCassia.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. 714 Entidade que havia sido criada em 1832 por um grupo de 71 artífices (ourives, carpinteiros, alfaiates, comerciários, tipógrafos, escultores, músicos, entre outros), a maioria morta ainda na segunda metade do século XIX. Luiz CARAIVA; Rita de Cássia ALMICO. Casa Montepio dos Artistas. Op. cit. p. 19-27. 715 A NOITE. Salvador (BA), edição de 3 de dezembro de 1925. 246 Cosme de Farias dedicava-se a manifestações de cunho eminentemente político, entre as quais destaca-se a defesa pela democratização do Brasil, em dois momentos da história republicana brasileira – primeiro, a partir de 1945, após 15 anos de regime autoritário sob domínio do presidente Getúlio Vargas, e, depois, em meio às restrições impostas pelo governo militar instaurado com o golpe civil-militar de 1964. Está foi a derradeira causa do jornalista benemérito, que, por sua atuação como assistencialista e militante de causas sociais e políticas, consolidou-se como uma das personalidades mais populares da Bahia, no século XX. O êxito da frente contra o nazifascismo na Europa, no início dos anos 1940, trouxe ao brasileiro um alento e desencadeou a retomada da luta pelo retorno do regime político republicano democrático representativo no Brasil. Assim, liberais adversários do governo Vargas e esquerdistas716, incluindo militantes do Partido Comunista Brasileiro, deflagraram uma série de ações pela anistia para presos políticos, convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e elaboração de uma nova Constituição, entre outras medidas. Os opositores tinham divergências quanto às estratégias a serem adotadas pela abertura do País, porém os propósitos eram comuns às diversas facções. Os protestos espalharam-se por inúmeras cidades, sobretudo, a partir de 1943. Nem a repressão continha a sanha dos insurgentes. Em Salvador, estavam unidos pela mesma causa, por exemplo, seabristas, mangabeiristas, juracisistas, comunistas, entre outros grupamentos políticos. Entre os seabristas, enfileirava-se Cosme. Em meio às manifestações ocorridas na Cidade da Bahia, sobressaíram-se os discursos proferidos, em 1942, no sepultamento do líder democrata José Joaquim Seabra, que teria se declarado liberal-democrata e pregado a redemocratização, em entrevista concedida à imprensa, meses antes de morrer. Na tentativa de aproximar-se da massa trabalhadora para amainar a situação, Vargas717 deflagrou uma série de medidas populistas, ancoradas em uma política trabalhista, mas a manobra não reverteu o quadro e, em 1945, ele foi obrigado a deflagrar o processo de abertura. Na iminência da vitória dos países aliados na Segunda Guerra e do fim do nazifascismo e diante das pressões internas pela democracia, ele anunciou a organização de eleições gerais, inclusive para composição de uma Assembleia Constituinte, promoveu a reforma da legisla- 716 Luis Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 433-436. Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; Américo FREIRE. Entre Dois Governos: 1945-1950 – redemocratização e eleições de 1945. In: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), 2001. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/DoisGovernos/Redemocratizacao>. Acesso em: 28 jul. 2011. 717 247 ção partidária e eleitoral que possibilitaria da realização do pleito, e concedeu anistia a presos políticos, atendendo a parte das reivindicações da população, na expectativa de se manter no poder mediante a participação no processo eleitoral. Com a intenção de viabilizar sua candidatura, favoreceu a fundação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Social Democrático (PSD). Contudo, houve severa reação da oposição à possibilidade do PTB lançá-lo como um dos postulantes à Presidência; e civis e militares articularam um golpe, que culminou com a deposição do ditador, em 2 de outubro de 1945. O ciclo de mudanças consolidou-se com a posse do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), eleito pelo PSD com apoio do PTB, como presidente e a promulgação de uma nova Constituição, embora este novo governante, também, tenha adotado medidas restritivas. Entre as iniciativas desta natureza, destacaram-se o fechamento da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e a intervenção em dezenas de sindicatos, sob acusação de promoverem a agitação do operariado; e o decreto que pôs o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ilegalidade e determinou a cassação do mandato de parlamentares da legenda. Posteriormente, nos anos 1960, eclodiu uma crise política no Brasil, que culminou com a instalação de um novo regime autoritário, mas, desta vez, com alternância de presidentes militares – e não com a gestão de um ditador, como ocorrera entre 1930-1945, no governo de Vargas. Os militares tomaram o poder, com apoio e colaboração de civis, oficialmente, em 31 de março de 1964, por oposição às reformas de base (inclusive no setor agrário) realizadas pelo então presidente João Goulart. Novamente, sucederam-se a cassação de mandatos de parlamentares, a extinção de partidos políticos, a suspensão de eleições diretas, a restrição de direitos individuais, o cerceamento da liberdade de opinião e manifestação, entre outras ações limitadoras. A despeito da forte repressão imposta aos brasileiros, Cosme de Farias colocou-se contrário ao regime e pregou a convocação de eleições diretas para todos os cargos públicos, porém, também neste caso, evitou o confronto e adotou o tom moderado que lhe era característico. Em discurso proferido na sua posse como deputado estadual oposicionista ao governo 718, pelo Movimento Democrático Brasileiro, em 17 de maio de 1971, na Assembleia Legislativa, deixou claro seu posicionamento em defesa da liberdade, da livre escolha dos governantes e da restauração do Estado democrático: Se a generosa Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e de cuja festa eu partici718 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 20 de maio de 1971. 248 pei, com muita alegria, é porque já sentia que esse povo não pode ser escravo de ninguém. Vi cair o Império e nascer a República com Deodoro da Fonseca e Benjamim Constant. [...] Tenho vivido todos os lances libertários da nossa Pátria e o comportamento democrático dos nossos militares que nunca demonstraram desejo de perpetuarem-se no poder, nem implantar ditaduras. Se a nossa Constituição afirma que todo o poder emana do povo é porque a ele deve ser dada a decisão do seu destino político, escolhendo os seus governantes, desde o Presidente ao prefeito de todos os municípios. Por duas eleições seguidas ficou o povo privado desta realidade democrática e a Constituição virou papel sem valor. [...] Não morrerei satisfeito se não vir o meu Brasil trilhando o caminho amplo do Direito e da Democracia e o seu povo feliz. Quero ser o primeiro a depositar nas urnas em 74 o voto para escolher o meu governador. No mesmo evento, ele rememorou sua trajetória e reiterou suas prioridades719, possivelmente, como forma de justificar sua posição: Tenho dedicado toda minha existência à causa dos pobres e dos que sofrem, mas a minha atenção especial tem sido para as crianças humildes de nossa terra a quem, se não posso dar fortuna, pelo menos tenho dado o calor de meu afeto e a solidariedade da minha pobreza. A todas elas, crianças e adultos, tenho procurado colocar nas mãos uma cartilha do ABC como instrumento maior da liberdade. Em meio à alegria do retorno ao parlamento e à censura ao autoritarismo vigente no País, o benemérito expressou seu apego às causas voltadas à qualidade de vida da população, sobretudo, dos estratos mais baixos e, em especial, às crianças, independentemente de etnia, gênero, profissão, envolvimento ou não com a criminalidade e escolaridade, entre as quais a alfabetização, a defesa pública e gratuita perante a polícia e a justiça, o combate à carestia, a busca pela garantia de direitos essenciais à vida (como alimentação e moradia) e por melhores condições de trabalho e salários. Afinal, de maneira singular, ele destacou-se alternando assistência social, fiscalização, negociação com autoridades constituídas e do empresariado ou pressão contra eles para a promoção da justiça social, utilizando-se do jornalismo, da literatura, da atuação parlamentar e da própria obra de caridade. 3.2 MOTIVAÇÕES PARA A MILITÂNCIA E ASSISTÊNCIA 719 Ibid. 249 De certo, Cosme de Farias era um homem de muitas lutas, muitas bandeiras. Atuava por causas de interesse amplo dos baianos, independentemente do lugar de origem, da etnia, da faixa etária, mas, notadamente, privilegiava os trabalhadores dos estratos sociais “mais baixos” – talvez, por identificar-se com estes – e as crianças. Preferia mobilizar-se pelo acesso à educação, aos serviços de saúde, ao trabalho e à alimentação, visando a garantia de melhores dias a toda a sociedade – e não, exclusivamente, de um grupo. Apesar da sua condição de mulato, não há indícios, por exemplo, do seu envolvimento em movimentos organizados contra o preconceito étnico e pela igualdade no tratamento de negros, mestiços e brancos. Voltado à peleja por condições dignas de vida para a população e à busca pela participação dos estratos “de baixo” no centro decisório da Bahia, mas sem romper ou subverter a ordem política, econômica e social estabelecida e destituir a elite do seu lugar político e social que já ocupara, Cosme adotou um modus operandi calcado na prestação de serviços e em doações para sanar as demandas individuais e coletivas mais urgentes e em ações reivindicatórias, nas quais, preferencialmente, empregava tom moderado. Assim, negociava, evitando o confronto, e, por vezes, até cedia à estrutura social, política, econômica e cultural vigente na Bahia, talvez, por ter ciência das possíveis implicações de um embate, ou seja, dos riscos de sucumbi. Uma das exceções foi a afronta ao governador Góes Calmon, entre 1924 e 1928, Tal modelo de atuação fora forjado pelo convívio com esta conjuntura, na qual a elite política e econômica determinava a condução da Bahia e, ciosa dos privilégios conquistados historicamente para si, resistia em aceitar novos indivíduos entre os seus. Militantes de quaisquer causas, inclusive o Major Cosme, atuavam sob intensa pressão da elite que dominava a cena local, que tinha o propósito de preservar a estrutura política e econômica vigente, visando asseverar a manutenção do status conquistado e do poder nas mãos do grupo. A união de diversas facções (seabristas, mangabeiristas etc.), outrora em conflito, pela autonomia da Bahia após a “Revolução de 1930”, diante da iminência da perda de poder, comprova isto. Ademais, nas primeiras décadas da República, crescia a ingerência do Estado sobre as formas de organização dos trabalhadores e o funcionamento de sindicatos e associações720; e o governo central limitava o direito de ir e vir das pessoas, mediante decreto de estado de 720 Isso ocorreu, especialmente, na Era Vargas, quando se implantou uma série de medidas populistas para seduzir os trabalhadores (criou-se o posto de deputado classista no parlamento estadual, concedeu-se direitos trabalhistas etc.) e líderes sindicais aproximaram-se do governo (Agripino Nazareth, por exemplo, na década de 1930, tornou-se procurador do recém-concebido Ministério do Trabalho). Antes, leis nacionais limitavam a atuação de estrangeiros em sindicatos e organizações, entre outras restrições; e, em território baiano, entidades como o Centro Operário da Bahia já haviam aderido ao governo. Boris FAUSTO. História do Brasil. Op. cit.; Consuelo Novais SAMPAIO. Os Partidos Políticos da Bahia na Primeira República. Op. cit. p. 67-68. 250 sítio, especialmente entre os anos 1920 e 1940, e cerceava o direito de livre manifestação, impondo a censura. Na Bahia, perduravam a cultura de seguimento de um chefe político; a dificuldade de superar a parca representação no Poder Legislativo, visando ganhar condições para negociar com o governo ou eleger governantes da oposição; e uma intensa disputa interna nas instituições, entre facções com orientações ideológicas divergentes. Afora isto, aperfeiçoaram-se os sistemas repressivos contra ativistas, principalmente, a partir do governo de Góes Calmon, com o fortalecimento da polícia; e controlava-se o dia a dia das organizações sindicais e associações como ação preventiva à ofensiva dos trabalhadores, inclusive, por meio da infiltração de agentes do governo nestas entidades. Quando ele começou a atuar, as práticas beneficentes eram relativamente comuns em Salvador, como se pode atestar diante da profusão de ligas e sociedades filantrópicas, como a LBA, a Liga de Proteção à Infância e a Liga Baiana contra a Carestia, todas surgidas na Primeira e Segunda República. Na tentativa de atenuar as injustiças sociais arraigadas no Brasil desde a colonização portuguesa, agravada pela forma de extinção oficial do regime escravocrata, a sociedade civil envidava esforços para amainar as diferenças no acesso à renda, à propriedade e às políticas públicas sociais. O modus operandi, contudo, variava e, desde então, provocava calorosos debates acerca das formas e dos efeitos da assistência social no Brasil, sobretudo, a partir dos anos 1970. De acordo com grande parte da literatura acerca da temática, coexistem duas maneiras diversas de atender às demandas sociais da população, a partir das quais a obra de beneméritos como Cosme de Farias podem ser analisadas. São elas: o assistencialismo, eficaz para conter problemas urgentes, mas ineficiente na concessão de autonomia para o exercício da cidadania pelo beneficiário; e a assistência social, capaz de promover a emancipação. O assistencialismo721 consiste na prestação de auxílio emergencial, momentâneo e filantrópico a pessoas vulneráveis (desabrigados por uma catástrofe natural, desempregados etc.), principalmente através de doação de recursos materiais e dinheiro, dentro de uma lógica de troca, em que o agente da benemerência cria a expectativa de receber algum retorno do sujeito beneficiado – em forma de afeto, de respeito, da execução de tarefa gratuita ou a baixo custo na área de formação dele, de voto em eleições oficiais etc. – e o assistido pode se sentir obrigado a manifestar gratidão e até agir com certa subserviência e dependência. “Supõe sempre um doador e um receptor. Este é transformado em um dependente, um apadrinhado, um 721 Miguel FONTES. Existe Algum Problema em Ser Assistencialista? Fórum de Marketing Social do Brasil (site oficial). Brasília: Socialtec, 2010. Disponível em: <http://www.marketingsocial.com.br>. Acesso em: 11 jan. 2010. 251 devedor”, conforme Aldaíza Sposati722. Nesse modelo, em geral, não há estímulo à organização da população para interação com o poder público e exigência do cumprimento dos direitos estabelecidos em lei, a partir da elaboração e implantação de políticas públicas. A prática assistencialista, portanto, caracteriza uma relação pública como se fosse da esfera privada, cujos assistidos nem sempre têm ciência dos seus direitos e dos deveres do Estado para com eles, e pode ser um recurso útil à dominação. Pode exercer influência sobre a opinião pública e interferir, por exemplo, em resultados eleitorais, na medida em que os favorecidos podem compor uma imagem equivocada do agente da doação e se acharem obrigados a "retribuir" o auxílio através do voto. De certo, atenua as demandas individuais, mas não transforma a realidade da população. Quando esgotados os bens cedidos por meio de doações, o beneficiário retorna à condição inicial de carência. Delineada nos anos 1930, a assistência social, por sua vez, considera todos, igualmente, titulares de direitos que nem sempre são facultados pelo Estado e pauta-se pela oferta de condições, para que se tenha acesso aos direitos previstos em lei, inclusive de amparo em caso de necessidade. Pode prestar apoio emergencial ou permanente e, em geral, envolve a construção de políticas públicas destinadas a solucionar definitivamente os problemas constatados e prevê relações entre o poder público e o grupo assistido, visando que a população se organize e articule estratégias para garantir acesso aos seus direitos. Contudo, há casos 723 em que se faz necessária (e até imprescindível) a ação sem objetivo de promover mudança da realidade de uma comunidade ou políticas sociais, a exemplo de catástrofes provocadas por fenômenos da natureza (como enxurradas, tufões e ciclones). Nessas situações, as providências iniciais devem servir para atenuar as demandas emergenciais, em concomitância ao desenvolvimento de planos estratégicos para reversão da crise instalada, estabilização do quadro e promoção da cidadania plena dos indivíduos atingidos. Dentro dessa perspectiva, Aldaíza Sposati724 diferencia assistência e assistência social. Para ela, a primeira é o “acesso a um bem, de forma não contributiva, ou através de contribuição indireta, pela alocação de recursos governamentais”, visando atender uma demanda coletiva prioritária, a fim de assegurar a todo cidadão condições de vida e atenção aos seus direitos essenciais, sem que isso necessariamente seja assistencialismo. A segunda, como po722 Aldaíza SPOSATI. A Assistência Social Brasileira: descentralização e municipalização. São Paulo: Educ, 1990. p.13-21 apud Carlos Alberto Monteiro de AGUIAR. Assistência Social no Brasil: a mudança do modelo de gestão. São Paulo: Fundação do Desenvolvimento Administrativo, 25 nov. 2009. Disponível em: <htp://www.fundap.sp.gov.br/publicacoes/TextosTecnicos/textec3.htm>. Acesso em: 22 jan. 2010. 723 Miguel FONTES. Existe Algum Problema em Ser Assistencialista? Op. cit. 724 Aldaíza SPOSATI. A Assistência Social Brasileira: Descentralização e Municipalização. Op. cit. 252 lítica pública, consiste em ações para enfrentamento de dificuldades de um grupo social excluído, na tentativa de lhe garantir o direito à sobrevivência e à dignidade, de acordo com os padrões construídos historicamente. Ao que consta, Cosme de Farias buscava o alívio do sofrimento de quem lhe requisitava, com ações pontuais e voltadas ao solicitante individualmente ou, no máximo, à sua família. Sua receita pessoal era destinada às doações de materiais escolares, cartilhas, alimentos, medicamentos a desempregados, mães solteiras, famílias de detentos, a casas pias e outras organizações beneméritas725; ao encaminhamento de anônimos para emprego, asilos, hospitais e escolas públicas; ao acompanhamento de internos no manicômio; à distribuição de mensagens de conforto a detentos, doentes, idosos, crianças, desempregados e seus familiares; e, ainda, à prestação de serviço de defensoria gratuita. Nesse processo de extensa dedicação a terceiros, embora sem fazer barganha, ele nutria alguma expectativa de obter certa contrapartida dos beneficiados, conforme admitiu em declaração cedida à imprensa, logo após derrota na eleição ordinária de 1954 e antes da realização do pleito suplementar, que lhe renovava as chances de conseguir uma das vagas para a Câmara Municipal de Salvador 726: Cheguei, também, à vossa companhia, defendendo o Amor e a Liberdade. Lutando alto contra a tirania Eu gastei toda a minha mocidade. Trago o peito repleto de alegria Porque não foi aos bródios de maldade. Tangi por terra muita vilania! Salvei do lobo muita virgindade! Estou pobre e sozinho, e sem futuro... Porém soldado de tudo quanto é puro, E desprezando sempre o egoísmo... Dai-me, pois, um braço, ó camarada! Quando os infames jogam-me pedras, Brilha mais alto o meu idealismo! No texto, o então candidato clamou por um “braço” aos “camaradas”, sob o argumento de que havia dedicado a mocidade à defesa dos necessitados e, naquele momento, esta725 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 7 de maio de 1959, 7 de julho de 1959; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 212. 726 A TARDE. Salvador (BA), edição de 1º de dezembro de 1954. 253 va “pobre e sozinho”; e relembrou sua obra social em versos, com destaque para as doações diretas a indigentes e à defesa de réus em casos judiciais. O manifesto pró-candidatura à vereança, encaminhado por amigos pessoais e confrades de Cosme na Liga Bahiana e publicado pelo jornal A Tarde, às vésperas dessa eleição suplementar, reitera a existência de uma expectativa de vitória, em retribuição ao trabalhado assistencial desenvolvido por ele, sobretudo, na gestão da LBA727. Ambos eram manifestos pontuais dessa expectativa de contar com a gratidão da população. Não passavam disso, porque Cosme não seguia a lógica clientelista arraigada na cultura local da época, da troca de favores, visando a obtenção de benefícios para si e para os seus. Ao invés de amealhar em seu favor, destinava tudo que obtinha à população sem acesso aos serviços públicos e a condições mínimas de sobrevivência. Ele não interrompia as obras quando essa compensação não chegava e perdia, por exemplo, as eleições. Seu interesse em galgar cargos políticos parece ser instigado pela perspectiva de ampliar a obra social a partir das prerrogativas do mandato, como a apresentação de projetos para concessão do título de utilidade pública a entidades beneficentes e o encaminhamento de solicitação de subsídios para organizações sem fins lucrativos. O jornalista causava estranheza tanto pelos princípios e pela postura fora do modelo convencional, marcado pela troca de benesses entre um grupo exíguo liderado por representantes dos estratos mais abastados, quanto por não se submeter à elite econômica e política baiana e gozar de autonomia, para criticar, enfrentar, afrontar. Isso poderia ter dois efeitos antagônicos: despertar afinidade com a proposta e contribuir para o reconhecimento e a ascensão social do filantropo, mesmo que esse não tenha sido seu propósito; ou desgastar seus laços com os grupos “de cima” e atiçar uma rivalidade, prejudicando sua possível aceitação nesse meio. A personificação da bondade, não obstante, poderia trazer ao filantropo, além de louros, certo poder, mesmo que esta não fosse sua intenção. O abrigo de pessoas em sua casa, o requerimento de tutelas de crianças e adolescentes em seu nome e a divisão do próprio almoço, além da administração personalista de sociedades como a própria Liga e do uso do próprio nome para mediar o acesso à escola e assistência médica da rede pública, em detrimento de ser obrigação do poder público ofertar amparo à população, aparentavam simples gestos de solidariedade, mas lhe propiciavam a possibilidade do exercício da dominação sobre os assistidos. 727 A TARDE. Ibid. 254 As ações de Cosme provocavam o fortalecimento da sua imagem, sobretudo, perante os beneficiários do trabalho, e, antagonicamente, o enfraquecimento dos poderes constituídos. Ao fazer a mediação entre um sujeito e uma instituição pública de ensino, saúde, acolhimento para garantia de vagas em escolas, atendimento médico ou abrigo, ele, de maneira subliminar, evidenciava distorções no funcionamento dessa organização e no governo. Ao tomar para si a responsabilidade de amenizar o sofrimento de um indivíduo ou grupo social, ele desacreditava o serviço público, cuja obrigação legal era asseverar condições de sobrevivência a todos. Ademais, as ações filantrópicas em si, por sua natureza – grande parte doações e prestação de serviços, para sanar problemas emergenciais, que supriam demandas individuais –, não eram capazes de promover a transformação da realidade. Talvez, por isso, em paralelo à filantropia, Cosme militou e até liderou movimentos sociais e políticos, por mais de sete décadas, fomentando a conscientização dos diversos grupos sociais quanto aos seus direitos e a exigência do cumprimento de prerrogativas legais com ações pontuais ou políticas públicas, através do diálogo ou de mecanismos de pressão (como a greve e os meetings). Tinha em pauta o combate à carestia e ao analfabetismo, a defesa do pagamento de melhores salários e de condições dignas de trabalho, além da atuação em prol dos direitos humanos irrestritos, da liberdade e da garantia de reinserção social de presidiários. Mediava as relações entre representantes do poder instituído e a população e, em geral, estava à frente de eventos reivindicatórios, como passeatas e comícios. A causa precursora foi a “Campanha dos loucos”, porém se sobressaiu na luta pela alfabetização, como já explicitado. Embora traços do seu comportamento coincidam com as características do assistencialismo (como a dedicação a causas emergenciais e individuais; as doações; a personificação das obras), Cosme distinguiu-se dessa corrente, por preterir um dos aspectos fundamentais da cultura assistencialista – o emprego de procedimentos clientelistas. Não há indícios de uso da filantropia como instrumento para obtenção de benesses pessoais, nem da expectativa em torno do “reconhecimento” e da “retribuição” por seu trabalho. Não obstante houvesse vestígios do assistencialismo no seu dia a dia, suas práticas (como o estímulo à organização de movimentos e instituições reivindicatórias), também, estavam impregnadas de elementos da assistência social, mesmo antes do conceito ser cunhado por profissionais do campo do serviço social nos anos 1930. A documentação consultada sinaliza que ele considerava toda pessoa como titular de direitos e buscava garantir condições básicas de sobrevivência àqueles que batiam à sua porta, através da caridade e militância em movimentos sociais e políticos. Abundam interpretações para a compreensão dos motivos do altruísmo e da benemerência deste jornalista. Uma delas é que seu espírito solidário tenha sido forjado sob influência 255 das balizas defendidas pela Igreja Católica, como a caridade ao próximo. A inferência tornase crível, sobretudo, se forem consideradas as manifestações explícitas da fé católica de Cosme, através, por exemplo, da manutenção de uma imagem de Santa Bárbara na casa simples onde morava, da encomenda de missas em ação de graças no dia de seu aniversário e em outras ocasiões importantes e da constante evocação de Jesus Cristo e da Virgem Maria em escritos seus728. Talvez, ele não tivesse uma religião específica, mas abundavam evidências de religiosidade na sua vida. O Major, também, pode ter se dedicado a tais causas por ter desenvolvido um elevado espírito humanitário, por influência de filantropos e idealistas com quem conviveu, desde a juventude, sobretudo, devido ao trabalho e à orientação política (como o jornalista e deputado Lelis Piedade, homem responsável por sua inserção no jornalismo e que atuava em defesa de viúvas e órfãos); ou do contexto de convulsão social da Bahia e do Brasil, marcado por manifestações organizadas por diversos segmentos, geradas por fatores como a fragilidade da economia, baseada no modelo agro-exportador, os efeitos de guerras, a instabilidade política. É possível, ainda, que isto seja uma reação à discriminação a quem “ousasse” ascender socialmente729, comum à Bahia da época, embora não tenha sido localizada documentação comprobatória de que o próprio Cosme tenha passado por este sofrimento ou mencionado a sua cor e/ou situação financeira como motivações para o preconceito de outrem contra ele. A insatisfação com a condição que lhe fora imposta em decorrência da origem, desde a infância, e o ressentimento, quiçá, tenham lhe estimulado e até encorajado para o trabalho, na tentativa de erguer os “pobres” e fortalecer aqueles que, como ele, já atendiam requisitos para a mobilidade. No clássico Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre730 considera a possibilidade de participação em movimentos revolucionários e de ressentimento apenas de mulatos bacharéis, mas é presumível que a ferida aberta pelo estigma da cor da pele e da condição econômica 728 Ver, por exemplo, Versos à Infância, incluído na Carta do ABC, em que diz “Correi, portanto, às escolas,/Para o batismo da Luz.../ Palpita na voz dos mestres/ A doce voz de JESUS!”; e Hymno do Encarcerado, em que roga “O destino impiedoso/Jogou-me nesta prisão,/ JESUS CHRISTO, pae bondoso,/ Dae-me a vossa compaixão [...] Conquistam louros e palmas/ Todas as grandes acções,/ O crime corrompe as almas/ E degrada os corações”). Por fim, depositava na religiosidade a esperança de atenuar o drama do encarcerado (“Dos erros da minha vida/ Eu tenho arrependimentos,/ Virgem-Santa, mãe querida/ Confortae meus sofrimentos”. Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Op. cit.; Cosme de FARIAS. Estrophes. Op. cit. p. 36-37. 729 Se isso ocorreu, ele não seria o único a ser alvo de preconceito, pois isto era comum contra pretos e mestiços na Cidade da Bahia. Quem migrava de estrato sofria perrengues, dificuldades, e tornava-se “alvo de ressentimento por parte de muitos que permanecem nos estratos inferiores da sociedade. Uma vez que, para adquirir status, o escuro necessita assimilar-se cultural e socialmente ao branco adotando a sua ‘epiderme social’, ele é muitas vezes censurado”. Thales de AZEVEDO. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Op. cit. p. 72. 730 Gilberto FREYRE. Sobrados e Mucambos. Op. cit. p. 588-590. 256 sangre, por toda a vida, em todo mestiço aviltado, por sua ascendência negra e origem pobre, e leve-o a manifestar sua discordância e indignação de múltiplas maneiras e em situações diversas. Neste sentido, nem as vantagens decorrentes do “embranquecimento social” suplantam a suposição de inferioridade e o sentimento de injustiça, a menos que o sujeito em questão não tenha consciência da sua mestiçagem e imagine-se “branco puro”, o que, aparentemente, não era o caso de Cosme. Além disso, o Major Cosme pode ter agido por convicções gestadas a partir de suas características naturais e de suas experiências, mas não necessariamente associadas a problemas relativos à sua cor e à sua condição financeira. Assim, as vivências do passado teriam exercido influência na sua forma de ser, pensar e agir, em um processo psicológico que pode ser explicado com mais propriedade pela Psicologia. Afinal, o indivíduo estabelece ligações entre passado e presente que reverberam, explícita ou implicitamente, na sua consciência, nos seus pensamentos, nas suas ações. As dificuldades para viver e se manter na escola, por exemplo, podem ter repercutido sobre sua personalidade e lhe impulsionado para agir continuamente contra a miséria e pela alfabetização. Independentemente das razões do Major Cosme de Farias, é evidente que seu trabalho surgiu no afã de facultar a outras pessoas o acesso aos gêneros e serviços essenciais, o convívio social saudável e a chance de prosperar. Ele não se limitou a reclamar aos governos a garantia de melhoria das condições à sobrevivência a toda a sociedade – e não somente a um grupo específico. Reivindicou medidas governamentais, mas, também, partiu para a ação. E agiu convicto das possibilidades de promoção de maior justiça social, por meio de melhor remuneração dos trabalhadores, de preços mais justos e da disseminação de mecanismos de ascensão social, como a educação. Nesse sentido, Cosme pode ser tipificado como um liberal. Pode ser classificado como um liberal, pela irredutível defesa da liberdade individual – independentemente da origem familiar e étnica, do status político e econômico e da orientação política e religiosa do sujeito –, assim como pela rejeição às ingerências coercitivas do poder estatal sobre a sociedade, no que se refere aos direitos individuais. Pode ser reconhecido como um liberal, pela aplicação de conceitos que incluem a liberdade de pensamento e manifestação, a autonomia religiosa e política, a preservação do estado de direito, em todo regime de governo, assegurando o acesso irrestrito aos direitos fundamentais e políticos, o respeito à legislação vigente por todos – inclusive pela elite política e econômica – e o desenvolvimento de leis expressassem os anseios e as demandas do povo. Aproximava-se, portanto, neste quesito, de José Joaquim Seabra, chefe político baia- 257 no que, meses antes de morrer, em 1942, se autodeclarou liberal-democrata. Tal convergência não causa estranheza, na medida em que os dois firmaram longa trajetória juntos e o Major sempre proclamou publicamente sua afinidade e admiração por este líder, que ascendeu politicamente, chegando ao cobiçado posto de governador da Bahia por duas vezes, durante a Primeira República, mas caiu no ostracismo e sucumbiu isolado. Contudo, a partir da documentação pesquisada, não se pode afirmar que houve, por parte de Cosme de Farias, igual defesa à propriedade privada, ao livre mercado e à participação restrita do Estado nos rumos econômicos do País, nos moldes do liberalismo econômico idealizado pelo escocês Adam Smith (1723-1790). Por vezes, ocorreu o inverso disso. Ele envolveu-se, por meio do Comitê ou da Liga contra a Carestia, por exemplo, em manifestações pela intervenção do Estado sobre preços de bens e serviços, conforme exposto anteriormente. Por ações desta natureza, percebe-se sua crença na necessidade de ingerência do Estado sobre o mercado. Voltado principalmente à assistência social e imerso no universo do operariado, porém sem a eiva dos revolucionários e mantendo raro trânsito na elite local, mesmo sem imergir nela, Cosme de Farias afastou-se do modelo predominante de fazer política e do estereótipo de político, muito associados, na Bahia da época, ao exercício do poder por chefes sobre a maioria alijada das instâncias decisórias. Ao amealhar algum poder para os estratos mais baixos da sociedade, comumente subjulgados pelos mais abastados, sem o confronto com os grupos hegemônicos, tornou-se um out sider do sistema vigente. Assim, Cosme firmou-se como um dos signos da modernidade republicana na Bahia, embora predominassem práticas inerentes ao atraso no Estado, como o clientelismo e o patrimonialismo. Efetivamente, ele pode ser tomado como um moderno por três razões. Em primeiro lugar, por perceber a Bahia dentro de um contexto espacial e temporal, considerando que este poderia interferir nas relações e práticas sociais e políticas – em oposição ao que pensavam e desejavam grande parte dos governantes e a elite baiana. Em segundo, por aplicar princípios comuns às sociedades modernas, presididas pelo estatuto republicano, nas quais cabiam mais a servidão, o clientelismo, a dominação por uma claque – métodos, até então, muito caros aos baianos –, investindo, por exemplo, na assistência social irrestrita (sem discriminação econômica ou outra qualquer) e sem clientelismo. Neste sentido, tomou para si, por vezes, responsabilidades do Estado, negligenciadas inclusive por descompromisso ou incompetência, buscando proporcionar aos deserdados aquilo que lhes tinham sido subtraído, por conta da ordem social injusta e discriminatória. Em terceiro, por nutrir um espírito, profundamente, sensível às demandas sociais, as quais, muitas vezes, 258 convergiam para carências sentidas por ele próprio, em decorrência da sua origem e de outros fatores, embora sua ação assistencial também fosse marcada pela renúncia cristã. Com o intuito de atenuar os efeitos de uma histórica dívida social, o Major assumiu esse papel e envidou esforços, durante toda a vida, para promover justiça social aos baianos, em uma Bahia mais republicana e menos patrimonialista e clientelista. Enquanto agente individual na busca de solução para o atraso, ele mobilizou muito mais energia do que grandes vultos políticos do seu tempo e contribuiu, ao seu modo, para a modernização da Bahia. Á época, eram mais comuns as iniciativas coletivas, muitas vezes, com exploração da máquina governamental. Desta forma, algumas personagens tentaram reverter o quadro, mas não lograram o êxito almejado, a exemplo, possivelmente, dos governadores Manuel Vitorino, J. J. Seabra e Góes Calmon, na República Velha, e Octavio Mangabeira e Antônio Balbino, na fase pós-Segunda Guerra Mundial731. Cada um à sua maneira procurou modernizar a Bahia, porém, provavelmente, o Major foi a maior expressão individual deste projeto. Não há evidências de que Cosme de Farias tenha problematizado a ocupação deste espaço social e político por ele e o desempenho deste papel ou almejado reconhecimento e benesses em função disto. Os indícios coletados na documentação permitem a inferência de que ele tenha sido levado a assumir tal atribuição por múltiplos motivos, inclusive, em especial, por sua origem e pela íntima relação e identificação que mantinha com os estratos “mais baixos” da sociedade. Ressalte-se que, apesar da diligência constante, ele não conseguiu alcançar, plenamente, seus objetivos, visto que morreu sem ver a Bahia livre da submissão de muitos em favor de poucos, da chaga do analfabetismo, da negação de direitos fundamentais à população, sobretudo, porque um fardo tão pesado não pode ser carregado por um indivíduo somente. Porém, ainda assim, ele deixou um relevante legado para as gerações subsequentes, no que se refere à crença e à promoção dos princípios liberais e às estratégias, táticas e ações para superar os limites impostos por um sistema que privilegia um grupo restrito, em detrimento da maioria. A imprensa foi utilizada por ele como um dos principais dispositivos para o sucesso nesta empreitada, como será discutido adiante. 