civico movimento reformista
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319 ISSN 0101-1723 SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTÃO FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser Ensaios FEE Ensaios FEE é uma publicação semestral da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser que tem por objetivo a divulgação de trabalhos, ensaios e artigos de caráter técnico-científico da área de economia e demais ciências sociais. CONSELHO EDITORIAL Maria Lucrécia Calandro Octavio Conceição Achyles Barcelos da Costa Edward J. Amadeo Elmar Altvater François Chesnais José Vicente Tavares dos Santos Leonardo Guimarães Neto Luis Carlos Bresser Pereira Nelson Giordano Delgado Pascal Byé Pierre Salama Ricardo Tauile Roberto Camps de Moraes CONSELHO DE REDAÇÃO Maria Lucrécia Calandro André Luis Contri Enéas Costa de Souza Isabel Noemia Junges Rückert Luiz Augusto Estrella Faria Tanya Maria Macedo Barcellos EDITOR Maria Lucrécia Calandro SECRETÁRIA EXECUTIVA Lilia Pereira Sá Semestral Ensaios FEE Porto Alegre v. 28 n. 2 p. 319-606 2007 320 SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTÃO FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser CONSELHO DE PLANEJAMENTO: Adelar Fochezatto (Presidente), André Luis Campos, Ernesto Dornelles Saraiva, Leonardo Ely Schreiner, Nelson Machado Fagundes, Pedro Silveira Bandeira e Thômaz Nunnenkamp. CONSELHO CURADOR: Carla Giane Soares da Cunha, Flávio Pompermayer e Lauro Nestor Renck . DIRETORIA PRESIDENTE: Adelar Fochezatto DIRETOR TÉCNICO: Octavio Conceição DIRETOR ADMINISTRATIVO: Nóra Angela Gundlach Kraemer CENTROS ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS: Roberto da Silva Wiltgen PESQUISA DE EMPREGO E DESEMPREGO: Míriam de Toni INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS: Adalberto Alves Maia Neto INFORMÁTICA: Luciano Zanuz EDITORAÇÃO: Valesca Casa Nova Nonnig RECURSOS: Alfredo Crestani Ensaios FEE está indexada em: Ulrich's International Periodicals Directory Índice Brasileiro de Bibliografia de Economia (IBBE) Journal of Economic Literature (JEL) ENSAIOS FEE /Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser – v. 1, n. 1 (1980) - . - Porto Alegre: FEE, 1980 – . – v. Semestral Do v. 17 ao v. 22, deixa de ter paginação continuada. Índices: v. 1 (1980) – 9 (1988) em v. 9, n. 2; v. 10 (1989) – 11 (1990) em v. 11, n. 2; v. 12 (1991) – 15 (1994) em v. 16, n. 2. ISSN 0101-1723 1. Economia – periódicos. 2. Estatística – periódicos. I. Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser. CDU 33(05) Tiragem: 250 exemplares. As opiniões emitidas nesta revista são de exclusiva responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, um posicionamento oficial da FEE ou da Secretaria do Planejamento e Gestão. É permitida a reprodução dos artigos publicados pela revista, desde que citada a fonte. São proibidas as reproduções para fins comerciais. Toda correspondência para esta publicação deverá ser endereçada à: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser (FEE) Revista Ensaios FEE - Secretaria Rua Duque de Caxias, 1691 — Porto Alegre, RS — CEP 90010-283 Fone: (51) 3216-9132 Fax: (51) 3216-9134 E-mail: [email protected] Home Page: www.fee.rs.gov.br 321 Sumário Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política — Luiz Augusto E. Faria ........................ 325 Realismo crítico e abordagem da Regulação: da possibilidade de colaboração entre Ciência e Filosofia — Carolina Miranda Cavalcante ................................................................................ 353 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil — Marco Flávio da Cunha Resende e Giordano Bruno Braz de Pinho Matos ............ 375 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal: um estudo para Minas Gerais — 1995-06 — Frederico G. Jayme Jr., Júlio César dos Reis e João Prates Romero ......................... 409 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul: uma análise empírica — Gilberto de Oliveira Veloso e Anderson Mutter Teixeira ..................................... 443 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves na cadeia produtiva de madeira e móveis — Beky Moron de Macadar ..................................................................... 471 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional: uma análise em Matriz de Insumo-Produto Multirregional — Darlan Christiano Kroth, Ricardo Luis Lopes e José Luiz Parré .................................................................... 497 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde: uma análise comparada entre Argentina, Brasil, Colômbia e México — Angela Moulin S. Penalva Santos e Maria Alícia Dominguez Ugá ....................................................................................... 525 322 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil: uma análise espacial — Guilherme Mendes Resende e Alexandre Manoel Angelo da Silva ................................................................ 549 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro — Patrícia F. F. Arienti ........................................................... 577 323 Summary Sights on capitalism: structures, institutions and individuals in political economy — Luiz Augusto E. Faria ............................. 325 Critical realism and regulation approach: the possibility of collaboration between Science and Philosophy — Carolina Miranda Cavalcante ............................................................................ 353 The long term real exchange rate in Brazil — Marco Flávio da Cunha Resende e Giordano Bruno Braz de Pinho Matos ........... 375 Budget constraint and Fiscal Responsibility Law: a study for the State of Minas Gerais, Brazil (1995-06) — Frederico G. Jayme Jr., Júlio César dos Reis e João Prates Romero ......................... 409 The Fiscal Responsability Law ant the microregions of the State of the Rio Grande do Sul: an empirical analysis — Gilberto de Oliveira Veloso e Anderson Mutter Teixeira ................................ 443 The insertion of the furniture local system of production from Bento Gonçalves (Rio Grande do Sul) in the wood and furniture chain — Beky Moron de Macadar ............................................ 471 The impact of south brazilian furniture industry on the regional economy: a multiregional input-output analysis — Darlan Christiano Kroth, Ricardo Luis Lopes e José Luiz Parré ............ 497 State reform, decentralization and health policies: a comparative analysys among Argentina, Brazil, Colombia and Mexico — Angela Moulin S. Penalva Santos e Maria Alícia Dominguez Ugá ...... 525 324 Brazilian south region municipalities economic growth: a spatial analysis — Guilherme Mendes Resende e Alexandre Manoel Angelo da Silva ......................................................................... 549 Restructuring and consolidation process in the private banking system in Brazil — Patrícia F. F. Arienti ................................................... 577 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 325 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política* Luiz Augusto E. Faria** Economista da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e Professor da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE-UFRGS) Resumo A investigação econômica deve-se desenvolver em diferentes planos de análise, conforme propõem diversas correntes vinculadas à heterodoxia do pensamento econômico. Um conjunto de abordagens que começa pela crítica marxista, avança com a Teoria da Regulação e chega à análise histórica de Braudel é analisado de forma comparativa, tendo em vista fazer-se um apanhado de suas contribuições relativas a alguns tópicos decisivos para a compreensão das sociedades capitalistas. Em primeiro lugar, têm-se o problema da explicação e o lugar do indivíduo e das relações sociais na causalidade dos fenômenos econômicos. Seguindo adiante, o necessário desdobramento da análise em diferentes planos, passando do abstrato ao concreto, é abordado como imperativo ao desvendamento da cadeia de causalidades que produz o real. A origem e o papel das instituições são apontados como centrais nesse desdobramento que engloba a dialética dos agentes e das estruturas, da lógica e da história. A distinção e a irredutibilidade dos planos micro e macro são definidas como inerentes à complexidade dos fenômenos que se busca compreender. Ao final, é discutida a contribuição de Braudel para as diferentes instâncias analíticas em que se deve buscar a compreensão da sociedade sob o capitalismo, com o intuito de lançar uma outra luz sobre as interpretações marxista e regulacionista. * Artigo recebido em jan. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007. ** O autor agradece a José Ricardo Tauile, pelas idas e saudosas horas de conversa, origem de boa parte das idéias aqui expostas, a Luis Bertola, por uma indicação que tornou mais compreensíveis as figuras, e a parecerista anônimo, cujas sugestões em muito ajudaram a clarificar diversas passagens do texto. E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 326 Luiz Augusto E. Faria Palavras-chave Metodologia; instituições; capitalismo. Abstract Economic research must be developed in distinct analytical levels. This distinction is viewed in the light of diverse contributions to what are proposed a comparative reading, from Marxist critics to Regulation Approach and to Braudel's historical inquiry. First, the problem of explanation and the place of individuals and social relations in the causality of economic phenomena are addressed. Second, the need to spread out analysis in different levels, from an abstract one to a concrete one is dealt as necessary to unveil the causality chain that produces concrete reality. Central to develop such an analysis are the organization and role of institutions, a path through the dialectics of agents and structures, of logic and history. Distinction and irreducibility of both micro and macro levels are viewed as inherent to the complexity of the phenomena that are attempted to understand. Finally, Braudel's contribution on the dissimilar analytical instances where to root a full comprehension of society is discussed. Key words Methodology; institutions; capitalism. Classificação JEL: B41, B51, B52. "Tem o tempo sua ordem já sabida; o mundo, não; mas anda tão confuso, que parece que dele Deus se esquece. Casos, opiniões, natura e uso fazem que nos pareça desta vida que não há nela mais que o que parece." Luís de Camões As sociedades capitalistas são as mais abstrusas estruturas sociais já erigidas na história humana. Para se fazerem compreensíveis, era natural que, como ensinou Marx, uma tal complexidade exigisse um difícil trabalho de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 327 desvendar as aparências, de ultrapassar seu aspecto superficial e penetrar em sua composição interna, para aí, apenas, desvendar seu segredo. Da mesma forma, também era esperado que se prestassem a serem vistas sob diferentes ângulos e perspectivas, diferentes percursos na tentativa de abarcar sua totalidade. Nestas breves notas, vamos tratar de apresentar nossa interpretação sobre alguns desse olhares voltados ao capitalismo nas direções que nos parecem as mais promissoras e discutir algumas de suas implicações epistemológicas. O objetivo do trabalho é realizar uma discussão sobre método na economia e nas demais ciências sociais, tendo como eixo a crítica marxista a dois recursos epistemológicos adotados por várias correntes dessa área de pesquisa: o individualismo metodológico inspirado em Kant e o determinismo histórico — aqui chamado holismo radical em seguimento a Wright, Levine e Sober (1993) — tributário da tradição hegeliana. A discussão terá como ponto de partida a natureza da explicação dos fenômenos sociais. O aprofundamento dessa problemática no sentido da totalidade cobra a necessidade de desdobrar-se a análise científica em diferentes níveis, tal qual o faz a Teoria da Regulação (TR) ao acompanhar uma opção metodológica realizada por Marx. Uma segunda inspiração seguida pelos regulacionistas veio da obra de Fernand Braudel (1996), que, em sua perspectiva histórica, buscou a compreensão dos determinantes da evolução das sociedades capitalistas ao longo do tempo, investigando muito além do espaço público dos mercados, território de ações de larga visibilidade. Para isso, tratou de iluminar tanto os recintos sombreados do quotidiano da produção e do consumo que definem o modo de vida dos homens e das mulheres em sociedade, como o lugar secreto onde o dono do dinheiro encontra o dono do poder político e no qual se estabelece o modo de dominação social. O ponto de partida é uma discussão sobre a causalidade dos fenômenos sociais, em que será apresentada uma contraposição à visão majoritária entre os economistas, filiada ao individualismo metodológico. Argumentamos que as explicações necessariamente devem incluir não apenas as ações dos indivíduos, mas também suas circunstâncias históricas, os limites dados pelas estruturas em que estão inseridos. Mais adiante, tratamos de avançar no sentido da contribuição original de Marx e do que lhe foi aposto pela Teoria da Regulação, particularmente no que respeita à relação entre o plano micro da interação entre os agentes econômicos e o plano macro das estruturas sociais. Um passo adiante nessa construção metodológica aponta uma análise que se desdobra em três níveis distintos de abstração, partindo de sua representação idealizada nas relações sociais fundamentais e indo até a materialidade das instituições sociais e das técnicas produtivas. Uma breve discussão sobre a passagem entre os planos macro e micro e o fenômeno da emergência que lhe é inerente encaminha à discussão final, resgatando a contribuição de Braudel (1996), ao pensar o Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 328 Luiz Augusto E. Faria capitalismo como uma ordem social sedimentada ao longo da história em três estratos sobrepostos. 1 As relações de causalidade na economia Em sua aparência, os fenômenos sociais são percebidos como resultantes da ação de indivíduos interagindo entre si, de forma isolada ou em grupo. Sua compreensão, entretanto, requer, necessariamente, a investigação de relações de causalidade que vão muito além do mero resultado da atuação dos indivíduos, como acertadamente argumentaram Wright, Levine e Sober (1993) em seus ensaios sobre a explicação. A descrição dos mecanismos de funcionamento dos sistemas sociais só é possível quando são levadas em consideração determinações originárias de suas estruturas, que explicam uma parcela relevante de seu funcionamento e que são irredutíveis ao plano dos indivíduos que os compõem e a suas propriedades. Nessa perspectiva, o alcance do processo explicativo ultrapassa, em muito, o projeto do individualismo metodológico, o qual é assim descrito por esses autores: O individualismo metodológico é uma reivindicação sobre o caráter da explicação. Afirma que todos os fenômenos sociais são mais bem explicados pelas propriedades dos indivíduos compreendidos no fenômeno. Ou, de outra maneira, que toda a explicação que envolve conceitos sociológicos de nível macro deveria, em princípio, ser reduzida a explicações no plano micro dos indivíduos e suas propriedades (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 191, grifo do autor). Em razão disso, ao considerarmos que o plano macro guarda relevância explicativa, que existem determinações estruturais, é necessária a rejeição do individualismo metodológico pelo erro do reducionismo. Sua crítica foi assim expressa: Resumindo, o programa reducionista do individualismo metodológico falha porque a ciência tem projetos explicativos que ultrapassam os casos singulares. Além de indagar por que este organismo ou aquela firma sobreviveram, também se quer explicar o que têm em comum diversos objetos e processos. Quando as propriedades que respondem a essas perguntas têm realizações múltiplas no plano micro, as explicações macroteóricas não são, mesmo em princípio, redutíveis à microexplicação (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 207-208). Para explicar esse "o que têm em comum", não basta reduzir os diversos objetos e processos a tipos na forma dos conhecidos agentes representativos, cujo comportamento seria a expressão completa de toda a realidade de um certo conjunto de indivíduos com as mesmas características, como fazem os Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 329 neoclássicos recorrendo às figuras da firma, do trabalhador, do investidor, etc. Os adeptos dessa corrente, cujos primeiros teóricos Marx chamou "economistas vulgares", iniciaram sua adesão ao individualismo metodológico com o recurso que esse autor qualificou como "robinsonadas", em alusão ao personagem de Daniel Defoe, propondo análises sobre o comportamento de indivíduos impregnados das propriedades do homo economicus. A versão mais acabada dessa teoria foi realizada por Walras e Paretto, a partir de 1870, quando propuseram o conceito de equilíbrio geral. Essa hipótese foi desenvolvida por Gerard Debreu, nos anos 60 do século XX, que buscou provar a existência de tal equilíbrio quando o número de agentes fosse infinito. Contemporaneamente, essa perspectiva analítica avançou o citado conceito de "agente representativo", um recurso matemático baseado na possibilidade de o comportamento de um conjunto de indivíduos poder ser reduzido a um só, uma vez que, como todos têm as mesmas expectativas racionais, suas reações tenderão a ser sempre idênticas. Embora seja proveitoso recorrer a tipos para a explicação científica como forma de dar conta de suas semelhanças, o "o que têm em comum" diversos casos, a questão é a que podem ser reduzidos os tipos, se a meras propriedades relacionais de indivíduos, ou se existem tipos relacionados a entidades sociais agregadas que sejam irredutíveis a indivíduos.1 Se esse for o caso, devemos admitir a insuficiência do individualismo metodológico. A verdadeira compreensão dos tipos na análise econômica só é possível quando se considera a possibilidade de um grande número deles corresponderem a sujeitos coletivos — ou entidades sociais na terminologia de Wright, Levine e Sober (1993) —, como fez Marx em suas análises sociopolíticas, nas quais as classes sociais aparecem como os sujeitos mais relevantes dos processos de evolução e transformação das sociedades.2 E esses sujeitos, embora sejam agregados de indivíduos, não podem ser reduzidos a propriedades desses indivíduos, pois os tipos podem se realizar através de múltiplos casos, no sentido de distintas trajetórias individuais conduzirem a situações diversas dos indivíduos, mesmo se pertencerem a um mesmo tipo. Isso também não quer 1 É nesse sentido que um tipo não pode ser confundido com a noção neoclássica de agente, pois este, mesmo quando em grande número, nunca dá existência a um sujeito coletivo. Seu grande número forma apenas uma soma de ações individuais, cuja convergência é um efeito de suas propriedades assemelhadas, que faz com que eventuais desvios sejam meros efeitos estatísticos de um comportamento estocástico. 2 É esse o método que inspirou, por exemplo, o muito citado e brilhante ensaio sobre o golpe de Estado em que Luís Bonaparte proclamou o Segundo Império na França, em 1852 (Marx, 1976). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 330 Luiz Augusto E. Faria dizer que alguns tipos não possam corresponder a características individuais, como o trabalhador ou o burguês, mas apenas que estas não englobam a totalidade dos tipos. Por sua vez, Aglietta (1997) discute a tese dos microfundamentos sob o prisma da necessária suposição de homogeneidade do sistema para que a redução seja possível, para que estruturas do plano macro possam, por exemplo, ser substituídas por algum tipo de agente representativo. Ele afirma não só ser falsa qualquer suposição de homogeneidade do sistema econômico, como "[...] os avanços do pensamento econômico são feitos contra o postulado da homogeneidade" (Aglietta, 1997, p. 3). A característica heterogênea do sistema está, para Aglietta (1997), na raiz da irredutibilidade dos fenômenos macro, a qual se traduz na impossibilidade de se postular uma lógica de coordenação uniforme para os dois planos da vida econômica, o que, inclusive, não é uma característica exclusiva da economia. Nas ciências da matéria e nas ciências da vida, sabe-se que os fenômenos microscópicos e macroscópicos não podem ser descritos com as mesmas ferramentas formais do pensamento. As regularidades macroscópicas têm sua autonomia. Não obstante, na economia, o individualismo metodológico é de uma virulência particular. A atração pelos fundamentos microeconômicos da macroeconomia é tal que a opinião dominante é a de negar o obstáculo e, portanto, de perpetuar o postulado da homogeneidade. (Aglietta, 1997, p. 3). Em resumo, existem relações causais dos fenômenos econômicos no plano macro ou estrutural, o que nega qualquer tentativa de se atribuir homogeneidade ao sistema. Em razão disso, a pretensão do individualismo metodológico de reduzir todas as relações de causalidade ao plano dos indivíduos e suas propriedades deve ser rejeitada. Se a teoria neoclássica é a representante maior do individualismo metodológico na ciência econômica, cabe lembrar em seu favor que, em sua grande maioria, seus trabalhos visam compreender aspectos específicos da realidade econômica para os quais o método marginal e o recurso aos modelos de maximização têm inegável poder explicativo — por exemplo, quando se está analisando o comportamento de uma firma. Entretanto, quando o mesmo paradigma é empregado na tentativa de explicar o comportamento do sistema econômico em sua totalidade, como no caso da teoria do equilíbrio geral, sua capacidade explicativa fica irremediavelmente comprometida. O ponto de vista que defendemos leva também à rejeição da posição que Wright, Levine e Sober (1993) chamaram de holismo radical e que se pode bem identificar em algumas das versões mais populares do marxismo. A concepção teleológica a favor do determinismo no processo histórico, visto como mera resultante da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 331 forma das relações de produção, foi muito difundida pela Academia de Ciências da antiga União Soviética. Discordando da posição teleológica dentro do pensamento marxista, o estruturalismo, encabeçado por Louis Althusser, descrevia a história como um processo sem sujeito nem fim. No entanto, não deixava de incorrer numa forma de holismo mais que radical, ao definir os indivíduos como meros suportes das relações sociais. Especificamente em relação ao método da economia, segundo sua interpretação, os fenômenos econômicos devem ser definidos por seu conceito, o que tem a seguinte implicação metodológica: Definir os fenômenos econômicos por seus conceitos é defini-los pelo conceito dessa complexidade, quer dizer, pelo conceito da estrutura (global) do modo de produção, uma vez que ela determina a estrutura (regional) que constitui os objetos econômicos e determina os fenômenos dessa região definida, situada em um lugar definido da estrutura do todo (Althusser; Balibar, 1974, p. 197-198, grifos do autor). Em sua visão, a economia, como uma parte subordinada à ciência da história, teria suas explicações subsumidas ao princípio da "causalidade estrutural", o qual definiria o que consideraram um conceito epistemológico-chave, "[...] que precisamente tem por objeto designar este modo de presença da estrutura em seus efeitos" (Althusser; Balibar, 1974, p. 203, grifos nossos). Em outras palavras, os fenômenos econômicos seriam resultado do movimento das estruturas, movimento através do qual a estrutura se tornaria imanente a seus efeitos, no sentido de que "[...] toda a existência da estrutura seja seus próprios efeitos" (Althusser; Balibar, 1974, p. 204). A assertiva é algo obscura, mas suficientemente esclarecedora de um equívoco do qual queremos guardar distância: a crença de que as ações dos indivíduos não têm qualquer poder de determinação dos fenômenos sociais; eles são sempre efeitos ou epifenômenos e nunca causa. Nossa posição admite um horizonte um tanto mais alargado para a construção da explicação nas ciências sociais, no qual os percursos possíveis englobam determinações tanto individuais quanto sociais ou estruturais para os fenômenos que são estudados. Wright, Levine e Sober (1993) admitem quatro caminhos diferentes para a construção dos enunciados explicativos, mas argumentam que causalidades estruturais só se efetivam através de um nexo explicativo que inclua, necessariamente, a conduta e as propriedades dos indivíduos. Em suas palavras, Há quatro possíveis conexões explicativas entre os fenômenos sociais e as propriedades individuais: primeiro, propriedades individuais podem explicar fenômenos sociais; segundo, fenômenos sociais podem explicar propriedades individuais; terceiro, propriedades individuais podem explicar propriedades individuais; e quarto, fenômenos sociais podem explicar Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 332 Luiz Augusto E. Faria fenômenos sociais. [...] [Entretanto] a quarta conexão só é legítima quando a cadeia causal da explicação envolve combinações das duas primeiras (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 208). Essa necessidade de uma base no plano micro das determinações macroestruturais vai ser melhor explicada a seguir, numa passagem em que os autores vão convergir com a posição adotada pelos regulacionistas, que será discutida mais adiante. Em síntese: [...] fenômenos sociais somente explicam fenômenos sociais quando há vínculos — mecanismos causais — que funcionam no plano microindividual. As estruturas sociais explicam estruturas sociais através dos modos pelos quais determinam as propriedades e as ações dos indivíduos. Estas, por sua vez, determinam resultados socioestruturais. A investigação dessas microtrilhas através das quais se efetivam as determinações macroestruturais é o estudo dos microfundamentos (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 208-209). Embora haja concordância com a precisão do conteúdo, mantemos reservas em relação à expressão "microfundamentos", em razão do uso abusivo desse termo por parte dos economistas filiados à escola neoclássica, em seu caso, uma manifestação do seu, como disse Aglietta, virulento apego ao individualismo metodológico. Em lugar disso, vamos falar em microtrilhas da explicação. No âmbito da Teoria da Regulação, essa aproximação do plano micro é descrita como análise das configurações específicas das relações sociais (Boyer; Saillard, 1995). Antes de passar à forma como os regulacionistas apresentam a cadeia de nexos causais dos fenômenos econômicos, entretanto, cabe citar uma vez mais Wright, Levine e Sober e reproduzir seu argumento em favor de uma busca criteriosa e não reducionista de fundamentações no plano micro para as análises macrossociais, o que não só aumenta a confiança nas teorias, como aprofunda seu poder de explicação. Na medida em que se está aberto à possibilidade de múltiplos fundamentos para uma dada explicação (e, portanto, para a não-redutibilidade de fenômenos macro a microfundamentos), a descoberta de processos de nível micro, através dos quais se concretizam os fenômenos maiores, enriquece a compreensão teórica (Wright; Levine; Sober, 1993, p. 210). Uma última observação. Na passagem dos Grundrisse em que discute as formações sociais pré-capitalistas, Marx (1971) mostra como as estruturas sociais agem sobre o comportamento dos indivíduos, delimitando o horizonte de possibilidades de suas ações numa determinada época e sob a vigência de determinadas relações sociais. Seu pertencimento de classe delimita o espectro de atitudes possíveis em uma dada situação. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 333 2 As relações sociais: indivíduos, instituições e estruturas A Teoria da Regulação desenvolveu um caminho, se não completamente riginal, uma vez que é tributária de uma forte influência da tradição marxista e das contribuições que o estruturalismo e a Escola dos Anais trouxeram às ciências sociais, inegavelmente criativo e fecundo, para dar conta da relação entre as trajetórias individuais dos atores e os fenômenos que se manifestam no plano agregado das estruturas sociais. Através da análise da mediação das instituições, para a qual criaram o conceito de formas institucionais da estrutura, os autores regulacionistas puderam dar conta da relação entre a conduta dos indivíduos e as determinações irredutíveis do plano macro. A influência marxista trouxe uma decisiva contribuição à metodologia das ciências sociais, que pode ser resumida pela conhecida frase com a qual Marx contestou os economistas de seu tempo, os quais atribuíam ao capital um estatuto de coisa, mera riqueza acumulada, uma quantidade de dinheiro ou um conjunto de máquinas e equipamentos, dizendo: "O capital é uma relação social". Da mesma forma, no primeiro capítulo de O Capital (Marx, 1983), quando faz referência ao fato de toda a riqueza na sociedade capitalista assumir a forma de um amontoado de mercadorias, ele lembra que, para estudar as mercadorias enquanto coisas, seria preciso sair fora dos domínios da economia política e adentrar outra disciplina científica, a qual apelidou de merceologia. Nas palavras de um de seus seguidores, referido acima, Louis Althusser, essa posição de Marx representa um corte epistemológico, pois funda uma nova abordagem para a economia e para as demais ciências sociais com as quais trabalhou. Nessa abordagem, a unidade última, indivisível e irredutível, a partir da qual se pode construir a cadeia de causalidade dos fenômenos sociais, não é o indivíduo e os objetos que o circundam, mas as relações entre os homens e as mulheres que formam a sociedade. Todos os conceitos fundamentais da análise marxista, desde o já citado capital até a mais-valia, o dinheiro, o trabalho, não representam de forma nenhuma coisas, muito menos os indivíduos eventualmente proprietários dessas coisas, mas as relações sociais estabelecidas entre indivíduos ou grupos de indivíduos. Esse é o ponto de partida das microtrilhas da explicação. 2.1 O micro e o macro Partindo das relações sociais, a TR abriu um novo campo de abordagem para a economia política, que incorpora à investigação das relações de produção Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 334 Luiz Augusto E. Faria determinações do nível de análise considerado por Marx como superestrutural, aquele das relações jurídicas e políticas. Para a TR, assim como para toda uma tradição que por décadas foi marginalizada pelo mainstream acadêmico, sem essas determinações institucionais não é possível compreender a dinâmica dos sistemas econômicos. Entretanto, diferentemente das versões neoclássicas do institucionalismo, as instituições não são vistas como "microfundamentos" para os fenômenos do plano macro.3 Conforme mostra a Figura 1, os fenômenos micro exercem influência sobre o funcionamento do sistema como um todo, através da mediação das determinações que se estabelecem no nível intermediário das instituições. No plano microssocial, as motivações e os interesses dos agentes econômicos (empresas, grupos de trabalhadores, associações ou mesmo indivíduos) produzem conflitos localizados, quer na esfera das relações de trabalho (determinação dos salários, duração da jornada, atribuições de competências e obrigações, etc.), quer na chamada área social (saúde, assistência, educação, previdência ou segurança pública), quer na da competição intercapitalista (conflitos de concorrência, poder de mercado e de contratação). A solução desses conflitos exige a intervenção de uma outra esfera do sistema social, na qual se fazem presentes o Estado e outras relações de poder que definem a política econômica (juros, câmbio, política fiscal, etc.) e as demais políticas públicas (políticas sociais, de meio ambiente, ciência e tecnologia, direitos da cidadania, etc.), além dos poderes Judiciário e Legislativo, bem como de iniciativas de organizações não-governamentais. Todo esse conjunto de instituições conforma as cinco formas institucionais que descreve a TR, a forma do Estado, a relação salarial, a restrição monetária, o padrão da concorrência e a inserção internacional, cuja combinação recebeu o nome de modo de regulação. Além disso, também faz parte desse arranjo institucional o paradigma tecnológico dominante, embora, na maior parte da literatura, não seja tratado diretamente como uma instituição, ao contrário do que fazem corretamente os evolucionistas (Coriat; Dosi, 1997; Amable, 1995; Villeval, 1995). Por fim, para completar o percurso da regulação no desenvolvimento dessa passagem que liga os fenômenos micro às determinações macro, ou estruturais, aparece um terceiro plano, onde se apreende o funcionamento do sistema em 3 Uma outra diferença em relação ao mainstream da teoria econômica é a negação do princípio da racionalidade como dirigente do comportamento individual. Em lugar disso, Boyer (2004) faz um resgate do conceito de habitus da sociologia de Pierre Bourdieu e o apresenta como descritivo do tipo de lógica que preside o comportamento dos indivíduos em sociedade, "determinada pelo contexto institucional, ou, mais exatamente, pelos compromissos institucionalizados" (Boyer, 2004, p. 122). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 335 seu conjunto. Nesse plano, as relações sociais, remodeladas pelas instituições, dão forma à estrutura do sistema. A arquitetura dessas relações forma o modo de desenvolvimento, a combinação de um modo de regulação e um regime de acumulação, da qual resulta uma determinada distribuição da renda e da riqueza. A situação dessa distribuição, por sua vez, volta-se sobre o plano microssocial, ao condicionar as motivações e os interesses dos agentes que presidem os fenômenos naquele plano. Figura 1 As instituições na mediação entre micro e macro Plano Institucional Formas institucionais Paradigma tecnológico Resultados da interação dos agentes Modo de desenvolvimento Plano Micro Plano Macro Conflitos localizados (relações sociais) Motivação e interesse dos agentes Distribuição da renda e da riqueza NOTA: Os conflitos localizados produzem resultados que, combinados, criam as instituições reguladoras do conjunto do sistema, as quais, por seu turno, definem um modo de desenvolvimento e um padrão de distribuição que vai motivar o comportamento dos agentes. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 336 Luiz Augusto E. Faria 2.2 Do concreto ao abstrato Um passo adiante na apropriação da produção teórica da TR é a proposição de Boyer e Saillard (1995), segundo os quais a arquitetura geral da abordagem regulacionista está configurada em três níveis de análise distintos, correspondentes a três graus diversos de abstração. O nível de análise mais geral, correspondente ao mais alto grau de abstração, dá conta da análise dos modos de produção e de sua articulação. É nesse plano que a filiação marxista da TR se mostra mais evidente, quando a análise faz uso das determinações internas do modo de produção, suas tendências imanentes e suas leis de movimento. Marx (1971), hegelianamente, tratava esse plano de análise como o das relações internas, onde as determinações genuínas dos fenômenos poderiam ser desvendadas, e como oposto ao das relações aparentes, onde as verdadeiras relações de causalidade estariam, muitas vezes, encobertas. É importante ressaltar, entretanto, que essa filiação se refere à obra do próprio Marx e está em desacordo com as versões mais difundidas do marxismo ao longo do século XX. Nesse sentido, a TR manteve-se distante do determinismo e do economicismo, operando uma incorporação da teoria de Marx em suas melhores contribuições, a qual é assim apresentada por Boyer e Saillard (1995): A filiação às relações de produção de Marx é clara, mas a correspondência entre relações de produção e estágio das forças produtivas é abandonada, da mesma forma que a dicotomia entre estrutura econômica e superestrutura jurídico-política. No modo de produção capitalista, a forma das relações de produção e de intercâmbio impõe o primado do valor de troca sobre o valor de uso e faz da acumulação um imperativo do sistema. Entretanto, a TR não infere disso a existência de uma relação invariante entre modo de produção capitalista e formas de acumulação (Boyer; Saillard, 1995, p. 60). No entanto, embora a ressalva sobre a existência de vários capitalismos, as análises da TR têm sido capazes de buscar, na história do desenvolvimento do modo de produção capitalista, a manifestação das tendências descritas por Marx tanto na "lei geral da acumulação" quanto na "lei da queda tendencial da taxa de lucro", ou na "lei do valor". As formas concretas da acumulação são tratadas em um segundo nível de análise, em um menor grau de abstração, no qual as tendências contraditórias em direção à crise ou à estabilidade do processo de acumulação podem ser compreendidas. É nesse plano que se explicita mais claramente a distância entre a TR e qualquer concepção determinista ou de equilíbrio. Como lembra Lipietz (1988), a descoberta de certas regularidades do sistema não decorre de nenhuma tendência imanente, de nenhuma "besta do Apocalipse"; é um achado Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 337 (trouvaille), resultado dos desdobramentos das relações de cooperação e conflito entre seus elementos constitutivos: classes sociais, frações de classes, associações de empresas, sindicatos, etc. A estabilidade é alcançada a partir de um certo grau de institucionalização dessas relações, materializado em um modo de regulação que garante a continuidade do regime de acumulação, o processo de valorização do capital. A marca desse processo é a permanente mudança do próprio sistema, em resposta ao interminável impulso endógeno de transformação, de adaptação às novas circunstâncias que resultam da interação de seus elementos constitutivos ou do ambiente que o circunda. Para marcar esse acento no caráter mutante do sistema, Boyer e Saillard (1995) polemizam: Lá onde os neoclássicos e pós-keynesianos procuram um modelo geral e invariante, os regulacionistas encontram uma variedade de regimes de acumulação, segundo a natureza e a intensidade da mudança tecnológica, o volume e a composição da demanda, o tipo de modo de vida dos assalariados. As relações capitalistas são compatíveis com regimes de acumulação que se transformam no longo prazo e que são, portanto, variáveis no tempo e também no espaço (Boyer; Saillard, 1995, p. 61). O terceiro nível de análise trata da configuração específica das relações sociais em um determinado tempo e lugar, sua regularidade e seu tecido institucional. Nesse plano, são definidas as cinco formas institucionais que condicionam o comportamento dos atores sociais numa direção coerente com a manutenção do funcionamento do sistema. Por outro lado, é também nesse plano que, a partir da evolução do conhecimento e das interações entre os agentes envolvidos, se configura o paradigma tecnológico, o qual vai definir condicionantes e limites ao ritmo da cumulação. São as relações aparentes, materializadas no nível concreto. A Figura 2 representa as relações de causalidade e correspondência entre os três níveis de análise. Como pode ser visto, a cadeia de conexões vai das relações sociais fundamentais do modo de produção capitalista até as formas institucionais e o paradigma tecnológico que regulam o funcionamento do sistema e condicionam o formato e as possibilidades da estrutura produtiva. O percurso começa em Marx e vai até a TR. Constituído esse tecido institucional, suas articulações formam as duas instâncias de estabilização e reprodução do sistema, o modo de regulação e o regime de acumulação, cuja combinação dá forma ao modo de desenvolvimento. Nesse nível intermediário, as relações fundamentais do modo de produção capitalista agem como condicionantes das possibilidades alternativas das formas que podem ser assumidas pelo modo de desenvolvimento seguido por cada formação social específica. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 338 Luiz Augusto E. Faria Figura 2 Os três níveis de análise e os principais conceitos da abordagem da regulação Nível Abstrato Plano do modo de produção e de suas categorias fundamentais, das relações mais simples e permanentes. Relações de Produção Capitalistas - Apropriação - Relação mercantil - Assalariamento Nível Abstrato-Concreto Plano em que se organizam as tendências e contratendências definidoras da evolução do sistema econômico. Regime de Acumulação Modo de Desenvolvimento Modo de Regulação Nível Concreto Plano mais complexo, onde se estabelece a configuração específica das relações sociais no tempo e no espaço. Formas Institucionais: - Forma da concorrência - Padrão monetário - Relação salarial - Tipo de Estado - Regime internacional Legenda: Determinação Reciprocidade Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Paradigma Tecnológico Correspondência Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 339 Para maior clareza, o diagrama ainda requer que seja apresentada uma definição das categorias utilizadas. O ponto de partida desse esclarecimento é a análise da gênese das formas institucionais, o conceito que liga os diversos níveis da análise. Na obra fundadora da abordagem da regulação, Aglietta (1986) adiantou o conceito de forma estrutural (o que, depois, passou a ser chamado de forma institucional), definido como um "modo de coesão das formas sociais resultantes do desenvolvimento de uma mesma relação social fundamental" (Aglietta, 1986, p. 163). Em outras palavras, uma certa forma de organização social, constituída a partir de algumas relações sociais fundamentais, desenvolve-se e adquire maior complexidade num percurso em que essas relações sociais dão origem a um conjunto de instituições que estabilizam e dirigem o processo de manutenção e reprodução dessa sociedade. Alain Lipietz produziu um desenvolvimento mais completo dessa problemática a partir da distinção hegeliana, apropriada por Marx, entre aparência e essência. Em Lipietz (1979) e, depois, em Lipietz (1983), ele estabelece uma relação dialética entre as relações fundamentais, constitutivas do plano interno da análise, a apropriação — ou posse econômica —, a relação mercantil e o assalariamento e suas formas aparentes. Um retorno à obra de Marx e a leitura de outros autores que também estudaram a história do capitalismo, como Polanyi e Braudel, abriram a possibilidade de conciliar a derivação abstrata das formas institucionais realizada pela TR com a gênese histórica desse modo de produção. Alguém que tenha estudado a obra de Marx não deixará de perceber a presença de uma preocupação que buscava reiteradamente traçar um paralelo entre a derivação lógica de um conceito e a gênese histórica da relação social por ele representada. Em O Capital (Marx, 1983), ele afirma que o modo de produção especificamente capitalista começa a existir com a introdução do trabalho assalariado na indústria manufatureira da Europa. Isso só foi possível, entretanto, porque a existência de outras duas relações sociais fundamentais haviam já criado o ambiente em que o uso do assalariamento poderia assumir sua forma capitalista. Essas outras relações foram a forma capitalista de propriedade privada dos meios de produção — a relação de apropriação —, através da qual esses mesmos meios de produção se transformam em capital, e a troca intermediada por moeda — a relação mercantil —, através da qual é possível a separação entre valor e valor de uso, base da acumulação capitalista da riqueza abstrata. Da mesma forma, Braudel (1996) afirmou, ao fazer uma comparação entre as sociedades mercantis orientais e as sociedades européias as quais estudava, que a presença da troca e mesmo da moeda não eram suficientes para definir uma sociedade como capitalista, pois esse modo de produção apenas existe a partir da instituição de uma nova relação social, em que o trabalho produtivo Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 340 Luiz Augusto E. Faria assume a forma de trabalho assalariado.4 Em seu estudo sobre as origens da sociedade capitalista, Polanyi (2000) mostra como o desenvolvimento do capitalismo só foi possível com a ação do Estado, cuja intervenção foi decisiva para desenhar o formato final das relações sociais fundamentais desse modo de produção. O processo é descrito com recurso à figura das três "mercadorias fictícias" — a terra, o dinheiro e o trabalho —, criadas pelo desenvolvimento das relações sociais com o decisivo concurso do Estado e que formam os pilares da ordem econômica capitalista. O adjetivo fictícias visa ressaltar o fato de não serem uma criação do trabalho produtivo, como as demais mercadorias, mas o resultado da apropriação de recursos naturais, humanos ou simbólicos pela classe dominante. Foi a ação regulatória do poder público que tornou possível essa apropriação, ocorrida durante a fase de transição ao capitalismo, quando as amarras feudais que as prendiam a relações pré-capitalistas foram desfeitas: a apropriação da terra pela regulamentação de sua compra e venda; a apropriação do trabalho pelo fim da servidão e a instituição de um mercado onde sua livre contratação ficou possível; e a apropriação do dinheiro pela instituição do curso forçado. Nos primeiros capítulos do Livro I de O Capital, Marx (1983) descreve as relações sociais fundamentais do modo de produção capitalista e a norma jurídica que institui cada uma delas. No capítulo sobre a mercadoria, ele apresenta a relação de apropriação5 como a forma especificamente capitalista de posse de riqueza, regulada pela norma jurídica da propriedade privada na forma que lhe deu o direito burguês. Mais adiante, no capítulo sobre o dinheiro, cujo subtítulo é A circulação da mercadoria, a relação mercantil é descrita junto com as funções da moeda, a mais importante das quais é a norma social que regula as trocas, o princípio da equivalência. Por fim, surge a terceira relação fundamental, nos capítulos sobre o processo de trabalho e a criação da mais-valia (Marx, 1983, cap. 4 a 20): a relação de assalariamento, definida a partir do conceito de mais-valia, a qual é regida pela norma jurídica que regula a maneira capitalista de exploração do trabalho, a extração do excedente na forma valor. 4 Na verdade e como será visto adiante, a definição de capitalismo de Braudel surge quando ele olha para o encontro do dono do dinheiro com o dono do poder político. Em outras palavras, uma sociedade em que o poder político se funda sobre o poder econômico, e este, por sua vez, se constitui a partir da forma especificamente capitalista de exploração do trabalho, o assalariamento. Tal relação, entretanto, como demonstrado na análise da chamada acumulação primitiva, não é imprescindível à constituição dessa relação de poder e historicamente antecedeu o surgimento do capitalismo. 5 Marx não usa o termo relação de apropriação fazendo referência apenas à norma da propriedade. A origem do termo foi inspirada em Charles Bettelheim (1972), onde essa relação é chamada de posse econômica. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 341 Como dito acima, a gênese das formas institucionais que definem o modo de regulação são as relações fundamentais do modo de produção. O caminho dessa gênese começa com as relações fundamentais, a partir das quais se formam as normas jurídicas que regulamentam as relações, as quais instituem as mercadorias fictícias, expressões dessas normas. Num último passo desse percurso, são constituídas as formas institucionais que articulam o modo de regulação, quando, então, o tecido institucional que estabiliza a acumulação de capital encontra o melhor ambiente para seguir sua marcha. A relação de apropriação tem como fundamento jurídico o direito de propriedade. A norma da propriedade privada teve sua origem na instituição de uma proteção legal para a apropriação de uma parcela útil da natureza — a terra cultivável — por uma classe privilegiada de membros da sociedade. Sob o capitalismo, o monopólio da terra é ampliado para um monopólio de todos os meios de produção, resultado do processo de despossessão de agricultores e artesãos no final da Idade Média. Esses meios de produção assumem, por esse caminho, a forma de capital. Seu emprego produtivo ocorre através da constituição de unidades de capital, as empresas ou firmas, onde a combinação capital/ /trabalho acontece sob a direção do capitalista, dando início ao processo de produção e valorização. A articulação dessas unidades de capital cria uma rede de articulações entre empresas, que constitui o sistema econômico. A garantia de um inter-relacionamento sistêmico dessas unidades de capital é função da forma institucional da concorrência, a qual inibe a possibilidade de os comportamentos individuais de cada unidade assumirem um perfil contraditório com a estabilidade de conjunto do sistema econômico, regulando as disputas entre os proprietários, as modalidades de acesso à posse dos meios de produção e estabelecendo uma hierarquia dessas propriedades. A relação mercantil supõe a apropriação, pois a troca só é possível entre pessoas que disponham, como proprietários, das mercadorias postas à venda e da mercadoria que, ao ser aceita na troca, permite a efetivação da compra desejada, o acesso a um valor de uso específico. Entretanto, para que esse intercâmbio pudesse ocorrer, foi preciso a instituição de uma norma, o princípio da equivalência, e de uma mercadoria especial, que incorporasse esse princípio, o dinheiro, a qual possibilitou a formação do sistema de preços baseado no valor dessa mercadoria fictícia. Seu desdobramento no plano da regulação foi a criação da forma institucional da moeda, a restrição monetária, a qual regula o nível de preços e a distribuição dos rendimentos entre os agentes econômicos, vinculados a seu lugar na hierarquia da apropriação. A relação de assalariamento resultou da definição de uma norma social de exploração, de apropriação do excedente na forma de mais-valia, possibilitada pela compra da força de trabalho por um valor menor do que o valor por ela Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 342 Luiz Augusto E. Faria criado na produção. O preço da mercadoria fictícia trabalho, a taxa de salário, é o centro dessa relação, regulada no plano institucional pela forma estrutural da regulação relação salarial e que, por seu turno, define uma taxa de exploração em sua relação com a produtividade do trabalho. A TR desenvolveu, ainda, os conceitos de mais duas formas institucionais, as quais não são um desdobramento das relações internas do modo de produção capitalista, mas originam-se do ambiente social onde este se formou, a saber, a forma do Estado e a forma de adesão ao regime internacional. A primeira tem sua genealogia na configuração do poder político e na especificidade de sua relação com a vida econômica, ao passo que a segunda nasce do tipo de articulação estabelecida entre uma determinada formação social nacional e o sistema internacional no qual está inserida. Uma última advertência em relação à versão mais corrente da TR diz respeito à dimensão temporal. Sua materialidade expressa-se na sucessão de fases de estabilidade e de crise ao longo da existência do sistema. Embora haja uma certa ênfase na estabilidade quando as análises da TR se referem à operação dos mecanismos da regulação, isso não quer dizer que não haja uma regulação da crise, sob pena da incursão em um viés funcionalista. Isto é, se se entende a crise como um momento da existência do sistema, a articulação regulação-acumulação, embora em crise, permanece existindo. Entretanto, pela peculiaridade dessas fases, é uma existência que vivencia, necessariamente, um processo de transformação mais acelerado do que nas fases de estabilidade, pois, como já o sabia Camões (1988), "[...] todo o mundo é composto de mudanças, tomando sempre novas qualidades"; uma maneira de apreender a dicotomia crise/estabilidade é reparando na velocidade das mudanças. Uma vez constituídas suas estruturas, o movimento do sistema em sua totalidade, que se caracteriza pela permanente mudança, deixa de ser resultado unicamente das ações dos agentes econômicos e passa a responder a determinações do plano agregado. Como agem essas determinações é o tema que passamos a tratar a seguir. 3 Mudança: a evolução das estruturas e o fenômeno da emergência O estudo do desenvolvimento econômico de uma sociedade é, de maneira geral, empreendido como o estudo de suas mudanças estruturais. O que faz o desenvolvimento são essas mudanças, pois o próprio processo, que é histórico, pode ser entendido como o processo de evolução das estruturas econômicas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 343 Nesse sentido, seu enfoque, necessariamente, precisa fazer um recorte em termos dos níveis de análise anteriormente referidos, deixando de lado, em larga medida, o plano micro e concentrando-se na abordagem das cadeias de causalidade do plano macro, pois, se as determinações micro explicam a gênese das relações sociais, no plano macro sua articulação produz as estruturas institucionalizadas que dão forma ao sistema econômico. A explicação da dinâmica do sistema em seu conjunto, necessariamente, está definida nesse nível, para o qual fenômenos do plano micro têm relevância unicamente na medida em que comportamentos individuais extrapolem os padrões de normalidade e desencadeiem transformações das próprias relações sociais. Em outras palavras, o comportamento de uma das partes só será significativo se repercutir na articulação de todas as partes e implicar uma mudança do todo. Compreender o movimento do sistema em seu conjunto foi uma tarefa perseguida por Marx em seu trabalho, que teve como resultado a proposição das já referidas leis gerais do modo de produção, como a lei do valor, a lei geral da acumulação ou a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Seu esforço monumental ficou, entretanto, incompleto, não apenas em razão de a morte ter apanhado o autor de O Capital antes da conclusão de sua obra, mas, principalmente, por uma não resolvida ambigüidade metodológica presente em sua produção científica, o que a faz aparecer ora como determinística, ora como subjetivista (Wrigth; Levine; Sober, 1993). É essa ambigüidade que acaba justificando o fato de duas abordagens tão distantes como o individualismo metodológico da escola analítica e o princípio da causalidade estrutural do althusserianismo se reivindicarem marxistas. A ambigüidade é, no entanto, apenas aparente. Quando Marx fez a conhecida afirmação, em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, de que os homens fazem a história em circunstâncias determinadas, estava definindo sua posição em favor do que se poderia chamar subjetivismo sobredeterminado. O sujeito coletivo fundamental, a classe social, faz a história, isto é, produz os fenômenos sociais, condicionado pela herança do tempo pregresso. O poder relativo desse sujeito histórico é resultado do passado da sociedade, assim como o são as instituições e as estruturas que limitam a escolha de quais ações são possíveis de serem intentadas no presente. Em razão disso, é preciso avançar alguns passos adiante da contribuição de Marx e encontrar um meio termo entre essas posições extremadas, um meio termo que pode ser percebido como uma questão então sem resposta, mas já presente na própria ambigüidade referida. Conforme a argumentação apresentada mais acima, inspirada em Wrigth, Levine e Sober (1993), a explicação nas ciências sociais deve percorrer um caminho intermediário entre individualismo e Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 344 Luiz Augusto E. Faria estruturalismo, caminho onde as relações entre os diversos subsistemas que compõem a totalidade da estrutura social são a causa do movimento de conjunto do sistema. Uma contribuição com origem fora da tradição marxista, mas que, como a TR, busca se situar num meio caminho entre causalidade estrutural e individualismo metodológico, é a apresentada pelos institucionalistas e evolucionários. Seu argumento é inspirado num dilema metodológico que envolve as ciências da matéria, o qual tem revelado a impossibilidade de um único sistema teórico dar conta de fenômenos tanto do plano micro quanto do macro.6 Embora a busca incessante, pelos físicos, de uma resposta teórica capaz de produzir a Grande Unificação — movimento correspondente à busca dos microfundamentos pelos economistas —,7 como argumentam autores como Prigogine (1996), a passagem de um plano ao outro implica uma diferença qualitativa, porque a agregação de estruturas mais simples em sistemas mais complexos produz um fenômeno novo, o surgimento de novas propriedades no sistema assim formado, que não poderiam existir em suas partes constitutivas. O fenômeno chama-se emergência. As ciências biológicas há já muito se têm dado conta dessa realidade, ao se defrontarem com as características dos organismos multicelulares. Esses organismos não podem ser confundidos com uma mera agregação de células, como é o caso de um tecido, pois possuem propriedades que não estão presentes no microcosmo celular. Também no campo das ciências físicas, entretanto, a existência de sistemas complexos passou a ser admitida a partir dos trabalhos de Prigogine e outros. 6 É, por exemplo, o caso da Física, onde persiste uma incompatibilidade entre a Teoria Quântica e a Teoria da Relatividade. 7 A Grande Unificação é a tentativa de fundir a mecânica quântica, explicativa dos fenômenos micro no plano das partículas subatômicas e suas forças específicas, com a Teoria da Relatividade, explicativa dos fenômenos macro no plano do cosmos e dos grandes corpos celestes. A analogia não é completa, porque, tal como desenvolvido pelo que se convencionou chamar "macroeconomia moderna", a busca dos microfundamentos, na verdade, não é uma fusão, mas a incorporação da macro pela microeconomia. Por exemplo, a hipótese da neutralidade da moeda e a teoria da escolha pública reduzem a ação do Estado a seus efeitos sobre o comportamento dos indivíduos, reduzindo, em conseqüência, essa estrutura social à condição de um indivíduo. Ora, a contribuição que representa a invenção da macroeconomia por Keynes foi a de reconhecer na moeda e no Estado a condição de formas institucionais que produzem efeitos diretamente sobre as estruturas sociais, alterando as circunstâncias em que os agentes tomam suas decisões individuais ou coletivas. Embora não admitam claramente, é o que implicitamente fazem os novos keynesianos, quando admitem os efeitos do Estado sobre o ambiente econômico ao qual se adaptam as expectativas. Do contrário, seu modelo permaneceria aberto. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 345 Evolucionários e institucionalistas apóiam-se na teoria dos sistemas complexos, particularmente em sua propriedade de auto-organização, a idéia de ordem formando-se a partir do caos (Prigogine, 1996), e adaptam a noção de emergência para a economia, através de uma argumentação que está sistematizada em Hodgson (1997). Para dizer de forma muito breve, admitir que os sistemas econômicos tenham propriedades emergentes é defender sua não-redutibilidade explicativa aos elementos que o compõem no plano básico. As noções de emergência e causalidade desde abaixo são usadas na crítica do individualismo metodológico e da idéia reducionista de que a macroeconomia pode apenas ser construída em termos de "sólidos microfundamentos" [...] ao explicar sistemas complexos, seremos forçados a nos atermos a propriedades emergentes ao nível macro. (Hodgson, 1996, p. 10). Num percurso que os aproxima muito da TR, os autores com essa filiação teórica lançam mão do conceito de instituição, para fazer uma passagem entre os níveis micro e macro. Tal conceito guarda grande semelhança com as formas institucionais na TR, abrangendo o conjunto de mecanismos que condiciona e dirige o comportamento dos indivíduos, na forma de normas, regras e convenções, sejam formalizadas como leis ou regulamentos, sejam informais, como hábitos e valores de conduta.8 Por sua estabilidade e relativa invariância e por perdurarem mais que os indivíduos, as instituições formam, segundo Hodgson, a unidade última de análise (bedrock unit). "Então, a instituição é uma 'invariante construída socialmente'. Como resultado, as instituições devem ser tidas como as unidades e entidades de análise" (Hodgson, 1996, p. 12). Mais adiante, ele resume: O conceito de instituição conecta o mundo microeconômico da ação individual, dos costumes e escolhas com a esfera macroeconômica das estruturas impessoais e aparentemente originais. Enquanto a análise de cada um dos níveis deve permanecer consistente com o mesmo, o nível macroeconômico tem propriedades emergentes e singulares (Hodgson, 1996, p. 12). A mesma função é atribuída, na TR, ao conceito de formas institucionais. Está fora dos propósitos deste trabalho fazer uma avaliação mais aprofundada da contribuição institucionalista. Cabe, entretanto, ressaltar dois pontos. Primeiro, sua preocupação central com a tecnologia produziu o importante aporte de tratá-la como uma instituição e, portanto, endogeneizá-la no esquema de análise, para o que o conceito de sistema nacional de inovação é central. Esse tratamento não existia nas primeiras versões da TR e, se, em seus trabalhos mais recentes, 8 O habitus de Bourdieu referido por Boyer (2004). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 346 Luiz Augusto E. Faria a tecnologia tem recebido uma nova consideração, isso se deve, em larga medida, ao diálogo entre as duas escolas. O segundo ponto relevante é que, inegavelmente e apesar de sua mais breve existência, a TR possui um arcabouço teórico mais robusto, o que lhe permitiu construir uma visão da dinâmica econômica em que as formas institucionais estão tipificadas e hierarquizadas, assim como a articulação do conjunto de instituições é realizada pelo conceito de modo de regulação. Mais ainda, o motor da dinâmica do sistema em seu conjunto é apreendido na dialética entre o regime de acumulação e o modo de regulação. Além disso, desenvolveu uma teoria da crise a partir da qual a passagem da estabilidade ao caos pode ser compreendida como um caso específico, com seus determinantes próprios, mas que pertence a um tipo mais geral, a irrupção de uma contradição entre acumulação e regulação. Esse maior poder de explicação da TR se deve à sua inspiração marxista, especificamente à incorporação da idéia de que os processos sociais são resultado da ação de sujeitos coletivos e que a ação desses sujeitos será sempre condicionada e terá seus limites materiais estabelecidos pelas relações sociais em que estão inseridos. 4 Conceituando o capitalismo Fernand Braudel foi uma influência importante e sempre referida pela TR. Seu emprego do método da Escola dos Anais, buscando a compreensão da evolução histórica nas transformações da vida quotidiana, por oposição à historiografia dos grandes homens e dos seus feitos, está na origem da preocupação dos regulacionistas em produzir uma análise que se desdobrasse em diferentes planos, do mais concreto ao mais abstrato, do micro ao macro. A proposição do conceito de vida material por Braudel inspirou a noção de interação dos agentes em torno dos conflitos localizados que formam o plano microssocial nas análises da TR. Entrementes, a contribuição desse autor vai muito além, representando um olhar sobre o capitalismo de uma outra perspectiva. O sistema social criado pelos europeus na costa do Mediterrâneo permitiu-lhes a construção de estruturas sociais dotadas de arranjos institucionais que se mostraram os mais eficazes historicamente na implementação de sua característica expansionista. Seu domínio avassalador sobre todas as civilizações e sua extensão a virtualmente todo o planeta é decorrente de certas características muito singulares do capitalismo, que esse autor francês percebeu com originalidade e rara agudeza. Para compreender a contribuição de Braudel, é preciso, em primeiro lugar, ter claro que, apesar de ser evidente a presença das idéias de Marx em seu Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 347 trabalho, diferentemente do pensador alemão, Braudel não interpreta o capitalismo como um modo de produção, mas, antes disso, como uma estrutura de poder. O capitalismo é uma forma de organização social em que o poder político, o comando sobre os outros membros da sociedade, é facultado pelo poder econômico. Diferentemente do que na história foi mais comum — estruturas sociais hierarquizadas em classes nas quais o poder político foi precondição para a posse da riqueza material — , o capitalismo inverteu essa causalidade. Nele é a posse da riqueza que dá acesso ao poder político. Entretanto, se o capitalismo criou um fator a mais na definição das hierarquias sociais, fator que se vai tornando dominante na medida em que o capitalismo avança e submete mais e mais todas as esferas da vida social à sua lógica, não criou as hierarquias, apenas as modificou à sua maneira. A demonstração dessa proposição foi realizada por Braudel, através do procedimento epistemológico em que explicou a evolução histórica da estrutura social a partir de uma análise desdobrada em três planos distintos: o da vida material, o da economia de mercado e o do capitalismo. A Figura 3 apresenta um diagrama desses três estratos. Figura 3 A tripartição da sociedade capitalista segundo Braudel Capitalismo Economia de Mercado Vida Material Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 348 Luiz Augusto E. Faria O recurso ao método de desdobrar a análise nesses três níveis tem por objetivo dar conta da complexidade do real e das dificuldades que essa complexidade traz ao processo de investigação científica. Em primeiro lugar, porque apenas o nível intermediário do mercado é transparente, está "na boca do poço", como disse Braudel, uma vez que suas relações se desenvolvem num âmbito público. Os outros dois níveis operam na esfera privada, nos lugares fechados da produção e do consumo, ou nos encontros sigilosos, nos gabinetes do poder, onde se tomam as decisões. Há, também, uma hierarquia entre esses níveis, com o plano do capitalismo servindo-se dos outros dois, usando tanto o mecanismo competitivo do mercado para dominar a circulação do valor, quanto sua propriedade sobre a riqueza acumulada para controlar a criação desse valor. A base sobre a qual se ergue o edifício social é a vida material, cujas "costas imensas" carregam o todo. Braudel a definiu como o lugar "[...] do quotidiano, daquilo que, na vida, se encarrega de nós sem que o saibamos sequer: o hábito — melhor, a rotina" (Braudel, 1987, p. 13-14). Nesse plano, realiza-se a subsistência, para a qual se organizam os processos de trabalho, inventam-se as técnicas que o aperfeiçoam, e é também onde se definem os padrões de consumo típicos de cada sociedade e dos diferentes grupos dentro destas. É o lugar onde se realizam "a produção, enorme domínio, e o consumo, um domínio igualmente enorme" (Braudel, 1987, p. 20). Um passo acima está a economia de mercado, a "zona mais clara", onde os processos de produção e consumo não só se articulam, como se tornam aparentes, ganham vida e definição através dos preços. Aqui as relações de produção adquirem um novo significado: de criadoras de valor de uso, passam a ser geradoras do valor de troca, dando novo sentido ao trabalho, tornando-o produtivo e social. Mas essa esfera age sobre a camada inferior em cima da qual se erige e a transforma não só pela intermediação dos processos de troca no âmbito da produção e do consumo — que, a partir de seu ingresso na economia de mercado, só podem se realizar como etapas de inúmeras cadeias de intercâmbio, cada vez mais complexas e extensas —, mas pela reorganização desses processos, que deixam de ser presididos pelo princípio da utilidade e passam a ter como finalidade a produção de valor de troca.9 Na definição da terceira esfera, Braudel (1987) começa por estabelecer uma distinção entre dois tipos de troca. Um tipo A, aquele de mercado, regido pela lei do valor, como a chamou Marx, e resultando no intercâmbio de 9 Nessa perspectiva, a teoria neoclássica do valor utilidade pode ser avaliada por seu real significado: é puro non sense, uma vez que coloca na posição de inerente ao capitalismo aquilo que ele suprimiu. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 Olhares sobre o capitalismo: estruturas, instituições e indivíduos na economia política 349 equivalentes, seguindo as regras do mercado público tradicional, e outro de tipo B, das "[...] trocas desiguais, em que a concorrência — lei essencial da chamada economia de mercado — dificilmente tem lugar" (Braudel, 1987, p. 47). Esse segundo tipo acontece não no mercado, mas no "contramercado", um espaço dos monopólios, dos "[...] amigos do príncipe, aliados ou exploradores do Estado [...] [que] têm a superioridade da informação, da inteligência, da cultura" (Braudel, 1987, p. 49-50) e comandam cadeias de comércio e finanças cada vez mais longas e que, por essa mesma razão, escapam aos controles habituais da economia de mercado e dão oportunidade ao lucro extraordinário. Resumindo: dois tipos de troca; um terra-a-terra, competitivo, pois que transparente; o outro superior, sofisticado, dominante. Não são os mesmos mecanismos nem os mesmos agentes que regem esses dois tipos de atividade, e não é no primeiro, mas no segundo que se situa a esfera do capitalismo. (Braudel, 1987, p. 53). Esses agentes não são indivíduos isolados, pois o capitalista não é um produto da economia de mercado, como tentaram fazer crer os pensadores liberais através do arquétipo do self made man. Tal condição é herdada, resulta de uma prática de cultivar privilégios e demarcar diferenças por parte de pequenos e seletos grupos, "[...] famílias vigilantes, atentas, empenhadas em aumentar pouco a pouco sua fortuna e sua influência" (Braudel, 1987, p. 58). Essa característica Braudel foi encontrar unicamente na história da Europa, o que explica o não-surgimento do capitalismo na civilização chinesa ou no Islã, dotados de vida material e de economias de mercado, à sua época, bastante mais ricas que as européias. Nesses dois casos, as posições superiores na hierarquia social não podiam ser herdadas, pois dependiam seja de concurso público, no caso dos mandarins na China, seja da redistribuição da propriedade pelo Estado, no caso das sociedades islâmicas. As características históricas do capitalismo são, primeiro, a exploração das oportunidades e dos recursos internacionais, o caminho a que conduz o alongamento das redes do comércio e das finanças; em segundo lugar, o recurso aos monopólios de fato ou de direito, pois "[...] a organização, como se diz hoje, continua a fazer funcionar o mercado" (Braudel, 1987, p. 90); em terceiro lugar e para assegurar, dentre outras coisas, os monopólios de direito, o capitalismo precisa do Estado, tende a se confundir mesmo com o Estado; e, em quarto lugar, embora assim como a economia de mercado tende a se espraiar pela estrutura social, o capitalismo não alcança nunca abarcar toda a economia. O capitalismo não abrange toda a economia, toda a sociedade que trabalha; jamais encerra uma e outra num sistema, o dele, e que seria perfeito: a tripartição de que falei antes — vida material, economia de mercado, Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 325-352, out. 2007 350 Luiz Augusto E. Faria economia capitalista (esta com enormes adjunções) — conserva um surpreendente valor atual de discriminação e explicação. (Braudel, 1987, p. 90-91). ◆◆◆ Tratamos, neste texto, de discutir algumas questões de método que nos ajudassem a compreender com mais propriedade os fenômenos econômicos sob o capitalismo. Vimos que as ferramentas usuais dos economistas em muito pouco ajudam a desvendar os segredos desse sistema social. Para formular melhores explicações, é preciso evitar tanto o reducionismo do individualismo metodológico quanto a abstração da causalidade estrutural. Dando um passo adiante, fomos ver o quanto a Teoria da Regulação acrescenta à contribuição original de Marx, traduzindo-a numa ferramenta para a análise do desenvolvimento histórico dos sistemas econômicos capitalistas. Vimos também como combinar os plano micro e macro da análise, para o que o conceito de formas institucionais é central, bem como o quanto a análise ganha em profundidade e abrangência quando se consegue realizá-la em diferentes níveis de abstração. Por fim, visitamos o pensamento de Braudel, para alargar as fronteiras do nosso conceito de capitalismo. Apreender a eloqüente lição de Braudel, bem como as contribuições de Marx e dos regulacionistas, faz ver o quão distante da verdadeira natureza do capitalismo estão as descrições que os economistas tão diligentemente se encarregam de elaborar — em geral, adornadas com elegante apuro matemático —, e que nos falam de um sistema a se mover em direção ao equilíbrio, estruturado sobre relações de troca homogêneas, simétricas e recíprocas. São parábolas de um outro mundo, em tudo diferente do capitalismo engendrado pela história da Europa ocidental e hoje abarcando a quase-totalidade do planeta em proveito de um seleto grupo de beneficiários desse sistema de dominação social, que conseguiu, com inaudita agressividade, estender seu predomínio até onde nenhuma outra forma de civilização sequer sonhou. Referências AGLIETTA, M. Le capitalisme au tournant du siècle: la théorie de la régulationàl epreuve de la crise. Posfácio a Aglietta. In : AGLIETTA, M. Régulation et crise du capitalisme. 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Realismo crítico e abordagem da Regulação: da possibilidade de colaboração entre Ciência e Filosofia* Carolina Miranda Cavalcante** Doutoranda em Economia, na Universidade Federal Fluminense (UFP) Resumo O propósito deste artigo é a investigação de uma possível compatibilidade entre o programa de pesquisa heterodoxo da abordagem da Regulação e a proposta filosófica do realismo crítico. O esquema conceitual da abordagem da Regulação é apresentado a partir dos trabalhos metodológicos de seus principais autores: Aglietta, Lipietz e Boyer. A proposta do realismo crítico é sugerida como fornecedora de fundamentos metodológicos para programas de pesquisa heterodoxos, que se orientam no sentido da construção de uma alternativa teórica à tradição neoclássica. Uma colaboração frutífera entre a abordagem da Regulação e o realismo crítico é possível, e esse é precisamente o caminho indicado no presente artigo. Palavras-chave Realismo crítico; abordagem da Regulação; Filosofia da Ciência. Abstract This article’s purpose is the study of a possible compatibility between the heterodox research program of regulation approach and the philosophical proposal of critical realism. The conceptual framework of regulation approach is sketched * Artigo recebido em ago. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007. ** A autora agradece, pelos comentários ao presente artigo, a Célia Kerstenetzky, André Guimarães e a um parecerista anônimo desta revista. Agradece, ainda, à Faperj e ao CNPq pelo apoio financeiro. E-mail: [email protected] [email protected] E-mail: Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 354 Carolina Miranda Cavalcante through the methodological works of its main authors — Aglietta, Lipietz and Boyer. The proposal of critical realism is suggested as a provider of methodological grounds for heterodox research programs, which is oriented to the construction of a theoretic alternative to neoclassical tradition. A prolific collaboration between regulation approach and critical realism is possible, and it is precisely this way that we point out in the present article. Key words Critical realism; regulation approach; philosophy of science. Classificação JEL: B29, B41, B59. 1 Introdução: o surgimento da abordagem da Regulação como programa de pesquisa heterodoxo e a emergência do realismo crítico nos debates em Filosofia da Ciência Este artigo busca apresentar a proposta filosófica do realismo crítico e o esquema conceitual da Escola Francesa da Regulação, ou, simplesmente, Regulação. Contudo, não está sendo sugerida uma completa identificação desses dois paradigmas, poder-se-ia dizer, um filosófico e outro teórico. O objetivo do presente estudo é a identificação de elementos ontológicos e metodológicos comuns à Regulação e ao realismo crítico. Um aspecto que une regulacionistas e crítico-realistas concerne à avaliação crítica dos supostos fundamentais da Economia neoclássica-padrão. Esse ponto em comum pode ser verificado na natureza mesma de tal crítica, que não pretende contribuir com a ampliação do espectro de questões abarcadas pelo programa de pesquisa neoclássico, mas procura fornecer as bases para um programa de pesquisa alternativo. Nesse sentido, sua crítica é ontológica e sua proposta aponta a própria redefinição do objeto de estudo da Economia, em que a noção de sistemas fechados é suplantada pela de sistemas abertos e o ponto de partida do individualismo é substituído pela idéia da precedência da sociedade em relação aos sujeitos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 355 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... A Escola Francesa da Regulação emerge num momento de contestação do estruturalismo althusseriano, cujo esquema conceitual excluía o sujeito do processo histórico. Os regulacionistas reconhecem uma herança althusseriana, apesar de compartilharem da crítica a esse estruturalismo, que afirmava as estruturas, mas negava o sujeito. Os regulacionistas são “filhos rebeldes de Althusser” (Lipietz, 1993). Logo, a Regulação procura construir uma alternativa à tradição neoclássica, ao indivíduo a-histórico, mas com o cuidado de não incorrer nas estruturas sem sujeito do althusserismo clássico. Michel Aglietta, Alain Lipietz e Robert Boyer são considerados os principais autores da Escola Francesa da Regulação. Segundo Nascimento (1993), o programa de pesquisa regulacionista deu seus primeiros passos teóricos na década de 70, a partir das discussões suscitadas pela Tese de Doutorado de Michel Aglietta, defendida em outubro de 1974 e, posteriormente, publicada em 1976, sob o título Régulation et Crises du Capitalisme1. Pode-se dizer que a Regulação possui, em termos lakatosianos, um núcleo rígido, definido em torno do conceito de Regulação. Segundo Lipietz, regulação de uma relação social é “[...] o modo como essa relação se reproduz apesar de seu caráter conflituoso, contraditório” (Lipietz, 1988, p. 92). Sem esquecer que entre os regulacionistas existem matizes, por vezes significativas, o que importa, porém, é que persiste entre eles um núcleo duro na formulação do conceito de regulação: série de mecanismos que contribuem para a reprodução do conjunto, tomando-se em consideração tanto as estruturas econômicas quanto as formas sociais em vigor. (Nascimento, 1993, p. 128). Uma questão a ser considerada é que, embora o conceito de regulação forneça uma unidade à Regulação, esse programa de pesquisa se constitui sob várias influências teóricas, das quais Nascimento (1993) destaca o pensamento de Marx e de Keynes, além da Escola dos Annales2. Lipietz afirmou, numa entrevista de 1987, que “[...] não há exatamente uma teoria da regulação. É preferível denominá-la uma abordagem que fala de modelos de desenvolvimento em termos de acumulação e regulação” (Lipietz, 1987). Ao desenvolver suas asserções em nome da abordagem da Regulação, Lipietz e Boyer sempre 1 No presente trabalho, será utilizada a edição de Aglietta (2000). 2 A Escola dos Annales surgiu a partir da obra de dois historiadores — Marc Bloch e Lucien Febvre — em torno da revista Annales, publicada em 1929. A proposta dos autores era a construção de uma noção de história-problema, alternativa à história positivista. Os campos de interesse da Escola dos Annales envolviam estudos de estrutura, estudos de conjuntura e estudos regionais. Sobre a Escola dos Annales, ver Cardoso e Brignoli (2002, p. 470-477). Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 356 Carolina Miranda Cavalcante enfatizam a particularidade de suas respectivas perspectivas acerca da Regulação.3 O realismo crítico é uma tradição filosófica, que emergiu, também na década de 70, a partir da obra seminal de Roy Bhaskar, A Realist Theory of Science, de 1975 (Bhaskar, 1997). O objetivo de Bhaskar é construir uma descrição realista da ciência, na qual seja possível fornecer “[...] uma ampla alternativa ao positivismo que, desde o tempo de Hume, tem delineado nossa imagem de ciência” (Bhaskar, 1997, p.12). Em 1997, Tony Lawson publicou Economics and Reality, tendo, assim, inserido a proposta de Bhaskar nas discussões de metodologia econômica. Lawson sustenta que a Economia ortodoxa encontra no positivismo lógico seus fundamentos filosóficos, razão pela qual tem sido apontada como portadora de recorrentes problemas teóricos e metodológicos. Desse modo, Lawson apóia-se no realismo crítico, a fim de fornecer um contraponto à ortodoxia econômica no campo da Filosofia da Ciência. Seu argumento é o de que os fundamentos filosóficos da economia mainstream são responsáveis por suas inadequações teóricas e metodológicas e que a construção de uma ciência econômica mais objetiva dependeria de uma reafirmação ontológica. Uma economia mais objetiva demanda, acrescenta Lawson, o abandono de uma ontologia positivista e a assunção de uma ontologia crítico-realista. As diversas críticas heterodoxas que vêm sendo direcionadas à tradição neoclássica nas últimas décadas são fundamentais na busca de novos rumos teóricos no campo da Economia. Nesse sentido, o realismo crítico pode fornecer argumentos bastante frutíferos na tarefa de construção de uma alternativa heterodoxa ao mainstream econômico, ocupado pela tradição neoclássica. Na medida em que as heterodoxias buscam edificar esquemas teóricos concorrentes ao programa de pesquisa neoclássico, cuja ontologia subjacente é provida pelo positivismo lógico, a sugestão do realismo crítico de reafirmação ontológica pode ajudar na emergência de alternativas teóricas mais robustas. 3 Um curioso fato pode ser identificado entre os críticos da Regulação, em que cada crítico procede a uma particular leitura desse programa de pesquisa, o que acaba por produzir as mais diversas avaliações — como exemplos, ver Medeiros e Oliveira (2001), Possas (1998), Mavroudeas (1999) e Nascimento (1993). O que Possas acredita estar faltando na Regulação é precisamente o que Mavroudeas pensa ser sua maior deficiência — a presença de conceitos intermediários. Adicionalmente, enquanto Mavroudeas considera que a Regulação se tem deteriorado conceitualmente com o tempo, Nascimento acredita que os desenvolvimentos recentes de Lipietz e Boyer respondem a algumas críticas formuladas por Possas. Contudo foge do escopo deste trabalho a consideração mais atenta das críticas à abordagem da Regulação. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 357 O restante do artigo dividir-se-á em três itens. Inicialmente, será apresentado o programa de pesquisa regulacionista. Em seguida, será exposta a proposta filosófica do realismo crítico. Por fim, serão indicadas algumas similaridades entre o esquema conceitual da Regulação e o realismo crítico. 2 Abordagem da Regulação: um paradigma teórico A exposição do esquema conceitual da Regulação será realizada em dois momentos. Inicialmente, será estabelecido o posicionamento teórico a partir do qual a Regulação se insere nos debates em Economia. Nesse sentido, são apresentadas algumas críticas de Aglietta à tradição neoclássica e a filiação crítica que Lipietz identifica entre a Regulação e o pensamento de Althusser. Em seguida, será realizada uma breve exposição dos conceitos centrais ao programa de pesquisa regulacionista, a partir dos distintos níveis de abstração sugeridos por Boyer. A crítica da Regulação ao mainstream dirige-se a três elementos componentes do programa de pesquisa neoclássico: (a) equilíbrio geral, (b) perfeita racionalidade e (c) individualismo metodológico. Aglietta (2000) desenvolve sua avaliação da tradição neoclássica com base na crítica à idéia de equilíbrio geral, a partir da qual diversas inconsistências metodológicas podem ser apontadas. Aglietta identifica duas deficiências do programa de pesquisa neoclássico: [...] primeiro, sua inabilidade em analisar o processo econômico em termos do tempo vivido pelos sujeitos, em outras palavras fornecer um relato histórico dos fatos econômicos; e segundo, sua inabilidade em expressar o conteúdo social das relações econômicas, e conseqüentemente interpretar as forças e conflitos em operação no processo econômico (Aglietta, 2000, p. 9). Aglietta (2000) assinala que a tradição neoclássica sustenta uma noção de tempo não correspondente ao tempo efetivo das economias reais. Essa noção de tempo (lógico) encontra-se implicada na idéia de equilíbrio geral, que, por sua vez, está atrelada a um particular modo de fazer ciência, consistente na construção de modelos abstratos4. Existe, por conseguinte, um gap entre a concepção de tempo implicada nos modelos de equilíbrio geral e a temporalidade 4 Naturalmente, toda teoria constitui-se através de abstrações; a questão significativa é o modo como essas abstrações são realizadas. Retornar-se-á a essa temática adiante. Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 358 Carolina Miranda Cavalcante das economias reais. O que os modelos neoclássicos negligenciam é o caráter histórico da sociedade. Ademais, a idéia de equilíbrio geral torna qualquer conceito de regulação dispensável, pois a própria noção de equilíbrio implica a existência de mecanismos que direcionam a economia para esse estado de equilíbrio, de modo automático. Justamente, é essa automaticidade que elimina a necessidade de regulação. No mundo neoclássico, a regulação não é nada além de um conjunto de propriedades globais do equilíbrio geral (Aglietta, 2000, p. 10). O conceito de Regulação remete à avaliação do segundo fato destacado por Aglietta, a saber: os modelos neoclássicos não são capazes de lidar com os conflitos inerentes às relações sociais. Poder-se-ia dizer que, sem conflito, não há regulação; portanto, não há história, nem sociedade. Para que o suposto fundamental de equilíbrio seja satisfeito, devem ser formuladas regras de eficiência do sistema econômico que levem os indivíduos a agirem racionalmente, compatibilizando suas ações (Aglietta, 2000, p.10). Nessa construção teórica, não há espaço para qualquer regulação das relações sociais, dado que todos os agentes são perfeitamente racionais e que suas ações são automaticamente compatibilizadas, garantindo o equilíbrio do sistema. A perspectiva neoclássica, pelo menos em sua versão mais tradicional, é a do individualismo metodológico, em que indivíduos atomizados, no curso de sua ação racional, sempre encontram um estado de equilíbrio. Uma das teses da Regulação, afirma Lipietz (1987), sustenta que as relações sociais são contraditórias, por conseguinte, não existe algo como um estado de equilíbrio. Boyer (1990) assinala, ainda, que não há um princípio único de racionalidade, o indivíduo neoclássico é um homem abstrato. Toda ação individual se dá em meio a estruturas sociais, o próprio indivíduo é uma construção social e histórica concreta. Para agir, o sujeito precisa edificar um espaço de representação das condições estruturais que possibilitem sua ação; em outras palavras, toda prática social é orientada por projetos. Adicionalmente, tal representação somente pode ser realizada se existirem estruturas sociais que lhe sirvam de base; os projetos dos sujeitos não surgem do nada. Deste modo, “[...] as relações sociais podem ser apreendidas, na Regulação, como um compromisso entre agentes movidos por seus projetos” (Augusto, 2004, p. 437). Ademais, os “[...] agentes que estabelecem um compromisso de manter uma relação carregam projetos diferentes e contraditórios” (Augusto, 2004, p. 438). Se esses projetos são contraditórios, então, uma regulação das relações sociais se faz necessária. Lipietz (1987) fornece um contraponto ao individualismo metodológico, definindo a sociedade como uma rede de relações sociais. Portanto, o ponto de partida da análise regulacionista são as relações sociais, não indivíduos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 359 atomizados, racionalmente informados, em busca de estados de equilíbrio. Não são os indivíduos que espontaneamente resolvem instituir relações de troca, visto que a própria ocorrência da troca pressupõe a existência de relações de troca. Lipietz afirma ainda que a troca é, ela mesma, uma particular modalidade de relação social. Não há algo como um indivíduo abstrato ou um estado de natureza a partir do qual a sociedade emerge. “Na história, não existe ação no vazio, toda ação é uma ação na estrutura — mesmo que seja contra a estrutura existente” (Augusto, 2004, p. 440). Desse modo, a abordagem da Regulação sustenta uma perspectiva holista, não funcionalista, acerca da sociedade. Além da crítica à tradição neoclássica, a abordagem da Regulação também identifica algumas deficiências no esquema conceitual do althusserismo clássico, em que três elementos fundamentais podem ser destacados: (a) relações sociais como estruturas, (b) ausência de sujeito e (c) holismo absoluto. Do mesmo modo que a contradição está ausente no mundo dos indivíduos neoclássicos, ela não se encontra presente no mundo das estruturas sem sujeito do althusserismo clássico. Na perspectiva do estruturalismo de Althusser, “[...] as relações sociais não eram percebidas como contradições, tensões instáveis, mas como estruturas” (Lipietz, 1988). Clive Lawson (1995) atribui a Althusser a adoção de uma específica modalidade de holismo — holismo absoluto5 —, que exclui o sujeito do processo histórico. De acordo com Augusto (2004), a história de Althusser é uma história sem sujeito. Assim sendo, na reação da Regulação ao individualismo metodológico (hommo ecconomicus), havia uma preocupação de não-adoção do seu pólo oposto, o holismo absoluto (enfoque estruturalista). A abordagem da Regulação “[...] foi desenvolvida com base em uma dupla crítica: por um lado, do hommo ecconomicus, por outro, do enfoque estruturalista” (Boyer; Saillard, 1995). Desse modo, na discussão concernente à conexão estrutura-ação, a abordagem da Regulação busca trilhar um caminho intermediário — nem indivíduo sem sociedade (tradição neoclássica), nem história sem sujeito (althusserismo clássico). Por um lado, o foco encontra-se exclusivamente na ação, por outro, apenas as estruturas são consideradas. A Regulação pretende, por conseguinte, capturar o objeto social, levando em conta tanto o papel das estruturas sociais quanto o da ação humana.6 5 A expressão holismo absoluto, de Clive Lawson (1995), está sendo utilizada como forma de caracterização do althusserismo clássico, em que este é distinguido da modalidade de holismo sustentada pela abordagem da Regulação. 6 O conceito que fornecerá uma unidade não reducionista às categorias da estrutura e da ação é o conceito de habitus, elaborado por Bordieu. O conceito de habitus será mencionado adiante. Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 360 Carolina Miranda Cavalcante A proposta de Aglietta (2000) é a construção de uma alternativa à tradição neoclássica, a partir do conceito de regulação, que comporte uma outra noção de tempo, compatível com o caráter histórico das economias reais. Tal noção de tempo deve, ainda, ser capaz de explicar a reprodução dos sistemas econômicos, considerando as transformações inerentes à sociedade, bem como deve entreter uma noção de totalidade hierarquizada, isto é, uma perspectiva holista, porém não funcionalista. O termo “regulação”, cujo conceito é tarefa da teoria a ser construída, indica a necessidade de uma análise que considere o sistema econômico como um todo. Essa análise deve produzir leis gerais que sejam socialmente determinadas, precisamente especificando as condições históricas de sua validade. (Aglietta, 2000, p.15). Nesse sentido, a Escola Francesa da Regulação nasce com o objetivo de fornecer uma alternativa à tradição neoclássica, ao mesmo tempo em que busca superar as limitações do althusserismo clássico. Todo o aparelho conceitual em termos de formas institucionais, regime de acumulação e modo de regulação visa justamente superar tanto a incapacidade do individualismo metodológico em lidar com as instituições econômicas de base do capitalismo ao lhes reduzir a formas de troca mercantil, quanto a incapacidade do estruturalismo marxista em analisar as mudanças, especialmente no momento das grandes crises. (Boyer; Saillard, 1995). A seguir, serão apresentados os conceitos propostos pela abordagem da Regulação a partir de seus distintos níveis de abstração. Sugere-se uma exposição desses níveis de abstração com base no grau de concretude analítica de três conceitos adotados pela Regulação: (a) habitus, (b) relações fundamentais e (c) conceitos intermediários. O conceito de habitus é aqui considerado como o mais alto nível de abstração, pois consiste numa asserção sobre a forma de ser da sociedade, na qual sujeitos e estruturas sociais se encontram indissociavelmente ligados, apesar de ontologicamente distintos. As relações fundamentais remetem a uma particular configuração histórica das relações sociais, que se cristaliza no capitalismo. Os conceitos intermediários tratam das formas institucionais, realizando a passagem do nível de teorização mais abstrato no âmbito da configuração histórica capitalista (relações fundamentais) para as configurações institucionais mais concretas, que fornecem o espaço de representação a partir do qual os sujeitos constroem seus projetos. O conceito de habitus remete ao que Lipietz denomina disponibilidade, que consiste na “[...] capacidade [do sujeito] de manter um papel e de procurar melhorar o próprio desempenho” (Lipietz, 1990). A categoria do habitus engloba tanto uma prática objetivada quanto uma prática objetivante. A prática objetivante refere-se ao “[...] movimento pelo qual os seres humanos se produ- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 361 zem e engendram suas futuras rotinas” (Lipietz, 1993). Já a prática objetivada é “[...] o estado do homem social assim produzido, tanto de sua produção material quanto de suas práticas rotinizadas em relações sociais, que se apresentam agora como ‘condições’’’ (Lipietz, 1993). A unidade da prática objetivante e da prática objetivada na categoria do habitus implica que “[...] no próprio ato de se conformarem às condições, os homens modificam-nas de acordo com um projeto” (Augusto, 2004, p. 436). Adicionalmente, informa Augusto (2004), a prática objetivante é o lócus da ação criativa, em que rotinas futuras são engendradas. Naturalmente, a ação humana somente pode ocorrer em meio a estruturas sociais relativamente duradouras, fornecidas pela prática objetivada, pela cristalização de rotinas previamente engendradas. A prática objetivada é o lócus do hábito. No segundo nível de abstração, são consideradas as relações fundamentais — relação mercantil, relação salarial e Estado. A questão essencial, quando se trata das relações fundamentais, é a compreensão do estatuto das relações sociais, que serão definidas, de acordo com Lipietz, como um conjunto de práticas que se repetem com certa regularidade e que assumem uma autonomia relativa. “Na infinidade dos atos sociais quotidianos, falar de relações sociais é designar a regularidade de certas práticas sociais. Essa regularidade não é evidente, nem objetiva nem subjetivamente” (Lipietz, 1988, p. 92). Ademais, essas relações são contraditórias, pois, como já exposto, os projetos dos sujeitos são diferentes entre si. Os conceitos intermediários compõem o terceiro nível de abstração, seu menor nível de abstração. São dois os conceitos intermediários: regime de acumulação e modo de regulação. O regime de acumulação é composto por uma norma de produção e por uma norma de consumo, podendo ser definido como “um modo de repartição e de realocação sistemática do produto social” (Lipietz, 1988, p. 105). O modo de regulação pode ser definido como um conjunto de padrões de comportamento e instituições (Lipietz, 1987). Nesse sentido, um modo de regulação encontra-se representado num dado conjunto hierarquizado de formas institucionais. São cinco as formas institucionais identificadas pela Regulação: (a) restrição (ou coação) monetária, (b) relação salarial, (c) formas de concorrência, (d) configuração internacional e (e) natureza do Estado. As formas institucionais são necessárias para a reprodução das relações sociais, pois constituem o modo através do qual as relações fundamentais se apresentam para os sujeitos; configuram o espaço de representação que os sujeitos tomam como base para sua ação em sociedade. Conforme assinalado anteriormente, qualquer projeto pressupõe um espaço de representação, algum grau de conhecimento das condições de sua realização (Augusto, 2004, Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 362 Carolina Miranda Cavalcante p. 436-437). Por fim, a conjunção de um regime de acumulação com um modo de regulação define distintos modelos de desenvolvimento ao longo do tempo (Lipietz, 1987). Sintetizando a proposta da Regulação. Da contribuição ontológica: (a) a sociedade precede os indivíduos; (b) as estruturas sociais, que se apresentam para os sujeitos como formas institucionais, possibilitam a ação humana (prática objetivada) e são produzidas e reproduzidas através da ação humana (prática objetivante) e (c) a ação criativa é orientada por projetos. Da contribuição metodológica: análise das economias reais através da investigação histórica. Da contribuição teórica: reconhecimento de que a investigação científica deve abarcar distintos níveis de abstração, com destaque para os conceitos intermediários. O esquema a seguir ilustra o ciclo virtuoso da Regulação, no qual as relações sociais estão se reproduzindo com uma relativa estabilidade. Nesse esquema, é possível identificar, ainda, os conceitos acima mencionados, bem como a forma como concorrem para a reprodução do sistema, sempre guardando o espaço do sujeito nesse processo; por conseguinte, a possibilidade de transformação dos modelos de desenvolvimento ao longo do tempo. 3 Realismo crítico: um paradigma filosófico O realismo crítico é uma corrente filosófica que emerge dos escritos de Roy Bhaskar da década de 70, a partir da qual é possível fornecer uma crítica tanto ao positivismo lógico quanto aos teóricos do crescimento do conhecimento.7 Tony Lawson foi o responsável pela disseminação do pensamento de Bhaskar nos debates metodológicos em Economia, daí retirando as bases para sua crítica à economia mainstream. A seguir, apresentar-se-á o argumento filosófico desenvolvido por Lawson. Lawson sustenta que os problemas da Economia, mais especificamente da ortodoxia econômica, residem num conjunto de métodos denominado dedutivismo, que consiste numa concepção de ciência e explicação que identifica lei científica com conjunções constantes de eventos, são leis do tipo “sempre que evento x, então, evento y” (Lawson, 1997, p. 17). De acordo com Lawson (1997), regularidades de eventos somente podem ser encontradas em sistemas fechados, pois é precisamente o fechamento do 7 As discussões em Filosofia da Ciência do positivismo lógico até os teóricos do crescimento do conhecimento podem ser encontradas em Caldwell (1982), Blaug (1999) e Feijó (2003). Para uma revisão de tais discussões, com a inclusão dos desenvolvimentos do realismo crítico, ver Duayer, Medeiros e Painceira (2000; 2001) e Cavalcante (2005). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 363 sistema que permite a repetição ininterrupta de uma seqüência de eventos. Ademais, essa concepção de lei científica fundamenta-se numa ontologia lógico-positivista, que compreende a “[...] realidade como consistindo de objetos da experiência ou impressões constitutivas de eventos atomísticos” (Lawson, 1997, p. 19). Por fim, para uma ciência baseada no dedutivismo ser possível, os referidos sistemas fechados devem ser ubíquos, de modo a garantirem a ocorrência das regularidades de eventos, expressas em leis científicas, no mundo. Para demonstrar as inconsistências do dedutivismo, Lawson (1997) propõe que se investigue uma prática difundida na ciência natural — a atividade experimental. O que ocorre em ambiente experimental é a produção de regularidades de eventos; portanto, de sistemas fechados. No entanto, o mundo é povoado de sistemas abertos, de modo que as conjunções constantes de eventos são contingentes, sendo raramente verificadas fora dos sistemas fechados. A partir do dedutivismo, como explicar os resultados da ciência natural? Como explicar a aplicabilidade de leis entendidas como regularidades de eventos (sistemas fechados) no mundo (sistemas abertos)? Pode-se concluir que: (a) os sistemas fechados encontrados na atividade experimental são artificialmente produzidos e (b) o dedutivismo não é capaz de explicar a prática científica efetiva. Resumindo, a tradição neoclássica, segundo Lawson (1997), ao adotar como método científico o dedutivismo, pode ser metodologicamente caracterizada do seguinte modo: (a) lei científica como conjunção constante de eventos, (b) sistemas fechados e (c) ontologia de eventos atomísticos brutos. Lawson (1997) convida a uma análise de como os cientistas naturais extraem suas descobertas a partir da atividade experimental. Os sistemas fechados, construídos artificialmente em laboratório, são elaborados pelo sujeito cognoscente com o propósito de isolar eventos de interesse, para que leis científicas possam ser identificadas. Nesse sentido, as conjunções constantes de eventos são produzidas no intuito de que seja possível conhecer o modo de funcionamento das leis científicas assim identificadas. Destarte, conclui Lawson (1997), se leis científicas identificadas em laboratório continuam em operação no mundo, então, essas leis devem ser operativas tanto em sistemas fechados quanto em sistemas abertos. Leis científicas são, por conseguinte, intransitivas; existem e operam independentemente de sua identificação em ambiente experimental.8 8 A Lei da Gravidade, por exemplo, não começou a existir a partir de sua descoberta. Evidentemente, antes de Newton, os corpos sofriam o efeito da Lei da Gravidade, embora esta ainda não fosse conhecida. Aqui fica evidente o absurdo do dedutivismo. Se lei científica é entendida como conjunção constante de eventos e se essas conjunções são produzidas Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 364 Carolina Miranda Cavalcante Se a atividade experimental faz sentido enquanto prática científica, necessitando determinadas entidades da produção de fechamentos artificiais para sua identificação, então, é preciso reconhecer que o mundo não se esgota nos eventos empíricos e em seus efeitos. A concepção de uma estratificação ontológica9 faz-se necessária. De acordo com Lawson (1997), é possível identificar três estratos constitutivos do objeto da ciência: empírico, efetivo e real. O estrato do real é o lócus das leis intransitivas, bem como dos mecanismos generativos, causadores do curso efetivo dos eventos. A proposta de Bhaskar (1997) é que se estabeleça que os objetos do conhecimento comportam eventos empíricos, mas também leis gerais e mecanismos causais que residem além da esfera empírica e que são responsáveis pelo curso de eventos observados. Um ponto importante é que leis científicas e mecanismos causais não constituem uma adição arbitrária do sujeito cognoscente a uma teoria que deve comportar mais que eventos empíricos; tais leis e mecanismos possuem uma existência independente de sua identificação, são entidades reais, intransitivas, conseqüentemente, não imaginárias. Assim sendo, a ontologia filosófica proposta por Bhaskar é o realismo transcendental.10 Uma ontologia estratificada depende de um método distinto dos métodos indutivo e dedutivo. O método retrodutivo, sugerido como o adequado a uma ontologia realista transcendental, é aquele que visa, a partir das esferas empírica e efetiva, identificar os mecanismos e as leis causadoras do curso efetivo dos eventos. Se a dedução é ilustrada pelo movimento de uma vindicação geral de que “todos os corvos são pretos” para a inferência particular que o próximo corvo observado será preto, e a indução pelo movimento da particular observação de numerosos corvos pretos para a vindicação geral de que “todos os corvos são pretos”, o raciocínio retrodutivo ou abdutivo é designado como o movimento que parte da observação de numerosos corvos pretos para uma teoria ou um mecanismo intrínseco (e talvez pelo sujeito cognoscente, então, as leis científicas são uma construção humana e somente podem existir na medida em que sejam conhecidas e/ou fabricadas pelos sujeitos. O dedutivismo, leva a pensar que a lei da gravidade é uma construção do sujeito cognoscente, somente existindo, portanto, a partir de sua descoberta por Newton. 9 Para uma exposição mais detalhada da estratificação ontológica, ver Bhaskar (1997) e Lawson (1997). 10 Bhaskar (1997) assinala que a confusão de leis intransitivas com processos artificialmente produzidos pelo sujeito cognoscente deriva de uma não-distinção entre os dois domínios do conhecimento — transitivo e intransitivo. O domínio transitivo é aquele no qual residem, segundo Lawson (1997), os meios de produção produzidos, ou seja, conhecimento produzido a partir de conhecimentos pretéritos. O domínio intransitivo é aquele no qual se encontram os objetos de estudo da ciência. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 365 também extrínseco) aos corvos que os dispõem a serem pretos. Este é um movimento, paradigmaticamente, de um “fenômeno superficial” para alguma entidade causal mais “profunda”. (Lawson, 1997, p. 24). O passo seguinte é a aplicação do argumento desenvolvido para a atividade experimental à Ciência Social. Lawson (1997) propõe que se analise o estatuto da escolha humana, central ao programa de pesquisa neoclássico. Assinala Lawson: “[...] se a escolha é real, qualquer agente poderia sempre ter feito de outra maneira; cada agente poderia sempre ter agido diferentemente do modo como ele ou ela de fato agiu” (Lawson, 1997, p. 30). Em outras palavras, a escolha real somente é possível em sistemas abertos. Destarte, também no âmbito da ciência social, o dedutivismo mostra-se inadequado na explicação de seu objeto, no caso, a ação individual. Da realidade dos sujeitos que fazem escolhas, pode-se inferir que qualquer escolha entre alternativas implica uma certa intencionalidade, isto é, o agir humano é sempre finalístico. A intencionalidade humana, por sua vez, pressupõe alguma cognoscibilidade do ambiente no qual se planeja realizar essa intenção, e “[...] o conhecimento pressupõe um grau de durabilidade dos objetos de conhecimento suficiente para que eles venham a ser conhecidos” (Lawson, 1997, p. 30-31). Por conseguinte, o agir humano intencional somente pode ocorrer com base em estruturas relativamente duradouras. Se tais estruturas dependem da ação humana para continuarem existindo, pode-se, adicionalmente, afirmar que essas estruturas são sociais. Desse modo, o fundamento da ação humana teleologicamente orientada são as estruturas sociais relativamente duradouras. Por fim, será apresentado, brevemente, o modelo transformacional da atividade social, elaborado por Bhaskar (1998). A idéia central desse modelo é a superação do voluntarismo weberiano (individualismo metodológico), no qual as estruturas sociais são produto direto da ação humana, e do estruturalismo durkheimiano (holismo metodológico), em que a ação humana é totalmente determinada pela configuração estrutural. Por um lado, a ação humana está livre de qualquer restrição estrutural, por outro, ela sofre um condicionamento absoluto da configuração estrutural. A sugestão de Bhaskar (1998) é que se considere o caráter dual tanto da práxis quanto da estrutura. Os sujeitos, afirma Bhaskar, nunca fazem as estruturas sociais. A ação humana, no entanto, possui o potencial tanto de reproduzir quanto de produzir tais estruturas sociais — dualidade da práxis. Quanto às estruturas sociais, estas são, ao mesmo tempo, condição e resultado do agir humano intencional — dualidade da estrutura. Dessa maneira, a ação humana não ocorre num vácuo estrutural, e as estruturas não configuram um sistema imutável de posições que os sujeitos simplesmente reproduzem. Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 366 Carolina Miranda Cavalcante Resumindo, a proposta filosófica do realismo crítico, aqui apresentada, consiste em quatro pontos: (a) sistemas abertos, (b) ontologia estratificada, (c) método retrodutivo e (d) modelo transformacional da atividade social. 4 Conclusão: a compatibilidade entre a abordagem da Regulação e o realismo crítico A apreciação da compatibilidade entre a proposta heterodoxa da abordagem da Regulação e a Filosofia da Ciência crítico-realista será considerada em dois momentos. Inicialmente, destacar-se-á a semelhança entre seus posicionamentos críticos em relação ao mainstream econômico. Em seguida, as similaridades existentes entre suas propostas serão explicitadas. Viu-se que tanto a abordagem da Regulação quanto o realismo crítico são programas de pesquisa que emergem na década de 70. Segundo Hodgson (1999), a tradição heterodoxa contribui para o debate em Economia com pelo menos cinco escolas de pensamento: a Escola Francesa da Regulação, economistas austríacos, pós-keynesianos, abordagens marxistas e Economia institucional. Lawson (2003; 2005) afirma existir uma unidade ontológica entre essas abordagens heterodoxas, em que suas diferenças seriam relativas a focos analíticos diferenciados. Determinados autores já apontam conexões entre algumas dessas abordagens. Hodgson (1989; 1999a), Ferrari Filho e Conceição (2001) e Radzicki (2005), por exemplo, assinalam a compatibilidade entre pós-keynesianos e institucionalistas. Augusto (2006) destaca, ainda, a compatibilidade conceitual entre regulacionistas, institucionalistas e pós-keynesianos. Nesse sentido, uma pluralidade de abordagens heterodoxas reúne-se em torno de um conjunto de princípios básicos, cuja fundamentação metodológica é compatível com o realismo crítico. Desse modo, o realismo crítico pode fornecer subsídios às abordagens heterodoxas, para que estas se contraponham à Economia mainstream também no âmbito metodológico, veiculando uma concepção de ciência não-alinhada com a ontologia e a epistemologia lógico-positivista. Além disso, segundo Backhouse (1994), os mais conhecidos manuais de metodologia econômica surgiram no início da década de 80 — Beyond Positivism, de Caldwell (1982), e Methodology of Economics, de Blaug (1999). Pode-se perceber que as últimas décadas têm constituído um período de prolíficos debates teóricos e filosóficos em Economia. Precisamente, dessa atmosfera, emergem o paradigma teórico da abordagem da Regulação e o paradigma filosófico Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 367 do realismo crítico. Observe-se, à guisa de conclusão, os pontos de contato entre a Regulação e o realismo crítico. A crítica da Regulação dá-se em duas vertentes. Por um lado, refuta as teses da Economia neoclássica-padrão — equilíbrio geral, perfeita racionalidade e individualismo metodológico —; por outro, busca destacar-se das inconsistências do althusserismo clássico — relações sociais como estruturas, ausência de sujeito e holismo absoluto. O ponto de partida da Economia neoclássica padrão é o indivíduo, e seu suposto básico é o de equilíbrio geral. A questão é: como devem ser e se comportar esses indivíduos para que o estado de equilíbrio seja atingido? Faz-se necessário um suposto de racionalidade completa e perfeita informação. Portanto, os indivíduos são atomizados e, como afirma Hodgson (1999), com funções de preferência dadas. Além disso, o ambiente no qual agem já oferece todas as alternativas disponíveis, não havendo restrições quanto ao conhecimento de tais alternativas por parte dos agentes econômicos. O althusserismo clássico tem como ponto de partida a estrutura, em que “[...] os agentes-suporte das estruturas agem de acordo com as exigências dessas últimas” (Lipietz, 1993). A história é um “teatro sem autor” (Althusser11 apud Lipietz, 1993). Desse modo, os agentes ocupam determinadas posições nessas estruturas e as reproduzem. A dinâmica social é, portanto, reduzida ao movimento das estruturas, nas quais os sujeitos são reduzidos a “agentes-suporte” — as relações sociais são entendidas como estruturas. Evidentemente, nesse “teatro sem autor”, o sujeito está ausente.12 A vindicação de que a sociedade — nesse sentido, as estruturas sociais — precede os sujeitos está ontologicamente correta; o que leva o althusserismo clássico ao holismo absoluto é a eliminação do sujeito, enquanto agente intencional, do processo histórico. Desse modo, a tradição neoclássica nega o sujeito ao reduzi-lo a indivíduos atomizados, enquanto o althusserismo clássico nega o sujeito ao limitar seu papel na História a mero “agente-suporte” de estruturas que se reproduzem de modo autônomo. Segundo Wright, Levine e Sober (1992, p. 111-115), 11 Ver Althusser et al. (1965). 12 A palavra autor vem do latim, auctor, que significa aquele que produz, que gera, que faz nascer, fundador, inventor. Destarte, excetuando as visões religiosas do mundo, apenas o homem pode criar coisas novas, ou seja, no mundo social a emergência de novidades tem seu fundamento último da ação intencional, embora o mundo social não seja o resultado de nenhum projeto individual. Desse modo, ao eliminar o caráter intencional da ação humana, o althusserismo clássico exclui o sujeito, logo, a possibilidade de mudança das estruturas sociais. Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 368 Carolina Miranda Cavalcante tanto o individualismo metodológico quanto o holismo radical são formas de reducionismo, em que o primeiro reduziria os fenômenos sociais aos indivíduos, e o segundo reduziria os indivíduos às estruturas sociais. Essas duas posturas metodológicas apresentam-se em total oposição uma à outra; contudo compartilham um aspecto comum, a saber, a completa separação e o isolamento dos níveis micro e macro de análise. Nos dois casos, o estatuto da escolha humana é negado, pois, como afirma Lawson (1997), a realidade da escolha implica que os sujeitos sempre poderiam ter agido de forma diferente do modo como de fato agiram, e isso não é possível num mundo de indivíduos atomizados ou de “agentes-suporte”. A crítica da Regulação à tradição neoclássica e ao althusserismo clássico é compatível com a crítica de Lawson à ontologia subjacente ao mainstream da Economia — lei científica como conjunção constante de eventos; sistemas fechados; ontologia de eventos atomísticos brutos. A ação humana, tanto de indivíduos atomizados quanto de “agentes-suporte”, ocorre em sistemas fechados, nos quais há reprodução, regularidade de eventos, mas não transformação. Adicionalmente, o caráter contraditório das relações sociais é negado, ao ser interditado o papel do sujeito enquanto agente intencional. Veja-se agora, a alternativa fornecida pela abordagem da Regulação e pelo realismo crítico. Foram destacadas três dimensões, nas quais a Regulação contribuiu criticamente no campo heterodoxo: (a) ontológica, (b) metodológica e (c) teórica. Interessa aqui estabelecer como tal contribuição pode ser compatibilizada com a proposta filosófica do realismo crítico, na qual foram destacados quatro pontos: (a) sistemas abertos, (b) ontologia estratificada; (c) método retrodutivo e (d) modelo transformacional da atividade social. A contribuição ontológica — (a) a sociedade precede os indivíduos; (b) as estruturas sociais, que se apresentam para os sujeitos como formas institucionais, possibilitam a ação humana (prática objetivada) e são produzidas e reproduzidas através da ação humana (prática objetivante); e (c) a ação criativa é orientada por projetos — é compatível com o modelo transformacional da atividade social. Bhaskar (1998) nega que exista um estado de natureza a partir do qual indivíduos atomizados fazem a sociedade, argumentando que os sujeitos sempre produzem ou reproduzem as estruturas sociais; nesse sentido, a sociedade precede os sujeitos e é a própria condição e resultado do agir humano intencional. Dito de outro modo, “[...] os homens fazem a sua própria história a partir de determinadas condições herdadas do passado” (Lipietz, 1988, p. 90). Conseqüentemente, é possível entender as estruturas sociais como sistemas abertos, nos quais é factível a ocorrência de transformações engendradas pela ação humana intencional transformativa (ou ação criativa). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... 