731 Contudo, isto deve ser objeto de uma outra pesquisa, diante da complexidade da temática. 259 4 NAS VEREDAS DA IMPRENSA Na mais tenra idade, aos 13 anos, Cosme de Farias732 fez suas primeiras investidas no universo das letras. Em meio à acalorada repercussão da abolição da escravatura no Brasil, através da Lei Áurea, sancionada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, aquele menino mulato e magricela de São Tomé de Paripe aventurou-se a manifestar suas ideias pueris acerca do regime e proferiu seu primeiro discurso em público. Nem mesmo os parcos anos de escolarização impediram-no de se pronunciar aprovando a medida, talvez, na expectativa de que a Lei pudesse melhorar as condições de vida de pessoas como ele, mestiças. Aquelas primeiras palavras descortinaram um novo mundo para Cosme. Dali em diante, ele manteve o ofício, de maneira ininterrupta, até o fim da vida. Ora, na imprensa e na produção editorial literária; ora, em tribunas de espaços públicos e privados. Ora por meio do jornalismo e da poesia popular; ora, da retórica de cunho ideológico e político em discursos. Muitas vezes, escrevia para jornais e para compor livros de parcas páginas; em outras, fazia discursos e versos para declamações orais ao vivo, olho a olho com o público. Múltiplas táticas eram utilizadas para disseminação da sua lavra. Rodeado por populares, ele costumava declamar ou fazer pronunciamentos em eventos promovidos por ele mesmo ou por terceiros, muitas vezes em espaços públicos como a Praça Castro Alves, no Centro de Salvador (como as celebrações do aniversário da Liga Bahiana contra o Analfabetismo733); e improvisar orações em festejos cívicos organizados por ele ou por instituições públicas e privadas (como a marcha cívica a Pirajá, proposta por ele e realizada todo mês de julho, em homenagem aos participantes das lutas pela Independência da Bahia do jugo português734; e a sessão cívica pelo aniversário da Independência do Brasil ao Sete de Setembro, preparada pela Associação dos Officiaes da Guarda Nacional735). Quando era ocupante de cadeira na Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal, subia à tribuna para discorrer sobre assuntos diversos, conforme já explicitado em capítulo anterior. Também, divulgava textos em jornais e rádios: e redigia ou organizava e fazia a edição independente de livretos e da cartilha para alfabetização intitulada Carta do ABC, para distribuição gratuita à população ou venda avulsa. Em geral, o montante aferido com estas 732 Adroaldo Ribeiro COSTA. O Major Foi à Hora da Criança. Op. cit. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 1º de outubro de 1940, entre outras edições de títulos diversos. 734 A NOITE. Salvador (BA), edições de 9, 18 e 19 de julho de 1925. 735 A NOITE. Salvador (BA), edição de 11 de setembro de 1925. 733 260 iniciativas era revertido para a campanha de combate ao analfabetismo e para atividades assistenciais de organizações como o Abrigo Filhos do Povo, localizado na região da Liberdade. Muitas foram beneficiadas. Incomum entre aqueles de parca escolarização formal, a habilidade com as letras permite a ele a criação de tipos de textos variados (artigos, poesias e hinos), de acordo com a observação da produção publicada no livreto Singellas, na coletânea Lama & Sangue, na cartilha Carta do ABC e em jornais locais e das informações sobre ele coletadas na bibliografia e nos periódicos consultados neste estudo. São, portanto, formatos característicos do jornalismo e da literatura, que, por vezes, misturam-se uns aos outros. Este capítulo da tese faz uma análise das linhas impressas em jornais e livros elaboradas pelo Major Cosme e sobre ele, que, pela natureza do suporte, ainda permitem que estudantes, pesquisadores e curiosos defrontem-se com seu pensamento, suas ações, seu jeito de ser e viver. 4.1 INCURSÕES NO UNIVERSO DA POESIA A vocação para as letras levou Cosme à literatura na juventude. Aos 21 anos, ele debutou na arte de se manifestar por meio de rimas, figuras de linguagem, meias-palavras. Em 15 de novembro de 1896, dia de aniversário da proclamação da República, teve seus primeiros versos publicados em jornal: “Meus amigos, gente boa/ A luz do cristianismo é grande/ Á luz do cristianismo reforcem/ também a luta/ contra o analfabetismo”736. Naturalmente, a poesia de estreia debruçou-se sobre o combate ao analfabetismo, a bandeira que, posteriormente, tornou-se a razão da sua vida. Desde então, a literatura passou a ser para ele um ofício concomitante ao jornalismo. Os primeiros alfarrábios assinados e editados por ele em formato de livretos – Singel737 las e Lilases738 – foram lançados em 1900, quatro anos depois da primeira veiculação em jornal de uma poesia de sua autoria. Sucederam, a estes dois títulos, inúmeras versões da cartilha Carta do ABC e as coletâneas de poemas Trovas e Quadras739 (sem data), Lira do Cora736 TRIBUNA DA BAHIA, Salvador (BA), edição de 4 de setembro de 1971. A COISA. Salvador (BA), edição de 11 de fevereiro de 1900. 738 CORREIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 23 de novembro de 1900. 739 JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 12 de outubro de 1971. 737 261 ção (1902) e Estrophes740 (1933). Pelo menos, isto sinaliza os documentos reunidos para esta tese. Mais tarde, o livro O Descobrimento do Brasil teve a intenção de publicação anunciada em periódicos locais pelo próprio escritor, mas nenhum exemplar ou texto jornalístico que confirme o tento foi localizado na pesquisa para esta tese. A maior referência da obra de Cosme é a Carta741, editada inúmeras vezes com tiragens de 5 mil a 10 mil exemplares e distribuída gratuitamente, por décadas, até os anos 1970, a analfabetos e voluntários para a alfabetização gratuita de crianças, jovens e adultos742. Elaborada na íntegra por ele, ela743 consistia em um livreto de 48 páginas de aproximadamente 10,5 x 15 centímetros, impresso em preto e branco e em papel de baixo custo, sem ilustrações, de acordo com o exposto anteriormente nesta tese. Afora o abecedário, as vogais e frases curtas com sílabas de fácil apreensão (como Ivo viu a uva), reunia poesias, hinos patrióticos, anedotas, o nome de personalidades baianas e um texto informativo sobre o Centro Industrial de Aratu. Dos produtos poéticos desenvolvidos por Cosme de Farias, há poucas informações disponíveis. A maioria – Singellas, Lilases, Trovas e Quadras, e Lira do Coração – sequer pode ser encontrada no acervo de arquivos e bibliotecas públicas de Salvador e no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, sediados na cidade do Rio de Janeiro. A indisposição de exemplares para leitura inviabiliza a análise da estética e do conteúdo da produção e dos propósitos do escritor ao publicá-los. Somente a bibliografia e as notas veiculadas em periódicos permitem a descrição deles. De Lilases e Trovas e Quadras, por exemplo, localizou-se apenas o registro da existência, sem informações descritivas sobre a proposta, as características físicas e o conteúdo. Constituído por quatro poesias, textos distribuídos por duas páginas em homenagem ao “poeta dos Prelúdios”, Martiniano Junior, e por uma página voltada para o doutor Carlos Leitão, o libelo Singellas744 foi uma das obras de estreia do autor e teve a renda obtida com a comercialização dos exemplares destinada ao Asylo Filhas de Anna, localizado em Cachoeira, 740 Nos casos de Estrophes e Lama & Sangue, há exemplares recolhidos no Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, enquanto que os demais não foram localizados nos acervos pesquisados para esta tese, sendo as informações aqui mencionadas baseadas em citações em periódicos, na bibliografia e em documentos escritos, conforme indicado em notas de referência. 741 Cosme de FARIAS. Carta do ABC. Op. cit. 742 A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 12 de outubro de 1971, 14 e 15 de março de 1972; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972. 743 A descrição refere-se à edição de 1970, mas podem ter ocorrido variações quanto à forma e ao conteúdo. A existência de versões diferenciadas não foi confirmada por não terem sido localizados outros exemplares da publicação. 744 A COISA. Salvador (BA), edição de 11 de fevereiro de 1900. 262 no Recôncavo baiano. Dois anos depois, em 1902, ele lançou outra seleção de poesias, Lira do Coração, cuja verba angariada com as vendas foi revertida para o Orfanato Pia União, situado em Salvador, e do Asilo Maria Auxiliadora, em Maragojipe 745, também no Recôncavo da Bahia. Estrophes, por sua vez, congregava, em 41 páginas, poesias e hinos de autoria de Cosme, precedidos por agradecimentos e dedicatórias a personalidades baianas (como o major Arthur Baltazar da Silveira, o conselheiro Antônio José Seabra e sua esposa Anizia Seabra, e o juiz Horário Lucatelli Dorea). Havia peças elaboradas entre os anos 1910 e 1930, entre as quais hinos aos jornalistas e prisioneiros – o primeiro, um grupo social no qual o próprio escritor está inserido por ser um profissional de imprensa e o segundo, um grupo ao qual está vinculado por atuar como defensor público voluntário; saudações ao líder político com quem manteve eterna relação de fidelidade, o governador José Joaquim Seabra (Salve, Triumphador! e Avé); e um texto dedicado à Nossa Senhora da Conceição (Linhas Ligeiras). Cosme nutria admiração explícita por um dos principais literatos da história do Brasil, o “Poeta dos escravos”, Castro Alves, e pelo mais renomado orador do País, o “Águia de Haia”, o jurista e político baiano Ruy Barbosa. Cita-os, promove homenagens a eles. Talvez, tenha inspirado-se em ambos para a confecção de seus escritos poéticos. Pelo menos, na definição da temática. Assim como se constata na produção destes dois consagrados baianos, a defesa da liberdade e a justiça são assuntos recorrentes na obra literária deste menino do Subúrbio que se fez escritor e jornalista. Eram, também, motes corriqueiros nos seus textos o patriotismo; o trabalho de homens e mulheres com destacada atuação na sociedade em ramos diversos e/ou em prol de um grupo social ou de uma instituição beneficente (como o governador J. J. Seabra); as características de grupos minoritários (como os prisioneiros), profissões (como os jornalistas, motoristas, policiais, enfermeiros) e de organizações de assistência social (como o Abrigo Filhos do Povo); a realidade vivenciada nas ruas da cidade, que, às vezes, suscita a reivindicação através de movimentos sociais (como a reinserção dos presidiários na sociedade e a alfabetização). Em Singellas e Estrophes, por exemplo, fica evidente a preferência por questões vinculadas às suas ideologias e crenças (como o civismo e a religiosidade) e às suas demais atividades cotidianas (a exemplo da liberdade e da mobilização social, relacionadas à advocacia e à militância respectivamente). Mesmo quando teve oportunidade de fazer ficção, fantasiar, tecer história imaginá745 BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 54. 263 rias por meio da literatura, Cosme conservou-se aprisionado ao real; manteve-se fiel aos fatos, às personagens, ao tempo e aos cenários do seu cotidiano; continuou escrevendo sobre as questões que lhe apeteciam no dia a dia, relacionadas às frentes às quais se dedicou como a política, a imprensa, a justiça social, a defesa dos trabalhadores. Mais do que lançar luz sobre as especificidades do poeta, a análise dos temas abordados nos livretos proporciona o reconhecimento das suas inquietações, revela seu comprometimento com os sujeitos abordados e as situações relatadas, e possibilita interpretar que a literatura, para o autor, era mais do que uma forma de subsidiar suas iniciativas de assistência social, era um instrumento para a disseminação das suas ideias, suas ações e seus propósitos. Se considerados apenas o livro Singellas e a cartilha Carta do ABC, aparentemente havia uma predileção do autor pela poesia popular, em especial, pelas trovas, formato caracterizado pela redação de quatro versos de sete sílabas poéticas e com rimas óbvias. Através dela, ele revelou suas preocupações, seus amores, indignações, seus desejos, sua visão de mundo. Marcada pelo tom popularesco e, muitas vezes, panfletário, este trabalho poético sagra-lhe como membro do Grêmio Literário da Bahia, do Grêmio Brasileiro dos Trovadores e da Casa da Poesia746, mas tem valor literário duvidoso. Um exemplo é Serenata, datada de 17 de julho de 1895 mas publicada em Estrophes747, em 1933: “Da saudade os dardos/ Nesta solidão, / Sacodem as cordas / Do meu coração [...] O Amôr é bello, / Quando a gente ama, / Feliz de quem sente / Do Amôr a chamma [...]”. 4.2 OFÍCIO ENTRE AS PENAS E AS PRETINHAS Despertada na adolescência, a paixão pela redação leva o jovem Cosme de Farias ao jornalismo. Após anos dividindo-se entre as atividades atrás do balcão do pequeno comércio de madeira do pai e a produção literária independente, ele passou, ainda no anonimato, a dedicar-se exclusivamente à escrita. Seduzido pela imprensa dos tempos da recém-instaurada República, em 1894, com apenas 19 anos, ele começou a atuar como repórter do vespertino Jornal de Notícias748. Chegou ao veículo749 levado por Amaro Lelis Piedade750, um dos prin746 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p. 129. Cosme FARIAS. Estrophes. Op. cit. p. 21-23. 748 JORNAL DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 3 de outubro de 1899. 749 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 3 de abril de 1937. 747 264 cipais jornalistas da Bahia na época e diretor do JN entre 1886 e 1908, e foi escalado para fazer a cobertura de fatos policiais e de julgamentos ocorridos no Fórum da Cidade, destino comum entre os jornalistas em início de carreira, os “focas”. Com a estreia precoce no JN, Cosme principiou um firme e longínquo vínculo com meios de comunicação da cidade. Até a morte, em 1972, ele operou751 em veículos diversos de Salvador, nas condições de proprietário, funcionário no exercício das funções de repórter, redator, diretor de redação e colaborador eventual. Consta na sua ficha de filiação à Associação Baiana de Imprensa (ABI)752, preenchida na época da fundação da entidade, em 1930, o registro de experiências em Diario de Noticias, Diário da Bahia, Gazeta do Povo, A Bahia, Diario da Tarde, A Hora, O Jornal, A Noite, O Democrata, A Tarde e O Imparcial, porém ele, também, passou por outros jornais, como A Metralha, não indicados neste documento por ele conter apenas dados referentes ao interregno entre fins do século XIX e a data de preenchimento (em 1930) ou por omissão deliberada ou esquecimento de dados. Nas pesquisas para esta tese, identificaram-se laços com outros títulos, sobretudo, na qualidade de proprietário. Apesar da recorrente defesa de empregados, Cosme, também, empreendeu com a criação de veículos próprios, na virada do século XIX para o XX. Ele aventurou-se como fundador, proprietário e redator-chefe ou editor de, pelo menos, quatro impressos com confecção e circulação em Salvador – O Colibri (1898-1899), O Cysne (1899-1900), A Bala (1900) e A Coisa (1904-?) –, todos de curta duração, de acordo com a documentação e bibliografia indicadas ao final deste tomo. Não há possibilidade, contudo, de fazer descrição detalhada e análise do teor e da forma destes trabalhos, porque não foram identificados exemplares destes nem documentos consistentes acerca deles, no decorrer da pesquisa para esta tese, realizadas na Cidade da Bahia e no Rio de Janeiro. Afora estes, de forma explícita ou anônima, ele pode ter constituído outros impressos – um deles denominado de O Beija-flor – que não foram descobertos nessa investigação. Isso é possível devido à dispersão e às más-condições de uso das fontes, à inexistência de instrumentos de pesquisa que facilitem as buscas nesses materiais, à escassez de documentos e bibliografia acerca da sua história e perfil editorial desses jornais, e à falta de recolhimento de 750 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 21 de janeiro de 1935. Os dados pessoais e profissionais, no campo do jornalismo, constam em documentos, periódicos e bibliografia. Ver, por exemplo, Cosme de FARIAS. Ficha de Inscrição na Associação Bahiana de Imprensa. Op. cit.; Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit.; A TARDE. Salvador (BA), edição de 15 de março de 1972; JORNAL DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 14 e 15 de março de 1972; Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário 1811-1911. 2. ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007. 752 Cosme de FARIAS. Ficha de Inscrição na Associação Bahiana de Imprensa. Op. cit. 751 265 exemplares a bibliotecas e arquivos pelo jornalista ou de arquivamento desses volumes pelos prepostos dessas instituições. Até quando não tinha vínculo oficial com meios de comunicação, Cosme conseguia inserir seus textos em veículos de terceiros. Primeiro, levava pessoalmente ou encaminhava por terceiros artigos às redações, acompanhados com um cordial pedido de divulgação 753. E, depois, sempre que a publicação tardava, por qualquer motivo, ele reiterava o pleito aos colegas editores e chefes de redação, remetendo-lhes bilhetes, muitas vezes, junto com presentinhos (bolachinhas de goma, cartilhas Cartas do ABC, sabonetes etc.)754. Desta época, lembra o contemporâneo Jorge Amado755, no seu guia Bahia de Todos os Santos: À noite estava nos jornais. Quantas vezes não o vi debruçado sobre a carteira de Edgard Curvelo, carteira que era a perfeita representação do caos, no antigo O Imparcial, escrevendo em pé, em prosa e em verso, pois seus pequenos artigos, invariavelmente assinados, costumavam começar com prosa e terminar em verso. Não havia matéria mais sagrada para os linotipistas e para os paginadores. Podia deixar de sair o telegrama mais sensacional, o tópico mais esclarecedor, o artigo de fundo, porém a matéria do Major figurava na página. Ia às outras redacções, suas múltiplas campanhas exigiam apelos seguidos. No comentário de Amado, escritor que atuou como repórter do jornal O Imparcial nos anos 1930, consta certo exagero quantos aos procedimentos de Cosme e à aceitação dos colegas de ofício, mas há o registro da sua atividade. Embora tivesse receptividade predominantemente positiva, comprovada pelo volume de publicações levantadas para esta tese e pelo longo período de dedicação à atividade (exatos 78 anos), entre penas e máquinas de escrever, apelidadas de “pretinhas”, os textos do jornalista nem sempre eram editados apronto pelos meios. A dificuldade, aliás, justifica a oferta de “agrados”756 aos colegas como tática para motivar a edição do material elaborado por ele. Além de publicadas em jornais impressos, suas palavras ecoaram nas primeiras transmissões radiofônicas baianas. Por vezes, Cosme utilizava o conhecimento do modus operandi do jornalismo impresso para conquistar espaço no rádio, meio inaugurado na Bahia, oficialmente, em 1924 com a instalação da Rádio Sociedade em Salvador. Em geral, ele enviava textos sobre temas de seu interesse para leitura pelo locutor (“Ouvinte desta emissora gen753 Sebastião NERY. Pais e Padrastos da Pátria. Op. cit. p. 183. Jorge AMADO. Bahia de Todos os Santos. Op. cit. p. 199-200. 755 Id Ibid. 756 Comumente denominados de jabaculê ou de jabá, nas redações, após a disseminação da prática no mercado radiofônico em meados do século XX. 754 266 te boa, que já se vê,/ ajude, também, alegre, / a Campanha do ABC”), acompanhados por pedidos de divulgação 757. A tática era similar à adotada para disseminação de suas ideias e ações por veículos impressos e pode ter sido facilitada pela proximidade com profissionais da área. A Sociedade, por exemplo, foi fundada por empresários, porém, já nos anos 1930, foi vendida a um grupo liderado pelo jornalista Altamirando Requião, o diretor de redação do Diario de Noticias, jornal que publicava regularmente notas sobre Cosme e artigos assinados por ele. O trabalho no ramo lhe credenciou para a filiação à Associação Baiana de Imprensa (ABI), já na ocasião da sua fundação, em 1930, na sede da Associação Tipográfica da Bahia, com o objetivo de atender aos interesses dos jornalistas e dos veículos, comumente mantidos por redatores, editores, repórteres – e não, por empresários da área da comunicação. Então atuando no Diário da Bahia (um jornal dirigido pelo presidente dos trabalhos de composição da entidade, Otávio de Carvalho) e com mais de 30 anos de experiência, ele tornou-se um dos 73 sócio-fundadores da organização, sob a matrícula 14. Logo, o Major passou a ter participação efetiva na casa, propondo e intervindo em discussões (como a de definição pela bandeira ou pelo escudo da entidade, em 1933758). À ABI, fez grandes préstimos, ao pleitear ao poder público, inúmeras vezes, benefícios à instituição, inclusive recursos759, de acordo com atas da Associação Bahiana de Imprensa, sintetizadas pelo pesquisador Nelson Cadena. Pela intensa atividade, foi indicado pelos confrades aos cargos de titular ou suplente da comissão fiscal e de contas da organização, em sucessivas eleições760. 4.2.1 Na gestão de periódicos A experiência inicial na imprensa, ainda no frescor da juventude, fez com que Cosme aventurasse-se em criar empreendimentos no ramo, com a constituição de jornais de pequeno porte em Salvador, primeiro, de caráter literário e, depois, crítico. Então, nos primeiros 11 anos do século XX, a imprensa florescia na Bahia, mediante o surgimento de 487 periódi- 757 Sebastião NERY. Pais e Padrastos da Pátria. Op. cit. p. 183. Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit. 759 Id Ibid., p. 41-97. 760 Id Ibid. 758 267 cos761, com destaque para órgãos de caráter chistoso e/ou satírico com visões mordazes da realidade. À época, a concepção de imprensa como negócio era recente e controversa na Bahia. O segmento havia emergido como opção de negócio no mundo762 – primeiro, nos Estados Unidos e no Reino Unido – apenas no final do século XIX, a partir do desenvolvimento de uma nova forma de sustentabilidade – a publicidade – e da busca da expansão da circulação, atrelada à industrialização e à concepção de novas tecnologias e técnicas de produção, aspectos que se tornariam determinantes do processo de modernização 763 do setor, porém a disseminação deste modelo no Brasil e na Bahia só ocorreria décadas depois. Em território brasileiro, tal característica modernizante manifestou-se e consolidouse lentamente, a partir da inauguração do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1891, já dentro dessa perspectiva mercadológica 764. Na Bahia, a grande imprensa eclodiu apenas entre os anos 1910 e 1920, mais de uma década depois da formação da grande imprensa no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde estavam localizados, respectivamente, a capital federal e o principal centro econômico do país. O processo foi marcado, sobretudo, pela organização das instituições como sociedades anônimas, que, mesmo com vínculos partidários, eram sustentadas por investidores e pela venda de anúncios, e pela atuação ideológica, geralmente, em defesa dos grupos acionistas e da classe dominante, distinguindo-se da fase em que os meios pertenciam a indivíduos ou pequenos grupos, mantinha postura estritamente ideológica e adotava procedimentos artesanais. Sobre isso, afirma José Weliton Aragão dos Santos765: Divulgando os acontecimentos e até mesmo interferindo neles através da atuação política de seus dirigentes, os jornais cumpriram suas funções de manter a ordem, defender os interesses de seus acionistas e, sobretudo, veicular a ideologia da classe dominante baiana do período. Diante dos movimentos de contestação das classes subalternas, a postura da grande imprensa foi de apoio enquanto movimentos bem comportados, dentro dos limites es761 Ver Alfredo CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário – 1811-1911. Op. cit. 762 Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Vol. I, 2. ed. Florianópolis: Insular, 2004, p.33-74; Richard ROMANCINI; Cláudia LAGO. História do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular, 2007, p.68-70, 72-76. 763 O pesquisador português Nelson Traquina, utilizado nesta tese como uma das principais referências para as reflexões sobre as mudanças no jornalismo desencadeadas no século XIX, notoriamente, prefere a expressão “novo jornalismo” para designar esta fase, embora use, às vezes, termos “modernização” e “jornalismo moderno”. Nesta tese, contudo, serão empregados “modernização”, “jornalismo moderno” e afins, referindo-se ao mesmo processo, para evitar confusões com uma vertente específica da área, denominada “new journalism” (ou novo jornalismo, no Brasil), que surgiu nos anos 1960, nos Estados Unidos, e destacou-se no cenário mundial por propor novas formas e apuração e narrativas para o jornalismo. 764 Richard ROMANCINI; Cláudia LAGO. História do Jornalismo no Brasil. Op. cit. p.76. 765 SANTOS, José Welinton Aragão dos. Formação da Grande Imprensa na Bahia. Op. cit. p. 124-125. 268 tabelecidos pelo poder. A imprensa começa a criticar quando os movimentos ameaçam extrapolar esses limites, revelando os seus reais interesses de classe. Uma das iniciativas pioneiras na Bahia foi o jornal A Tarde766, fundado em 1912 com posições inovadoras quanto ao conteúdo e à sustentabilidade, ancorada na venda de espaços para disseminação de informações de interesse pessoal e comercial. O formato era tão original entre os baianos que desencadeou críticas mordazes ao veículo e ao seu fundador, o jornalista e político Ernesto Simões Filho. Um episódio policial ilustra a reação à novidade767: em 1920, o diretor do jornal Manhã, Antônio Marques dos Reis, acusou Simões Filho de ser um “jornalista de balcão” e, irritado, o ofendido reagiu atirando nas nádegas do concorrente. Não há registros sobre a comercialização de exemplares e/ou de anúncios publicitários dos impressos constituídos por Cosme de Farias nem sobre o modelo adotado por ele, mas, pela vida abnegada do jornalista, é possível inferir que não havia pretensão empresarial por parte dele. Tal qual a série de livretos editados por ele, estes periódicos, possivelmente, prestavam-se à disseminação das suas ideias, das suas ações, dos seus propósitos e à arrecadação de recursos para custeio da produção e sustento da “campanha do ABC” e outras atividades assistenciais, àquela altura já em andamento. A première de Cosme na condição de empreendedor ocorreu em 19 de abril de 1898 com a fundação de O Colibri768, um jornal literário, de pequeno formato gráfico, cuja redação estava sediada na Rua da Valla769, nº 19, no Centro. O conteúdo era produzido por ele mesmo, que ocupava a função de redator-chefe, pelos redatores Augusto Lessa (proprietário de pequenos jornais na cidade, como o jornal O Mangagá, de caráter chistoso) e Galdino de Castro (jornalista atuante, que posteriormente participou da comissão de redação de Nova Cruzada), e por colaboradores, cujos textos eram cedidos sem ônus ao periódico. Atuava como secretá766 Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit. Meire Lúcia Alves dos REIS. A Cor da Notícia: discurso sobre o negro na imprensa baiana – 1888-1937. Dissertação. Salvador: Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2000. p.22. 768 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia Op. cit. p.151, 162, 168. 769 O logradouro está situado no Centro de Salvador (BA), nos arredores do Barbalho, de Santo Antônio Além do Carmo, de Nazaré e da Saúde. Hoje, a Rua da Vala é oficialmente denominada de Avenida J. J. Seabra, em homenagem ao governador homônimo, mas mantém-se mais conhecida na cidade como Baixa dos Sapateiros, nome atribuído pela população devido à instalação de uma fábrica de sapatos na área, por imigrantes italianos, em tempos remotos. Até o final do século XIX, ela era chamada de Rua da Vala porque na localidade havia uma vala por onde um rio desaguava. Antes, era denominada de Rua da Hortas, por abrigar um centro de abastecimento de frutas e legumes. Até final do século XX, era um centro de comércio intenso e celeiro de produção e difusão cultural. BAIXA DOS SAPATEIROS. In: Salvador – Cultura Todo Dia. Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2011. Disponível em: <http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2011; Luiz Eduardo DÓREA. Os Nomes das Ruas Contam Histórias. Op. cit. 767 269 rio A. Marialva. Porém, após pouco mais de um ano de funcionamento, em setembro de 1899, ele fechou as portas, por motivo desconhecido. O título remetia a uma ave pequenina, também conhecida como beija-flor, pica-flor ou chupa-mel. De olfato aguçado, este animal tem a capacidade de locomoção aérea rápida e a incomum habilidade de parar no ar, em pleno vôo. Dono de plumagem tem cores brilhantes, que gera reflexos metálicos, é um dos raros pássaros com a aptidão de exteriorizar beleza e suavidade e, ao mesmo tempo, velocidade e destreza. Talvez, a expectativa de que estas características fossem imputadas ao novo jornal tenha motivado a escolha do nome. Quando as rotativas deixaram de imprimir O Colibri, o jornalista já mantinha em circulação outro periódico, O Cysne770. Lançado em 11 de abril de 1899, ele apresentava-se como literário e imparcial, tinha periodicidade quinzenal e, também, era confeccionado em pequeno formato gráfico. Sua divisa era “Tudo pelas letras e pela patria” 771 (sic), em consonância com duas das prioridades do seu proprietário – a literatura e o patriotismo. Autonomeado redator-chefe, ele era o principal responsável pela elaboração do conteúdo, mas contava com colaboração de terceiros, sem pagamento pelo serviço. Com redação estabelecida em espaço vizinho ao de O Colibri, na Rua da Valla, nº 20, o veículo encerrou suas atividades exatamente um ano depois do início, em abril de 1900. A titulação do quinzenário era uma explícita referência ao cisne, ave aquática de hábitos gregários, beleza singular e emissão de som cadenciado pelas asas durante o vôo, porém, excessivamente arisca. Ela tem grande capacidade de percepção: quando pressente perigo, faz grande alarido e costuma correr até levantar vôo; e, quando nota a proximidade da sua morte, faz um canto de despedida atraente. Literatos anônimos e consagrados – como o português Luiz de Camões (1524-1580), na poesia O Cisne, Quando Sente Ser Chegada, e o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), no conto infantil O Patinho Feio – costumam inspirar-se nele. Provavelmente, Cosme remeteu-se à ave por pretender que seu jornal, igualmente, buscasse agregar pessoas, fosse belo e fizesse alarde diante de riscos à população. O Cysne ainda estava em circulação no momento em que Cosme de Farias, sob o pseudônimo Gasparino d'Alva772, criou em 20 de janeiro de 1900 e passou a dirigir A Bala773, 770 A COISA. Salvador (BA), edição de 16 de abril de 1899; Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.163. 771 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.163. 772 O uso deste pseudônimo por Cosme de Farias é revelado em periódicos da época. Ver A COISA. Salvador (BA), edição de 11 de março de 1900; FOIA DOS ROCÊRO. Salvador (BA), edição do 2º domingo de janeiro de 1901. 773 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.165. 270 impresso que desapareceu em seguida, tal qual aconteceu com O Colibri. De caráter crítico e satírico, o novo periódico tinha periodicidade semanal e era impresso em pequeno formato, como os demais veículos concebidos por Cosme e grande parte dos concorrentes. Sob o lema “Não perdoar culpados nem castigar innocentes”, ele continha conteúdo elaborado por colaboradores diversos. O heterônimo pode ter sido usado para evitar confusão com seus demais projetos jornalísticos pessoais e com sua atuação em outros diários ou por receio de retaliações, em relação às incisivas críticas que, por vezes, tecia contra os agentes do poder instituído, a exemplo do que acontecia com outros tantos jornalistas naquele período. A partir da bibliografia consultada, conclui-se que tal libelo não tinha relações com o jornal homônimo 774, fundado em 21 de setembro de 1890 por um grupo que se autodenominava de Clube Pistola. Editado na localidade do Rio Vermelho, ele era feito por redatores que assinavam os textos com pseudônimos criativos (Jack, o estuprador, Zé do Telhado e Troppman) e fazia oposição ao quinzenário O Novo Estado, extinto neste mesmo ano por razões desconhecidas. Como se tornou habitual, Cosme determinou um título metafórico para o impresso que criou. Os propósitos de A Bala, talvez, coincidissem com as duas acepções mais comuns do termo. No sentido denotativo, a palavra “bala” designa um projétil de armas de fogo com potencial destruidor, arremessado para ferir ou matar; ou uma guloseima pequena, adocicada e aromática que agrada a crianças, adultos e idosos. Este periódico, quiçá, tivesse a intenção de ser ora destruidor, ora doce, afável. Até ser suspenso, ainda em 1900, foram publicados apenas seis números. Após um interregno de aproximadamente quatro anos sem manter veículos próprios, Cosme tornou-se proprietário, administrador e editor responsável por A Coisa775 em setembro de 1904. O empreendimento resultou de uma associação com os jornalistas Francisco Miguel Chaves e Thomaz Xavier Leal Filho. Sobre esta derradeira publicação de iniciativa do Major, pouco se pode afirmar porque, também, não foram localizados exemplares e sequer há menção dela na principal obra de referência da imprensa baiana, os Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário 1811-1911, de Alfredo de Carvalho e João Nepomuceno Torres. Único dos veículos lançados por este jornalista com registro na Prefeitura Municipal 774 775 Id Ibid., p.141, 146. ESTABELECIMENTOS DE OFICINAS DE IMPRESSÃO: 1833-1927. Op. cit. p. 43-44. 271 de Salvador776 – uma formalidade obrigatória para os periódicos da época –, A Coisa teve assentamento autorizado pela Intendência de Salvador e passou a funcionar legalmente, por período ignorado. Denominado por uma expressão que significa algo não-identificado ou complicado demais, ele não tinha vínculo com o semanário de cunho crítico e humorístico homônimo 777, criado em 30 de agosto de 1897 e fora de circulação desde 1900, gerido por K. Brito e administrado por K. Nudo. Redigido por Jayme Borreaux, Zeca Gaud e Bombardino, este jornal era ilustrado e teve o primeiro número feito em pequeno formato, mas, do segundo em diante, aumentou de tamanho progressivamente. A iniciativa de instituir seus próprios jornais decorria, possivelmente, dos anseios por autonomia, frente à elite política e econômica hegemônica no Estado – então, proprietária e com grande influência sobre parte significativa dos meios –, visando o agendamento de questões de seu interesse e o enquadramento dos fatos e temas da forma que lhe conviesse. Era recorrente, por exemplo, que os impressos de sua propriedade tivessem natureza “literária”, que estava associado ao uso de ironia e humor naquele momento, de acordo com descrição de Aloísio de Carvalho 778. Embora houvesse exigências burocráticas a cumprir, como a solicitação de autorização da Intendência Municipal para abertura do empreendimento, o lançamento, de certa maneira, não era complexo 779. O periódico poderia ser estabelecido em qualquer tipografia da cidade e o conteúdo poderia, a depender do fôlego e da competência do jornalista, ser desenvolvido pelo proprietário sozinho. Essa conjuntura permitiu que o Major tivesse, algumas vezes, mais de um impresso em circulação. Ele parecia ter coragem e habilidade para tanto! 4.2.2 Sob comando de terceiros Seabrista firme aos propósitos do governador José Joaquim Seabra, mesmo na fase de ostracismo do líder político e após sua morte em 1942, Cosme de Farias trabalhou como 776 Conforme Estabelecimentos de Oficinas de Impressão, edição fac-símile do livro manuscrito Est. de Oficinas de Impressão 1833-1927, da Prefeitura Municipal de Salvador (BA), integrado ao acervo do Arquivo Histórico do Município, um órgão da Fundação Gregório de Mattos/Prefeitura Municipal de Salvador. 777 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.161. 778 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. 2. ed. rev. e amp. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2008, p. 87. 779 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. Op. Cit. p. 83-84. 272 jornalista, principalmente, em órgãos oficiais do Partido Democrata – fundado e liderado durante anos por Seabra, depois denominado de Partido Republicano Democrata (PRD) – e simpáticos aos seabrismo e/ou que se autoproclamavam independentes, no decorrer das primeiras décadas do século XX, um período histórico marcado pela ascensão, pela consolidação e pelo declínio do domínio seabrista na Bahia. A descoberta decorre da análise do perfil editorial dos veículos, a partir da observação de exemplares arquivados em acervos de Salvador e da leitura da bibliografia atinente à imprensa local. O Jornal de Notícias780, onde Cosme atuou primeiro, surgiu em 1879. Em 1885, Silvestre José de Castro comunicou à Camara Municipal seu afastamento da administração do veículo e, um ano depois, o diário passou por uma reformulação dirigida por Carlos Moraes & Carvalho 781. À época, garantia “absoluta neutralidade nas lutas dos partidos” e apresentandose como apartidário782, mas apoiava causas e defendia posturas políticas ao longo da sua história. Em 1912, por exemplo, demonstrou afinidade com a polêmica campanha seabrista ao governo do Estado783. Desde aqueles tempos, o JN da Bahia gozava de prestígio na sociedade e, ao final do século XIX, classificava-se como “a folha de maior circulação no Estado”. No auge, chegou a manter correspondente exclusivo em Paris (França) para comercialização de anúncios, quando era de propriedade da sociedade entre o renomado jornalista Aloysio de Carvalho (Lulu Parola)784 e irmãos. Houve um reverso: em fins dos anos 1910, em meio ao colapso econômico no Estado, sofreu uma grave crise financeira. Em 1917, foi vendido a negociantes e capitalistas, visando o soerguimento, mas a tentativa de recuperação falhou e eleo deixou de circular por volta de 1920. Enquanto buscava viabilizar o lançamento de novos periódicos na cidade, Cosme de Farias atuou no hebdomadário crítico e caricato A Metralha785, novamente sob o pseudôni- 780 JORNAL DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 3 de outubro de 1899. Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. Op. cit. p. 80. 782 JORNAL DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 3 de outubro de 1899. 783 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. Op. cit. p. 59. 784 Aloysio de Carvalho Filho, conhecido como Lulu Parola, foi responsável pela coluna humorística criada no Jornal de Notícias, chamada “Cantando e rindo”, sobre fatos do cotidiano da cidade. Depois de anos publicada pelo JN, a coluna foi transferida para o jornal A Tarde, a convite do jornalista Ernesto Simões Filho. Mais de 6 mil unidades foram publicadas. Aloysio de CARVALHO FILHO. A Imprensa na Bahia em 100 Anos. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. 1. ed. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005, p. 31-51; Antônio Loureiro de SOUZA. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. In: TAVARES, Luis Guilherme P. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. 1. ed. Op. cit. p.85. 785 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.167. 781 273 mo Gasparino d'Alva786, na condição de redator, ao lado de Xisto Pitú. Inaugurado em 13 de janeiro de 1901, o semanário tinha como diretor-gerente Osman Pachá e mantinha redação na Rua São José, 22. Nesta pesquisa, não foram localizados exemplares nem informações adicionais sobre seu funcionamento. Possivelmente, ele inscrevia-se entre os pequenos impressos de caráter cômico e chistoso, com mordaz crítica à realidade, comuns à fase de produção jornalística artesanal em Salvador, descrita por José Weliton Aragão dos Santos787. Lançada por Virgílio de Lemos em julho de 1905, a Gazeta do Povo788, de início, não tinha compromisso partidário e pretendia ser um vespertino independente. Porém, já nos primeiros anos de atuação, na década de 1910, explicitou, em suas páginas, cognação com os democratas, declarando-se como o órgão do Partido Democrata/Partido Republicano Democrata, e passou a desempenhar a função de órgão oficial do governo de J. J. Seabra. Como veículo seabrista, publicava editoriais em defesa do então governador, empossado após conflitos eleitorais entre 1911 e 1912 e que, portanto, precisava de instrumentos de legitimação. Aquele era um partido com vários jornalistas. A folha atrelou-se aos democratas quando estavam vinculados à legenda personalidades políticas, como o engenheiro Octavio Mangabeira e o jurista Antonio Moniz Sodré de Aragão, que tiveram experiência na imprensa e tornaram-se governadores da Bahia posteriormente, e Ernesto Simões Filho, criador de A Tarde, entre outros veículos. O já consagrado escritor Xavier Marques e um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia, Luis Pinto de Carvalho, chegaram a escrever no vespertino. Apesar do êxito no desempenho das atribuições de difusor dos ideais e das ações seabristas e partidário, a GP acabou substituída pelo Diário Oficial do Estado, criado em 1915 na gestão de Seabra, e por O Democrata, fundado no ano seguinte, em 1916, por motivos não identificados nesta pesquisa. Possivelmente, os democratas não estavam satisfeitos com os rumos do impresso, embora o discurso favorável aos democratas e ao seabrismo fosse recorrente. Não se localizou a data precisa do fechamento da redação e oficina. Diferente do antecessor, O Democrata já surgiu como o jornal oficial do grupo. Conforme relato da Gazeta789, na assembleia geral do partido de 1916, os filiados sugeriram que fosse constituído um novo órgão oficial do Partido Republicano Democrata, cuja denomina- 786 O uso deste pseudônimo por Cosme de Farias é revelado em periódicos da época. Ver A COISA. Salvador (BA), edição de 11 de março de 1900; FOIA DOS ROCÊRO. Salvador (BA), edição do 2º domingo de janeiro de 1901. 787 José Welinton Aragão dos SANTOS. Formação da Grande Imprensa na Bahia. Op. cit. 788 Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.322; Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.103-128; GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edição de 1º de março de 1916. 789 GAZETA DO POVO. Ibid. 274 ção seria “O Democrata”. A intenção do nome, provavelmente, era provocar uma associação mais imediata daquela iniciativa com a legenda. A nova publicação, então, começou a circular em abril de 1916, gerido por Gersem Penna. Naquele momento, o Major pertencia ao quadro do PRD, o que deve ter facilitado sua inserção no veículo. Naquele ínterim, em 1912, Simões Filho inaugurou o vespertino A Tarde790, que se apresentava como independente do ponto de vista político, porém não primava, efetivamente, pela autonomia e defendia os interesses do seu proprietário, um correligionário de Seabra em determinados momentos e oponente em outros. Apesar de ser responsável por inovações (como a valorização dos recursos gráficos e o emprego do linotipo e de maquinário importado moderno, assegurando mais qualidade ao produto e mais agilidade no processo produtivo, e a adoção do modelo empresarial com venda de espaço publicitário), o jornal, na prática, conservou a habitual interação entre imprensa, ideologia e política. Na história deste longevo impresso, registraram-se inúmeros fatos que atestavam sua parcialidade. Durante da “Revolução de 1930”, por exemplo, o vespertino posicionou-se a favor da legalidade de imediato, mas aderiu ao movimento golpista, que depôs o presidente Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e impôs a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas, ainda no ano de 1930791. Entre os jornalistas de destaque que atuaram em sua redação (como o respeitado Aloysio de Carvalho e Ranulfo Oliveira, fundador da Associação Bahiana de Imprensa), esteve Jorge Calmon792, que se notabilizou pela defesa do jornalismo e da liberdade de expressão793, mas participou tanto do Estado Novo, instituído por Getúlio Vargas em 1937, com anuência de Simões Filho, quanto do Estado autoritário instaurado no Brasil pós-golpe civil-militar, em 1964. A própria comercialização de espaço, a princípio, proporcionava autonomia, possibilitando que o veículo escapasse das imposições advindas do financiamento por indivíduos, grupos e legendas políticas, porém, contraditoriamente, sofria limitações de ordem financeira. 790 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. Cit., 2005, p.67. 791 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.225. 792 Jorge Calmon foi, por exemplo, dirigente do DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda) entre 1942 e 1945. Entre 1947 e 1955, ele foi deputado estadual pela União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Libertador (PL). Foi secretário do Interior e Justiça (1963-1966) e da Justiça (1966-1967), do governo Lomanto Júnior, e ministro do Tribunal de Contas do Estado (1967-1971), na gestão de Luiz Viana Filho. Jorge CALMON. Antologia. Arquivo da ALB. Pasta 117. Documentos 58 e 61, de 22 out. 1964; Jorge CALMON. Curriculum Vitae. Arquivo da ALB. Pasta 116. Documento 11; Antonio Carlos MAGALHÃES. Pronunciamento e Requerimento nº 1.281. Diário do Senado Federal. Brasília: Diário do Senado Federal, 19 dez. 2006; Sérgio MATTOS. Jorge Calmon, Ponto de Referência no Jornalismo Baiano. Op. cit. 793 Nelson CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit.; Sérgio MATTOS. Jorge Calmon, Ponto de Referência no Jornalismo Baiano. Op. cit. 275 Mediante pagamento, ele poderia oportunizar a disseminação de informações e opiniões por indivíduos e organizações de qualquer orientação na área reservada à publicidade e, a estes clientes, conferir a possibilidade de tratamento distinguido na cobertura dita jornalística (afora as colunas reservadas ao anúncio publicitário propriamente), a depender das cifras destinadas aos seus cofres. Cosme de Farias, também, participou de O Jornal794, impresso seabrista constituído em setembro de 1926, no transcurso da gestão do Estado por Francisco Marques de Góes Calmon (1924-1928) – adversário de J. J. Seabra e acusado de fraude nos resultados eleitorais que excluíram o Major do parlamento nos anos 1920. Era dirigido pelo professor amazonense Leopoldo Amaral (prefeito de Salvador, de 15 de outubro e 1º de novembro de 1930, e interventor da Bahia entre novembro de 1930 e fevereiro de 1931, nomeado pela Junta Governativa da República logo após a “Revolução”) e tinha uma equipe composta por redatores como o médico e deputado Manuel Novaes (participante da Aliança Liberal, oposicionista à candidatura de Júlio Prestes à presidência, e oficial de gabinete de interventores nos anos 1930). Confirmando sua posição, este diário795 fez firme oposição ao governo calmonista, editou material a favor dos ideais seabristas e envolveu-se nas disputas travadas em decorrência da “Revolução de 1930”. Apesar de haver um grupo de políticos baianos em defesa da autonomia das unidades da federação e da formação de um bloco para fazer oposição ao governo instituído após o golpe de 1930, Seabra e o seu grupo aderiram aos “revolucionários” liderados pelo gaúcho Getúlio Vargas e manifestaram sua posição política em artigos veiculados em O Jornal e de discursos proferidos em comícios, entre outros meios, na expectativa de obtenção de benefícios do governo central. Decepcionados por serem preteridos na escolha do interventor da Bahia, uniram-se à oposição atuante no Estado. A decisão teria sido seguida pelo periódico. Meios de comunicação de Salvador que se autodeclaravam independentes, também, acolheram Cosme de Farias neste período histórico. Nas primeiras décadas do século, o jornalista nutriu relações com veículos sem vinculação deliberada com o líder J. J. Seabra e o seabrismo, fato comprovado pela publicação de textos produzidos por ele e sobre ele e, ainda, por menções na bibliografia e em documentos como a Ficha de Inscrição da ABI. A autonomia destes diários, porém, mantinha-se limitada: os jornais, em geral, estavam atrelados a 794 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.222-223; Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.57-80; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 378392; Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. Cit., 2005, p.66. 795 Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p. 65. 276 outras correntes ideológicas e/ou líderes e partidos políticos, inclusive antiseabristas. À época, na Bahia, o setor era praticamente sustentado por grupos políticos ou legendas e não havia dissociação completa entre os veículos e jornalistas e os políticos. Cosme de Farias era citado e publicava textos, por exemplo, no Diario da Bahia796. Inaugurado em 1856 como uma organização sem filiação partidária, apesar de dirigido por políticos liberais, o DB passou a ser considerado o órgão oficial da facção liberal na Bahia a partir de 1868. Nesta condição, consolidou-se como um jornal das elites política e econômica, de caráter conservador. Em sua trajetória, foi dirigido pelo jurista e político Rui Barbosa e pelo empresário e político Clemente Mariani. Adquirido em 1901 pelo então presidente da Bahia, Severino Vieira (1900-1904), do Partido Republicano da Bahia, após interregno de dois anos fora de circulação, o DB foi gerido por este político até sua morte, em 1917. Anti-seabrista na Primeira República e nos anos iniciais da Segunda, ele defendeu os interesses de quem detinha força política e econômica no Estado, incluindo o liberalismo e o investimento agrário, em detrimento da industrialização. De maneira oficiosa, o difundiu conteúdo favorável ao Partido Social Democrático (PSD), legenda organizada pelo interventor Juracy Magalhães para concorrer às eleições de 1933 contra o Partido Republicano Liberal (que reunia os discípulos de Seabra, entre outros). Antes, posicionou-se a favor da reação republicana e pela suspensão da política do café-com-leite em 1921 na Bahia, apoiando a candidatura à presidência do senador fluminense Nilo Peçanha para a disputa contra o governador mineiro, Arthur Bernardes, para evitar a posse de mais um representante de Minas e São Paulo no poder. Como tática para atração de leitores, também discutiu questões urbanas de apelo popular, como o combate à carestia e a luta por moradia, ambas bandeiras recorrentes na agenda do Major Cosme. Possivelmente, pela pauta de caráter popular, atraiu a adesão dele. Outro exemplo de jornal de oposição a Seabra e seus aliados, em que Cosme atuou, foi o vespertino A Hora, cujo pedido de autorização para assentamento não foi localizado no livro Estabelecimentos de Oficinas de Impressão 1833-1937797 da Prefeitura, apesar deste registro ser obrigatório. O jornal apresentava ferrenha crítica política, fato que pode ter moti- 796 DIARIO DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 10 de julho de 1924; Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.181-183; Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2005, p.53-64; Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.82, 119-120; Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p.403-404. 797 ESTABELECIMENTOS DE OFICINAS DE IMPRESSÃO: 1833-1927. Op. cit. 277 vado inclusive o assassinato do seu fundador, Artur Ferreira798, um ex-seabrista, ligado à oposição feita por Ruy Barbosa e simpático à campanha pelo combate à carestia. Utilizando-se de artifícios como o humor na elaboração do conteúdo, Ferreira fazia oposição ao governo do seabrista Antônio Ferrão Moniz de Aragão (1916-1920). Seus textos atiçaram a ira do governador e geraram uma série de episódios de violência 799 . O governo estadual, em maio de 1918, determinou o empastelamento de A Hora. De imediato, o também antiseabrista Diário da Bahia, solidário à causa e interessado no enfraquecimento do chefe do Poder Executivo, disponibilizou sua oficina para imprimir as edições de A Hora, porém, determinada a impedir a circulação do veículo, policiais intervieram na situação. Na operação, um homem morreu atingido por tiros. Cerca de dois meses depois, em nova confusão, o jornalista entrou em confronto com o deputado estadual seabrista Propício da Fontoura, que o acusava de ofensa à honra, e terminou matando-o. A proximidade de Cosme com Ferreira pode ter sido propiciada por uma causa em comum: o combate à majoração desenfreada dos preços cobrados por gêneros alimentícios e serviços essenciais à população, por meio da imprensa. O papel do antiseabrista para a campanha foi avaliado como tão relevante que o jornalista foi convocado para participar do Comitê Popular contra a Carestia, um movimento presidido pelo Major Cosme800. Os laços atados nos tempos de adesão de ambos ao seabrismo, contudo, devem ter contribuído para a aproximação, que culminou com a participação de Cosme em A Hora. Cosme teria alçado, ainda, o cargo de diretor de redação801 do vespertino A Noite802, 798 ESTABELECIMENTOS DE OFICINAS DE IMPRESSÃO: 1833-1927. Op. cit. p. 67-68; Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2005, p.66, 72. 799 Silvia Noronha SARMENTO. A Raposa e a Águia: J.J. Seabra e Rui Barbosa na política baiana da Primeira República. Op. cit. p. 51, 113. 800 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.156, 166. 801 Em 1925 e 1926, Cosme era, possivelmente, apenas um colaborador do jornal, fato evidenciado por publicação de notas em que se pedia seu comparecimento à redação para pegar carta deixada para ele (ver A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de março de 1926). Contudo, o pesquisador Mário Augusto da S. Santos, em República do Povo, aponta Cosme como diretor de redação do jornal A Noite em 1928. A informação é plausível, devido à sua afinidade com a linha editorial e a contínua publicação de textos de sua autoria e sobre ele nos anos anteriores, mas não foi confirmada porque não há menções sobre o assunto em exemplares do jornal do período de 1925 a 1927 e em bibliografia e não há exemplares da maior parte do ano de 1928 – citados por Santos – disponíveis nos acervos da Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEB), do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) e da Biblioteca Nacional, onde, habitualmente, podem ser lidos periódicos daquele ínterim e onde estão arquivadas as coleções de 1925, 1926 e 1927 (no caso da BPEB e do IGHB). Por cautela quanto ao tipo de filiação nutrida por Cosme com A Noite naquele momento, a fim de evitar prejuízos aos resultados da pesquisa, a autora desta tese abandonou a proposta inicial de incluir o periódico no corpus de análise considerando esta posição de destaque na estrutura funcional do jornal, que visava a comparação com O Imparcial, onde ele havia atuado apenas como colaborador, mas continuou recorrendo à amostra do noturno para uma análise que pretere a avaliação da função desempenhada pela personagem. Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.166. 278 órgão ligado à defesa de causas sociais, que pautava assuntos de política, artes e cultura, esportes, cotidiano, polícia e justiça e sobrevivia da comercialização de espaço publicitário. Fundado em março de 1925, por Sylvia Graça de Mello Barreto (com autorização do seu marido, o bacharel em direito e poeta João Paulo de Mello Barreto Filho), o diário negou inicialmente qualquer filiação política, mas, depois, parece ter se irmanado ao seabrismo. Sem qualquer ligação com o homônimo de sucesso em funcionamento no Rio de Janeiro, o vespertino se autodeclarava uma folha “independente e noticiosa, fundamentalmente noticiosa”803, no decorrer da gestão do primeiro diretor de redação, o próprio Mello Barreto Filho804. “Apegar-se às taboas de salvação desta ou daquela politica, deste ou daquelle partido, para a defeza ou para o ataque no campo das paixões facciosas [...] não é, nunca foi servir ao publico [...]”, afirmou no primeiro editorial805. Em 1927, sob a gestão dos jornalistas Áureo Contreiras e Rafael Spinola, nas funções de secretário de redação e redator-chefe, respectivamente, o vespertino anunciava manter o caráter independente de outrora, porém a cobertura apresentava indícios de apoio à candidatura de J. J. Seabra ao Senado e esboçava oposição ao governador Góes Calmon, adversário dos seabristas e do Major. Em um dos textos, reafirmou a autonomia e, concomitantemente, delatou uma possível política de favorecimento patrocinada pelo governante: “A Noite é [...] um orgam independnete, que vive exclusivamente do povo e para o povo, que nunca frequentou o palacio, [...] desconhecendo, assim, completamente aonde está situado o cocho destinado ao focinho dos apaniguados banqueiroides”806. No ano seguinte, em 1928, possivelmente já sob direção de Cosme de Farias807, o impresso intensificou as críticas à realidade da Bahia da época, ainda gerida por Góes Calmon. Ele passou a patrocinar comícios e manifestações contra a carestia dos preços de serviços e gêneros essenciais, junto ao governador do Estado, ao intendente municipal/prefeito de Salvador e a comerciantes da cidade. Os acontecimentos são descritos, sinteticamente, por 802 A NOITE. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1925; Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2005, p.66-67. 803 A NOITE. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1925. 804 Mello Barretto Filho morou em Salvador apenas por um período. Logo, afastou-se A Noite e, possivelmente, tornou-se um responsável pela venda da revista baiana A Luva, na cidade do Rio de Janeiro. Monalisa Valente FERREIRA. Luva de Brocado e Chita: o modernismo baiano na revista A Luva. Dissertação. Campinas: Mestrado em Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas, 2004. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000313968>. Acesso em: 20 jan. 2011. 805 A NOITE. Salvador (BA), edição de 21 de março de 1925. 806 A NOITE. Salvador (BA), edição de 24 de janeiro de 1927. 807 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.161. 279 Mário Augusto S. Santos808, em A República do Povo, mas os exemplares originais aos quais ele cita não foram localizados nos acervos mencionados: Ao findar o ano de 1928, a alta pronunciada da carne verde levou o jornal oposicionista A Noite a promover comícios. O primeiro deveria realizar-se na praça do Mercado Modelo, mas por imposição do Chefe de Polícia fez-se no Terreiro, no dia 4 de dezembro. Nos dias seguintes, houve mais dois e, em todos, falou o Major Cosme de Farias, diretor da folha e candidato a deputado estadual. Dos comícios resultou uma comissão encarregada de declarar perante o Intendente que o ‘proletariado’ não aceitaria o rebaixamento irrisório de 2.000 para 1.900 réis por quilo, concedido após conferência entre o Executivo Municipal e representante da Sociedade Defensora dos Pobres. Mas, segundo respondeu a autoridade, não havia força legal que obrigasse os abatedores a cederem. Finalmente, os comícios foram proibidos pela polícia. A ascensão do Major ao posto de destaque em A Noite, provavelmente, estava associada à sua afinidade com a orientação política do jornal e, sobretudo, às redes de poder firmadas naquele momento e aos seus interesses de retornar ao parlamento baiano. Cosme809 amargava uma sucessão de derrotas em pleitos para o cargo de deputado estadual e, em 1928, preparava-se para concorrer a uma das vagas disponíveis para a Assembleia Legislativa do Estado, em oposição ao calmonismo. Sua eleição seria uma vitória contra seu maior adversário, Góes Calmon, mas, pouco antes da votação, ele desistiu da candidatura por pressentir que o contexto desfavorável ainda perdurava. Ainda como jornalista, Cosme de Farias teve textos publicados em O Imparcial810, matutino situado à Rua Rui Barbosa, de longa e instável trajetória e com posicionamentos políticos variados. Surgiu em 1918 como ruísta, às vésperas da articulação da oposição baiana pela nova campanha de Ruy Barbosa à Presidência da República, ocorrida em 1919, e da cisão entre a “Águia de Haia” e José Joaquim Seabra, sendo este seguido por um séquito no qual estava inserido Cosme; apresentou-se como um órgão independente; e assumiu-se integralista, em momentos diversos. Ao ser fundado por José de Lemos Brito, a folha proclamava-se como um “órgão das classes conservadoras”811 da Bahia e visava a participação e defesa da candidatura de Ruy à Presidência. Entre 1928 e 1929, deixou de circular temporariamente por problemas financeiros. Quatro anos depois, em 1933, foi vendido à Companhia Editora e Gráfica da Bahia, pas- 808 Id Ibid., A NOITE. Salvador (BA), edições entre 8 de novembro e 5 de dezembro de 1928. 810 A TARDE. Salvador (BA), edição de 30 de novembro de 1987. 811 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de maio de 1918. 809 280 sando a ser gerido pelo industrial Álvaro Martins Catharino 812, pertencente a uma das mais abastadas famílias baianas e simpático ao integralismo, que nomeou como secretário de redação e redator-chefe, respectivamente, Edgard Curvello e Laudelino Menezes. No grupo de trabalho, havia, ainda, jornalistas como Walfrido Moraes e padre Manoel Barbosa. Sob nova direção, O Imparcial logo sofreu alterações na orientação política conduzida até então, aproximando-se dos propósitos do autonomismo813 – corrente formada por Octavio Mangabeira, Góes Calmon, Simões Filho, entre outros, que reivindicava a autonomia para a Bahia em relação ao poder central e fazia oposição ao interventor Juracy Magalhães (tenente natural do Ceará) – e do posicionamento de J. J. Seabra, protagonista no cenário político baiano até início dos anos 1920, que, em franca decadência, apoiou os “revolucionários de 1930” ambicionando recuperar algum poder para si e, diante do insucesso na investida, posicionouse contra o movimento, passando a manifestar certa afinidade com a proposta autonomista. Depois, com a expansão da Aliança Integralista Brasileira (AIB), ele voltou-se ao integralismo – doutrina anticomunista que priorizava a defesa da propriedade privada, do nacionalismo e da ordem política e social dominante, liderada pelo escritor e jornalista Plínio Salgado, cujo lema era “Deus, Pátria e Família” –, em detrimento do autonomismo. Entre 1934 e 1937, o matutino, então sob a direção do jornalista Vitor Hugo Aranha, apoiou explicitamente ao integralismo e às iniciativas anticomunistas, sem, contudo, obedecer aos padrões jornalísticos e gráficos vigentes na rede de jornais impressos da AIB. O diário sustentava-se como um veículo noticioso, com forte adesão ao integralismo, mas com espaço dedicado a outras vertentes políticas. Em meio às alterações de curso, por exemplo, ele resguardou-se em relação ao interventor Juracy Magalhães. A ele, não fazia defesa nem oposição. Sobre isso, analisa Cristiano Alves814: “Tal como ocorria com o Diario de Noticias, quase sempre havia a contraposição entre o integralismo e o comunismo, na tentativa de mostrar a ineficácia deste e a viabilidade do primeiro para resolver a crise da liberaldemocracia”. Em 1941, registrou-se uma nova transição em O Imparcial. Até então voltado à intelectualidade baiana, o periódico passou às mãos do coronel da região do rio São Francisco, Franklin Lins de Albuquerque, fazendeiro que estava investindo em meios de comunicação na 812 O IMPARCIAL. Ibid.; Arnaldo SAMPAIO. O Imparcial dos Anos 30. A Tarde. Salvador: A Tarde, 27 mai. 1988. 813 Cristiano Cruz ALVES. O Integralismo e sua Influência no Anticomunismo Baiano. Antíteses. Vol. 1, nº 2. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, jul.-dez. de 2008, p.407-438. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses>. Acesso em: 19 jan. 2011. 814 Id. Ibid. p. 425. 281 Bahia, possivelmente, para legitimar suas ações e consolidar seu poder no interior do Estado. À época, ele estava em conflito com as forças políticas hegemônicas locais, mas gozava de boas relações com o poder central. Sob a direção de Teódulo Albuquerque e a chefia de redação do filho do proprietário, o jovem Wilson Lins, o matutino adotou uma linha editorial popular (com matérias sensacionalistas e pautas de assuntos como o jogo do bicho), articulou a participação de intelectuais e jornalistas de renome na equipe (como o primeiro correspondente de guerra do Brasil, Joel da Silveira e o escritor Jorge Amado815). Havia a tentativa de reverter a imagem de integralista construída por anos, porém textos sobre esta corrente política continuaram a serem lidos nas páginas da folha. No interregno de 1939 a 1941, a poetiza e jornalista Jacinta Passos816, uma das poucas mulheres a divulgar suas convicções políticas, tachada de comunista sobretudo pela postura crítica em relação à realidade e por ter abandonado o catolicismo, publicou semanalmente artigos e poesias sobre temas diversos (em especial, sociais) e dirigiu a “Página Feminina” do diário. Tal seção havia tido como redatora-chefe a poetisa médium Maria de Carvalho Leite817, autora de textos sobre sofrimento das pessoas e direitos humanos com o pseudônimo Maria Dolores e, igualmente, rotulada de comunista por suas posições. O Imparcial deixou de circular em 1947, após a morte do coronel Lins de Albuquerque, mas, bem antes disso, em meados dos anos 1930, publicou farto material sobre iniciativas de Cosme de Farias e redigido por ele e fez elogios veementes ao trabalho da Liga Bahiana Contra o Analfabetismo, entidade fundada e presidida pelo Major. Nesta pesquisa, reuniuse farto material desta natureza. Apenas em abril e dezembro de 1937818, ano da convulsão social e política que deu início ao Estado Novo e teve repercussão em todos os Estados, inclusive na Bahia, ele disponibilizou nove textos de autoria do jornalista, nas páginas dedicadas à cobertura do cotidiano da cidade. O matutino, notadamente, nos anos 1930, aproximou-se de Cosme por sua populari815 Aos 14 anos, em 1927, Jorge Amado empregou-se no Diário da Bahia, como repórter policial, e, em seguida, migrou para O Imparcial. Após um período de ausência, voltou em 1943 a O Imparcial, onde passou a escrever a seção “Hora da Guerra” e revezando-se com o jornalista e diretor do jornal, Wilson Lins, na redação das historietas da coluna “José, o ingênuo”. TRAJETÓRIA DE JORGE AMADO. Jorge Amado (site oficial). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Disponível em: <http://www.jorgeamado.com.br>. Acesso em: 20 jan. 2011. 816 Janaína AMADO. Uma Vida Tumultuada. Jacinta Passos (site oficial). [s.l.]: Janaína Amado, 2010. Disponível em: <http://jacintapassos.com.br/02cronologia.html>. Acesso em: 15 jan. 2011. 817 MARIA DOLORES, A POETISA BAIANA. O Consolador - Revista Semanal de Divulgação Espírita. Londrina: O Consolador – Revista Semanal de Divulgação Espírita, 2011. Disponível em: <http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/biografias/mariadolores.html>. Acesso em: 15 jan. 2011. 818 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 3, 4 e 6 de abril de 1937, e 12, 18, 23, 29 e 31 de dezembro de 1937. 282 dade, que se imaginara capaz de contribuir para a difusão do integralismo na Bahia, e por sua ação pela educação, causa considerada um dos pilares de sustentação da doutrina no País. Para seduzir a população e se alçar ao poder, a AIB promovia ações educacionais de grande impacto social, como a criação de escolas de ensino primário, em arrabaldes do Brasil, inclusive da Bahia. Já o jornalista, possivelmente, seduziu-se devido à afinidade quanto aos investimentos em educação e ao cultivo de princípios morais e religiosos similares aos dos integralistas, calcados na religião, no patriotismo e na valorização da família. A junção, na prática, trazia consequências positivas e negativas para o Major. Ter o nome associado ao matutino integralista, por um lado, proporcionava-lhe benefícios como a divulgação entre os leitores de seus conceitos, feitos e projetos e, por conseguinte, a legitimação de si e das suas iniciativas, visando o fortalecimento do seu trabalho. Por outro, representava um risco à sua imagem pública, na medida em que a corrente, à época, enfrentou resistência de parte da população e, por longo período, foi perseguida pelo governo. O Diario de Noticias surgiu em 1875 como um vespertino independente, embora pontualmente assumisse determinada posição política, e assim permaneceu por décadas819. Era uma exceção nesta fase de comum associação entre a imprensa e facções políticas da Bahia. Contudo, os ideais do seu fundador, o português Manoel Lopes da Silva Cardoso, de manter um impresso estritamente noticioso, esvaíram-se a partir dos anos 1930820, frente à sedutora possibilidade de angariar recursos financeiros e louros políticos pela adesão ao governo instalado após a “Revolução de 1930”. De início 821, Eduardo Pereira Mandacaru e o próprio Lopes Cardoso assumiram a administração e a gerência e redação da folha, que prosperou chegando a aumentar de formato em 1876 e ter uma edição matinal a partir de 1887. A ascensão foi interrompida com a morte do fundador, ainda em 1887. Desde então, o periódico foi vendido reiteradas vezes, passando, a cada uma, por breves recessos e ajustes na equipe e da linha editorial à visão e aos interesses dos novos proprietários. Pelos indícios recolhidos na bibliografia822, apesar das mudanças editoriais, nesta fa- 819 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2008, p.79-80. 820 José Carlos PEIXOTO JÚNIOR. A Quinta Coluna do Diário de Notícias da Bahia 1935-1941. In: Anais do II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Rede Alfredo de Carvalho, 15-17 abr. 2004. CD-Rom. 821 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário 18111911. Op. cit. p.114-115. 822 Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Op. cit.; José Carlos PEIXOTO JÚNIOR. A Quinta Coluna do Diário de Notícias da Bahia 1935-1941. Op. cit. 283 se, manteve-se fiel ao princípio da autonomia frente às forças hegemônicas da Bahia. Esse primeiro momento perdurou até 1919, quando o jornalista Altamirando Requião assumiu sua direção e descerrou uma série de alterações no DN, grande parte delas após a associação com o conglomerado de comunicação Diários Associados, do empresário Assis Chateaubriand823. Antes, esteve sob a direção do professor Cassiano Gomes, que adquiriu a empresa em 1887, e do coronel Vicente Ferreira Lins do Amaral, em 1903; e teve como redatores Virgílio de Lemos, Odilon Santos, o literato Xavier Marques, Cosme de Farias, entre outros. Na década de 1930, guardava características824 da imprensa pré-industrial, ancorada na posição política e econômica do proprietário, mas arvorava-se em investidas inerentes à imprensa com perspectiva mercadológica, com prioridade para as vendas e voltada à cobertura de fatos espetaculares, histórias inusitadas, casos de violência denominados pela literatura como fait divers. A fim de assegurar sua sustentabilidade, estabeleceu diálogo com empresários baianos. À época, o diário825, também, alinhou-se aos “revolucionários” de 1930 e apoiou, pelo menos, dois interventores, Juracy Magalhães e Landulfo Alves, afastando-se das lideranças locais como J. J. Seabra e os autonomistas. Em consonância com esta postura, defendeu o Estado de exceção (com cerceamento de liberdade de expressão e outros meios) e a política de gradual intervenção na economia do País, para recrudescimento do liberalismo; e aderiu à política nazista, realizando uma ampla campanha pela Alemanha, de Adolf Hitler, na Bahia. De independente, o impresso passou a portar-se como um difusor das convicções e da conduta dos grupos dominantes do Estado. Na sua direção administrativa e editorial, nesta fase, atuaram políticos como Altamirando Requião e Antônio Balbino de Carvalho 826, que aderiram a Getúlio Vargas, logo após os conflitos de 1930 e no final daquela década, respecti- 823 Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo (Chatô) constituiu o primeiro e maior conglomerado de mídia do Brasil, os Diários Associados, ao adquirir O Jornal (RJ) em 1924 e O Diário da Noite (SP) em 1925. Chatô começou a carreira em 1917 e atuou no Jornal do Commercio, Correio da Manhã e Jornal do Brasil, como repórter e chefe de redação, até 1921, quando se demitiu para empreender. Em cerca de duas décadas, formou o conglomerado com 36 jornais (inclusive Correio Braziliense, que relançou nos anos 1960, e o Diário de Notícias, da Bahia), 18 revistas (incluindo O Cruzeiro, de 1928), 25 rádios, 19 emissoras e retransmissoras de TV (entre as quais, a primeira emissora de TV do Brasil, a TV Tupi) e duas agências de notícias. IMPRENSA BRASILEIRA - dois séculos de história. ANJ. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Jornais, 2010. Disponível em: <http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/historianobrasil/arquivos-em pdf /Imprensa_Brasileira_dois_seculos_de_historia.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2010; Richard ROMANCINI; Cláudia LAGO. História do Jornalismo no Brasil. Op. cit. p. 83-85. 