369 Assim sendo, é preciso afirmar a intencionalidade presente na ação humana, sem reduzir o objeto social a indivíduos atomizados, mas também é necessário reconhecer a existência de estruturas sociais que restringem, possibilitam e moldam o comportamento dos sujeitos, sem reduzi-los a posições imutáveis nessas estruturas. Nesse sentido, o projeto comum tanto a regulacionistas quanto a crítico-realistas é a afirmação de uma indissolúvel conexão existente entre sociedade e pessoa, entre totalidade e parte; logo, o foco da investigação do objeto social direciona-se às relações sociais em lugar da análise isolada de estruturas ou indivíduos. A contribuição metodológica da Regulação — análise das economias reais através da investigação histórica — somente é possível no âmbito de uma ontologia de sistemas abertos; caso contrário, verificar-se-ia o descompasso entre a temporalidade de modelos teóricos abstratos e a temporalidade das economias reais, conforme apontado por Aglietta (2000). Para apreender o objeto social em sua processualidade histórica, a abordagem da Regulação precisou desenvolver alguns conceitos intermediários. Essa é a contribuição teórica da Regulação. Como exposto anteriormente, os conceitos intermediários encontram-se no menor nível de abstração, e é justamente através deles que a Regulação é capaz de passar do âmbito de uma pesquisa teórica para o campo da pesquisa empírica. De acordo com Sayer (1998), a distinção entre essas duas modalidades de pesquisa somente pode ser feita depois de entendido o estatuto do concreto e do abstrato no processo de conhecimento. Segundo Marx, o “[...] concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do diverso” (Marx, 2000, p. 39). O pensamento somente está habilitado a apreender o concreto através de abstrações, que capturam aspectos particulares do concreto. Sayer (1998) oferece um exemplo ilustrativo. Quando se descreve uma fábrica como um edifício no qual se encontra um conjunto de máquinas destinadas à produção de determinada mercadoria, está sendo realizada uma abstração, isto é, está sendo capturado um aspecto da fábrica, do concreto. Para uma descrição completa do concreto, é necessário especificar todas as relações nas quais a fábrica está envolvida, isto é, seus aspectos físicos, todas as relações de produção no interior e fora da fábrica, as características de suas máquinas e de seus trabalhadores, etc. Naturalmente, tentar apreender o concreto em sua total completude, em suas múltiplas determinações, é pretender um conhecimento absoluto das coisas, conhecimento este ontologicamente interditado ao sujeito cognoscente. A ciência não está voltada ao alcance de um conhecimento absoluto, mas está habilitada a conhecer objetivamente o mundo. A questão significativa não é se uma teoria produz ou não abstrações, todo pensamento as produz; o impor- Ensaios FEE, Porto Alegre, n. 2, p. 353-374, out. 2007 370 Carolina Miranda Cavalcante tante é se as abstrações teóricas são, nos termos de Sayer, abstrações caóticas ou abstrações racionais. A pesquisa teórica pode produzir abstrações racionais, na medida em que for capaz de capturar necessidades naturais.13 Contudo o concreto é a combinação de múltiplas necessidades naturais, e, historicamente, essa combinação é contingente, somente podendo ser determinada pela pesquisa empírica. A Regulação parte do conceito de habitus, que busca capturar ação e estrutura, pessoas e sociedade, parte e totalidade, em sua indissolúvel conexão e em seu mais alto nível de abstração, o que permite definir relações sociais do modo mais geral. Em seguida, serão propostas as relações fundamentais, que explicitam relações sociais particulares a uma sociedade capitalista. Por fim, os conceitos intermediários fornecem as categorias que permitem a passagem de uma pesquisa teórica para uma pesquisa empírica, em que a combinação efetiva das formas institucionais somente poderá ser conhecida através do estudo das configurações históricas concretas. Jessop (2001) destaca que a distinção entre níveis de abstração diversos abre espaço para que o método retrodutivo seja utilizado pela Regulação. Evidentemente, tal idéia pressupõe que os três níveis de abstração, identificados pela abordagem da Regulação, refletem uma concepção de realidade estratificada. Desse modo, Jessop sustenta que a Regulação possui uma ontologia e uma epistemologia implícitas, derivadas do realismo crítico. A partir da discussão precedente, é possível dizer que a Regulação compartilha dos pressupostos ontológicos do realismo crítico, como a noção de sistemas abertos e a precedência da sociedade em relação aos sujeitos, bem como a própria idéia de realidade estratificada e método retrodutivo, como assinalado por Jessop (2001). O objetivo deste artigo foi indicar alguns pontos em comum entre a Regulação e o realismo crítico. Verificou-se, a partir da exposição da Regulação e do realismo crítico, que existem diversos elementos em comum entre essas duas tradições de pensamento. Acredita-se que, assim, se abre espaço para uma profícua colaboração mútua, ou uma cross-fertilization nos termos de Clive Lawson (1995), entre a Filosofia crítico-realista e a abordagem da Regulação. Aqui foram indicados alguns caminhos possíveis para tal colaboração. A efetiva fecundidade dessa cooperação teórico-filosófica permanece, contudo, objeto de uma pesquisa mais detalhada e de maior amplitude. 13 Segundo Sayer (1998), abstrações caóticas falham ao distinguir entre relações externas e relações internas e acabam por capturar regularidades contingentes em lugar de conexões efetivas do concreto, necessidades naturais. Argumenta-se, em Cavalcante (2005), que abstrações caóticas estão intimamente ligadas a uma ontologia de sistemas fechados, enquanto abstrações racionais somente podem ser obtidas a partir de uma concepção de sistemas abertos e de uma ontologia estratificada. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 353-374, out. 2007 371 Realismo crítico e abordagem da Regulação:... Referências AGLIETTA, Michel. A theory of capitalist regulation: the US experience. London: Verso, 2000. 448p. ALTHUSSER, Louis et al. Lire le capital. Maspéro: Paris, 1965. AUGUSTO, André Guimarães. Fundamentos metodológicos da abordagem da regulação: origem histórica e questões fundadoras. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 427-442, 2004. AUGUSTO, André Guimarães. Regulation school and the contemporary heterodoxies. Niterói: UFF, 2006. (Textos para discussão, 190). BACKHOUSE, Roger. New directions in economic methodology. London: Routlegde, 1994. 400p. BHASKAR, Roy (1975). A realist theory of science. 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Adotaram-se os métodos de estimação de Johansen e de Engle-Granger — mecanismo de correção de erros. Os resultados corroboram as hipóteses do trabalho. Palavras-chave Taxa de câmbio real; paridade do poder de compra; liquidez internacional. Abstract The theoretical and empirical international trade literature suggests that there is long-term valuation/devaluation of the real exchange rate in the developed/ /undeveloped economies. We argue that the real exchange rate is affected by: i) intercountry differentials of the services sector development; and, ii) non-neutral * Artigo recebido em jun. 2006 e aceito para publicação em maio 2007. ** E-mail: [email protected] Os autores agradecem a Maurício B. Lemos, Lízia de Figueiredo, Sueli Moro, José Afonso B. B. Silva e a dois pareceristas anônimos da Ensaios FEE os comentários e sugestões feitos a uma versão preliminar deste estudo, eximindo-os de responsabilidade pelos erros e omissões porventura remanescentes. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 376 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos characteristic of the international financial system, demonstrated in the Post-Keynesian approach. Based on items (i) and (ii) an equation for the Brazilian real exchange rate was estimated in this paper (1971-2002). The econometric procedures were based on the Engle-Granger and Johansen methods. The results do not reject the hypothesis put forward in this paper. Key words Real exchange rate, purchasing-power parity, international liquidity. Classificação JEL: C32, E12, F31, F37. 1 Introdução Há, na literatura do comércio internacional, três explicações para a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real: o modelo de diferenciais de produtividade de Balassa (1964) e de Samuelson (1964), o modelo de dotação relativa de fatores (Heckscher-Ohlin) e o modelo de gostos não homotéticos de Bergstrand (1991). Lemos (1988) acrescenta uma quarta explicação, baseada no modelo de diferenciais de desenvolvimento do “complexo de serviços”. Todas essas explicações convergem para o mesmo resultado: nos países menos desenvolvidos, a taxa de câmbio real deprecia-se no longo prazo, enquanto, nos países mais desenvolvidos, essa taxa aprecia-se no longo prazo, fenômeno constatado, inicialmente, por Ricardo (1985, cap. 7). Visto que esses são os modelos que tratam da trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real, todos eles serão objeto de análise na próxima seção. Porém apenas o modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços ainda está por ser testado empiricamente — isto é, ainda não há um volume considerável de trabalhos empíricos, cujos resultados possam permitir uma conclusão a respeito da validade do citado modelo. Sendo assim, na seção 4, será estimado um modelo para a taxa de câmbio real, visando testar as hipóteses do modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços. No que diz respeito aos países em desenvolvimento, conforme a literatura pós-keynesiana, os ciclos do sistema financeiro internacional explicam parte dos movimentos de sua taxa de câmbio, principalmente no curto e/ou no médio prazo (Dow, 1986/87; 1993; Minsky, 1994; Lopez, 1997; Paula; Alves Jr., 2000; Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 377 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil Amado, 2003; Resende, 2003). Nos períodos de queda cíclica da liquidez internacional, o racionamento de crédito seria mais intenso para as economias em desenvolvimento vis-à-vis às desenvolvidas, ensejando, naquelas economias, escassez de divisas externas seguida de depreciação cambial. Esse processo seria revertido nos períodos de ascensão cíclica da liquidez mundial, quando o sistema financeiro internacional expande o crédito aos países menos desenvolvidos, aumentando a oferta de divisas externas nesses países. Neste trabalho, será estimado um modelo para a taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil, baseando-se nos argumentos desenvolvidos em Lemos (1988) e em Matos e Resende (2005) e na abordagem pós-keynesiana referente ao padrão dos fluxos de capitais e de seus efeitos sobre a taxa de câmbio. O trabalho apresenta quatro seções, além desta Introdução. Na seção 2, estão os argumentos presentes na literatura do comércio internacional, que explicam a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real. Na seção 3, será apresentado o argumento pós-keynesiano para o comportamento do sistema financeiro internacional e suas implicações para a taxa de câmbio real. Na seção 4, serão apresentados os modelos para o câmbio real no Brasil e os resultados da sua estimação. A última seção destina-se às conclusões do trabalho. 2 A taxa de câmbio real de longo prazo Conforme se constata na literatura do comércio internacional, há uma correlação entre variações da renda per capita dos países e mudanças em seus preços relativos. Nos países mais desenvolvidos, onde a renda per capita é mais elevada, a taxa de câmbio real deprecia-se no longo prazo, enquanto, nos países menos desenvolvidos, se verifica o oposto. Essa tendência da taxa de câmbio real está explicada em quatro modelos distintos, a saber: o modelo de diferenciais de produtividade, o modelo de dotação relativa de fatores, o modelo de preferências não homotéticas e o modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços. Os três primeiros são de cunho ortodoxo, visto que são compatíveis com hipóteses, tais como a presença de mercados (de bens e de fatores) competitivos e a convergência do produto de equilíbrio para seu nível de pleno emprego. O último modelo contém elementos de cunho ricardiano e de cunho marxista e situa-se no âmbito das economias regional e urbana. Nos modelos ortodoxos, assume-se a existência de bens comerciáveis e de bens não comerciáveis. A presença destes últimos invalida a Lei do Preço Único, presente na doutrina da Paridade do Poder de Compra (PPC), tornando possível explicar mudanças da taxa de câmbio real. Ademais, o modelo de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 378 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos diferenciais de produtividade e o modelo de dotação relativa de fatores baseiam-se no lado da oferta, enquanto o modelo de preferências não homotéticas se baseia no lado da demanda. No modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços, assume-se a hipótese marxista de tendência de concentração e de centralização do capital. Além disso, partindo da mesma concepção da teoria ricardiana de renda da terra, demonstra-se que a formação do Setor Terciário faz parte do processo de formação das cidades (urbanização) e se dá no âmbito do aumento contínuo da escala mínima de produção capitalista. Ou seja, nesse processo de concentração e centralização do capital e de crescimento da escala mínima de produção, verificam-se, concomitantemente, ganhos continuados de produtividade e a necessidade de crescimento do setor serviços. O crescimento deste é requerido para viabilizar a reprodução ampliada do capital não apenas na esfera da produção, mas, principalmente, na esfera da circulação do mesmo. Todavia os serviços não podem ser armazenados no tempo e no espaço. Sua oferta dá-se no ato da demanda, o que os torna espacialmente localizados. Portanto, o capital, no seu processo de acumulação contínua, induz o crescimento do Setor Terciário, que, por seu turno, se manifesta no processo de formação da aglomeração urbana (formação e crescimento das cidades). Esse processo apresenta mão dupla: o crescimento da escala mínima de produção capitalista estimula e é, ao mesmo tempo, estimulado pelo desenvolvimento do setor serviços. O desenvolvimento de vantagens aglomerativas, isto é, do complexo de serviços em uma região, torna essa região dotada de vantagens locacionais para o capital. Mais do que isso, o desenvolvimento do complexo de serviços torna o urbano, cada vez mais, peça imprescindível para o processo de acumulação de capital. Quanto maior for o desenvolvimento de tal complexo em determinada região, maior será o diferencial de custos de produção entre essa região e as demais. Assim, a atração da atividade produtiva nesses espaços (opção locacional) torna viável a formação de renda espacial. Isto é, o diferencial de custos de serviços nos respectivos espaços econômicos torna-se objeto de apropriação monopólica, que se expressa na forma de renda fundiária urbana, nos mesmos moldes da renda da terra ricardiana. Quanto maior for o desenvolvimento urbano (complexo de serviços), maior será a incidência de renda urbana, tornando mais caros os bens que circulam nesse espaço urbano (grosso modo, bens não comerciáveis) em relação aos demais bens (bens comerciáveis). Assim, o desenvolvimento do complexo de serviços em determinada região (ou país) vem acompanhado por um crescimento relativo dos preços dos bens não comerciáveis, implicando uma tendência de apreciação da taxa de câmbio real nessa região (ou país). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 379 Os quatro modelos acima citados serão objeto de detalhamento na próxima seção. 2.1 A doutrina da Paridade do Poder de Compra A doutrina da Paridade do Poder de Compra possui uma versão “absoluta” e outra “relativa”. Naquela, a Lei do Preço Único aplica-se a bens individuais e a níveis de preços agregados (Dornbusch, 1987). A PPC absoluta é representada por: (1) P = E . P* onde E = taxa de câmbio nominal; P = nível de preços doméstico; P* = nível de preços estrangeiro. A equação decorre da arbitragem internacional, que conduziria à igualdade de preços dos bens, quando medidos em uma mesma moeda. Nesse caso, a taxa de câmbio real seria igual à unidade.1 A versão relativa da PPC relaciona a variação da taxa de câmbio com mudanças relativas nos níveis de preços. Dessa forma, a variação percentual da taxa de câmbio é determinada pela diferença entre a variação percentual dos níveis de preços interno e externo, tomando um período como base (Balassa, 1964): E1/E0 = P1/P0 – P1*/P0* (2) Nesse caso, é possível utilizar índices de preços nacionais, com diferentes pesos, para determinar a variação da taxa de câmbio. Se a PPC relativa é válida, então a taxa real de câmbio, r, é constante no decorrer do tempo. Todavia a presença de bens não comerciáveis invalida a hipótese da PPC em suas duas versões, visto que essa categoria de bens não está sujeita à arbitragem internacional. Desde Ricardo (1985, p. 108), sabe-se que o preço relativo dos bens não comerciáveis é alto “[...] nos países onde floresce a indústria” e baixo nos demais. Apesar de Ricardo (1985) deixar claro que, num contexto de ganhos de produtividade, os países experimentam uma apreciação 1 A PPC absoluta é válida, se algumas condições prevalecerem. Os mercados devem ser competitivos, não há custos de transporte ou barreiras ao comércio, e os índices de preços nacionais e estrangeiros considerados devem ser idênticos em termos da composição e das ponderações da cesta de bens de cada país (Hsieh, 1982, p. 356). Ainda, a hipótese de Fisher deve se verificar, ou seja, as taxas de juros reais devem ser equalizadas entre os países em consideração (Holland; Pereira, 1999, p. 264). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 380 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos real de sua moeda decorrente de uma alteração nos preços relativos, o autor não aponta o mecanismo por meio do qual ocorre essa alteração. Alguns autores buscam explicá-lo. 2.2 O modelo de diferenciais de produtividade A introdução dos bens não comerciáveis nos modelos de comércio internacional foi proposta por Balassa (1964) e Samuelson (1964), que assumem a hipótese de que os diferenciais de produtividade entre países são maiores no setor de bens comerciáveis do que no de bens não comerciáveis. Um país rico apresenta vantagens absolutas de produtividade tanto na produção de commodities (bens comerciáveis) quanto na produção de serviços (bens não comerciáveis), mas uma vantagem relativa de produtividade na produção de commodities, quando comparado a um país pobre. Assim, o preço dos serviços em relação ao preço das commodities é maior nos países mais ricos. Como o preço destas é equalizado no mercado internacional, por meio da arbitragem, o nível nacional de preços dos países mais ricos é elevado vis-à-vis ao dos países mais pobres. Quanto maior a diferença na renda real per capita (tomada como proxy para o nível de produtividade) do país A em relação ao país B, maior será a disparidade entre os preços dos bens comerciáveis e dos bens não comerciáveis no país A vis-à-vis ao país B. Nesse caso, a taxa de câmbio real no país A estará mais apreciada em relação àquela sugerida pela doutrina da PPC. Supondo-se que um país experimente uma elevação da produtividade no setor de bens comerciáveis maior do que no setor de bens não comerciáveis, assumindo mercados perfeitamente competitivos e o pleno emprego dos fatores, os preços dos produtores serão iguais aos custos marginais (assumindo-se o trabalho como único fator de produção): AT = WT/ PT (3) onde PT representa os preços dos bens comerciáveis; WT, o salário nominal no setor de bens comerciáveis, T; e AT, a produtividade marginal do trabalho no setor T. O aumento na produtividade, maior no setor de bens comerciáveis, irá traduzir-se num aumento da demanda relativa de trabalho nesse setor, até o ponto onde o novo produto marginal do trabalho se iguale ao salário real. Portanto, o salário nominal será pressionado para cima, ensejando um aumento do salário no setor de bens comerciáveis. A mobilidade interna do fator trabalho tende a Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 381 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil igualar os salários dentro da economia,2 o que viria a elevar os salários no setor serviços. Dessa forma, o custo de produção nesse setor eleva-se, e, conseqüentemente, o preço relativo dos serviços aumenta. Como os preços dos bens comercializáveis tendem a igualar-se aos preços internacionais, os países que apresentam maiores ganhos de produtividade exibirão uma tendência de apreciação real de sua moeda, devido ao aumento do preço relativo dos serviços nesses países. Samuelson (1964, p. 148) argumenta: “Por esta razão [alto preço dos serviços] toda região próspera apresenta uma apreciação crônica de sua moeda”. 2.3 O modelo de dotação relativa dos fatores Outra explicação para a correlação existente entre o produto per capita e o nível de preços de um país é dada pelo modelo de dotação relativa de fatores (Heckscher-Ohlin). Nesse modelo, assume-se que a produção de bens comerciáveis é intensiva em capital e que a produção de serviços é intensiva em trabalho. Os países pobres, abundantes em mão-de-obra, produzem serviços a custos relativamente menores, quando comparados aos países mais ricos. Como os preços dos bens comerciáveis são igualados internacionalmente por meio de mecanismos de arbitragem e os países pobres produzem serviços a preços relativos mais baixos que os países ricos, estes apresentarão um nível de preços mais elevado de bens não comerciáveis em relação aos bens comerciáveis e, conseqüentemente, uma apreciação real de sua moeda (Bergstrand, 1991). 2.4 O modelo de preferências não homotéticas As duas teorias anteriores explicam os altos preços relativos dos serviços nos países mais desenvolvidos em função de mudanças estruturais nos setores produtivos das economias. Elas se baseiam, portanto, no lado da oferta. Uma terceira explicação para o fato de os preços dos serviços serem relativamente altos nos países mais ricos advém do lado da demanda. Bergstrand (1991) atribui parte da relação sistemática entre renda per capita e mudanças de preços relativos à diferença entre elasticidades-renda da demanda por bens comerciáveis e não comerciáveis. Segundo o autor, os serviços são bens considerados 2 Para detalhes, ver Balassa (1963, p. 238). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 382 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos “superiores”. A elasticidade-renda da demanda para esses bens é maior que um, enquanto a elasticidade-renda da demanda por bens comerciáveis seria inferior à unidade, ou seja, o autor assume a hipótese de preferências não homotéticas. Assim, quanto maior for o crescimento da renda per capita de um país, maior será o crescimento relativo da demanda por serviços nesse país, pressionando os preços nesse setor. Essa hipótese foi testada por Bergstrand (1991), que considerou seus resultados não conclusivos. 2.5 O modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços Existe, ainda, outra explicação para a alteração dos preços relativos no longo prazo, baseada no argumento de que, num processo contínuo de “avanço das técnicas produtivas” no sistema capitalista, os custos de reprodução dos bens exportados se tornam mais baixos relativamente aos custos dos bens de circulação interna. Esse argumento está em Lemos (1988) e em Matos e Resende (2005) e baseia-se no conceito de “renda fundiária urbana”, semelhante ao conceito de renda fundiária de Ricardo (1985). A renda ricardiana é uma expressão das vantagens comparativas advindas de recursos naturais, enquanto a renda urbana é expressão de vantagens comparativas determinadas pelo desenvolvimento do complexo de serviços, associado ao processo de urbanização e reprodutível pelo trabalho humano. A base do modo de produção capitalista, a saber, a produção em grande escala, cujo nível mínimo tende sempre a crescer, proporciona ganhos de produtividade não experimentados nos modos de produção anteriores. Para entender esse fenômeno, deve-se diferenciar o processo imediato de produção capitalista das condições gerais de produção, que incluem todos os elementos e atividades necessárias à reprodução do capital. Conforme Lemos (1988, p. 230), “[...] há no capitalismo uma tendência geral ao desenvolvimento da cooperação, base técnica para o aumento da escala mínima e da concentração e centralização do capital, o que induz à aglomeração urbana”. O processo de urbanização não pode ser dissociado da tendência de aumentos contínuos da produtividade dos fatores de produção no sistema capitalista. A urbanização é um processo relacionado à formação de um Setor Terciário cada vez mais diversificado, causa e efeito do processo de diversificação industrial, proporcionando os elementos necessários à reprodução do capital, de forma cada vez mais eficiente. Conforme Singer (1978) apud Matos e Resende (2005, p. 5, grifos do autor), Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 383 [...] a urbanização é mais do que o resultado da migração rural. Ela implica formação de redes urbanas, fortemente polarizadas por grandes cidades, ao redor das quais se formam áreas metropolitanas. E os núcleos destas áreas, por mais estranho que pareça, não são constituídos por concentrações industriais, mas por complexo de serviços. Na configuração urbana típica, [...] a grande indústria tende a se afastar do centro metropolitano, localizando-se em sua periferia [...]. O urbano constitui-se, dessa forma, como fator imprescindível ao processo de acumulação. A aglomeração urbana, reunindo, num mesmo espaço, oferta e demanda pelos serviços em escala cada vez maior, proporciona a redução dos custos desses serviços. Tais serviços são essenciais ao processo de acumulação de capital, visto que são necessários para a reprodução deste, quer na esfera da produção, quer na esfera da circulação do capital. Ademais, a natureza aglomerativa das atividades econômicas no capitalismo, que se expressa nos grandes centros urbanos, é resultado da não-transportabilidade dos serviços, pois estes não podem ser transportados no espaço e no tempo, estando presos ao local onde ocorre a sua demanda. “Em decorrência, a aglomeração ou o centro urbano só pode ser entendido como uma confluência e superposição de áreas de mercado que permitam a diversificação e a acessibilidade a vários tipos de serviços ou bens” (Lemos, 1988, p. 281). A concentração espacial do capital, expressa na urbanização, gera desigualdades regionais e espaços privilegiados em termos de produtividade e de progresso técnico. Algumas regiões passam a deter vantagens comparativas na produção de certos bens, expressas no diferencial de custo e na maior diversificação e complexidade de serviços oferecidos. Sendo assim, certos espaços tornam-se mais atraentes para a localização de atividades produtivas, pois fornecem uma maior diversidade de serviços a custos mais baixos, fundamentais à produção, além de uma estrutura que permite maior interação entre os agentes econômicos, dinamizando os fluxos de informações, de mercadorias e de capital. Esses espaços privilegiados detêm vantagens comparativas, gerando um sobrelucro às atividades que ali se instalam.3 3 “Os serviços necessários à reprodução do capital, ou das forças produtivas, seja no âmbito dos serviços de consumo — atividades de ensino, de saúde, de pesquisa, de transporte de pessoas, etc. — ou dos serviços necessários ao processo de circulação do capital em geral — transporte de mercadorias, armazenagem de mercadorias, etc. , entre os quais os serviços de consumo são um caso particular — não se materializam numa coisa, não existem como capital mercadoria; ou seja, o serviço só pode ser produzido junto com sua demanda, o que o coloca na dimensão espaço-tempo, que, por sua vez, requer e se expressa na aglomeração urbana” (Lemos, 1988 apud Resende, 2003, p. 38-39). Desse modo, o desenvolvimento de vantagens aglomerativas, isto é, do complexo de serviços em uma região, torna essa região dotada de vantagens locacionais para o capital. Mais do que isso, o desenvolvimento do complexo de serviços torna o urbano, cada vez mais, peça imprescindível para o pro- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 384 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Quanto maior a aglomeração geográfica dos serviços, maiores a complexidade e a diversificação do centro urbano, resultando em aumento potencial da taxa de lucro4. Mas, paralelamente ao aumento do sobrelucro (ou diferencial de custos) na região onde o complexo de serviços é mais desenvolvido, surge ali uma apropriação monopólica, na forma de renda fundiária urbana, nos moldes da teoria ricardiana da renda da terra. A renda fundiária urbana constitui a expressão de um monopólio sobre o espaço localizado (um objeto inteiramente produzido pelo capital). A magnitude dessa renda urbana corresponde ao diferencial de custos de serviços nos respectivos espaços econômicos. Assim, o problema espacial, seja ele regional, nacional ou internacional, é, antes de tudo, um problema urbano e, portanto, deve ser analisado através do complexo de serviços existente na rede urbana: quanto mais diversificado for aquele, em cada área de mercado, mais valorizada esta se torna enquanto espaço localizado, tornando-se a verdadeira base para a formação da renda urbana. (Lemos, 1988, p. 296). Os países que são mais competitivos devido a vantagens que levam a diferenciais de produtividade — sendo a principal dessas vantagens a aglomerativa, expressa por uma rede urbana maior, mais diversificada e complexa — apresentarão preços para os bens exportados menores em relação aos preços dos bens de circulação interna, quando comparados com outros países. Em decorrência da apropriação monopólica da renda fundiária, que se verifica por meio do aumento dos custos com aluguel, transporte e, indiretamente, da cesta de mercadorias e serviços necessários à reprodução da força de trabalho e do capital, os custos de reprodução dos bens de circulação interna tornam-se mais elevados em relação ao custo dos bens exportados, provocando alterações nos preços relativos. A explicação para esse fato está nas economias externas (fatores aglomerativos), que estimulam a competitividade das exportações, mas, ao mesmo tempo, encarecem o preço dos bens de circulação interna, que circulam mais tempo no espaço onde incide a renda urbana mais elevada. cesso de acumulação de capital. A atração da atividade produtiva nesses espaços (opção locacional) torna viável a formação de renda espacial. O diferencial de custos de serviços nos respectivos espaços econômicos seria objeto de apropriação monopólica, que se expressa na forma de renda fundiária urbana, conforme será detalhado a seguir. 4 Lemos (1988, p. 283-287) demonstra que o desenvolvimento do complexo de serviços implica aumento potencial da taxa de lucro por meio de dois canais: (a) redução do custo unitário e global dos serviços; (b) redução do tempo de rotação global do capital. Conforme será esclarecido adiante, o citado aumento da taxa de lucro é apenas potencial, mas não é efetivo em virtude da incidência de renda urbana. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 385 Mudanças de preços relativos entre as mercadorias exportadas (bens comerciáveis) e os bens de circulação interna (grosso modo, bens não comerciáveis) implicam alterações na taxa de câmbio real de um país. Quanto maiores as vantagens aglomerativas de um país, maiores serão suas vantagens de produtividade e de competitividade. Essas vantagens transformam-se em renda urbana, encarecendo os bens de circulação interna, inclusive salários, provocando a mudança de preços relativos. Ou seja, na região (país) onde o complexo de serviços é mais desenvolvido vis-à-vis às demais regiões (países), os custos de produção tendem a ser menores em relação às outras regiões (países), o que se expressa em uma taxa de lucro potencial mais elevada. Nesse caso, essa região (país) torna-se mais atraente para a acumulação de capital, seja em função do seu diferencial de custos, seja porque sua maior diversidade de serviços é mais adequada (facilitadora) ao processo de reprodução do capital. Sendo tal região (país) o lócus preferencial de acumulação de capital, como corolário, ela passa a apresentar uma taxa de progresso técnico mais elevada vis-à-vis às demais regiões (países). Portanto, o progresso técnico e os ganhos de produtividade desenvolvem-se de maneira desigual entre regiões (países), visto que o complexo de serviços não pode ser transportado nem no espaço e nem no tempo, estando espacialmente preso à região onde ele se desenvolveu.5 Poder-se-ia imaginar, então, que, na região (país) onde o complexo de serviços é mais desenvolvido, os ganhos de produtividade seriam maiores e, em princípio, ocorreriam tanto no setor de bens comerciáveis como no de bens não comerciáveis (bens de circulação interna). Em ambos os setores, poderia haver uma queda de preços, e os produtos exportáveis aumentariam sua competitividade no mercado internacional — isto é, haveria, inicialmente, redução de preços nos mercados doméstico e externo. O decorrente aumento das exportações elevaria o influxo líquido de divisas externas, provocando a apreciação da taxa de câmbio nominal e o retorno (elevação) dos preços dos bens exportáveis no mercado internacional (em divisas estrangeiras) ao nível observado no início do processo. Nesse caso, a PPC estaria valendo P = E . P* ; ou seja, ao final do processo, P e E ter-se-iam reduzido na mesma proporção, enquanto P* não se teria alterado.6 5 A abordagem evolucionária (neo-schumpeteriana) também chega a essa mesma conclusão, isto é, o progresso técnico possui um caráter local, proporcionando um desenvolvimento desigual entre economias. Ver Freeman (2004), Fagerberg (1994), Dosi, Fabiani e Freeman (1994), dentre outros. Tal abordagem e aquela desenvolvida em Lemos (1988) não são excludentes, pelo contrário, elas se complementam. 6 Esse argumento está baseado no regime de taxas de câmbio flexíveis. Do mesmo modo, a validade da PPC também pode ser demonstrada no contexto de taxas de câmbio fixas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 386 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Contudo a PPC não seria válida, se, na região onde ocorreu o maior desenvolvimento do complexo de serviços, o diferencial de custos daí resultante fosse compensado pela apropriação monopólica de renda fundiária urbana. Nesse caso, haveria uma aparente contradição, visto que os custos efetivos de produção não seriam reduzidos na região (país) onde houvesse maior produtividade, devido à incidência de renda fundiária. Segundo Resende (2003, p. 35), A contradição se resolve quando se constata que a determinação da renda fundiária apresenta uma natureza específica: ela se verifica no âmbito de vantagens de produtividade que são “externas” à empresa capitalista e que se expressam como economias externas às firmas, presas ao local onde se apresentam, sejam estas vantagens naturais ou não naturais. Isto torna possível incorporar a renda fundiária aos custos de produção em proporções diferentes segundo o destino da mercadoria — mercado interno ou externo. Ou seja, ao mesmo tempo em que o produtor faz uso dessas externalidades positivas (vantagens de produtividade) para aumentar sua produtividade, reduzindo o seu custo unitário de produção “na porta da fábrica”, estas mesmas externalidades são compensadas com o pagamento de renda fundiária a elas associada e cuja incidência é tanto maior quanto maior for a circulação da mercadoria no local (região) onde se encontram essas vantagens de produtividade. Sendo assim, o aumento no custo de produção associado à renda fundiária não se verifica na mesma proporção para as mercadorias exportadas e aquelas destinadas à circulação interna. Isto ocorre porque as citadas externalidades não acompanham a mercadoria exportada no seu deslocamento no espaço, isto é, elas não podem ser transportadas (exportadas), estando presas ao local onde se desenvolveram. Deste modo, no que se refere ao contexto específico da renda fundiária, quando a mercadoria deixa a porta da fábrica seu preço ainda será afetado pela renda fundiária da própria região onde é produzida, se ela se destina ao mercado interno, ou pela renda fundiária (da região) do país importador, se ela se destina ao mercado externo. Neste sentido, quanto maior a renda fundiária (ou o surgimento de diferenciais de produtividade) num país em relação aos demais, maior a mudança de preços relativos entre bens de circulação doméstica e os demais bens, neste país. Ao mesmo tempo, a ausência (parcial) de incorporação da renda fundiária no preço do produto exportado implica a redução relativa deste preço, enquanto sua incorporação nos bens de circulação doméstica implica aumento relativo dos preços desses bens. Note-se que, no país onde ocorreu o desenvolvimento do complexo de serviços e o aperfeiçoamento da técnica produtiva, teria lugar uma redução inicial de preços (nos mercados interno e externo) dos bens produzidos a partir dessa técnica e, por conseqüência, o incremento de suas exportações. O aumento do influxo de divisas externas provocaria a desvalorização das mesmas (a redução do seu preço) no citado país, resultando no aumento dos preços em divisas externas dos bens em questão no mercado internacional. Isto é, os preços no mercado internacional retornariam a seus níveis iniciais. Porém a Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 387 situação inicial não seria restabelecida nos moldes da Lei do Preço Único (P = E . P*), se ocorresse, também, uma mudança de preços relativos e, portanto, uma redução do valor absoluto da moeda externa (aumento no nível absoluto de preços), em função do aparecimento de renda decorrente do monopólio fundiário. A incidência de renda urbana implicaria aumento de preços, principalmente dos bens de circulação interna — visto que P é formado tanto pelos preços de bens comerciáveis, como pelos preços dos bens não comerciáveis, ter-se-ia, então, ao final do processo, P > E . P*. O aumento dos preços domésticos em divisas externas seria a expressão do aumento do poder aquisitivo desse país em termos de uma cesta de bens estrangeiros, isto é, da apreciação de sua taxa de câmbio real.7 Por fim, o desenvolvimento do complexo de serviços (vantagens aglomerativas) numa região (país) não implica aumento da taxa de lucro ou do salário real vis-à-vis às demais regiões (países), pois o diferencial de custos de produção decorrente desse processo é compensado pelo pagamento de renda fundiária urbana. Assim, o aumento do centro urbano resulta no aumento do custo de vida do trabalhador e, portanto, em aumento de seu salário nominal, mas não necessariamente em aumento do salário real. É por isso que os salários nominais tendem a ser mais elevados nos centros urbanos maiores. Entretanto, se o pagamento de renda urbana inviabiliza o surgimento de diferenciais de taxa de lucro efetiva entre regiões, cabe perguntar por que a região onde o complexo de serviços mais se desenvolveu será o lócus preferencial de acumulação de capital. Segundo Lemos (1988, p. 371-372, grifos do autor), [...] os fatos teriam este formato estático se o sobrelucro, base quantitativa da renda, não contivesse (ao contrário desta) um conteúdo eminentemente dinâmico, a despeito da efetiva tendência à igualdade quantitativa das duas variáveis. A diferença é que, enquanto a renda constitui sempre um resultado (e apenas como tal condiciona decisões), o sobrelucro, além de constituir um resultado concreto, representa também um resultado esperado que encontra sua essência no fato de condicionar decisões, não à luz da realidade corrente e presente, mas à luz de uma incerteza sobre o futuro [...] Esta concepção de incerteza resulta de uma leitura nova de Keynes, realizada [...] [por] autores pós-keynesianos, especialmente Davidson. Assim, o investimento urbano, que quase sempre pressupõe a compra do solo, é eminentemente especulativo, por buscar não apenas o sobrelucro normal, 7 Note-se que, dessa forma, Lemos (1988) demonstra que a questão da Comissão Econômica Para a América Latina (CEPAL) sobre a retenção dos frutos do progresso técnico nos países de centro (desenvolvidos) pode ser demonstrada mesmo quando não há deterioração dos termos de troca entre economias em desenvolvimento e desenvolvidas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 388 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos mas o sobrelucro ganho pela valorização do solo, expressando o caráter volátil e incerto da atividade econômica capitalista.8 A opção de investimento por um determinado ponto no espaço não se prende apenas ao nível do sobrelucro, num contexto estático, mas à perspectiva de seu surgimento e/ou crescimento, resultando numa articulação dinâmica entre investimento, crescimento urbano e sobrelucro (renda). Quanto maior o centro urbano, maior a expectativa de crescimento do sobrelucro (nesse espaço localizado), que, por sua vez, está associado aos serviços necessários à acumulação e à reprodução do capital, aumentando a atração que esse centro urbano exerce sobre o capital. A determinação da renda fundiária adquire características de lei de movimento, que começa por uma visão dinâmica do valor (como “valor em movimento”) e termina por uma visão da propriedade fundiária como “propriedade financeira”, sujeita às vicissitudes e incertezas das atividades financeiras em geral [...] a renda fundiária urbana constitui a expressão de um monopólio sobre o espaço localizado (um “objeto” inteiramente produzido pelo capital), sendo por isso mesmo um “objeto” em permanente movimento que condiciona (enquanto espaço localizado) e é condicionado pela acumulação. Esta característica dinâmica acaba se tornando uma propriedade do próprio espaço localizado, conferindo uma vantagem comparativa, nova e insuperável, às regiões que o possuem em maior grau. (Lemos, 1988 apud Resende, 2003, p. 45). Se a renda espacial, ao contrário da renda natural, é totalmente produzida pelo capital, o potencial de acumulação torna-se ilimitado para aqueles pontos no espaço que pautam sua participação na divisão do trabalho, através de vantagens comparativas espaciais, que podem ser reproduzidas em escala ampliada. Desse modo, a gênese do desenvolvimento desigual entre regiões ou países tem uma determinação de caráter histórico, podendo estar relacionada, inclusive, com a base de recursos naturais, cuja importância para a determinação do movimento do capital no espaço era elevada no início do modo capitalista de produção. Nesse sentido, no início do processo de desenvolvimento das economias nos moldes capitalistas, aquelas regiões que, por algum motivo, foram inicialmente privilegiadas na opção locacional do capital apresentaram, como decorrência, um aumento de seu incipiente centro urbano. Assim, devido à perspectiva de surgimento e/ou crescimento do sobrelucro nesse espaço localizado, como também de sua valorização financeira, num ambiente de incerteza, aumentou seu poder de atração do capital, implicando um processo de “causação circular 8 O conceito de incerteza está definido na literatura pós-keynesiana e difere do conceito de risco. Ver, por exemplo, Dow (1985, p. 184-203), Carvalho (1992, p. 54-69) e Crocco (2002). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 389 cumulativo”, embora não-linear, devido ao crescimento de sua renda urbana (fatores desaglomerativos)9. A partir de então, essa região (esse centro urbano) passa a ter preferência do investimento em detrimento das demais regiões, no que diz respeito às atividades que requerem um complexo de serviços mais diversificado para sua produção. Isso levará a um maior desenvolvimento do complexo de serviços e do progresso tecnológico nessa região vis-à-vis às demais regiões. Levará, também, a uma crescente diferenciação produtiva na região em consideração, que acabará alterando a dotação relativa dos fatores de produção. Portanto, baseado nos argumentos acima, é possível inferir que a taxa de câmbio real no longo prazo tende a se depreciar nos países menos desenvolvidos. Porém os argumentos apresentados nesta seção não consideram o movimento financeiro do balanço de pagamentos para explicar variações na taxa de câmbio. Esse ponto será analisado na próxima seção. 3 Liquidez internacional e taxa de câmbio real nas economias em desenvolvimento Em economias monetárias de produção, o investimento antecede a poupança. Esta deriva do crescimento econômico, e seu papel é consolidar (mas não financiar) a acumulação de capital, reduzindo a instabilidade financeira que acompanha o crescimento da economia. Nessas economias, prevalece o circuito finance-investimento-poupança-funding (Keynes, 1987; 1987a; Davidson, 1992).10 Segundo Dow (1986/87, p. 249), 9 O sobrelucro é fator de atração do capital, enquanto sua conversão em renda fundiária urbana é fator de repulsão. Segundo Lemos (1988, p. 349), “Na realidade, a cada momento, o movimento do capital modifica o espaço econômico, seja ampliando (pela concentração geográfica) as vantagens aglomerativas, seja aumentando o custo de acessibilidade e iniciando um processo de desconcentração geográfica, seja recriando vantagens aglomerativas em outros pontos do espaço. O tamanho do centro urbano é, nesse sentido, o resultado tanto da maior produtividade quanto do esgotamento dos ganhos de escala ou do aumento do custo de acessibilidade. Em suma, o processo de determinação da renda urbana é a síntese complexa de fatores aglomerativos (que constitui a própria gênese e o fator básico de expansão dos centros urbanos) e de fatores desaglomerativos, que acabam por estabelecer limites para o crescimento de um determinado centro urbano, permitindo assim uma certa descentralização da acumulação de capital”. 10 Definições e conceitos relacionados à economia monetária de produção estão na literatura pós-keynesiana. Ver Keynes (1988), Dow (1985), Davidson (1992), Carvalho (1992), Amado (2000), dentre outros. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 390 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Uma economia com taxas de retorno consistentemente altas em relação às demais irá atrair fluxos de capital em todos os estágios do seu ciclo, enquanto a preferência pela liquidez será consistentemente baixa quando comparada a outras economias. De modo similar, economias que apresentam persistentemente taxas de retorno relativamente baixas, experimentarão contínuas saídas de capitais (forçando ajustes), enquanto a preferência pela liquidez será consistentemente alta. Essa autora argumenta que esta última situação é o caso dos países em desenvolvimento (Dow, 1993; 1986/87, p. 249, nota 15), posição que também é sustentada por Minsky (1994). Resende (2005), apoiando-se no conceito de sistema nacional de inovações desenvolvido por autores neo-schumpeterianos, também argumenta que, nas economias em desenvolvimento, as taxas de retorno do investimento e a competitividade são menores em relação às economias desenvolvidas. Desse modo, haveria, nas economias em desenvolvimento, maior tendência à escassez de divisas externas vis-à-vis às economias desenvolvidas. Amado (2003), citando estudos da CEPAL, faz a mesma constatação.11 A avaliação de risco soberano realizada no mercado financeiro internacional sugere a existência de controle discricionário dos bancos no que diz respeito à distribuição e ao volume de crédito externo. Esse comportamento decorre da preferência pela liquidez dos bancos, visto que a avaliação do risco soberano se dá no âmbito da incerteza12. Quanto maior a incerteza sobre a capacidade dos devedores em honrar seus compromissos financeiros, maior será a preferência pela liquidez dos bancos, isto é, maior será o racionamento de crédito (Dow, 1993). Portanto, o sistema financeiro internacional “[...] não é neutro”, contribuindo para o desenvolvimento desigual entre economias. Recentemente, a abordagem minskyana de instabilidade financeira, num contexto onde as unidades devedoras (hedge, especulativa e ponzi) são países, tem sido resgatada para explicar as crises cambiais por que têm passado as economias ditas emergentes (Lopez, 1997; Paula; Alves Jr., 2000; Amado, 2003; Resende, 2005). Do ponto de vista da análise de Minsky (1986), há algumas diferenças no que se refere aos países, enquanto unidades de análise, e às unidades com que ele trabalha. Enquanto, para esse autor, o problema é de fluxo monetário do projeto e de capacidade de repagamento do projeto específico, em economias 11 Esse argumento está de acordo, também, com Lemos (1988), segundo o qual os países onde o complexo de serviços é mais desenvolvido seriam o lócus preferencial de acumulação de capital, em detrimento das economias menos desenvolvidas, isto é, cujo complexo de serviços apresenta um desenvolvimento relativo pequeno. 12 O conceito pós-keynesiano de incerteza já foi citado em nota de rodapé anterior. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 391 abertas o problema está associado não apenas à capacidade de repagamento dos projetos específicos, mas, também, à capacidade de geração de divisas externas que permitam esse repagamento. Segundo Resende (2005), economias classificadas na categoria especulativa e/ou ponzi pelos mercados financeiros mundiais seriam aquelas com menor capacidade relativa em gerar o influxo líquido de divisas externas necessário (seja pela balança comercial, de serviços ou de capitais) para honrar seus compromissos financeiros internacionais. Assim, as economias classificadas na categoria especulativa e/ou ponzi seriam aquelas que apresentam maior tendência à escassez de divisas externas, ou seja, as economias em desenvolvimento. O sistema financeiro internacional comportar-se-ia conforme esquema semelhante ao proposto por Minsky (1986). Em função do aumento cíclico da liquidez internacional, em grande parte endogenamente gerada através de inovações financeiras, os mercados financeiros externos aceitam financiar países com características de unidade especulativa e mesmo ponzi.13 Todavia, nos períodos de reversão cíclica do nível da liquidez internacional, o sistema financeiro internacional teria um comportamento assimétrico: o racionamento de crédito seria mais intenso para as economias especulativas e/ou ponzi vis-à-vis às economias hedge, aguçando, ao invés de contornar, a escassez de divisas externas daquelas economias. A crise cambial que então se instala nessas economias, muitas vezes amplificada pela sua abertura financeira, alimenta as expectativas quanto à desvalorização de suas taxas de câmbio, e, assim, o decorrente aumento da preferência pela liquidez é satisfeito através da demanda de moeda externa, provocando fuga de capitais.14 13 Segundo Davidson (1994, p. 226-228), os ciclos dos mercados financeiros e de comércio internacionais caminham pari passu. Na economia fechada, a ampliação do nível de atividade requer aumentos na oferta de moeda, devido à intensificação do finance que antecede o investimento. Na economia mundial, onde também prevalecem incerteza, defasagens temporais e a ausência de perfeita coordenação de fluxos de caixa associados ao comércio entre nações, o aumento da liquidez internacional é precondição para a expansão do comércio, ainda que este ocorra no âmbito do equilíbrio comercial das nações envolvidas. De outro lado, o crescimento do comércio internacional estimula o aumento da renda mundial, acarretando efeitos positivos sobre a ampliação dos mercados financeiros e do nível da liquidez internacional (Davidson, 1992, p. 103). Portanto, os ciclos dos mercados financeiros e de comércio internacionais mantêm uma relação direta com os ciclos da liquidez internacional. 14 Conforme Dow (1999, p. 154-155), “[...] na economia internacional há uma gama de moedas [...] suponha que, para um dado grau de preferência pela liquidez, ocorra uma perda de confiança na estabilidade do valor da moeda doméstica relativamente às outras moedas, então as moedas estrangeiras irão satisfazer melhor aquela preferência pela liquidez”. Dow (1999, p. 156) apresenta os motivos transação, especulação e precaução da demanda por ativos internacionais líquidos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 392 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Portanto, nas economias em desenvolvimento, a taxa de câmbio real é mais sensível aos ciclos da liquidez internacional em relação às economias desenvolvidas. Nos períodos de ascensão cíclica da liquidez mundial, devido ao aumento da oferta de divisas no país, a taxa de câmbio nominal nas economias em desenvolvimento pode subir numa proporção inferior ao aumento de preços domésticos, ou mesmo apreciar-se. Se a doutrina da PPC não é válida em um ambiente onde convivem bens comerciáveis e não comerciáveis, esse movimento da taxa de câmbio nominal resulta na redução do preço dos bens comerciáveis em relação ao preço dos bens não comerciáveis, gerando uma apreciação da taxa de câmbio real. Do mesmo modo, nos períodos de queda da liquidez internacional, a restrição de crédito será mais intensa para os países em desenvolvimento.15 A crise cambial que então se instala nesses países é, em geral, superada pela depreciação de suas taxas de câmbio real. Estudando os ciclos do sistema financeiro internacional nas décadas de 70, 80 e 90, Amado (2003) e Resende (2005) demonstram que tais ciclos condicionaram os ciclos de crescimento da economia brasileira. Esses autores evidenciam que, nos períodos de queda cíclica da liquidez mundial, houve racionamento de crédito para o Brasil, acompanhado de crise cambial e depreciação da sua taxa de câmbio.16 A economia brasileira parece enquadrar-se, então, na classificação de unidade especulativa e/ou ponzi, realizada pelo sistema financeiro internacional. Assim, os ciclos do sistema financeiro internacional afetariam, de modo relevante, sua taxa de câmbio real. Essa hipótese será testada a seguir, através da estimação de um modelo para a taxa de câmbio real brasileira. 15 “[...] as alterações na percepção do nível de fragilidade financeira desses países podem levar a mudanças bruscas no que diz respeito à concessão de novos empréstimos e nesse caso há uma quebra de grande parte das unidades ou um default dos países com características ponzi. Nesses momentos de crises cambiais surge a necessidade de instituições coordenadoras e flexibilizadoras da oferta de liquidez em nível internacional e, caso estas não existam, há o aprofundamento da crise gerada pelo comportamento cíclico do sistema financeiro internacional” (Amado, 2003, p. 17). 16 Nos anos 70 e na primeira metade dos 90, havia elevada liquidez internacional, entrada líquida de recursos externos e baixos patamares da taxa de câmbio real na economia brasileira, além de déficits em conta corrente do seu balanço de pagamentos. Visto que esses déficits em conta corrente eram financiados pela entrada líquida de capitais externos na conta financeira do balanço de pagamentos, eles escondiam uma possível tendência crônica da economia brasileira à escassez de divisas externas. Nos anos 80 e no final dos anos 90, houve um refluxo da liquidez internacional, e, paralelamente, verificou-se, na economia brasileira, crise cambial seguida da depreciação de sua taxa de câmbio real. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 393 4 Estimação do modelo de câmbio real para o Brasil 4.1 O modelo As quatro explicações apresentadas na seção 2, para a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real, convergem para o mesmo resultado. Tal trajetória é de aumento do preço relativo dos bens não comerciáveis nos países desenvolvidos e sua queda nos demais países. As três primeiras explicações apresentadas neste trabalho para a trajetória do câmbio real já estão analisadas e testadas na literatura sobre o tema (Bergstrand, 1991). Desse modo, o modelo apresentado a seguir baseia-se no argumento de Lemos (1988). Postula-se que a taxa de câmbio real brasileira seria afetada pelo diferencial de desenvolvimento do complexo de serviços do Brasil e do resto do mundo e, também, pela liquidez internacional, principalmente no curto e médio prazos, neste último caso. Segundo Locatelli e Silva (1991), a versão do câmbio real mais apropriada para análises de ajustamento de médio e longo prazos do balanço de pagamentos seria: CR = (E . PT*)/ PNT (4) onde CR = taxa de câmbio real; E = taxa nominal de câmbio; PT* = preços externos dos bens comerciáveis; e PNT = preços dos bens não comerciáveis. Essa versão será utilizada no modelo a ser estimado, porém com os preços domésticos dos bens comerciáveis no numerador da equação (4). Conforme Locatelli e Silva (1991), o termo no numerador da equação supõe a validade da Lei do Preço Único, e, portanto, admite-se a validade da arbitragem no comércio internacional. “Assim, os preços domésticos dos produtos comerciáveis tendem a igualar-se aos preços internacionais convertidos pela taxa de câmbio e, portanto, podem ser usados indistintamente naquela equação” (Locatelli; Silva, 1991, p. 547). Portanto, o câmbio real é dado por: CR = PT/ PNT (5) onde PT = preços internos dos bens comerciáveis. O modelo para o câmbio real da economia brasileira toma, então, a seguinte forma: Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 394 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos PT = α0 + α1.Wa + α2 .LI + µ PNT (6) onde α 0 = constante; α1 e α 2 = coeficientes; Wa = (PNTd/PTd)/(PNTi/PTi); d = países desenvolvidos; i = Brasil; LI = liquidez internacional; e ì = distúrbio aleatório. Espera-se que á1 seja positivo e á2 negativo. A variável Wa expressa a mudança dos preços relativos no mundo desenvolvido em relação à mudança de preços relativos em um país não desenvolvido. Note que, quando se desconsidera o argumento de Lemos (1988) para as alterações na taxa de câmbio real, não há razão para a variável dependente (PT/PNT) subir no país i (subdesenvolvido), quando se verifica um aumento de Wa. Na equação (6), a variável Wa é compatível apenas com o argumento de Lemos (1988), visto que: a) a variável do lado esquerdo de (6) não é (E.P*/P), onde E, P e P* são a taxa de câmbio nominal e os níveis de preços domésticos e estrangeiros respectivamente. Conforme Balassa (1964), o câmbio real de um país, calculado dessa forma, é afetado pela inflação verificada no setor de bens não comerciáveis de seus parceiros comerciais, já que P* corresponde a um índice de preços que incorpora os setores de bens comerciáveis e não comerciáveis, mesmo que com ponderações diferentes.17 Esse problema é eliminado quando se substitui (E.P*/P) por (IPAi/IPCi), onde i = país i, ou seja, neste último caso, o aumento de preços dos bens não comerciáveis no país estrangeiro não afeta o numerador (IPA) da razão do câmbio real do país i, visto que essa categoria de bens não está sujeita à Lei do Preço Único.18 Esse ponto vale tanto para o modelo de Balassa-Samuelson como para o de Bergstrand (1991); 17 Explicando o modelo de Balassa-Samuelson, Hsieh (1982, p. 357) argumenta que “[...] uma segunda causa para os desvios (da taxa de câmbio real) em relação à PPC é que os preços dos bens não comerciáveis são usualmente incluídos nos índices P e P*. Desde que os preços dos bens não comerciáveis não são arbitrados entre dois países, diferenças nos preços desses bens no país de casa e no país estrangeiro podem gerar desvios em relação à PPC”. 18 No modelo de Lemos (1988), os ganhos de competitividade nos países desenvolvidos, que decorrem do desenvolvimento relativamente maior do seu complexo de serviços, têm como contrapartida a perda de competitividade das economias não desenvolvidas. A escassez de divisas externas nessas economias, que resulta desse processo, provoca a depreciação da sua taxa de câmbio nominal e, a partir daí, o aumento do preço relativo dos bens comerciáveis — para maiores detalhes, ver Lemos (1988, cap. 2) e Resende (2003, cap. 2). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 395 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil b) assumindo a hipótese H-O de diferentes dotações relativas de fatores nos países, conclui-se que, ao longo do tempo, a abundância de capital (trabalho) nos países desenvolvidos (não desenvolvidos) deve elevar-se, provocando aumentos do preço relativo dos bens não comerciáveis (comerciáveis). Contudo, se há, pelo motivo citado, elevações do preço relativo dos bens não comerciáveis nos países desenvolvidos e reduções dos mesmos nos países não desenvolvidos, o movimento de preços na segunda categoria de países não corresponde a uma contrapartida do movimento de preços nos países da primeira categoria. O que há é tão-somente sentidos distintos da tendência de mudança de preços relativos no mundo desenvolvido e nos países não desenvolvidos, mas essas duas tendências não se influenciam — a correlação entre elas seria apenas “espúria”. Nesse caso, a variável do lado esquerdo da equação (6) e a variável Wa não são co-integradas. Adotou-se o método de variáveis instrumentais para a equação (6), devido à possibilidade de surgirem problemas de simultaneidade naquela equação. Ademais, na construção da variável Wa, foram usados índices de preços ao consumidor e no atacado dos Estados Unidos (USA) como proxy para os índices dos países desenvolvidos. Ou seja, IPABrasil/IPCBrasil = á1 + á2 (IPCUsa/ IPAUsa)/ (IPCBrasil/IPABrasil) + á3 LI + å (6a) A equação (6a) pode ser transformada em: IPABrasil/IPCBrasil = á1 + á2 (IPCUsa/ IPAUsa) . (IPABrasil/IPCBrasil) + á3 LI + å (6b) Observe-se que a variável dependente IPABrasil/IPCBrasil entra no lado direito da equação (6b) multiplicada por outra variável, IPCUsa/IPAUsa. Desse modo, embora a variável [(IPCUsa/ /IPAUsa).(IPABrasil/IPCBrasil)] seja diferente da variável dependente, é possível haver um problema de simultaneidade. Para corrigir tal problema, adotou-se o método de variáveis instrumentais para a estimação da equação em análise. 19 Assim, a variável [( IPC Usa / /IPAUsa).(IPABrasil/IPCBrasil)] foi substituída por uma variável instrumental, que corresponde a Wb = (IPCtUsa / IPAtUsa).(IPAt-1Brasil/IPCt-1Brasil), onde t = tempo (ano). A equação a ser estimada será: PT PNT 19 = α0 + α1. Wb + α2 . LI + µ (7) Sobre o problema de simultaneidade e o método de variáveis instrumentais, ver Gujarati (2000, p. 676-678). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 396 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos 4.2 Dados utilizados Os índices de preços utilizados para a construção da série do câmbio real foram o Índice de Preços no Atacado-Disponibilidade Interna (IPA-DI), da Fundação Getúlio Vargas, para os bens comerciáveis, e o Índice de Preços ao Consumidor (IPC-FIPE), representando os bens não comerciáveis, cuja fonte foi o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A variável Wb teve como fonte o IPEA, construída a partir dos Índices de Preços ao Consumidor e no Atacado, do Brasil e dos Estados Unidos. A liquidez internacional corresponde à soma dos valores tomados em módulo das seguintes rubricas do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, do Reino Unido, do Japão, da Alemanha, da Itália, da França e do Canadá (grupo conhecido como G-7): “investimentos de portfólio (ativo e passivo)”, “derivativos financeiros (ativo e passivo)” e “outros investimentos (ativo e passivo)”. Plihon (1995) usa como proxy para a liquidez internacional apenas os dados relativos a “investimentos de portfólio”. Todavia as rubricas “derivativos financeiros” e “outros investimentos” também contemplam capitais de curto prazo e instrumentos financeiros associados aos mercados de derivativos e futuros. A fonte desses dados foi o International Financial Statistics Yearbook (2002; 2003), publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que fornece esses dados em periodicidade anual e cujas séries se iniciam em 1970. Foi utilizada a liquidez internacional real correspondente à liquidez internacional deflacionada pelo índice de preços norte-americano (producer prices/industrial goods). Ademais, optou-se pela média móvel da liquidez internacional, isto é, pela sua média aritmética em dois períodos (soma da liquidez internacional no ano presente e no ano anterior dividida por dois). Tal opção se deve ao fato de que são as oscilações médias da liquidez internacional que afetam as variáveis macroeconômicas em função da presença de custos de ajustamento, conforme se constata em Resende (2001) e em Resende e Amado (2004). O índice de liquidez internacional real (média móvel) está disponível para o período 1971-02. Os dados utilizados possuem periodicidade anual. Adotou-se o logaritmo natural dos valores de cada variável como base para as estimações. 4.3 Metodologia Visando estimar a dinâmica de curto prazo da equação (7) pelo método do mecanismo de correção de erros de Engle-Granger e, ainda, as relações de longo prazo pelo método de Johansen, as séries foram testadas par a ordem de integração a partir do teste de Dickey-Fuller Aumentado (ADF). Os valo- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 397 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil res críticos para esse teste baseiam-se em Mackinnon (1991). O critério utilizado para a escolha do número de defasagens no teste ADF corresponde à estratégia proposta por Doornik e Hendry (1994, p. 94-95). Os testes ADF foram realizados de três formas: sem constante, com constante e com constante e tendência. Os resultados do teste ADF estão apresentados na Tabela 1. Para os testes de raiz unitária das séries IPA/IPC (câmbio real) e Wb, adotaram-se os períodos para os quais essas séries estão disponíveis: 1948-03 e 1949-03, respectivamente.20 Tabela 1 Resultados dos testes ADF VARIÁVEIS TESTES ADF SEM CONSTANTE Valor IPA/IPC D(IPA/IPC) Número de Defasagens TESTES ADF COM CONSTANTE E TENDÊNCIA Valor Número de defasagens 1,3182 6 -1,5189 6 (1)-2,8548 2 -2,3412 5 Wb DWb LI 1,5139 6 -1,0849 6 (2)-1,9875 2 -2,4899 5 2,1090 4 -3,5351 3 DLI (2)-2,4329 2 (1)-4,3606 1 FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV. IDEA. FMI. NOTA: 1. A letra D no início das variáveis refere-se à primeira diferença das mesmas. NOTA: 2. O teste de raiz unitária na versão com constante pode ser obtido diretamente com o autor. (1) Indica significância estatística a 1%. (2) Indica significância estatística a 5%. 20 Foram conduzidos inicialmente testes ADF para as séries com o período correspondente a 1971-03, conforme o período utilizado na estimação do modelo. No entanto, para as séries na primeira diferença, os testes não rejeitaram a hipótese nula de não-estacionariedade. Conforme Perron (1989), a potência do teste de raiz unitária aumenta quando a série da variável testada é mais extensa. A diminuição da potência do teste decorrente da utilização de uma série menos extensa resulta, freqüentemente, na não-rejeição da hipótese nula (Charemza; Deadman, 1997, p. 105). Portanto, para as variáveis IPA/IPC e Wb foram utilizadas séries mais extensas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 398 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos O teste ADF, na sua versão sem constante, sugere que todas as variáveis são integradas de ordem 1, I (1). Na sua versão com constante e tendência, tal teste não rejeita a hipótese de não-estacionariedade para as primeiras diferenças das séries temporais do IPA/IPC e Wb. De outro lado, a inspeção gráfica das séries IPA/IPC, Wb e LI na sua primeira diferença sugere a sua estacionariedade.21 A análise gráfica das séries Wb e IPA/IPC sugeriu uma mudança dos parâmetros da função trend, havendo uma alteração na inclinação da tendência em 1978. Desse modo, novo teste de raiz unitária foi realizado, seguindo-se os procedimentos adotados em Perron (1989), de onde foram extraídos os valores críticos. Os resultados do teste de Perron (Tabela 2) para o nível das séries Wb e IPA/IPC sugere que elas possuem uma raiz unitária. O teste de Perron foi também aplicado para essas séries em primeira diferença. Contudo os resultados obtidos não foram válidos, pois, mesmo tendo sido testado o modelo com números diferentes de defasagens, as dummies incluídas no modelo revelaram-se não significativas a 10%. O objetivo dos testes de raiz unitária é verificar se as séries temporais são estacionárias, para evitar resultados espúrios. Os resultados dos testes de Johansen para a equação (7) indicam a existência de um vetor de co-integração, conforme será demonstrado a seguir, sugerindo a inexistência de correlação espúria entre as variáveis do modelo. Uma vez analisada a ordem de integração das variáveis, foi realizado o teste de Johansen para a análise de co-integração.22 Considerando-se o critério de teste-F para exclusão de variáveis, as estimações foram iniciadas com um Vetor de Auto-Regressão (VAR) de quatro defasagens, sendo o modelo, final reduzido para um VAR de ordem 3. A constante não participou de modo irrestrito no modelo, devido à não-constatação de uma tendência determinística para suas séries (Harris, 1995, cap. 5). Os resultados (Quadro 1) sugerem a existência de um vetor de co-integração a um nível de 10%, no que se refere ao teste do maior autovalor e ao teste do traço sem correção de Reimers (1991). Os sinais dos coeficientes estimados estão em conformidade com o esperado. O coeficiente da variável Wb é positivo, e o coeficiente da liquidez internacional é negativo. A elasticidade de longo prazo da taxa de câmbio real em relação a Wb está próxima da unidade: um aumento de 10% em Wb implica 21 Resende (2001) e Castro e Cavalcanti (1998), realizando o teste ADF para a variável câmbio real, para o primeiro trimestre de 1978, para o quarto trimestre de 1998 e para o período 1955-95, respectivamente, rejeitam a hipótese de raiz unitária para a primeira diferença dessa série. Essa é mais uma evidência de que a primeira diferença da série temporal do câmbio real é estacionária. 22 O pacote estatístico utilizado foi o PCFILM versão 8.1. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 399 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil depreciação de 10,2% na taxa de câmbio real. Do mesmo modo, quando a liquidez internacional se eleva em 10%, o câmbio real aprecia-se em 1,2%, sugerindo pequena relevância dos fluxos financeiros na determinação da taxa de câmbio real brasileira de longo prazo. Tabela 2 Resultados dos testes de Perron VARIÁVEIS IPA/IPC Wb MODELO DE PERRON PERÍODO DA QUEBRA NÚMERO DE DEFASAGENS -3,3912 B 1978 1 -2,952 B 1978 1 TESTE DE PERRON FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV . IPEA. NOTA: O modelo B está em Perron (1989), sendo yt = µ + β1t + (β2 – β1) DT* + εt; onde DT* caso contrário; trend. = t – TB, se t › TB e 0 TB é o período no qual houve mudança(s) dos parâmetros da função Esperava-se que os efeitos de longo prazo das oscilações da liquidez internacional sobre a taxa de câmbio real brasileira fossem menores do que os efeitos relacionados à variável Wb . Isto porque as variações nos fluxos financeiros internacionais, associadas às oscilações da liquidez internacional, dependem de mudanças de expectativas dos agentes no sistema financeiro internacional, principalmente em relação às economias especulativas/ponzi (seção 3). Sendo assim, os fluxos financeiros internacionais possuem um forte componente especulativo e, portanto, de curto prazo. Nesse caso, seus efeitos sobre a taxa de câmbio dos países, em geral, e, principalmente, dos países especulativos/ponzi (subdesenvolvidos), devem ser mais intensos no curto do que no longo prazo. Uma vez obtidos esses resultados, optou-se pela estimação do modelo original, substituindo-se a variável instrumental da equação (7) pela variável Wa. Portanto, a equação (6b) foi também estimada pelo método de Johansen. Os resultados são semelhantes àqueles encontrados a partir da estimação do modelo anterior, equação (7), sugerindo a existência de um vetor de co-integração. A hipótese nula de não-existência de um vetor de co-integração foi rejeitada tanto pelo teste do maior autovalor sem correção de Reimers (1991) quanto para Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 400 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos o teste do traço sem correção de Reimers (1991) a um nível de significância de 10%, indicando uma relação de longo prazo entre as variáveis do modelo.23 A estimação da equação (6B) produziu os seguintes resultados: os sinais dos coeficientes encontrados são aqueles esperados. A elasticidade de longo prazo da taxa de câmbio real em relação a Wa mostrou-se mais elevada na equação (6b): 1,72. O coeficiente estimado da liquidez internacional foi maior em relação àquele estimado para a equação (7): a estimação da equação (6b) produziu um coeficiente de -0,64.24 Visando conhecer a dinâmica de curto prazo, a equação (7) foi estimada em defasagens auto-regressivas distribuídas (ADL), seguida da determinação da solução estática de longo prazo. Em seguida, estimou-se o mecanismo de correção de erros de Engle-Granger, isto é, nova equação foi estimada, derivada da equação (7), a partir da primeira diferença das suas variáveis e, também, tomando-se o resíduo estimado na equação de longo prazo (estimação do ADL citado), com seu valor defasado em um período (Quadro 2). As variáveis que não foram significativas a, pelos menos, 10% foram eliminadas do modelo. Os resultados referentes à equação de correção de erros são bons. O modelo apresenta boa especificação em relação aos testes de diagnóstico. O parâmetro de ajustamento do mecanismo de correção de erros (ECM-1) é -0,44. Tal coeficiente é negativo, conforme esperado, e estatisticamente diferente de zero a 10%. Esse coeficiente indica que os agentes compensam, em média, 44% do desequilíbrio do período anterior. Ademais, sua significância estatística é mais uma evidência em favor da co-integração das variáveis em análise. O coeficiente da primeira diferença da liquidez internacional é significativo a 10% e sugere que a elasticidade de curto prazo do câmbio real brasileiro em relação à liquidez internacional é da ordem de -0,14. O coeficiente estimado da primeira diferença defasada em um período da variável Wb foi de cerca de 1,14 e significativo a 10%. Por fim, os resultados encontrados sugerem que a taxa de câmbio real brasileira tende a se depreciar ao longo do tempo e corroboram o argumento de Lemos (1988), baseado no diferencial de desenvolvimento do complexo de serviços entre economias desenvolvidas e não desenvolvidas. 23 Para obter detalhes sobre o teste do traço e sobre a correção de Reimers, ver Harris (1995, p. 87-88). 24 Foram conduzidos testes ADF e de Perron para a variável Wa, para o período 1948-03. Os resultados obtidos são os mesmos encontrados para a variável Wb. Os resultados desses testes de raiz unitária e, também, da estimação da equação (6B) pelo método de Johansen não estão reportados neste estudo por uma questão de economia de espaço, mas podem ser obtidos diretamente com os autores. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 3,8 Σ log(1-γ) 0,0809 8,967 (1) 27,82 -T 246,236 255,665 260,108 260,149 0 1 2 3 FONTE DOS DADOS BRUTOS: FGV. FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEA. FONTE DOS DADOS BRUTOS: FMI. (1) Indica significância estatística a 10%. Log máxima verossimilhança -0,1150 LI 0,0558 6,184 19,19 -(T –nm) Σlog(1-γ) Posto Wb 1,024 VETOR DE CO-INTEGRAÇÃO 0,0558 11,4 17,9 95% 1,00 0,0809 ρ< 2 6,128 13,01 -(T –nm)log(1-γ) IPA/IPC 8,886 (1) 18,86 ρ=0 ρ<1 - T log(1-γ) TESTE DO TRAÇO Teste de Johansen (com variável instrumental) TESTE DO MAIOR AUTOVALOR H 0 : posto = ρ Quadro 1 3,8 12,5 24,3 95% Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 401 Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 402 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Quadro 2 Mecanismo de correção de erros para o câmbio real brasileiro (IPA/IPC) — 1974-02 VARIÁVEIS Constante COEFICIENTES 0,018268 DIPA/IPC - 1 (1)0,49513 DIPA/IPC - 2 (2)–1,3163 DLIM2 (1)–0,13841 DWb - 1 (1)1,1403 ECM - 1 (1)–0,44136 2 R = 0,359309; F(5, 23) = 205,06 [0,0000]; DP = 0,0776581; DW = 2,03; RSS = = 0,1387081199 AR 1- 2F( 2, 21) = ARCH 1 F( 1, 21) = 2 Normality χ (2) = 1,1598 [0,3328] 0,84274 [0,3690] 2,7118 [0,2577] χi 2 F(10, 12) = 0,28943 [0,9708] RESET F( 1, 22) = 1,0328 [0,3205] NOTA: 1. A letra D no início das variáveis refere-se à primeira diferença; a sigla AR apresenta os valores relativos ao teste do multiplicador de Lagrange para autocorrelação; a sigla ARCH mostra os valores para o teste de Engle para os resíduos ARCH; e a sigla RSS corresponde à soma dos quadrados dos resíduos; o termo DP corresponde ao desvio padrão dos resíduos; enquanto o valor da estatística de Durbin-Watson é representado pela sigla DW. NOTA: 2. A normalidade dos resíduos é avaliada pelo teste de Jarque-Bera, indica2 do pelo termo Normality; o símbolo χi indica os valores para o teste de validade funcional e/ou heterocedasticidade; e o termo RESET refere-se ao valor do teste de Ramsey para má especificação do modelo. (1) Indica significância estatística a 10%. (2) Indica significância estatística a 5%. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 Taxa de câmbio real de longo prazo no Brasil 403 5 Conclusões Há, na literatura do comércio internacional, três explicações para a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real: o modelo de diferenciais de produtividade, de Balassa (1964) e Samuelson (1964), o modelo de dotação relativa de fatores (Heckscher-Ohlin) e o modelo de gostos não homotéticos (Bergstrand,1991). Lemos (1988) acrescenta uma quarta explicação, a partir do modelo de diferenciais de desenvolvimento do complexo de serviços. Essas quatro explicações convergem para o mesmo resultado: verifica-se a depreciação da taxa de câmbio real, no longo prazo, nos países não desenvolvidos e uma apreciação dessa taxa nos países desenvolvidos. Argumentou-se, com base na literatura pós-keynesiana, que os fluxos de capitais são relevantes na determinação da taxa de câmbio das economias, classificadas no sistema financeiro internacional como unidades hedge, especulativas e ponzi. O sistema financeiro internacional “não é neutro”, e os fluxos de divisas externas são inibidos no seu deslocamento para os países menos desenvolvidos, vis-à-vis às economias mais desenvolvidas, principalmente nos períodos de queda cíclica da liquidez internacional. As oscilações cíclicas dessa variável afetariam, então, a taxa de cambio real das economias em desenvolvimento com maior intensidade. Visando estimar um modelo para a taxa de câmbio real do Brasil para o período 1971-02, adotaram-se como variáveis explicativas do câmbio real brasileiro uma variável proxy para a liquidez internacional e outra variável proxy que reflete o diferencial da mudança de preços relativos nos Estados Unidos (resto do mundo) e no Brasil — variável W. Tal variável é compatível apenas com o argumento de Lemos (1988) para a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio real. Os resultados encontrados não rejeitam hipótese de relevância de ambas as variáveis para explicar a taxa de câmbio real no Brasil. Ou seja, constatou-se a existência de uma relação de longo prazo entre as variáveis do modelo. Além disso, no modelo de correção de erros, os coeficientes estimados de ambas as variáveis explicativas são significativamente diferentes de zero a um nível de 10%. Os resultados das estimações fornecem evidências de que a economia brasileira é classificada no sistema financeiro internacional como unidade especulativa/ponzi, o que seria consistente com a tendência de sua taxa de câmbio real se depreciar no longo prazo. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 404 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Referências AMADO, A. M. Minsky e o ciclo econômico: uma análise para economias periféricas. 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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 408 Marco Flávio da Cunha Resende; Giordano Bruno Braz de Pinho Matos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 375-408, out. 2007 409 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal: um estudo para Minas Gerais — 1995-06* Frederico G. Jayme Jr.** Júlio César dos Reis João Prates Romero Professor do Cedeplar-UFMG Mestrando em Economia do Cedeplar-UFMG Bolsista de Iniciação Científica do PROBIC-CNPq na UFMG Resumo As mudanças ocorridas no cenário institucional do Brasil, nos últimos anos, impuseram aos administradores públicos medidas no sentido de ajustar o Estado à nova ordem econômica. O controle dos gastos passou a representar um ponto fundamental na política econômica. No âmbito estadual, a dinâmica de déficits sucessivos foi revertida através da renegociação das dívidas estaduais e da implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Este trabalho faz uma avaliação das finanças públicas de Minas Gerais no período 1995-06, ressaltando os impactos dessa lei e considerando seus reflexos sobre o sistema federativo. Palavras-chave Descentralização fiscal; dívida estadual; federalismo. Abstract Several institutional changes in the last years have imposed to the public administrators the adoption of several policies intended to adjust the State for the new economic order. The expenditure control has turned to be central in the * Artigo recebido em nov. 2006 e aceito para publicação em maio 2007. ** O autor agradece ao CNPq e à Fapemig por financiarem parte desta pesquisa, e os três autores agradecem a dois pareceristas anônimos desta revista. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 410 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero political economy. Regarding the Brazilian states, a dynamic of successive deficits was reverted through the renegotiation of the states debts, as well as the advent of the Fiscal Responsibility Law. This paper aims at analyzing the public finance of the State of Minas Gerais from 1995 to 2006, highlighting the impacts of the above-cited law considering its implications over the federalism in Brazil. Key words Decentralization; public debt; federalism. CLASSIFICAÇÃO JEL: H20, H71, H77. 1 Introdução A partir de 1995, observou-se, no Brasil, um movimento de reconcentração tributária, com a elevação da carga tributária bruta (CTB) — principalmente via impostos indiretos — e a transferência de diversas despesas, antes federais, para a esfera estadual. Diante disso, as dificuldades impostas pelo aumento das demandas por gastos, com o limitado crescimento das receitas, tornaram-se entraves para a recuperação da capacidade de financiamento estadual. O Estado de Minas Gerais não foge a essa regra. Com uma limitada capacidade de gasto, as perspectivas de intervenção mais aguda na promoção do desenvolvimento e de ganhos de bem-estar tornam-se cada vez mais estreitas. A composição de seus gastos, com alto grau de engessamento das despesas e problemas no sistema previdenciário estadual, evidencia esse problema. Não bastasse isso, se, de um lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) contribui para uma maior transparência na gestão pública e cria mecanismos de controle e accountability, de outro, obriga as unidades subnacionais federativas a um rigoroso controle de gastos, que, em alguns casos, pode limitar a capacidade dos gastos sociais e de investimento. Nesse sentido, é importante um ajuste que garanta a sustentabilidade financeira intertemporal do Estado, e não somente um equacionamento das finanças estaduais no curto prazo. Para tanto, a perseguição de um ajuste estrutural é de importância central. Desse modo, analisando a situação financeira atual do Estado de Minas Gerais e suas perspectivas para o futuro, procura-se discutir a sustentabilidade fiscal e financeira das finanças públicas de Minas Gerais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 411 Sabendo da necessidade de um ajuste fiscal, os administradores públicos, nos últimos anos, vêm tomando várias medidas no sentido de tentar sanar esses desequilíbrios. No âmbito estadual, merecem destaque a renegociação das dívidas estaduais em 1998 e, posteriormente, em 2000, a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa lei procura conferir maior controle e transparência ao gasto público. No entanto, por impor rígidos limites de endividamento, metas de gastos e severas punições àqueles que ultrapassarem esses limites, a LRF tem gerado maiores dificuldades de ajuste para os entes federativos com problemas fiscais prévios, principalmente os estados. Diante desse quadro, o objetivo deste trabalho é avaliar a situação das finanças públicas do Estado de Minas Gerais no período 1995-06 e analisar os impactos da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre o financiamento estadual. O trabalho divide-se em quatro partes além desta Introdução. A seção 2 dedica-se a uma análise da Lei de Responsabilidade Fiscal: seus fundamentos, arcabouço teórico e objetivos principais. Posteriormente, são apresentadas algumas implicações da LRF para o equilíbrio federativo. Na seção 3, é construída uma caracterização das finanças do Estado de Minas Gerais no período 1995-06, ressaltando o impacto da Lei de Responsabilidade Fiscal nos resultados apresentados. A última seção é destinada às Considerações finais. 2 Lei de Responsabilidade Fiscal: aspectos gerais 2.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal e seus antecedentes O capítulo tributário da Constituição de 1988 representou, para os estados e os municípios, uma maior autonomia tributária, bem como a conclusão de um processo de descentralização que se havia iniciado ainda na década de 70. A Carta Magna procurou corrigir as distorções da estrutura anterior e resgatar plenamente o princípio do federalismo fiscal, perdido com a reforma tributária de meados dos anos 60. Objetivava, ademais, dirimir as desigualdades regionais através da criação de fundos específicos para o financiamento de regiões menos desenvolvidas — Fundo Constitucional do Norte (FNO), Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO) e Fundo Constitucional do Nordeste (FNE). Esses fundos teriam fonte garantida de recursos, uma vez que representavam a cota-parte de dois impostos importantes, quais sejam, o Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto de Renda (IR). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 412 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Quanto à distribuição das competências tributárias e do bolo tributário, a nova Constituição representou uma melhora na arrecadação para estados e municípios. Como demonstram Serra e Afonso (1992), principalmente os municípios foram muito bem aquinhoados. Quanto à estrutura de gastos, as disposições constitucionais reestruturaram o processo de planejamento, orçamento e controle, aumentando a capacidade de inserção da sociedade através da obrigatoriedade de o orçamento público passar pela instância legislativa antes de ser executado. Esse processo, de maior controle e transparência, ganhou importância com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ademais, houve restrições ao endividamento público e a operações de crédito que excedessem as despesas de capital. A despeito dessas modificações, o período que se seguiu à promulgação da Constituição, principalmente após o Plano Real, representou um duro revés ao financiamento dos estados e dos municípios, seja pela elevação das demandas sociais decorrentes do aumento do desemprego e do subemprego em zonas metropolitanas, seja pela política recentralizadora implementada pelo Governo Federal, seja, ainda, por uma competição tributária horizontal e vertical, que produziu guerra fiscal entre estados e municípios. Isso, combinado com a estagnação econômica do período 1998-03, produziu efeitos deletérios sobre a arrecadação tributária, muito sensível a variações da renda nacional. O agravamento do desemprego representou aumento das demandas por gastos sociais, difíceis de serem garantidas por estados e municípios, pois estes estavam impossibilitados de aumentar o endividamento, devido às amarras impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não obstante a participação das esferas subnacionais no bolo tributário tenha aumentado com a Constituição de 1988, após o Plano Real o Governo Federal vem sistematicamente propondo medidas recentralizadoras, ao mesmo tempo em que transfere diversos gastos antes federais para estados e municípios. Já na análise dos tributos pela base de incidência, o que se viu foi uma tendência marcante de elevação da participação dos tributos indiretos e cumulativos na base de arrecadação. A literatura sobre equidade da base tributária é rica em demonstrar que os impostos indiretos têm uma maior facilidade de arrecadação, razão pela qual são privilegiados, quando se necessita aumentar a arrecadação tributária, mas também podem contribuir para agravar a concentração de renda em economias com perfil distributivo como a brasileira. Para os estados, no entanto, a situação piora, pois as receitas disponíveis (no conceito ampliado) caem de 27% em 1997 para 24,6% em 2003, refletindo o lento, porém sistemático, processo recentralizador. O aumento da CTB no período representou também um aumento da participação dos estados da arrecadação. No entanto, o aumento do gasto público, decorrente de maiores Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 413 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... demandas sociais, bem como da maior transferência de atribuições às unidades subnacionais, exerce um contrapeso ao processo de maior arrecadação (Tabela 1). Tabela 1 Distribuição da receita tributária disponível, por nível de governo, acumulada em 12 meses, no Brasil — dez. 1989-03 (%) ÚLTIMO MÊS DO ANO Dez./89 Dez/.90 Dez./91 Dez./92 Dez./93 Dez./94 Dez./95 Dez./96 Dez./97 Dez./98 Dez./99 Dez./00 Dez./01 Dez./02 Dez./03 CARGA TRIBUTÁRIA (1) União Estados 22,5 26,5 22,2 22,9 24,5 27,5 27,2 26,5 26,6 27,4 29,2 30,0 31,4 32,9 32,5 62,9 61,1 58,6 60,2 62,6 63,6 61,7 61,5 62,7 62,9 63,2 62,6 62,4 63,4 64,1 25,7 26,4 28,4 27,2 25,3 25,0 26,0 26,2 25,2 24,5 24,0 24,6 24,6 23,7 23,3 CARGA TRIBUTÁRIA DISPONÍVEL A (2) Municípios 11,3 12,5 13,1 12,6 12,2 11,4 12,3 12,3 12,1 12,6 12,8 12,7 13,0 12,9 12,6 CARGA TRIBUTÁRIA DISPONÍVEL B (3) União Estados ... ... ... ... ... ... ... 59,0 59,8 58,8 59,7 58,8 58,3 59,7 60,2 ... ... ... ... ... ... ... 27,4 26,7 26,1 25,0 25,9 26,1 24,9 24,6 Municípios ... ... ... ... ... ... ... 13,6 13,5 15,0 15,2 15,4 15,6 15,5 15,2 FONTE: BNDES. Disponível em: <www.federativo.bndes.gov.br>. Acesso em: 14 dez. 2004. (1) Em percentual do PIB; não inclui a arrecadação tributária própria dos municípios. (2) Abarca a Arrecadação Direta mais ou menos Transferências Tributárias (apenas as principais transferências). (3) Engloba Receita Tributária Disponível mais ou menos Demais Transferências. Fica evidente que, principalmente a partir de 1995 e agravada a partir de 1999, há uma clara recentralização dos recursos tributários e aumento das despesas de estados e municípios, já com dificuldades crescentes de financiamen- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 414 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero to. O resultado é uma combinação perversa: elevação sem par da carga tributária bruta (Gráfico 1) nos últimos anos, concomitantemente à queda da participação das esferas subnacionais na distribuição dos recursos. Não bastasse isso, o que já seria problemático em termos da capacidade de financiamento dessas unidades federativas, ocorreu um aumento nas despesas, bem como uma competição federativa horizontal. Gráfico 1 Carga tributária bruta no Brasil — 1990-05 40% (%) 38% 36% 34% 32% 30% 28% 26% 24% 04 05 20 02 01 03 20 20 20 99 00 20 20 97 98 19 19 95 96 19 19 93 92 94 19 19 19 91 19 19 19 90 0 22% FONTE: AFONSO, J. R.; MEIRELLES, B. Carga tributária no Brasil 2004/ /2005: cálculos revisitados. Campinas: Unicamp, 2006. (Cadernos de pesquisa, n. 61). A estabilização dos preços obtida com o Plano Real, por outro lado, tornou evidentes o descontrole das contas públicas e a necessidade de um ajuste, uma vez que o fim da inflação impossibilitava que os governos utilizassem a estratégia de postergar os repasses de recursos para equilibrar suas contas — o chamado “efeito Patinkin”.1 A combinação aumento de gastos, redução signifi1 Com altas taxas de inflação, o adiamento de pagamentos por parte do Governo representava uma queda real na dívida pública. As receitas eram, de certa forma, indexadas à inflação; por outro lado, as despesas não. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 415 cativa da inflação e elevação da taxa de juros real colaborou, ainda, para aumentar as despesas reais dos governos, de forma que os déficits elevados e o crescimento explosivo das dívidas estaduais introduziram sérios riscos para a manutenção da estabilidade macroeconômica e para as perspectivas de retomada do crescimento (Giambiagi; Rigolon, 1999, p. 7). Assim, quando, no final dos anos 90, devido às crises financeiras do México, da Rússia e do Sudeste Asiático, os fluxos de recursos externos cessaram seu movimento de entrada no Brasil, o Governo Federal viu-se obrigado a tomar uma atitude definitiva, no intuito de controlar os sucessivos déficits, principalmente dos estados. Em 1997 e 1998, então, foram assinados acordos de renegociação das dívidas estaduais, com o objetivo de controlar esses déficits. O descontrole das contas públicas, principalmente estaduais, e a dificuldade de controlar os déficits colocavam-se como um entrave ao modelo de estabilização econômica adotado pelo Governo Federal após o Plano Real. Contudo atitudes no sentido de resolver esse problema já vinham sendo tomadas desde o inicio da década de 90. Dentre elas, merecem destaque: a) a redução da capacidade de os governos subnacionais se financiarem através de seus bancos estaduais, o que, em última instância, significa através do Banco Central (Bacen), devido à relação existente entre este e os bancos estaduais. Foi determinado, por medida provisória, que os governos estaduais se deveriam afastar das atividades financeiras dos bancos estaduais, e estes últimos deveriam ser privatizados, extintos ou transformados em agências estaduais de fomento; b) os vários processos anteriores de renegociação da dívida dos estados, que aperfeiçoaram os mecanismos de controle do endividamento público. Uma inovação conseguida em uma dessas renegociações foi a possibilidade de bloqueio de repasses de recursos, caso o Estado não honrasse os compromissos acordados. Esse fato é um do pilares de sustentação da LRF; c) a limitação da dívida bancária dos estados. Ficou estabelecido que a participação dos bancos privados na composição da dívida estadual deveria ser contida. A intenção era limitar a utilização da antecipação de receitas orçamentárias (ARO) e de empréstimos de médio e longo prazos sem a avaliação da possibilidade de pagamento; e d) a privatização de várias empresas estatais, que se constituía em uma válvula de escape para os governos subnacionais. Essa prática era comum principalmente no setor de energia elétrica. Além dessas medidas, a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, de 04.05.2000, veio coroar esse processo. A Lei objetiva uma administração mais equilibrada e transparente dos recursos públicos. Os governantes dos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 416 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público, nas três esferas de governo, passam a ter compromissos com orçamentos e metas, de modo a evitar o descontrole dos gastos sem o devido conhecimento da União. Basicamente, a LRF apresenta as seguintes características: a) limitação de gastos com pessoal, estabelecendo não somente o quanto pode ser gasto por cada nível de governo em relação à receita corrente líquida, mas também — e aí está a sua novidade — o percentual equivalente aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, eliminando distorções anteriormente existentes, especialmente nos governos estaduais; b) reafirmação dos limites mais rígidos já estabelecidos pelo Senado Federal para o endividamento público, indicando que o não-cumprimento será punido igualmente com mais rigor; c) definição de metas fiscais anuais e exigência de apresentação de relatórios trimestrais de acompanhamento, criando-se também outros mecanismos de transparência, como o Conselho de Gestão Fiscal — a ser ainda constituído; d) estabelecimento de mecanismos de controle das finanças públicas em anos eleitorais; e e) proibição de socorro financeiro entre a União e os governos subnacionais, criando uma relação mais clara entre os entes federativos e recuperando a idéia do federalismo fiscal em sua plenitude. Do ponto de vista macroeconômico, a LRF, combinada com a política monetária restritiva, impõe restrições significativas aos entes federativos, dificultando investimentos e restringindo políticas de desenvolvimento regional baseadas em elevação do gasto público. Observe-se que os cinco itens acima levantados são de fundamental importância para aumentar o controle social do gasto público, traduzindo-se em maior transparência, democracia e, não menos importante, garantindo um melhor arranjo federativo. Um dos pontos que merece destaque, no entanto, se refere ao endividamento público. É sabido que o endividamento é um dos instrumentos fiscais seculares de ampliação de gastos, podendo ser utilizado, inclusive, como mecanismo anticíclico. A União, alguns estados, alguns municípios e algumas capitais certamente podem utilizar esse instrumento, quando necessitarem de aumentar o gasto público para evitar estagnação e recessão. No entanto, a LRF, ao determinar mecanismos excessivamente rígidos e não negociáveis, pode conduzir a quedas nos investimentos públicos. De fato, a política monetária do Banco Central, para ser compatível com metas rígidas de inflação, produz elevação na dívida em títulos da União e de alguns estados, o que — dados os limites restritos de endividamento — se traduz em diminuição de gas- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 417 tos de custeio e, principalmente, de investimentos. Dessa forma, há uma incompatibilidade entre os objetivos da política monetária e da política fiscal. O limite é a diminuição dos gastos públicos não financeiros a níveis incompatíveis com a manutenção da máquina administrativa, para manter o endividamento dentro dos limites da LRF. A LRF constitui, no entanto, um divisor de águas na administração pública brasileira, na medida em que introduz novas práticas de gestão das finanças públicas, pois estabelece regras claras e precisas para o controle dos gastos e do endividamento público. Anteriormente, os déficits orçamentários estaduais eram, em geral, transferidos para a União, quebrando um dos princípios caros aos sistemas federativos, qual seja, a autonomia. Assim, apesar de a Constituição de 1988 ter criado um sistema que aumentou a competência tributária e a percepção das transferências de estados e municípios, a mesma não foi capaz de impor responsabilidades a essas unidades subnacionais. A LRF procura corrigir parte desse problema. 2.2 LRF e equilíbrio federativo O rigor quanto às regras e às punições é uma importante característica da LRF. Certamente, esse é um fator que não pode ser negligenciado em uma avaliação dos impactos da LRF em todos os seus campos de atuação. Passados mais de cinco anos desde a sua promulgação, a mudança no comportamento do resultado primário do Estado de Minas Gerais evidencia esse fato. Entretanto deve-se considerar que a melhora dessa rubrica também pode ser atribuída aos acordos assinados entre o Governo Federal e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Dessa forma, a LRF pode ser considerada mais como potencializadora dessa reversão da tendência de déficits do que como a causa desse fenômeno. Apesar desses resultados positivos, alguns fatores demonstram que, embora tenha trazido novos conceitos e novas diretrizes, ela pode provocar algumas distorções no equilíbrio federativo, prejudicando o crescimento do País e a execução de políticas que tenham o intuito de diminuir os desequilíbrios regionais.3 2 2 Ressalte-se que, conforme bem apontado por um dos pareceristas anônimos desta revista, as punições são administrativas, enquanto o maior rigor está na lei penal, que foi alterada, e não na LRF propriamente. 3 Dentre esses fatores, pode-se apontar a impossibilidade de municípios de grande porte em aumentar o nível de endividamento, mesmo que as condições financeiras assim o permitam (como é o caso de capitais metropolitanas, como São Paulo e Rio de Janeiro), ou, ainda, a LRF não possui mecanismo de compensação, de modo a evitar a concentração tributária, tanto na União quanto em estados menos desenvolvidos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 418 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Com a Constituição de 1988 e o aumento da autonomia das unidades subnacionais, a noção de descentralização fiscal fortaleceu-se. Em países de dimensões continentais como o Brasil, o sistema federativo apresenta uma série de vantagens. A principal delas se refere ao ganho de eficiência alocativa, uma vez que os governos locais são certamente mais eficientes, tanto para a identificação das necessidades de sua população, como para a provisão dos bens públicos que atendam a essas demandas. Além disso, com a descentralização, é provável que ocorra aumento das trocas de informações entre as esferas subnacionais, acarretando um processo de aprendizado que se converterá em nova queda nos custos da provisão dos bens públicos. Assim, caso os tributos cobrados pelas esferas subnacionais sejam relacionados aos custos, essa queda, então, proporcionará à população pagar menos pelos bens disponibilizados. Outro ponto favorável à descentralização fiscal refere-se à proximidade entre a população e os governos locais. Essa maior proximidade permite um controle maior das atividades dos governantes, dificultando comportamentos ineficientes e corruptos. Apesar de todas essas vantagens, o processo de descentralização fiscal brasileiro apresenta vários problemas. O principal deles é que, desde o seu ressurgimento com o fortalecimento do processo democrático e a instituição da Constituição de 1988, as atribuições de cada ente da Federação não foram devidamente especificadas. Com o aumento de atribuições das esferas subnacionais, mesmo que não claramente especificadas, tornou-se uma necessidade o aumento dos recursos a elas destinados. No período pós-Constituição de 1988, as receitas originárias de vinculações aumentaram consideravelmente para estados e municípios, em especial para estes últimos. As bases de incidência dos impostos subnacionais também foram aumentadas. Mesmo sem uma definição quanto às atribuições, o que se observa é uma concentração da atuação do Governo Federal em programas da área social, voltados para a cobertura de riscos provenientes do desemprego, da velhice e da invalidez, enquanto os estados e os municípios passaram a se encarregar de prover serviços voltados a diminuir as desigualdades sociais, como saúde, educação, assistência social e desenvolvimento urbano. Desse modo, o papel desempenhado pelas receitas originadas de vinculações coloca-se como uma característica marcante do modelo de descentralização fiscal brasileiro e como fator decisivo para a manutenção do equilíbrio federativo. Mesmo com a ampliação da base tributária subnacional, poucos são aqueles que não dependem essencialmente das vinculações para atenderem às demandas sociais de sua população. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 419 Essa visão limitada do problema ofuscou o fato de que, além de alguns vícios, a vinculação também tem suas virtudes. A mais importante delas é o fato de soldar as parcerias intergovernamentais indispensáveis à eficiência e à eficácia das políticas voltadas ao combate às desigualdades e à pobreza. Corretamente, a Constituição de 1988 associou descentralização na gestão das políticas sociais ao estabelecimento de uma maior cooperação financeira dos entes federados para tornar viável a implementação dessa estratégia. (Rezende, 1997, p. 6). Uma característica desse processo é que, atualmente, as vinculações não significam centralização de poder, como ocorreu nas décadas passadas, mas, sim, o fortalecimento da descentralização e da autonomia das esferas subnacionais. Todavia, nos últimos anos, como forma de repor as supostas perdas decorrentes do aumento das vinculações, o Governo Federal vem promovendo uma ampliação da carga tributária através do aumento das alíquotas de tributos não vinculáveis, como as contribuições sociais — Contribuição ao Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Programa de Integração Social (PIS) e/ou Programa Formação do Serviço Público (Pasep) — e da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF). Para piorar a situação, o IPI, que, juntamente com o IR, é um dos componentes do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e do Fundo de Participação dos Estados (FPE), apresentou queda em sua arrecadação, nos últimos anos. Somam-se a esse fato as distorções nos repasses de recursos tanto ao FPM quanto ao FPE. A estratégia de elevação da CTB no Brasil, nos últimos 10 anos, provocou a diminuição da participação relativa de estados e municípios no bolo tributário, resultando não só em uma reafirmação dos conflitos federativos verticais e horizontais, como também em um impacto negativo sobre a possibilidade de utilização das transferências tributárias como mecanismo de diminuição dos desequilíbrios regionais. Incorporando a essa análise componentes demográficos, nota-se claramente que as regiões metropolitanas, apesar de possuírem uma maior capacidade de geração de receitas, devido à concentração populacional, são as áreas que mais dependem dos recursos provenientes do Governo Federal, para atenderem às suas demandas sociais. Outro fator importante é que, devido ao processo de transição demográfica, as regiões mais desenvolvidas se tornam crescentemente dependentes do Governo Federal, pois sua população tende a ficar cada vez mais velha, aumentando a demanda por serviços de seguridade social. Já as regiões menos desenvolvidas, que possuem um grande número de jovens em sua população, tornam-se mais dependentes das ações dos estados e dos municípios, com uma demanda maior de serviços relacionados à educação e à assistência social. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 420 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero O cenário configurado, então, mostra-se bastante delicado para as esferas subnacionais: aumento nas atribuições e diminuição nos recursos disponíveis. Essa situação pode ser muito mais complicada do que aparenta, pois, devido a esse processo de descentralização fiscal, a importância das atividades municipais aumentou consideravelmente. Devido aos elevados déficits apresentados nos últimos anos, os estados, cada vez mais, vêm perdendo espaço para os municípios em quase todas as áreas de prestação de serviços sociais. O orçamento estadual é, em grande parte, destinado ao pagamento da folha de salários e dos serviços da dívida, ficando restrita sua participação na execução de políticas públicas. Apesar de as grandes capitais possuírem uma boa base de arrecadação, ela não é suficiente para atender às demandas sociais de sua população. Os pequenos municípios, por outro lado, não possuem outra fonte importante de recursos senão as vinculações. Para ambos os casos, a dependência dos recursos federais é grande, e tanto o FPM quanto o FPE não conseguem suprir essa dependência. Tal situação poderia ser amenizada, se as transferências federais representassem um volume considerável de recursos, como já aconteceu em tempos passados. Contudo, seguindo com a política de austeridade fiscal, essas transferências vêm apresentando uma tendência declinante desde o início da década de 90. Os impactos da LRF sobre as esferas subnacionais agravam ainda mais essa situação. Afonso (2001; 2002) e Serra e Afonso (2002) argumentam que a Lei de Responsabilidade Fiscal fortalece o caráter federativo do Estado brasileiro, quando cria o conceito de ente da Federação e quando atribui regras e punições para cada esfera de governo, ou porque ela se aplica a todos os entes federados e a cada um dos poderes. Ademais, ela responsabiliza cada esfera por seus próprios atos. Assim, a prática recorrente de federalização das dívidas, principalmente das estaduais, foi extinta. Esses autores ainda afirmam que a LRF contribui para o crescimento da receita dos governos, pois obriga a arrecadação de todos os impostos de competência de cada esfera, além de dificultar a renúncia fiscal; observam, ademais, que a Lei incentiva o melhor aproveitamento dos recursos, uma vez que limita as despesas. O resultado prático, no entanto, não é assim tão nítido. Sua extrema rigidez e sua preocupação em conter os déficits públicos acabam produzindo efeitos negativos sobre a renda e o PIB. Como foi salientado anteriormente, as disparidades regionais e todos os problemas provenientes delas dificultam as ações dos governos, tanto das regiões mais desenvolvidas quanto das menos desenvolvidas, e tratar todos os entes federados de forma igualitária ignora, ainda que indiretamente, as disparidades regionais no Brasil. Nesse caso, se, de um lado, a LRF pode fortalecer o equilíbrio federativo, como argumentam Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 421 Serra e Afonso (2002), de outro, pode enfraquecê-lo, não se podendo garantir uma efetiva melhora na capacidade de financiamento das unidades federativas subnacionais. Dessa forma, podemos utilizar o princípio da eqüidade4 como forma de analisar o problema. Em que pese o fato de esse conceito ser aplicado aos princípios da tributação, qual seria o propósito de tratar os desiguais de forma igual como faz a LRF? Não seria mais eficiente tratar os desiguais de forma desigual? Assim, mesmo não transparecendo à primeira vista, a LRF provoca a perda da capacidade de investimento e, com isso, a perda de autonomia das esferas subnacionais. Dessa forma, pode-se dizer que a LRF não contribui para fortalecer o pacto federativo no Brasil. Aqui, com a nossa LRF, as restrições foram impostas a estados e municípios, malgrado toda a discussão que foi empreendida durante a elaboração do projeto de lei. O resultado final, porém, mitiga, muitas vezes, as autonomias dos entes federados, sobretudo em relação às pequenas localidades. ...................................................................................................................... As regras da LRF foram aplicadas verticalmente aos estados e municípios, rompendo, muitas vezes, as autonomias desses entes, infringindo o pacto federativo estatuído na Carta Magna. (Nobrega; Figueiredo, 2001, p. 7 e 10). Mais ainda, se, pela ótica do controle e da maior transparência do gasto público pela sociedade, a LRF é um avanço incontestável, do ponto de vista da utilização da política fiscal como instrumento de estímulo à demanda efetiva, há limitações claras. Nesse sentido, a alocação do gasto público como instrumento de desenvolvimento e diminuição de disparidades regionais vai de encontro aos principais objetivos da Lei. Desse modo, a LRF depende de um governo que garanta o equilíbrio fiscal, uma relação dívida/PIB compatível com a solvência intertemporal e de reformas institucionais que garantam condições institucionais jurídicas para garantir o investimento privado. Do ponto de vista da gestão das finanças públicas, portanto, a LRF moderniza e democratiza seus instrumentos, apoiando-se, segundo Khair (2000), em quatro eixos principais: planejamento, transparência, controle e responsabilização. No entanto, como já salientado anteriormente, as proposições normativas da Lei 4 O princípio da eqüidade pressupõe que indivíduos considerados iguais sejam tratados da mesma forma e que indivíduos considerados diferentes sejam tratados de forma diferenciada. O problema consiste em determinar o critério para definir tanto a igualdade quanto a diferenciação entre os indivíduos. Os critérios mais difundidos são o do benefício e o da capacidade de pagamento. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 422 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero acabaram por transcender esses pontos, ao criar amarras ao papel anticíclico do gasto público e tornar o equilíbrio fiscal profissão de fé, o que pode causar efeitos negativos sobre o investimento público. Se levarmos em conta que o investimento privado tende a se direcionar para regiões e setores de menor risco e maior retorno, é fácil prever que, sem a atuação direta do Estado, os investimentos em infra-estrutura e aqueles que possibilitam diminuição de desequilíbrios regionais ficarão prejudicados. 3 Uma caracterização das finanças públicas em Minas Gerais: 1995-05 3.1 Aspectos gerais O período 1995-06 é marcado, fundamentalmente, pela estabilidade da moeda e pela perda de benefícios inflacionários decorrente do anteriormente referido “efeito Patinkin”. Com a incapacidade de se beneficiar com a inflação, devido à corrosão do valor real das despesas vis-à-vis à estabilidade das receitas reais, a situação financeira das contas públicas ficou mais evidente, obrigando a um ajuste pelo lado dos gastos, uma vez que o ganho de receitas com a queda da inflação e o crescimento do imediato pós-Plano Real não foram suficientes para superar esse efeito.5 As mudanças no cenário econômico nacional, principalmente as relacionadas à extinção dos bancos estaduais, também produziram efeitos sobre a capacidade de gasto estadual. As desvalorizações cambiais e o aumento na taxa de juros no período também contribuíram para o aumento dos encargos das dívidas dos estados. Um outro ponto importante foi a assinatura do acordo, em 1998, de renegociação das dívidas estaduais. Com essa renegociação, os estados ficaram comprometidos a direcionar uma parcela de suas receitas para o pagamento de suas dívidas, que, em razão do referido acordo, foram assumidas pela União. Como os valores a serem repassados à União eram superiores aos efetivados pelo Estado de Minas Gerais antes dessa renegociação, esse fato criou mais um agravante para o ajuste fiscal, principalmente se levarmos em 5 À medida que a inflação se acelerava, o Governo, em suas três esferas, foi criando mecanismos para evitar a vigência do Efeito Olivera-Tanzi, no qual as receitas perdem seu valor real com a aceleração inflacionária, devido à não-indexação das receitas. Com a indexação das receitas e a indexação incompleta das despesas, o Governo conseguia promover um ajuste de curto prazo nas contas públicas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 423 consideração o fato de que o estoque da dívida estadual continuou apresentando crescimento, pois, com a renegociação, houve uma mudança na estrutura da dívida, uma vez que foi incorporado ao estoque da dívida um conjunto de dívidas relacionadas ao saneamento dos bancos estaduais, e o valor dos pagamentos acordados não foi suficiente para pagar os encargos da nova dívida.6 A Tabela 2 apresenta uma caracterização das finanças estaduais no período 1995-06. Em primeiro lugar, é possível observar um tímido crescimento da receita total nesse período, sustentado, principalmente, pelas receitas correntes, em especial pelas receitas tributárias que, na sua quase-totalidade, são constituídas pelas receitas advindas da arrecadação do ICMS. As receitas de capital apresentaram uma trajetória de crescimento até 1998, quando, em razão do encerramento do ciclo de rolagem da dívida, foram substituídas pela renegociação das dívidas estaduais com o Tesouro Nacional. Desde então, essa rubrica vem apresentando uma constante queda, exceto no ano 2000, em que parte dessas receitas é explicada pela alienação de bens. A significativa queda das receitas advinda das operações de crédito apresentada em 1999 pode ser explicada como um reflexo da moratória da dívida interna decretada pelo Governador Itamar Franco, no início de seu mandato, em 1999. As demais rubricas do lado da receita apresentaram uma relativa estabilidade ao longo desse período. No caso das despesas, a situação com relação ao comportamento no período é semelhante. Contudo deve-se ressaltar a mudança na sua estrutura. Observando-se a Tabela 2, pode-se notar o elevado crescimento das despesas com pessoal e encargos, de, aproximadamente, 80% no período. Essa elevação se explica pela mudança na metodologia de cálculo dessa rubrica, pois, a partir de 2000, as despesas com funcionários terceirizados, antes incluídas nas transferências, passaram a ser calculadas nas despesas com pessoal. Outro fator importante é a queda apresentada pela rubrica amortizações após 1998: o valor destinado a essa rubrica, atualmente, é cerca de 16% do valor despendido em 1995, o que é conseqüência da renegociação da dívida de 1998. De fato, a diminuição das amortizações veio acompanhada de um aumento do estoque de dívida acumulada, bem como de juros e encargos sobre esse estoque. Aqui, mais uma vez, é possível observar que o acordo da dívida não necessariamente garantiu a solvência da dívida pública do Estado de Minas Gerais, revelando a fragilidade do ajuste de curto prazo. Um outro ponto importante é o grande aumento no período da rubrica investimentos e inversões, chegando hoje a representar 12% das despesas correntes. Entretanto não se pode deixar de 6 Para uma análise dos impactos da renegociação da dívida nas finanças de Minas Gerais, ver Riani e Andrade (2002). Para uma análise recente, ressaltando os impactos negativos sobre o custo de rolagem da renegociação da dívida, ver Riani e Andrade (2006). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 424 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero considerar que esse valor, confrontado com as amortizações e juros e encargos da dívida, só é maior em 1998, ano de eleições, e em 2005, ano que foi marcado pela retomada dos investimentos do Governo Estadual, possivelmente em função das eleições de 2006. Tabela 2 Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO 1995 1996 1997 Receita total .......................... Receita corrente ..................... Receita tributária ............... ICMS ............................. IPVA .............................. Transferências correntes ... FPE ................................ Demais receitas correntes Receita de capital ................... Operações de crédito ........ Alienação de bens ............. Transferências de capital ... 18 969 794,91 15 510 223,17 11 382 733,43 10 805 033,98 ... 3 561 016,70 811 745,13 566 473,04 3 459 571,74 2 803 193,23 590 704,08 51 001,08 19 074 483,73 14 788 528,59 10 980 028,55 10 245 941,50 ... 3 078 699,69 750 199,55 729 800,35 4 285 955,14 3 404 584,06 793 403,44 87 957,56 21 744 809,39 14 463 949,68 10 449 558,56 9 663 343,52 539 308,88 3 011 041,33 768 483,85 1 003 349,79 7 280 859,71 5 622 251,80 678 908,57 84 854,56 Outras ................................ Despesa total ........................ Despesa corrente ................... Pessoal e encargos ........... Previdência ........................ Juros e encargos da dívida Transferências a municípios Despesa de capital ................. Investimentos e inversões Amortizações ..................... Superávit/déficit .................... 14 673,91 22 352 502,13 18 214 342,91 6 437 352,30 2 744 105,41 1 180 828,80 3 540 181,82 4 138 159,22 364 190,83 2 565 836,05 9,25 18 164 449,40 15 447 595,77 5 751 166,72 2 797 256,36 888 101,10 3 380 274,57 2 716 853,63 382 834,63 2 068 049,15 894 844,77 21 235 657,22 15 132 058,25 5 778 034,05 2 814 986,56 986 991,83 3 176 053,85 6 103 598,97 994 445,05 4 860 790,46 -3 382 707,22 910 034,32 509 152,17 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 425 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... Tabela 2 Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO 1998 Receita total ......................... 26 997 383,70 Receita corrente ................. 14 720 210,60 Receita tributária ............... 10 139 738,16 ICMS ....................... 9 117 436,10 IPVA ........................ 744 992,47 Transferências correntes FPE ......................... 3 035 059,99 781 392,88 Demais receitas correntes 1 545 412,44 Receita de capital .................. 12 277 173,11 Operações de crédito ....... 9 932 198,95 Alienação de bens ............ 2 228 789,89 Transferências de capital 47 618,91 Outras ............................... 68 564,70 Despesa total ....................... 26 043 940,96 Despesa corrente ............... 14 445 597,88 Pessoal e encargos .......... 5 663 009,92 Previdência ....................... 755 336,68 Juros e encargos da dívida 736 548,57 Transferências a municípios 3 224 424,23 Despesa de capital ................ 11 598 343,08 Investimentos e inversões 7 097 244,64 Amortizações .................... 4 078 201,40 Superávit/déficit ................... 953 442,74 1999 2000 16 436 630,99 21 318 813,52 15 876 601,49 11 273 321,52 19 192 520,67 12 464 331,07 10 248 893,10 11 236 635,99 757 931,87 3 240 970,17 843 730,95 3 875 791,08 2 975 920,28 1 362 309,80 560 029,50 154 077,91 282 212,82 123 665,52 72,46 964 036,28 2 852 398,52 2 126 292,85 222 749,49 1 284 679,71 155 411,90 463 451,76 16 154 685,64 21 906 479,05 14 954 013,58 8 783 741,33 641 352,57 1 378 253,78 3 464 944,40 1 200 672,06 285 775,34 744 060,79 281 945,35 19 004 401,16 6 303 471,52 1 034 300,89 1 220 202,66 3 076 963,55 2 902 077,89 1 376 735,35 1 390 859,67 -587 665,53 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 426 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Tabela 2 Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO 2001 Receita total ......................... Receita corrente ................. 