824 José Carlos PEIXOTO JÚNIOR. A Quinta Coluna do Diário de Notícias da Bahia 1935-1941. Op. cit. 825 Id. Ibid. 826 Conforme José Carlos Peixoto Júnior, “para adquirir o jornal, em 1939, Balbino teve como avalista o coronel Franklin Lins de Albuquerque, chefe político de inclinação integralista da cidade de Pilão Arcado, situada no nordeste da Bahia”. Id. ibid. 284 vamente, e filiaram-se ao Partido Social Democrático (PSD). Um dos mais longínquos diários do Estado, o DN esteve em circulação até 1981. A despeito do modelo assimilado a partir da gestão de Requião, o jornal veiculava, vez por outra, textos assinados por Cosme e sobre seu trabalho. Supõe-se que o vínculo entre ele e o DN, neste momento, dificilmente, fora mantido por afinidade política e ideológica. Se havia, naquele estágio, algum traço de cumplicidade entre ambos, este sentimento estava relacionado ao caráter popular adotado pelo Diario, visando atrair leitores, e ao coleguismo e/ou amizade e/ou admiração entre o Major e confrades atuantes no impresso, inclusive com o próprio Requião. Em 1925, por exemplo, ele publicou uma homenagem a Requião827, classificando-o como “eminente defensor de causas liberrimas e humanitárias”, “typo magestoso”, responsável por um periódico “digno e honesto”. Em abril de 1896, o bacharel, poeta e político João Baptista de Castro Rabello colocou em circulação A Bahia828, diário de grande formato, gerido pelo tipógrafo e editor Cincinnato Melchiades. Como outros órgãos do seu tempo, passou por várias mudanças de controle. Já em 1898, tornou-se uma sociedade anônima e, um ano depois, voltou-se ao ramo do comércio. Entre os seus diretores, estavam Methodio Coelho, Alfredo Cabussú e Bernardo José Jambeiro, sobre os quais não foram localizadas informações afora o vínculo com este periódico. Na primeira década do século XX, consolidou-se como o órgão difusor dos projetos e feitos das administrações dos governadores José Marcelino de Sousa (1904-1908) e João Ferreira de Araújo Pinho (1908-1911). Por sua proximidade com este segundo, teve suas instalações destruídas, em meio à crise instalada na Bahia com a disputa pela sucessão estadual que culminou, em janeiro de 1912, com o bombardeio de Salvador e a posse de J. J. Seabra, em oposição a Araújo Pinho. Apesar de contar com redatores de renome, como Virgílio de Lemos, Xavier Marques e Raymundo Bizarria, não resistiu ao ataque e suspendeu suas atividades em 1912 mesmo. A princípio, Cosme não comungava valores nem procedimentos com A Bahia, mas, aparentemente, também, não tinha motivos para qualquer desavença ou afastamento. À época, ele ainda não tinha um posicionamento político consolidado, pois sequer havia se aproximado de Seabra e não tinha filiação partidária. Talvez, tenha publicado material nesta folha a partir 827 A NOITE. Salvador (BA), edição de 30 de junho de 1925. ESTABELECIMENTOS DE OFICINAS DE IMPRESSÃO: 1833-1927. Op. cit. p. 39-40; Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2008, p.83-84, 109; Alfredo de CARVALHO; João Nepomuceno TORRES. Anais da Imprensa da Bahia. Op. cit. p.158. 828 285 de suas relações com jornalistas atuantes no local (como Xavier Marques, um dos seus parceiros na constituição da Liga Bahiana contra o Analfabetismo em 1915, e Lellis Piedade, que havia lhe iniciado no jornalismo), visando ter acesso a um público diverso daquele que costumeiramente lia seus artigos. Causas similares podem ter conduzido Cosme ao Diario da Tarde, outro jornal de circulação diária de oposição ao seabrismo. Nas quatro páginas de cada número, havia informações sobre o cotidiano da cidade, ocorrências policiais, cultura e arte, economia e, sobretudo, política. Fundado em 1909, em Salvador, e em funcionamento até pelo menos 1912, o DT ficou sem circular por um breve lapso temporal, no ano de 1910, e assumiu nova postura editorial829, notadamente contrária a J. J. Seabra e à corrente inaugurada por ele, quando retomou suas atividades, em maio daquele ano, e defendeu a campanha civilista em 1910, pela candidatura de Rui Barbosa à presidência da República, em oposição ao militar Hermes da Fonseca. Além de ter como redator-chefe o então deputado estadual Lemos Brito, ele foi gerido por Antonio Bastos e, depois, pelo experiente editor Arthur Arezio da Fonseca. Como, naquele momento, ainda não era um engajado político-partidário e apenas iniciava relações com Seabra, Cosme não tinha motivos evidentes para se manter afastado do DT, embora pudesse discordar da linha editorial, dos valores e dos procedimentos daquele veículo. Ademais, o periódico da Rua do Campo Santo poderia ser um dos seus aliados na divulgação de seus propósitos, suas ideias e sua obra, principalmente pelo caráter generalista. Ao que parece, o jornalista utilizou este jornal como instrumento para disseminação do seu trabalho de caridade, assim como fez com outros veículos como se verá a seguir. 4.2.3 Relações estratégicas com jornais e jornalistas Embora houvesse um leve predomínio da atuação de Cosme de Farias em títulos seabristas ou simpáticos a essa corrente (Jornal de Notícias, Gazeta do Povo, O Democrata, A Tarde, A Noite e O Jornal) até a década de 1930, notadamente ele estabelecia relações com veículos de comunicação com princípios, valores e linhas editoriais diversas e de filiações político-partidárias distintas. Portanto, transitava entre os seabristas, independentes e antisea829 Não foram localizados registros das mudanças editoriais em bibliografia especializada e não há possibilidade de dedução disso a partir das edições, devido ao reduzido número de exemplares disponíveis para consulta em acervos de Salvador (encontrados somente na Biblioteca Pública do Estado da Bahia). 286 bristas, ainda que desenvoltura diferenciada e, possivelmente, maior naqueles que estavam em consonância com sua visão de mundo e suas práticas. As motivações para aproximação, os modos de tecer tais relações e a intensidade dos laços firmados com cada periódico da cidade, contudo, variavam de acordo com os propósitos, a postura e a equipe de jornalistas de cada um e, também, com os interesses e as intenções do Major. Com uns, ele mantinha vínculo de caráter político preponderante, baseada na sua conexão com o líder J. J. Seabra. Com outros, prevalecia a motivação assistencial, relacionada à profícua obra de caridade estabelecida e mantida por ele desde o final do século XIX. Não havia uma fórmula, um padrão de comportamento. A preponderância da sua atuação entre os adeptos do seabrismo e simpáticos a essa corrente deve-se a uma série de fatores, tais como a maior aceitação dos textos da sua lavra e de informações sobre sua obra, encaminhados na condição de colaboração, por jornalistas com posicionamento político similar ao seu e/ou que mantinham algum vínculo afetivo com ele, comparando-se à aquiescência por estranhos; e a escolha individual do jornalista, movida por sua orientação política. Ambos são plausíveis, sobretudo, por serem posturas recorrentes na Bahia da época. Também, deve-se considerar a possível maior dificuldade encontrada por Cosme para se inserir nos veículos autoproclamados independentes ou antiseabristas, devido a uma resistência destes meios a ele, comparando-se à aceitação dos órgãos caros à corrente política na qual o jornalista estava inserido. Tal hipótese é admissível porque, naquele momento, a imprensa, em geral, primava pelos interesses de seus acionistas, mas, sobretudo, disseminava a ideologia dos estratos hegemônicos830, destoante daquela defendida por Cosme. Talvez, os editores temessem os prováveis resultados de uma aproximação com o jornalista, considerando que ele, por vezes, utilizava a imprensa como mecanismo de pressão/constrangimento à elite política e econômica e instrumento de mobilização política e social da população, como discutido nesta tese. Ainda assim, esta resistência era suplantada em situações excepcionais, mediante motivações muito específicas, como registrado com Diario da Bahia, A Hora, A Noite e O Imparcial. Nesses casos, comumente, firmavam-se vínculos entre Cosme e os periódicos, superando desconfianças e rusgas geradas pela intensa relação estabelecida pelo Major com o seabrismo, da parte dos impressos, e motivadas pela virulência da oposição dos jornais a Sea- 830 José Welinton Aragão dos SANTOS. Formação da Grande Imprensa na Bahia. Op. cit. p. 70-79, 124-125. 287 bra e aos seabristas, da parte do jornalista. Os interesses de um e outro determinavam que as diferenças fossem refreadas. Entre os quais, estavam as aspirações dos veículos e de seus agentes de conseguir apoio político de Cosme, então já um líder popular com inserção e respeitabilidade entre os estratos mais baixos da sociedade baiana, ou, pelo menos, garantir o abrandamento de seus ataques, com força suficiente para macular a imagem dos meios, dos seus mantenedores e da sua equipe; de firmar parceria para contribuição mútua em ações práticas (organizar comícios, fazer escolas etc.); e de parecer neutro831, escamoteando seus anseios de representação dos grupos dominantes, através da publicação de informações de interesse geral e ações de subalternos (como Cosme), como estratégica para sobrevivência no recente e incipiente mercado. Um exemplo é O Imparcial, que, no decorrer da sua fase integralista, passou a difundir as ações de Cosme e a tecer elogios a ele e à Liga Bahiana contra o Analfabetismo832, possivelmente, para obter benefícios para si mesmo e para a Aliança Integralista Brasileira. Como já explicitado anteriormente nesta tese, ao que parece, naquele momento, o jornal ensejava usufruir da popularidade e da credibilidade do Major, junto aos estratos mais baixos da sociedade, acreditando que, potencialmente, ele poderia colaborar para a disseminação das atividades educacionais mantidas pelos integralistas e, por conseguinte, da visão política da AIB. Até mesmo os seabristas podem ter garantido espaço editorial a Cosme por interesse desta natureza. A Gazeta do Povo833, por exemplo, possivelmente, tornou-se um difusor mais assíduo das ações de Cosme de Farias por interesse no seu envolvimento direto nas campanhas de Seabra ao governo do Estado em 1911 e de Ruy Barbosa à presidência da República em 1913, que recebera o inusitado apoio seabrista e poderia se beneficiar da atuação do Major como delegado da Liga Popular Ruy Barbosa e ativo propagandista da “Águia de Haia” em meetings e passeatas. As duas campanhas careciam da adesão popular, o que poderia ser mediado por Cosme, filantropo carismático com popularidade construída a partir de suas obras de caridade e incursões no Comitê Popular contra a Carestia e em favor de trabalhadores. Em síntese, por um lado, os impressos e seus proprietários preferiam nutrir com Cosme alguma relação, não obstante ela, aparentemente, estivesse mais calcada na tolerância e no interesse do que na solidariedade. Em geral, aproximavam-se do Major e admitiam pu831 Sobre isso, ver Ib. Ibid, p. 70-79, 124-125. São exemplos as edições dos meses de abril e dezembro de 1937. Ver O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 3, 4 e 6 de abril de 1937; 12, 18, 23, 29 e 31 de dezembro de 1937. 833 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edições de 16 de julho de 1913, 5 de agosto de 1913, 5 de novembro de 1913, entre outras. 832 288 blicar textos produzidos por e sobre ele, inclusive suplantando as divergências políticas, pelos benefícios que poderiam obter com isso, em função das virtudes e do vigor da sua atividade assistencial ou da sua popularidade e respeito entre os estratos mais baixos da sociedade. Quando lhe rechaçavam, comumente, agiam por discordarem da sua postura política, pautada na intensa defesa do seabrismo. Por outro, a partir da edição de matérias relativas a Cosme e sua obra em vários jornais no mesmo período, pode-se inferir que ele desejava garantir a publicação de textos produzidos por e sobre ele no máximo de títulos possível, independentemente da origem e dos procedimentos, visando a difusão de seus louros e suas demandas para angariar legitimidade e adesão e, por conseguinte, galgar a consolidação seu trabalho de mobilização e assistência social. Ávido por resultados, não fazia restrições a periódicos que se opunham à sua visão política. Assim, aproximava-se de jornais com os quais mantinha certa simpatia devido ao perfil editorial, aos temas pautados (muitas vezes, ligados às bandeiras dos movimentos políticos e sociais e das organizações assistenciais aos quais ele estava associado) e à equipe. Possivelmente, registrou-se exemplos disso com o Diario da Bahia, A Hora e A Noite, quanto à liça contra a exorbitância dos preços; e com O Imparcial, quanto à educação/alfabetização. Ademais, em A Noite, havia a concreta oportunidade de mudança da política editorial, após a posse no cargo diretivo. De acordo com o modus operandi identificado nesta pesquisa, Cosme não firmava relações ideológicas, orgânicas, com os jornais nos quais escrevia ou tinha seus feitos, seus projetos e suas ideias veiculados. Com eles, estabelecia e sustentava apenas uma relação instrumental, dirigida à realização dos seus propósitos quanto à sua militância política e social e às atividades de caridade. A imprensa era uma arma útil – tal qual ocorreu com outras instituições como os partidos políticos – e, quiçá, imprescindível à sua obra. O caráter desta vinculação explica-se pelo jeito de ser, pensar e viver do Major. Cosme não era um acólito do regime vigente na Bahia da época. Ao contrário, ele era um rebelde sem a pecha de revolucionário então consolidada na sociedade, que rejeitou as possibilidades de inserção e consolidação no regime e, como poucos, aprendeu a lidar com ele, tecendo estratégias e táticas para viabilizar a realização das suas iniciativas sem atiçar a ira da elite política e econômica local. O uso da imprensa era um dos recursos que asseveraram seu êxito. A carreira jornalística de Cosme, portanto, estava em consonância tanto com sua orientação política e com seus propósitos e suas ambições assistenciais e de fomentador de mo- 289 vimentos políticos e sociais, quanto com as práticas jornalísticas do seu tempo e espaço, na medida em que a total independência política da imprensa e do jornalista e a busca da objetividade tinham pouca repercussão em Salvador, além dos acalorados debates em alguns setores da sociedade e da sua fixação como lema de parcos impressos da cidade. Até a consolidação do jornalismo, no século XIX e início do século XX, a orientação e a vinculação política834 das personagens envolvidas nos fatos relatados influenciavam do repórter ao editor e, também, aos meios nos quais estas pessoas trabalhavam e o ofício era considerado como instrumento para inserção na política e em outras carreiras. Na Bahia, em geral, jornais e jornalistas estavam, naturalmente, vinculados a instâncias e a chefes políticos e, portanto, defendiam os interesses deles, muitas vezes, em detrimento das demandas da sociedade como um todo. Sobre a realidade baiana, afirma Aloísio de Carvalho Filho835: “A política partidária era, como se vê, uma da forças, senão a principal, da aparição, florescimento e desaparecimento na conformidade de eventuais interesses ou necessidades dos órgãos de publicidade”. E finaliza: “[...] Era uso, então, inculcarem os jornais, logo pelo batismo, a missão política, crítica ou puramente literária, a que se propunham. Os do último tipo indigitavam por idêntico meio, a tendência circunspecta ou galhofeira”836. No mundo, deflagrou-se a profissionalização somente no final dos oitocentos. Primeiro, nos Estados Unidos e no Reino Unido. De acordo com o pesquisador português Nelson Traquina837, ela ocorreu concomitantemente à modernização838 da imprensa no mundo, quan834 Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit.; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Op. cit.; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: a tribo jornalística. Op. cit. 835 Aloysio de CARVALHO FILHO. Jornalismo na Bahia: 1875-1960. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2008, p. 80. 836 Id Ibid., p. 80. 837 Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Op. cit. p.75-90. 838 No final do século XIX, os princípios iluministas liberais fizeram eclodir, principalmente nos Estados Unidos, a busca da razão e autonomia pelo indivíduo, tornando imperativos para a imprensa sua transição de atividade ideológica partidária para comercial e o atendimento à demanda da sociedade, desejosa de contato racional com informações que pudessem propiciar a interpretação da realidade e a tomada de decisões autônomas. Isso implicava na constituição de mercado; na conquista de audiência e receita por venda de anúncios, compondo um ciclo de retro-alimentação com o compromisso de atender ao clamor dos leitores – afinal, suprir a demanda da audiência gera mais audiência, impulsiona a tiragem e a comercialização de espaço publicitário e assegura o sucesso da mídia enquanto negócio -; e na alteração lenta e gradativa de práticas e princípios do jornalismo e dos jornalistas. GUERRA, Josenildo Luiz. O Nascimento do Jornalismo Moderno - uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Op. cit; Tânia Regina de LUCA. A Grande Imprensa no Brasil da Primeira Metade do Século XX. In: 9ª Conferência Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). New Orleans (EUA): Tulane University, mar. 2008. Disponível em: <sitemason.vanderbilt.edu/files/lhuGoE/Luca%20Tania.doc>. Acesso em: 13 mar. 2009; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Op. cit. p. 33-144. 290 do, aos poucos, saberes, técnicas e regras de conduta se estabeleciam; as pessoas passavam a se dedicar em tempo integral à atividade – e, por conseguinte, qualificar-se para cumprimento das funções inerentes à profissão e exigir melhores condições de trabalho e remuneração compatível –; e cursos para formação acadêmica delas e entidades classistas de defesa dos interesses da categoria começaram a surgir. No Brasil, o amadorismo perdurou, com intensidade, até meados do século XX. Na Bahia, nos anos 1940, 1950 e 1960, ainda era recorrente nas redações das rádios e de jornais como A Tarde, O Imparcial, Estado da Bahia e o comunista O Momento, todos considerados representantes da grande imprensa soteropolitana. Advogados, magistrados, médicos, engenheiros, poetas, servidores públicos, professores escreviam, ilustravam, editavam, revisavam textos sobre fatos diversos, ora por diletantismo, ora para complementar a renda familiar, ora para se inserir nas discussões públicas, ser notado e galgar um cargo político. Era corriqueiro aliar as atribuições profissionais e o mandato ao labor na imprensa. Referindo-se à composição da Assembleia Legislativa na Segunda República, a historiadora Consuelo Novais Sampaio839 relata uma condição que se estenderia décadas a fio: [...] a maioria dos deputados tinham múltiplas atividades. Algumas dessas responsáveis pela manutenção e pelo sustento de suas famílias; outras, como o ensino superior e o jornalismo eram importantes instrumentos de prestígio e de promoção social. Não foram poucos os deputados que no início de suas vidas públicas aliaram à advocacia o jornalismo, atividade que na esfera política tinha uma dimensão maior, pela difusão e repercussão que dava ao fato político. Indivíduos que despontaram com destaque no cenário político e cultural da Bahia tiveram passagem, por exemplo, pelo jornal O Imparcial. Um deles foi o engenheiro Leopoldo Amaral840, presidente do Comitê da Aliança Liberal na Bahia e interventor no Estado nomeado pelo comando do “movimento revolucionário de 1930”, que desempenhou a função de redator e aproveitou as atividades inerentes ao cargo para fazer oposição ao governo de Washington Luis (1926-1930). Após um lapso temporal longe do jornalismo, em 1940, ele voltou à imprensa para dirigir o Diário da Bahia. Outro exemplo foi o bacharel em direito, professor universitário e governador da Ba- 839 Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p. 205. Leopoldo AMARAL NETO. Leopoldo Amaral. Leopoldo Amaral (site oficial). Salvador: Leopoldo Amaral, 2011. Disponível em <http://www.leopoldoamaral.com>. Acesso em: 15 jan. 2011. 840 291 hia entre 1955 a 1959, Antônio Balbino de Carvalho Filho 841, que ingressou no DB em 1934, após experiência como jornalista no famoso diário fluminense A Noite, e posteriormente mudou-se para o Diario de Noticias. Naquele mesmo ano, ele elegeu-se deputado constituinte, pela legenda Governador Octavio Mangabeira, de oposição ao governo de Getúlio Vargas e à Intendência no Estado, mas teve o mandato interrompido devido à eclosão do Estado Novo em 1937. A manutenção de periódicos por grupos e partidos políticos ou a articulação de laços firmes entre estes e a imprensa de Salvador e a atuação de políticos (parlamentares, prefeitos, governadores) em órgãos da imprensa, portanto, não eram prerrogativas exclusivas do seabrismo e de Cosme de Farias, respectivamente. Ao contrário. Muitos títulos mantinham estreitos vínculos e até eram patrocinados por personalidades ou organizações desta natureza; administradores públicos e parlamentares no exercício de mandatos dos poderes executivo e legislativo publicavam, com regularidade, em jornais da Cidade da Bahia, pautando temas que lhes eram de interesse; e jornalistas comumente concorriam a cargos públicos. De início, despontavam como atrativos na imprensa aos iniciantes842: a possibilidade de projeção e construção da própria imagem pública, sem custos e em tempo relativamente curto; o desenvolvimento de competências e habilidades imprescindíveis ao político, como o traquejo com o público e os pares; a garantia de prestígio com possibilidade de ascensão social, na qualidade de intelectual, sem grande dispêndio de energia (não se exigia escolarização elevada nem preparação específica); e a chance de conciliar a atividade com outras carreiras. Mas havia pontos negativos, como as más-condições de trabalho, comum às oficinas e redações, e a baixa remuneração ou até a inexistência de qualquer pagamento pelos serviços prestados. Assim, à época, a imprensa tornou-se ponto de partida para início da carreira para parlamentares e administradores públicos. Novais Sampaio843 exemplifica: [...] essa atividade realizava o papel de rito de passagem que introduzia o acadêmico nos meandros da vida pública, numa espécie de antesala de profissionalização da política. [...] Na posição de redator, articulista ou simples co841 ANTÔNIO BALBINO. In: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), 2011. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br /producao/dossies/AEraVargas2/biografias/Antonio_Balbino>. Acesso em: 15 jan. 2011; Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.206. 842 Consuelo Novais SAMPAIO. Ibid., p.205-206; Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit. 843 Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p. 205. 292 laborador, (os deputados da legislatura de 1935) valeram-se do jornalismo político – sempre polêmico e contundente, na época – para definir posições em relação a grupos rivais, ao tempo em que se projetavam no pequeno mundo político da Bahia. As mudanças tardaram a chegar. Na Bahia, marcaram o ano de 1970844, sempre atreladas aos efeitos dos fenômenos preconizados por Traquina como elementos constituintes da imprensa moderna. Ou seja, a profissionalização decorreu da publicação do primeiro dos três livros do paraibano Luiz Beltrão sobre conceitos, técnicas, rotinas e regras deontológicas (“A imprensa informativa”, obra pioneira no País) e do lançamento do jornal Tribuna da Bahia, pioneiro no investimento em formação interna de jornalistas (a Escolinha TB de Jornalismo) e na utilização de uma cartilha com orientações práticas sobre o fazer jornalístico; da fundação do Sindicato dos Jornalistas da Bahia em 1969; e da inauguração do primeiro curso de jornalismo da Bahia no início dos anos 1950 como atividade de extensão e em 1962 como bacharelado. Destinado a leigos e iniciados que desejassem sistematizar seus conhecimentos na área, o curso da Universidade Federal da Bahia foi apoiado pelo então ministro da Educação e Saúde, o baiano Clemente Mariani Bittencourt845, que havia atuado como jornalista na juventude, no Diário da Bahia, junto com outros jovens da elite local que se consolidariam como intelectuais e se tornariam políticos. São exemplos: Luiz Viana Filho (que, entre 1967 e 1971, exerceu mandato de governador da Bahia), Nestor Duarte e Aloysio de Carvalho Filho. Cosme de Farias não passou por este curso, porém, ainda assim, sagrou-se como um dos jornalistas com mais longínqua carreira da Bahia, em favor do bem-comum. Ao que parece, ele tinha o objetivo circunscrito à sua obra de caridade e militância, porém exercitava modos diferenciados de se colocar na imprensa – ora como um jornalista que pauta seus pensamentos, seus projetos, suas homenagens, suas reivindicações; ora como objeto da pauta dos jornais locais. 4.3 LAMA & SANGUE, LINHAS LIGEIRAS E OUTROS TEXTOS Nos periódicos da Cidade da Bahia, Cosme de Farias construiu carreira como um ar844 845 Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit. Jorge CALMON. O Primeiro Curso de Jornalismo. A Tarde. Salvador: A Tarde, 15 fev. 2000. 293 tífice das letras através da publicação de textos sobre fatos e temas sociais, culturais, políticos e econômicos ocorridos no Brasil, mais especificamente na Bahia, sob os títulos Linhas Ligeiras ou Ineditoriaes ou sem essas insígnias. A série de periodicidade irregular, junto com a coletânea de textos políticos, denominada Lama & Sangue e editada em 1926, é uma das principais referências da produção jornalística deste autor. As duas iniciativas são consideradas manifestações jornalísticas, embora veiculadas em suportes diferentes – a primeira, em livro e a segunda, em jornal impresso. Como se verá neste capítulo, tal tipificação é pertinente porque ambas se caracterizam pelo comprometimento do autor com o real – o princípio essencial do jornalismo –, e pelo emprego de recursos intrínsecos a este campo do conhecimento, como a linguagem e a estrutura textual simplificada, a despeito do uso, em concomitância, de artifícios inerentes à Literatura, por exemplo. A seguir, aprecia-se o livro e peças selecionadas dentre as veiculadas em jornais. 4.3.1 Críticas a um momento político histórico Intitulado Lama & Sangue846, o único livro lançado por Cosme de Farias predominantemente em prosa, dentre os trabalhos identificados nesta pesquisa, consistia em uma coletânea de materiais escritos e iconográficos desenvolvidos por ele mesmo e por outras personalidades, inéditos ou já publicados outrora por periódicos locais, como O Imparcial. Predominavam os artigos de sua autoria, mas havia, também, um prefácio e críticas feitas por colegas, umas poucas poesias, fotografias no formato de retrato e reproduções de notícias veiculadas em jornais e no Diário Oficial. Editado pelo Major Cosme e publicado de maneira independente, sem apoio de editora, o libelo era composto por 21 capítulos e um prefácio, distribuídos em 124 páginas impressas em preto e branco. Tratava-se de uma compilação de textos com formatos diversos sobre relações de poder e política no Estado da Bahia, na década de 1920, mais especificamente, o então governador da Bahia, Francisco Marques de Góes Calmon847, seu único inimigo na arena política local. Era mais uma das manifestações dele contra o governante, gestadas, 846 847 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. Luís Henrique Dias TAVARES. História da Bahia. Op. cit. p. 349-351. 294 possivelmente, por apoio ao seabrismo e por rancor pela provável interferência da comissão verificadora de votos (formada com anuência do governador) para que seus votos não fossem reconhecidos e seu mandato não fosse renovado. O bacharel em direito havia tomado posse do cargo de chefe do Estado em 1924, após ter sido declarado vitorioso em uma eleição pontuada por conflitos com o grupo comandado por José Joaquim Seabra. Já um dos seus primeiros atos atiçou a sanha dos oposicionistas, ao apoiar o governo do presidente Artur Bernardes contra o movimento sedicioso surgido entre tenentes no território paulista (a “Revolução de 1924”) e encaminhar tropas da Polícia Militar baiana à área dos conflitos, enquanto formavam-se forças legalistas civis na Bahia para auxiliar no combate aos “revolucionários”. À época, contraditoriamente, uma das primeiras forças legalistas baianas surgiu em reduto sob influência explícita de Cosme de Farias: o Centro Operário da Bahia (COB). Sócio efetivo, ele tinha constante participação nas atividades da instituição e gozava de respaldo de parte dos confrades, por já ter presidido a entidade, porém, ficou decepcionado e afastou-se da organização que ajudou a consolidar, em abril de 1925, alegando proceder desta forma “para ficar de pleno acordo com as idéas justas e libertárias, que defende”848. Em 1964, entretanto, na carta-testamento Minhas Últimas Vontades849, referiu-se ao COB como uma das organizações às quais pertencia, dentre inúmeras outras. Possivelmente, perdoou os colegas pela adesão ao governo que o perseguia. O dossiê, que tinha Cosme como editor e autor de alguns capítulos, acusava o governante de ter assumido o cargo sem merecimento e de manter uma gestão arbitrária, imposta pelo Exército e por estados de sítio, marcada por ações equivocadas e perseguição contra os oposicionistas – a exemplo do próprio jornalista, que se sentia acossado pelo adversário. Como discutido anteriormente nesta tese, após sucessivas gestões no parlamento estadual (de 1915 e 1923), ele amargou um longo período longe do legislativo do Estado e atribuiu esta condição à perseguição do governador. Fora do poder legislativo, dedicou-se à imprensa, à assistência social, aos movimentos sociais e políticos e ao embate contra o rival. Em Lama & Sangue, havia questionamento da legitimidade do exercício do poder por Góes Calmon e da sua moral e honestidade; delação de fraudes nas eleições parlamentares; críticas à relação do político com seus oponentes e à adoção de medidas administrativas relacionadas à arrecadação, distribuição de recursos e definição de prioridades para o gover848 849 DIARIO DE NOTICIAS. Salvador (BA), edição de 27 de abril de 1925. Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op. cit. 295 no, inclusive de interesse direto do Major por tratar de grupos sociais ligados a ele; elogios a terceiros e até uma maldição ao governante. O ataque começou já no prefácio, Vômito Negro. Elaborado pelo jurista Carlos Ribeiro, o texto tecia críticas ao chefe do Estado e era sucedido por capítulos com ácido teor denunciativo. Um deles, Um Rol de Bandalheiras e o Grito de Justiça, questionava sua moral e honestidade, ao abordar o uso de recursos da herança da órfã Cecília Mendes, do espólio do coronel José Rodrigues Mendes, pelo inventariante para pagamento indevido a empresas e indivíduos, entre os quais o governador. “O bacharel Góes Calmon, nesta refinadissima bandalheira, foi apenas o advogado-nero, como diria o valente jornalista Severino Vieira, se ainda fosse vivo. Pobre Cecília Mendes!...”, acusava 850. Outros capítulos se dedicavam a críticas a ações específicas, consideradas equivocadas por Cosme. A Bolsa ou a Vida alegava haver uma extorsão do Tesouro do Estado aos contribuintes, mediante a cobrança de tributos superiores ao devido. A realização de propaganda oficial, considerada o pagamento à imprensa local por elogios, era o tema de Cabotinismo & Cabotinagens. O sétimo capítulo, Mystificador & Mystificações, denunciava equívocos na construção da Estrada Muritiba-Cruz das Almas, tida como um engodo do governo do Estado851: O governo não deu recurso algum para a construção da estrada de rodagem de Muritiba a Cruz das Almas. Entre Cruz das Almas e Muritiba não ha estrada de rodagem alguma. Poderá haver, no futuro, se Deus não mandar diversamente. O que fez o sr. dr. illustre governador foi prometter o encomiado auxílio. O que fez o intendente de Cruz das Almas, com cautelosa economia, foi mandar roçar alguns trechos de um penoso caminho existente entre os dois municípios, afim de tornar possível a vehiculação de automóveis ‘Ford’. Algumas dessas ações eram recriminadas por causarem danos a grupos sociais com os quais Cosme mantinha intensas relações, por meio das iniciativas assistenciais, da militância em movimentos sociais e políticos e das atividades jornalísticas e parlamentares. Um exemplo foi Villanias & Tropeços, que reunia medidas governamentais prejudiciais ao setor social e atingiam diretamente os interesses dele (entre as quais, a suspensão da subvenção de seis contos de réis cedida pelo governo estadual, graças a seu pedido, ao Asylo da Mendicidade, localizado na Boa Viagem, em Salvador, onde o benemérito garantia o acolhimento de 850 851 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p. 118. Id. Ibid., p.51. 296 pessoas em situação de abandono e migrantes; o abandono do projeto de construção de casas para o operariado, de autoria do Major; e a falta de amparo devido às vítimas das inundações de Juazeiro, Pilão Arcado, Remanso e logradouros adjacentes). Tal capítulo encerrou-se com uma interjeição de caráter emocional: “Que alma de Caim! Que coração de fera!” 852. Em alguns pontos, Cosme delatava a existência de operações fraudulentas no processo eleitoral. O jornalista, por exemplo, atribuiu a demissão do escrivão Eurípides Gomes de Menezes, da localidade de Amargosa, à sua recusa em falsificar uma ata eleitoral, em Mais Uma Infâmia; e debruçou-se sobre fraudes eleitorais na localidade de Jaguaquara e em Salvador, nos anos de 1923 e 1925, em Usurpador de Votos e Magarefe da Lei. As artimanhas teriam prejudicado o autor, quando candidato a uma vaga no parlamento estadual, e provocaram inúmeros protestos. No livro, ele denuncia853: Politiqueiro desabusado, fazendo tremenda concurrência aos politicoides profissionaes, o bacharel Góes Calmon, chefiado grosseiramente ao governo da Bahia, tem sido um grande e escandaloso usurpador do voto popular. Inimigo feroz das urnas livres, espírito enfezado e consciência de regulo, elle detesta as eleições honestas e sente-se á vontade no meio das actas falsas. Uma das críticas mais contundentes de Lama & Sangue referia-se à legitimidade do exercício do poder por Góes Calmon e à relação do político com seus oponentes. Os dois capítulos iniciais, Na Força Pública e De Foice em Punho, denunciavam a dispensa de mais de 800 praças pelo governador e a pressão contra 40 oficiais ligados ao seu adversário, José Joaquim Seabra, para que pedissem a reforma, e a exoneração do diretor da Biblioteca Pública do Estado, ex-deputado federal Francisco Luis da Costa Drummond, respectivamente. Já Folhas Negra repudiava deputados do grupo seabrista, que se aliaram ao governador e, portanto, agiram de forma traiçoeira contra Seabra. Subsídios para a História enumeravam decretos de estado de sítio na Bahia, formulados por Góes Calmon desde sua posse em 1924 e cerceadores dos direitos de ir e vir e de livre manifestação dos cidadãos. Era arrematado com crítica contumaz: “o bacharel Góes Calmon entrou, pois, para o governo deste Estado humilhando a Bahia e espavorindo a sua ordeira população”854. O 13º capítulo, Alma de Chacal, era a reprodução de um artigo do jornalista Sérgio Rodrigues, então diretor do jornal Correio do Povo, em que ele tratava das suas próprias prisões em 12 de julho de 1924 e em 5 de abril de 1925, na Secretaria de Segurança. 852 Id. Ibid., p.123. Id. Ibid., p. 52. 854 Id. Ibid., p. 88. 853 297 A Delação de um Pústula e o Granir da Cobardia, por sua vez, abordava a denúncia do governador de que Cosme tramava um atentado revolucionário contra ele, para eclosão em março de 1925, e o clima de terror vigente em Salvador, devido ao policiamento ostensivo montado pelo governo para coibição desta ação. Vingança de Pyrrho reproduzia o artigo sobre a visita do governador ao Asylo São João de Deus, intitulado A Casa de Loucos, publicado anteriormente no jornal Correio do Povo. O trabalho era assinado por José Vicente, mas foi atribuído pelo Major ao dramaturgo e jornalista Israel Ribeiro – demitido do cargo de escriturário do Tribunal de Contas do Estado e preso em 1924, sob acusação de perturbação da ordem pública. No texto, o autor insinuava que Góes Calmon traiu J. J. Seabra e sofria de um transtorno mental. Posteriormente, o capítulo Outras Victimas trazia uma defesa de Cosme a Israel Ribeiro e apresentava sua versão para a prisão do colega, acusando o governo de agir com arbitrariedade no caso; e Correligionário de Ladrões e Protetor de Sebaças reproduzia uma crítica do intendente municipal Romualdo Leal Vieira, precedida e sucedida por colocações de Cosme, à transferência da sede do município de Sento-Sé para Aldeia e à elevação desta localidade à condição de vila, insinuando que a decisão era uma represália política do governador com anuência do legislativo. Um Retrato: mysticismo e cangaço, que consistia na reprodução de texto de E. Jacy Monteiro, e A Sanguera de Lençoes, composto por um longo artigo de sua autoria e transcrição de notícias de jornal, enfocavam a disputa entre Góes Calmon e o coronel da Chapada Diamantina, Horácio de Matos, deflagrada em 1925, a partir da nomeação pelo governador de um delegado de polícia de Lençóis adversário do coronel, como estratégia para acabar o poder paralelo do líder sertanejo no interior baiano. O governo central, contudo, interveio no conflito, forçando o recuo do chefe do Estado. Matos sagrou-se vitorioso. Em seguida, um dos desdobramentos do episódio foi relatado no capítulo Nas Mãos de Bandidos. Nele, Cosme acusou a Polícia Militar de não ter prestado homenagem póstuma ao tenente coronel João da Motta Coelho, vitimado na disputa entre o governo e o coronel em Lençóis. O libelo trazia, também, elogios a terceiros, endossando uma dos mecanismos mais usuais do modus operandi de Cosme. Um dos capítulos, Um Gesto Nobre, exaltava a atitude do coronel Marcelino Figueiredo de publicar, no Diario de Noticias, um artigo defendendo-o da perseguição do governante, no período em que ele estava sendo caçado pela polícia, em abril de 1925, e clamando perdão para ele. A inclusão deste texto teria dupla função: denunciava mais uma arbitrariedade de Góes Calmon e era mais um componente de legitimação das críticas e queixas do Major. 298 Por fim, Última Pá de Cal encerrava a coletânea com uma maldição do jornalista contra seu adversário. Cosme afirmava nas derradeiras linhas: “Maldito seja, pois, o nome delle pelos seculos a fora...”. Naquele capítulo, ele manifestava, enfaticamente, dois sentimentos que não foram percebidos em nenhuma outra peça do seu trabalho intelectual: o rancor e a cólera. Eram resquícios do incômodo gerado pelo posicionamento do “bacharel” em relação a Seabra e, sobretudo, por seu afastamento do parlamento estadual. O capítulo era a culminância de uma obra de teor crítico, mas com exemplos e reproduções que ilustravam os desmandos e prestavam-se como argumentos contundentes contra o governante. No livro, aparentemente, nada era por acaso. O título, Lama & Sangue, consistia em uma síntese do conteúdo apresentado no volume, embora não fizesse uma referência direta ao seu principal alvo, Góes Calmon. O termo “lama” tratava-se de uma figuração dos atos abjetos, lamentáveis, reprováveis do governante, enquanto “sangue” era uma figura de linguagem 855 do tipo metonímia856, empregada com a intenção de fazer uma referência ao achaque, às doenças, às mortes que, na visão do autor, teriam sido provocados na Bahia pela liderança e má-gestão do governador empossado em 1924. A combinação “Lama” e “Sangue” visava ampliar o significado do enunciado, dando ênfase ao pensamento e às ações, julgados equivocados pelo jornalista, para intensificar o efeito da mensagem. Por sua vez, a capa – com fundo todo na cor preta e imagens de quatro crânios de caveiras sobre uma lança na cor branca, entre o nome do autor grafado também em branco e o título do livro, local e ano da publicação em vermelho, em primeiro plano – sugeria o intuito de Cosme ao produzir aquele libelo. A caveira, na cultura brasileira, desencadeia más sensações; sinaliza mau agouro; indica perigo, violência, morte ou matador. Como a maior parte (três de quatro) estava voltada à esquerda de quem lia, pode-se interpretar que elas estavam direcionadas ao que está atrás, presas ao passado. 855 Figuras de linguagem ou de estilo recursos sonoros, sintáticos, semânticos e de significado que o emissor (falante, escritor, jornalista etc.) emprega para dar maior expressividade à sua mensagem. Othon M. GARCIA. Comunicação em Prosa Moderna. 25. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. São Paulo: Rideel, 1994. p.282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto: teoria e prática. Ilustrações de Tania Ricci. São Paulo: Rideel, 2006. 856 A Metonímia consiste na substituição de um termo por outro claramente próximo, contíguo e de sentido similar. A semelhança é percebida independente da partilha de repertório entre comunicantes, ou seja, não há dúvidas quanto ao significado da palavra empregada em substituição à outra. Esta figura serve para economizar espaço; variar palavras evitando repetição; atenuar ou agravar o efeito da mensagem; enfatizar; modificar, reduzir ou ampliar o significado do enunciado. Othon M. GARCIA. Comunicação em Prosa Moderna. Op. cit.; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p. 282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 299 A lança857, nas mãos do cavaleiro, era uma metáfora da busca da verdade – por ser este objeto reto e confeccionado em material que não permite a distorção, assim como a verdade – e trazia a esperança de reversão da difícil situação da Bahia à época. Portanto, quando relacionadas ao conteúdo textual, as imagens provocavam a interpretação de que o governador era um agente da maldade e da violência, representava riscos à sociedade, poderia ser um matador (no sentido real ou figurado), mas que se procurava a verdade, a verdade que trouxesse um alento à sociedade e a fizesse crer na chegada de dias melhores no futuro. As cores, também, pareciam ter sido selecionadas para suscitar sensações visuais específicas no público, ainda que, possivelmente, de forma intuitiva porque, no início do século XX, pouco se sabia sobre sua influência na percepção humana. De acordo com evidências científicas atuais858, o preto poderia estar associado aos conceitos de morte, luto e terror, provocando no leitor uma sensação desagradável em relação ao que estivesse ligado a ele. Usada na capa da publicação, esta cor remetia-se diretamente ao conteúdo, ou seja, a Góes Calmon, podendo desencadear essa impressão contra ele. O vermelho pode simbolizar o poder, o orgulho, o rancor, a revolta, o uso da força, a agressividade, a brutalidade, a crueldade, a violência. Por isso, na obra, poderia ser facilmente remetida às práticas do governador do Estado, por ser empregada justo na inscrição do título do livro (que remetia, diretamente, ao conteúdo com acusações de equívocos e abusos do governante) e do lugar e ano da publicação (que se referiam àquele espaço e tempo então vivenciados). Ao contrário, o branco pode expressar a pureza, calma, paz, de acordo com as teorias das cores. No libelo, por ser usado justamente na assinatura do autor, aludia à personalidade e à conduta que se tentava imputar ao próprio Cosme de Farias, naquele momento. Se associado à lança, que exprimia a busca da verdade para reversão dos problemas, esta cor poderia alçar, no imaginário do receptor, o jornalista à condição de agente da justiça, da não-violência, da harmonia contra a personificação do mal. 857 Ramon LLULL. O Livro da Ordem de Cavalaria. Trad. Ricardo da Costa. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000 apud Leandro. W. SICORRA. O Significado da Lança do Cavaleiro. In: Cavalaria – um estado d´alma. [s.l.]: De Cavalaria, 2011. Disponível em: <http://www.decavalaria.com/index.php?option=com_content&task=view&id=56&Itemid=290>. Acesso em: 13 jan. 2011. 858 Ver Modesto FARINA. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. 5. ed. São Paulo: Edgard Blusher, 2000; Marcio MAIA. Cor como Ferramenta de Comunicação e Marketing. In: Webartigos. [s.l.]: Webartigos, 18 jan. 2008. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/3745/1/Cor-Como-Ferramenta-DeComunicacao-E-Marketing/pagina1.html>. Acesso em: 14 jan. 2011. 300 Figura 3: Reprodução de exemplar disponível na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, Setor de Obras Raras, 2009. A julgar pela temática central, pelos fatos enfocados e pelo enquadramento dado, Lama & Sangue agredia, desafiava, atiçava a ira do governador e visava influenciar a população para a formação de uma opinião pública contra ele e, talvez, até incitar um levante que culminasse com a substituição do gestor da Bahia. Muitas vezes, de maneira desrespeitosa, desconsiderava que o oponente era uma autoridade, um chefe do Estado, e que a legislação vigente proibia condutas desta natureza, sobretudo, no decurso dos períodos de estado de sítio. Diz um dos capítulos da obra: “Calcando a Lei e achincalhando o Direito, em gestos de perfeita desemvoltura (sic), arvorou-se, tresloucadamente, num rubro dictador e num Átila de lançaria”859. Afirma outro: “Desmascarei, assim, perante os homens dignos, o bacharel Góes Calmon, que, incontestavelmente, é um famigerado politiqueiro e um canalhocrata, furtador de votos e despudorado inimigo dos formosos princípios da genuína democracia”860. Para alcançar seus objetivos, o jornalista adotou estratégias discursivas diversas. Uma das usuais era a desqualificação implícita ou explícita do oponente. A inabilidade atribuída a Góes Calmon pelo autor ficava tácita porque ele, raramente, designava o oponente como “governador” e/ou se referencia ao rival como “excelência”, com uso do pronome de tratamento861 mais adequado à sua condição à época (“excelentíssimo senhor”), preferindo chamá859 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p. 25. Id. Ibid., p.77-78. 861 Na Idade Média, foram criadas novas formas de tratamento, com caráter honorífico, para distinguir os reis, diante da relevância do seu papel na sociedade. Para os soberanos, passou-se a empregar várias expressões, em 860 301 lo simplesmente de “bacharel” e tratá-lo com o banal “vossa senhoria”, por exemplo, para evitar distingui-lo na sociedade. A intenção era evidente mediante a utilização de adjetivos, mais para imputação de juízo de valor negativo do indivíduo, de seu pensamento e de suas ações do que para a despretensiosa descrição (como em “politiqueiro desabusado”862, “grande uzurpador do voto popular”863, “inimigo feroz das urnas livres”864 e “advogado-nero”865, em substituição a governador; e “administração desastrosa e anti-liberal”866, para se remeter à gestão administrativa); e a aplicação de figuras de linguagem na abordagem, como a ironia867 (por exemplo, ao tratar o governante de “illustre dr.”868, em meio às críticas de negligência com questões sociais e acusação de perseguição contra adversários). Uma estratégia recorrente consistia na legitimação das delações, tão comuns à obra. Assim, a reprodução de notícias de jornais locais e do Diário Oficial conferia realismo aos textos, tornando-os mais críveis, por esses periódicos serem considerados à época “espelhos da realidade”; e a transcrição de críticas de autoria de terceiros e a inserção de retratos de vítimas das ações do Góes Calmon reforçavam o argumento contra o governador, ao ampliar o volume de “injustiçados” por ele e “indignados” com as circunstâncias relatadas. Com isso, Cosme, como um astuto editor, incrementava a possibilidade de influência do libelo sobre a opinião pública. A própria desqualificação do outro era um meio de legitimar a si, às suas proposições e às suas iniciativas. Também se repetia o apelo emocional ao leitor, por meio de adjetivação; da exploração de figuras de linguagem; de citações a Deus (como em “Nós, ainda não, graças á substituição ao já banalizado vós (originário do latim). A primeira, em 1331, foi Vossa Mercê. Porém, sua vulgarização, devido ao emprego extensivo aos nobres e, posteriormente, até a pequena burguesia urbana, desencadeou a criação de outros termos para aplicação de acordo com a função social de cada pessoa (Vossa Senhoria, Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência). Desde então, as expressões foram incorporadas à língua portuguesa, sendo empregadas no Brasil em todo o período republicano. Artarxerxes Tiago Tácito MODESTO. Notícias de Estudos Realizados sobre as Formas de Tratamento no Português Brasileiro. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura Letra Magna. Ano 2, nº 2. [s.l.]: Letra Magna, 1º sem. 2005. Disponível em: <http://www.letramagna.com/estudostratamento.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2011, p. 4-5; Domingos P. CEGALLA. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 24 Editora, 1984. 862 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p.52. 863 Id. Ibid. 864 Id. Ibid. 865 Id. Ibid., p. 118. 866 Id. Ibid., p. 44. 867 Ironia é uma figura de linguagem (ou estilo) que consiste na sugestão de sentido oposto ao significado real da palavra ou expressão, através da entonação, do contexto ou da contradição dos termos, com objetivo de depreciar uma pessoa, uma instituição, um objeto e/ou uma situação. Othon M. GARCIA. Comunicação em Prosa Moderna. Op. cit.; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p.282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 868 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p.25. 302 Deus!”869; “Poderá haver, no futuro, se Deus não mandar diversamente” 870), ao conteúdo da Bíblia (“Que alma de Caim! Que coração de fera!” 871); a obras literárias [como Canção do Tamoyo, do poeta Gonçalves Dias: “Não chores, meu filho;/ Não chores, que a vida/ É luta renhida, / Viver é lutar [...]”872] e a acontecimentos e personagens históricas [“[...] num rubro dictador e num Átila de lançaria”873]; de reproduções de provérbios (“Deixa ta jacaré,/ que a lagôa ha de seccá/ Depois da lagoa secca/ Quero vê jacaré nadá!” 874); e da composição da capa, que complementava o agressivo e destemido conteúdo contido no miolo. Possivelmente, o intuito do apelo emocional era, primeiro, atrair a atenção e, depois, conquistar a simpatia e a adesão dos leitores ao seu inflamado discurso de cunho político e ideológico. A eficácia do uso deste expediente, contudo, é questionável, por envolver a exploração de recursos aos quais o leitor não estava habituado e/ou que exigiam a partilha de um amplo repertório pelo autor e o receptor, fator nunca assegurado aos emissores devido a aspectos como a diversidade da audiência. As alusões à Bíblia e à História, por exemplo, poderiam prejudicar a inteligibilidade pretendida pelo Major. Porém, ao mesmo tempo, poderiam gerar a identificação da maioria cristã com a obra e o autor, considerando-os espiritualizados, e evocar sentimentos atrelados a essa crença (piedade, solidariedade); e poderiam provocar a simpatia em relação ao libelo e ao jornalista, por presumi-los como manifestações de sabedoria, e conferir-lhes autoridade e prestígio, respectivamente. Pelo observado, como salvaguarda, o jornalista buscou contextualizar as citações, para reduzir os riscos de falta de entendimento ou distorção, independentemente do leitor conhecer ou não o texto original e/ou ter ou não a capacidade de entender pelo contexto. Afora a desqualificação do oponente, a legitimação e a exploração das emoções de quem lia o livro, utilizava-se como estratégia o predomínio de construções sintáticas simplistas, evidenciando a busca da objetividade para abordagem dos fatos e temas; e linguagem de fácil apreensão, intermediária entre a norma culta e as manifestações coloquiais, favorecendo a receptividade positiva tanto de intelectuais quanto de pessoas com baixa escolaridade. Tal especificidade podia ser atestada pelo emprego recorrente de clichês, ou seja, de expressões que se tornaram triviais pela repetição demasiada e tiveram sentido disseminado entre os lei869 Id. Ibid., p.65. Id. Ibid., p.50. 871 Id. Ibid., p.123. 872 Id. Ibid. 873 Id. Ibid., p.25. 874 Id. Ibid., p.20. 870 303 tores (como “mandou para o olho da rua”875; “faxina”876 e “lista-negra”, em substituição a demissões e lista com nomes de agentes a serem exonerados). A apropriação de recursos de outros campos do conhecimento, como as artes e a Literatura, em geral, tornava o discurso mais fluído, poderia levá-los a atrair a atenção e gerar empatia com os leitores, porém implicava em suplantar a objetividade, na medida em que as figuras de linguagem e as adjetivações – muito utilizadas na Literatura –, na essência, exigem a interpretação e “tradução” da realidade à luz da individualidade do jornalista. Do ponto de vista estilístico, as escolhas do jornalista conferiam expressividade ao libelo, mas empobreciam a obra por vulgarizá-la, apesar da recorrente aplicação de recursos característicos da Literatura e da reprodução de escritos literários de poetas de destaque no cenário local, como Áureo Contreiras, e nacional, como maranhense Gonçalves Dias. Entretanto, ainda assim, pode-se avaliá-las como positivo por se adequarem à intenção do escritor e, efetivamente, possibilitarem o alcance da sua meta para aquele momento histórico, ou seja, a disseminação e, quiçá, universalização do ponto de vista explicitado no livro. As estratégias discursivas de Cosme em Lama & Sangue, possivelmente, garantiam o célere entendimento do conteúdo pela audiência, com interpretação próxima à intencionada pelo emissor, conferia credibilidade aos textos, despertava empatia e, também, pode ter persuadido os leitores quanto ao caráter duvidoso, à legitimidade e à competência de Góes Calmon à frente do Estado da Bahia e, talvez, influenciado a opinião pública e instado a sociedade à reação, conforme desejo do jornalista. A confirmação disso é questão relevante, porém, exige um esforço para análise a ser desprendido em outra oportunidade. Por outro lado, o libelo político registra e evidencia a posição de Cosme quanto ao governo em curso e governador da época e, por meio do conteúdo e do tom da exposição do livro, sedimenta na sociedade sua imagem como um legítimo representante dos injustiçados, por estar sendo igualmente injustiçado, em um contexto de restrições e até negação de oportunidade para livre manifestação aos “de baixo”. Ele era a voz daqueles sem vez, dos acusados e perseguidos pelo governo e governador, dos desvalidos, dos desamparados. Não obstante contasse com peças de terceiros, o dossiê era uma manifestação de ideias, proposições e de traços do modus operandi de Cosme de Farias quanto ao governante – e a um adversário! – e, indiretamente, às relações de poder estabelecidas na Bahia, na medida em que tinha sua organização e edição, continha textos de sua autoria e apresentava comentá875 876 Id. Ibid., p.18. Id. Ibid., p.19. 304 rios seus aos trabalhos alheios, nos quais apoiava e endossava o teor abrasivo das críticas tecidas contra o chefe do Estado. Tornou-se, por conseguinte, uma evidência de que a docilidade, a cordialidade, o tom moderado, aparentemente, inerentes ao Major, eram preteridos por ele, a depender dos interesses envolvidos, das circunstâncias dos fatos e das personagens enfocadas, como no caso de Góes Calmon. 4.3.2 Olhar sobre o dia-a-dia As tramas do poder eram apenas um dos temas dos textos de Cosme de Farias veiculados na imprensa de Salvador, no dia a dia. A ele, somavam-se questões sociais, culturais, econômicos. Sob os títulos Linhas Ligeiras ou Ineditoriaes – o mesmo dado à lavra de outros escritores – ou sem essas insígnias, liam-se textos curtos, de parcas linhas, predominantemente do gênero opinativo 877. A maioria tinha a assinatura no rodapé em destaque (letras maiúsculas ou em itálico), mas uns poucos eram apócrifos, só identificáveis quando antecedidos pela expressão “Linhas Ligeiras” por esta ser atribuída pela bibliografia e pelos periódicos como de autoria do Major. Não havia periodicidade preestabelecida para edição dos artigos, apesar da regularidade ser comum aos veículos de comunicação nos anos iniciais da República. Por vezes, as peças surgiam todo dia. Em outras, apenas ocasionalmente. Também, não se pode associar o autor a um impresso somente. Os escritos de Cosme eram veiculados por inúmeros jornais 877 Conforme Luiz Beltrão, o gênero opinativo consiste na conferência de juízo de valor ao fato ou tema relatado, por um jornalista, colaborador, veículo ou representante do público do meio de comunicação. Portanto, no jornalismo opinativo, defende-se uma posição em relação aos fatos com argumentação e busca-se nortear o posicionamento da opinião pública. Opinar, para Beltrão, é uma função social do jornalismo, dever do veículo; opinar consiste na escolha de um ponto de vista político, econômico e/ou social (dimensão coletiva) ou na apresentação de um juízo de valor para fatos de relevância para o público (dimensão individual). Em decorrência da instituição dos princípios do jornalismo moderno, a opinião passou a ser subjulgada, em detrimento do jornalismo estritamente informativo, como se fosse possível a distinção radical de informação e opinião. Para este autor, os formatos inerentes ao gênero opinativo são artigo, editorial, comentário, resenha. José Marques de Melo complementa afirmando que o jornalismo opinativo apresenta leituras do real, resultando da análise e avaliação da realidade do jornalista, colaborador, editor, a partir dos padrões da instituição jornalística que veicula o material, tendo o discurso assentado na opinião (o que se pensa sobre o que se passa). Ele soma a Coluna, a Crônica, a Caricatura e a Carta aos formatos indicados por Beltrão, embora reconheça que esta tipificação precise ser melhor avaliada. Luiz BELTRÃO. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980; José MARQUES DE MELO. Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. Campos do Jordão: Mantiqueira Editora de Ciência e Arte, 2003a; José MARQUES DE MELO. O Desafio do Estudo dos Gêneros. Pauta Geral – revista de jornalismo. Ano 10, nº 5. Salvador: Editora Calandra, 2003b. Entrevista concedida a Tattiana Teixeira. 305 locais (a exemplo de O Imparcial, A Noite, A Tarde), com os quais ele mantinha vínculo formal ou apenas atuava como colaborador voluntário. Nesses textos, em geral, o jornalista fazia proclamações honoríficas e mantinha um discurso crítico da sociedade do seu espaço e tempo, como atesta o corpus de análise desta tese. Grande parte continha crítica ácida e incisiva a um sujeito ou a uma instituição. Portanto, eram exemplares do formato artigo, um dos tipos do gênero jornalístico opinativo –, considerando-se as duas principais tipificações cunhadas no Brasil, dos pesquisadores Luiz Beltrão878, no pioneiro e clássico Jornalismo Opinativo, e José Marques de Melo879, no contemporâneo Jornalismo Opinativo – gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. De 25 veiculados entre março de 1925 e março de 1926 em A Noite, reunidos no corpus desta pesquisa, por exemplo, 24 eram artigos com essas características e apenas um era um poema, em homenagem a D. Pedro. Tratavam-se de matérias jornalísticas nas quais ele expunha uma ideia, uma proposta, uma ação e emitia sua opinião acerca dos fatos relatados ou do tema abordado, com liberdade estilística e de enquadramento. As peças reunidas para exame nessa tese contemplavam a caracterização dos autores, manifestando um juízo de valor acerca de um problema em foco, a respeito do qual informava e comentava com base no seu contato diário e direto com o público, na sua condição sócio-econômica e política, na sua experiência profissional e na sua formação. Segue um exemplo880: Linhas Ligeiras Pelos esforçados! A ‘Companhia de Navegação Bahiana’, ha dias, augmentou o preço de suas passagens e o frete de mercadorias. O facto correu sem o menor incidente e toda a gente com elle se conformou. Muito bem. Se todos estão de accordo com isto, eu, pela minha vez, fico solencioso... Não quero, absolutamente, ser ‘cabeça de motim’, nestes tempos bicudos de ‘estado de sítio...’. Venho, porém, [sic] que a dita empreza, edita venturosa, se esqueceu de augmentar o ordenado dos seus empregados, pobres homens que trabalham abnegadamente e ganham relativamente muito pouco, occupo-me, hoje, deste assumpto, para pedir á sua directoria que se lembre se melhorar a situação financeira dos esquecidos funccionarios, em quasi sua totalidade onerados de família. Deixo, pois, consignado, aqui, o meu appello, em favor destes ‘filhos de 878 Luiz BELTRÃO. Jornalismo Opinativo. Op. cit. p.20. José MARQUES DE MELO. Jornalismo Opinativo. Op. cit. p.121-129. 880 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de setembro de 1925. 879 306 Deus’, que vivem devéras indefezos... E como, na opinião do “Bom Homem Ricardo”, para o bom entendedor meia palavra basta, dou por terminado, sem prosopopéas, o meu pensamento. ‘Quem graças faz, graças merece...’ O contexto favorecia a Cosme de Farias. Na primeira metade do século XX, sobretudo, no quartel inicial, predominava a divulgação de matérias doutrinárias entre os jornais do Brasil, inclusive em Salvador. Era comum, portanto, ler nos jornais textos atualmente caracterizados como opinativos, em detrimento dos formatos informativos (como notícia). A mudança881 no País ocorreu com a lenta e gradual modernização da imprensa, conforme explicitado anteriormente. Aos poucos, inauguraram-se novas práticas, houve investimento tecnológico e na captação de receita por meio da venda de anúncio publicitário, pela autonomia econômica dos veículos, e registrou-se a profissionalização da área. Dentre as transformações882, as mais profundas diziam respeito à função, ao objetivo e ao princípio basilar da imprensa: mediar a relação entre sociedade e realidade, ao invés de prioritariamente disseminar ideias e ações de grupos ideológicos, políticos e/ou partidários; promover a interpretação e livre orientação política, econômica e social, ao invés de persuadir; e buscar a isenção, respectivamente. Assim, assumiu-se um compromisso com a abordagem de fatos reais, de ser “espelho da realidade”. Nesta tese, considera-se que outras mudanças derivaram disso: a busca da objetividade e da neutralidade; a clara distinção entre fatos e opinião e a cobertura informativa, em detrimento da opinativa; o levantamento e a certificação das informações por meio de apuração junto a fontes; a avaliação da relevância dos fatos, utilizando como referências o perfil do veículo, a demanda da audiência e as expectativas de uso das informações pelo indivíduo (valores-notícia); e a construção textual com linguagem sóbria e racional e empregando-se as técnicas da “pirâmide invertida”883 e do “lead”884. 881 “O repórter passou a ser a alma do jornal. O velho artigo de fundo, doutrinário e extenso, morreu ou agoniza. O que se quer agora é a informação, a profusão de títulos em todos os corpos e os competentes clichês, representativos da ocorrência ou da personagem. Alguns leitores chegam a exigir, e o jornal a satisfazê-los, que venha a narrativa encimada por epígrafes, que digam logo tudo, com dispensa de maior leitura”, analisa, com certo exagero, o jornalista Aloysio de Carvalho (Lulu Parola). Aloysio de CARVALHO. A Imprensa na Bahia em 100 Anos. In: Luis Guilherme P. TAVARES. Apontamentos para a História da Imprensa na Bahia. Op. cit., 2005, p.46. 882 Josenildo Luiz GUERRA. O Nascimento do Jornalismo Moderno - uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Op. cit.; Tânia Regina de LUCA. A Grande Imprensa no Brasil da Primeira Metade do Século XX. In: 9ª Conferência Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). Op. cit.; Nelson. TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Op. cit. p.33-144. 883 A Técnica da Pirâmide Invertida prevê a apresentação das informações relacionadas ao(s) fato(s) noticiados por ordem de relevância, do aspecto mais importante e/ou interessante ao menos importante e/ou interessante. 307 A escolha do formato de artigo por Cosme de Farias, ambiguamente, era positiva e negativa em concomitância. Por um lado, inspirava menos confiança do que textos do gênero informativo como a notícia, devido ao seu deliberado propósito de convencer a audiência e exercer influência sobre a opinião pública; e era mais susceptível à suspensão da publicação, caso o veículo assim desejasse por falta de espaço ou de interesse, por, em geral, apenas complementar a cobertura informativa ou tratar de assuntos (“frios”) que poderiam ser discutidos posteriormente ou até omitidos, pois não estavam na agenda da imprensa e da sociedade. Por outro, o artigo deixava sua intenção persuasiva clara ao leitor, propiciando que o receptor interpretasse o gesto como uma manifestação de coragem por expor seu posicionamento e de idoneidade e respeito à população pela transparência; e asseverava ao autor mais liberdade para o agendamento de fatos e temas de relevância para si e para suas obras e a construção de narrativa com sintaxe e linguagem compatíveis com seu público, desobrigandolhe de atender aos princípios gradualmente impingidos aos jornalistas dentro do processo de modernização, por este formato conferir certa autonomia em relação à pauta do jornal. Entre os conteúdos mais recorrentes para a elaboração dos textos opinativos de autoria de Cosme, de caráter opinativo, estavam fatos e temas relacionados ao poder e à política, à infraestrutura urbana e ao funcionamento da justiça, a movimentos políticos e sociais, a demandas sociais e à assistencial social, além de homenagens a terceiros, de acordo com a análise do corpus desta pesquisa (26 artigos veiculados entre março de 1925 e março de 1926 e entre outubro de 1926 e março de 1927 pelo jornal A Noite e 23 publicados entre janeiro de 1934 e dezembro de 1937 por O Imparcial). Em A Noite, destacaram-se as denúncias de falhas do governo e de gestores públicos Criada em 1861, pelo jornal estadunidense New York Times, disseminou-se em vários países, sendo empregada no Brasil oficialmente – primeiro, no Sudeste – a partir de 1950, e tornou-se o modelo mais empregado no mundo ocidental. Visa atrair e prender a atenção do público do primeiro ao último parágrafo; garantir a apreensão das informações cruciais sobre o acontecimento mesmo quando a leitura é interrompida; facilitar o processo de produção do texto jornalístico por dispensar elaboração de narrativas complexas; e tornar mais eficiente e ágil a edição, porque os cortes de conteúdo passaram a ser realizados de baixo para cima, sem necessidade de análise prolongada das eventuais perdas para o entendimento após a secção. Sandro Lauri da Silva GALARÇA. Pirâmide Invertida, Lead Clássico e Interesse Público: 50 anos depois, jornalismo impresso catarinense ainda segue padronização. In: Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: Universidade Católica de Santos; São Paulo Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 29 ago.-2-set. 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers /nacionais/2007/resumos/R1523-1.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2008; Nilson LAGE. Estrutura da Notícia. São Paulo: Editora Ática, 2002. 884 Lead é um enunciado que situa o evento no tempo e espaço, para uma audiência dispersa, e formaliza os elementos ou notações (nomes civis e geográficos) do(s) fato(s) relatado(s), visando guiar, direcionar, orientar o público. Pala técnica, deve-se priorizar as informações mais importantes ou interessantes, em detrimento das demais, respondendo a seis questões essenciais (who/quem; what/que; when/quando; where/onde; why/por quê; how/como). Isso originou uma fórmula (5W + 1H), aplicada nos Estados Unidos desde, pelo menos, o final do século XIX. No jornalismo impresso, trata-se do primeiro parágrafo do texto. Nilson LAGE. Estrutura da Notícia. Op. cit. 308 (como a indicação errada da patente de um bombeiro no Diario Oficial do Estado885) e da ocorrência de problemas de infraestrutura e sociais da cidade (como más-condições da Ladeira da Água Brusca886, indigência887 e falta de acolhimento de crianças em situação de risco pessoal por viverem nas ruas888) e, ainda, a defesa do seabrismo, de J. J. Seabra e de seabristas (como em “Á margem de um xingamento”889 e em “Proclamando a Verdade”890), o que aproximava esta lavra do teor do livro Lama & Sangue. Possivelmente, esta predominância tem relação com o momento político do Major, que estava alijado do poder desde a ascensão de Góes Calmon ao governo e mantinha ferrenha oposição a ele. No âmbito político, houve ainda menção a campanhas eleitorais. Em O Imparcial, por sua vez, registrou-se uma omissão quanto aos lapsos do governo e de gestores públicos no período analisado, de 1934 a 1937. Embora estivesse contrário ao regime autoritário instaurado por Getúlio Vargas desde 1930 e fosse prejudicado por ele, sendo inclusive excluído das instâncias do poder constituído, como discutido no capítulo II, Cosme silenciou-se, pelo menos, neste periódico, então de cunho integralista. Possivelmente, a elipse estabeleceu-se em decorrência do contexto histórico de ebulição política e social e restrição de direitos, em todo o Brasil, que trazia riscos de ônus ao jornal e ao jornalista, naquele momento, em caso de posicionamento incisivo contra a administração e os governantes. A Noite pautava, ainda, conforme levantamento para esta tese, fatos e temas relativos aos movimentos políticos e sociais nos quais ele estava envolvido. Neste caso, incluíam-se as denúncias de falhas nas relações de trabalho e reivindicações de trabalhadores de ramos diversos (como atraso no pagamento dos salários dos professores de escolas públicas891; demandas por melhores condições de atuação para os agentes da Guarda Civil892 e pela criação da Caixa de Beneficência da Categoria893; incerteza quanto à alocação de comissários de saúde do município no serviço público estadual894). Também, estavam incluídas neste grupo as críticas à carestia de produtos e serviços essenciais (a majoração das tarifas cobradas pela Companhia Bahiana de Navegação, em texto 885 A NOITE. Salvador (BA), edição de 16 de janeiro de 1926. A NOITE. Salvador (BA), edição de 5 de janeiro de 1926. 887 A NOITE. Salvador (BA), edição de 28 de dezembro de 1925. 888 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de dezembro de 1925. 889 A NOITE. Salvador (BA), edição de 23 de junho de 1925. 890 A NOITE. Salvador (BA), edição de 16 de junho de 1925. 891 A NOITE. Salvador (BA), edição de 16 de dezembro de 1925. 892 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de novembro de 1925. 893 A NOITE. Salvador (BA), edição de 27 de outubro de 1925. 894 A NOITE. Salvador (BA), edição de 24 de novembro de 1925. 886 309 que também reivindica reajuste dos salários dos trabalhadores da organização895) publicadas por A Noite. Em O Imparcial, os registros sobre esses assuntos eram raros. Em toda a amostra analisada, havia apenas dois artigos896 relacionados aos movimentos desta natureza no matutino, sendo um em defesa de melhores condições de trabalho para agentes de limpeza e outro por moradia para operários. Acredita-se que o agendamento deste conteúdo exclusivamente por A Noite está vinculado à linha editorial dos dois veículos analisados e ao tipo de relação mantida por Cosme com ambos. Era condizente a exposição de ações dos movimentos políticos e sociais por A Noite, um órgão voltado para os estratos populares, interessado em assuntos de relevância para as classes trabalhadoras, de defesa de causas sociais e com o qual, possivelmente, o Major gozava de maior proximidade e possibilidade de negociação para publicação, como explicitado anteriormente. Porém, a prioridade para assuntos desta ordem destoaria da proposta de O Imparcial, um matutino pertencente à elite local, que, naquele momento, conferia explícito apoio ao integralismo e às iniciativas anticomunistas e com o qual Cosme tinha firmado laços a partir de suas ações assistenciais. Os dois impressos observados, contudo, demonstravam especial atenção a assuntos concernentes à assistência social. Nesse caso, eram apresentadas, por exemplo, a atuação, as demandas e pedidos de subvenções a organizações assistenciais (reversão do imposto sobre casas de penhores para asilos897; e solicitação de doações ao Abrigo do Salvador898); e, também, a situação de sobrevivência e as demandas de grupos minoritários (construção de albergue para indigentes de Salvador899 e de patronato para crianças abandonadas900). Nestes textos sobre assistência, havia a difusão de campanhas beneméritas para terceiros (como a realizada por A Noite por Luís Carlos Prestes e seus companheiros da Coluna Prestes, então refugiados na Bolívia901) e, também, a divulgação do trabalho que ele próprio desenvolvia, em benefício de terceiros (pedido de subsídio ao governo, em prol da Santa Casa da Misericórdia de Salvador/Hospital Santa Izabel902). Esta adesão, ao que parece, igualmente, se devia aos seus princípios editoriais e anseios – A Noite, um jornal vocacionado para a 895 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de setembro de 1925. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 25 de outubro e 2 de setembro de 1937. 897 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de março de 1927. 898 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 9 de outubro de 1937. 899 A NOITE. Salvador (BA), edição de 28 de dezembro de 1925. 900 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de dezembro de 1925; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 7 de outubro de 1936, 4 de novembro de 1937, entre outras. 901 A NOITE. Salvador (BA), edição de 29 de março de 1927. 902 A NOITE. Salvador (BA), edição de 21 de dezembro de 1925. 896 310 defesa de causas sociais diversas e desejoso de atender às demandas dos estratos “de baixo”; e O Imparcial, um matutino da elite necessitando ampliar seu alcance, para melhor disseminar os valores integralistas na Bahia. Além disso, os textos prestavam homenagens ou registravam iniciativas em tributo a intelectuais, magistrados, médicos, sobretudo, políticos, dos cenários nacional e local, pelo trabalho desenvolvido e/ou contribuição à população (como o jornalista Lellis Piedade903; o juiz Leovigildo de Carvalho904; o médico Mário Leal905; o governador Antônio Moniz906; o monarca D. Pedro de Alcântara907; o líder integralista Plínio Salgado908; o governador de Minas Gerais, Melo Vianna909; o professor Zenobio dos Reis910, em consonância com a postura adotada em outros ambientes, a exemplo da Assembleia Legislativa, onde Cosme propunha e apoiava moções e subia à tribuna para fazer tributos a personalidades da sociedade baiana. Por vezes, o mesmo mote inspirava mais de um artigo, para publicação em periódicos diferentes, inclusive oponentes, em curto lapso temporal. Assim ocorreu com o centenário de nascimento do monarca D. Pedro II – “D. Pedro II”, editado por Diario de Noticias em 23 de abril de 1925, e “Que vergonha”, por A Noite em 20 de novembro de 1925 –; e com a necessidade de criação de uma unidade de acolhimento de crianças abandonadas em Salvador – debatido em “Alerta, patriotas!”, no Diario de Noticias de 8 de maio de 1925; e “Misericordia, senhores”, em A Noite do dia 9 de dezembro de 1925; e em artigo sem título, em O Imparcial de 4 de novembro de 1937. Portanto, os artigos do Major tinham como referencial o mundo objetivo (dos fatos reais) e apresentavam interpretações e juízos de valor acerca de fatos, temas, personagens, principalmente, a partir do contexto em que ele estava inserido e da sua experiência. Tal especificidade, aliás, fora determinante para a classificação dos textos de Cosme como peças jornalísticas, afinal, atendiam à principal característica do jornalismo – o compromisso com a abordagem da realidade; o aprisionamento aos fatos, atos e às possibilidades reais. Um dos principais teóricos desta disciplina, Adelmo Genro Filho 911, considera jornalismo uma forma de conhecimento cristalizada no singular (fato em si), associada contraditoriamente à particu- 903 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 20 de janeiro de 1937. A NOITE. Salvador (BA), edição de 4 de julho de 1925. 905 A NOITE. Salvador (BA), edição de 20 de fevereiro de 1926. 906 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 1º de junho de 1937. 907 A NOITE. Salvador (BA), edição de 20 de novembro de 1925. 908 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 11 de julho de 1937. 909 A NOITE. Salvador (BA), edições de 19 e 26 de agosto e 17 de setembro de 1925. 910 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 12 de março de 1937. 911 Adelmo GENRO FILHO. O Segredo da Pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Op. cit. 904 311 laridade (contexto) e universalidade (outros níveis do real) delineados pela subjetividade do jornalista. A despeito de versarem sobre o real, os artigos, por vezes, inovavam, lançavam novas propostas de discussão à sociedade por meio dos jornais. Uma das características do jornalista, evidenciadas na análise da sua produção para esta tese, era a abordagem de assuntos que estavam fora das páginas de jornal e da agenda social e política daquele momento, visando provocar novos debates e instigar o posicionamento das pessoas – e, quiçá, a tomada de decisões, a mobilização, a ação/reação – quanto a questões avaliadas por ele como importantes para a população. Um exemplo desta especificidade foi um artigo sobre a prisão de menores de 18 anos entre adultos, em instalações inadequadas, em meio a um intenso debate sobre a extinção dos partidos políticos, em dezembro de 1937. “A permanência de menores na Casa de Detenção desta Capital é uma verdadeira miséria [...]”, dizia912. Nesse caso, fica evidente essa sua tentativa de deflagrar a discussão sobre o sistema de recolhimento, reeducação e reinserção social de adolescentes infratores, assunto que só seria explorado com regularidade pelos meios de comunicação em Salvador em 1990, em decorrência da elaboração e promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Embora os estudos sobre agendamento à época estivessem apenas na fase inicial e circunscritos aos Estados Unidos913, Cosme parece ter percebido, precocemente, o fenômeno da interação constante das agendas midiática e pública, em uma espécie de retro-alimentação entre ambas e passado a explorar essa especificidade. Como apresentado acima, ele utilizava a imprensa como mecanismo para agendamento na sociedade de fatos relacionados, em especial, à sua obra assistencial, à mobilização social e à política. Talvez, apenas a partir da observação do modus operandi da imprensa e do comportamento da sociedade, ele pode ter entendido que a publicização pelo jornalismo assegurava o status de acontecimento aos fatos914, 912 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. A Teoria do Agendamento (Agenda-setting theory) prevê que a agenda da mídia influencia a agenda do público, ao eleger temas, argumentos e problemas para cobertura e definir uma hierarquia entre eles. Portanto, as agendas da mídia e do público interagem, embora a correlação entre ambas não seja simétrica, proporcional. Os princípios básicos para a formulação dessa teoria são atribuídos a Walter Lippmann, jornalista estadunidense que, em 1922, defendeu que as pessoas viviam em um “pseudo-ambiente”, constituído por imagens geradas a partir da cobertura midiática, e tomavam suas decisões em consonância com isso. Na década de 1970, Maxwell McCombs e Donald Shaw delinearam a proposição – considerada por outros estudiosos como uma teoria – ao constatarem que o principal efeito da mídia é pautar os debates da esfera pública, dizendo às pessoas “em que pensar”. Mauro WOLF. Teorias da Comunicação – mass media: contexto e paradigmas, novas tendências, efeitos a longo prazo, o newsmaking. Op. cit. 914 Ver melhor em Nelson TRAQUINA. O Poder do Jornalismo – análise e texto da teoria do agendamento. Coimbra (Portugal): Minerva, 2000. 913 312 possibilitando a repercussão deles. Ao analisar o conteúdo os artigos de Cosme publicados nos jornais O Imparcial e A Noite que constituem o corpus desta pesquisa, constata-se que os textos eram empregados pelo Major: a) em protesto contra as condições sócio-econômicas e questões políticas (com abordagem de temas como o sistema judiciário, o combate ao analfabetismo e o cerceamento da liberdade); b) como mecanismo de constrangimento e pressão das autoridades municipais e até estaduais, empresários e intelectuais, para obtenção de um benefício para uma pessoa ou um grupo; c) como instrumento de informação, convencimento e mobilização da sociedade; d) para elogio e homenagem a terceiros; e e) para realização e/ou divulgação de campanhas beneficentes. Cosme adotou múltiplas estratégias discursivas, como fez na produção de Lama & Sangue. Uma das mais evidentes nos textos analisados em A Noite e O Imparcial era o constrangimento e a coerção da personagem ou governo ou instituição envolvida nos fatos e temas abordados, sempre que julgados pelo autor como responsáveis por negligência, imperícia e/ou imprudência que causasse prejuízo a ele e a indivíduos, grupos sociais e organizações sob sua proteção. Assim, procurava causar a sujeição do alvo – em geral, políticos, agentes do serviço público, empresários – e a desencadear um processo de busca de soluções para as questões enfocadas. Para isso, apesar de a citação nominal a um “destinatário” não ser uma prática do jornalismo da época, Cosme recorria a esse expediente em seus artigos, ora com tom impositivo [como em “Tenha a palavra, portanto, o amável dr. Bulcão Sobrinho, para explicar como e porque este negócio fracassou”915], ora com docilidade, como uma súplica [“Peço, pois, ao illustre dr. Procurador Geral do Estado que providencie para que seja installado [...] um compartimento, para aquelles desaventuradozinhos”916]. Outra estratégia recorrente nos artigos observados em A Noite e O Imparcial era a legitimação de si próprio, do seu pensamento e das suas ações. As táticas eram a desqualificação daqueles acusados por Cosme de negligência, imperícia ou imprudência prejudiciais a ele e aos seus protegidos e, também, a crítica negativa às suas concepções e ações; a vitimização de quem havia sido preterido, ferido, lesado, ultrajado por este oponente; e a exaltação daqueles que tentavam, na perspectiva do jornalista, solucionar problemas de cunho político, econômico, cultural e, sobretudo, social. Por vezes, viam-se os três métodos em um só texto, co915 916 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 30 de dezembro de 1937. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. 313 mo no exemplo a seguir: Os albergues917 Até hoje, infelizmente, o sr. governador do Estado, ainda, não quis attenderme, ordenando a construcção de um ‘albergue nocturno’, nesta capital, apezar de já existir uma lei, iniciada por mim e sanccionada pelo honrado e eminente dr. Antonio Moniz dando ao chefe do poder executivo da Bahia auctorização para agir neste sentido. Tenho clamado em vão e dezenas de infelizes continuam a dormir pelas portas das egrejas e pelas calçadas das ruas, expostos á chuva e ao sereno, como se fossem cães abandonados, em terras onde não exista nenhuma sociedade que proteja os animaes. O espectaculo é compungente e humilhante para esta província que tem foros de culta. Eu, porem, continuarei a pedir a mizericodia dos venturosos do poder, para que os desherdados da sorte que não possuem, ao menos, um pedaço de tecto, que os abrigue, quando o sol desapparece. E sinto-me, assim, á vontade, porque cumpro com o meu dever de christão, que não vae à festa dos falsos beneméritos... COSME DE FARIAS Os meios eram, também, similares. No caso da desqualificação, fazia-se referência ao oponente com omissão do nome (no exemplo, havia apenas referências ao cargo de Góes Calmon) e emprego de pronomes de tratamento comuns, ao invés daqueles que conferiam status e autoridade (no exemplo, remetia-se a Góes Calmon – o adversário – como “senhor”, um pronome comum, embora ele fosse um bacharel e a maior autoridade do Estado, em contraposição a Antonio Moniz – o aliado –, chamado de “doutor”, forma que evidencia certa deferência, apesar de ele ser igualmente um bacharel e um ex-governador). E, também, do uso de adjetivos que implicavam na imputação de juízo de valor negativo [como “O espetáculo é compungente e humilhante para esta província [...]”918, quanto à omissão de Góes Calmon no caso da falta de abrigo noturno para indigentes] e emprego de figuras de linguagem como a ironia [a exemplo de “venturosos do poder” e “falsos beneméritos” para Góes Calmon, governador que teria falhado]. No processo de vitimização dos prejudicados por descuido, incapacidade e/ou inadvertência cometidas – de acordo com a avaliação de Cosme – por um indivíduo, um governo ou uma instituição, registrava-se o juízo de valor por meio da adjetivação [como em “[...] de917 918 A NOITE. Salvador (BA), edição de 28 de dezembro de 1925. A NOITE. Ibid. 314 zenas de infelizes continuam a dormir pelas portas das egrejas e pelas calçadas das ruas [...]” e “O espectaculo é compungente e humilhante [...]”] e a exploração de figuras de linguagem como eufemismo 919 [quando, por exemplo, diz “[...] expostos á chuva e ao sereno [...]”, ao invés de expostos ao relento, abandonados], metáforas [como em “[...] como se fossem cães abandonados, em terras onde não exista nenhuma sociedade que proteja os animaes”] e metonímia [“(não possuem, ao menos, um pedaço de tecto [...]”]. Com a intenção de exaltar aqueles que exerciam trabalho relevante para a sociedade baiana, mesmo que por obrigação (como nos casos dos governadores J. J. Seabra e Antônio Moniz), e elogiar suas ideias e ações, havia a aplicação no texto de pronomes de tratamento que atribuíssem status e autoridade (no exemplo, o autor considerava o então ex-governador Antônio Moniz como um gestor que agiu com correção e remetia-se a ele como “doutor”, título raro àquela altura e que significava trata-se de um expert, um sábio, merecedor de admiração e respeito) e de adjetivos positivos (como “honrado” e “eminente” para Moniz). Mais uma estratégia identificada no corpus era a busca da objetividade na abordagem. Na maioria das vezes, o jornalista primava pela clareza e síntese, utilizando construções sintáticas simples (como em “A solidariedade humana é uma pagina bellissima do christianismo e deixa a perder de vista os salamaques da politicagem de aldeia”920; e “O retrato do festejado e saudoso jornalista Lellis Piedade não figura, ainda, no salão principal do edifício do Montepio”921) e linguagem com elementos da norma culta e do modo coloquial de usar a língua portuguesa, inclusive com reprodução de clichês [como “Abriu novos horizontes às camadas populares”922 e “[...] está, dia a dia, perdendo terreno”923]. A junção desses aspectos facilitaria o entendimento do conteúdo e proporcionaria mais chances de haver a interpretação pelo receptor de maneira mais próxima às intenções do jornalista. Com isso, propositalmente ou não, ele atendia à maioria dos indicativos para o desenvolvimento de um texto jornalístico de qualidade quanto à redação, preconizados na imprensa e pela bibliografia especializada desde a segunda metade do século XX924. Se racional, 919 O Eufemismo consiste na substituição de um termo para abrandamento do efeito da mensagem. Trata-se, portanto, de um recurso para suavizar efeitos de palavras ou expressões ásperas e/ou chocantes e/ou inesperadas e/ou desagradáveis. Othon M. GARCIA. Comunicação em Prosa Moderna. Op. cit.; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p.282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 920 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de novembro de 1925. 921 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 20 de janeiro de 1937. 922 A NOITE. Salvador (BA), edição de 19 de agosto de 1925. 923 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de setembro de 1937. 924 Mário L. ERBOLATO. Técnicas de Codificação em Jornalismo – redação captação e edição no jornalismo diário. São Paulo: Editora Ática, 2004, p.105-108. 315 é possível que o método devesse apenas à intenção de se fazer compreendido por pessoas com variado tempo de escolarização e hábitos de leitura diferenciados. Observa-se que o apelo emocional, também, era uma estratégia comum nesses artigos de jornal. Em detrimento da lógica e da razão, preferia provocar sentimentos diversos, da compaixão à indignação, como um relevante artifício para persuadir, convencer os leitores. Para isso, empregava, por exemplo, substantivos no grau diminutivo, suscitando afetividade, benignidade e desprezo (como “desaventuradozinhos” 925, ao invés de crianças e adolescentes); e advérbios de modo e intensidade (como “infelizmente” 926, “elegantemente”927). Era perceptível o emprego de figuras de linguagem para atenuar ou enfatizar uma situação, a exemplo de metáforas928 [como “[...] libertar a Nação dos negrumes da ‘escravatura branca’”929; “a candidatura [...] está, dia a dia, perdendo terreno”930; “O silêncio, muitas vezes, tem o valor do Ouro”931]; metonímias (“servir de pasto ao filhotismo”932, ao invés de sustentar; “sem um braço que os ampare”933, em vez de pessoa/instituição amiga; “Acha-se, quasi, diga-se a verdade, sem pão e sem lar” 934, em lugar de sem alimentação e moradia); os eufemismos935 (como “a sombra do escorchamento”936 e não, “por trás da extorsão”; “Europa dos Pobres” e não, Ilha de Itaparica); as alegorias937 (como “Insigne parlamentar, possuindo um robusto talento, esmaltado por uma sólida cultura cívica”938); e as ironias (como em “O espectaculo é pungente”, ao invés de “a incidência de analfabetismo é triste”939), sendo estas 925 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. A NOITE. Salvador (BA), edição de 28 de dezembro de 1925. 927 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. 928 A Metáfora consiste no emprego de termo com o significado de outro, no sentido conotativo (transferência de um termo para o âmbito de significação de outro), a partir de uma associação afetiva e subjetiva entre o significado real da palavra e aquilo que se deseja expressar. O novo sentido resulta de uma relação de semelhança ou interseção entre os dois termos. Exige que comunicantes compartilhem repertório. Othon M. GARCIA. Comunicação em Prosa Moderna. Op. cit.; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p.282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 929 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de setembro de 1925. 930 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de setembro de 1937. 931 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 26 de outubro de 1937. 932 A NOITE. Salvador (BA), edição de 19 de agosto de 1925. 933 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de dezembro de 1925. 934 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 12 de março de 1937. 935 O Eufemismo consiste na substituição de um termo para abrandamento do efeito da mensagem. Trata-se, portanto, de um recurso para suavizar efeitos de palavras ou expressões ásperas e/ou chocantes e/ou inesperadas e/ou desagradáveis. Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p.282302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 936 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de dezembro de 1925. 937 A Alegoria consiste na reunião de metáforas ligadas a um mesmo objeto, intensificando seu significado através do detalhamento de suas características. Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Manual Compacto de Redação e Estilo. Op. cit. p.282-302; Ana Tereza Pinto de OLIVEIRA. Redação e Interpretação de Texto. Op. cit. 938 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de julho de 1925. 939 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 24 de agosto de 1937. 926 316 duas últimas menos recorrentes. Também eram táticas a incorporação aos textos de adjetivos visando fixar juízos de valor (como “não recebem seus minguados vencimentos, producto de nobres esforços na educação”940, em que “minguados” e “nobres” desqualifica e enaltece, respectivamente, visando sensibilizar o interlocutor; “É mais uma injustiça que se pratica, á luz do sol, contra os pequenos e contra os humildes”941, em que “pequenos” e “humildes” substituem “enfermeiros” e “motoristas” para estimular a indulgência por estes profissionais, que atuavam em uma instituição que deixara de receber recursos públicos para pagamento de salários a funcionários; “illustre deputado Raphael Jambeiro”942, em que “ilustre” exalta com a intenção de ganhar adesão). A despeito de ser inabitual na imprensa local da época, grande parte dos textos continham reproduções de provérbios [como em “[...] não é cachorro sem dono, para andar morrendo á fome”943; “dar com ‘os burros n´água’”944; e “Quem semeia ventos, colhe tempestades”945], visando seduzir e conquistar a simpatia, gerar identificação e asseverar a adesão do receptor. E, vez por outra, Cosme suscitava o patriotismo/civismo e a democracia e evocava sentimentos como a bondade e a sinceridade em seus artigos946, sinalizando sua visão de mundo. Os textos continham, também, referências a elementos do cristianismo – especialmente, à Bíblia, a Deus, a Jesus Cristo – (como “Mizericordia, pois, ó glorioso Coração de Jesus!”947; “Avante e Deus que te proteja, illumine e ampare!”948) e/ou à Literatura (como a menção ao livro A Sciência do Bom Homem Ricardo, de Benjamin Franklin949). Conforme já discutido na análise de Lama & Sangue, tais menções poderiam prejudicar a compreensão imediata, por desconhecimento do original pelo leitor, mas, também, despertar a empatia da maioria cristã e conferir autoridade e prestígio ao autor, fazendo o receptor julgá-lo um homem espiritualizado e intelectual. Para atenuar os eventuais riscos de má-compreensão do conteúdo, o jornalista mantinha-se atento ao perigo e cuidava para que seus escritos pudessem ser compreendidos pelo contexto ou pelo conhecimento do leitor acerca do referencial. 940 A NOITE. Salvador (BA), edição de 30 de novembro de 1925. A NOITE. Ibid. 942 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 17 de agosto de 1937. 943 A NOITE. Salvador (BA), edição de 16 de dezembro de 1925. 944 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de setembro de 1937. 945 O IMPARCIAL. Ibid. 946 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de setembro e 1º e 4 de dezembro de 1937. 947 A NOITE. Salvador (BA), edição de 24 de novembro de 1925. 948 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 21 de outubro de 1937. 949 A NOITE. Salvador (BA), edição de 17 de setembro de 1925. 941 317 Havia, ainda, um desfecho (como em “Senhores do poder, tende misericordia da infancia desamparada!!!”950; “Tudo, assim, pela miseria das ruas”951 e “Avante, avante, dr. Mello Vianna!”952). Tratava-se de um momento reservado a uma síntese do conteúdo apresentado na introdução e no desenvolvimento e/ou uma mensagem final aos leitores, manifestando esperança, desejando perseverança e/ou instando a reflexão e a reação em relação aos fatos e temas criticados. Em geral, consistia em uma oração curta com interjeição, impregnada de sentimentos, com ou sem menções a adágios e citações cristãs. Ao tecer um artigo, Cosme expunha informações acerca do mote do texto; buscava aplicar uma linguagem e estrutura textual simplificada, mas sedutora em relação aos leitores e mordaz contra seu alvo (empregando recursos como o adjetivo com imputação de juízo de valor negativo do que para descrição de pessoas, cenas, ambientes; as figuras de linguagem como metáforas, metonímias e alegorias, entre outros elementos da língua portuguesa e recursos mais comuns à literatura do que ao jornalismo; as referências ao cristianismo, à literatura, aos adágios); fazia apelo emocional; e tentava fazer com que o conteúdo repercutisse na vida do receptor, instigando a reflexão e até a reação, por meio, sobretudo, do desfecho carregado de sentimento. Nos tributos a terceiros, sintetizava os méritos da personalidade homenageada e, por vezes, propunha formas de laureá-la, visando o reconhecimento do seu trabalho e da sua contribuição à sociedade. O gesto, de aparência despretensiosa e altruística, poderia servir-lhe para angariar auxílio para suas obras, pelo desejo de retribuir a honraria. E, também, como instrumento para construção e consolidação de uma imagem positiva de si, em decorrência, por um lado, do significado do ato de homenagear (como algo notável, admirável) e da habitual repercussão de iniciativas desta natureza para quem faz a láurea (conquista de consideração de que se trata de um sujeito generoso, solidário; admiração e, às vezes, reconhecimento pelo ato nobre); e, por outro, da associação do seu nome ao de “pessoas de bem” (como intelectuais, magistrados, advogados, políticos), com status e, muitas vezes, poder político e econômico. Pelos fatos e temas focalizados e pelo enquadramento dispensado a eles, o Major ensejava construir/consolidar sua imagem pública e dos movimentos e das instituições aos quais estava vinculado ou tinha afinidade, visando a ampliação das iniciativas assistenciais e o incremento do trabalho de mobilização social e política realizado por ele, por meio da divulga950 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de dezembro de 1925. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 9 de outubro de 1937. 952 A NOITE. Salvador (BA), edição de [s.d] de agosto de 1925. 951 318 ção das suas ideias, proposições e ações e, ainda, dos constrangimentos a que foi submetido e do seu posicionamento em relação à situação e a demandas da sociedade. No limite, aparentemente, ele desejava persuadir os leitores e influenciá-los para a formação de uma opinião pública e, quiçá, a reação quanto ao que fora abordado. As vias eleitas por Cosme em seus artigos tinham riscos. Muitas das táticas adotadas (como a incorporação de metáforas, metonímias, ironias; a menções a questões bíblicas e literárias etc.) poderiam dificultar ou até impedir a inteligibilidade dos escritos e, por conseguinte, comprometer o pleno alcance dos seus objetivos. A aplicação de recursos característicos da literatura (as figuras de linguagem, as referências externas como ao cristianismo etc.) no texto jornalístico, por exemplo, poderia, à época, ter efeito inverso ao desejado pelo autor, implicando em danos ao entendimento do conteúdo em consonância com suas intenções, com garantia de certo prazer na leitura, à promoção da empatia e à constituição de um estilo do articulista. Contudo, as estratégias do jornalista (a busca da objetividade, a exploração da emotividade, o constrangimento e a coerção do oponente, a desqualificação, a vitimização e a exaltação), possivelmente, contribuíram para a compreensão e interpretação do conteúdo pelo receptor, de forma próxima à intencionada pelo emissor, despertaram empatia e ajudaram-no a conquistar adesão pela identificação do leitor com suas ideias, propostas e ações. Tal qual ocorreu no libelo Lama & Sangue, conforme explicitado anteriormente. Estas estratégias, portanto, podem ter possibilitado que os artigos influenciassem o público 953 dos diários – à época, era formado principalmente por formadores de opinião (inte- lectuais, políticos, profissionais liberais etc.), que tinham escolaridade e condições para desembolsar pelo impresso – e provocassem impactos sobre a realidade, embora, por vezes, pontuais. Sinalizam isso o envio de textos à imprensa pela população, sobre os assuntos postos em discussão pelo Major; a intervenção de empresários, jornalistas, governantes, governos sobre os casos abordados nas matérias; e a atenção a convocações do Major para organização e/ou participação em eventos cívicos, culturais, reivindicatórios. Sua conduta diante da ameaça de prisão na gestão de Góes Calmon, por exemplo, gerou efeitos como o artigo do coronel Marcolino Figueiredo, publicado pelo Diario de Notici953 A ampliação do público de jornais esteve associada ao processo de modernização dos periódicos (pela busca da isenção e consequente redução das divergências entre jornais e consumidores; pelo barateamento do produto etc.) e a fatores externos, como à alfabetização e ao aumento do poder aquisitivo da população, em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Na Bahia, fenômeno similar ocorreu, de modo que, como a reformulação da visão e dos modos de fazer impressos tardou, o volume de leitores era restrito nas primeiras décadas da República. Ana Cristina M. SPANNENBERG. Entre Mudanças e Permanências. Op. cit. 319 as954, que culminou com o clamor por sua liberdade. Outras repercussões, possivelmente, eram a participação popular em eventos organizados por ele (como os protestos contra a carestia, conforme descrito por Mário Augusto Santos, em A República do Povo955) e a adesão às campanhas apoiadas por ele, como a em prol de Luís Carlos Prestes, em 1927. 4.3.3 Cosme, pauta jornalística Em concomitância à intensa publicação de produção própria nos jornais locais, Cosme de Farias prestava-se como pauta jornalística da imprensa da Cidade da Bahia. Informações sobre ações dele eram veiculadas pelos jornais locais, inclusive por aqueles em que ele não estava atuando como colaborador permanente, em forma de matérias informativas, predominantemente, notas curtas dispostas, em geral, nas páginas internas do caderno, sob títulos grafados em fontes graúdas e em negrito. Somente entre março de 1925 e março de 1926 e entre outubro de 1926 e março de 1927, A Noite veiculou 80 matérias – a maioria notas – sobre atividades desenvolvidas por ele. Entre janeiro de 1934 e dezembro de 1937, O Imparcial editou 423 textos com estas características. Não havia uma periodicidade predefinida e, por vezes, publicava-se mais de uma por edição. Na análise das séries de A Noite e O Imparcial, percebe-se que havia uma semelhança entre os textos editados em dias diferentes por um mesmo periódico e que os redatores buscavam escrever de forma direta e clara. De acordo com os impressos observados, os fatos e temas motivadores da cobertura eram homenagens do Major a personalidades dos cenários nacional e local, pelo trabalho realizado e/ou pela contribuição prestada à população, por meio da organização e/ou participação em tributos e iniciativas como a subscrição para arrecadação de fundos para criação ou conserto de monumentos dedicados aos laureados956; casos de assistência a indivíduos de baixa renda ou indigentes (mediante o encaminhamento para internação em instituição psiquiátrica, 954 A NOITE. Salvador (BA), edição de 6 de abril de 1925. Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. 956 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de julho de 1925; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 10 de novembro de 1934; 13 de julho de 1935; 9 de outubro de 1936; 10 e 17 de fevereiro, 5 de julho, 24 de agosto de 1937, entre outras. 955 320 hospital957 e abrigo 958; o acompanhamento e busca pelos direitos de presos; e a defesa gratuita perante a polícia ou em júris959 ou com petição de habeas corpus e pagamentos de fiança para libertação de presos960); e doações realizadas por ele com recursos próprios ou por intermédio dele961. Ambos pautavam, também, atos do Major em favor de instituições de ajuda mútua e organizações assistenciais, geralmente, voltados à obtenção de recursos (como o pedido de concessão de subsídios pelo governo para a conclusão do Hospital Alfredo de Magalhães, em Salvador962); suas iniciativas para atender a demandas de grupos minoritários (construção de escolas963 e implementação de uma biblioteca na Casa de Correção964); sua participação em eventos cívicos (como a Marcha a Pirajá965), entre outros. Nos dois veículos – sobretudo, em O Imparcial –, prevalecia a abordagem de fatos ligados à obra de assistência social desenvolvida pelo Major. Em A Noite, predominavam os registros de mediação para recolhimento em hospital psiquiátrico (22); de participação em júris (13 matérias); e de referências a habeas corpus e pagamento de fiança para a concessão de liberdade a réus em processos criminais (13). Porém, também, eram recorrentes homenagens a terceiros e menções à sua intercessão em favor de instituições de ajuda mútua e organizações sem fins lucrativos; à disputa com o governador Góes Calmon e à iminência de sua prisão; à promoção e ao seu envolvimento em eventos cívicos (como a Marcha à Pirajá); ao encaminhamento para admissão em hospital e abrigo público, entre outros registros. Já em O Imparcial, das 423 matérias veiculadas sobre Cosme, 140 diziam respeito ao pedido e/ou à concessão de liberdade por ação daquele defensor, 94 referiam-se a internações em unidades manicomiais, 50 noticiavam o internamento no Hospital Santa Izabel por interferência do Major e 42 enfocavam a realização de júris com sua participação, entre outras. Res- 957 A NOITE. Salvador (BA), edições de 23 de dezembro de 1926 e 21 de janeiro de 1927; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 24 de janeiro, 10 de abril, 5 de maio, 30 de maio, 30 de julho de 1937, entre muitas outras. 958 A NOITE. Salvador (BA), edição de 29 de novembro de 1926, entre muitas outras. 959 A NOITE. Salvador (BA), edição de 23 de dezembro de 1926; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 27 de agosto e 11 de setembro de 1936; 8 de janeiro, 1º de maio, 15 de maio, 1º de setembro de 1937, entre muitas outras. 960 A NOITE. Salvador (BA), edições de 18 de novembro de 1926 e 10 de março de 1927; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 22 de janeiro e 28 de fevereiro de 1936; 1º de maio, 2 de julho de 1937, entre muitas outras. 961 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edições de 9 de setembro e 18 de outubro de 1934; 16 de novembro de 1935; 17 de julho, 19 de agosto, 26 de setembro e 5 de dezembro de 1936, entre outras. 962 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 23 de agosto de 1937. 963 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 8 de setembro de 1937. 964 A NOITE. Salvador (BA), edição de 27 de outubro de 1926. 965 A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de julho de 1925. 321 salte-se que os dois jornais pesquisados atuaram em campanhas eleitorais, inclusive a favor de Cosme, anunciando a candidatura em si ou eventos promocionais como comícios, por exemplo966. O agendamento, portanto, sofria variações de acordo com o perfil do impresso. Ambos os jornais analisados buscavam atingir os estratos mais baixos da sociedade da época, mas tinham motivações diversas para isso – A Noite voltava-se para as classes trabalhadoras por sua orientação ideológica, enquanto O Imparcial havia optado por esta via por uma questão estratégica, visando, entre outros propósitos, disseminar valores integralistas na Bahia, conforme explicitado anteriormente. A forte adesão dos dois à questão da assistência social, aparentemente, também, estava relacionada aos seus princípios editoriais e anseios – A Noite, um periódico voltado à defesa de causas sociais e às necessidades dos estratos “de baixo”; e O Imparcial, um órgão da elite que desejava estender sua circulação para melhor difundir o integralismo, por exemplo. Muitos textos dos dois jornais analisados – em especial, em A Noite –, explícita ou implicitamente, enobreciam o jornalista e suas ações, com uso de artifícios como o expressivo emprego da voz ativa que, quando repetitivo, pode levar o leitor a construir uma imagem positiva ligada à produtividade e proatividade do protagonista [“O major Cosme de Farias está convidando desde hontem, os amigos e admiradores do saudoso dr. Arlindo Fragoso...”967; “O sr. Cosme de Farias fez internar [...]”968; “O sr. Cosme de Farias dirigiu requerimento ao Diretor do Departamento da Instrução Pública do Estado [...]”969; e “O major Cosme de Farias fez recolher, hoje ao Asylo de Mendicidade, á Boa Viagem o cego e surdo José Pritinho, encontrado, no desamparo, no arraial do Cajueiro”970]. Na imprensa da Cidade da Bahia, quase não havia registros similares desta natureza envolvendo outras pessoas, afora os relativos ao Major. À época, eram raras as notas e notícias sobre ações individuais pontuais de políticos, intelectuais, benfeitores, mas faziam concessões ao publicar matérias assim quando o protagonista era Cosme de Farias. Aquela era uma prerrogativa dele. São exemplos: “Compareceram, hontem, a julgamento os réos Domingos do Sacramento e João José dos Santos, pronunciados por crime de morte. Accusados pelo promotor público, dr. João Bastos, e defendidos pelo sr. Cosme de Farias, foi o primeiro ab966 A NOITE. Salvador (BA), edição de 26 de janeiro de 1927; O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 9 de agosto de 1934. 967 A NOITE. Salvador (BA), edição de 18 de janeiro de 1926. 968 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 18 de novembro de 1934. 969 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 11 de maio de 1935. 970 A NOITE. Salvador (BA), edição de 12 de novembro de 1925. 322 solvido por 6 votos e o segundo condemnado a 3 mezes de prisão”971; e “Hontem pela manhã, o sr. Cosme de Farias internou, no São João de Deus, o operário Edgard da Silva [...]”972. Assim como os artigos, as notas sobre Cosme de Farias e suas ações, também, poderiam ganhar uma conotação coercitiva, na medida em que anunciavam pedidos do Major a terceiros, em geral, gestores públicos (“Ao dr. Agrippino Barbosa, Secretário de Educação e Saúde Pública do Estado, o major Cosme de Farias dirigiu hontem um appello para que seja fundada uma escola primária e mixta no bairro da Boca do Rio”973). A partir da análise do corpus e dos dados biográficos obtidos em periódicos e na bibliografia, é possível inferir que os impressos locais pautavam o jornalista e suas ações por ele forjar acontecimentos noticiáveis, que atendiam a requisitos de veiculação dos jornais como ser atual, de interesse público e inusitado; e utilizar sua condição de jornalista e seu prestígio para assegurar as inserções de conteúdo que desejasse nos veículos, inclusive nos períodos quando não estava empregado em redações. Os próprios textos evidenciavam certa cumplicidade entre Cosme e os colegas de profissão, ao se referirem a ele, às vezes, como “colega” e “confrade”. O Major promovia eventos passíveis de cobertura (como a marcha anual a Pirajá974, em meio aos festejos pela Independência da Bahia; e a celebração do aniversário da Liga Bahiana contra o Analfabetismo975), uma tática usual para a obtenção de visibilidade, embora ainda não tão disseminada na Bahia da época, como ocorre na contemporaneidade. Também, aproveitava um expediente comum entre os periódicos, ao promover e/ou contribuir e/ou apoiar campanhas beneficentes por meio de diários locais (chamadas de “subscrição”), para angariar fundos com o propósito de atenuar as dificuldades de subsistência de uma pessoa ou uma família ou reformar um equipamento público (monumentos etc.). Um exemplo foi a arrecadação promovida pelo professor de medicina Anízio de Carvalho para conservar o monumento ao poeta Castro Alves, prontamente aderida por Cosme, o que gerou menção em A Noite976. Assim, ele conseguia garantir até a publicação de matérias sobre sua vida pessoal, transformando fatos privados em textos sobre conteúdo de aparente importância para a sociedade. As coberturas dos preparativos e da realização do seu aniversário natalício, em abril, 971 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 12 de maio de 1936. O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 29 de janeiro de 1935. 973 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. 974 A NOITE. Salvador (BA), edições de 9 e 18 de julho de 1925. 975 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 9 de outubro de 1936. 976 A NOITE. Salvador (BA), edição de 18 de julho de 1925. 972 323 exemplificam isso. Apesar de esse material não constar no corpus dos dois jornais analisados, encontram-se notas e notícias em que uma “comissão de amigos e admiradores” de Cosme convida à população para festejos em homenagem ao intelectual, no acervo de bibliotecas e arquivos consultados para esta tese. A primeira delas data de março de 1916977. Como a cobertura de A Noite e O Imparcial remetia-se a fatos dos mesmos campos do agendamento promovido por Cosme nos artigos (política, assistência social e mobilização política e social, predominantemente), acredita-se que o conjunto de matérias veiculadas sobre o jornalista era um instrumento de legitimação do discurso manifestado por ele, nas Linhas Ligeiras, nos Ineditoriaes e nos artigos sem insígnias e, por conseguinte, auxiliava na legitimação dele mesmo, das suas proposições, dos seus pensamentos e dos seus atos. Os textos informativos serviriam para despertar empatia da população e, também, influenciar a opinião pública da Bahia a refletir e reagir frente aos conteúdos relatados, assim como os textos opinativos de sua autoria publicados em periódicos e o libelo Lama & Sangue. Possivelmente, tanto o material informativo quanto o opinativo serviram ao mesmo propósito: corroborar como a prática da caridade e a militância em movimentos sociais e políticos pelo Major, atividades que, também, alimentavam sua produção jornalística, gerando uma espécie de círculo virtuoso. 4.4 IMPLICAÇÕES DAS INVESTIDAS NA IMPRENSA Com ou sem consciência das possíveis dimensões das consequências das suas iniciativas e do seu modus operandi, Cosme de Farias conseguiu prestar assistência social e fomentar a mobilização pelo pleno exercício da cidadania, embora, por vezes, as estratégias e táticas adotadas por ele tenham falhado ou provocado sanções (como a perseguição e prisão no decorrer do mandato do governador Góes Calmon). Nem sempre é possível mensurar com precisão essa contribuição, mas os indícios coletados nesta pesquisa não deixam suspeição quanto à validade do esforço desprendido por ele. Em 96 anos de vida, o Major foi determinante para a alfabetização de milhares de crianças, jovens e adultos, por meio da construção de aproximadamente 200 escolas filantrópicas – várias, depois, absolvidas pela rede pública –, da formação de um grupo de professo977 GAZETA DO POVO. Salvador (BA), edições de 17 e 31 de março de 1916. 324 res voluntários – muitos dos quais leigos –, da doação de milhares de cartilha Carta do ABC e materiais escolares aos alfabetizadores e alfabetizandos, e da mediação para obtenção de vagas em unidades escolares mantidas pelo governo estadual, pelas prefeituras e por organizações não-governamentais. Ele, também, assegurou abrigo para centenas de pessoas, providenciando acolhimento em instituições públicas e filantrópicas para miseráveis e migrantes ou cedendo leitos a órfãos e indigentes no seu próprio lar, conforme já explicitado anteriormente nesta tese. Cosme interveio, ainda, para concessão de tratamento médico, em especial, psiquiátrico, a centenas de pessoas sem condições financeiras para custear a terapia e com dificuldades para acesso às instituições públicas; usou sua influência para conquistar vagas no mercado para centenas de trabalhadores; e fez, conforme seus próprios cálculos, cerca de 30 mil defesas978 como patrono ou auxiliar, em casos policiais e processos judiciais, muitas vezes, de desconhecidos. Até sua morte, colaborou para o funcionamento de diversas organizações beneméritas979, destinando recursos próprios, angariando verbas em campanhas junto à população ou pleiteando subsídios governamentais em nome delas. Em concomitância, o Major militou e liderou movimentos sociais e políticos. Alguns deles, estavam em consonância com suas ações assistenciais, a exemplo do combate à carestia e ao analfabetismo, e contribuíram para a garantia de direitos de grupos específicos, de acordo com as discussões travadas nos capítulos anteriores desta tese. Nesta frente, obteve êxito mediando conflitos trabalhistas e, possivelmente, contendo o ímpeto de empresários na majoração de preços980. Chegou até a conquistar quatro mandatos como vereador de Salvador (1947, 1950, 1958, 1962) e cinco como deputado estadual da Bahia (1915, 1917, 1919, 1921, 1970), o que corroborou para o sucesso das demais frentes. Ou seja, entre as repercussões do seu trabalho, estavam tanto a realização de atividades pontuais após sua intervenção (como a organização de uma missa em memória do exsecretário de governo de J. J. Seabra, Arlindo Fragoso, após uma reunião convocada pelo jornalista através de notas em periódicos981; e a obtenção de doações para o Albergue Nocturno 982); quanto, possivelmente, a constituição de uma espécie de ciclo virtuoso, em que as ma978 Carlos COELHO; Hamilton RIBEIRO. O Quitandeiro da Liberdade. Op. cit. p.124; Jorge AMADO. Bahia de Todos os Santos. Op. cit. p.199. 979 Cosme de FARIAS. Minhas Últimas Vontades. Op.cit.; DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DA BAHIA. Salvador (BA), edições de 7 de maio de 1959, 7 de julho de 1959; TRIBUNA DA BAHIA. Salvador (BA), edição de 17 de março de 1972; BAHIA DE TODOS OS FATOS. Op. cit. p. 212. 980 Mário Augusto da S. SANTOS. A República do Povo. Op. cit. p.147-183. 981 A NOITE. Salvador (BA), edições de 11 de janeiro e 6 de fevereiro de 1926. 982 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 5 de março de 1937, entre outras. 325 térias davam visibilidade e asseguravam legitimação a Cosme e à sua obra e, ao fim, contribuíam para a obtenção de novas adesões para manutenção do trabalho. Como as ações assistenciais do Major perduraram por mais de sete décadas, pode-se supor o êxito alcançado. Com tantos anos de atuação, Cosme de Farias tornou-se uma das personalidades mais populares da Bahia, no século XX, haja vista a repercussão da sua morte em 1972. À época, mais de 100 mil pessoas participaram de suas despedidas fúnebres e os impressos locais publicaram inúmeras páginas sobre sua trajetória. O Jornal da Bahia lançou, inclusive, uma edição extra com a notícia sobre o falecimento apurada na madrugada. Nas ruas, a população cochichava exaustivamente sobre o assunto. Contudo, de acordo com as fontes desta tese, a representação983 do Major, em vida e pós-morte, geralmente, estava associada à sua excentricidade, manifestada pelo uso de indumentária extemporânea e por pequenas manias (como beber cerveja quente), pelo cultivo de hábitos boêmios mas sem luxo, pela oratória e pela participação em eventos culturais e cívicos. Muitas vezes, destacavam os improvisos, as ironias, os fatos engraçados ou desconcertantes, em detrimento da assistência social prestada por ele, da sua militância, da diversidade de trincheiras em que ele lutou e do seu valor para a história cultural e política do Estado. Nessa perspectiva, foi abordado pelo livro ficcional Tenda dos Milagres (1969), de Jorge Amado; no documentário Major Cosme de Farias - o último deus da mitologia baiana (1971), do cineasta Tuna Espinheira; e em trabalhos memorialísticos como Gente da Bahia (1997), de Gutemberg Cruz, Pais e Padrastos da Pátria (1980) e Folclore Político: 1950 histórias (2002), de Sebastião Nery, e Pergunte Ao Seu Avô... Histórias de Salvador – Cidade da Bahia (1996), de Geraldo da Costa Leal. Quanto registrado na História oficial, comumente, era tratado superficialmente, em parcas linhas, como em Baianos Ilustres – 1567-1925 (1979), de Antônio Loureiro de Souza. Tais práticas, entretanto, também, tiveram implicações penosas para Cosme de Farias. Uma das mais evidentes foi a ira do governador empossado em 1924, Francisco Marques 983 O francês Roger Chartier pondera que o fenômeno social só tem sentido no mundo das representações, práticas e apropriações culturais e que o indivíduo apropria-se das representações da forma como lhe convém. Defensor da noção de cultura enquanto prática social, ele considera representação como algo que permite a exibição de uma presença e a visão de algo ausente e apropriação, como uma operação que envolve maneiras de utilizar produtos. Representação, por sua vez, conforme Le Goff (apud PESAVENTO, 1995), é uma tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração, cujo campo manifesta-se por imagens e discursos que buscam definir a realidade, mesmo que estas não sejam exatamente o real. Portanto, o campo da representação, os discursos ditos, pensados e expressos têm acepção distinta daquela manifestada. Ver em Roger CHARTIER. Introdução. Op. cit. p.26; Sandra Jatay PESAVENTO. Em Busca de uma Outra História. Op. cit. p.15; Ronaldo VAINFAS; Ciro F. CARDOSO. Op. cit. p. 153-155, 158. 326 de Góes Calmon, atestada por uma série de acontecimentos que configuravam a existência de perseguição contra o jornalista adversário. Os casos incluíam da observação de ambientes onde, supostamente, o Major arregimentava pessoas para oposição à administração estadual e ao governador à sua prisão, sob acusação de organização de uma trama contra a vida do inimigo político. Graças ao libelo Lama & Sangue984, lançado em 1926, Cosme protagonizou um dos episódios que atestam a censura à liberdade de expressão na Bahia dos anos 1920. A publicação gerou o acossamento e a prisão do autor e editor e teve circulação, oficialmente, proibida na Bahia pelo governo do Estado, sob argumento de que possuía teor insultuoso, em especial, à principal autoridade do poder executivo baiano. Porém, o libelo voltaria a ser comercializado posteriormente. Há registros da venda avulsa em 1930, quando Góes Calmon já havia sido substituído por Vital Henrique Baptista Soares, mas ainda era uma das lideranças políticas mais relevantes do cenário local, integrando o grupo cunhado naquela década de “autonomistas”. O próprio livro deixava claro que o contexto, desde o início da gestão calmonista em 1924, era adverso para ações oposicionistas de qualquer natureza. Em certo trecho, afirma-se: “Ninguém tinha o direito de articular uma palavra sequer contra essa clamorosa situação. O regimento do crê ou morre estava ferozmente plantado na Bahia”, afirma um dos trechos985. Muitos oposicionistas eram presos Brasil afora. O regime endurecia. Em 16 de julho de 1925, a presidência decretou estado de sítio na Bahia e em Sergipe, como desdobramento de medidas tomadas em São Paulo e no Rio de Janeiro para evitar ações golpistas. Sucederam-se meses de liberdade limitada e vigiada. Uma sombra cinzenta tomava a população da Bahia por assalto, naquele momento. Pontualmente, às 23 horas, um toque determinava o recolhimento das pessoas em casa; o governo passava a exigir prévia autorização da Prefeitura para saída da cidade e do Estado e impunha restrições ao conteúdo da imprensa. Porém, ainda assim, Cosme resolveu desafiá-lo. E o fez, por meio da imprensa periódica, de aparições em espaços públicos e de Lama & Sangue. A contenda em torno deste libelo foi apenas mais uma desta ordem envolvendo o Major. Na sua Ficha de Inscrição na Associação Bahiana de Imprensa986, em 1930, entre as penalidades já sofridas no exercício da profissão, ele mesmo admitiu já ter sido preso na Bahia, várias vezes, por questões políticas, mas não indica datas nem detalha os motivos das 984 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. Id. Ibid. 986 Cosme de FARIAS. Ficha de Inscrição na Associação Bahiana de Imprensa. Op. cit. 985 327 repreensões. A primeira identificada nesta pesquisa ocorreu ainda em 1925, quando ele se tornou alvo declarado da polícia. Em 1925, ele tornou-se suspeito de participação em um conluio para assassinar o governador Góes Calmon, por meio de uma explosão à dinamite marcada para o dia 9 de março de 1925, conforme relata o próprio jornalista987; ou para sua deposição e deportação, seguidas de mudança geral na administração estadual, de acordo com jornais da época988. Acuada, a vítima solicitou a prisão do jornalista, após o ex-sargento do Exército Fernando de Luna Freire, espontaneamente, indicá-lo em depoimento como um dos responsáveis pelo complô. Por 30 dias, Cosme ficou em exílio voluntário na casa de amigos, na tentativa de se safar dos policiais, porém, não interrompeu seu trabalho diário. Do esconderijo, ele enviou três cartas ao governador, impetrou três petições de habeas-corpus preventivo para si à Justiça Estadual e à Justiça Federal e, também, fez alguns de seus artigos chegarem a redações de jornais locais. Uma das táticas de pressão do governante para revisão do caso, adotadas pelo jornalista, foi a manifestação de indignação por terceiros. No dia 6 de abril, um amigo dele, conhecido como Marcolino Figueiredo, por exemplo, publicou um artigo no Diario de Noticias clamando sua liberdade. Dizia um trecho989: Cosme de Farias está foragido, escondido! Procurado pela polícia como criminoso de lesa-lealdade!? Os corações caridosos lhes abrem! Oh! Exmo. Sr. Governador! Em nome dos desvalidos! Em nome dos desgraçados que não podem por mais tempo sentir falta desse ‘feio bom’! Abrandai as iras da polícia! Perdoe a Cosme, pela Sagrada Morte e Paixão do Senhor Jesus Christo! Sem sucesso na empreitada e sem dinheiro para continuar foragido, o jornalista entregou-se à polícia 990 em 9 de abril de 1925, ao comparecer à sede da Secretaria de Segurança Pública do Estado, em Salvador. Logo, prestou depoimento e foi acareado com o ex-sargento e outros dois arrolados, Joaquim Costa e Agenor Meirelles, com assistência de um advogado 987 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p.105-110. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 11 de abril de 1925; A NOITE. Salvador (BA), edição de 9 de abril de 1925. 989 Marcolino FIGUEIREDO. Ineditoriaes - Cosme de Farias. Diário de Noticias. Salvador: Diário de Noticias, 6 abr. 1925. 990 DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador (BA), edição de 11 de abril de 1925. 988 328 do Estado. Pernoitou na Secretaria, na condição de preso político, sob constante sentinela policial. Somente na manhã do dia 10 recuperou a liberdade. Oito dias depois, publicou um novo texto991 agradecendo o apoio recebido e dedicando aos seus “perseguidores” o “desprezo de homem que nunca fez mal a ninguém” e o perdão da sua “consciência de cristão”. No ano seguinte, em Lama & Sangue, chamou o ex-sargento Luna Freire de “gatuno conhecido e typo de costumes asquerosos” e ratificou que o plano contra Góes Calmon nunca ocorreu. Alegava que havia sido, mais uma vez, alvo da cólera do oponente. Os conflitos prosseguiram com outros episódios de menor virulência, que trazem a esta pesquisa novos indícios da existência de uma perseguição a Cosme. Um dos casos foi noticiado pelo impresso A Noite992: a Polícia teria destacado uma equipe para fiscalizar a atuação do jornalista no dia 10 de janeiro de 1926, no seu escritório, na Rua da Assemblea, no Centro da Cidade, onde ele iria reunir-se com “comunistas” para possível articulação contra o governo e o governador. A ação, que teria sido motivada por uma denúncia aos policiais, foi abortada por falta de evidências contra o Major. O embate acalorado com Góes Calmon, pontuado por ameaças mútuas, escapuliu ao modus operandi de Cosme de Farias. Notadamente, ele conviveu, negociou e, em certos momentos, cedeu, frente às condições sociais, políticas, econômicas e culturais vigentes na Bahia de sua época, conforme explicitado em capítulos anteriores desta tese. No governo calmonista, por cumplicidade a Seabra e/ou revide em decorrência da perda de posição política no cenário local, tornou-se alvo em potencial de aplicação da primeira Lei de Imprensa do País (Lei nº 4.743). Ao desenvolver e editar material ofensivo à principal autoridade do poder executivo baiano, ele desafiou o governo e ficou propenso à aplicação da Lei, no que se referia às multas pecuniárias e à prisão. As ações do poder instituído contra Cosme tinham amparo legal, pelo menos no que se referiam à sua conduta na imprensa. Afora a possibilidade de aplicação do Código Penal993 de 1890, elas poderiam ser interpretadas como infração à Lei nº 4.743, conhecida como Lei Adolfo Gordo, em referência ao senador paulista redator do projeto, e sancionada em 31 de outubro de 1923, em meio à instabilidade provocada pelo estado de sítio decretado pela Presidência. A partir de então, estavam institucionalizados mecanismos de controle da atuação de veículos e de jornalistas, que incluíam até medidas de força em todo o Brasil, inclusive na 991 Cosme de FARIAS. Lama & Sangue. Op. cit. p. 105-110. A NOITE. Salvador (BA), edição de 11 de janeiro de 1926. 993 Sérgio MATTOS. O Controle dos Meios de Comunicação. Salvador (BA): EdUFBA, 1996, p.34. 992 329 Bahia. E o Major era apenas mais uma das vítimas da mordaça estabelecida pelo Estado. A Lei Adolfo Gordo estabelecia a responsabilidade penal ao proprietário do veículo, dono da gráfica responsável pela impressão, autor, editor, vendedores e distribuidores; previa multas pecuniárias e até prisão para quem publicasse segredos de Estado ou ofensas contra o presidente da República, chefes de estado e nações estrangeiras; determinava o direito à prisão especial para jornalistas; proibia o anonimato para edição de artigos; inovava ao assegurar ao ofendido o direito de resposta no veículo que maculasse sua imagem; e, por fim, disciplinava a inscrição de jornais e tipografias em cartório994. Portanto, ela oficializava e regulava o controle do Estado sobre os veículos brasileiros, que, àquela altura, transitavam, lentamente, do caráter ideológico e político para o comercial e ensaiavam a autonomia econômica, em relação ao repasse de recursos dos governos. Embora fosse mote de protestos de jornalistas e políticos, a nova Lei995 inovava em relação ao decreto996 anterior, ao substituir a tradição legislativa da responsabilidade sucessiva para os crimes de imprensa e a censura prévia pela teoria da responsabilidade solidária. Não obstante as tentativas de controle da mídia e dos jornalistas pelo poder central datassem da época colonial997, a censura aos veículos e profissionais de comunicação no Brasil – e, por conseguinte, na Bahia – atingiu seu auge no século XX. Sinais de reprimenda ganharam notabilidade já na Primeira República, a despeito de o Estado Novo, sob domínio do gaúcho Getúlio Dorneles Vargas, entre 1937 e 1945, e o período de vigência do Estado autoritário pós-golpe civil-militar de 1964, sob a possessão de militares entre 1964 e 1985, serem disseminados como as principais fases de restrições à livre expressão na história brasileira998. O modus operandi daquela época, contudo, divergia do adotado nas repressões da Era Vargas e do regime militar. Não existiam órgãos específicos para acompanhamento e controle da veiculação de conteúdo na sociedade. Todavia, ocorria limitação do conteúdo a ser 994 Tânia Regina de LUCA. A Grande Imprensa no Brasil da Primeira Metade do Século XX. In: 9ª Conferência Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). Op. cit. 995 Vinícius Ferreira LANER. A Lei de Imprensa no Brasil. Jus Navigandi. Ano 5, nº 48. Teresina: Jus Navegandi, dez. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=146>. Acesso em: 13 mar. 2009. 996 Até então, vigorava o Decreto nº 4.291, de 17 de janeiro de 1921, concebido para reprimir o anarquismo no Brasil e estabelecer limite à liberdade de expressão por meio de instituições diversas e não, especificamente, da imprensa. Vinícius Ferreira LANER. A Lei de Imprensa no Brasil. Jus Navigandi. Op. cit. 997 Pairam dúvidas, por exemplo, quanto ao mérito do Correio Braziliense ser o primeiro jornal brasileiro, exatamente, porque ele era impresso em Londres, na Inglaterra, e apenas distribuído no Brasil, como uma tentativa de fugir ao rigor da censura imposta pela Coroa Portuguesa. Sobre a história da censura no Brasil, ler LANER, Vinícius Ferreira. A Lei de Imprensa no Brasil. Jus Navigandi. Op. cit.; Sérgio MATTOS. Mídia Controlada. Op. cit. 998 Ambos são marcados por normas regulamentadoras, redes formadas por órgãos representantes do Estado e censores, perseguição a jornalistas e veículos, e intensa propaganda do governo, sobretudo, com os objetivos de conter a oposição e legitimar as medidas tomadas pelos governantes. 330 publicado e tornaram-se, de certa forma, corriqueiros o empastelamento de periódicos e a detenção e/ou prisão de quem praticava o jornalismo como profissão ou utilizava-se dele como mecanismo para disseminar sua visão de mundo. Com a transição no governo estadual, o clima arrefeceu. Mas a calmaria não durou muito tempo. Em 4 de outubro de 1930, Cosme voltou à cadeia. Desta feita, foi surpreendido em uma ação que resultou na reclusão de outros três jornalistas Joel Presídio e Alfredo Lopes, em Salvador, e Franklin Queiroz, no interior baiano, por envolvimento na manifestação conhecida na historiografia como “Quebra-bondes”999. Na época, uma multidão destruiu veículos, oficinas e edifícios da Companhia Linha Circular de Carris Urbanos (empresa estrangeira que ofertava os serviços de transportes na cidade) e do jornal A Tarde, em repúdio à majoração das tarifas cobradas nos meios de transportes ou, de acordo com outra versão, ao desrespeito da Carris Urbanos à Bandeira Nacional, símbolo do País estendido entre tapumes em obra do Plano Inclinado. Aparentemente, não havia relação com a “Revolução de 1930”, que eclodiu no dia anterior em vários estados (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco), mas sem envolvimento da Bahia, e determinou a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas ao poder. As lideranças do quebra-quebra em Salvador eram desconhecidas e havia dificuldade de identificá-las com precisão, porque o evento envolveu uma multidão e dissipou-se por vários pontos da cidade. As punições, portanto, recaíram sobre suspeitos como Cosme de Farias, de forma exemplar. Havia motivos para desconfiar dele. Primeiro, o jornalista poderia estar tentado a aderir aos “revolucionários”, na expectativa de que seu líder, Seabra, e sua corrente política recobrassem as forças perdidas no passado. Em segundo lugar, ele era um reconhecido patriota, autor de inúmeras ações pela adoração aos símbolos nacionais, capaz de declarar seu amor ao Brasil a todo o momento e, portanto, vulnerável a insultos como o uso indevido do Pavilhão da Pátria por forasteiros. Era plausível que, irritado, reagisse ao erro dos funcionários da Carris. Em terceiro, naquele período, ele militava no movimento contra carestia e pela melhoria do poder aquisitivo da população e coordenava ações públicas contrárias ao aumento de preços de alimentos e aluguéis. Por conseguinte, qualquer que fosse o estopim do Quebra-bondes, Cosme identificava-se com a causa e poderia envolver-se e, quiçá, organizar o protesto, com sentimentos que suplantavam, inclusive, o respeito que pudesse nutrir por A Tarde e seus dirigentes, então colegas de profissão e companheiros na Associação Baiana de Imprensa (ABI). A seu favor, 999 Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit. p.20-21. 331 havia o passado de reivindicação, mas sem esta dimensão. Nesse caso, se fosse confirmada sua responsabilidade, poderiam ser aplicadas as medidas previstas pelo Código Penal em vigor, considerando a perturbação da ordem e a destruição do patrimônio alheio, por exemplo. Por intervenção da ABI, junto ao secretário de Segurança Pública, Pedro de Azevedo Gordilho, e ao governador interino, Frederico Costa1000, Cosme, Presídio e Lopes foram libertados, quatro dias depois dos acontecimentos. A diretoria da Associação, então, combinou e lavrou em ata que o episódio não seria noticiado pelos jornais locais, o que explica o silêncio da imprensa sobre o caso. Em concomitância à ação em favor dos acusados, a administração da Associação1001 deliberou pela emissão de manifestação de solidariedade aos confrades do vespertino A Tarde, vítimas dos atos de dia 4 de outubro daquele ano. Os associados da ABI enfrentavam um quadro de difícil gestão. De um lado, profissionais de imprensa – que, por princípio, deveriam ser defendidos pela agremiação – estavam cerceados da liberdade. Cosme, por exemplo, tinha ligação profunda com a instituição1002, porque, além de membro-fundador da agremiação, foi seguidas vezes (pelo menos entre 1943 e 1972) eleito suplente ou titular da comissão fiscal e de contas da Associação e pleiteou benefícios para a categoria durante seus mandatos parlamentares. De outro, estavam pessoas agredidas no exercício da sua função, inclusive associados, em retaliação a um possível apoio à majoração das tarifas pelo A Tarde, jornal cuja diretoria, também, contava com membros-fundadores da entidade (como Ranulpho Oliveira, seu primeiro presidente). Diante do constrangimento, optou-se pela dupla intervenção. Uma em benefício dos jornalistas presos, Cosme e os demais colegas de profissão, e outra pela salvaguarda da imagem do periódico e em apoio a ele e à sua equipe, igualmente constituída por jornalistas. Ao que se percebe, as eventuais perseguições, retaliações e prisões de Cosme, no decurso da sua carreira jornalística, eram consequências diretas da sua militância e prática jornalística, ora como proprietário e gestor de jornais, ora como colaborador. Ou seja, dos usos que ele fazia da imprensa. 1000 ASSOCIAÇÃO BAHIANA DE IMPRENSA. Ata da de Reunião de Diretoria da Associação Bahiana de Imprensa nº 1, realizada no dia 13 de outubro de 1930. Salvador (BA), 1930. Livro 01. 1001 ASSOCIAÇÃO BAHIANA DE IMPRENSA. Ata da de Reunião de Diretoria da Associação Bahiana de Imprensa nº 1. Op. cit. 1002 Nelson Varon CADENA. Associação Bahiana de Imprensa 1930-1980, 50 anos. Op. cit. p.41-97. 332 4.5 ENTRE O JORNALISMO ASSISTENCIAL E O JORNALISMO MOBILIZADOR Quando imerso no universo lúdico da adolescência, as letras se constituíram para Cosme de Farias, possivelmente, apenas como uma possibilidade de manifestação de seus sentimentos, suas crenças, suas ideias, seus desejos. O poder da pena, naquele momento, era restrito em sua vida, tinha o tamanho dos seus sonhos e das suas aflições de menino recémsaído da infância. Talvez, sequer atraísse alguma atenção dos adultos, considerando-se sua idade e a condição de mulato semialfabetizado. Contudo, aos poucos, as letras tornaram-se para ele um poderoso instrumento de luta, um meio para instigar o debate, estimular a adesão às suas proposições e à sua obra, impulsionar para a ação, como já debatido nesta tese. Através da imprensa, Cosme divulgou demandas sociais e delatou casos de falhas do governo, de governantes e do empresariado; criticou e protestou; agendou fatos e temas para discussão no seio da sociedade; opinou sobre possíveis soluções de problemas e buscou apoio para reversão de situações negativas, conforme discutido anteriormente. Naquela tribuna, colocava-se como um porta-voz dos estratos sociais “de baixo”, um representante dos excluídos pelos impressos então dominados, sobretudo, pela elite política e econômica local. Instrumentalizada pelo Major, a imprensa integrava o conjunto de estratégias e táticas adotadas por ele para amenizar ou até aplacar o sofrimento dos “de baixo”, um recurso relevante para viabilizar suas ações de assistência social, assim como era a política, por exemplo. Quanto a isso, sua visão ficou evidente no texto Hymno aos Jornalistas1003, publicado em 1933, na coletânea Estrophes, de autoria do próprio Cosme de Farias: Hymno aos Jornalistas Defendendo a Liberdade, Pela Grandeza do Povo, Contra o germem da maldade Soltemos um grito novo! [...] Da tribuna gloriosa Fundada por Gutemberg Levemos a luz formosa Desde o palácio ao albergue. [...] Jamais dobremos a fronte Ao terror do despotismo: 1003 Cosme FARIAS. Estrophes. Op. cit. p.14-15. 333 DEUS – é um bello HORIZONTE, Lindo pharol – o CIVISMO. Façamos das nossas armas, Caneta e penna aparada, Às vezes clarins de alarmas, Às vezes rosa orvalhada. [...] No texto, o Major afirma considerar a imprensa uma “tribuna gloriosa”, capaz de levar informações, conhecimento, “luz”, a todos os estratos da sociedade, do “palácio ao albergue”; e, também, convoca os confrades jornalistas a transformarem seu ofício em “armas” contra a tirania, ora formulando denúncias de fatos prejudiciais à população e intimidando déspotas – portando-se como “clarins de alarmas” –, ora destacando trabalhos voltados ao bem-comum – agindo como “rosa orvalhada”. O principal seguidor deste arquétipo preconizado no Hymno aos Jornalistas era o próprio Cosme. O modus operandi de Cosme de Farias caracterizava-se pela concomitante articulação da sua inserção na imprensa com suas atividades de assistência social e, também, da sua participação na imprensa com a militância em movimentos sociais e políticos, a despeito das tensões que a aproximação destes campos pudessem desencadear. Ora registrava-se uma destas associações; ora, outra. E, pela análise dos periódicos e do livro Lama & Sangue, estas simbioses ocorreram em momentos diferentes e envolvendo veículos com orientações políticas e ideológicas e linhas editoriais diversas, apesar de ser perceptível a influência da origem, filiação e visão de mundo de cada um deles na publicação de matéria de autoria do Major ou sobre ele. De acordo com a observação do corpus desta pesquisa, em O Imparcial, na sua fase integralista, nos anos 1930, por exemplo, eram mais recorrentes textos jornalísticos sobre a educação e o trabalho desenvolvido pela Liga Bahiana contra o Analfabetismo, fundada pelo jornalista. A escolha justificava-se pela afinidade deste jornal e dos seus mantenedores (os integralistas) com a temática, devido à instituição e ao uso da “educação” como um dos principais pilares do integralismo. Combativo, oposicionista e voltado a segmentos mais populares, A Noite, por sua vez, publicava mais comumente material sobre mobilizações sociais e políticas, como as manifestações contra a carestia. Suas estratégias, entretanto, não se restringiam aos periódicos e a Lama & Sangue. Afora a veiculação de textos de sua autoria e sobre si em impressos, ele recorreu a outros artifícios para manter este círculo. O Major valeu-se, por exemplo, do lançamento de livros literários; da organização de eventos cívicos e sociais (tributos, o próprio aniversário etc.) e participação de celebrações religiosas, cívicas e festivas, manifestações reivindicatórias (como 334 desfiles, passeatas) e greves, visando a repercussão de causas sociais e políticas entre os demais militantes e por meio da cobertura jornalística. Ressalte-se que ele, também, recorreu à realização de abordagem corpo a corpo em meetings e atos públicos desde os primórdios da República, utilizando linguagem simples e recursos como a ironia e até certo humor, para ampliar o alcance dos seus discursos; e à construção de uma imagem excêntrica para si, ao se vestir como se fosse um homem do Império, beber cerveja quente e encaminhar pedidos de auxílio a terceiros junto com presentinhos, entre outros gestos. Portanto, antes mesmo da eclosão da comunicação institucional estratégica e do marketing pessoal na Bahia1004, ocorrida somente a partir dos anos 1960, ele já utilizava a imprensa e outros recursos de comunicação e marketing para disseminar e legitimar seus propósitos, suas ideias e suas ações. E, indubitavelmente, isso contribuiu para o êxito das atividades exercidas por ele fora das redações, especialmente nas ações assistenciais e na militância em movimentos políticos e sociais, de acordo com as pistas recolhidas na pesquisa para esta tese. A articulação da atividade na imprensa com a assistência social, identificada na cobertura jornalística de e sobre Cosme de Farias e no seu modus operandi em relação à imprensa, possibilita a caracterização de uma modalidade singular do jornalismo, aqui denominada de Jornalismo Assistencial (JA). Trata-se da difusão por um jornalista, de ideias, projetos e/ou ações de si próprio ou de terceiros, em veículos de caráter jornalístico, por meio de formatos inerentes aos gêneros informativo e opinativo (artigos, notas, notícias) com elementos voltados à persuasão ou coerção para ação de agentes capazes de solucionar a questão, visando atender a demandas essenciais de um indivíduo ou grupo para o pleno exercício da cidadania (tais como alimentação, atendimento médico, moradia, acesso à alfabetização) ou de uma instituição assistencial. A imprensa, neste caso, pode prestar-se como um instrumento de mobilização de um indivíduo ou grupo social, um governo ou uma organização privada com ou sem fins lucrativos, em favor do bem de um sujeito ou segmento da sociedade civil em risco pessoal ou de uma organização assistencial, por meio de ações emergenciais. Ressalte-se que, neste sentido, ela prestava-se à legitimação do assistencialista e das entidades as quais pertence, visando fortalecer, intensificar e ampliar seu trabalho assistencial. Portanto, não há instrumentalização para benefício próprio. 1004 Esta articulação, contudo, escapa à proposta desta tese, podendo originar um novo trabalho acadêmico no futuro. 335 O conceito refere-se à interação da imprensa com a assistência social, nos moldes adotados por Cosme de Farias, objeto de estudos desta tese. Conforme discutido no capítulo anterior, Cosme apresentava características comuns ao assistencialismo (como a dedicação a causas emergenciais e individuais; a manifestação filantrópica, sobretudo, através de doações; a personificação das obras), mas distanciava-se dessa corrente por não aderir ao clientelismo – um dos aspectos fundamentais da cultura assistencialista e muito comum na Bahia da época – e manter práticas intrínsecas à assistência social1005, antes mesmo deste conceito ser cunhado. Decerto, o Jornalismo Assistencial, comum na experiência de Cosme, difere da modalidade designada de jornalismo de serviços1006 (ou jornalismo utilitário, ou jornalismo de utilidade pública), que se caracteriza pela oferta à audiência de informações de ordem prática acerca de áreas diversas (meteorologia, cultura e artes, economia, questões emocionais e sentimentais etc.), visando informar – e não, persuadir – e subsidiar a tomada de decisões pelos leitores/ouvintes/expectadores quanto a demandas do dia-a-dia, relacionadas ou não aos direitos essenciais do ser humano, majoritariamente por meio de formatos do gênero informativo (notícias, notas etc.). José Marques de Melo1007, um dos principais teóricos do jornalismo no Brasil, considera o jornalismo de serviço ou utilitário como aquele que atende a necessidades concretas do público, referentes à cultura, ao entretenimento, à economia, à política e às suas necessidades básicas de sobrevivência (saúde, educação, habitação etc.), utilizando formatos diversos (roteiros, agenda de eventos, indicadores econômicos, previsões do tempo, dicas e orientações úteis ao dia a dia, avisos, comunicações, convites, convocações, votos de felicitação ou agradecimento, obituário). Para ele1008, é um gênero jornalístico independente em potencial e, no Brasil, às vezes, apresenta-se como sub-gênero do jornalismo informativo. Outro relevante 1005 A assistência social baseia-se no princípio de que todos, igualmente, são titulares de direitos e consiste na garantia do acesso universal aos direitos previstos em lei, por meio de políticas públicas destinadas a atender demandas e solucionar definitivamente problemas de um indivíduo ou grupo social, que envolvam o poder público e o grupo assistido, e de ações de apoio emergencial ou permanente apenas em casos específicos. Aldaíza SPOSATI. A Assistência Social Brasileira. Op. cit. p.13-21; Miguel FONTES. Existe Algum Problema em Ser Assistencialista? In: Fórum de Marketing Social do Brasil. Op. cit. 1006 Tyciane Cronemberger Viana VAZ. Jornalismo de Serviço: o gênero utilitário na mídia impressa brasileira. In: Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Curitiba: Universidade Positivo; São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 4-7 set. 2009. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-0735-1.pdf>. Acesso em 12 jan. 2011; Manuel Carlos CHAPARRO. Sotaques D’aquém e D’além Mar: travessia para uma nova teoria de gêneros jornalísticos. São Paulo: Summus, 2008; Plínio BORTOLOTTI. O Povo. Observatório da Imprensa. São Paulo: Observatório da Imprensa, 25 out. 2005. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa .com.br/artigos.asp?cod=352VOZ003>. Acesso em 12 jan. 2011. 1007 José MARQUES DE MELO. Jornalismo Opinativo. Op. cit.; José MARQUES DE MELO. O Desafio do Estudo dos Gêneros. Op. cit. 1008 Id. Ibid.; Id Ibid. 336 estudioso do campo, Alberto Diniz 1009 pondera sobre a importância do JS: “O homem se informa para poder municiar-se devidamente e resistir. O jornal, pela periodicidade diária, é o melhor instrumento para o fornecimento desse material utilitário que vai tornar a existência, na sociedade organizada, possível e mais fácil”. A prestação de serviços pela imprensa surgiu ainda no século XVI, na primeira fase do jornalismo, nas chamadas “Folhas Volantes”, com informações sobre movimentação nos portos e valores de tributos, em decorrência de fatores culturais, econômicos e políticos como a urbanização das cidades e a ascensão do capitalismo e da concorrência. Somente no século XX, consolidou-se como elemento constituinte dos espaços dedicados às editorias de cultura e economia, por exemplo. Para Marques de Melo1010, ele firmou-se com o incremento da oferta de revistas segmentadas, que exploravam temas relacionados ao bem-estar da família e dicas sobre decoração, moda e economia doméstica, por exemplo, visando atender a demandas imediatas dos leitores. No Brasil, ele surgiu junto com a própria imprensa, como explica Tyciane Vaz1011: A função utilitária e orientadora do jornalismo surge com o nascimento da imprensa brasileira. O gênero se faz presente desde o surgimento da imprensa brasileira, com a publicação de preços de produtos no mercado, em 1808, no jornal Correio Brasiliense. Nas primeiras edições da Folha, ainda denominada Folha da Manhã, na década de 1920, identificou-se vários elementos do gênero utilitário, como notas necrológicas, resultados de loterias, lista de objetos achados, cotações de produtos no mercado e roteiros de cinema e teatro. Mesmo tendo surgido com a práxis do jornalismo, é preciso considerar que a legitimação do gênero utilitário realmente acontece após o processo de industrialização do país. A intensificação da urbanização e suas decorrências determinam a importância dessa espécie de jornalismo, e isso acontece ainda nos dias atuais. Por seu uso predominante como recurso para a conquista de audiência e, por conseguinte, aumento das vendas de exemplares, o jornalismo de serviço desencadeou o surgimento de uma polêmica quanto à sua validade. Para uns, os benefícios ao público-consumidor, diante da facilitação da resolução de causas imediatas, compensam o risco de perda da essência do jornalismo – informar para formar massa crítica da realidade e mobilizar – como consequência do uso desenfreado da modalidade como parte de uma estratégia mercadológica para in1009 Alberto DINIZ. O Papel do Jornal – tendências da comunicação e do jornalismo no mundo em crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Artenova S/A, 1974, p.94. 1010 José MARQUES DE MELO. Jornalismo Opinativo. Op. cit.; José MARQUES DE MELO. O Desafio do Estudo dos Gêneros. Op. cit. 1011 Tyciane Cronemberger Viana VAZ. Jornalismo de Serviço: o gênero utilitário na mídia impressa brasileira. In: Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Op. cit. p. 13-14. 337 cremento da circulação dos produtos jornalísticos. Para outros, não. O JS aliena por reunir informações estanques, dirigidas à solução de questões pontuais, sem apresentar interpretação, contextualização e problematização, e, também, por estimular o consumismo na sociedade, confundindo-se com guias comerciais de publicação e venda de produtos e serviços. Independentemente desta versão escolhida, o jornalismo de serviço volta-se à informação e orientação de uma massa de leitores, prestando auxílio direto na vida diária dessas pessoas, tratando-as como clientes em potencial para aumento da venda de exemplares e, por conseguinte, da receita do veículo. Neste caso, prepara-se o leitor para que ele mova-se, aja, tome medidas para resolver seus próprios problemas do dia-a-dia, como escolher o filme a ser assistido no final de semana ou o lugar onde adquirir os alimentos da família ou saber como evitar assaltos. O Jornalismo Assistencial, ao contrário, busca a legitimação de agentes assistenciais e o convencimento ou coerção de terceiros para a assistência social, visando o bem-estar de um indivíduo ou grupo ou o auxílio a uma organização filantrópica. As duas modalidades são diversas, embora possam ter aspectos em comum. Um exemplo de aplicação desta modalidade tinha Cosme como protagonista. O Major fazia JA. Por meio da imprensa, ele incitava terceiros para obtenção de ajuda material (doações em dinheiro etc.) para posterior repasse a um indivíduo ou grupo ou entidade beneficente e facilitação do acesso a serviços públicos (como escolas, hospitais e abrigos) e a empregos, entre outros objetivos desta mesma natureza. Ele prestava assistência social por meio do jornalismo; a imprensa auxiliava-lhe na manutenção da sua obra assistencial. Talvez, o modus operandi de Cosme tenha sido forjado a partir da convivência com o jornalista Amaro Lelis Piedade1012, diretor do Jornal de Notícias responsável por sua iniciação na imprensa. Deputado estadual entre os séculos XIX e XX, Piedade era defensor da abolição da escravatura e do regime republicano, e patrono das vítimas da Guerra de Canudos, conflito civil ocorrido no Sertão baiano, entre 1896 e 1897, que culminou com a destruição do Arraial de Canudos (então com mais de 5 mil casas), mortes e prisões. Àquela altura, já era admirado inclusive pelos adversários, devido à postura moderada, pelo tom pacífico adotado para apresentar seus pontos de vista e por iniciativas como a criação da seção Chronica do Bem, em defesa dos direitos de pessoas pobres, viúvas e órfãos. É possível que Piedade, também, aplicasse o Jornalismo Assistencial, mas, para confirmar isso, é necessário desenvolver uma nova pesquisa. 1012 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 21 de janeiro de 1935. 338 A articulação da atividade na imprensa com a mobilização da população para a reivindicação de direitos e benefícios sociais, observada nas matérias de e sobre Cosme de Farias e no seu modus operandi em relação à imprensa, por sua vez, permite a sistematização de outra modalidade de jornalismo, denominada nesta tese como Jornalismo Mobilizador (JM). O JM consistiria na disseminação por um jornalista, de ideias, projetos e/ou ações de si próprio ou de terceiros, em veículos jornalísticos, por meio de formatos dos gêneros informativo e opinativo (artigos, notas, notícias) voltados à persuasão do leitor para aderir a ele, às suas proposições e aos seus atos e, também, reagir ao fato ou tema apresentado, protestar e militar em prol ou contra um acontecimento ou uma causa (contra a majoração dos preços, pela escolarização, por melhores salários etc.) pelo bem de um segmento da sociedade civil. O JM refere-se, portanto, à interação da imprensa com movimentos de cunho político e social, para fortalecimento e ampliação da militância e, por conseguinte, incremento das chances de êxito das ações reivindicatórias, garantia dos direitos previstos pela legislação e atenção das demandas originárias da mobilização. Assim, mantém uma relação intrínseca com a noção de cidadania, à participação dos indivíduos no processo de construção e implementação de políticas e ações que assegurem qualidade de vida e bem-estar a si e ao seu grupo social. No Jornalismo Mobilizador, prima-se pela focalização de fatos e temas de relevância para um grupo social e de cunho local – neste caso, a Bahia e Salvador –, mesmo que eles não estejam agendados naquele momento; pelo emprego de táticas para a sedução do público, muitas vezes, destoantes das práticas jornalistas e inerentes à literatura, por exemplo; pelo contato com a população para levantamento das suas demandas e dos seus problemas, que possam servir como pauta das matérias; pela oferta de informações associada à indicação de possíveis soluções para os problemas apresentados na cobertura; e pela persuasão do leitor, visando a adesão às questões expostas pelo jornalista e a reação. Na análise da produção de e sobre Cosme de Farias, registra-se a ocorrência do que ora define-se como Jornalismo Mobilizador, ao mesmo tempo que se identifica evidências da prática do Jornalismo Assistencial. Ele procurava agendar fatos e temas de/sobre os grupos com os quais guardava relação de proximidade – geralmente, com papel subalterno na sociedade (réus em processos policiais e judiciais, presidiários, analfabetos, trabalhadores, indigentes, pessoas com transtornos mentais etc.) – e, portanto, de interesse local; adotava recursos literários, reproduzia adágios, fazia citações a Deus etc.; mantinha contato intenso com a população, o que podia lhe facilitar a identificação de demandas e problemas que pudessem gerar pautas; e promovia ou participava de campanhas na imprensa. 339 Cosme, também, apontava alternativas para remediar ou solucionar os problemas discutidos nos textos, além da própria matéria se constituir como um meio para resolvê-los em uma simbiose com o Jornalismo Assistencial; e tentava incitar a audiência para apoio a ele e às suas colocações e propostas. Em 1937, por exemplo, escreveu sobre o sistema de recolhimento, reeducação e reinserção social de adolescentes infratores de Salvador1013, em detrimento da polêmica em torno da extinção dos partidos políticos e de assuntos relativos a outros Estados ou países, utilizando mecanismos narrativos que pudessem seduzir, instar a tomada de decisões e a ação acerca do exposto. O Jornalismo Mobilizador aproxima-se daquilo que se denomina jornalismo cívico (civic journalism, JC) ou jornalismo público (public journalism, JP), que consiste na atuação da mídia jornalística, junto à comunidade na qual está inserida, para fomento do debate público e da ação pela cidadania, inclusive com o rompimento de rotinas, procedimentos e princípios intrínsecos ao jornalismo como a busca da objetividade e da neutralidade1014. Afirma Danid Merrit: “[...] é uma atitude, um estado de espírito em que fazemos jornalismo de uma maneira que visa reconquistar o interesse das pessoas pela vida pública”1015. Pelo menos de acordo com a caracterização dos brasileiros Rogério Christofoletti e Jefferson Puff1016, aparentemente mais adequada a esta comparação por se apresentar de forma mais detalhada que outras e levar em consideração especificidades do Brasil, tais modalidades se assemelham no que se refere ao propósito e ao valor inarredável. Quanto aos procedimentos, têm similaridades, mas, também, divergem. Christoffoletti e Puff1017 afirmam que o JC pressupõe a adoção de conjunto de estratégias para provocar a reflexão e mobilizar um grupo; a indicação de soluções de problemas; a participação da sociedade na elaboração e seleção de pautas; a ênfase na cobertura de fatos locais; a reportagem de experiências de sucesso e fracasso, de consenso e conflito; o aprofundamento de discussões sociais; a consulta a pessoas comuns como fontes exclusivas; a exploração de recursos literários como o diálogo, para sensibilizar; o trato “humanizado” das in1013 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. Sobre isto, ver Nelson TRAQUINA. Jornalismo Cívico: reforma ou revolução. In: Nelson TRAQUINA; Mário MESQUITA (org.). Jornalismo Cívico. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. p. 9-17. 1015 David MERRIT. Merrit and McMasters Debate Public Journalism. In: Journal of Mass Media Ethics. Vol. 11, nº 3, p. 173 apud Mário MESQUITA. As Tendências Comunitaristas no Jornalismo Cívico. In: Nelson TRAQUINA; Mário MESQUITA (org.). Jornalismo Cívico. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. p. 19. 1016 Rogério CHRISTOFOLETTI; Jefferson PUFF. Direitos Humanos nos Jornais: um caso de tratamento epidérmico. In: Anais do IV Encontro de Núcleos de Pesquisa da Intercom/XXVII Congresso de Ciências da Comunicação, 2004. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 30 ago.-03 set. 2004. CD-Rom. 1017 Id. Ibid. 1014 340 formações para atrair leitores e aproximar a atividade do público, além da junção do jornalismo “cão vigilante” (informativo) com o “cão guia” (de serviços) e da obtenção de apoio e financiamento de empresas não-jornalísticas para o desenvolvimento de coberturas desta natureza. Conclui-se, assim, que o JC decorre, antes de tudo, de uma decisão institucional, do veículo de comunicação – e não da iniciativa de um jornalista apenas. Ambos, o JM e o jornalismo cívico, convergem por proporem o estímulo da mídia ao envolvimento do cidadão na busca de atenção às suas demandas e solução de seus problemas, ou seja, à mobilização para amainar e até extinguir o que aflige a sociedade e promover o bem-estar da coletividade; e basearem-se no princípio de que o jornalismo e os jornalistas devem ser comprometidos com o agendamento de questões de interesse público e ações para combate às dificuldades enfrentadas pela população. Entre as similaridades, estão agendamento de novos fatos e temas, desde que sejam relevantes para uma comunidade, mesmo que não estejam na agenda pública e midiática até então; a busca de soluções para os problemas e as demandas apresentados; a cobertura de acontecimentos positivos e negativos; a tentativa de promover a mobilização de pessoas para amenizar ou reverter o quadro exposto; o emprego de elementos literários na formulação textual; a formulação de pautas a partir do contato direto com a população; e a realização e/ou participação de campanhas na imprensa. O conjunto de textos de e sobre Cosme, a documentação atinente à personagem e ao seu trabalho, a bibliografia e as entrevistas demonstram que este baiano assimilou aspectos inerentes ao jornalismo cívico, considerando-se a configuração de Christofoletti e Puff. Muitos artigos constituintes do corpus de análise evidenciavam isso. Ele estava, portanto, à frente dos jornalistas e da imprensa do seu tempo. Afinal, conforme pesquisador Luis Martins1018, no Brasil, nos anos 2000, este tipo ainda se restringia, praticamente, à atuação de organizações não-governamentais. Nesta tese, utiliza-se um dos textos elaborados pelo Major como exemplo1019: Linhas Ligeiras A permanência de menores na Casa de Detenção desta Capital é uma verdadeira miséria. Os infelizes ficam alli em promiscuidade com delinqüentes de toda natureza e assim ‘a emenda torna-se peor do que o soneto’. 1018 Luiz Martins da SILVA et al. Jornalismo Público: o social como valor-notícia. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. 1019 O IMPARCIAL. Salvador (BA), edição de 4 de dezembro de 1937. 341 Não existem no referido presídio nem escolas nem officinas... Sombras. Péssimos exemplos. Quem ambiente perigoso! Peço, pois, ao illustre dr. Procurador Geral do Estado que providencie para que seja installado junto ao Collegio Profissional das Pitangueiras um compartimento, para aquelles desaventuradozinhos. S. excia., attendendo-me, praticará, elegantemente, um bello acto de patriotismo e de humanidade. Tenho dito e deste jeito posso finalisar esta desataviada chronigueta, escripta ao correr da perna e á luz da sinceridade. COSME DE FARIAS Ao escrever sobre o sistema de recolhimento, reeducação e reinserção social de adolescentes infratores em 1937, Cosme pautou um fato local que dizia respeito a um grupo com o qual ele se relaciona (a tragédia cotidiana de jovens de Salvador que viviam à margem das políticas públicas), fugiu da agenda midiática e pública predominante no período (o intenso debate sobre a extinção dos partidos políticos), incitou a reflexão e mobilização (neste caso, do procurador geral, no trecho “Peço, pois, ao illustre dr. Procurador Geral do Estado que providencie para que seja installado junto ao Collegio Profissional das Pitangueiras um compartimento, para aquelles desaventuradozinhos”). Ele, também, procurou indicar soluções aos problemas apresentados (como a criação de uma unidade específica para adolescentes, que favorecesse o desenvolvimento de atividades educacionais pelos meninos enquanto estejam detidos) e empregou recursos literários (como em “a emenda torna-se peor do que o soneto”, explorando um provérbio; e “Tenho dito e deste jeito posso finalisar esta desataviada chronigueta, escripta ao correr da perna e á luz da sinceridade”, utilizando figuras de linguagem). A isso, acrescenta-se que Cosme organizava e/ou participava de campanhas nas formas de subscrição (como a realizada para conserto do monumento ao poeta Castro Alves) e do reiterado agendamento de determinados assuntos (como a necessidade de construção de abrigos em Salvador para crianças abandonadas); discutia fatos e temas positivos (como os atos dignos de homenagens de personalidades diversas) e negativos (como as falhas de governos, governantes e instituições diversas); e contava com a possibilidade das suas pautas emergirem do seu contato constante com a população nos escritórios que manteve, em sua casa, nas ruas. A despeito dessa aproximação, as práticas de e sobre Cosme na imprensa não são suficientes para se afirmar que o Major e os veículos da sua época exerciam o jornalismo cívico, 342 nos moldes explicados por Christofoletti e Puff, décadas antes da especificação dessa modalidade1020 pelo estadunidense David Merrit, ocorrida em 1990, nos Estados Unidos, e da cristalização dos seus princípios na mídia daquele país a partir de 1993. Há diferenças substanciais e definitivas entre estes dois modos de fazer jornalismo. Ao contrário do preconizado pelos estadunidenses, o baiano raramente fazia humanização do relato, por meio de recursos como a construção de personagens; não utilizava – pelo menos, explicitamente – a comunidade como fonte exclusiva das suas matérias; preteria os textos informativos com prestação de serviços e aprofundamento das discussões, em favor dos artigos elaborados com a intenção de persuadir (em vez de informar), sem detalhamento e sem compromisso com a resolução de questões imediatas; e não obtinha recursos de instituições não-jornalísticas para veiculações desta natureza, embora os jornais do período, nos quais publicava, geralmente fossem mantidos por grupos e partidos políticos. A partir da análise do corpus, pode-se afirmar que o Jornalismo Mobilizador é recorrente no material escrito por e sobre Cosme de Farias, assim como o Jornalismo Assistencial. Por conseguinte, este jornalista, também, flertou com o que viria a ser rotulado, nos anos 1990, como jornalismo cívico ou jornalismo público, embora explorasse apenas alguns elementos desta modalidade. Ressalte-se que, apesar disso, não praticou o JC de acordo com o modelo caracterizado por David Merrit. Desse modo, teria, voluntaria ou involuntariamente, evitado o envolvimento em polêmicas relacionadas a procedimentos de produção, pois, no mundo, nas primeiras décadas do século XX, consolidavam-se princípios, técnicas e métodos da imprensa moderna, ancorados na valorização do jornalismo informativo, objetivo e neutro. O estadunidense Jay Rosen1021 analisa que o JC apropria-se de uma série de procedimentos para a promoção da cidadania, 1020 As primeiras manifestações ocorreram nos Estados Unidos com propósitos pontuais: reverter a queda nas vendas e promover a recuperação econômica dos jornais e estimular o voto (que é facultativo). Em 1990, tal conceito foi cunhado por David Merrit, então editor de Wichita Eagle (Kansas), e desenvolveu-se em especial através dos projetos do Pew Center for Civic Journalism (Filadélfia). Desde então, propalou-se por vários países, inclusive no Brasil. Só nos Estados Unidos, estima-se que 20% dos jornais em 2004 já haviam se envolvido, de algum modo, em práticas cívicas. Pouco após a explosão do terceiro setor no país e da percepção da mídia como ferramenta irradiadora e de legitimação de suas ideias, propostas e ações, surgiam em solo brasileiro práticas de cunho administrativo e jornalístico baseadas na polêmica proposição do jornalismo cívico ou jornalismo público (civic journalism ou public journalism) enquanto uma modalidade específica de jornalismo.. Lewis FRIEDLAND; Sandy NICHOLS. Measuring Civic Journalisms Progress: a report across a decade of activity. Washington: Pew Center for Civic Journalism, 2004 apud Márcio FERNANDES. Civic Journalism no Brasil: a construção de um plano de referência para um jornalismo público. Santa Cruz: Universidade Estadual do CentroOeste, 2008. Disponível em: <http://200.155.18.61/informacao/-79c2f01 _115d80a527a_-7fe1.pdf>. Acesso em: 16 mai 2008; Luiz Martins da SILVA et al. Jornalismo Público. Op. cit. 1021 Apud Nelson TRAQUINA. O Estudo do Jornalismo no Século XX. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), 2003, p.180-181. 343 diversos daqueles comuns à práxis jornalística daquela época, como a consulta e valorização de fontes oficiosas e testemunhas, em detrimento da costumeira exclusividade concedida às fontes oficiais; e o subsídio de empresas não-jornalísticas a coberturas de tais temáticas. Engajado na luta pela vida com dignidade, Cosme de Farias forjou-se como um combatente, que batalhou com as armas dispôs, do último quartel do século XIX aos anos 1970. Por suas crenças e causas, ele articulou Jornalismo Assistencial e Jornalismo Mobilizador, modalidades às quais eram inerentes a busca de soluções para atenção às demandas e garantia de direitos de indivíduos, grupos e organizações – uma por meio de medidas pontuais e imediatistas; outra, do estímulo à reação, ao envolvimento em movimentos sociais e políticos. Para tanto, manteve laços com a população e veículos de comunicação jornalística. Pelo observado na amostra, a imprensa (em especial, a veiculação da série de textos Linhas Ligeiras e de seus similares), entre outros meios, alimentou a assistência social e a mobilização social e política promovida por Cosme e vice-versa. Associados a outros mecanismos (como a organização e participação em eventos), os periódicos contribuíram para a construção de uma imagem pública do Major e da sua obra, na qual estavam realçados predicados como a solidariedade, a moderação na mediação de conflitos, a hombridade e a inobservância de quaisquer tentativas de conquista de benefício pessoal por meio daquele trabalho, favorecendo as intervenções assistenciais e mobilizadoras. O Major fazia uma espécie de lobby do bem, para o agendamento, a discussão e a defesa de questões de interesse público e ideias emancipatórias, que assegurassem a melhoria da qualidade de vida e o bem-estar de uma coletividade. Trabalhava, em caráter voluntáiro, em defesa de várias causas e por muitos baianos. Praticava advocacy1022 – em consonância com a definição de Marcio Zeppelini1023 –, décadas antes da disseminação deste conceito no mundo, motivada pela expansão do terceiro setor nos anos 1970. O cenário, na Bahia das primeiras décadas do século XX, era propício ao agendamento das questões de interesse de indivíduos, grupos sociais e instituições assistenciais, de1022 Trata-se de um conjunto de ações de pessoas, grupos, empresas ou organizações sociais, influentes na sociedade e engajadas na defesa de direitos e resolução de problemas de indivíduos, grupos, instituições, por meio de processos de comunicação (publicação de artigos, envio de cartas às redações etc.), protestos públicos, reuniões entre os interessados, contatos com gestores públicos e os pedidos direcionados a quem tem poder e influência para intervir favoravelmente, entre outros meios. A expressão é inglesa e ainda não tem tradução no Brasil. Maria Amélia AZEVEDO. Advocacy em Rede. São Paulo: Laboratório de Estudos da Criança do Instituto de Psicologia/Universidade de São Paulo, jul. 2003. Disponível em: <http://www.ip.usp.br /laboratorios/lacri/advocacy.doc>. Acesso em: 22 jan. 2011; GUIA DE ATITUDE: reflexões e práticas para o monitoramento e ação política. Salvador: Rede Sou de Atitude/Cipó, 2007; Marcio ZEPPELINI. Advocacy: o lobby do bem. Brasília: Pesquisa Ação Social das Empresas – IPEA, 2011. Disponível em: <http://www.ipea .gov.br/acaosocial/article26c3.html?id_article=592>. Acesso em: 19 jan. 2011. 1023 Marcio ZEPPELINI. Ibid. 344 vido a fatores como a efervescência da cultura da assistência e dos movimentos político e social (com manifestações públicas, organização de marchas etc.), o constante envolvimento pessoal de jornalistas com a militância nestes movimentos e a vida política do Estado (inclusive muitos políticos começaram suas carreiras na imprensa), a existência de uma imprensa de caráter ideológico e partidária e a ausência de profissionalização das relações de trabalho, entre outros. Por conseguinte, o contexto era favorável à implantação do JA e JM. JA e JM apropriaram-se de características inerentes à Bahia da época e dos indivíduos e das instituições da imprensa envolvidos no processo de elaboração do veículo jornalística, para se estabelecerem e consolidarem ao longo do tempo, a despeito da práxis do jornalismo moderno então ascendente no mundo. Entre estas especificidades, destacavam-se o uso de formatos opinativos, em detrimento dos informativos; a personificação das ações; a cooperação mútua entre jornalistas e a imprensa; a assimilação de recursos literários na construção da narrativa; o envolvimento da comunidade no processo de elaboração da publicação; e a ocorrência de parcialidade do jornalista e do veículo. No caso de Cosme de Farias, isso era evidente. Em geral, o Major escrevia textos opinativos para a imprensa, embora também tivesse publicados textos informativos de seu interesse, e as matérias dele e sobre ele eram voltadas à persuasão ou coerção de terceiros; enviava às redações pedidos para difusão de informações em seu próprio nome, apostando no coleguismo e/ou amizade, entre outros aspectos, e estes pleitos convertiam-se em textos que exaltavam duas ideais, suas propostas e seus feitos; e explorava recursos literários em seus textos. O Major, também, usufruía da cooperação mútua entre jornalistas e a imprensa, em uma sociedade acostumada ao clientelismo, oferecendo a defesa da categoria e dos veículos, junto ao poder público inclusive, por meio da Associação Bahiana de Imprensa, como contrapartida informal à edição de matérias de seu interesse e de sua autoria pelos jornais locais; prestava assistência social através da imprensa; e exercitava seu espírito crítico e buscava persuadir o leitor, constituindo-se como um ator social e político de relevância no seu espaço e tempo; e realizava e/ou participava de campanhas na imprensa. Com tal configuração, as duas modalidades promoviam a confluência entre os interesses, das demandas e as intenções da sociedade civil organizada, por meio de Cosme, e a imprensa, porém adotavam valores, métodos e procedimentos diversos daqueles intrínsecos à práxis do jornalismo moderno, que, naquele momento, estava em processo de consolidação no mundo como conceitos e fundamentos do campo e da profissão de jornalista. Por sua proposta, o JA e o JM distanciavam-se, sobremaneira, das bases jornalísticas implementadas nos Estados Unidos e no Reino Unido a partir do século XIX e assimiladas no Brasil desde a pri- 345 meira metade do século XX1024. Presos ao modelo de imprensa como atividade ideológica partidária (distante do empresarial), em detrimento do potencial dos jornais para o fomento à interpretação da realidade e tomada de decisões autônomas, os adeptos do JA e do JM, aparentemente – conforme análise das amostras, da bibliografia e da documentação – não estavam preocupados com a constituição de mercado, conquista de audiência e garantia de subsistência por meio da venda de anúncios, e nem com a mudança lenta e gradativa da cultura e das práticas jornalísticas que se apresentavam desde os oitocentos em outros países, ancorada em princípios1025 como a objetividade e a imparcialidade jornalística. Nessas duas modalidades, não se adotava como paradigmas a busca da objetividade e neutralidade e não havia prioridade para a cobertura informativa, com oferta de informações para promoção da interpretação e livre orientação do público, apesar de se pautar temas de interesse da sociedade. O Jornalismo Assistencial e o Jornalismo Mobilizador tinham um conflito denso de origem com o jornalismo moderno: as modalidades relativas a Cosme objetivavam provocar a mobilização em consonância com a perspectiva disseminada pelos jornalistas e veículos – ou seja, buscavam persuadir e até coagir, em oposição aos princípios, técnicas e conceitos do jornalismo cunhado nos oitocentos, que propunha a oferta de subsídios para a livre compreensão, interpretação e interferência na realidade. No JA e JM, primava-se pela aproximação entre jornalista e objeto de cobertura, inclusive com agendamento de fatos e temas definidos por critérios próprios e em benefício da sua própria obra, pelo uso corrente de textos opinativos, pela associação de fatos e emoção, e, muitas vezes, pela manifestação da subjetividade. Se ocorresse o inverso, haveria clara distinção entre fato e opinião; diversificação de fontes de informação; construção de narrativa sóbria, racional e hierarquizada pelo grau de relevância dos fatos (com aplicação das técnicas da pirâmide invertida e do lead, desenvolvidas para atenuar os efeitos da subjetividade, e supressão de recursos literários, que recorressem à subjetividade do jornalista); e na aplicação dos 1024 Ver Josenildo Luiz GUERRA. O Nascimento do Jornalismo Moderno - uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. Op. cit.; Tânia Regina de LUCA. A Grande Imprensa no Brasil da Primeira Metade do Século XX. In: 9ª Conferência Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). Op. cit.; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Op. cit. p.33-144. 1025 Josenildo Luiz GUERRA. O Nascimento do Jornalismo Moderno – uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. Op. cit.; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo. Op. cit. p.33-144. 346 critérios de noticiabilidade1026 universais, tais como importância e relevância, para definir o que seria e como seria publicado, por exemplo. Nesse contexto de fundação e consolidação destas duas modalidades, os jornais da Bahia atuavam como atores sociais e políticos, assim como a igreja, a escola, os movimentos sociais1027. Constituíam-se como instâncias voltadas a alimentar, exprimir e influenciar a opinião pública; fiscalizar outros poderes; e criticar partidos, governos, governantes. A partir do interregno entre as duas grandes guerras mundiais, estudos1028 já sinalizavam os efeitos da imprensa sobre o público, reconhecendo-a, portanto, como (re)construtora da realidade, conforme a lógica dos agentes envolvidos no processo de produção jornalística, ultrapassando a visão de que ela apenas reportava fielmente os fatos. Por esta perspectiva, os jornalistas – e, por conseguinte, Cosme de Farias – seriam, também, agentes capazes de (re)construir realidade, modelar visões de mundo e exercer influência sobre a opinião pública e outros agentes sociais e políticos, ou seja, de interferir no curso da história. Já naquela época, a imprensa despontava como uma relevante instituição da esfera pública e um campo de tensões e disputas de interesses de naturezas diversas, sob ingerência de múltiplos agentes (como empresas e empresários, governos e governantes, partidos políticos, organizações beneficentes, associações classistas, instituições religiosas, entre outros), embora sustentado na presunção da disseminação da verdade1029. Em Salvador, funcionava como instrumento, primeiro, de difusão e projeção de ideias e juízos de valor e, depois, até de formação da opinião pública por agentes diversos, entre os quais jornalistas como Cosme de Farias, que operavam com e nos veículos almejando garantir o êxito de sua obra assistencial e defendendo suas bandeiras. 1026 Refere-se aos critérios de controle, gestão, seleção e hierarquização dos acontecimentos aplicados nas redações, consciente ou inconscientemente, com a intenção de nortear a rotina, assegurando rapidez e eficiência, e de aproximar-se da objetividade. Desde o século XVII, quando as notícias se disseminavam através de folhas volantes sem periodicidade, identificou-se alguns referenciais como: relevância – à época, relativo a algo inusitado, inesperado; morte; e interesse das elites. No jornalismo contemporâneo, os veículos recorrem a estes critérios para definir o que e como irá se compor o noticiário, considerando sua orientação ideológica. Com pertinência, Mario Erbolato (2001, p. 60) considera o valor dos conteúdos informativos como ponto-chave na estruturação da produção jornalística. Ver melhor em Mário L. ERBOLATO. Técnicas de Codificação em Jornalismo. Op. cit; Nelson TRAQUINA. Teorias do Jornalismo. Op. cit.; Mauro WOLF. Teorias da Comunicação – mass media. Op. cit. 1027 Augusto Santos SILVA. O Primeiro Poder. In: Público. 8 nov. 2003, p.5 apud Vera Cândida Pinto GOMES. A Mediação do Discurso Político pela Comunicação Social. Santiago do Cacem: Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais, 2003-2004, p.1. Disponível em: <http://www.ciari.org/investigacao/a_med _do_discurso_pol_pela_cs.pdf>. Acesso em 16 mai. 2008. 1028 Nelson TRAQUINA. Jornalismo: questões, teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993. 1029 Sobre isso, ver Pierre BOURDIEU. Sobre a Televisão - seguido de a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Trad. Denice Barbara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997; Wilson GOMES. Jornalismo, Fatos e Interesses: ensaios de teoria do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009; Jürgen HABERMAS. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1984. 347 A ocorrência dessas modalidades voltadas à benemerência e ao ativismo, possivelmente, também, teve implicações sobre a imprensa local, a exemplo do crescimento dos riscos de superficialidade da cobertura, do denuncismo e da abordagem panfletárias dos fatos e temas, permeados pela falta ou por falhas de apuração. Afora isto, podem ter contribuído para que perdurassem na Bahia práticas que comprometiam a busca de autonomia dos impressos através da sua transformação em unidades de negócio; a profissionalização do segmento com novos perfil e conduta profissional; a simplificação do processo produtivo dos jornais, que garantiam maior agilidade, mas implicavam na homogeneização da/na produção pelo uso de fórmulas de redação (lead e pirâmide invertida). Ressalte-se que, nas manifestações das duas modalidades, não há indícios da tentativa de uso da imprensa por Cosme de Farias em proveito individual, não obstante as matérias evidenciassem dedicação ao trabalho assistencial e à militância e denotassem proatividade, contribuindo para a construção de uma imagem positiva dele pela sociedade e pudessem beneficiá-lo, por exemplo, lhe facilitando a mobilidade social. Assim como intelectuais e bacharéis1030, jornalistas – mesmo os mestiços (como Cosme) – tinham possibilidade de obter status e, consequentemente, mudar para estratos sociais mais elevados, por demonstrarem publicamente conhecimento, galgarem admiração e, é claro, terem potencial para influenciar a opinião pública sobre temas diversos. Pelo raciocínio vigente, desde a segunda metade do século XIX, aqueles que se distinguiam mereciam alçar posição compatível com suas habilidades e competências. O contexto baiano, naquele momento, era favorável, também, à ascensão política de homens como ele. O jornalismo se constituía como um instrumento facilitador da inserção de jovens na vida pública e, por conseguinte, na política partidária, por propiciar o contato com atores sociais e políticos representativos no cenário local e até nacional, o conhecimento de temas caros à sociedade e o exercício da oralidade e da escrita1031. Sobressaia-se o poder da pena e Cosme de Farias poderia gozar dessa especificidade da Bahia da época. O Major, contudo, preferiu uma via diversa, preterindo a possível promoção social, conforme já discutido anteriormente. De acordo com a documentação, os periódicos e a bibliografia consultados para esta tese, ele não usou sua ascensão sobre a imprensa como uma oportunidade de melhorar de vida do ponto de vista financeiro e/ou se distinguir na sociedade, aumentando seu status e/ou migrando de estrato social. O jornalismo propiciou, sim, sua ini1030 1031 Gilberto FREYRE. Sobrados e Mucambos. Op. cit. p.585. Consuelo Novais SAMPAIO. Poder & Representação. Op. cit. p.205. 348 ciação na política, porém como tática para alimentar sua obra assistencial e militância social e política. Assim, a imprensa e a assistência social pareciam compor um sistema de retroalimentação voltado para o bem-estar da coletividade. 349 CONSIDERAÇÕES FINAIS Major sem passagem pela caserna e por front de batalha; poeta e jornalista sem, ao menos, ter concluído o curso primário; líder operário sem histórico de labuta nas incipientes linhas da produção da indústria baiana; defensor público sem diploma de faculdade; assistencialista que, por vezes, repartia a própria refeição com indigentes e deixava a porta de casa aberta para garantir algum pouso a desabrigados; mulato do subúrbio soteropolitano que dialogava com lideranças e intelectuais de uma Bahia com resquícios da escravatura e resistência à inserção de não-brancos na elite local; um boêmio com picardia e malandragem típicas dos anti-heróis. Assim era Cosme de Farias (1875-1972), o objeto de pesquisa desta tese. Ao longo da vida, ele enfronhou-se em diversas frentes. Primeiro, na adolescência, trabalhou com o pai, o comerciante de madeira Paulino Manuel. E logo imergiu no universo das letras: aos 13 anos, pela primeira vez, discursou em público; aos 19, ingressou no vespertino Jornal de Notícias, voltando-se à cobertura de fatos policiais e julgamentos; e, aos 21, publicou sua primeira poesia. Dali em diante, transformou a escrita em ofício e ganhou certa notoriedade, tanto pela regularidade e longevidade da produção quanto pela destreza empregada na imprensa e nas tribunas. Ao contrário da maioria dos idosos, negou-se a aposentar a pena. Até o leito de morte, desafiava os sentidos e provocava certo rebuliço com críticas aos poderes instituídos, provocações ao empresariado,