22 370 384,67 21 589 403,30 22 134 599,89 21 246 479,52 14 044 834,82 12 724 131,67 21 146 921,03 14 759 006,40 12 437 314,86 21 206 389,09 15 009 120,59 12 743 623,26 921 065,24 3 913 149,88 954 047,01 3 364 888,89 871 086,57 3 049 813,98 1 070 578,65 1 065 347,26 1 123 905,14 77 812,45 265 489,19 262 080,72 1 230 547,92 508 334,80 2 138 584,15 92 778,04 287 071,06 1 269 529,98 1 137 601,76 555 845,08 928 210,80 21 547,56 32 134,74 448 578,48 518 522,78 24 271 678,94 21 703 746,54 8 672 828,61 2 207,29 24 442 633,80 21 989 038,06 12 064 444,58 10 442,97 22 402 594,95 20 685 125,42 10 937 775,08 1 174 914,87 1 667 408,36 3 703 409,57 2 567 932,40 1 530 836,35 694 661,40 1 459 548,24 1 426 037,72 3 487 823,71 2 453 595,73 1 882 275,05 571 320,68 1 293 081,55 1 402 798,92 3 555 217,74 1 717 469,53 1 216 435,60 501 033,93 -1 901 294,27 -2 853 230,50 -267 995,06 Receita tributária ............... ICMS ............................ IPVA ........................ Transferências correntes FPE ......................... Demais receitas correntes Receita de capital ............... Operações de crédito ....... Alienação de bens ............ Transferências de capital Outras .......................... Despesa total ....................... Despesa corrente .................. Pessoal e encargos .......... Previdência ................... Juros e encargos da dívida Transferências a municípios Despesa de capital ................ Investimentos e inversões Amortizações .................... Superávit/déficit ................ 2002 2003 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 427 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... Tabela 2 Resultado orçamentário de Minas Gerais — 1995-06 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO 2004 Receita total .......................... Receita corrente ..................... Receita tributária ............... ICMS ........................ 23 475 370,37 24 683 574,64 16 368 398,14 25 513 724,00 26 888 734,00 17 839 012,00 28 178 901,69 26 773 046,83 17 815 675,24 13 914 085,11 15 184 191,00 15 121 262,37 IPVA ........................ 1 002 687,10 4 611 562,61 1 086 501,00 4 961 764,00 1 106 762,00 5 118 229,11 881 081,14 759 851,74 667 650,03 11 344,07 34 213,44 261 029,15 1 134 272,00 831 182,00 671 567,00 63 656,00 60 426,52 238 289,00 1 012 518,31 776 758,00 1 405 854,86 397 102,60 51 761,06 499 246,75 11 344,07 23 377 830,18 7 378,00 25 292 070,00 47 312,09 28 999 872,57 21 269 263,32 11 232 669,61 3 551 752,90 1 476 219,56 4 443 394,35 2 108 566,87 1 643 317,21 465 249,66 22 146 209,00 11 336 497,00 3 387 317,00 1 643 595,00 4 602 239,95 3 145 861,00 2 734 415,00 411 446,00 24 241 344,98 12 154 084,32 5 288 333,50 1 825 236,55 4 567 388,57 4 758 527,59 4 250 251,57 508 276,02 97 540,19 221 654,00 -820 970,88 Transferências correntes .. FPE .......................... Demais receitas correntes Receita de capital .................. Operações de crédito ........ Alienação de bens ............ Transferências de capital Outras .......................... Despesa total ........................ Despesa corrente ............... Pessoal e encargos .......... Previdência ....................... Juros e encargos da dívida Transferências a municípios Despesa de capital ................ Investimentos e inversões Amortizações .................... Superávit/déficit ................... 2005 2006 FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional. Fon te: Secretaria da Fazenda de Minas Gerais. NOTA: Valores a preços de 2005 (média anual do IPCA). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 428 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Chama atenção, na Tabela 2, o fato de que, de 2003 a 2005, houve uma reversão do déficit orçamentário. Desde 2000, o Estado apresentava resultado orçamentário negativo, merecendo destaque um déficit de quase R$ 3 bilhões, a preços de 2005, em 2002. Esse elevado déficit se explica, basicamente, por uma estagnação das receitas próprias e por uma elevação de quase 40% nas despesas de pessoal, bem como pelo efeito deletério da inflação naquele ano, que, medida pelo Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), superou os 20%. De fato, o custo da folha de salários, com uma inflação crescente, tende a aumentar, menos pela elevação dos salários no setor público e mais pelo crescimento da folha de funcionários contratados. Ademais, e isso não se pode negligenciar, o ano de 2002 foi ano eleitoral, o que pode produzir ciclos eleitorais com maiores gastos. De qualquer maneira, o efeito da inflação sobre as receitas e as despesas (estas últimas indexadas), combinado com o ano eleitoral e com um pífio crescimento econômico, certamente amplificou esse déficit. Em 2003, primeiro ano do novo governo, portanto, tradicionalmente caracterizado por ajuste nas contas públicas, ainda não foi possível inverter o resultado orçamentário negativo. O ajuste nas despesas, principalmente nas despesas correntes, não foi suficiente para reverter o déficit, uma vez que as receitas, devido ao crescimento econômico próximo de zero naquele ano, se elevaram em apenas 2,5%. Conforme observou Silva (2004), as receitas do ICMS são muito sensíveis ao desempenho do PIB, de modo que períodos de estagnação têm efeitos diretos sobre as receitas desse imposto. Isso pode ser observado em 2003, quando as receitas do ICMS praticamente não se alteraram desde 2001. Esse fenômeno se reverteu em 2004, conseqüência tanto da recuperação do crescimento quanto do desempenho sem par do setor exportador no País. Sendo Minas Gerais um estado exportador de bens intermediários, principalmente minério de ferro, que obteve resultados positivos nos preços internacionais, o efeito indireto sobre a arrecadação, mesmo com as desonerações dos produtos exportáveis, foi notável. Conseqüentemente, abriu-se a possibilidade para o ajuste, bem como o crescimento das despesas naquele ano. Esse processo garantiu, ainda, o crescimento das despesas em 2005, inclusive das despesas de capital, e, mesmo assim, proporcionou um superávit orçamentário. As despesas correntes superaram as despesas pré-eleitorais em termos reais, mas, devido ao aumento das receitas, garantiram-se a manutenção do ajuste e a adequação às imposições da Lei de Responsabilidade Fiscal. Um fato marcante, no entanto, é a evidência de ciclos políticos. De fato, conforme atesta a Tabela 3, o período 1995-98 foi marcado por um ajuste, que se iniciou em 1996 e foi completado no ano seguinte. Em 1997, houve um superávit primário nas contas do Governo Estadual, com queda real nas despesas Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 429 com pessoal. No ano eleitoral, 1998, as contas do Estado apresentaram um déficit primário de mais de R$ 6 bilhões, a preços de 2005. O Governo empossado em 1999 procedeu a um novo ajuste, já obtendo, nesse ano, um resultado primário positivo. Em 2002, a despeito da vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, houve um déficit primário da ordem de R$ 1,3 bilhão, a preços de 2005. A partir de 2003, novamente o superávit primário foi obtido, embora a dívida líquida consolidada se tenha mantido estável em termos reais. É interessante observar-se que, mesmo sob a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal a partir de 2000, os ciclos políticos permaneceram. Naturalmente, sua evidência tende a diminuir com a referida lei, uma vez que a elevação de gastos, sem a garantia de crescimento das receitas, se tornou muito mais limitada. As contas estaduais, contudo, se analisadas de forma inadequada, podem gerar interpretações enganosas. O resultado orçamentário, por exemplo, pode ser equilibrado ou superavitário e pode, na verdade, esconder uma situação de desequilíbrio, uma vez que essa conta inclui empréstimos contratados pela administração pública e por transferências de capital, o que não representa uma receita propriamente dita. Além disso, a própria forma como são distribuídas as receitas e as despesas do Governo pode gerar uma contabilidade enganosa. Uma situação que se enquadra nesse aspecto é a de transferências de despesas executadas para a conta restos a pagar, o que implica que essas dívidas deverão ser pagas no futuro, ainda que seu montante não seja incluído no montante de dívida atual. Nesse caso, bem como no da dívida fundada, uma análise do conceito “abaixo da linha” permite observar o resultado fiscal a partir da variação da dívida. Assim sendo, um resultado orçamentário equilibrado pode esconder um déficit nominal — no conceito de necessidades de financiamento do setor público (NFSP).7 Além disso, é importante analisar o próprio conceito de déficit. Em contextos de elevado endividamento, o mais adequado para avaliar o esforço fiscal do Governo é a utilização de NFSP em seu conceito primário, que exclui os encargos da dívida, ou seja, seus juros. No entanto, ao se utilizar o resultado das contas orçamentárias, encobre-se a verdadeira situação financeira estadual, podendo gerar uma imagem de equilíbrio irreal. Segundo o conceito nominal (que inclui nas contas os juros devidos e a atualização monetária e cambial), 7 Sobre esse ponto, particularmente em relação ao Estado de Minas Gerais, Oliveira (2006) demonstra a maneira financeiramente mais correta de calcular o resultado fiscal das contas públicas. Quanto ao conceito de déficit, no conceito “acima da linha”, são explicitados os principais fluxos de receitas e despesas, ao passo que, no conceito “abaixo da linha”, o déficit é observado com base na variação da dívida pública, ou pela ótica do seu financiamento. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 430 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero um resultado orçamentário equilibrado pode representar, ou melhor, encobrir, um déficit fiscal, isso se o resultado orçamentário positivo não for suficiente para o pagamento tanto dos juros quanto das correções monetárias. Tabela 3 Demonstrativo da aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal em Minas Gerais — 1995-06 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO Receita corrente líquida (1) .................................. Receita disponível (2) .... Dívida líquida consolidada (3) ............................. Despesa com pessoal total ................................ Receita tributária mais transferências constitucionais ........................... Resultado primário ......... Restos a pagar (4) ......... DISCRIMINAÇÃO Receita corrente líquida (1) .................................. Receita disponível (2) .... Dívida líquida consolidada (3) ............................. Despesa com pessoal total ................................ Receita tributária mais transferências constitucionais ........................... Resultado primário ......... Restos a pagar (4) ......... 1995 1996 1997 11 970 041,35 15 429 613,09 11 408 254,02 15 694 209,16 11 287 895,83 18 568 755,54 ... ... ... 9 181 457,72 8 548 423,09 8 593 020,61 14 943 750,12 -3 124 661,63 ... 14 058 728,24 -460 163,25 ... 13 460 599,89 29 753,23 ... 1998 1999 2000 11 495 786,37 23 772 959,47 12 411 657,09 12 971 686,59 16 115 557,12 18 241 849,98 ... ... 48 659 172,81 6 418 346,60 9 425 093,90 7 337 772,41 13 174 798,16 -6 423 816,31 ... 14 514 291,69 1 746 120,50 ... 16 340 122,15 382 952,31 2 366 685,87 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 431 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... Tabela 3 Demonstrativo da aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal em Minas Gerais — 1995-05 (R$ 1 000) DISCRIMINAÇÃO Receita corrente líquida (1) .................................. Receita disponível (2) .... Dívida líquida consolidada (3) ............................. Despesa com pessoal total ................................ Receita tributária mais transferências constitucionais ........................... Resultado primário ......... Restos a pagar (4) ......... DISCRIMINAÇÃO Receita corrente líquida (1) .................................. Receita disponível (2) .... Dívida líquida consolidada (3) ............................. Despesa com pessoal total ................................ Receita tributária mais transferências constitucionais ........................... Resultado primário ......... Restos a pagar (4) ......... 2001 2002 2003 17 543 069,95 18 666 975,10 17 659 097,32 19 797 681,47 17 651 171,35 18 579 382,16 47 342 370,26 40 457 717,38 40 530 736,22 9 847 743,49 13 523 992,82 12 230 856,63 17 957 984,70 -61 215,39 18 123 895,29 -1 329 608,09 18 058 934,57 1 327 810,10 3 196 234,13 3 560 154,07 3 431 909,06 2004 2005 2006 20 240 180,29 20 907 830,32 22 286 494,05 22 958 061,05 21 010 179,07 22 416 033,93 40 311 789,09 39 706 846,00 39 507 055,83 14 784 422,51 14 723 814,00 17 442 417,82 20 979 960,75 1 719 717,42 4 007 563,30 22 800 776,00 1 928 250,00 4 939 930,00 22 933 904,36 -820 970,88 4 568 840,52 FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional. FONTE: Secretaria da Fazenda de Minas Gerais. NOTA: Valores a preços de 2005 (média anual do IPCA). (1) Receita corrente menos transferências aos municípios. (2) Receita corrente líquida mais receitas de capital. (3) Obrigações financeiras para amortização em um prazo superior a um ano e aquelas com prazo inferior a um ano, cujas receitas tenham contado no orçamento. (4) Em valores nominais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 432 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero De fato, o valor dos juros inscrito no orçamento não representa o valor total dos juros devidos pelo Estado no ano, mas apenas aqueles juros computados na previsão de pagamento. Segundo o acordo de negociação de 1998, o valor total dos juros corresponde a 13% da receita líquida real (RLR), a ser utilizado no pagamento da dívida com a União, incluindo também os pagamentos de juros a serem feitos aos demais credores. Ao se excluir o verdadeiro valor dos juros devidos, obtém-se um bom resultado no curto prazo, mas não se garante um equilíbrio sustentável de longo prazo. Ao contrário, a própria limitação dos juros pagos produz uma elevação ainda mais problemática do estoque de dívida fundada e flutuante do Estado.8 Chama atenção exatamente o fato de que, limitada a possibilidade de se endividar, o Estado de Minas Gerais tem apresentado um crescimento acelerado e persistente da conta restos a pagar. De fato, a Tabela 3 demonstra que, de 2000 a 2005, os restos a pagar se elevaram em mais de 100%, mesmo com um razoável crescimento da receita corrente líquida. Com efeito, conforme demonstra Oliveira (2006), o crescimento da dívida flutuante permite obter resultados orçamentários equilibrados, desde que o Governo adie pagamentos. Como os encargos das dívidas, fundada e flutuante, são limitados pelo acordo de 1998 e pela LRF, o ajuste de longo prazo das finanças estaduais de Minas Gerais pode ser seriamente afetado. A questão da dívida é, ainda, um problema a ser equacionado. A renegociação da dívida do Estado com a União não representou ganho substancial para as finanças estaduais. As condições firmadas nesse acordo deram ao pagamento de juros e encargos da dívida uma posição relativa importante nos gastos do Estado, representando cerca de 7% da receita corrente líquida (RCL) atualmente. Assim, mesmo sendo difícil obter mudanças nas regras estabelecidas em razão de restrições legais e financeiras, essa possibilidade não deve ser descartada. O Estado de Minas Gerais, nesse sentido, poderia concentrar esforços para tentar rever algumas condições acordadas, tais como: a) redução do percentual da receita corrente líquida destinado ao pagamento da dívida — como foi acordado quando da assinatura da renegociação, os percentuais da RCL destinados ao pagamento dos encargos da dívida seriam de 6,79% até novembro de 1998, 12% já em dezembro desse mesmo ano, 12,5% no ano de 1999, e 13% a partir do ano 2000. A redução dos percentuais poderia ser concedida pelo menos em um período de ajuste das contas, voltando para o valor acorda- 8 Sobre esse ponto, ver Oliveira (2006) e Riani e Andrade (2006). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 433 do posteriormente. Vale ressaltar ainda que a dívida foi financiada em um período de 30 anos; b) revisão do índice que corrige a dívida estadual — o índice aplicado como corretor é o IGP-DI, que é mais sensível a mudanças no câmbio e na taxa de juros. A mudança para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IPCA-IBGE) seria configurada como um ganho relativo, posto que esse índice é menos sensível à volatilidade cambial; c) revisão das taxas de juros da dívida — quando da assinatura da renegociação, ficou estabelecido que aos estados que podiam amortizar 20% da dívida no momento da assinatura seriam impostos juros de 6% ao ano ao estoque restante. Como Minas Gerais pagou somente 10%, foi aplicada ao estoque restante da dívida mineira uma taxa de 7,5%. Essas mudanças, embora representem um ganho considerável para as finanças estaduais, não são de fácil solução. Dos problemas a serem enfrentados, destacam-se as limitações e as proibições impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Como já observado, a LRF proíbe ao Governo Federal conceder novos refinanciamentos e modificar os contratos em vigor relacionados à dívida anteriormente contraída por qualquer ente da Federação. Uma outra questão seria o maior comprometimento do orçamento fiscal do Governo Federal para a geração de resultados primários positivos. A queda na participação dos estados nessa conta representa o aumento da participação do Governo Federal. Como esse aumento só pode acontecer através do aumento da carga tributária, ou através de cortes ainda maiores no orçamento, que já se encontra bastante comprometido, o ajuste pelo lado da dívida é um caminho extremamente difícil de ser percorrido. 3.2 A Lei de Responsabilidade Fiscal e o comportamento das finanças de Minas Gerais O objetivo desta seção é avaliar os impactos da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre as finanças do Estado. Para isso, utilizam-se alguns indicadores que permitem avaliar a situação das finanças públicas estaduais de uma maneira geral e, em particular, qual é a situação financeira estadual à luz das limitações impostas pela referida lei.9 9 Alguns dos indicadores aqui utilizados são baseados no trabalho de Garson (2001). Em que pese o fato de esses indicadores terem sido construídos para uma análise das finanças municipais, não há nenhuma restrição à sua aplicabilidade às contas estaduais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 434 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero A análise divide-se em duas partes: na primeira, examinam-se as finanças estaduais, com base nos Indicadores de Estrutura Financeira (IEFs), ao passo que, na segunda, se analisam os resultados apresentados pelos Indicadores de Gestão Fiscal (IGFs). Os Indicadores de Estrutura Financeira permitem avaliar: a) a estabilidade dos recursos disponíveis — a relação entre a RCL e os recursos que são considerados “estáveis”, como os advindos da receita tributária própria e de transferências constitucionais, é um importante indicador, pois permite ao governante realizar, com mais segurança, projetos de longo prazo, uma vez que, no momento do planejamento, tem uma boa estimativa das receitas de que pode dispor para a realização dos projetos; b) o grau de autonomia — quanto da receita disponível é advindo de receitas próprias, em geral, receitas tributárias próprias, concedendo ao ente federado maiores segurança e autonomia na implementação de suas políticas. Esse indicador é fundamental para a implementação de projetos que se configurem como de despesa continuada. Vale, ademais, como um indicador de como o ente em questão pode responder a mudanças nas regras de repasses de recursos; c) o grau de cobertura das despesas — conhecer a relação entre a receita disponível e as despesas permanentes (despesas com pessoal e encargos e com os juros e encargos da dívida) permite ao ente federado o conhecimento de quanto sua receita disponível está comprometida com despesas permanentes e, assim, quanto de seus recursos ele pode direcionar às outras áreas em que atua. Como se pode observar pela Tabela 4, o IEF1 para o período mostra uma melhora na estabilidade das finanças do Estado. A queda desse indicador ao longo do período evidencia que o Estado compromete parcelas cada vez menores de suas principais fontes de arrecadação com as deduções constitucionais que servem de base para o cálculo da RCL, a principal delas é a rubrica transferências a municípios. Isso significa um crescimento relativo da RCL, o que se configura como um ponto positivo, uma vez que esse dado é o principal indicador usado para o estabelecimento dos limites de gastos. Ressalte-se que, desde 1999, esse indicador apresentou uma queda significativa e, a partir de 2000, se manteve estável, revelando que a LRF exerceu um papel importante como disciplinador do ajuste fiscal, independentemente do governo em questão.10 10 O período abarca o Governo Itamar Franco (1998-02) e o primeiro Governo Aécio Neves (2003-06). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 435 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... Tabela 4 Indicadores de Estrutura Financeira (IEFs) de Minas Gerais — 1995-06 INDICADORES Receita tributária mais transferências constitucionais/receita corrente líquida (IEF1) ............ Receita tributária própria/receita disponível (IEF2) ................. Despesa com pessoal/receita disponível (IEF3) ..................... Encargos da dívida/receita disponível (IEF4) .................... Investimento e inversão financeira/receita disponível (IEF5) INDICADORES Receita tributária mais transferências constitucionais/receita corrente líquida (IEF1) ........... Receita tributária própria/receita disponível (IEF2) ............ Despesa com pessoal/receita disponível (IEF3) .................... Encargos da dívida/receita disponível (IEF4) .................... Investimento e inversão financeira/receita disponível (IEF5) 1995 1996 1997 1998 1999 2000 1,25 1,23 1,19 1,15 1,17 1,01 0,74 0,74 0,42 0,70 0,70 0,37 0,56 0,56 0,31 0,43 0,43 0,24 0,87 0,87 0,68 0,68 0,68 0,35 0,08 0,06 0,05 0,03 0,11 0,07 0,02 0,02 0,05 0,30 0,02 0,08 2001 2002 2003 2004 2005 2006 1,02 1,03 1,02 1,04 1,02 1,09 0,75 0,75 0,81 0,78 0,78 0,79 0,46 0,61 0,59 0,54 0,49 0,54 0,09 0,07 0,08 0,07 0,07 0,08 0,08 0,10 0,07 0,08 0,12 0,19 FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional. Com relação ao IEF2, observa-se uma certa estabilidade no período. As quedas apresentadas em 1997 e 1998 podem ser explicadas pelo grande valor apresentado pela rubrica operações de crédito nesses dois anos, o que fez aumentar o volume das receitas disponíveis. O alto valor apresentado para o ano de 1999, por outro lado, pode ser explicado pela grande queda na mesma rubrica, possivelmente um reflexo negativo da moratória da dívida nesse mesmo ano. A participação elevada das receitas tributárias próprias nas receitas disponíveis, em torno de 75% no período, evidencia uma maior autonomia do Governo Estadual com relação à implementação de seus projetos. Todavia esse valor, embora considerável, não necessariamente indica que o Estado esteja aproveitando todo o seu potencial tributário. Vale dizer, esse indicador não é capaz de captar se o Estado está aproveitando, ou não, o seu potencial tributá- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 436 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero rio. Para isso, seria necessário outro tipo de análise, que foge ao escopo do objeto aqui tratado. O IEF3 e o IEF4, relacionados às variáveis de despesa, mostram que o Estado de Minas Gerais apresentou um valor médio em torno de 62% de comprometimento da receita disponível com a despesa com pessoal e com os encargos da dívida estadual. Esse número pode ser considerado bom, mas existe um fator de extrema importância que não é considerado no cálculo do IEF3, qual seja, as despesas previdenciárias, e essa é uma questão relevante no equacionamento das finanças estaduais mineiras. Com relação aos gastos com os encargos da dívida, é importante considerar o acordo de renegociação da dívida em 1998 e os efeitos, após 2000, das limitações de operação de crédito. Mesmo esse indicador sendo estável ao longo do período, com uma grande queda em 1998, em função da moratória, o ponto a ser destacado é a importância das receitas de capital na composição das receitas disponíveis. Antes de 2000, estas tinham um peso relativamente grande, o que representava um pequeno comprometimento relativo da receita corrente líquida com o pagamento da dívida, sendo o ano de 1999 atípico em função da moratória. Com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, observou-se uma grande queda nas receitas de capital. Assim, a estabilidade nesse indicador mostra que o Estado gastou, relativamente, parcelas cada vez maiores de sua receita corrente líquida com os encargos da dívida. Finalmente, o IEF5 analisa o volume de investimentos realizados. Observa-se que o Estado apresentou, no período, indicadores muito baixos. O grande volume de investimentos vistos em 1998, 2002 e 2005 pode ser relacionado, novamente, com as eleições. Desconsiderando esses anos, vê-se que o Estado de Minas Gerais disponibilizou parcelas muito pequenas de sua receita disponível para a realização de investimentos. Um provável resultado dessa política de investimentos é o significativo déficit em infra-estrutura que o Estado apresenta atualmente, déficit este que se coloca como um dos principais entraves ao crescimento do Estado de Minas Gerais. A Tabela 5 apresenta os Indicadores de Gestão Fiscal para Minas Gerais, no período 2000-06, e demonstra mais claramente a situação financeira do Estado em função das limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Os resultados apresentados pelo IGF1 indicam que o Estado se encontra com valores elevados da despesa de pessoal total. Esse resultado, no entanto, merece uma consideração. Pelos estritos critérios apresentados pela LRF, o Estado de Minas Gerais encontrava-se dentro dos limites, para os anos de 2004 e 2005, da relação despesa com pessoal e receita corrente líquida, conforme o IGF4. Com efeito, se incluídas, como no cálculo do IGF1, as despesas previdenciárias, os valores alcançam 0,73, 0,66 e 0,83 para 2004, 2005 e 2006 Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 437 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... respectivamente. Vale dizer, não obstante as despesas de pessoal total, exclusive Previdência, revelarem um resultado dentro dos limites da LRF, que o IGF1 “acende a luz vermelha”, principalmente em 2006, uma vez que a inclusão das despesas com a Previdência aumentou sua participação nas despesas correntes, como mostra a Tabela 2. Tabela 5 Indicadores de Gestão Financeira (IGFs) de Minas Gerais —2000-06 INDICADORES Despesa pessoal total/receita corrente liquida (IGF1) ............ Dívida líquida consolidada/receita corrente líquida (IGF2) ........ Receita de operação de crédito/despesa de capital (IGF3) ....... Despesa com pessoal/receita corrente líquida (IGF4) ............ 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 0,46 0,56 0,77 0,69 0,73 0,66 0,83 3,02 2,70 2,29 2,30 1,99 1,78 1,88 0,08 0,03 0,04 0,01 0,01 0,02 0,08 0,39 0,49 0,68 0,62 0,55 0,51 0,58 FONTE: Secretaria do Tesouro Nacional. O IGF2, apesar da considerável melhora no período, revela que o Estado de Minas Gerais ainda se encontra em uma situação crítica. Sendo 2 o limite estabelecido pelo Senado para esse indicador, percebe-se que o ajuste ainda é frágil. Os programas de ajuste fiscal implementados parecem apresentar resultados positivos. Contudo a evolução no período da rubrica restos a pagar mostra que a aparente melhora na relação dívida corrente líquida/receita corrente líquida se trata de uma estratégia contábil: a postergação de pagamentos para um equacionamento momentâneo do balanço patrimonial. Essa prática, contudo, não é tratada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.11 De 2002 a 2005, os restos a pagar aumentaram em quase 40% em termos nominais. 11 O item restos a pagar é abordado no Art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 438 Frederico G. Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Por último, o comportamento do IGF3 evidencia a limitação que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe aos estados com relação às operações de crédito. Esse indicador mostra a pequena importância dessa rubrica na relação com as despesas de capital. Além disso, essa relação ainda tem apresentado queda ao longo do período, chegando a representar somente 2% das despesas de capital em 2005. O resultado disso é que as despesas de capital, mesmo não apresentando um grande crescimento no período, passaram a absorver cada vez mais recursos advindos da receita corrente, o que prejudica as finanças estaduais, ao diminuir relativamente a receita corrente líquida do Estado. 4 Considerações finais A reorganização do cenário econômico e as mudanças econômicas e políticas ocorridas, nos últimos anos, no País impõem aos governos, em todos os níveis, a necessidade de reestruturações. Em alguns casos, são necessárias profundas transformações, para que o setor público tenha condições de atender às demandas sociais e de desenvolver políticas eficientes, que busquem promover o desenvolvimento e melhorar a distribuição da renda. Nesse sentido, a resolução dos problemas fiscais é um ponto crucial, uma vez que as limitações impostas pela falta de recursos restringem a capacidade de atuação dos governos na economia. O Estado de Minas Gerais, nesse aspecto, encontra-se em situação delicada. Em que pese uma relativa melhora nos últimos anos, como demonstrado pelos IEFs, os efeitos negativos causados pela renegociação da dívida estadual em 1998 e as limitações impostas pela LRF, como revelam os IGFs, evidenciam a difícil situação fiscal do Estado. Outro agravante desse quadro é o fato de serem bastante restritos os campos de atuação do Estado de Minas Gerais, tanto para a implementação de suas políticas quanto para a reestruturação de suas finanças, em função, principalmente, da estrutura atual do sistema federativo e das limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, como já referido, uma análise inadequada ou pouco acurada das contas estaduais pode gerar interpretações enganosas, camuflando situações de desequilíbrio. É exatamente no intuito de esclarecer o significado das contas do Estado de Minas Gerais que se fundamenta a importância deste artigo, que colabora para uma análise mais clara da atual situação fiscal do Estado. Contudo esses objetivos não podem ser deixados em segundo plano, já que é de fundamental importância a presença do setor público no incentivo e na Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 Restrição orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal:... 439 promoção do desenvolvimento, em âmbito tanto estadual como nacional. Em razão das transformações econômicas recentes, pode ser que o setor público se disponha não como interventor direto, como já ocorreu em outros períodos, mas, sim, como regulador, coordenador e incentivador das potencialidades locais, regionais e nacionais. De toda forma, atuações nesse sentido são imprescindíveis, requerendo soluções prévias não só para o desequilíbrio fiscal, como também para o déficit de investimentos. Esses são desafios ainda a serem superados. Referências AFONSO, J. R. Brasil, um caso à parte. [S. l.]: o site, 2004. Disponível em: <www.joserobertoafonso.ecn.br>. Acesso em: 03 set. 2004. AFONSO, J. R. 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Jayme Jr.; Júlio César dos Reis; João Prates Romero Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 409-442, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 443 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul: uma análise empírica* Gilberto de Oliveira Veloso** Anderson Mutter Teixeira*** Professor Adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da UFSM-RS Aluno do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR/PCE) Resumo Após a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os municípios brasileiros foram submetidos a uma disciplina fiscal, e os resultados decorrentes dessa nova configuração institucional são mostrados pelos balanços orçamentários entregues à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) a partir do ano 2000. Diagnósticos iniciais, em nível nacional, indicam resultados favoráveis ao cumprimento da nova lei pelos municípios. O objetivo geral deste trabalho é verificar se os municípios do Estado do Rio Grande do Sul corroboraram a hipótese de alinhamento à LRF, relativamente ao estipulado para o Poder Executivo, do índice de gastos com pessoal e receita corrente líquida. Utilizou-se, para esse fim, um modelo econométrico do tipo “logit”, instrumentalizando-o por microrregiões (Coredes) do Estado do Rio Grande do Sul, para os anos 2001 e 2002. Os resultados indicaram haver prudência nas políticas fiscais dos municípios. Palavras-chave Lei de Responsabilidade Fiscal; índice de despesa com pessoal; receita corrente líquida; logit. * Pesquisa fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Artigo recebido em fev. 2007 e aceito para publicação em jun. 2007. ** E-mail: [email protected] *** E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 444 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira Abstract After the implantation the of Fiscal Responsibility Law (LRF) the Brazilian municipal districts were submitted to a fiscal discipline and the results, after introducing the new institutional configuration, were shown by the budget accounting given for the Clerkship of the National Treasure (STN) starting from the year 2000. On initial analysis, on a national level, were indicated favorable results for the execution of the new Law for the municipal districts. The general objective of this work was to verify if the municipal districts of the Rio Grande do Sul state corroborated relatively to the alignment hypothesis of LRF stipulated for the Executive Power of the index of personnel expenses with liquid current revenue. It was used, for that goal, a econometric logit model for microregiões (COREDES) of the Rio Grande do Sul state for the years of 2001 and 2002. The results indicated some prudence in the fiscal policies of the gaúcho municipal districts. Key words Fiscal Responsibility Law; index of personnel expenses; liquid current revenue; logit. Classificação JEL: H77. 1 Introdução O aprofundamento da crise financeira internacional e seus reflexos na economia brasileira reabriram a discussão sobre a necessidade de ser garantido um ajuste com resultado primário compatível com as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, não entrando no mérito da relação entre o sistema financeiro internacional e o Brasil e com o advento e em decorrência do Plano Real, alguns fatores vieram à tona, como o fim do financiamento inflacionário, que permitia o adiamento de ajustes necessários às receitas e, principalmente, às despesas. Num primeiro momento, estados e municípios perderam cifras importantes de recursos decorrentes das transferências constitucionais, mediante o Fundo Social de Emergência, prorrogado, depois, como Fundo de Estabilização Fiscal (FEF). A tudo isso se somam os efeitos decorrentes dos desdobramentos da Lei Kandir, de 1996, que jogou todo o ônus da desoneração de exportações e de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 445 produtos básicos para os estados brasileiros, o difícil desempenho das receitas públicas, em conseqüência do quadro econômico dos últimos anos, e a prevalência de uma gama de direitos adquiridos, benefícios corporativos e exagerados incentivos fiscais. Cabe ainda destacar que os dados do Banco Central publicados no Boletim das Finanças Estaduais e Municipais para maio de 1999 confirmam a importante contribuição de alguns estados brasileiros no cômputo da dívida das Administrações Direta e Indireta: o Estado de São Paulo destaca-se dos demais, com 39% do total, seguido pelos Estados do Rio de Janeiro, com 13%; de Minas Gerais, com 10%; do Rio Grande do Sul, com 7%; e o restante totalizando a participação dos demais estados da Federação (31%). Na esteira do elevado grau de irresponsabilidade fiscal do Estado do Rio Grande do Sul, os municípios dessa unidade da Federação apresentavam uma situação fiscal, no mínimo, preocupante. Conforme os dados da Tabela 1 observa-se que, nos anos de 1999 e 2000, era elevado o número de municípios que apresentavam déficit, fruto de uma moldura institucional fraca e flexível no que tange ao grau de gastos com pessoal e a endividamentos. Tendo esgotado praticamente todos os instrumentos constitucionais para limitar o endividamento de estados e municípios, o Governo Federal preparou e aprovou uma nova lei para as contas públicas, que substituiu a Lei n° 4.320, em vigor desde 1964, a qual definia conceitos e mecanismos de equilíbrio fiscal com um caráter institucional, a fim de tornar o ajuste permanente e amplo, afetando a forma de elaboração dos orçamentos públicos em todas as esferas de governo. A Lei Complementar nº 101 (Brasil, 2000), aprovada em 4 de maio de 2000, define princípios básicos de responsabilidade, derivados da noção de prudência na gestão de recursos públicos, bem como define limites específicos referentes a variáveis como nível de endividamento, déficit, gastos e receitas anuais. Em particular, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Brasil, 2000) estabelece, para o Executivo, conforme art. 19, alínea b da Lei Complementar n° 101 (Brasil, 2000), no que tange aos municípios, o limite de 54% para o gasto com pessoal no cômputo da receita corrente líquida. Nesse sentido, objetiva-se verificar a relação existente entre configurações institucionais e resultados de política econômica; mais especificamente, a relação entre a instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000), a partir do índice de despesa com pessoal e receita corrente líquida (DP/RCL), e o comportamento fiscal dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul nos anos 2001 e 2002, medida pela probabilidade de os municípios incorrerem em déficit . Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 446 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira Assume-se que esse arranjo institucional é fundamental na explicação do comportamento fiscal equilibrado da maioria dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul, verificado a partir do ano 2000, conforme dados da Tabela 1. Assim, além desta breve Introdução, o presente trabalho está dividido em cinco seções: na seção seguinte, é realizada uma breve análise sobre alguns modelos da economia política do déficit público; na seção subseqüente, apresentam-se algumas evidências empíricas sobre esses modelos; a metodologia é apresentada na quarta seção; os resultados obtidos são assunto da quinta seção; e, finalmente, são apresentadas as principais conclusões. Tabela 1 Situação fiscal dos municípios do Rio Grande do Sul — 1999-02 1999 DISCRIMINAÇÃO 2000 2001 2002 Número % Número % Número % Número % Superávit .. 233 49,9 285 61,02 469 94,56 428 86,30 Déficit ....... 234 50,1 182 38,98 27 5,44 68 13,70 TOTAL ..... 467 100 467 100 496 100 496 100 FONTE: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. 2 Os determinantes institucionais e políticos do déficit público Os resultados subótimos da política fiscal podem estar associados a variáveis não econômicas, como regras e procedimentos que condicionam o resultado da política fiscal. Tais condicionamentos, que se adicionam às variáveis econômicas, são os de aspectos institucionais e políticos. Desse modo, emergem problemas, como de recursos comuns, representação política, arranjos institucionais e produto fiscal. 2.1 Recursos comuns O problema da ação coletiva é originado toda vez que as ações de um indivíduo afetam o bem-estar de um grupo. A racionalidade do indivíduo impede Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 447 que ele se dedique à produção de bens públicos, uma vez que os custos são maiores que os benefícios derivados da participação na produção de tais bens (Veloso, 2001). Assim, supondo que o orçamento seja equilibrado no sentido econômico, o gasto público deverá ser financiado por impostosτ . Desse modo, existirá recurso limitado para satisfazer as necessidades ilimitadas. Em conseqüência disso, o consumo na sociedade divide-se em bens privados CJ e bens públicos gJ. O modelo assume a hipótese de que os bens públicos são financiados por um fundo comum de receitas tributárias, com iguais contribuições de cada grupo, e de que a alíquota tributária é residualmente determinada. c J = y −τ = y − g J J (1) No entendimento de Nunes e Nunes (2003, p. 3), cada grupo procura maximizar sua utilidade WJ (g) com respeito a gJ, considerando os gastos de equilíbrio de outros grupos como dados. Assim, a utilidade no grupo J aumenta com o consumo de bens privados e públicos e pode ser escrita como: W (g ) = y − τ + H J I I N + H g J , J = y −J g g ∑ N N (2) onde há I grupos, N é o tamanho da população e é o tamanho do grupo J. O segundo termo da direita da equação (2) representa o somatório do gasto público dos grupos, ponderado pela sua participação na população, porém admite-se que a carga tributária seja distribuída uniformemente entre os indivíduos e os grupos mais numerosos; logo, pagarão mais impostos (Nunes; Nunes, 2003). Ainda, o equilíbrio é o vetor g D ( onde o subscrito D é para gasto descentralizado), e, então, pode-se verificar que o gasto de equilíbrio satisfaz a: J J ,D H g g − 1 = NN − 1 (3) Na equação (3), deve-se notar que o lado direito é negativo, todos os grupos gastam mais do que seria considerado o ótimo social definido — g J ,D f * g para todo J —, bem como grupos pequenos gastam mais do que Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 448 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira precisam em grande medida. Trata-se do problema do fundo comum: cada grupo procura consumir o máximo do bem público e paga apenas uma fração do custo marginal social N J , através de alíquotas tributárias. Esse comportamento N determina a ação de um free rider e é de importância ímpar no contexto da política fiscal. Velasco (1997; 1997a) postula que países, ao incorrerem em excessos de gastos relativamente às receitas públicas, podem servir de embasamento empírico ao problema destacado. 2.2 O problema dos recursos comuns e a representação política Numa democracia, a vontade popular é manifestada mediante o uso do voto e sinaliza a direção da ação coletiva futura. Entretanto essa vontade coletiva é, muitas vezes, subordinada à ação de um pequeno número de pessoas, que decidem e implementam, em última instância, tal vontade. A direção da ação individual ou de um grupo específico pode resultar de incentivos apropriados, de tal forma a tornar tais ações condizentes com a ação coletiva. Em decorrência de o capital da maioria das empresas estatais ser de difícil mensuração correta quanto aos seus valores e, em especial, à quota de cada indivíduo, os problemas de incentivos adequados aos políticos e a funcionários públicos de carreira e a falta de informação dos cidadãos sobressaem-se. A falta de controle dessas ações, que podem ser diversas relativamente ao interesse geral, alimenta e incentiva o surgimento de grupos de interesses, a corrupção e a discrição na conduta do resultado fiscal. Tais divergências entre políticas públicas e as preferências coletivas podem ser analisadas mediante o uso do enfoque principal-agente. Por exemplo, ao se cruzarem as preferências da maioria dos eleitores (o principal) e o resultado da implementação política decorrente da ação do eleito e representante dos eleitores (o agente), a existência de interesses contrários e/ou divergentes, como também de informações assimétricas entre partes envolvidas num jogo de interesses, pode determinar dificuldades nessa relação. A falta de informação é um problema que diz respeito não somente aos cidadãos como também aos políticos. Em decorrência dos elevados custos de obtenção da informação pertinente e dos escassos benefícios individuais, em alguns casos, é racional que os eleitores e os políticos não disponham da informação necessária e criem condições para o surgimento de grupos de interes- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 449 ses organizados, que controlam a ação dos políticos, garantindo, também, a informação necessária à aprovação de matéria de seus interesses. Desse modo, o enfoque principal-agente da relação Legislativo/Executivo tem explicado o sobredimensionamento do produto fiscal, dos déficits fiscais e dos gastos públicos excessivos, cuja composição é impactada por variáveis políticas e institucionais e não corresponde aos critérios de bem-estar geral, e, para melhorar a eficácia das políticas, seria necessário intervir em nível institucional (Alesina; Perotti, 1995). 2.3 Arranjos institucionais e produto fiscal O problema de recursos comuns e de representação política está vinculado aos problemas de ilusão fiscal e assimetria de informação, o que conduz à ação fiscal imprudente e a resultados fiscais não ótimos. As regras e os procedimentos associados a determinados resultados fiscais têm sido amplamente estudados. A idéia central aplicada a essa literatura é a de que, quanto maior for o poder do Executivo relativamente ao do Legislativo, maior será a disciplina fiscal, haja vista que o Executivo é capaz de internalizar mais os custos decorrentes da alocação dos recursos comuns relativamente ao Legislativo. Nesse sentido, Alesina, Hausmann e Stein (1996) analisaram alguns casos de países latino-americanos do ponto de vista de sua institucionalidade fiscal, segundo um índice medidor de sua maior ou menor propensão à ação fiscal imprudente, verificando que os piores índices eram o de El Salvador e o do Peru. Ainda no contexto dos países latino-americanos, Sanguinetti e Tommasi (1997) e Jones, Sanguinetti e Tommasi (1999) construíram um índice, visando verificar o grau de institucionalidade fiscal para os estados argentinos, segundo a metodologia empregada por Alesina e Perotti (1996), tendo verificado uma correlação negativa entre o índice e as regras, além de procedimentos fiscais não ótimos nos diferentes estados. Segundo alguns autores brasileiros, a idéia de um forte Poder Executivo como disciplinador da ação fiscal não corresponde. Diniz (1995) e Lima e Boschi (1995) reconhecem como fonte dessa imprudência fiscal a assimetria entre os Poderes Executivo e Legislativo, originada no modelo estatista da década de 30, não obstante a expansão das prerrogativas do Congresso Nacional após a Constituição Federal de 1988. Tal situação foi definida como democracia delegativa e expressa a relação principal-agente invertida, caracterizada pela baixa densidade de suas instituições, pela hipertrofia da autoridade do Presidente da República, além da fragilidade dos partidos políticos e do sistema representativo, incluindo o Poder Legislativo. Segundo Horn (1996, p. 13), essa relação assimétrica Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 450 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira onera o Congresso Nacional e a sociedade como um todo, já que esse processo favorece o clientelismo político, a corrupção e o desperdício na alocação de recursos públicos mediante política fisiológica e legislatura ex post, direcionando a escolha pública através de um processo não interativo e com visíveis prejuízos à democracia. Essa literatura mais vinculada à ciência política enfatiza o efeito que a política tem sobre as políticas públicas e, em particular, sobre os gastos, a arrecadação e o déficit orçamentário. O enfoque mais de domínio dos economistas é o dos ciclos econômicos de origem política, como o de Nordhaus (1975). De outro lado, grande ênfase é dada às composições de governos e, em particular, ao seu caráter dividido nos sistemas presidencialistas, vis-à-vis à falta de capacidade do governo de realizar ajustes fiscais (Kontopoulos; Perotti, 1999). Outras instituições de caráter político estão vinculadas aos resultados fiscais, como, por exemplo, a afiliação partidária do governo estadual relativamente ao federal. Os resultados de trabalhos empíricos indicam que essa relação favorece ações prudentes segundo orientação federal (Jones; Sanguinetti; Tommasi, 1999). 2.4 Regras de controle Nos Estados Unidos, a regra de orçamento equilibrado é geral, embora seu uso varie de estado para estado, o que torna os estados norte-americanos ricos para evidências empíricas, de acordo com Poterba (1994; 1996). No entendimento de Hagen (1991), os estados norte-americanos deparam-se com duas espécies de restrições fiscais sobre política: o requerimento do orçamento equilibrado e as limitações sobre o endividamento do estado; enquanto, em decorrência da união monetária na Comunidade Européia, a regra imposta aos países-membros, como condição de inclusão na mesma, é por metas fiscais. No que toca ao Brasil, cabe ao Senado Federal a função constitucional de autorizar operações financeiras, fixar limites globais para o montante das dívidas consolidada e mobiliária e dispor sobre condições e garantias sobre operações de crédito para a União, os estados e os municípios. Entretanto todas as medidas tomadas pelo Senado para barrar o processo de endividamento não foram suficientes para criar um ambiente saudável na esfera fiscal. Desse modo, emerge a Lei Complementar nº 101 (Brasil, 2000). Nessa mesma lei, mecanismos prévios de ajuste, destinados a assegurar a observância de parâmetros de sustentabilidade da política fiscal, determinam sanções tanto de responsabilidade quanto de caráter individual, quando tipificado ato de irresponsabilidade fiscal. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 451 A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga os governantes, em todas as esferas, a instituírem e a arrecadarem todos os tributos de competência própria e dificulta a renúncia de receita, bem como estabelece parâmetros e limites para as despesas, dentre as quais se destaca a despesa com pessoal. Outro elemento de grande relevância que a LRF estabelece é que ela impede heranças financeiras desastrosas de uma gestão para outra, permitindo ao governante que assume iniciar seu mandato realizando seu plano de governo, em vez de ficar pagando dívidas pesadas deixadas pelo seu antecessor. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000) é composta por 75 artigos, distribuídos em subseções, seções e capítulos. Desse modo, conforme o artigo 19 da Lei Complementar 101 (Brasil, 2000), no que tange aos municípios, são estabelecidos os seguintes dispositivos: a) 6% para o Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas do município, quando houver; b) 54% para o Executivo. Para efeito deste artigo, entende-se como órgão da esfera municipal a Câmara de Vereadores e o Tribunal de Contas dos municípios, quando houver. 3 Algumas evidências empíricas Velasco (1997a) desenvolveu um modelo político-econômico, que ultrapassava os limites dos modelos-padrão, de uma representação individual e de um policymaker benevolente e que buscava maximizar o bem-estar social do indivíduo. Foi considerada uma sociedade composta por três grupos, que se beneficiavam, de alguma forma, da despesa do governo, e, por um competitive fringe, que simplesmente pagava taxas e se beneficiava das despesas. Eram pressupostos um governo fraco e dois grupos de interesses que influenciavam as autoridades fiscais, ao proporem despesas na sua linha de interesse. Em geral, as despesas poderiam, simplesmente, representar pressões de grupos de interesses de dentro e de fora da burocracia estatal e poderiam ser financiadas por receitas de impostos ou pela dívida pública. É importante ressaltar que os grupos interagiriam estrategicamente, pois compartilhariam da mesma restrição orçamentária intertemporal. Ao longo do equilíbrio do jogo dinâmico, existiria um déficit permanente, o qual seria acumulado contrariamente à vontade do policymaker benevolente, que objetivaria maximizar o bem-estar dos grupos, sem incorrer em dívida. A razão para o viés decorria do fato de que os recursos líquidos do governo eram de propriedade comum dos grupos. Cada grupo pensava poder modificar parte do custo de financiamento na unidade adicional de despesa para o outro grupo. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 452 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira Essa estrutura era compatível com diferentes situações recentes de diversos países. As despesas poderiam ser propostas por autoridades fiscais, de maneira descentralizada, representando áreas geográficas particulares, como são os casos do Brasil e da Argentina. Igualmente, poderiam ser representadas transferências em decorrência de situações em que empresas estatais se deparavam com restrições orçamentárias não rigorosas, como no caso do Brasil. No caso descentralizado, o equilíbrio era ineficiente, o que conduzia a atrasos na estabilização. Na ausência de unidade governamental de um governo único majoritário, a sua fragmentação passava a ser uma variável institucional importante na explicação que distinguia países de baixos déficits orçamentários dos de altos. A coalizão governamental atrasou os ajustamentos fiscais que se tornaram necessários após a explosão de déficits ocorridos em meados da década de 70, depois do primeiro choque do petróleo em alguns países da América Latina. Alesina e Perotti (1995) buscaram identificar que tipos de governos eram propensos a políticas fiscais mais ou menos flexíveis e a alcançar metas de ajustes fiscais. Para isso, foi construída uma medida de superávit primário ajustada ciclicamente, denominada BFI (cyclically adjusted primary surplus) e vinculada às seguintes definições: (a) uma política fiscal muito flexível estava associada a uma política ocorrida quando o BFI decrescia mais de 1,5% do GDP (PIB real); (b) uma política fiscal rígida ocorria, quando o BFI aumentava mais que 1,5% do GDP; (c) um ajustamento bem-sucedido estava associado a uma política fiscal implementada no ano t, tal que a taxa déficit/GDP no ano t+3 fosse, no mínimo, 5% menor do que a do ano t. De uma amostra de 20 países, abrangendo o período 1960-92, os resultados obtidos obedeceram a uma classificação, conforme a estrutura do Governo (partido único, de coalizão ou de minoria) e a orientação ideológica (esquerda, centro ou direita). Em relação à estrutura do Governo, observou-se pouca diferença na propensão dos três tipos de se engajarem em ajustamentos fiscais; entretanto ajustamentos fiscais iniciados por governos de coalizão caracterizaram-se por fracassos. A explicação para esse resultado é que as discordâncias internas à coalizão, juntamente com a pressão exercida pelos vários grupos representativos dos diferentes partidos, forçam o relaxamento da condução da política fiscal. Por outro lado, um governo de minoria obtém uma elevada taxa de sucesso na condução da política fiscal, sendo que, em alguns casos, a meta especificada é reduzir o déficit público. E, em relação ao aspecto ideológico, os dados evidenciam pouca diferença entre governos de esquerda e de direita, e o fato mais notável observado é que os governos de centro parecem ser incapazes de ajustar o orçamento de forma eficiente. A razão decorre da polaridade da coalizão, já que governos de centro normalmente são constituídos por coalizões. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 453 Poterba (1996) buscou evidências sobre as relações entre regras de orçamento equilibrado, instituições orçamentárias e política fiscal nos estados norte-americanos. A maioria deles proíbe déficits orçamentários, mas o limite destes varia amplamente de estado para estado. Conforme dados da National Association of State Budget Officers (NASBO) e da General Accouting Office (GAO) utilizados pelo autor, o Estado de Vermont é o único que não tem a exigência de orçamento equilibrado, e, conforme a NASBO, os 49 estados com tais exigências podem ser categorizados em três grupos: (a) em 44 estados, o Governo deve submeter-se à regra do orçamento equilibrado; (b) em 37, o Legislativo deve aprovar o orçamento equilibrado e, nesse caso, ainda que mais rigoroso que o anterior, permite que as receitas e as despesas reais difiram, se as expectativas e as realizações não coincidirem, sendo possível, em alguns estados, transferir o déficit atual para o futuro, financiando-o mediante tomada de empréstimos; (c) a mais rigorosa regra de orçamento equilibrado combina a exigência de aporte legal da parte do Legislativo com a proibição da transferência de endividamento para o futuro. Neste último caso, enquadram-se 24 dos 37 estados do caso anterior, onde se inclui a maioria dos pequenos estados, ao passo que sete dos 10 maiores permitem o endividamento e sua transferência para os anos subseqüentes. Conforme a NASBO, entre 25% e 50% das despesas de três estados foram afetadas por essas regras; entre 50% e 45% das despesas de outros nove estados foram ajustadas pelas mesmas regras; enquanto, para os estados restantes, as regras afetaram, no mínimo, 75% de suas despesas, sendo possível, no entanto, a existência de déficit no decorrer do ciclo orçamentário (um ou dois anos, conforme o estado); nesses casos, a possibilidade de contorná-lo seria por aumento dos impostos, redução das despesas, alteração da execução orçamentária mediante a revisão contábil de entradas e saídas de caixa ou obtenção de empréstimos. Outros 32 estados depararam-se com déficits previstos após a promulgação da lei e tomaram medidas para contorná-los. As medidas de decréscimo de despesas durante o ano fiscal responderam por 60% da redução do déficit; o aumento de impostos, por 4%; e outras ações representaram 36% da queda do déficit. Alesina, Roubini e Cohen (1997) consideraram evidências de 30 anos dos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) relativas à coalizão governamental. Os pesquisadores verificaram que governos de coalizão têm tido tendências a seguir políticas fiscais mais flexíveis que governos de partido único. Foi obtida uma regressão com base em dados cross section, abrangendo o período 1961-93 e 13 países. A variável dependente media o déficit anual como uma mudança da taxa dívida/GDP (dbit-1). As variáveis explicativas foram: a mudança na taxa de desemprego (dUit); a mudança na taxa de crescimento do GDP (dyit); a mudança na taxa de juros menos a taxa Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 454 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira de crescimento do GDP vezes a taxa déficit/GDP defasado em um período; uma variável dummy para capturar o aspecto eleitoral (ELEit); mais um termo de erro (vit). Desse modo, os autores questionaram se haveria alguma modificação, ao se supor um controle maior da estrutura governamental. Assim, foi definida a variável que capturava o grau de fragmentação do governo (POL): POL = 0 significava governo de partido único, ou, num sistema presidencialista, com o mesmo partido presidindo o Executivo e o Legislativo; POL = 1 significava um governo parlamentarista de coalizão com dois partidos, ou, num sistema presidencialista, um partido dirigindo o Executivo, o outro, o Legislativo; POL = 2 significava uma coalizão governamental com dois ou mais partidos-membros; POL = 3 significava um governo de minoria parlamentar. Diante dessas definições, o objetivo era capturar o grau de fragmentação na estrutura governamental. Os resultados dessa regressão indicaram que os déficits ocorreram após o choque do petróleo e que a fragmentação do Governo não criou déficits, mas atrasou o ajustamento fiscal requerido em decorrência do choque do petróleo. Sanguinetti e Tommasi (1997) analisaram os determinantes econômicos e institucionais dos déficits nas províncias argentinas. O objetivo do trabalho era estudar os determinantes da política fiscal, durante o período de 1983-95, na Argentina, num contexto analítico mais amplo quanto às finanças públicas provinciais, por considerarem, adicionalmente aos fatores econômicos, aspectos institucionais e políticos. A grande variedade no que se refere a essas características institucionais poderia criar dificuldades na coordenação de esforços entre diferentes níveis de governo, para obterem ajustes fiscal e macroeconômico, esforço este não perseguido em nível provincial. O modo como esses condicionantes extra-econômicos afetaram os incentivos e a conduta dos responsáveis pela política fiscal provincial foi apreendido pelo enfoque dos recursos comuns ou de ação coletiva (Common Pool), problema este que pode aumentar ou diminuir conforme os arranjos institucionais. A análise empírica baseou-se na estimação de um modelo de equações simultâneas para receita e despesa provinciais, mediante informações que constituíram um painel com 23 províncias argentinas, no período 1985-95. A hipótese central do modelo era a de que havia uma co-existência entre as decisões de gasto e de arrecadação local e o problema de recursos comuns criado pelo regime de co-participação federal de impostos, de regras e procedimentos provinciais, e de diversas configurações políticas e sua interação com as variáveis institucionais. Do ponto de vista de variáveis institucionais, com base na conduta fiscal agregada e desagregada das províncias quanto a déficits primários, esforços tributários e níveis de endividamento, foi proposto um índice de desempenho fiscal, para classificar as províncias de acordo com sua melhor ou pior Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 455 performance fiscal. Esse índice foi associado à existência, ou não, de regras fiscais, sendo, então, definido o índice de institucionalidade fiscal (IIF). A essa variável institucional foi somado um conjunto de variáveis políticas consideradas relevantes quanto ao produto fiscal provincial, como a presença de governo dividido (maioria legislativa e distinta do Governo provincial), a existência de um Congresso uni ou bicameral, a existência de legislação eleitoral e a identificação do partido do Governo vis-à-vis ao do Presidente. Os resultados evidenciaram que as decisões de arrecadação e de gasto não foram influenciadas pela necessidade de ajustes em face de déficits ou endividamento do passado, ao mesmo tempo em que as despesas magnificaram o comportamento das receitas provinciais. A variável política que captava a maior ou menor busca por recursos comuns foi especificada, qualitativamente, como afiliação partidária do Governador (igual a 1, se coincidisse com a do Presidente; zero para outros casos). Quando essa variável foi introduzida na equação do gasto, o coeficiente estimado foi negativo e significativo, o que implicou que, no período considerado, governos estaduais de mesma afiliação partidária do Presidente gastaram menos. Outra variável política considerada foi o Governo dividido. Os resultados obtidos mostraram que essa variável impactou negativa e significativamente nas decisões de gastos de receitas provinciais. E, por fim, foi analisado o ciclo eleitoral, tanto o presidencial como o de governador, que teve impacto nas decisões de arrecadação e de gasto. As regressões mostraram que, nos anos de eleição de governador, o gasto provincial per capita se elevou, o mesmo acontecendo em relação ao ciclo presidencial, porém em menor magnitude. Kontopoulos e Perotti (1999) analisaram, com base em dados de painel de 20 países da OECD, o papel da fragmentação governamental e o resultado fiscal decorrente. A hipótese foi a de que os vários grupos ou agentes que participavam da tomada de decisão levavam em consideração os seus interesses e os de seus eleitores, e, com base na decisão de maioria, cada grupo demandava uma porção do orçamento, o que determinava o aumento da despesa e do déficit. Para determinado número de agentes ou grupos envolvidos na tomada de decisão, foram levados em consideração o Legislativo e o Executivo; as instituições mais representativas nessas instâncias de decisões foram os partidos políticos e o número de ministros respectivamente. O resultado do modelo econométrico mostrou que o número de ministros era significativo e determinante do déficit e, adicionalmente, que seu efeito ocorria mediante a despesa. Jones, Sanguinetti e Tommasi (1999) buscaram evidências dos efeitos de variáveis políticas e institucionais sobre as despesas do setor público, em 23 províncias argentinas, entre 1985 e 1995. Foi enfatizada a despesa e não as receitas, por duas razões: a primeira, em virtude da existência de um efeito de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 456 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira tamanho-padrão, que, sob o suposto equilíbrio orçamentário, conduz à previsão que enfatiza que, quanto maior for a despesa, maior será a receita, centralizando qualquer outra consideração; a segunda, porque existem externalidades, através das províncias, que conduzem os seus governos a superestimarem as despesas e a subestimarem as receitas, o que é conhecido como tax expenditures. Na visão comum, os indivíduos e as instituições eleitas para representações regionais têm uma maior tendência a agir como free riders sobre o bem coletivo de prudência fiscal que indivíduos e instituições indicadas. Três hipóteses foram levantadas: primeira, nas províncias onde o Governador pertencia ao mesmo partido do Presidente, haveria menor despesa pública per capita; segunda, nas províncias governadas pelos peronistas e por governo radicais, os níveis de despesas públicas per capita não difeririam; por fim, províncias onde existisse governo dividido teriam maiores despesas públicas per capita que aquelas onde o governo fosse unificado. A análise empírica considerou uma base de dados referentes a 23 estados e a 11 anos. A variável dependente considerada foi a despesa do setor público per capita na província, enquanto as variáveis de controle consideradas foram as transferências nacionais, o consumo de energia (proxy do PIB da província), o desemprego, o déficit primário defasado e as transferências nacionais. Para testar as três hipóteses, foram levados em conta os efeitos de quatro variáveis político-institucionais sobre a despesa per capita: (a) partido do Presidente; (b) afiliação partidária do Governador, recebendo código 1, quando a província era governada por um dos partidos nacionais de centro-esquerda, e zero, em caso contrário; (c) Governo dividido, a variável política considerada, definido como a situação na qual o partido do Governo não tinha maioria no sistema unicameral, ou ambos os casos no sistema bicameral; (d) Governo único considerados todos os demais casos. Os anos em que o Governo era dividido receberam código 1, ao passo que governos únicos receberam código 0. Do total das 214 províncias-ano, governos divididos totalizaram 42 (18%), e governo unificados representaram as demais 172 províncias (82%). A regressão confirmou a primeira hipótese, de que as províncias governadas por partidos de afiliação do Presidente gastam 65 pesos per capita menos do que se o Governador fosse de partido de oposição; a segunda hipótese é suportada, em certa medida, pelos dados. Um resultado positivo fraco para a variável de afiliação partidária do Governador indica que, mantidos outros fatores constantes, não existe diferença significativa na despesa per capita entre províncias que foram governadas por um membro da União Cívica Radical (UCR) e províncias que foram por um membro do Partido Peronista. Um resultado significativo, mas que não faz parte da segunda hipótese, é que, entre províncias que foram governadas por partidos de centro-direita e aquelas que foram gover- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... 457 nadas pelo Partido Peronista ou da UCR, mantidos outros fatores constantes, as províncias administradas por partidos de centro-direita gastam significativamente menos (130 pesos per capita) que as administradas pelo Partido Peronista. A terceira hipótese não foi verificada para a despesa per capita, e também o coeficiente estimado negativo indica que a presença do Governo dividido reduz a despesa, ainda que não estatisticamente significativa. Uma possível explicação para a presença ou a ausência fraca do efeito do Governo dividido nas províncias da Argentina seria decorrente da relação entre governos das províncias e da Nação sob um ambiente de desequilíbrio fiscal. Sobre as instituições orçamentárias, foi frisado que não houve, no período considerado, variações relevantes entre províncias, mas que seria construído um índice na linha do proposto por Hagen (1991) e Alesina, Hausmann e Stein (1996). Foram considerados seis itens na construção do índice de institucionalização fiscal para as 23 províncias, a saber: (a) a força do Executivo vis-à-vis ao Legislativo na elaboração do orçamento; (b) a extensão das limitações de endividamento sobre as províncias; (c) a habilidade das municipalidades dentro das províncias para tomar emprestado dinheiro; (d) a autonomia/poder das agências de auditoria das províncias; (e) os incentivos para prudência fiscal na relação província/município quanto à concordância da distribuição da receita; e (f) a presença de subsídios promocionais na Constituição. Os resultados obtidos via regressão do índice de institucionalidade fiscal mostraram que altos índices de institucionalização fiscal levaram a pequenos déficits. 4 Metodologia Em referência ao objetivo de verificar a probabilidade de sucesso da LRF relativamente ao que a mesma institui em seu artigo 19, alínea b, foi utilizado um modelo econométrico de tipo logit, onde a variável dependente era a probabilidade de os municípios assumirem déficit, e a variável independente, o índice decorrente da divisão da despesa com pessoal e receita corrente líquida ( DP RCL ). 4.1 Definição geral do modelo logit Seja y =β x , i , i e Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 458 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira f (y i = 1/ , x i,β ) ( ) =Ω xβ , a probabilidade condicional a x , e i de o evento ocorrer, e f ( y = 0/ x ) = 1 − Ω ( x β ) , , ,β i i de o evento não ocorrer, onde conjunta e Ω = 1 , xe a probabilidade condicional a i β é a função de distribuição de probabilidade (1 + exp ( y )) e i 1, 2,..., n, , β = ( β , β ,..., β ) 1 2 k i x é um vetor de parâmetros desconhecidos kx1 , e i é um vetor de variáveis explicativas . A função de distribuição de probabilidades Ω pode ser escrita da forma Ω ( x β ) x (1 − Ω ( x β )) , , _ O efeito marginal decorrente da variação de uma unidade x é: i para i = 1, 2,..., n e j = 1, 2,..., k onde Ω i =Ω (β x ) , i ∧ Isso significa que o estimador de máxima verossimilhança ( β ) vai ser o conjunto de equações i = 1, 2,..., n derivadas em primeira ordem, denominadas escore eficiente (efficient score). Os resultados obtidos relativos aos coeficientes do multiplicador de lagrange (LM), média, variância, erros-padrão, estatísticas t, curtosis, etc., serão, assim, computados mediante a utilização do , ∧ , _ ∧ _ algoritmo Ω 1 − Ω( ) , o qual é requerido para mensurar o β x i β x i _ efeito marginal computacionalmente para diferentes coeficientes Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 ( x). 459 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... A escolha do modelo logit, ou outro modelo de natureza probabilística (probit, tobit) é feita a partir ou pela aplicação de um critério de seleção como o de informação de Akaike (AIC), o bayesiano de Schwarz (SBC) ou o teste de modelos não-alinhados. Se forem utilizados somente os modelos logit e probit, usa-se, como critério de escolha o maior valor da função de máxima verossimilhança. Na utilização do modelo logit, além dos critérios de seleção já mencionados, destaca-se que a sua escolha está condicionada à natureza incerta sobre o enforcement da Lei de Responsabilidade Fiscal. Deve-se ressaltar que o cálculo numérico relativo ao escore eficiente é conduzido com base no seguinte algoritmo: −1 β j =β j −1 − ∂ l (β ) E , β ∂ ∂ β β 2 , j = 1, 2,..., k = β ∂l ( β ) j −1 ∂β A representação matricial interna ao colchete assegura que o vetor ∧ β estimado tenha parâmetros que sejam consistentes, assintoticamente, normalmente distribuídos e negativos, já que se trata de uma segunda derivação, e a função está sendo maximizada; trata-se da matriz de variância-covariâncias. , As probabilidades estimadas e os valores discretos ajustados obedecem ao seguinte algoritmo: ∧ = 1 , se l β yi ∧ ∧ y i =0 , se x i ≥ 0.5 ou ∧, l x i < 0.5 β 4.2 O modelo logit proposto Na seção 4.1, partiu-se da definição genérico, de um modelo logit da forma y = β x , onde: , i i Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 , 460 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira ( y = 1/ x , β ) = Ω ( x β ) f ( y = 0 / x , β ) = 1− Ω ( x β ) , f i , i , i , i Sem perda de generalidade e transpondo-o para o caso em estudo, levan- y =β x , do-se em conta que i , i = α + β xi , α e β = ( β , β ,..., β ) 1 2 k são vetores kx1 de parâmetros em estimados para os i-ésimos municípios, e x i ( DP RCL ) , um vetor kx1 correspondente ao índice , , pode-se rei presentá-lo da seguinte forma: Def = 1 Pi = ( DP = α + β ( DP ) RCL i Def = ( DP RCL) RCL ), onde : i i probabilidade de ocorrência de déficit primário do i-ésimo município em relação ao índice DP/RCL de não-cumprimento da LRF. Se P i = E Def = 1 = DP / RCLi 1+ e − α + β 1 ( DP RCL é a função de distribuição logística relevante. Se considerar Def i = α + β ( DP Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 RCL ) , então i ) i , então, A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... Lim P = lim Def i→∞ i 1 Def i→∞ 1 + e −∞ =1 , e Lim P Def i→−∞ i = 461 1 ∞ =0 Def i→−∞ 1 + e lim Assim, 0 ≤ é a probabilidade de se verificarem déficits ≤1 , e i i primários em municípios que não obedecem o limite da LRF, ao passo que P P 1 − P i é a probabilidade de que os municípios que não obedecem à LRF não tenham déficits. 4.3 Definições de variáveis Déficit primário ( Def) é a diferença verificada entre a despesa total e a receita total, excluídos o passivo e a correção monetária. Índice de Despesa com Pessoal e Receita Corrente Líquida ( DP R CL) é o indicador da LRF relativo à exigência para o Poder Executivo de, no máximo, 54% do comprometimento da receita corrente líquida com gasto em pessoal. 4.4 Definições dos Coredes São Alto Jacuí, Campanha, Central, Centro-Sul, Fronteira Noroeste, Fronteira Oeste, Hortênsias, Litoral, Médio Alto Uruguai, Metropolitano Delta do Jacuí, Missões, Nordeste, Noroeste Colonial, Norte, Paranhana-Encosta da Serra, Produção, Serra, Sul, Vale do Caí, Vale do Rio dos Sinos, Vale do Rio Pardo e Vale do Taquarí. Justifica-se essa opção pelas características socioeconômicas regionais apresentadas pelos municípios integrantes dos respectivos Coredes-RS, porque facilitará, por um lado, a análise e a compreensão do grupo e permitirá, por outro, concentrar esforços de políticas, por parte do poder público, diferenciadas, devido à diversidade de grupos, e homogêneas, no âmbito do mesmo. 4.5 Fontes de dados e procedimentos utilizados Os dados utilizados para os anos de 2001 e 2002 foram obtidos junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, inclusive o índice da relação da despesa com pessoal relativamente à receita corrente líquida: <http://www.tce.rs.gov.br>. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 462 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira Tomou-se como base a data de 1° de janeiro de 2004, mediante atualização de valores pelo Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Fundação Getúlio Vargas. Esses dados estão disponíveis em: <http://www.fee.tche.br/sitefee./pt/content/pg_atualizacao_valores.php>. 5 Análise dos resultados Nesta subseção, far-se-á a análise dos resultados, tomando-se por base o agrupamento de municípios do Estado do Rio Grande do Sul para os anos de 2001 e 2002. Os resultados do processamento computacional para o ano de 2001 estão reunidos na Tabela 2. De um modo geral, verificam-se resultados favoráveis ao dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000). Tabela 2 Resultados da regressão, por Coredes, para os municípios do Estado do Rio Grande do Sul — 2001 COREDES Alto Jacuí ..................... Campanha ................... Central ......................... Centro-Sul ................... Fronteira Noroeste ....... Fronteira Oeste ............ Litoral ........................... Hortênsias .................... Médio Alto Uruguai ...... Metropolitano Delta do Jacuí ............................ Nordeste ...................... Noroeste Colonial ....... Norte ............................ Paranhana Encosta da Serra ............................ Produção .................... Serra ............................ Sul ................................ Vale do Caí .................. FATOR DE CÁLCULO DO EFEITO MARGINAL COEFICIENTE (β ) PROBABILIDADES [(Antilog-1) x 100] -7,1184 -3,5975 -4,1060 -6,1302 -5,1629 -4,9603 -4,9810 -3,7814 -6,4653 99,99 97,26 98,35 99,78 99,42 99,29 99,31 97,72 99,84 0,49186 0,12820 0,12620 0,53821 0,91109 0,82379 0,822951 0,13003 0,68584 -3,1312 -4,6536 -6,0729 -8,6596 95,63 99,04 99,76 99,98 015084 0,13617 0,72893 0,2979 -3,3642 -8,4237 -7,8658 -6,2936 -5,9478 96,54 99,97 99,96 99,81 99,73 0,15686 0,50545 0,53410 0,47976 0,10724 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 463 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... Tabela 2 Resultados da regressão, por Coredes, para os municípios do Estado do Rio Grande do Sul — 2001 COREDES Alto Jacuí .................... Campanha .................. Central ........................ Centro-Sul ................... Fronteira Noroeste ...... Fronteira Oeste ........... Litoral .......................... Hortênsias ................... Médio Alto Uruguai ..... Metropolitano Delta do Jacuí ........................... Nordeste ..................... Noroeste Colonial ........ Norte ........................... Paranhana Encosta da Serra ........................... Produção ................... Serra ........................... Sul ............................... Vale do Caí ................. EFEITO MARGINAL [(Antilog-1) x 100] (1) ESTATÍSTICA t -3,50 [96,98] -0,46 [36,87] -0,52 [40,54] -3,29 [96,27] -4,70 [99,09] -4,08 [98,30] -4,13 [98,39] -0,49 [38,73] -4,43 [98,80] -2,9382 -1,6170 -3,6388 -2,5514 -2,8340 -2,2370 -3,0476 -1,7271 -3,5457 -0,47 [37,49] -0,63 [46,74] -0,78 [54,15] -2,58 [92,42] -1,6998 -2,8365 -3,6739 -3,3042 -0,52 [40,54] -4,25 [98,57] -4,20 [98,50] -3,02 [95,11] -0,63 [46,74] -1,8491 -3,8985 -3,7013 -3,0173 -2,7618 FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. (1) Os números entre colchetes referem-se à ponderação do coeficiente estimado pelo fator de cálculo do município. Aos níveis de significâncias de 5% e 10%, os coeficientes estimados e os ajustes das regressões, por Corede, conforme resultados da Tabela 2, mostraram-se significativos. Assim, pode-se verificar que as probabilidades de ajustes ao marco da Lei são elevados por municípios, sem exceção, variando no intervalo de 95,63% a 99,99%. Verifica-se, também, que, quando se pondera o coeficiente estimado pelo fator de cálculo específico do município, obtendo-se o efeito marginal, alguns municípios ajustam a taxas diferenciadas ao ano. Os Coredes Campanha, Metropolitano Delta do Jacuí e Hortênsias destacam-se pela baixa capacidade de ajuste ao ano; 36,87%, 37,49% e 38,73% respectivamente. De outro lado, o Corede Fronteira Noroeste lidera um grupo que apresen- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 464 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira ta indicadores de uma adaptação imediata à Lei, acima de 90%, tal como os Coredes Alto Jacuí, Centro-Sul, Fronteira Noroeste, Fronteira Oeste, Litoral, Médio Alto Uruguai, Norte, Produção, Serra e Sul. Os Coredes Central, Nordeste, Noroeste Colonial, Paranhana-Encosta da Serra e Vale do Caí apresentam um ajustamento à LRF mediano, conforme se pode verificar na Tabela 2. Essa menor velocidade de ajuste resulta do fato de que, na média dos municípios, o comportamento da despesa com pessoal relativamente à receita corrente líquida está próxima do limite instituído pela LRF. De outro lado, os resultados do processamento computacional para o ano de 2002 estão reunidos na Tabela 3. De um modo geral, verificam-se resultados favoráveis ao dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000). Tabela 3 Resultados da regressão, por Corede, para os municípios do Estado do Rio Grande do Sul — 2002 COREDES Alto Jacuí ..................... Campanha ................... Central ......................... Centro-Sul ................... Fronteira Noroeste ....... Fronteira Oeste ............ Litoral ........................... Hortênsias .................... Médio Alto Uruguai ....... Metropolitano Delta do Jacuí ............................... Missões ....................... Noroeste Colonial ........ Norte ............................ Nordeste ...................... Paranhana-Encosta da Serra ............................ Produção ..................... Serra ............................ Sul ................................ Vale do Caí .................. Vale do Rio dos Sinos Vale do Rio Pardo ........ Vale do Taquari ............ PROBABILIDADES [(Antilog-1) x 100] FATOR DE CÁLCULO DO EFEITO MARGINAL -3,2595 -3,8438 -3,7686 -2,2520 -5,2986 -2,2976 -1,1830 -2,4250 -9,1480 96,15 97,85 97,69 89,48 99,50 89,95 69,36 91,15 99,98 0,16196 0,11365 0,13515 0,19488 0,083149 0,19139 0,23264 0,18415 0,027080 -0,28806 -6,5207 -4,5956 -8,0325 -5,8188 25,02 99,85 98,99 99,96 99,70 0,24882 0,052710 0,11402 0,057424 0,11045 -5,1538 -6,3934 -4,5788 -3,5479 -6,0517 -5,6049 -3,3145 -6,7439 99,42 99,83 98,97 97,12 99,76 99,63 96,36 99,88 0,092029 0,092687 0,13454 0,13808 0,0888380 0,062048 0,15209 0,081086 (continua) COEFICIENTE (β ) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 465 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... Tabela 3 Resultados da regressão, por Corede, para os municípios do Estado do Rio Grande do Sul — 2002 COREDES Alto Jacuí ...................... Campanha .................... Central .......................... Centro-Sul .................... Fronteira Noroeste ....... Fronteira Oeste ............ Litoral ............................ Hortênsias ..................... Médio Alto Uruguai ....... Metropolitano Delta do Jacuí ................................ Missões ........................ Noroeste Colonial ......... Norte ............................. Nordeste ....................... Paranhana-Encosta da Serra ............................. Produção ...................... Serra ............................. Sul ................................. Vale do Caí .................... Vale do Rio dos Sinos Vale do Rio Pardo ......... Vale do Taquari ............. EFEITO MARGINAL [(Antilog-1) x 100] (1) ESTATÍSTICA t -0,52 [40,54] -0,43 [34,94] -0,50 [39,34] -0,43 [34,94] -0,44 [35,59] -0,43 [34,94] -0,27 [23,66] -0,44 [35,59] -0,24 [21,33] -2,5021 -1,6845 -3,6605 -1,8002 -2,8451 -1,6005 0 -2,2788 -3,1867 -0,007 [0,69] -0,34 [28,82] -0,52 [40,54] -0,46 [36,87] -0,64 [47,27] 0 -3,3177 -3,5697 -3,4708 -2,9763 -0,47 [37,49] -0,59 [44,56] -0,61 [45,66] -0,48 [61,60] -0,53 [41,13] -0,34 [28,82] -0,50 [39,34] -0,54 [41,72] -2,1380 -3,9416 -3,4315 -2,8560 -2,8378 -2,4513 -2,8395 -4,0299 FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. (1) Os números entre colchetes referem-se à ponderação do coeficiente estimado pelo fator de cálculo do município. Com base nos resultados arrolados na Tabela 3, observa-se um comportamento homogêneo dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 2002. Essa homogeneidade fica transparente a partir da leitura dos valores dos efeitos marginais, calculados e tomados percentualmente, e que evidenciam um ajuste residual ao dispositivo legal, uma vez que esses resultados são decorrentes, provavelmente, dos ajustes executados no ano anterior (2001) e que sucederam a aplicação da Lei. A explicação para esse fato decorre, portanto, de os municípios já terem enviado dois balanços orçamentários ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 466 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira Grande do Sul e à Secretaria do Tesouro Nacional no ano de 2002, tendo tempo para se ajustarem ao dispositivo legal, mesmo que em velocidades diferentes, mas convergentes, como se pode verificar. Observa-se, também, do ponto de vista estatístico, a partir dos resultados da Tabela 3, que, embora as regressões tenham tido significâncias em níveis de 5% e 10%, seus coeficientes individuais, por Corede, apresentaram insignificâncias estatísticas a esses mesmos níveis, casos dos Coredes Litoral e Metropolitano Delta do Jacuí. Contudo esses resultados não invalidam a identificação de uma tendência geral de convergência aos limites impostos pela Lei por parte dos municípios gaúchos, em 2002. Com base nos resultados constantes nas Tabelas 2 e 3, pode-se inferir que, à medida que os municípios se conformam aos limites impostos pela LRF, suas velocidades ou taxas de ajustes tendem a um limite ao qual todos os municípios, num intervalo de variação pequeno, convergirão. Tal fato fica evidente, quando se verifica que, de um ano para outro, municípios com performances de ajustes diversos se aproximam após se submeterem à Lei. Tais diferenças decorrem, por um lado, do fato de apresentarem resultados fiscais apropriados ao instituto legal, ou, contrariamente, por apresentarem resultados distantes do convencionado pela Lei. Na primeira situação, a velocidade de ajuste é aquela próxima da velocidade ótima, que coloca o município na vizinhança da Lei; e, na segunda situação, a velocidade é alta, pela necessidade de resultados que aproximem o município do limite legal. De outro lado, uma velocidade baixa de convergência aos limites impostos pela Lei pode indicar, também e num primeiro momento, a dificuldade que o município enfrenta relativamente às necessidades de ajustes. Pode-se inferir, ainda, com base na Tabela 3, que os valores convergentes a um valor mediano (31,14%) das taxas de ajustes indicam que os municípios dos diferentes Coredes se comportam conforme reza a Lei, uma vez que os valores percentuais representam o que ainda resta para o ajuste final. Em relação aos anos subseqüentes, é importante destacar-se o comprometimento dos municípios do Rio Grande do Sul com o dispositivo legal. Entre os anos de 2003 e 2005, dos 496 municípios, apenas 27 ultrapassaram o limite de 54% de comprometimento da receita corrente líquida com gastos com pessoal, sinalizando, desse modo, uma adequação por parte dos gestores públicos à Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000) no que tange a gasto com pessoal. Destaca-se, com base no Quadro 1, no Corede Fronteira Oeste, o Município de Itaqui, o qual desrespeitou o dispositivo legal nos anos de 2003 a 2005. O Corede Sul apresentou, nesse período, nove municípios acima do limite legal, o que indica que grande parte dos recursos desses municípios é destinada a Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 467 A Lei de Responsabilidade Fiscal e as microrregiões do Estado do Rio Grande do Sul:... pagamento de salários, inviabilizando, assim, os gastos em investimentos, tais como saúde, educação e infra-estrutura. Quanto aos outros Coredes que desrespeitaram o dispositivo legal foram constatados apenas casos isolados. Quadro 1 Situação dos municípios, por Coredes, que ultrapassaram o dispositivo legal no Rio Grande do Sul — 2003-05 2003 COREDES Alto Jacuí ........... Campanha ......... Central …………. Centro-Sul .......... Fronteira Noroeste ........................ Fronteira Oeste .. Litoral ................. Hortênsias .......... Médio Alto Uruguai .................... Metropolitano Delta do Jacuí .......... Missões .............. Noroeste Colonial …….............. Norte ………....... Nordeste …......... Paranhana-Encosta da Serra ......... Produção ........... Serra .................. Sul ...................... Vale do Caí ......... Vale do Rio Sinos ..................... Vale do Rio Pardo ....................... Vale do Taquari Acima de 54% da RCL/DP 2004 Abaixo de 54% da RCL/DP Ok Ok Ok Ok Acima de 54% da RCL/DP 1 Ok 2 3 1 Ok Ok Ok Acima de 54% da RCL/DP Ok Ok Abaixo de 54% da RCL/DP Ok Ok Ok Ok Ok 1 3 Ok Ok Ok Ok 1 1 1 Ok Ok Ok Abaixo de 54% da RCL/DP Ok Ok Ok Ok Ok Ok 1 2005 1 Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok 1 Ok Ok 1 Ok Ok Ok Ok Ok Ok Ok 5 3 1 2 Ok - FONTE DOS DADOS BRUTOS: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. NOTA: 1. RCL/DP = receita corrente líquida por despesa com pessoal. NOTA: 2. As indicações OK significam que todos os municípios do Corede respeitaram o dispositivo legal. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 468 Gilberto de Oliveira Veloso; Anderson Mutter Teixeira 6 Conclusões Este estudo procurou evidenciar a relação existente entre configurações institucionais e resultados de política econômica, mais especificamente, a relação entre a instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal e o comportamento fiscal dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul nos anos de 2001 e 2002. Usando-se procedimentos estatísticos a partir da proposição de um modelo do tipo logit, em que a variável dependente era a probabilidade de os municípios incorrerem em déficit e a variável explicativa era a relação entre a despesa com pessoal e a receita corrente líquida, pode-se verificar que o modelo proposto era significativo, assim como os coeficientes individuais das regressões obtidas, por Coredes e anos, em níveis de significância de 5% e 10%. Como conclusão geral, pode-se afirmar, com base na amostra constituída, que a configuração institucional moldada a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000) determinou, positivamente, um comportamento fiscal responsável dos governos municipais do Estado do Rio Grande do Sul nos anos de 2001 e 2002. Outrossim, pode-se concluir, afirmativamente, que o desempenho fiscal verificado a partir da instituição da Lei sinaliza um rompimento com a tradição clientelista, até então dominante, e restitui a capacidade de execução e de controle de políticas por parte do poder público, ficando este menos refém de grupos de interesses, locais e regionais, o que favorece o melhor aproveitamento dos escassos recursos públicos e minimiza os prejuízos à democracia. Referências ALESINA A; PEROTTI, R. The political economy of budget déficits. IMF Staff Papers, v. 42, n.1, Mar 1995. ALESINA, A.; ROUBINI, N.; COHEN, G.; Political cycles and the macroeconomy. 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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 443-470, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 471 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves na cadeia produtiva de madeira e móveis* Beky Moron de Macadar** Economista e Doutora em Administração Resumo O artigo tem como objetivo descrever e analisar o caso do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, visando identificar os gargalos que dificultam o aproveitamento integral dos benefícios estáticos e dinâmicos dessa aglomeração industrial. As principais conclusões do trabalho são de que há insuficiência de fornecedores locais ou regionais de insumos básicos, custos logísticos elevados em relação a outros concorrentes nacionais, baixo poder de barganha frente a fornecedores e clientes e baixo aproveitamento das oportunidades apresentadas pelas instituições de apoio quanto a iniciativas para a atuação conjunta. Palavras-chave Arranjo produtivo local; cooperação; competitividade sistêmica. Abstract The article aims to describe and to analyze the case of the furniture local productive arrangement of Bento Gonçalves, in the State of Rio Grande do Sul, with the purpose of identifying the obstacles that prevent taking full advantage of the static and dynamic benefits of the industrial cluster. The main conclusions are that the cluster counts with an insufficient number of local or regional providers * Este texto baseia-se na pesquisa desenvolvida pela autora para sua Tese de Doutorado (Macadar, 2006). Artigo recebido em nov. 2006 e aceito para publicação em jun. 2007. ** E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 472 Beky Moron de Macadar of basic inputs, high logistical expenses in comparison with other national competitors, low bargaining power with providers and customers and poor advantage taken from the opportunities offered not only by supporting institutions but also regarding initiatives for joint action. Key words Local productive arrangements; cooperation; systemic competitive advantage. Classificação JEL: R11, 018. 1 Introdução As empresas verticalizadas que predominavam até os anos 70 do século XX executavam internamente a maioria das operações necessárias para o fornecimento de produtos. Hoje, devido à elevada competição entre as empresas, aos grandes avanços tecnológicos e à maior complexidade de produtos e mercados, estruturas empresariais verticalmente integradas são menos freqüentes. Nesse ambiente, as empresas executam apenas uma fração das operações necessárias para disponibilizar determinado produto ao cliente final, já que é cada vez mais difícil possuir internamente todas as competências necessárias para produzir e comercializar produtos, ou seja, elas passam a concentrar-se nas suas competências essenciais. Desse modo, é natural que as empresas inseridas em arranjos e sistemas produtivos locais façam parte de uma ou mais cadeias de suprimentos. Estas últimas, por sua vez, nem sempre estão totalmente contidas no interior do próprio arranjo produtivo. Além disso, ao estarem inseridas em cadeias de suprimentos e em cadeias produtivas, as empresas passam a depender não só do seu próprio desempenho, mas também do desempenho de todas as demais empresas que fazem parte das etapas necessárias para o fornecimento de um determinado produto ao cliente final. Assim sendo, aumentam a interdependência e a necessidade de manter relacionamentos cooperativos que redundem em maior eficiência das cadeias como um todo. O objetivo deste trabalho é descrever e analisar a inserção do Arranjo Produtivo Local moveleiro de Bento Gonçalves (RS) na cadeia produtiva de madeira e móveis, visando identificar os gargalos que dificultam o aproveitamento integral dos benefícios estáticos e dinâmicos das aglomerações indusEnsaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 473 triais. Para tanto, na segunda seção, é feita uma revisão da literatura sobre o papel das aglomerações industriais de um determinado setor e de setores complementares na obtenção de vantagens comparativas através da geração de economias externas e de cooperação interorganizacional. Na terceira seção, descreve-se a cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul. A seguir, na quarta seção, discutem-se as principais características do Arranjo Produtivo Local moveleiro de Bento Gonçalves e seu relacionamento com a cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul. Por último, na conclusão, salientam-se os principais gargalos que obstaculizam a competitividade sistêmica, entendida como a competitividade que depende não só de fatores macroeconômicos e setoriais, mas também da gestão das empresas e da natureza do meio econômico e social no qual atuam. Dentro do possível, o artigo procura sinalizar ações que poderiam contribuir para a obtenção de resultados mais satisfatórios. O Município de Bento Gonçalves foi escolhido para fazer essa análise por ser um dos pólos moveleiros mais importantes e mais consolidados do País e por irradiar sua influência para outros municípios da região. O APL é formado por 370 empresas — de porte variado e com baixa integração da cadeia produtiva —, que geram 10.500 empregos diretos e indiretos (Abimóvel, 2005). A economia do Município tem a indústria moveleira como seu carro-chefe, posto que, em 2005, 56% da produção industrial era oriunda do setor1 (Sindmóveis, 2006). O trabalho desenvolvido caracteriza-se como pesquisa qualitativa de caráter exploratório, tendo como estratégia o estudo de caso. A coleta de evidências envolveu entrevistas presenciais semi-estruturadas, observações diretas em eventos do setor e dados secundários. O roteiro de entrevista foi submetido à consideração de dois juizes qualificados e, posteriormente, adaptado às sugestões. Após a alteração do documento, foi feito um teste piloto com três experts na área de móveis, o que gerou novas alterações, com o intuito de melhor adequá-lo à pesquisa. A pesquisa de campo foi realizada pela própria autora entre setembro de 2004 e fevereiro de 2005. Foram feitas, ao todo, 21 entrevistas presenciais com 13 executivos — presidentes ou diretores — de nove instituições de apoio2, dos 1 Em 2005, o faturamento atingiu a marca de R$ 1,2 bilhão, representando 38,5% e 10% do faturamento do Rio Grande do Sul e do Brasil, respectivamente, nesse segmento industrial (Sindmóveis, 2006). No mesmo ano, a exportação de móveis do Município de Bento Gonçalves alcançou o valor de US$ 76,8 milhões, perfazendo 28,2% da exportação gaúcha do setor e 7,5% da brasileira (Sindmóveis, 2006; MICT, 2006). O montante exportado representa 14,1% do faturamento das empresas moveleiras do Município. 2 Em algumas organizações, foram entrevistados dois executivos, a fim de se obterem informações mais completas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 474 Beky Moron de Macadar quais cinco são empresários de pequenas e médias empresas (PMEs) moveleiras; um é presidente de uma rede de pequenas empresas, quatro são diretores de grandes empresas; além de três fornecedores de grande porte, todos escolhidos por conveniência, com a orientação das instituições de apoio. 2 Aglomerações industriais A literatura sobre aglomerações industriais é abundante e foi iniciada por Marshall (1982) em 1890, quando, no seu Principles of Economics, salientou a importância das economias externas nos distritos industriais. Ele chamou atenção para o fato de que a aglomeração de firmas de um mesmo setor e de atividades correlatas gerava uma série de economias externas que diminuíam os custos dos produtores aglomerados. As vantagens incluíam a concentração de trabalhadores especializados e com habilidades específicas relativas ao sistema local; a presença e a atração de um conjunto de fornecedores de insumos e serviços especializados; e a rápida difusão de novos conhecimentos, habilidades e informações relacionadas com a atividade principal dos produtores locais (Marshall, 1982). Tais economias externas ajudam a entender o crescimento das aglomerações industriais contemporâneas, entretanto há uma certa concordância de que as economias externas marshallianas não são suficientes para explicar o desenvolvimento dessas aglomerações. Além das economias externas incidentais — subproduto não intencional ou acidental de alguma outra atividade —, freqüentemente há uma força deliberada operando, qual seja, a perseguição consciente da ação coletiva. Isso é o que emerge das pesquisas sobre aglomerações industriais nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. Schmitz (1997) juntou os efeitos incidentais e os deliberados no conceito de eficiência coletiva, definido como a vantagem competitiva derivada de economias externas e da ação conjunta. As economias externas podem ser consideradas uma eficiência de caráter passivo, enquanto a ação conjunta é uma eficiência de caráter ativo. A ocorrência desta última é que vai determinar a possibilidade de um melhor posicionamento competitivo. Da mesma forma, para Anderson e Narus (1990) a cooperação é o resultado de atividades coordenadas entre empresas interdependentes, para se atingirem resultados mútuos ou unilaterais que excedem aquilo que seria obtido de forma isolada. A ação conjunta pode ser de dois tipos (Schmitz, 1997): a cooperação entre duas empresas individuais (por exemplo, compartilhando equipamento ou desenvolvendo novos produtos) por um lado, e, por outro, grupos de empresas atuando de forma conjunta em associações comerciais, na compra de mate- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 475 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... riais, em consórcios de exportação, na contratação de serviços especializados, nas cooperativas de crédito ou em atividades do gênero. Também é possível diferenciar entre a cooperação horizontal, entre concorrentes, e a cooperação vertical, ao longo da cadeia de suprimentos, conforme pode ser apreciado no Quadro 1. Quadro 1 Formas de ação conjunta em clusters FORMAS DE COOPERAÇÃO Horizontal Vertical BILATERAL MULTILATERAL Compartilhamento de equi- Associações setoriais pamentos Desenvolvimento conjunto Alianças ao longo da cadeia de componentes por produ- de valor tores e usuários FONTE: SCHMITZ, Hubert. Collective efficiency and increasing returns. Brighton: University of Sussex, 1997. (IDS Working paper, n. 50). p. 8. Tanto na literatura econômica como no âmbito governamental, ainda existe grande dificuldade de se encontrar uma definição precisa para tais aglomerações. Muitas das tentativas de definição são tão generalistas que abarcam todos os casos empíricos de aglomerações produtivas, não importando o grau de desenvolvimento atingido. Conforme a Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist), do Instituto de Economia da Universidade Federal de Rio de Janeiro, o termo aglomeração pode ser utilizado, de forma genérica, para incluir os diferentes tipos de aglomerados referidos na literatura, tais como distritos industriais, clusters, arranjos produtivos locais e Sistemas Locais de Produção (SLPs), dentre outros. Ele é suficientemente abrangente para “[...] envolver diferentes atores, além de refletir formas diferenciadas de articulação, governança e enraizamento” (RedeSist, 2005, p. 5). Entretanto, para diferenciar aglomerados mais, ou menos, articulados, a Rede distingue Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (SPILs) de APLs. Os primeiros consistem em “[...] conjuntos de agentes econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, desenvolvendo atividades econômicas correlatas e que apresentam vínculos expressivos de produção, interação, cooperação e aprendizagem”. Esses aglomerados geralmente envolvem, além de empresas produtoras de bens e serviços finais, fornecedores, clientes e outras organizações, tais como associações empresa- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 476 Beky Moron de Macadar riais, cooperativas, centros de pesquisa e desenvolvimento, de produção de informações e de formação e treinamento de recursos humanos. Já os APLs “[...] são aqueles casos fragmentados e que não apresentam significativa articulação entre os agentes” (RedeSist, 2005, p.5 ). Essa distinção contribui para o entendimento dos aglomerados encontrados no Brasil e foi adotada neste trabalho. As empresas pertencentes a esses aglomerados são capazes de obter vantagens competitivas em relação às empresas dispersas geograficamente. Em alguns casos, e graças à eficiência coletiva, a aglomeração dos produtores é capaz de desenvolver uma estrutura produtiva completa, melhorando, com isso, sua competitividade nos mercados doméstico e externo. As vantagens competitivas são consideradas de caráter estático quando estão baseadas em fatores espúrios, tais como o baixo custo da mão-de-obra ou a abundância de uma determinada matéria-prima. São fatores que tendem a ser anulados, com o passar do tempo, pelo surgimento de outra fonte mais barata de mão-de-obra ou pela descoberta de uma nova matéria-prima substituta. Já as vantagens competitivas dinâmicas apóiam-se em fatores que evoluem constantemente, relacionados principalmente com a inovação e a interação entre os agentes locais, incluindo as instituições de apoio (Belussi; Gottardi, 2000; Garcia; Motta; Amato Neto, 2004), gerando, desse modo, uma competitividade sistêmica. O distrito industrial italiano é considerado um exemplo paradigmático das vantagens competitivas que surgem da aglomeração de pequenas e médias empresas, setorialmente especializadas, em uma dada localidade. As aglomerações favorecem a inovação e ajudam as firmas locais a competirem globalmente (Humphrey; Schmitz, 2000). Existe um consenso crescente de que as aglomerações auxiliam as pequenas e as médias empresas a superarem as barreiras ao crescimento e a ultrapassarem o mercado local, mas também há um reconhecimento de que o resultado não é automático. De acordo com Schmitz (2000), a eficiência coletiva somente emerge, quando a confiança sustenta os relacionamentos interempresariais e quando se consegue conectar o cluster com mercados de grande porte no próprio país ou no exterior. Para Suzigan, Garcia e Furtado (2002, p. 2), há três aspectos essenciais no entendimento das aglomerações de empresas e instituições em clusters ou sistemas locais de produção e/ou inovação: [...] (1) a importância das economias externas locais, cerne de toda a discussão sobre clusters ou SLPs; (2) a necessária caracterização como aglomeração geográfica de empresas que atuam em atividades similares ou relacionadas, e sua respectiva forma de organização e de coordenação; e (3) os condicionantes históricos, institucionais, sociais e culturais que podem influir decisivamente na formação e evolução do cluster ou SLP. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 477 Desse modo, além de possuírem economias externas, as aglomerações geográficas de empresas setorialmente especializadas geralmente incluem um grande número de empresas de porte variado, onde predominam as pequenas. Suzigan, Garcia e Furtado (2002, p. 3) salientam que o sucesso de um sistema local de produção e/ou inovação “[...] é fortemente condicionado por suas raízes históricas, pelo processo de construção institucional, pelo tecido social, e pelos traços culturais locais”. Esses fatores têm uma grande influência na especialização produtiva, no surgimento de lideranças locais, na existência da confiança para empreender ações conjuntas de cooperação, na criação de instituições de apoio às empresas e na estrutura de governança vigente. Tais fatores “[...] permitem também que os clusters combinem, em proporções muito variáveis caso a caso, elementos de cooperação e competição” (Suzigan; Garcia; Furtado, 2002, p. 3). Contudo tanto os APLs quanto os SLPs fazem parte de alguma cadeia produtiva estruturada, de tal forma que isso permite ao produtor local se abastecer de insumos junto a fornecedores internos ou externos à aglomeração e também distribuir sua produção de modo que atinja os consumidores finais, nacionais ou estrangeiros. 2.1 Cadeias produtivas Uma cadeia produtiva é definida a partir da identificação de determinado produto final e do encadeamento das várias operações técnicas, comerciais e logísticas, a jusante e a montante, necessárias à sua obtenção (Batalha, 1997; Pires, 2001). Sua definição deve partir sempre do mercado final (produto acabado) e seguir na direção dos insumos que a originaram. A característica central desse nível de análise é estudar o conjunto de empresas intervenientes de forma sistêmica, sem particularizar as empresas integrantes da cadeia, ao contrário do que ocorre na cadeia de suprimentos. Esta última procura evidenciar a cadeia específica a uma empresa ou a uma organização em particular, a empresa focal, de modo que a cadeia produtiva é mais abrangente que a de suprimentos, pois, dentro dela, convivem inúmeras cadeias de suprimentos. Uma cadeia produtiva é composta por dois níveis: a cadeia principal e a cadeia auxiliar. Na principal, as atividades são diretas e vinculadas ao seu objetivo principal, enquanto a auxiliar realiza atividades indiretas e de suporte, interagindo dinamicamente com a cadeia principal e proporcionando tudo aquilo que é necessário para executar sua atividade-fim (Pires, 2001). A análise de uma cadeia produtiva é considerada de caráter tipicamente meso-analítico, “[...] porque se procura estudar mais do que apenas uma empre- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 478 Beky Moron de Macadar sa, mas sem chegar ao nível de estudar o conjunto do sistema industrial, restringindo-se ao grupo de empresas constituintes de uma cadeia produtiva, ou um subsistema produtivo” (Gusmão, 2004, p. 74). A análise de cadeias produtivas propicia a identificação de questões relevantes para a melhoria do desempenho e de sua competitividade, já que permite a identificação dos chamados “nós”, que constituem os pontos-chave onde são estabelecidas as políticas de toda a cadeia. Também permite, por um lado, identificar os pontos de estrangulamento, isto é, aqueles elos que comprometem o desempenho da cadeia como um todo, e, por outro, os pontos fortes existentes (Pedrozo; Hansen, 2001). Para Morvan (1991 apud Batalha, 1997), o conceito de cadeia produtiva tem diversas utilidades: como ferramenta de descrição e análise técnico-econômica, para a formulação e análise de políticas públicas e privadas, como apoio à avaliação de estratégias empresariais e como ferramenta de análise das inovações tecnológicas e apoio à tomada de decisão, dentre outros. No entanto, Pires (2001, p. 80) destaca que o maior benefício decorre da “[...] possibilidade de ampliação da compreensão do contexto onde as empresas estão inseridas, fazendo com que as mesmas caminhem no sentido de ter uma visão sistêmica de sua competitividade”. Quando os atores regionais começam a perceber as inter-relações entre os diversos elos da cadeia produtiva, começam a ficar mais claros os pontos de estrangulamento que prejudicam a competitividade regional e a das próprias empresas e quais os esforços coletivos necessários para reverter essa situação. 3 A cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul A origem da indústria moveleira do Rio Grande do Sul está relacionada à imigração italiana ocorrida no século XIX e ao estabelecimento desses imigrantes nos municípios da região da Serra gaúcha. Com o conhecimento e a tradição trazidos de seus países de origem, iniciaram a produção de móveis de forma artesanal e voltada para o consumo próprio e, mais tarde, passaram a produzi-los industrialmente. Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor de móveis no Brasil e responde por cerca de 26% da produção nacional, ficando atrás somente do Estado de São Paulo. É também o segundo maior estado exportador de móveis do País, responsável, em 2005, por 26,7% das exportações do setor (MICT, 2006). Além disso, o Estado conta com três principais Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 479 regiões produtoras de móveis: Bento Gonçalves e arredores, Lagoa Vermelha e arredores e Região das Hortênsias, sendo que o Município de Bento Gonçalves se destaca como o principal produtor. A indústria moveleira gaúcha é composta por 2.467 empresas, que geram 30.970 empregos diretos e indiretos (Abimóvel, 2005). Quanto ao porte das empresas, 67,3% são micro, 28,7%, pequenas; 3,8%, médias; e 0,1%, grandes. A maioria das empresas moveleiras do Estado fabrica móveis com base em madeiras processadas — medium density fiberboard (MDF), aglomerados e compensados —, sendo muito poucas as que produzem móveis de madeira maciça em larga escala. A produção de móveis tubulares e de plástico está em crescimento, mas ainda é pouco expressiva (Rio Grande do Sul, 2005). A Figura 1 apresenta o desenho da cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul, fazendo a distinção entre os elos incipientes ou externos ao Estado e os elos existentes e representativos no Estado. A cadeia principal pode ser decomposta em quatro etapas: a de tratamento da matéria-prima (reflorestamento, extração de madeira nativa, exploração florestal, madeireiras e serrarias e indústria de painéis), a de produção do móvel (indústria de móveis), a de distribuição (atacadista ou distribuidor, lojas de móveis e mercado externo) e a de consumo (cliente final). Os elos mais frágeis da cadeia principal no Rio Grande do Sul são os do reflorestamento, da extração de madeira nativa, da exploração florestal e da indústria de painéis, cujo desenvolvimento incipiente no Estado é insuficiente para atender a toda a demanda da indústria moveleira. A cadeia auxiliar proporciona bens e serviços que satisfazem as necessidades indiretas e de suporte da cadeia principal. Os fornecedores de material auxiliar atendem às demandas das madeireiras, das serrarias e da indústria de móveis. A indústria química fornece produtos para a indústria de painéis e para a própria indústria moveleira. Os serviços de transportes são utilizados intensivamente tanto pelos elos responsáveis pelo tratamento da matéria-prima quanto pelo da indústria de móveis. A indústria de equipamentos abastece os elos de exploração florestal, madeireiras e serrarias, indústria de painéis e indústria de móveis. Os serviços associados, tais como marketing e atendimento pós-venda, vinculam-se às atividades de produção, de distribuição e de atendimento ao cliente final, enquanto a assessoria em design arquitetônico, os serviços de informática e a indústria de acessórios se concentram na etapa de produção do móvel. As associações empresariais e os órgãos de apoio, por sua vez, envolvem os fabricantes de móveis, bem como as lojas, enquanto o vínculo predominante das escolas e centros de tecnologia é com a indústria moveleira. No caso da cadeia auxiliar, as maiores carências manifestam-se nas indústrias química, de equipamentos e de acessórios, bem como nos serviços associados. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 480 Beky Moron de Macadar Figura 1 Cadeia produtiva da madeira e móveis do RS C A D E IA D A M A D E I R A E MÓ V E IS D O R S C A D E IA P R IN C IP A L C A D E IA A U X IL IA R M AT E R IAL A U X IL I A R E X T R AÇ Ã O REFLO RESTAM ENTO M A D E IR A N A T IV A IN D Ú S T R I A Q U Í M IC A TRANSPORTES E X P L O R AÇ Ã O F L O R E S T A L IN D E Q U IP A M E N T O S M A D E I R E IR A S / S E R R A R IA S I N D P A INÉ IS S E R V IÇ O S A S S O C IA D O S IN D Ú S T R I A D E MÓ V E IS R e s id e n c ia is A S S E S S . D E S IG N J a rdins A R Q U I T . / IN F O R M . E s c r itó rio IN D A C E S SÓ R I O S A T A C A D IS T A /D I S T R I B U ID O R A S S O C IAÇ Õ E S / Ó R G Ã O S D E A P O IO L O J A S D E MÓ V E IS E S C O LAS E C E N T R O S E s p e c ia liz a d a s G e n e r a lis ta s C L IE N T E D E T E C N O L O G IA F IN A L - Q u a li fic aç ã o M O - C o n s u lto ria M ER C A D O E XT E R N O E lo in c ip ie n t e o u e x te r n o a o e s ta d o E lo e x is t e n t e e re p r e s e n ta tiv o n o e s t a d o FONTE DOS DADOS BRUTOS: AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DO RIO GRANDE DO SUL — PÓLO RS. Análise competitiva preliminar da cadeia produtiva de móveis do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. p. 12. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 481 3.1 Os elos da cadeia produtiva de madeira e móveis gaúcha No Rio Grande do Sul, o elo de produção e extração da madeira está concentrado nos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes)3 Hortênsias-Campos de Cima da Serra (43,5%) — na região nordeste do Estado —, Centro-Sul (9,5%) — próximo à Região Metropolitana de Porto Alegre — e Metropolitano Delta do Jacuí (8,4%). O Estado possui apenas 3,8% da área plantada de pínus e 7,7% da área de florestas plantadas de eucalipto no Brasil. Essa baixa participação do Estado em um elo tão importante para o desenvolvimento da indústria moveleira explica parte das desvantagens logísticas enfrentadas pelas empresas moveleiras locais em termos de abastecimento (Rio Grande do Sul, 2005). No elo de processamento de madeira, existe uma distribuição bastante uniforme entre os quatro Coredes responsáveis pelas participações mais significativas: Metropolitano Delta do Jacuí (15,4%), Serra (16,7%) — próximo à Região das Hortênsias4, a cerca de 120km de Porto Alegre —, Vale do Taquari (15,3%) — lindeiro ao Corede Serra — e Hortênsias–Campos de Cima da Serra (16%), entretanto estão muito próximos uns dos outros. Grande parte da madeira processada (68%) fica no próprio Estado. No elo de fabricação de móveis, sobressai-se o Corede Serra, responsável por 68,4% das vendas do Estado em 2002. Ele é seguido pelo Corede Metropolitano Delta do Jacuí, com 5,8% do total. Enquanto o primeiro destina 51,8% de sua produção a outras unidades da Federação e 16,9% à exportação, o segundo efetua 80,8% de suas vendas no mercado estadual. Saliente-se que o maior volume exportado pela cadeia não é o de móveis, muito pelo contrário, pois, em 2004, foram 344.000 toneladas em pastas de madeira, no valor de US$ 104,5 milhões; quase um milhão de toneladas em madeira e carvão vegetal, totalizando US$ 146,8 milhões; e pouco mais de 183.000 toneladas de móveis no valor de US$ 221,4 milhões. Ou seja, a exportação de móveis — o produto com maior valor agregado desses três segmen- 3 Os municípios do Rio Grande do Sul estão agrupados em 26 Coredes, 21 dos quais foram inicialmente criados em 1994, pela Lei nº 10.283. Trata-se da mais bem-sucedida experiência de regionalização do Estado, que, com o passar do tempo, sofreu uma reorganização territorial, com alguns municípios trocando de região. Os Coredes possuem um processo de consulta popular que os torna um forum organizador das demandas regionais para a destinação de parte do orçamento do Estado. 4 A Região das Hortênsias está inserida na Serra gaúcha, que é formada pelo Planalto Sul-Rio-Grandense, estendendo-se por toda a Região Nordeste do Estado. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 482 Beky Moron de Macadar tos — foi aquele que menos contribuiu (12%) no total do volume exportado (Rio Grande do Sul, 2005). Por outro lado, um dos problemas mais sérios enfrentados pelas empresas gaúchas do setor é a insuficiência de fornecedores locais de insumos fundamentais — madeira maciça, MDF, aglomerado e compensado —, o que leva a que uma parcela importante da matéria-prima seja trazida de outros estados, principalmente do Paraná e de São Paulo, ou mesmo importada. Esse fato é responsável pela perda de competitividade relativa no mercado interno, já que móveis retilíneos com alto grau de padronização estão sendo fabricados em outros pólos moveleiros do País, mais próximos dos fornecedores e, conseqüentemente, com menores custos de frete, que pesam sensivelmente no transporte da madeira. Ou seja, para competir com preços baixos e/ou médios de móveis, o custo do transporte é um fator de perda de competitividade frente aos outros pólos produtores de São Paulo, Santa Catarina e Paraná. O segmento de acessórios divide-se entre distribuidores e indústrias com produção própria. Ao contrário de outros fornecedores primários, está bem integrado com a indústria moveleira, proporcionando cada vez mais uma variedade maior de itens. Investiu fortemente na área de design, desenvolvendo, inclusive, produtos exclusivos para seus clientes. No que diz respeito ao varejo de grande porte, as empresas moveleiras enfrentam dois tipos de problemas. O primeiro está relacionado com a reduzida escala de produção de algumas empresas gaúchas, com qualidade insatisfatória, com deficiência em design e com baixo preço pago pelos varejistas. Por esse motivo, uma parcela do varejo do Rio Grande do Sul é abastecida pelos Estados de Santa Catarina e Paraná (Agência de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, 2002). O segundo é o elevado poder de barganha que os varejistas exercem em função da concentração do mercado em poucas redes. Somente as quatro maiores redes brasileiras do varejo de móveis e eletroeletrônicos — Casas Bahia, Ponto Frio, Colombo e Magazine Luiza — concentravam 47% da receita do segmento no Brasil, que atingiu R$ 32 bilhões em 2004 (Grandes..., 2005). Quanto aos serviços associados, os que apresentam problemas mais sérios são os de montagem, instalação e acompanhamento pós-venda. Estes geralmente são realizados por profissionais não capacitados, o que prejudica a imagem das lojas e, principalmente, a dos fabricantes de móveis frente ao consumidor final. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 483 3.2 Integração da cadeia com o mercado A cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul especializou-se na produção de móveis, mas não na distribuição. Via de regra, as vendas para o mercado externo são o resultado de encomendas de compradores que procuram diretamente as fábricas para executarem determinados produtos, ou seja, as empresas não realizam o esforço de vendas; é o cliente que as procura. Nesse mercado, são poucas as empresas que podem comercializar seus produtos sem o auxílio de intermediários. Já no mercado interno, boa parte das empresas moveleiras depende das grandes redes de lojas e não tem um contato direto com o consumidor final, o que as deixa dependentes das informações repassadas por estas últimas. 3.3 Integração da cadeia com os fornecedores A principal dificuldade enfrentada pelas empresas moveleiras no relacionamento com os fornecedores é o de ter que lidar com a Associação Brasileira da Indústria de Painéis de Madeiras (Abipa), que reúne os produtores de chapas de aglomerado e de MDF e atua como uma espécie de cartel. Com a instalação da primeira fábrica de MDF no Rio Grande do Sul, no Município de Glorinha,5 houve uma melhora no fornecimento, complementada com a inauguração do Centro de Distribuição da Masisa do Brasil6 em Porto Alegre, inaugurado em 2005, o que representou uma economia nos custos de frete pagos pelos seus clientes no Rio Grande do Sul. A Masisa também assinou, em setembro de 2006, um protocolo de intenções, junto ao Governo do Estado, para a construção de uma nova fábrica de MDF, no Município de Montenegro. Por outra parte, o Grupo Isdra planeja investir em torno de R$ 150 milhões em uma nova linha de produção de aglomerado, no mesmo terreno da 5 Uma prova da capacidade de mobilização das entidades dos fabricantes de móveis é ter conseguido sensibilizar o Governo do Estado para a necessidade de ter, no Rio Grande do Sul, uma empresa que produzisse painéis de MDF e de aglomerado, dada a importância desses insumos nos móveis fabricados no Estado. Graças aos incentivos fiscais oferecidos e comprovada a viabilidade econômica do empreendimento, o Grupo Isdra estabeleceu-se no Município de Glorinha e construiu a fábrica Fibraplac, em funcionamento desde 2005 e com planos de uma futura expansão. 6 O Centro de Distribuição funciona como entreposto dos painéis de MDF fabricados pela Masisa na Argentina, bem como da fábrica da Masisa em Ponta Grossa (PR), utilizando um sistema multimodal rodoferroviário. Com isso, há uma economia de 10% a 15% nos fretes pagos pelos clientes no Estado (MASISA..., 2005; MASISA..., 2005a). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 484 Beky Moron de Macadar fábrica de MDF localizada em Glorinha (Klein, 2005). Além disso, a duplicação desta última foi anunciada em fevereiro de 2006. Desse modo, é possível prever que, no médio prazo, o abastecimento da matéria-prima básica será feito por empresas geograficamente mais próximas. 3.4 Situação estratégica atual A cadeia produtiva de madeira e móveis do Rio Grande do Sul tem uma estratégia bastante definida, a de competir em preço. Além disso, a tecnologia de ponta e a escala de produção em grandes volumes permitem que o produtor gaúcho ofereça confiabilidade de entrega e disponibilidade de produtos. Essa estratégia deixou para trás outras dimensões competitivas, tais como a qualidade intrínseca, a qualidade percebida, a variedade e a inovação (Agência de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, 2002). Não há ênfase na qualidade intrínseca do móvel; poucas empresas empregam materiais alternativos, de maior valor agregado, ou de design mais aprimorado. Com isso, a aparência do móvel gaúcho não é diferenciada em relação ao que é produzido por outras cadeias moveleiras do País. A variedade está limitada pela escala de operação das empresas de maior porte, baseada na automação, e, no caso das empresas menores, que possuem maior variedade, pelos altos custos e pela menor confiabilidade de entrega. Quanto à inovação, a cadeia estadual privilegiou os investimentos na capacidade produtiva e não no desenvolvimento de produtos, já que a ênfase estratégica estava centrada no preço. Contudo essa situação não parece ser sustentável no médio prazo, pois as cadeias moveleiras concorrentes — principalmente as do Paraná e de São Paulo — possuem menores custos logísticos e, aos poucos, deverão equiparar-se em tecnologia e escala de operação. A cadeia produtiva regional deveria orientar sua estratégia para a produção de móveis diferenciados, com maior valor agregado, inovando a aparência destes através do uso de novos materiais e utilizando melhores práticas de acabamento e de design, mesmo que a um preço mais elevado. Assim, estaria ocupando-se um novo nicho de mercado, onde a qualidade percebida passaria a ser o principal fator estratégico. Essa nova estratégia não seria excludente, ou seja, não substituiria a fabricação de produtos padronizados, posto que as empresas moveleiras investiram intensamente em tecnologia e na capacidade produtiva existente, e esse investimento precisa ser remunerado. Entretanto as duas estratégias poderiam conviver simultaneamente, permitindo o atendimento da demanda de diferentes segmentos de mercado, tanto a de móveis mais populares quanto a dos mais sofisticados. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 485 4 O Arranjo Produtivo Local moveleiro de Bento Gonçalves O Município de Bento Gonçalves — possuidor de uma população total de 95.268 habitantes em 2003 — está localizado na região da Serra gaúcha, uma das mais industrializadas do Estado, e o seu PIB industrial representava, ainda em 2003, 58,2% de sua economia. Seu Índice de Desenvolvimento Socioeconômico (Idese), calculado pela Fundação de Economia e Estatística, foi de 0,808 nesse mesmo ano, superior à média do Estado (0,757), ficando em sexto lugar no ranking de todos os municípios do Rio Grande do Sul, o que indica uma situação privilegiada (FEE, 2006). Com base nos critérios propostos pela RedeSist (2005), citados anteriormente, e, dada a evolução anterior da aglomeração de empresas moveleiras e de setores complementares de Bento Gonçalves, considera-se que a mesma pode ser definida como um arranjo produtivo local com potencial para tornar-se um sistema produtivo e inovativo local. Ou seja, apesar de ser um dos pólos moveleiros mais avançados do País, ainda é necessário desenvolver novas formas de articulação entre os diversos agentes econômicos e as instituições locais para atingir uma nova cultura organizacional e competitiva com base na inovação. O APL moveleiro de Bento Gonçalves é o maior da Região Sul do Brasil. Especializou-se na produção de móveis retilíneos fabricados com painéis de madeira reconstituída (aglomerados e MDF), e várias das empresas nele localizadas adotaram práticas avançadas de incorporação tecnológica e de desenvolvimento de produtos (Brasil, 2002; Vargas; Alievi, 2000). Sua região de influência estende-se a outros municípios vizinhos da região da Serra gaúcha, tais como: Garibaldi, Farroupilha, Flores da Cunha, São Marcos, Antônio Prado e Caxias do Sul. É por exercer essa influência regional que Bento Gonçalves, conforme a tipologia proposta por Suzigan et al. (2003), constitui um núcleo de desenvolvimento setorial-regional. Nessa região, estão localizadas algumas das mais modernas e maiores empresas do setor, que se destacam pelo design e pela qualidade de seus produtos, como Todeschini, Carraro, Florense e Dell Anno. A produção concentra-se em três categorias de móveis: residenciais (92%); de escritório (7%) e institucionais, tais como para escolas e hospitais (1%). No entanto, o padrão tecnológico do APL moveleiro é bastante díspar. As empresas líderes encontram-se em fase avançada de atualização tecnológica e utilizam modernas técnicas de gestão administrativa. Porém, segundo relatório da Secretaria de Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais (Sedai), não Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 486 Beky Moron de Macadar mais do que cinco fábricas do arranjo produtivo da região da Serra gaúcha estariam atualizadas em relação às características tecnológicas dos países desenvolvidos. As médias empresas encontram-se em um nível tecnológico intermediário, e as micro e as pequenas empresas são as mais atrasadas (Rio Grande do Sul, 2000). A maioria das médias e grandes empresas opera máquinas e equipamentos dotados de controladores numéricos computadorizados (CNCs). Contudo, dado que o processo produtivo não é contínuo, a modernização às vezes é parcial, possibilitando a coexistência de máquinas modernas e obsoletas em uma mesma planta. A fim de superar o atraso, a estratégia das empresas menores para a rápida atualização dos produtos tem sido a cópia direta dos modelos lançados pelas empresas líderes. O APL dispõe de fornecedores de matéria-prima, acessórios, serviços especializados, máquinas e implementos e de instituições, tais como associações de empresários, centro tecnológico, universidade e centro de treinamento da mão-de-obra;7 ou seja, os fabricantes de móveis contam com uma importante estrutura de apoio. Tanto as instituições de apoio localizadas no APL como as externas vêm demonstrando um nível elevado de comprometimento para fortalecer a cadeia produtiva moveleira da Serra gaúcha, tendo adotado uma orientação de longo prazo a respeito dos relacionamentos entre elas e com as empresas moveleiras, visando fomentar o estabelecimento de relacionamentos cooperativos interorganizacionais. No que se refere às instituições difusoras do conhecimento, o comprometimento tanto da Universidade de Caxias do Sul quanto do Centro Tecnológico do Mobiliário é evidenciado pelos vultosos investimentos realizados nos cursos e nos laboratórios dedicados especificamente ao setor de móveis. Além disso, existe um elevado nível de confiança entre as instituições de apoio. As que compõem o Conselho de Administração do Centro Gestor da Inovação, por exemplo, atuam de forma coordenada e tentam colocar em prática 7 Em nível local, o APL de Bento Gonçalves congrega uma série de instituições de apoio muito atuantes — a Associação das Indústrias de Móveis do Estado do Rio Grande do Sul (Movergs), o Sindicato das Indústrias do Mobiliário de Bento Gonçalves (Sindmóveis), a Universidade de Caxias do Sul–Campus da Região dos Vinhedos (UCS/Carvi), o Centro Tecnológico do Mobiliário (Cetemo), o Centro Gestor de Inovação (CGI) e o Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC) —, as quais desempenham diferentes funções, mas atuam com vários objetivos comuns. O APL também conta com o apoio de outras instituições estaduais, tais como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), a Pólo RS e a Secretaria de Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais do Estado do Rio Grande do Sul. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 487 a resolução conjunta de conflitos, enquanto a UCS e o Cetemo procuram evitar a superposição de cursos. Por outra parte, alguns indivíduos do APL destacam-se como líderes influentes, principalmente aqueles mais vinculados às entidades que congregam os empresários. Em função dessa liderança, a Movergs, o Sindmóveis e o CGI constituem os agentes coordenadores das relações interempresariais no interior do APL, ou seja, exercem a governança local. Mas, embora o APL conte com um conjunto de instituições maduras voltadas para o fortalecimento da aglomeração produtiva e a conseqüente obtenção de vantagens competitivas, os ganhos não são automáticos. Há uma certa resistência entre os empresários locais ao estabelecimento de vínculos mais estreitos na cadeia produtiva, tanto horizontais quanto verticais, fato que prejudica substancialmente os ganhos que poderiam advir da atuação conjunta geradora de eficiência coletiva. 4.1 Dependência entre fornecedores e empresas moveleiras Nas entrevistas realizadas com fornecedores, tentou-se avaliar até que ponto eles dependem das compras realizadas pelas empresas do APL. O resultado indica que a dependência dos grandes fornecedores em relação às empresas moveleiras de Bento Gonçalves é de baixa para média. Inversamente, a dependência relativa destas últimas é muito superior, principalmente em relação aos oligopólios de fornecedores de fórmica e aos de chapas de aglomerado e MDF. Ou seja, as vendas desses fornecedores são bastante pulverizadas no País, e o peso do APL, atualmente, não é suficientemente significativo a ponto de alavancar o poder de barganha das empresas moveleiras. Mesmo quando o fornecedor realiza investimentos visando atender a necessidades específicas dos fabricantes de móveis, a dependência do fornecedor é relativa, pois a este não resulta difícil redirecionar os produtos para outros mercados consumidores. Assim, as possibilidades de se estabelecerem relacionamentos estratégicos com esses fornecedores são muito limitadas. Um outro indicador de baixa interdependência a montante na cadeia de suprimentos é a ausência de ações conjuntas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) entre fornecedores e empresas. Já a fabricação de produtos personalizados pode ser tomada como um indicativo de comprometimento, mas também retrata a facilidade com que as novas tecnologias permitem reprogramar a produção sem perda de eficiência. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 488 Beky Moron de Macadar Em síntese, a dependência dos grandes fornecedores de insumos com peso importante na produção do móvel de madeira não é muito significativa em relação às vendas para o APL, ou seja, é uma dependência assimétrica. O poder econômico dos grandes fornecedores é muito superior àquele das empresas moveleiras do APL, mesmo as de maior porte, acarretando um poder de barganha relativamente baixo. Assim sendo, a concentração de empresas moveleiras no APL não é fator de atração suficiente para o adensamento de importantes elos da cadeia produtiva de madeira e móveis regional. Os fornecedores de chapas de MDF, compensado e fórmica, para garantirem o retorno sobre os vultosos investimentos requeridos por essa indústria preferem estabelecer-se próximos à matéria-prima ou próximos aos grandes mercados consumidores. 4.2 Práticas associativas As empresas do APL enfrentam muitas dificuldades para praticar o associativismo. Os empresários são intrinsecamente desconfiados e apresentam uma grande resistência à cooperação. Seguindo o exemplo dos primeiros imigrantes italianos que se estabeleceram na Serra gaúcha e fabricavam integralmente seus próprios móveis, os empresários da região acostumaram-se a fazer os móveis por inteiro, do início ao fim. Durante décadas, tiveram empresas totalmente verticalizadas e somente começaram a terceirizar nesta última década, quando o processo produtivo ficou mais complexo, e houve necessidade de aumentar a eficiência. Contudo esse afã de produzir o móvel integralmente foi absorvido também pelos terceirizados, pois, assim que estes se fortalecem, passam a ter vida própria e a trabalhar como concorrentes. As redes de pequenas e médias empresas poderiam ser uma saída para que as de menor porte pudessem enfrentar a concorrência das grandes, bem como para fortalecerem o poder de barganha frente a fornecedores e compradores. Aqui, novamente, as dificuldades são de relacionamento, a julgar pelos resultados da Associação dos Fabricantes de Estofados e Móveis Complementares (Rede Afecom)8, onde poucas empresas se adaptaram à atuação conjunta. No seu auge, a Rede chegou a ter um showroom em Miami. 8 A Rede Afecom originou-se no APL de Bento Gonçalves, no final do ano 2000. Constitui uma aliança estratégica intra-indústria, formada por nove empresas que concorrem nos mesmos mercados geográficos e que pretendem usufruir economias de escala com base na cooperação e na ação conjunta. Trata-se de uma rede de pequenas empresas, organizada a partir de um programa estadual coordenado pela Sedai, que busca incentivar a formação do Programa Redes de Cooperação no Rio Grande do Sul. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 489 4.3 Elos da cadeia produtiva moveleira de Bento Gonçalves Os gargalos enfrentados pelos fabricantes de móveis do APL de Bento Gonçalves são semelhantes aos relatados para a cadeia produtiva do RS e afetam profundamente a competitividade das empresas. Por um lado, apesar de ter havido um importante processo de substituição de fornecedores de acessórios de outros estados e do exterior por fornecedores locais, grande parte das chapas de aglomerado e de MDF utilizadas no APL ainda são trazidas do centro do País, onerando o produto final. Por outro, considerando o poder econômico dos fabricantes de aglomerado e de MDF, bem como o das grandes redes de lojas nacionais descrito anteriormente, não restam dúvidas de que os fabricantes de móveis são o elo mais fraco da cadeia produtiva de madeira e móveis. Ambos os fatos deixam as fábricas muito vulneráveis em relação tanto aos fornecedores quanto aos clientes e limitam seu poder de negociação, pressionando a taxa de lucro para baixo. Diante desse quadro, as exportações já foram tidas como uma opção de sobrevivência para as empresas do APL, mas a valorização do real registrada nos últimos anos acabou prejudicando as vendas externas. 4.4 A cooperação no interior do APL Apesar de, nos últimos anos, ter havido um aumento na cooperação interempresarial dentro do APL, o tipo de cooperação predominante ainda é de curto prazo, para a solução de questões pontuais, tais como o empréstimo de insumos. A rivalidade entre as grandes empresas é acentuada, e não existe qualquer tipo de cooperação entre elas, nem mesmo dentro das entidades de classe. Inclusive, ninguém espera que se produza uma aliança estratégica entre duas ou mais grandes empresas em função de mudanças nas condições de mercado, tais como a intensificação da concorrência externa ou a maior concentração do setor. Quanto às PMEs, a cooperação é mais intensa entre aquelas que fazem parte de projetos coordenados pelas instituições de apoio, tais como o Sebraexport Móveis9 e o Programa Redes de Cooperação, da Sedai. 9 O Sebraexport Móveis foi implementado pelo Sebrae-RS, com a finalidade de aumentar as exportações de móveis do Estado, e conta com a parceria da Movergs e do Sindmóveis. O projeto é subsidiado pelo Governo Federal através da Agência de Promoção de Exportação (Apex) e promove ações de promoção comercial e de capacitação de empresas para atuarem no comércio internacional. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 490 Beky Moron de Macadar As instituições de apoio são as responsáveis pelo aprofundamento da cooperação no APL, graças ao empenho de alguns líderes, à organização de atividades e programas e a investimentos específicos — feiras, cursos, laboratórios, pesquisa — realizados com a finalidade de alavancar o desenvolvimento do APL. Contudo a maior dificuldade para incrementar a cooperação entre as instituições de apoio e as empresas e entre as próprias empresas reside nas deficiências de comprometimento e de confiança. 4.5 Canais de distribuição e de comercialização As micro, pequenas e médias empresas do APL enfrentam dificuldades para organizar canais de distribuição e de comercialização próprios, dependendo cada vez mais das grandes redes varejistas. Dado o maior poder de barganha dessas redes, os lucros vêm declinando, comprometendo, assim, a capacidade de investir em treinamento de mão-de-obra, pesquisa e desenvolvimento de novos materiais, design, qualidade, etc. Contudo algumas médias e grandes empresas moveleiras estão conseguindo superar essa dependência mediante o estabelecimento de redes de lojas exclusivas, próprias ou licenciadas. Uma outra alternativa mais tradicional consiste na contratação de representantes de vendas para as diferentes regiões do Estado ou para outros estados. Quanto aos tipos de relacionamentos que se estabelecem com o mercado externo, prevalece a diversidade. A maioria das empresas vale-se de grandes empresas internacionais de comercialização e de distribuição, de representantes internacionais ou de trading companies, e, portanto, tais empresas submetem-se a uma série de exigências do comprador, pois este já vem com especificações completas sobre o produto e o processo, bem como sobre o preço que ele está disposto a pagar. Inserem-se, assim, na tipologia de Gereffi (1999) de cadeias de valor globais coordenadas pelo comprador. Um outro grupo de empresas, principalmente as de maior porte, opta pela exportação através de canais próprios, pela abertura de lojas exclusivas na América Latina e nos grandes mercados consumidores ou pela formação de consórcios de exportação. Apenas uma minoria consegue estabelecer canais de comercialização que não sufocam o desenvolvimento da empresa e que permitem que haja um processo de aprendizado, de capacitação para a inovação e para o upgrading. Geralmente, são empresas que, primeiramente, se fortalecem no mercado interno, explorando as economias de escala da produção em série. Como o percentual inicialmente comprometido com a exportação é relativamente baixo, a dependência em relação às cadeias de valor globais não é significativa, e, com isso, têm autonomia para estabelecer seus próprios canais de comercialização. É Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 491 uma forma mais lenta de entrar no comércio exterior, mas, certamente, muito mais rentável a médio e longo prazos, que permite manter as funções que geram maior valor agregado, tais como design e marketing. As exportações do APL pararam de crescer em 2005 e 2006, refletindo o impacto negativo da valorização do real frente ao dólar norte-americano, em um setor industrial que se utiliza muito pouco de insumos importados e que, portanto, não consegue reduzir seus custos trazendo insumos do exterior. Além disso, apesar dos ganhos de produtividade resultantes da utilização de tecnologias mais avançadas, uma série de fatores incide sobre o preço final do produto e afeta sua competitividade, tais como problemas de logística decorrentes da localização geográfica adversa em relação aos principais fornecedores e aos grandes centros consumidores, custos de transporte mais elevados e tributos em ascensão. Contudo, para ampliar o market share no mercado externo, é preciso mudar de estratégia. Enquanto os produtos exportados continuarem sendo commodities industriais, estar-se-á ganhando mercado em produtos de baixo valor agregado, onde o fator preço é determinante, o que torna muito frágil a sustentabilidade da inserção externa. A desvantagem da ênfase no fator preço é que sempre haverá outro país que ofereça o mesmo produto a um preço menor, em função do custo da mão-de-obra ou da matéria-prima mais barata. A estratégia alternativa mais favorável seria investir na qualidade intrínseca do móvel, na diferenciação do produto, procurando utilizar materiais alternativos e um design mais ousado. 5 Conclusão O APL moveleiro de Bento Gonçalves irradia sua influência para outros municípios da região e pode ser considerado um núcleo de desenvolvimento setorial-regional, tendo como base de sustentação uma série de instituições de apoio que avalizam seu potencial. Apesar dessa situação privilegiada, o aglomerado enfrenta diversos gargalos, que prejudicam a competitividade da produção de móveis, tais como insuficiência de fornecedores locais ou regionais de insumos básicos, custos logísticos mais elevados que os de outros concorrentes nacionais, baixo poder de barganha frente a fornecedores e clientes, reduzida escala de produção de algumas empresas e serviços deficientes. Muitos desses gargalos poderiam ser mais bem resolvidos através de uma atuação conjunta, mas o que se observa claramente no arranjo produtivo são apenas características típicas da existência de economias externas incidentais: elevada concentração de trabalhadores especializados na produção de móveis, Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 492 Beky Moron de Macadar presença de representantes e/ou de fornecedores de insumos e serviços e rápida difusão de novos conhecimentos. Existe, portanto, um déficit de cooperação, seja de forma coletiva, por meio de projetos com as instituições de apoio, seja através de acordos entre empresas. Isto é: as empresas continuam enfrentando seus problemas de forma individual, salvo raras exceções, não obstante a disponibilidade de centros de treinamento de mão-de-obra e de formação de quadros universitários especializados, a facilidade para entrar em contato com fornecedores de bens e serviços no próprio APL e a difusão de novos conhecimentos — através das instituições de apoio, das feiras locais ou como resultado da rotatividade dos trabalhadores. Mesmo assim, ao usufruírem das economias externas incidentais, as empresas do APL ficam em melhor situação do que outras da mesma cadeia produtiva que estão geograficamente dispersas. Observa-se, porém, a falta de uma interação mais efetiva entre os agentes econômicos e sociais para desenvolverem um maior número de atividades conjuntas geradoras de eficiência coletiva e, principalmente, uma subutilização das instituições de apoio. Conseqüentemente, há um descasamento entre os esforços realizados pelas instituições de apoio para intensificar a cooperação no APL e os baixos níveis de comprometimento externados pelas empresas. Sem dúvida, o fato de os fabricantes de móveis estarem concorrendo principalmente em preço e com produtos semelhantes intensifica a rivalidade entre eles e inibe as tentativas de cooperação. Enquanto a concorrência não se transladar para outros fatores, como, por exemplo, a qualidade, o design, ou os novos materiais, a cooperação tende a ficar estagnada. Diante desse quadro, as pequenas e médias empresas são as mais prejudicadas por essa falta de cooperação, já que não usufruem das economias de escala que as grandes têm e nem sempre possuem os recursos necessários para investir e concorrer em fatores que dependem da inovação. No entanto, mesmo sendo rivais, ainda existe um espaço para cooperarem na solução de problemas comuns que possam melhorar a competitividade dos produtores locais, como, por exemplo, na certificação de uma marca de origem para os móveis do APL, na redução dos custos de transporte, compartilhando containers para o mesmo destino, ou na instalação de uma central de compras de insumos para essas empresas. Além disso, as empresas desse APL poderiam aproveitar o fato de contarem com importantes instituições de apoio localizadas no próprio município para intensificarem a cooperação em áreas ainda pouco exploradas, como na montagem de estruturas comerciais para ingressar em novos mercados externos, tais como os de países da Ásia e da África. As grandes empresas contam com seus Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A inserção do Arranjo Produtivo Local (APL) moveleiro de Bento Gonçalves... 493 próprios canais de comercialização, mas as pequenas e as médias precisam de apoio e orientação, já que as despesas para adquirirem um conhecimento prévio dos mercados — cultura, gostos e preferências dos consumidores, canais de comercialização, legislação, dentre outros — são elevadas. Desse modo, a situação do APL não é, no momento, muito promissora, pois a cooperação exige doses elevadas de confiança e comprometimento, e a desconfiança mútua ainda bloqueia a maioria das iniciativas. Dada a resistência à cooperação, enquanto a produção não se tornar mais diferenciada, a tendência é a de manutenção do quadro atual, em que as grandes empresas conseguem contornar os gargalos do APL de forma isolada, enquanto os fabricantes menores não se organizam e continuam sofrendo as pressões de custo de fornecedores e de clientes mais poderosos. Referências AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DO RIO GRANDE DO SUL — PÓLO RS. Análise competitiva preliminar da cadeia produtiva de móveis do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. ANDERSON, James C.; NARUS, James A. A model of distributor firm and manufacturer firm working partnerships. Journal of Marketing, v. 54, p. 42-58, Jan 1990. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — Abimóvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil. 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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 471-496, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 497 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional: uma análise em Matriz de Insumo-Produto Multirregional* Darlan Christiano Kroth** Ricardo Luis Lopes*** José Luiz Parré Aluno do Programa de Mestrado em Economia da Universidade Estadual de Maringá-PR Professor do Programa de Mestrado em Economia da Universidade Estadual de Maringá-PR Professor do Programa de Mestrado em Economia da Universidade Estadual de Maringá-PR Resumo O presente trabalho busca analisar os impactos da indústria moveleira da Região Sul do Brasil sobre suas economias regionais, utilizando-se, para isso, do instrumental de Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Nesse sentido, foi calculada, a partir da Matriz de Insumo-Produto nacional, a matriz multirregional da Região Sul do Brasil para o ano de 1999. Os principais resultados encontrados foram que há alto efeito de ligação do setor de móveis com os demais setores da economia, alto índice de multiplicador de produto, confirmando-se como setor-chave, no sentido “para trás” , para as economias estaduais do Paraná e de Santa Catarina. Outro resultado destacado é a forte correlação do setor da construção civil com o setor de móveis, indicando que os créditos direcionados para a compra de imóveis são bem sentidos pela indústria moveleira. Palavras-chave Indústria de móveis; Matriz de Insumo-Produto; economia regional aplicada. * Artigo apresentado no IX Encontro de Economia da Região Sul (Anpec-Sul), em Florianópolis, em julho de 2006. Artigo recebido em jul. 2006 e aceito para publicação em maio 2007. ** E-mail: [email protected] *** E-mail: [email protected] Os autores agradecem ao Professor Doutor Joaquim José Martins Guilhoto o fornecimento da Matriz Insumo-Produto Multirregional utilizada neste trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 498 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Abstract The objective of this paper is to determine the impact of the South region furniture industry of Brazil on its regional economies. For this purpose, Multiregional input-output tables from the Brazilian South region for 1999 are constructed. The results suggest the existence of a high linkage effect of the furniture sector with other sectors and a high output multiplier. This result confirms the furniture industry as a key sector in terms of backward linkage for the State economies of Paraná and Santa Catarina. Also, there is strong correlation between the civil construction and furniture sectors, what indicates that the furniture industry is sensitive to House loans. Key words Furniture industry; input-output models; applied regional economy. Classificação JEL: L68, C67, R15. 1 Introdução Nos últimos anos, cresceu o interesse nos estudos sobre o setor de móveis no Brasil, devido às transformações que essa indústria sofreu através do impacto da abertura comercial. Como maiores transformações, destacam-se o uso de novas tecnologias e o de novas matérias-primas. Outro aspecto que despertou interesse é o desempenho no comércio exterior, que cresceu a uma taxa média de 19% a.a. no período de 1991 a 2004. A Região Sul do Brasil possui significativa representatividade nessa indústria, pois conta com grande número de empresas, equivalente a mais de 40% do total do País, gerando cerca de 44% dos postos de trabalho do setor. Outra característica das empresas da Região é a forte participação no mercado externo, no qual respondem por mais de 80% das vendas nacionais (Abimóvel, 2005). A forma de localização dessas empresas, geralmente formando pólos ao redor de determinadas cidades, a exemplo dos pólos de Bento Gonçalves (RS), São Bento do Sul (SC) e Arapongas (PR), suscita vários estudos acerca da sua maneira de interação no que tange à exploração dos ganhos de competitividade, Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 499 devido à sua aproximação. Nesse sentido, a maioria dos estudos desses pólos está ligada à teoria de Arranjos Produtivos Locais (APLs). A forte presença desse tipo de indústria motiva ainda questionamentos acerca das externalidades criadas na economia local, como geração de emprego e renda, e em relação à existência de efeitos de ligação (linkage effect) para outras regiões próximas e ao efeito transbordamento (spillover effect) para outros setores. O presente trabalho tem como principal objetivo analisar esses efeitos e mensurar a capacidade dinamizadora do setor moveleiro para as economias regionais da Região Sul do Brasil. Para alcançar esses objetivos, lança-se mão da análise da Matriz de Insumo-Produto Multirregional para o ano de 1999. As inferências realizadas referem-se aos impactos de aumento e de redução na demanda final sobre o setor, bem como ao cálculo dos multiplicadores de produto e aos índices de ligações de Hirschmann-Rasmussen. O artigo divide-se em quatro seções, além desta Introdução, sendo que, na primeira, são expostas as características da indústria moveleira do País. Na seção seguinte, exploram-se os pólos da Região Sul do Brasil, bem como os aspectos das suas firmas. Na terceira seção, é demonstrada a metodologia da Matriz de Insumo-Produto, e, na quarta, os resultados obtidos. Para finalizar, apresentam-se as conclusões, bem como as limitações e as sugestões para próximos trabalhos. 2 Aspectos gerais da indústria moveleira Os estudos que tratam do setor moveleiro no Brasil ganharam maior relevo nos últimos anos, devido a dois fatores: (a) as mudanças ocorridas no setor através do processo de abertura comercial; e (b) as características da localização das fábricas, geralmente em regiões próximas, tornando o setor importante para as economias regionais, no que tange à geração de emprego e renda. Nesse panorama, os estudos que tratam do primeiro fator buscaram captar características gerais do setor, como a realização de diagnósticos e panoramas, dentre os quais destaca-se o de Gorini (1998), que faz ampla análise da indústria — talvez a mais completa já realizada —, sendo a mais citada nos trabalhos sobre o setor. Outros trabalhos desse grupo são os estudos de mercado do BNDES (2002) e de Valença, Pamplona e Souto (2002), além do de Marion Filho (1997). Nos trabalhos sobre o segundo fator, exploram-se as características intrínsecas de cada pólo regional, retratados, sobretudo, nos estudos de APLs, que analisam as características das firmas de cada região, na tentativa de extrair Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 500 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré peculiaridades e idéias que poderiam ser dinamizadas para outras regiões. Sobre esse assunto, encontra-se vasta literatura, sendo apresentados, neste artigo, os estudos referentes ao pólo de Bento Gonçalves (RS), feitos por Roese e Gitahy (2004), ao pólo de São Bento do Sul (SC), através da análise de Denk e Cario (2002), e ao pólo de Arapongas (PR), realizado por Camara et al. (2002). O trabalho de Serconi (2003) alia os três pólos. As transformações que sofreu o setor de móveis a partir da década de 80, impondo uma reestruturação das empresas nacionais, e que despertaram o interesse na pesquisa decorrem dos seguintes fatores: (a) o processo de abertura comercial, que possibilitou o contato com o mercado externo, tanto consumidor como de tecnologias; (b) o uso de novas matérias-primas — como a madeira reflorestada e a utilização do Médium Density Fiberboard (MDF)1 —; e (c) o aumento do mercado interno (o boom pós-Plano Real). O mercado externo possibilitou o acesso a novos mercados, pois, de acordo com dados de Valença, Pamplona e Souto (2002) e Abimóvel (2005), as exportações de móveis passaram de US$ 40 milhões em 1991 para US$ 941 milhões em 2004. Crescimento significativo, se comparado ao crescimento das vendas externas em nível nacional. Além da ampliação das vendas, o comércio exterior possibilitou o acesso a novas tecnologias, gerando a modernização do parque de máquinas e a incorporação dos ganhos de produtividade. Para Coelho e Berger (2004), o bom desempenho no comércio exterior decorreu, sobretudo, dos ganhos de competitividade (baixos custos da matéria-prima e da mão-de-obra e utilização de novas tecnologias) e, em menor grau, da ampliação do mercado mundial de móveis e da criação de novos mercados. Salienta ainda que, a partir de 1995, a competitividade perdeu ímpeto, devido à valorização do real. A utilização de novas matérias-primas, como o intenso uso de madeira reflorestada (pínus e eucalipto), além da inserção, na década de 90, do MDF, resultou na redução de custos e em melhoramentos no processo produtivo, como a intensificação da produção em série. A utilização do MDF ganhou força, quando, a partir de 1997, se instalaram as primeiras fábricas no Brasil. Atualmente, conforme dados do BNDES (2002), o setor conta com sete empresas, em São Paulo e no Paraná, que acabam abastecendo em 90% o mercado nacional. As matas reflorestadas aumentaram significativamente no período, em decorrência das exigências ambientais e do alto custo da madeira advinda do norte e do centro-oeste brasileiro, sobretudo de Mato Grosso, Pará e Amazonas (Correia et al., 2004). 1 MDF são painéis de madeira reconstituída, sob a forma de cavacos. Outros tipos são os painéis de madeira aglomerada (particle board) e as chapas de fibra ou chapas duras (hardboard). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 501 O terceiro fator de destaque é a ampliação do mercado interno, através da explosão de consumo no período pós-Plano Real, que trouxe a possibilidade de utilização da capacidade ociosa gerada com a ampliação do parque tecnológico, apontada anteriormente. Essas transformações, porém, não alteraram o perfil do setor, que, hoje, se apresenta ainda muito verticalizado2, intensivo em mão-de-obra, agregando pouco valor ao produto, formado por micro, pequenas e médias empresas, com perfil administrativo familiar e de capital nacional. Para Marion Filho (1997), essas características assemelham-se ao padrão internacional, ficando a maior diferença para a questão da verticalização. A baixa utilização de tecnologia por parte das empresas nacionais levanta duas questões. Uma decorre do baixo volume de crédito para a aquisição de novas máquinas, já que a maior parte das empresas são pequenas e enfrentam restrições de crédito nos bancos. A outra, apontada por Roese e Gitahy (2004), refere-se ao fato de que a utilização de tecnologia não é o principal diferencial nesse setor, pois, em nível geral, se trata de uma indústria de baixa intensidade tecnológica, ou seja, a tecnologia de ponta para a produção de móveis está disponível no mercado a qualquer empresa que dispuser de recursos para a sua aquisição. Isso faz com que o diferencial competitivo das empresas esteja menos na tecnologia de produção, concentrando-se no design, nas estratégias de comercialização e no investimento em marketing. A Abimóvel (2005) estima que o setor moveleiro do Brasil seja constituído por 16.112 empresas, respondendo por 189.372 empregos.3 A maior parte da produção, 90%, é gerada nas Regiões Sudeste e Sul do País, abarcando 70% dos postos de trabalho. A característica de localização dessas empresas deu origem a pólos moveleiros em alguns estados, a exemplo dos três da Região Sul, já citados, e dos pólos de Mirassol e Votuporanga, em São Paulo; Ubá, em Minas Gerais; e Linhares, no Espírito Santo. Esses pólos buscam especializar-se em determinados tipos de produtos, para obterem vantagens competitivas e explorarem novos nichos de mercado. A própria diversidade que marca a origem e desenvolvimento dos pólos moveleiros no Brasil tornou possível a existência de padrões de especialização regionais que contemplam os diferentes segmentos da indústria de móveis. Assim, verifica-se uma diferenciação acentuada entre esses pólos regionais tanto com relação aos tipos de móveis fabricados e 2 Segundo Marion Filho (1997), a verticalização ocorre porque, na mesma firma (unidade de produção), convivem inúmeros processos tecnológicos — como secagem, usinagem, acabamento e embalagem —, e, em muitas, ainda são realizados o transporte e a comercialização de varejo. A integração vertical é mais freqüente nas médias e nas grandes empresas. 3 Dados extraídos da RAIS 2003 (Brasil, s. d.). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 502 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré nichos de mercado como quanto aos níveis de capacitação produtiva e inovativa. (Vargas; Alievi, 2000, p. 15). O mercado consumidor de móveis, de acordo com Gorini (1998), é renda-elástico, variando positivamente com a renda da população. Por estar bastante associado às variações da renda, o consumo é bastante dependente do comportamento da economia, sobretudo do setor de construção civil. Cerca de 1% a 2% da renda (após os impostos) são gastos com móveis. Outros fatores que influenciam a demanda por móveis são as mudanças no estilo de vida da população, os aspectos culturais, o ciclo de reposição e o investimento em marketing, que, para muitos autores, é muito baixo nessa indústria. As mudanças no estilo de vida da população, aliadas às transformações na indústria moveleira, a partir da década de 80, como novas tecnologias e novas matérias-primas, foram responsáveis pela geração de ampla gama de tipos de móveis, bem como dos insumos utilizados. A indústria de móveis caracteriza-se pela reunião de diversos processos de produção, envolvendo diferentes matérias-primas e uma diversidade de produtos finais, e pode ser segmentada principalmente em função dos materiais com que os móveis são confeccionados (madeira, metal e outros), assim como de acordo com os usos a que são destinados (em especial, móveis para residência e para escritório). Além disso, devido a aspectos técnicos e mercadológicos, as empresas, em geral, são especializadas em um ou dois tipos de móveis, como, por exemplo, de cozinha e banheiro, estofados, entre outros. (Gorini, 1998, p. 2). Esses novos produtos, que têm como características preços menores, facilidades na montagem e/ou desmontagem, modelos variados e diminuição do tempo de vida, possibilitaram, segundo Coelho e Berger (2004) e Camara et al. (2002), um mercado de massas para o setor de móveis, com ampliação das demandas interna e externa. Outro fator que contribuiu para a formalização do mercado de massas foi o crescimento de redes de lojas de varejo, a exemplo de Casas Bahia, Ponto Frio, dentre outras, que acabaram ofertando os produtos por prazos mais extensos, facilitando o consumo. Porém, segundo Roese e Gitahy (2004), essa configuração das redes de lojas fez aumentar os preços dos móveis para o consumidor final, ao passo que reduziu o preço para os fabricantes, fato este devido ao aumento da competição no setor e ao maior poder de barganha dessas redes. O mercado internacional de móveis gira em torno de US$ 150 bilhões, conforme dados extraídos do International Trade Center (UNCTAD, 2006), dos quais cerca de 65% são produzidos pelos países desenvolvidos, com destaque para Itália, Alemanha, Canadá e EUA — esses países são também os maiores exportadores e importadores. Os 21% restantes ficam para os países emergen- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 503 tes, com destaque para China4 — o qual é o maior exportador mundial de móveis, com US$ 12,6 bilhões em 2004 —, Polônia, México e Malásia. O Brasil, apesar de melhorar seu saldo exportador, ainda tem uma participação abaixo de 1% desse comércio. De acordo com Garcia e Motta (2006), os principais mercados das empresas brasileiras atualmente são EUA (40%), Reino Unido (9,3%) e Países Baixos (5,1%), e os produtos são, sobretudo, dormitórios e salas de jantar. A Argentina, até o ano 2000, era o segundo maior mercado de destino das exportações brasileiras, respondendo por 16% das exportações, mas, com a crise econômica de 2001, o país deixou de importar significativamente. Para conquistar maior espaço no comércio exterior, a indústria nacional de móveis, segundo Pimentel (2005), necessita inovar na área de design de seus produtos, bem como ampliar os ganhos de escala na produção. A partir do conhecimento das características do setor, explora-se, na próxima seção, a configuração dos pólos moveleiros da Região Sul do País e sua relação com a economia local. 3 Os pólos moveleiros da Região Sul do Brasil A indústria moveleira possui forte presença na Região Sul do Brasil, na qual estão estabelecidas 6.531 empresas, gerando cerca de 84.753 postos de trabalho, conforme dados da Tabela 1. Isso equivale a 41% e 45% do total nacional respectivamente. As empresas localizadas nessa região fecham todo o círculo da cadeia produtiva, possuindo empresas que vão desde a produção de matéria-prima, como madeira reflorestada (pínus e eucalipto) e fabricação de MDF, até empresas de bens de capital, na produção de máquinas para o setor. Outro fator de destaque da indústria moveleira regional é a boa participação nas exportações: os três estados, juntos, são responsáveis por mais de 80% das exportações brasileiras do setor, conforme apresentado na Tabela 2. O bom desempenho dessas empresas no mercado externo, sobretudo as do Rio Grande do Sul e as de Santa Catarina, decorre da busca por especialização nesse mercado, aliando qualidade dos produtos e baixo preço. O interesse pelo comércio exterior surgiu na década de 80, quando o mercado interno enfrentava restrições. 4 De acordo com Kroth (2003) e Correia et al. (2004), a China é um dos principais importadores de madeira do País, assim como os países desenvolvidos, os quais acabam a beneficiando, reexportando móveis. Nesse aspecto, o Brasil perde mercado para seus produtos de maior valor agregado, ficando apenas como supridor de matéria-prima. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 504 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Tabela 1 Número de empresas e de empregos do setor moveleiro na Região Sul e no Brasil — 2005 DISCRIMINAÇÃO EMPRESAS EMPREGOS Paraná ................................. 2 103 28 217 Santa Catarina ..................... 1 961 25 566 Rio Grande do Sul ............... 2 467 30 970 Região Sul .......................... 6 531 84 753 Brasil .................................... 16 112 189 372 FONTE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — AbiFONTE: móvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil: informações gerais. FONTE: São Paulo, 2005. 75p. Disponível em: <http://www.abimovel.com>. Acesso FONTE: em: 19 nov. 2005. Tabela 2 Exportações do setor moveleiro realizadas pelos estados da Região Sul — 2004 COLCHÕES (US$) TOTAL (US$) % DO TOTAL DO BRASIL Santa Catarina ....... 17 382 206 409 462 260 144 652 426 989 118 45,0 Rio Grande do Sul 45 776 347 230 335 923 407 366 276 519 636 29,0 Paraná .................... 30 066 412 108 410 91 934 085 9,7 ESTADOS ASSENTOS (US$) MÓVEIS (US$) 61 759 263 FONTE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — AbiFONTE: móvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil: informações gerais. FONTE: São Paulo, 2005. 75p. Disponível em: <http://www.abimovel.com>. Acesso FONTE: em: 19 nov. 2005. O trabalho de Serconi (2003) demonstra que há uma grande interação entre a indústria e instituições, como universidades, centros tecnológicos e de treinamento, que acabam colaborando na busca por inovações e na melhoria da capacitação da mão-de-obra nessa indústria. A grande presença desse tipo de empresa na região decorre, segundo Marion Filho (1997), das características da sua colonização nas décadas de 50 Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 505 e 60, dado que a região possuía vasta floresta de araucária — madeira propícia para a produção de móveis —, aliada à experiência dos colonizadores (italianos e alemães) e à baixa necessidade de capital. Atualmente, a indústria está organizada através de pólos moveleiros: regiões que concentram grande número de empresas, fornecedores e prestadores de serviços ligados ao mobiliário. A proximidade dessas firmas gera ganhos de competitividade para as mesmas, pois reduz seus custos logísticos, havendo maior disponibilidade de matéria-prima e de mão-de-obra especializada, além da boa localização para os canais exportadores do Mercosul. As principais regiões produtoras são apontadas no Quadro 1. Quadro 1 Principais pólos moveleiros em cada estado da Região Sul do Brasil — 1999 ESTADOS Paraná Santa Catarina Rio Grande do Sul PÓLOS MOVELEIROS Arapongas Curitiba Londrina São Bento do Sul Rio Negrinho Bento Gonçalves Flores da Cunha Caxias do Sul Gramado Canela FONTE: VALENÇA, A. C. V.; PAMPLONA, L. M. P.; SOUTO, S. W. Os novos desafios para a indústria moveleira no Brasil. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 15, p. 83-96, mar. 2002. A grande concentração de empresas e o bom desempenho no comércio exterior acabam gerando efeitos de ligação e transbordamento, fazendo com que outros setores e regiões também sejam beneficiados com o desenvolvimento dessa indústria. Essa forma de organização é muito próxima das características encontradas nos APLs, que, de acordo com Schmitz (1997), consistem num grande número de pequenas e médias empresas de um mesmo setor, localizadas geograficamente próximas, contemplando vários elos da cadeia produtiva, como fornecedores, prestadores de serviços, empresas de máquinas, presença de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 506 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré mão-de-obra especializada, o que acaba gerando externalidades positivas para todas as empresas da região. Em APLs mais desenvolvidos, a existência da cooperação entre as empresas possibilita a troca de informações, favorecendo a disseminação de novas tecnologias de produção. Nesse sentido, muitos dos estudos desses pólos buscaram identificar a existência dessas características. Nesse sentido, os trabalhos de Marion Filho (1997) e Roese e Gitahy (2004) apontaram a existência de dois pólos no Rio Grande do Sul: Bento Gonçalves e Gramado. O Estado é o segundo maior produtor de móveis do País, representando, em média, 20% do valor da produção nacional. Apresenta cerca de 2.467 empresas, sendo sua produção direcionada predominantemente para o mercado interno (18% no próprio Estado e 75% em outros estados). As exportações do Estado situam-se em torno de 7% da sua produção total, tornando-o o segundo maior exportador do País (Tabela 2). Os pólos gaúchos concentram-se na produção de móveis residenciais — principalmente cozinhas e dormitórios — e para escritório, sendo que o pólo de Bento Gonçalves está mais voltado para a fabricação de móveis retilíneos seriados (de madeira aglomerada, chapa dura e MDF). De acordo com Garcia e Motta (2006) e com o Sindicato das Indústrias do Mobiliário (2006), somente a Cidade de Bento Gonçalves emprega cerca de 8.500 pessoas — entre empregos diretos e indiretos — em 265 empresas formais, com faturamento anual de R$ 1,2 bilhão. Com esses números, a região de Bento Gonçalves caracteriza-se como um sistema industrial moveleiro importante tanto para o Estado do Rio Grande do Sul quanto para o Brasil. O Estado de Santa Catarina possui mais de 1.900 fábricas de móveis, empregando cerca de 25,5 mil pessoas, sendo o maior estado exportador desde 1994. O direcionamento para o mercado externo, segundo Denk e Cario (2002), decorreu das dificuldades do mercado interno na década de 80, além de ser um período em que surgiram novas linhas para apartamentos, rejeitando os móveis de estilo colonial — produto-padrão da região. Outros fatores que contribuíram para a busca de novos mercados foram o acirramento da concorrência entre pólos e a utilização de madeira reflorestada na fabricação, o que favoreceu a redução dos preços de móveis, ganhando competitividade externa, sobretudo para o Leste Europeu. Segundo Marion Filho (1997), em Santa Catarina, a indústria moveleira está mais concentrada nas microrregiões Planalto de Canoinhas (especialmente nos Municípios de São Bento do Sul, Rio Negrinho, Campo Alegre e Mafra), Colonial de Blumenau (Blumenau, Brusque e Indaial) e Colonial de Joinvile (Joinvile e Jaraguá do Sul), além da existência de pequenos pólos na região oeste (Pinhalzinho, São Lourenço e Coronel Freitas). Nesse aspecto, a indústria moveleira catarinense espalha-se por todo o Estado. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 507 Para Denk e Cario (2002), o pólo moveleiro de São Bento do Sul possui várias características de um APL, como as apontadas anteriormente, mas falta-lhe ainda a principal característica, ou seja, a cooperação. A região possui, então, 350 empresas, empregando 11.000 funcionários, e constitui o maior centro exportador do País, com quase 40% do total das exportações nacionais, confeccionando móveis para uso residencial (cerca de 80% da produção). Lá existem empresas exclusivamente exportadoras, especialmente micro e pequenas, que trabalham, em sua maior parte, sob encomenda. Já o Paraná possui cerca de 2.100 empresas, empregando mais de 28.000 funcionários (Tabela 1). A região de Arapongas constitui-se no maior pólo, mas também se destacam as regiões de Curitiba e Londrina. O Estado ainda concentra o maior número de empresas produtoras de MDF, e, conforme estudo do BNDES (2002), do total de nove empresas no País, conta com sete, possibilitando boa oferta de matéria-prima para o Estado e para a região. Conforme Camara et al. (2002), no pólo de Arapongas, estão presentes cerca de 140 empresas, gerando 6.100 empregos. A produção destina-se, sobretudo, ao mercado interno, mas é responsável por cerca de 40% das exportações do Estado. Destaca-se, ainda, que “[...] o crescimento do pólo acabou estimulando a criação de empresas em cidades vizinhas que se beneficiaram das vantagens locacionais: fornecimento de matéria-prima, máquinas, mão-de-obra qualificada, entre outros fatores nos últimos 20 anos” (Camara et al., 2002, p. 11). Para Garcia e Motta (2006), as empresas do pólo de Arapongas dedicam-se à produção em massa, portanto, voltam-se para o mercado de móveis populares retilíneos (quartos, cozinhas e racks) e tubulares e destacam-se no segmento de estofados. Ali existem empresas de todas as dimensões, mas as médias e as grandes conseguem aplicar mais tecnologia no processo produtivo e exportam a maior parte da produção, sendo responsáveis por 7% das exportações totais de móveis do País. Verificando-se a forte presença da indústria moveleira na Região Sul e a importância dos pólos nesses estados, é relevante buscar captar os efeitos reais dessa indústria sobre a Região, no intuito de mensurar a capacidade de geração de emprego e renda e de propor políticas de suporte e desenvolvimento. O estudo desses efeitos dar-se-á através de uma Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Na seção seguinte, apresentam-se a metodologia utilizada e, em seguida, os resultados encontrados. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 508 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré 4 A Matriz de Insumo-Produto Multirregional De acordo com Miller e Blair (1985), a Matriz de Insumo-Produto é a representação de dados econômicos de uma região e/ou de um país, em um determinado período, resumindo o fluxo de produção, em termos monetários, de cada setor da economia. Ou seja, expõe todos os insumos necessários para a produção de determinado produto de um setor — mobiliário, por exemplo —, bem como todas as vendas desse segmento para os demais setores da economia. Compõem ainda a Matriz o grupo Demanda final, formado pelo consumo das famílias, do Governo e pelas exportações, e o grupo Valor adicionado, composto pelos salários, pelo excedente operacional bruto, além de impostos e importações. Na Figura 1, é representada a Matriz de Insumo-Produto. Onde: A=Z/X (1) X = (I-A)-1Y (2) A equação (1) representa o coeficiente técnico, que significa, em termos relativos, quanto a demanda do produto do setor i, representa da demanda total do setor. A equação (2) evidencia a Matriz Inversa de Leontief5 ((I - A)-1 ), que representa os efeitos diretos e indiretos do produto da economia, ou seja, se aumentar a demanda final, Y, para o setor i, quanto essa demanda afetará a produção de todos os demais setores da economia. É na análise desses efeitos na economia que se dá a relevância dos estudos utilizando a Matriz de Insumo-Produto, pois possibilita conhecer quanto cada setor afeta a economia como um todo. Esse efeito é devido ao fato de que os setores da economia estão ligados entre si: se o setor i elevar sua produção, necessitará de maiores insumos do setor j, que, por sua vez, demandará mais insumos do setor k, e assim sucessivamente. Conforme Miller (1998), a análise regional parte dessa concepção, ou seja, do interesse de conhecer como os setores de cada região e/ou estado são afetados, bem como de verificar a ocorrência de efeitos, ligações e/ou transbordamentos entre regiões e setores do País, efeitos estes não percebidos a partir da análise de uma matriz nacional. 5 É chamada assim em homenagem a Wassily Leontief, criador da estrutura de Matriz de Insumo, o qual recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1973, devido a esse trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 509 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... Figura 1 Representação da Matriz de Insumo-Produto Z DF X Z = Matriz de Transações Interindústrias DF = Demanda Final X = Produção Final VA = Valor Adicionado VA X NOTA: Nas linhas, são expostas as vendas de produto final de cada setor; já nas colunas, são expostos os insumos demandados pelo setor. Nesse aspecto, caso haja aumento da demanda final na economia, esse modelo possibilita conhecer qual região e quais setores serão mais afetados. Existem dois métodos para se chegar a uma matriz regional: (a) Método da Matriz de Insumo-Produto Inter-regional (IRIO); e (b) Método da Matriz de Insumo-Produto Multirregional (MRIO). Os dois métodos são semelhantes na forma de sua apresentação, mas se diferenciam quanto à metodologia de construção dos dados da matriz. A Figura 2 mostra, de forma simplificada, duas regiões, L e M. Figura 2 Representação da matriz regional A LL AM L A LM AMM DF L D FM X L XM NOTA: ALL = transações interindústrias da região L; ALM = vendas da região L para a região M; AML = vendas da região M para a região L; AMM = transações interindústrias da região M; DFL e DFM = demandas finais para as regiões L e M respectivamente; e XL e XM = produção total para as regiões L e M respectivamente. Nessa representação, a matriz dos coeficientes técnicos é dividida, agora, em quatro partes: (a) ALL, representando as transações interindústrias dentro da região L; (b) ALM, representando as vendas da região L para a região M; (c) matriz AML, que expõe as vendas da região M para a região L; e (d) AMM, que Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 510 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré apresenta as transações interindústrias dentro da região M. A demanda final para cada região, L e M, é representada pelas matrizes DFL e DFM respectivamente, assim como XL e XM representam a produção total para as devidas regiões. A diferença essencial consiste em que o método IRIO requer informações setoriais e espaciais sobre a origem e o destino das transações interindustriais, o que o torna um trabalho de pesquisa de dados muito difícil e custoso. Mantendo a estrutura da metodologia anterior, a forma do MRIO simplifica a obtenção dos dados, pois os mesmos são obtidos diretamente, através da matriz nacional, a partir de estimativas para cada região. Nesse aspecto, foi utilizada, no presente trabalho, a matriz multirregional desenvolvida por Guilhoto e Sesso Filho (2005). A matriz está apresentada na forma de quatro regiões — através do método MRIO anteriormente exposto —, que são: Restante do Brasil (RBR), Paraná (PR), Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS). A forma gráfica é apresentada na Figura 3. Figura 3 Representação do método MRIO RBRRBRB RBRRBPR RBRRBSC RBRRBRS PRPRRB PRPRPR PRPRSC PRPRRS SCSCRB SCSCPR SCSCSC SCSCRS RSRSRB RSRSPR RSRSSC RSRSRS NOTA: Cada quadrante está na forma da Figura 2. As inferências da matriz serão feitas considerando-se três aspectos: (a) choques na demanda final; (b) multiplicadores de produto; e (c) verificação de setores-chave. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 511 Quanto ao primeiro aspecto, que consiste na forma tradicional de análise da Matriz de Insumo-Produto, a demanda final de um setor representativo de uma região é alterada, e verificam-se os impactos ocorridos nas outras regiões, bem como na própria região que recebeu o choque. Esses choques geralmente são derivados de aumento e/ou diminuição dos gastos do Governo, das exportações e/ou do consumo das famílias. Os multiplicadores de produto, de acordo com Miller e Blair (1985), informam qual o valor total de produção em todos os setores da economia que é necessário para satisfazer o aumento de uma unidade monetária na demanda final pelo produto do setor i. Através desse índice, podem-se captar os efeitos diretos e indiretos, ou seja, quanto o setor i precisa produzir para satisfazer o aumento na sua demanda final e ainda para atender à demanda dos demais setores. A equação do multiplicador de produção é apresentada a seguir: n O j = ∑ bij (3) j =1 onde bij = cada elemento da matriz (I - A) -1 . O último aspecto refere-se à localização de setores-chave para a economia, que consiste, segundo Guilhoto et al. (1994), em uma forma de verificar quais setores têm maior poder de encadeamento dentro da economia, ou seja, quanto um setor demanda dos outros setores e quanto é demandado por eles. A localização desses setores pode ser feita através dos índices de ligação “para trás” (backward linkages) e “para frente” (forward linkages), que podem ser calculados através da metodologia de Hirschmann-Rasmussen, exposta a seguir: [ ] U j = B. j n B* (ligações “para trás”) (4) U i = [Bi. n ] B * (ligações “para frente”) (5) onde B=(I - A)-1, e B.j e Bi = somatório das colunas e linhas de B, respectivamente, B* = média de todos os elementos de B. O interesse nesses dois índices é a possibilidade de identificação dos setores mais significativos de uma região, que, se estimulados, poderão conduzir a um melhor desempenho do produto, do que se fossem estimulados outros setores que apresentaram baixos índices. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 512 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Dentro desse arcabouço, o objetivo é apontar os impactos que o setor moveleiro da Região Sul do Brasil gera na economia regional, bem como verificar se o mesmo se apresenta como um setor-chave para esses estados. Na próxima seção, demonstram-se os resultados obtidos. 5 Análise dos resultados Antes de iniciar as análises através dos métodos enunciados na seção anterior, busca-se verificar, através da matriz de coeficientes técnicos, quais setores são os mais importantes no fornecimento de insumos para o setor moveleiro de cada estado e quais setores são os maiores demandantes dos produtos finais. Verifica-se, através do Quadro 2, que, entre os setores demandados, há uma convergência entre os três estados da Região Sul, ou seja, todos demandam mais produtos dos setores agropecuária e madeira e mobiliário. A explicação para os setores mais demandados deve-se ao fato de que a agropecuária agrega o setor extrativista (madeira), e que o setor madeira e mobiliário se compõe de serrarias e fábricas de MDF, sendo seus produtos os maiores insumos da indústria moveleira. Já o setor química é composto pelas indústrias de solventes, corantes e tintas. Quanto à estrutura de demanda das regiões, o detalhe está na identificação da origem dos insumos, pois, enquanto o Rio Grande do Sul demanda dos setores da sua própria economia, Paraná e Santa Catarina demandam os insumos de agropecuária e química da região RBR. Deve-se destacar que, na estrutura de demanda do Rio Grande do Sul, a presença do setor comércio pode estar indicando que o mesmo adquire produtos de fora do Estado, intermediando, assim, a matéria-prima para a indústria de móveis gaúcha. A leitura dos coeficientes pode ser feita da seguinte forma: para a indústria de móveis do Paraná, a cada R$ 1,00 de insumo gasto na produção, R$ 0,14 são gastos no setor agropecuária; R$ 0,12, no setor madeira e mobiliário; e R$ 0,06, no setor de produtos químicos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 RS SC PR ESTADOS Quadro 2 Agropecuária Madeira e mobiliário Comércio Agropecuária Madeira e mobiliário Química Agropecuária Madeira e mobiliário Química SETORES DEMANDADOS 0,10620 0,08593 0,04691 0,10541 0,10047 0,04526 RBR SC RBR RS RS RS 0,13866 0,12007 0,06404 COEFICIENTES RBR PR RBR ESTADO/ /REGIÃO Madeira e mobiliário Construção civil Indústrias diversas Madeira e mobiliário Construção civil Indústrias diversas Madeira e mobiliário Construção civil Materiais elétrico/eletrônico SETORES COMPRADORES RS RS RS SC SC SC PR PR PR ESTADO/ /REGIÃO Índices de coeficientes técnicos do setor moveleiro de cada estado da Região Sul do Brasil — 1999 0,08593 0,02412 0,00808 0,10047 0,02319 0,01105 0,12007 0,01374 0,01199 COEFICIENTES A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 513 Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 514 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Pelo lado dos setores que compram móveis, verifica-se a predominância dos setores madeira e mobiliário e construção civil de cada estado. Esse resultado merece dois comentários: o primeiro relaciona-se ao fato de que, nesta análise, não estão computadas as vendas para o mercado externo, o que pode diluir essa maior participação dos setores de cada estado; a segunda ressalva é que o principal setor comprador — madeira e mobiliário — integra, no seu grupo, as empresas de serraria e de MDF, podendo estar, assim, gerando um viés, ou seja, pode estar indicando a própria compra de insumos pelas empresas de móveis. Considerando o viés comentado, pode-se argumentar que o setor construção civil é o principal demandante de móveis, indicando a forte relação entre os dois setores. A próxima análise é feita com base no primeiro aspecto exposto na metodologia, que se refere aos choques de demanda nos setores específicos, e, em seguida, verifica onde foram gerados os maiores impactos. Nesse sentido, realizam-se três choques: um positivo e outro negativo na demanda final do setor de móveis de cada região e outro positivo no setor construção civil, na tentativa de evidenciar a existência, ou não, da correlação apontada acima. O primeiro choque, então, é um aumento da demanda final, através de exportações e do consumo doméstico, na ordem de R$ 1 bilhão, que representa 10% da produção nacional de móveis. Os valores encontrados são expostos na Tabela 3. Através desse exercício, evidencia-se que o setor de móveis presente na Região Sul do Brasil é pouco interligado — baixo efeito transbordamento — entre os estados, ou seja, o aumento da demanda por móveis num estado específico é pouco sentido nos outros. Nesse aspecto, o Paraná é o estado que mais influencia a produção da Região, gerando aumento de 0,21% em Santa Catarina, 0,29% no Rio Grande do Sul, e 0,17% na RBR. Por outro lado, quando se analisam os impactos desse choque sobre a economia do estado que recebeu o impulso, a importância da indústria moveleira na região é verificada. Ao estimular o setor de móveis de cada estado, ocorre uma variação de 2,84% na produção estadual de Santa Catarina e de 1,75% e 1,51% nos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul respectivamente. A maior performance do estado catarinense talvez esteja relacionada ao fato de sua indústria moveleira ser mais representativa para sua economia (Crise... 2006). Quando se analisam os impactos sobre o produto nacional, o choque é mais eficiente na região RBR, gerando um aumento de 0,40% no produto. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 515 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... Tabela 3 Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido ao choque positivo na demanda final de móveis da ordem de R$ 1 bilhão, nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999 DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ..... Paraná ........................ Santa Catarina ........... Rio Grande do Sul ...... Brasil .......................... DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ..... Paraná ........................ Santa Catarina ........... Rio Grande do Sul ...... Brasil .......................... RESTO DO BRASIL PARANÁ No Setor Na Região No Setor Na Região 20,30440 0,13270 0,09991 0,09448 - 0,44747 0,15580 0,12785 0,10590 0,40374 0,16428 41,52175 0,40174 0,18655 - 0,17151 1,75420 0,20524 0,28555 0,28767 SANTA CATARINA RIO GRANDE DO SUL No Setor Na Região No Setor Na Região 0,05774 0,19693 45,48359 0,12779 - 0,11386 0,18977 2,84335 0,11931 0,22680 0,01127 0,01536 0,01620 72,13797 - 0,03515 0,05409 0,05135 1,51216 0,14823 FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional. O segundo choque vai no sentido contrário da proposta anterior, ou seja, avalia quais seriam os impactos no setor e para as economias estaduais de uma redução da demanda externa, por exemplo, de R$ 500 milhões, gerada por uma valorização cambial. Valor este que representa, aproximadamente, 50% das exportações nacionais de móveis e 60% das vendas externas dos três estados da Região (Tabela 4). Analisando a Tabela 4, compreende-se que os impactos sobre o setor de móveis e também sobre as respectivas economias regionais, em geral, são menores (em termos proporcionais), quando ocorre o choque negativo. Uma explicação para isso poderia estar no fato de que as empresas da Região Sul do Brasil direcionam sua produção para o mercado interno, concorrendo com as demais empresas da região RBR, quando encontram restrições no mercado internacional. Com esse choque, a economia gaúcha é a mais penalizada, sofrendo queda de 0,76% na sua produção estadual; já em Santa Catarina, a queda fica em 0,11%. Para o Paraná, o choque negativo não é sentido, pelo contrário, sua economia responde positivamente. Uma das explicações para esse efeito deve-se ao fato de que o Estado tem uma participação pequena nas exportações, se comparada com as de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 516 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Tabela 4 Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido ao choque negativo nas exportações de móveis da ordem de R$ 500 milhões, nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999 DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ...... Paraná ........................ Santa Catarina ........... Rio Grande do Sul ...... Brasil .......................... DISCRIMINAÇÃO RESTO DO BRASIL PARANÁ No Setor No Estado No Setor No Estado 0,17484 0,09854 0,07420 0,07017 - 0,24076 0,11570 0,09494 0,07864 0,22147 0,08804 -7,57287 0,21529 0,09997 - 0,09191 0,04566 0,10999 0,08833 0,08861 SANTA CATARINA No Setor Restante do Brasil ..... 0,02892 Paraná ........................ 0,09864 Santa Catarina ........... -11,27438 Rio Grande do Sul ...... 0,06401 Brasil .......................... - No Estado 0,05703 0,09505 -0,10673 0,05976 0,05344 RIO GRANDE DO SUL No Setor 0,02892 0,09864 56,95639 -62,02430 - No Estado 0,05703 0,09505 2,96039 -0,75910 0,11236 FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Um resultado que chama atenção é a variação da produção catarinense de móveis (56,96%), quando ocorre o choque negativo na indústria gaúcha. Esse resultado pode estar indicando que a indústria de Santa Catarina consegue captar a parcela do mercado externo perdida pela indústria do Rio Grande do Sul, elevando sua produção. O terceiro choque refere-se a um acréscimo da demanda final no setor de construção civil, no volume de R$ 1 bilhão, acréscimo este que pode ocorrer através de uma ampliação de crédito para as famílias por parte do Governo6, ou dos próprios gastos do Governo Estadual, por exemplo, através de construção de casas populares. A Tabela 5 expõe os índices obtidos. Os resultados demonstram a grande correlação desse setor com o de móveis: além de grandes variações na produção do setor em cada região, ocor- 6 Foi aprovado, para o ano de 2006, um pacote de R$ 18 bilhões de crédito imobiliário, conforme Pacote de R$ 18,7 bi para a habitação: Governo incentiva a compra da casa própria e a construção civil estimulando o aumento de crédito pelos bancos e zerando a alíquota do IPI (2006). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 517 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... rem, ainda, transbordamentos, quando o choque é realizado para a região RBR. Nesse caso, a produção do setor moveleiro dessa região cresce 20,57%, enquanto os Estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul são favorecidos com ganhos na produção do setor de 8,43%, 7,96% e 7,89% respectivamente. Esse transbordamento pode ser resultado do fato de a indústria do resto do País não conseguir atender ao aumento da demanda, cabendo aos estados da Região Sul cobrir essa falha. Tabela 5 Variação percentual da produção do setor de móveis e da produção estadual, devido ao choque positivo no setor da construção civil da ordem de R$ 1 bilhão, nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999 DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ...... Paraná ........................ Santa Catarina ........... Rio Grande do Sul ...... Brasil .......................... DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ...... Paraná ........................ Santa Catarina ........... Rio Grande do Sul ...... Brasil .......................... RESTO DO BRASIL PARANÁ No Setor Na Região No Setor Na Região 20,56692 8,42618 7,95781 7,88773 - 4,77403 1,71848 2,19450 1,11594 4,34462 0,06087 5,00639 0,08031 0,04946 - 0,22742 2,19131 0,64750 0,38290 0,38621 SANTA CATARINA RIO GRANDE DO SUL No Setor Na Região No Setor Na Região 0,01518 0,02600 5,00333 0,01761 - 0,08833 0,17150 5,86786 0,08086 0,32066 0,05187 0,06130 0,05872 13,05412 - 0,19713 0,28313 0,29470 3,27820 0,43876 FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Quando o choque é gerado em cada estado da Região Sul individualmente, os ganhos são menores para o setor moveleiro dos Estados de Santa Catarina e Paraná em comparação com a conjectura anterior. Quando esse choque é direcionado inteiramente ao Paraná, a indústria moveleira amplia sua produção em 5%, mesma variação encontrada para Santa Catarina; já o Rio Grande do Sul sofre o maior impacto, 13,05%. A menor performance de Santa Catarina e Paraná pode ser devida à menor participação do setor construção civil nesses estados do que na economia do Rio Grande do Sul e do resto do Brasil, por exemplo. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 518 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré Outra característica dessa situação é que não ocorrem transbordamentos para outro estado da Região, o que pode ser resultante de que cada estado consegue suprir a sua demanda interna por móveis, conforme já apontado anteriormente. A próxima análise que é feita do MRIO se refere aos multiplicadores de produto do setor moveleiro para as economias nacionais e regionais. A Tabela 6 apresenta os índices encontrados. Tabela 6 Multiplicadores de produto, efeitos diretos, indiretos e totais para os estados da Região Sul e do resto do Brasil — 1999 EFEITOS DIRETOS DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ................ Paraná .................................. Santa Catarina ...................... Rio Grande do Sul ................ DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ................ Paraná .................................. Santa Catarina ...................... Rio Grande do Sul ................ Nacionais Regionais 1,1189 1,1368 1,1120 1,0943 1,1189 1,1368 1,1120 1,0943 EFEITOS INDIRETOS Nacionais Regionais 0,8198 0,9927 0,8109 0,6298 0,7517 0,1824 0,1738 0,3466 EFEITOS TOTAIS DISCRIMINAÇÃO Restante do Brasil ................ Paraná .................................. Santa Catarina ..................... Rio Grande do Sul ................ Nacionais Regionais 1,9387 2,1295 1,9229 1,7241 1,8706 1,3192 1,2858 1,4409 FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Os índices mostram que o setor moveleiro tem poder significativo para gerar impactos positivos tanto em suas economias locais como na economia nacional. Nesse sentido, dos setores moveleiros da Região Sul, o Estado do Paraná é o que mais consegue afetar a economia nacional. Ou seja, para cada R$ 1,00 de aumento na sua demanda, gera R$ 2,13 de produto, sendo que Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 519 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... R$ 1,14 se refere ao efeito direto — quanto o setor de móveis precisa produzir para atender ao aumento de R$ 1,00 na sua demanda, mais o que os outros setores lhe irão demandar para provê-lo com insumos —, e R$ 0,99, ao efeito indireto — quanto os demais setores produzirão para suprir com insumos o setor de móveis do Paraná, quando sua demanda é incrementada em R$ 1,00. Quando são focalizados os efeitos regionais, o estado da Região Sul que mais se destaca é o Rio Grande do Sul, onde, para cada R$ 1,00 de aumento na demanda de móveis, se gera R$ 1,44 de produto na sua economia, que decorre de R$ 1,09 do efeito direto e de R$ 0,35 do efeito indireto. Como último exercício do trabalho, calcularam-se os índices de Hirschmann-Rasmussen, “para frente” e “para trás”, no sentido de descobrir se a indústria moveleira da Região Sul se apresenta como um setor-chave para as economias regionais. Conforme Guilhoto et al. (1994), para um setor ser considerado “chave” na região, o índice calculado deve ser maior que 1; nesse sentido, pode-se classificar quais setores apresentam o maior índice. Na Tabela 7, são apresentados os índices obtidos através das equações (4) e (5). Tabela 7 Índices Hirschmann-Rasmussen, “para frente” e “para trás”, do setor de móveis nos estados da Região Sul e no resto do Brasil — 1999 DISCRIMINAÇÃO ÍNDICE “PARA TRÁS” ÍNDICE “PARA FRENTE” Restante do Brasil ............... Paraná ................................. Santa Catarina ..................... Rio Grande do Sul ............... 1,03359 1,13530 1,02518 0,91916 0,64762 0,66853 0,65933 0,62216 FONTE: Estudo dos choques na Matriz de Insumo-Produto Multirregional. Os índices encontrados demonstram que o setor de móveis tem maior influência no sentido “para trás” da economia, ou seja, por demandar insumos de vários setores, apresenta-se, nos estados do Paraná e Santa Catarina, como um setor-chave, assim como na região RBR. Ressalta-se, porém, que, apesar de se apresentar como setor-chave, não chega a ser o principal de cada estado. Já no sentido “para frente”, não se verifica essa mesma performance, com todas as regiões possuindo índices abaixo de 1. Esse valor encontrado deve-se ao fato de que são poucos os setores que demandam produtos do setor moveleiro, sendo mais direcionado para as famílias, o que explica a forte relação com o setor de construção civil. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 520 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré 6 Conclusões O presente trabalho possibilitou explorar os impactos reais da indústria moveleira na Região Sul do Brasil, no que se refere ao potencial de geração de emprego e renda, bem como aos efeitos de ligação e transbordamento para os demais estados e entre setores. Nesse aspecto, foram feitos choques positivos de demanda para o setor de móveis de cada estado, no que tange ao incremento da demanda final, verificando-se a ampliação da produção estadual em 2,84% em Santa Catarina, 1,75% no Paraná e 1,51% no Rio Grande do Sul, o que ilustra o bom reflexo dessa indústria para as economias regionais. Ao analisar um choque adverso na demanda final — queda das exportações —, verificou-se que o impacto no produto estadual (em termos proporcionais) é menor do que quando o choque foi positivo, ou seja, ao encontrar restrições no mercado internacional, a produção moveleira desses estados direciona-se para o mercado interno. Apesar do resultado, a alta concentração das vendas no mercado externo, principalmente em Santa Catarina, torna o setor mais vulnerável à conjuntura internacional, bem como às políticas macroeconômicas, como no caso da valorização da moeda. Destacou-se, no texto, que um dos principais fatores de competitividade no mercado externo é o preço, no qual a moeda exerce peso considerável. O setor de construção civil posicionou-se como o principal demandante de móveis, ou seja, o produto “móveis” é complementar ao produto “casa”. Nesse sentido, os choques positivos na demanda final desse setor exercem maior influência no setor moveleiro do que o incremento das exportações no próprio setor. A ampliação no setor de móveis ficou em 8,4% (PR), 8,0% (SC) e 7,9% (RS), quando esse choque é feito em nível de Brasil; e em 5% (PR), 5% (SC) e 13% (RS), quando o choque é feito em cada estado separadamente. Dessa forma, a ampliação do crédito imobiliário, principal política de apoio à construção civil, acaba favorecendo indiretamente o setor moveleiro. Esse reflexo ameniza a falta de linhas de crédito específicas para o consumo de móveis, uma das principais críticas dos empresários dessa indústria, medida que favoreceria a demanda interna para o produto, já que o consumo de móveis é muito elástico com a renda. Outro índice calculado foi o multiplicador de produto, o qual, através dos efeitos diretos e indiretos, é uma boa referência da influência do setor de móveis nas economias regionais, bem como de seu potencial na geração dos efeitos de ligação e transbordamento. Nesse aspecto, para cada R$ 1,00 no aumento da demanda de móveis em cada estado, gera-se um aumento no produto nacional de R$ 2,13, quando o choque é realizado no Paraná, de R$ 1,92, quando em Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 A indústria moveleira da Região Sul do Brasil e seus impactos na economia regional:... 521 Santa Catarina, e de R$ 1,72, quando realizado no Rio Grande do Sul. Já os impactos na renda estadual são de R$ 1,32 no Paraná, R$ 1,29 em Santa Catarina e R$ 1,44 no Rio Grande do Sul. Como último exercício, verificou-se, através dos índices de ligação, “para frente” e “para trás”, de Hirschmann-Rasmussen, a configuração do setor moveleiro como um setor-chave para as economias estaduais de Santa Catarina e Paraná, no sentido “para trás”, ou seja, o setor de móveis é um bom indutor da economia regional, no sentido de que demanda insumos de vários setores para gerar seu produto final, podendo ser objeto de políticas públicas que busquem a promoção de emprego e renda local. Ressalta-se, porém, que, em nenhum estado, chegou a ser o principal setor. Já no sentido “para frente”, não foi encontrado índice relevante. Pode-se mencionar também que, importantes em seus estados, as empresas de móveis são pouco interligadas entre os estados da Região Sul, ou seja, os impactos de aumento da demanda no setor de um estado são muito pouco sentidos pelos outros. Isso reflete a capacidade da indústria de cada estado de ampliar sua própria produção e de atender aos aumentos da demanda, individualmente. A análise do setor de móveis da Região Sul do Brasil através do MRIO possibilitou a realização de inferências e resultados mais precisos sobre os impactos gerados por essa indústria nas economias regionais. Constatando seu potencial, torna-se mais fácil iniciar políticas que visem promover o setor, já que o mesmo, além de gerar emprego e renda, favorece a balança comercial. Verificou-se também que, para a indústria moveleira ampliar sua produção e conquistar novas fatias no mercado internacional, necessita, ainda, melhorar seu modo de produção, no que concerne à maior utilização de tecnologia — sobretudo as pequenas empresas — e à inovação em design nos móveis brasileiros — no sentido de diferenciar o produto. Outra medida para incentivar a demanda para o setor seria a geração de linhas de crédito para consumo de móveis, a exemplo da linha de CDC-Móveis, lançada pelo Banco do Brasil, no final de 2005, que é uma forma de compensar a falta de renda da população, sendo, ainda, um substituto dos crediários das grandes redes de lojas de varejo, que acabam onerando o preço ao consumidor. Um último comentário a ser feito relaciona-se com a base estatística utilizada no trabalho, referente ao ano de 1999, o que se pode traduzir como uma limitação da pesquisa. Porém ressalva-se que os resultados ainda podem ser utilizados como bom indicativo dos efeitos reais do setor moveleiro sobre as economias regionais, dada a sua presença destacada e sua contínua expansão no período. A relevância da utilização do referencial de MRIO baseia-se na possibilidade de avaliar mais especificamente os efeitos de políticas setoriais, e, Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 497-524, out. 2007 522 Darlan Christiano Kroth; Ricardo Luis Lopes; José Luiz Parré para tanto, sugerem-se a manutenção de estudos mais aprofundados na área e a sua utilização pelos governos e pelas instituições locais. Referências ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DO MOBILIÁRIO — Abimóvel. Panorama do setor moveleiro no Brasil: informações gerais. São Paulo, 2005. 75p. Disponível em: <http://www.abimovel.com>. Acesso em: 19 nov. 2005. BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL — BNDES. Painéis de madeira reconstituída. Rio de Janeiro, 2002. 25p. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br>. Acesso em: 21 nov. 2005. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Relação Anual de Informações Sociais, 2003. Brasília, s. d. Disponível em: <http://www.rais.gov.br>. BRASIL. 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Penalva Santos** Maria Alícia Dominguez Ugá*** Doutora (FAU-USP) e Professora Adjunta dos Programas de Pós-Graduação em Economia e em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Doutora (IMS-UERJ) e Pesquisadora Titular da ENSP/Fiocruz Resumo A crise fiscal eclodida no início da década de 80 do século XX marcou o esgotamento dos processos de desenvolvimento latino-americanos baseados na condução, pelos Estados nacionais, dos processos de industrialização substitutiva de importações. Desde então, foram inicialmente adotados planos de estabiliza˘ıo macroeconômica até meados dessa década, que focalizavam o reequilíbrio do balanço de pagamentos, e, a partir daí, ganharam força os programas de ajuste de cunho neoliberal, afetando as políticas sociais na sua essência. A tônica desse ajuste passou a ser a diminuição do protagonismo estatal, incluindo a descentralização das políticas entre as esferas governamentais. As reformas nos sistemas de saúde inscrevem-se nesse contexto, o que se reflete, na maioria dos casos, no fortalecimento do setor privado e das instâncias infranacionais de poder, e têm potencial para afetar a organização do território. Este estudo analisa, comparativamente, esses processos na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México. * Uma versão deste artigo foi apresentada no IX Seminario Internacional de la Red Iberoamericana de Globalización y Territorio, realizado de 17 a 20 de maio de 2006, em Bahía Blanca, na Argentina. Trata-se também do desdobramento de uma pesquisa que realiza uma análise comparativa entre os processos de descentralização nos quatro países selecionados feita por pesquisadores desses países. Artigo recebido em jun. 2006 e aceito para publicação em maio 2007. ** E-mail: [email protected] *** E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 526 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá Palavras-chave Reforma do Estado; descentralização e sistema de Saúde. Abstract The come out fiscal crisis at the beginning of the decade of 1980 marked the exhaustion of the American Latin processes of development based in the conduction by the National States of the industrialization processes based on importation substitutions. Since then, the multilateral organisms have pressured so that institutional reforms are implemented that diminish this governmental protagonism, including the decentralization of the politics between the governmental spheres. The reforms in the health systems are enrolled in this context, and it reflects in the strenghtening of the infranational instances and have potential to affect also the organization of the territory. This study comparatively analyzes these processes in Argentina, Brazil, Colombia and Mexico. Key words State Reform, Decentralization, Health System. Classificação JEL: H75. 1 Introdução A crise fiscal eclodida no início da década de 80 do século XX marcou o esgotamento dos processos de desenvolvimento latino-americanos baseados na condução, pelos Estados nacionais, dos processos de industrialização substitutiva de importações. Desde então, os organismos multilaterais têm pressionado para que sejam implementadas reformas institucionais que diminuam esse protagonismo governamental, incluindo a descentralização das políticas entre as esferas de governo. Como apontado em Ugá (1997), se, nos planos de estabilização macroeconômica adotados a partir do final da década de 70 até meados da de 80, que focalizavam o reequilíbrio do balanço de pagamentos, os efeitos sobre as políticas sociais eram residuais, decorrentes da contração de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 527 recursos para o seu financiamento e da pauperização da população, nos programas de ajuste de cunho neoliberal, implementados a partir da segunda metade dos anos 80, as transformações por que passaram as políticas sociais atingiram a sua essência e corresponderam a um projeto global de reorganização da sociedade sob a égide neoliberal, do qual a face econômica é apenas a mais discutida, mas não esgota a compreensão do seu alcance. As reformas nos sistemas de saúde inscrevem-se nesse contexto, o que se reflete no fortalecimento das instâncias infranacionais de poder, e têm potencial para afetar a organização do território. Este estudo analisa comparativamente esses processos na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México. O artigo está estruturado em cinco seções, a primeira das quais é esta Introdução, enquanto a segunda visa identificar o sentido das reformas do Estado. As seções 3 e 4 constituem o núcleo do trabalho. Na terceira, analisa-se como a descentralização se insere nas reformas do Estado, e explicitam-se algumas diferenças entre as reformas empreendidas nos quatro países com base em três indagações relativas à: (a) estrutura político-territorial; (b) redefinição no federalismo fiscal; e (c) possibilidade de que a descentralização tenha sido apenas resultado do avanço do neoliberalismo. Na quarta seção, focaliza-se a descentralização nas reformas do sistema sanitário, dividindo-a segundo os casos: (a) colombiano; (b) mexicano; (c) argentino; e (d) brasileiro. Na quinta e última seção, apresentam-se algumas reflexões sobre a relação entre descentralização e território à guisa de conclusão. 2 O sentido das reformas de Estado Todos os Estados modernos dedicam-se à redistribuição, à gestão macroeconômica e à regulamentação dos mercados; a diferença está nas prioridades dadas, por cada país, no exercício dessas funções, que tendem a variar ao longo do tempo. Na América Latina, a prioridade, durante o período 1950-80, foi a industrialização, considerada um instrumento para o crescimento econômico, a qual promoveria políticas redistributivas. Houve significativo crescimento no período, mas as desigualdades interpessoais e inter-regionais intensificaram-se, assim como ocorreu queda na eficiência da gestão pública. O esgotamento do modelo desenvolvimentista e a construção do modelo de ajuste fiscal suscitaram a reforma do Estado, envolvendo quatro elementos distintos, mas interdependentes: (a) diminuição do tamanho do Estado; (b) desregulamentação; (c) elevação da capacidade financeira e administrativa do Estado de formular e implementar políticas públicas; e (d) realização de esforços visando à legitimidade política para implementar reformas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 528 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá Em busca desse ajuste e da correspondente contração do papel do Estado, os World Development Reports do Banco Mundial1 vêm apontando que a reforma do Estado tem sido um processo permanentemente incompleto, defendendo a realização de novas etapas, sob pena de não se alcançar o objetivo do ajuste estrutural do Estado. Apesar disso, podem ser distinguidas duas etapas de reformas: (a) durante os anos 80, quando houve a tentativa de disseminar o chamado “Estado mínimo”, visando atingir os dois primeiros elementos mencionados anteriormente; e (b) a partir dos anos 90, quando houve uma mudança na concepção das reformas, no sentido de fortalecer o Estado em número menor de objetivos, visando alcançar os outros dois elementos. Neste segundo momento, as reformas passaram a dar maior destaque para a eqüidade e para a accountability (transparência e responsabilização da administração pública). A descentralização passou a ser entendida como instrumento que conduzia à accountability e como um bom meio não apenas para aproximar Governo e “clientela”, mas também de poder tornar os cidadãos capazes de participar mais ativamente das decisões que afetam toda a sociedade (Abrucio; Loureiro, 2004). O tema accountability, portanto, emerge de uma segunda geração de reformas de Estado, que visavam tornar os governos não apenas mais eficientes no provimento de seus serviços públicos, mas também mais responsivos às demandas dos eleitores. Dentre os muitos instrumentos para a garantia da responsabilização democrática, aqueles que mais prosperaram foram os que conduzem à accountability nas finanças públicas. Os quatro países analisados neste artigo experimentaram mudanças nos seus marcos legais, no que tange ao controle do endividamento público, ao processo de elaboração e execução orçamentária e à estrutura de seu federalismo fiscal. Nesse sentido, houve um avanço considerável nas propostas de reforma, no entanto, falta avançar na direção do outro dos seus elementos constitutivos, a busca da eqüidade. Na próxima seção, serão abordados elementos do processo de descentralização nos quatro países estudados, para situar o processo de descentralização no âmbito dos seus sistemas de saúde. 1 Destacam-se, em particular, os relatórios do Banco Mundial (1993; 1997; 1999/2000; 2002; 2004). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 529 3 A descentralização nas reformas de Estado A descentralização está presente no receituário das reformas de Estado de primeira e de segunda geração. Nas de primeira, destaca-se a capacidade de a descentralização dos serviços públicos proporcionar maior eficiência à administração pública; nas de segunda geração, o destaque é dado ao estímulo à responsabilização democrática, dada a tendência de a descentralização estar associada à participação popular. A participação popular, entretanto, é parte de um processo cívico e dependente da disseminação dos valores democráticos na cultura popular, o que, na América Latina, ainda está associado apenas ao processo eleitoral. O baixo nível de renda per capita, associado à grande desigualdade que caracteriza os nossos países, não contribui para o avanço dos movimentos cívicos. Nessas condições, o estímulo à participação popular tem sido muito mais uma concessão dos governos centrais para legitimar suas políticas de ajuste macroeconômico do que uma conquista dos cidadãos. Entretanto a transferência de responsabilidade de políticas para as instâncias locais de poder é um instrumento que pode estimular uma maior participação popular e o avanço “de baixo para cima” da responsabilização democrática. O processo de reformas institucionais apresenta nuanças e ritmos distintos em cada país, em função de suas experiências específicas. As subseções a seguir realçam as diferenças entre os países, no que tange à introdução da descentralização como parte das reformas de Estado na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México. Visando identificar tais diferenças, são comparados, a seguir, os quatro países, com base em três aspectos: suas estruturas político-territoriais, as possíveis alterações ocorridas no federalismo fiscal e a indagação sobre se a descentralização teria sido um mero resultado do avanço do neoliberalismo. 3.1 Qual a estrutura político-territorial desses países? Três dentre os países considerados são federações — Argentina, Brasil e México —, enquanto a Colômbia é um Estado unitário. Diferentemente do caso clássico de federalismo — o norte-americano —, nos países latino-americanos, não houve uma organização territorial local que tenha decidido abrir mão de alguma autonomia para se unir a outras regiões e formar uma unidade nacional politicamente mais forte. Ao contrário, a estrutura federativa foi mantida para Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 530 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá aumentar o poder central, posteriormente fortalecido com a modernização dos países, através do modelo de industrialização substitutiva de importações. Dentre os quatro países considerados, a Argentina foi aquele que estabeleceu uma estrutura de Estado mais próxima do paradigma norte-americano. Assim, por exemplo, suas 24 províncias têm autonomia para criar seus municípios segundo seus próprios critérios, o que significa dizer que não há uma diretriz geral nacional para a criação de novas unidades territoriais de esfera municipal que possam assumir responsabilidades na execução de políticas descentralizadas, como há no caso brasileiro da política de assistência básica à saúde. Assim, a descentralização é um processo referido apenas aos governos provinciais, que viram fortalecidas suas responsabilidades com a transferência das políticas sociais para sua esfera de poder, numa descentralização que se iniciou ainda na década de 70, mas que foi intensificada com a Constituição de 1994 (Manzanal, 2005). O caso mexicano é aquele onde o federalismo mais se distancia do paradigma norte-americano. A revolução mexicana e o modelo desenvolvimentista contribuíram para o fortalecimento da polarização demográfica e econômica na Capital Federal (como também se deu nos outros países considerados). Entretanto, no México, a manutenção de um mesmo partido político (o PRI) por 70 anos tornou o federalismo apenas uma estrutura legal, longe de retratar a organização real do País. Foi somente na década de 90 que outros partidos e representantes políticos surgidos em outras regiões puderam alcançar o poder central (Rogel, 2005). Mas, antes disso, durante a década anterior, foi iniciado um processo de fortalecimento do poder municipal, a partir de uma importante mudança no artigo 115 da Constituição (que se refere à vida institucional do município mexicano), a partir do qual o município passaria a ter responsabilidades na execução (e não na formulação) das políticas sociais. No “novo federalismo” mexicano, a descentralização foi, na verdade, uma iniciativa do poder central, como parte do projeto de reforma que visava não apenas dotar os governos infranacionais de condições financeiras e administrativas, mas ainda legitimar o Estado. O Brasil também é uma federação desde sua primeira Constituição, mas isso foi uma reação ao temor de que a Proclamação da República (em 1889) pudesse suscitar a fragmentação do seu território, como ocorrera com a América espanhola. Como no caso argentino, no Brasil havia territórios que disputavam a hegemonia política e econômica, que, após o desenvolvimentismo, favoreceu a polarização espacial em torno de São Paulo. Apesar disso, a força política de outros estados sempre foi grande e apenas sufocada durante os períodos de regime autoritário. Essa característica pode ser ilustrada pelo trade off entre poder econômico e político em que se baseia a Federação brasileira: apro- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 531 ximadamente 75% do PIB estão localizados nos sete estados das Regiões Sudeste e Sul, mas a representação política desses estados no Senado é de apenas 21 dentre 81 senadores. Porém a principal manifestação da força dos governos locais foi a transformação dos municípios em entes federativos (pela Constituição de 1988), desfrutando autonomia política, legislativa, administrativa e financeira; em decorrência dessa mudança institucional de grande significado, o processo de descentralização no País praticamente se confundiu com a municipalização das políticas sociais. A Colômbia é um Estado unitário que resultou da fragmentação de uma antiga unidade territorial, a Gran Colômbia. Como no caso brasileiro, a unidade territorial foi iniciativa do Governo Central, que, a partir de 1886, iniciou um século de forte centralização política e econômica do País, para a qual muito contribuiu o desenvolvimentismo industrial. Essa centralização foi marcada pelo bipartidarismo que se revezava no poder, mas foi posta em xeque na década de 80, quando foi dada autonomia política aos governos locais, que passaram a ter seus governantes eleitos diretamente pela população. A reconfiguração territorial daí resultante foi intensificada com a lei de descentralização que entrou em vigor em 1986, seguida de uma nova Constituição (em 1991), prevendo uma forte descentralização das políticas sociais. Apesar de a arquitetura institucional da descentralização, nessa Constituição, prever a formação de seis níveis de governo, apenas três existem de fato — os Governos Central, estaduais e municipais (Restrepo; Cuellar, 2005). 3.2 Houve redefinição do federalismo fiscal? Na Argentina, o país de estrutura federativa mais consolidada, existem mecanismos de redistribuição da arrecadação fiscal entre os entes federativos, desde 1935, ainda que, apenas na reforma constitucional de 1994, a distribuição de fundos entre a Nação e as províncias tenha sido constitucionalmente garantida. Segundo Manzanal (2005), o sistema fiscal argentino é altamente descentralizado, com o nível de gasto realizado pelas províncias atingindo percentuais superiores a 40% do total nacional desde muitos anos. Trata-se de uma estrutura federativa cuja evolução a longo prazo pode ser ilustrada com base em três características principais (Cetrángolo; Gimenez apud Manzanal, 2005): (a) aumento no número de entes federativos, inclusive com a elevação da Capital Federal a essa condição; (b) aumento dos tributos partilhados com as esferas infranacionais de poder; e (c) aumento dos percentuais de transferências dos tributos partilhados. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 532 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá A partir de 1992, no entanto, os valores transferidos foram estabilizados, deixando de variar de acordo com a arrecadação fiscal. Ademais, o Governo Federal transferiu responsabilidades da política de educação para as províncias, sem lhes destinar mais recursos, apenas confiando que a elevada participação desses entes infranacionais já era elevada, o que lhes permitiria financiar esse novo encargo. De acordo com a mesma autora, o subseqüente arrocho na situação fiscal das províncias somente melhorou após a eclosão da crise de dezembro de 2001. O México, país onde prevalecia um forte centralismo político e financeiro, passou a desconcentrar a execução de políticas a partir da década de 80, quando foi criado o Sistema Nacional de Coordenação Fiscal (SNCF), instituindo a co-participação dos entes infranacionais na arrecadação tributária. Os governos estaduais deveriam transferir aos municípios, no entanto, parcela das transferências recebidas do Governo Federal, tendo tais transferências a condição de “convênios”, isto é, recursos com alocação já predefinida antes de chegar aos cofres dos municípios. A partir de 1990, foram modificados os critérios de repartição, para melhorar a condição financeira dos entes infranacionais economicamente mais fracos, impondo um critério redistributivo em função da população. Novas mudanças ocorreram a partir de 1995, quando houve elevação dos percentuais de co-participação, o que teve forte impacto positivo nas receitas de departamentos e municípios, dado que essas transferências intergovernamentais constituem a principal fonte de financiamento dos entes infranacionais. Cabe ressaltar, ainda, que esses são recursos cuja alocação é definida livremente pelos governos locais, o que lhes aumenta o grau de autonomia financeira. O chamado “novo federalismo” mexicano tem os seguintes marcos legais: (a) Lei Orgânica da Administração Pública Federal; (b) Lei de Planejamento e Programa de Descentralização da Administração Pública Federal; e (c) convênios únicos de desenvolvimento, a partir de 1983, para financiar a execução de responsabilidades compartilhadas entre as distintas esferas de governo. A partir de 1998, esse “novo federalismo” sofreu uma tendência à recentralização financeira, quando passaram a vigorar maiores controles das receitas de transferências por parte do Governo Federal, muito comprometido com políticas de ajuste fiscal estrutural do Estado mexicano. O Brasil introduziu um sistema de co-participação entre os níveis de governo na sua Constituição de 1946, sendo que o federalismo fiscal foi alterado na Constituição de 1967. A centralização política e financeira imposta pelo regime militar (1964-85) aumentou muito as transferências intergovernamentais, mas, sobretudo, aquelas cuja alocação já vinha previamente definida na esfera federal de governo. Essa situação somente foi alterada ao longo da década de 80, Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 533 quando foram sendo elevados sistematicamente os percentuais de receitas de transferências de arrecadação compartilhada, atingindo o auge com a entrada em vigor da atual Constituição (em 1988), que conduziu o município à condição de ente federativo, assegurando-lhe competência para gerir sua receita tributária própria (que aumentou), além de elevar ainda mais os percentuais das receitas partilhadas. O esgotamento do aumento da autonomia financeira municipal foi deflagrado a partir de 1995, quando se elevou a carga tributária nacional mediante o aumento de tributos não partilháveis com os entes infranacionais de governo. Apesar disso, o Governo Federal passou a transferir mais recursos para estados e municípios, porém sob a condição de que sua alocação fosse definida naquela esfera de governo. Vale dizer, houve sustentação das receitas de transferências, mas menor liberdade na alocação dos recursos, ainda que estados e municípios continuassem a assumir crescentes responsabilidades de políticas. Ademais, uma nova legislação federal (a Lei de Responsabilidade Fiscal2) passou a impor controles mais estritos para o endividamento governamental, o que se aplica, de fato, muito mais sobre estados e municípios do que ao próprio Governo Federal (Santos, 2004). No caso colombiano, pode-se identificar o início do fortalecimento dos governos infranacionais em 1968, quando foram estabelecidas transferências intergovernamentais para financiar as políticas de educação e saúde nas esferas estaduais e municipais de governo. Outra etapa desse fortalecimento ocorreu em 1983, ano em que entrou em vigor a Lei n° 14, uma lei fiscal visando à melhoria na arrecadação dos governos estaduais e municipais (Restrepo; Cuellar, 2005). A descentralização colombiana tem seus marcos legais no ano de 1986, por meio de: (a) conquista de eleições diretas para prefeitos (e, em 1991, também para governadores); (b) realização de uma grande reforma administrativa para definir as competências dos governos infranacionais; e (c) aumento do valor percentual dos tributos federais a serem transferidos a estados e municípios. Apesar desses avanços, a partir do início da década de 90, passou a ser experimentado um processo de recentralização das políticas públicas em face do ajuste fiscal com o qual o Governo Federal se comprometeu. O País passou a controlar o endividamento dos municípios e a monitorar o uso dos recursos de 2 A Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal, Lei Complementar nº 101, de maio de 2000, fixa princípios e regras para uma gestão fiscal responsável nas três esferas de governo, no País. Ela estabelece limites para o gasto púbico com pessoal, torna obrigatória a emissão de relatórios fiscais detalhados de despesas e suas fontes de receita e fortalece o papel da Lei de Diretrizes Orçamentárias como verdadeiro instrumento de planejamento e norteador da elaboração da Lei Orçamentária Anual. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 534 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá co-participação, condicionando o acesso a esses recursos; em 2001, foi congelado o valor das transferências por oito anos, independentemente da variação da arrecadação, o que, certamente, compromete o financiamento das responsabilidades dos governos locais, em particular, na área da saúde. 3.3 A descentralização foi apenas resultado do avanço do neoliberalismo? Como já mencionado anteriormente, a descentralização das políticas é parte da agenda de reformas do Estado que vem sendo conduzida, urbi et orbi, a partir da década de 80. Nesse sentido, ela integra o “pacote” de reformas que as agências multilaterais têm disseminado, em particular o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Na América Latina, região que ficou economicamente muito fragilizada com a crise fiscal, principalmente a partir da moratória mexicana, em 1982, o receituário daquelas agências obteve grande ressonância, com maior ou menor rapidez, nos diferentes países. Estudos dos casos de descentralização na Argentina e no México creditam as modificações introduzidas naqueles países como sendo respostas ao “ajuste neoliberal” em vigor nas últimas duas décadas (Manzanal, 2005; Rogel, 2005). As autoras destacam que tais modificações não são bem caracterizadas como partes do processo de descentralização, mas apenas de uma desconcentração administrativa do poder público. Na ausência de fortalecimento dos governos infranacionais (províncias na Argentina e departamentos no México) como formuladores das políticas, não houve processo de descentralização, uma vez que esse envolve, necessariamente, transferência de poder político na formulação e na implementação de políticas. Estudos dos casos brasileiro e colombiano sugerem, no entanto, que houve participação de representantes dos territórios infranacionais no processo de transferência de responsabilidades sobre políticas para os governos locais. Os autores desses estudos reconhecem que houve fortalecimento político, e não apenas administrativo, nas esferas locais de poder (Restrepo; Cuellar, 2005; Santos, 2005). No Brasil, o processo foi muito significativo, uma vez que a Constituição passou a reconhecer os municípios como entes federativos, desfrutando de autonomia política, administrativa, legislativa e financeira. Esse fortalecimento do papel dos governos locais, e do município em particular, foi produto da luta política pela redemocratização das estruturas de poder após 21 anos de regime militar. Durante esse período, o País experimentou elevadíssimo grau de urbanização da população e o surgimento de muitos municípios de médio e grande Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 535 portes. Estes se tornaram atores protagonistas das políticas públicas e é improvável que aceitem a recentralização financeira que o Governo Federal tem promovido. Pelo contrário, sua resistência pode ser identificada na dificuldade de fazer aprovar uma reforma tributária que preveja o aumento do controle do Governo Central na arrecadação, ainda que esteja previsto o aumento das receitas infranacionais através de mecanismos de co-participação, mas com perda de autonomia financeira pelos governos infranacionais. Na Colômbia, o fortalecimento dos governos municipais e estaduais ocorreu quando se instalou a crise econômica, com o esgotamento do modelo econômico centralizador da industrialização por substituição de importações (ISI), na década de 80. Desde então, surgiram demandas territoriais distintas do Governo Central, e foi conquistada a autonomia política dos municípios (em 1986) e dos governos estaduais (em 1991), que passaram a eleger seus representantes pelo voto popular. O fortalecimento dos governos infranacionais fez emergir novos partidos políticos, bem como recrudesceu o poder da guerrilha associada ao tráfico de drogas. Este, por sua vez, suscitou o estreitamento de relações políticas e econômicas com o Governo norte-americano, interessado em controlar o tráfico. Em face desses fenômenos, há uma controvérsia sobre a importância da guerrilha e do tráfico de drogas para a descentralização: de um lado, teria contribuído para fortalecer a economia e o poder local; de outro, o combate promovido pelo Governo Federal teria ajudado no processo de recentralização política ora em curso no País (Restrepo; Cuellar, 2005). De qualquer modo, o fortalecimento de alguns municípios e departamentos foi conquista de luta política que dificilmente será sufocada pelos interesses do Governo Central. É preciso destacar, entretanto, que, nos quatro países considerados, o Governo Central vem reagindo à descentralização, especialmente mediante mecanismos de controle financeiro dos Governos locais em face das políticas nacionais de ajuste fiscal. Não é provável, contudo, que haja total retrocesso, com recentralização política, devido à elevação das expectativas de cidadania nessa era de comunicação instantânea. O que parece mais provável de ocorrer é uma tentativa de que se estabeleçam mecanismos mais adequados para a coordenação na formulação e na implementação de políticas de responsabilidade compartilhada entre as diferentes esferas de governo. Esse processo está em curso no Brasil, onde acaba de ser aprovada (em abril de 2005) uma lei federal estimulando a formação de consórcios intermunicipais;3 na Colômbia, já 3 Pela Lei nº 11.107, de abril de 2005, importante marco legal para a formação de redes federativas horizontais, os consórcios intermunicipais são transformados em figuras de direito público. Uma análise mais aprofundada sobre essa lei pode ser encontrada em Vasco (2006). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 536 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá está, inclusive, prevista na Constituição de 1991 a existência de seis esferas de governo, além das três tradicionais (Governos Central, Departamental e Municipal). 4 A descentralização nas reformas dos sistemas de saúde Desde o final dos anos 80, mas particularmente durante a década de 90, os organismos multilaterais de crédito, que até então se ocupavam em ditar as políticas econômicas dos países dependentes, voltaram sua atenção também às políticas sociais. Isto porque, como analisado em Ugá (1997), as políticas sociais passaram a ser parte integrante do próprio ajuste macroeconômico. Na medida em que se propõe uma retração do papel do Estado em termos tanto da população a ser atendida por suas políticas (que passam a ser focalizadas nos segmentos mais pobres) como da gama de serviços a ser ofertada (delimitada), é evidente que essas políticas passam a ser instrumentos do ajuste econômico. Assim, no Investing in Health, o Banco Mundial (1993) propõe uma redefinição do papel do Estado focado nos grupos sociais “mais necessitados” e mediante a provisão de uma “cesta básica” de serviços definida pela relação custo/efetividade dos mesmos. Simultaneamente, propôs uma maior atenção em termos da promoção e da regulação do setor privado, através da expansão dos seguros de saúde, e, de outro lado, a introdução de mecanismos de mercado no âmbito do setor público, que passaria a competir com o privado. Trata-se, portanto, de privatizar tanto os serviços como a lógica de atuação do setor público, expandindo o mercado de seguros privados e de serviços hospitalares. Como mostram as experiências apresentadas a seguir, essa receita foi implementada, de forma mais fiel, pelo México e, de uma forma adaptada, pela Colômbia. Na Argentina, observou-se um crescimento do setor privado com finalidades de lucros, o qual se somou às Obras Sociales. Finalmente, o Brasil foi o único país que buscou um caminho diferente, no sentido da constituição de um sistema nacional de saúde de acesso universal e integral, que convive com um segmento de planos e seguros privados de saúde previamente estabelecido no País. 4.1 O caso colombiano A reforma do sistema de saúde colombiano tem sido caracterizada, como aponta Jaramillo (s. n. t.), por dois grandes traços: descentralização e privatização. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 537 Ambos correspondem a um processo de redução do âmbito de intervenção estatal (que passa a se limitar apenas ao financiamento e à regulação dos atores do sistema de saúde) e à descentralização de recursos e responsabilidades antes assumidas pelo Governo Central para os governos locais, que passam a regular os entes privados e públicos que participam do sistema de saúde. A Lei 100, de 1993, instituiu, através da criação do Sistema de Seguridade Social na Saúde, uma profunda reforma do sistema sanitário colombiano. Criou um sistema de seguro privado, financiado por fundos públicos e privados e constituído por seguradoras de saúde — as Entidades Promotoras de Salud (EPS) — de natureza privada, e, de outro lado, as Instituciones Prestadoras de Servicios de Salud (IPS), de natureza privada e pública (hospitais públicos que se têm reorganizado sob a forma jurídica de Empresas Sociales del Estado, com instrumentos de gestão privados). Essa reforma tem como princípios essenciais: (a) a separação da provisão de serviços e o seguro; (b) a introdução da competição regulada entre seguradoras e entre prestadores públicos e privados; e, finalmente, (c) os subsídios à demanda — o financiamento dos seguros é transferido aos cidadãos de baixa renda, que têm livre escolha das EPS (seguradoras) que mais lhes convenham no regime subsidiado. Cabe aos municípios a responsabilidade de identificar os indivíduos elegíveis para receber o subsídio para a compra de saúde subsidiada. Esse subsídio é financiado mediante a co-participação dos municípios nas receitas correntes da nação — dos 25% das transferências que devem ser alocados à saúde, 15% devem ser destinados a subsidiar a demanda da população pobre (regime subsidiado), e os demais 10% destinam-se a outros gastos em saúde. Por outro lado, foram criados os Consejos Territoriales de Seguridad Social em Salud, responsáveis pela supervisão das EPS e das IPS. Vale mencionar que, diferentemente do caso mexicano, na Colômbia, foi instituído o Plan Obligatório de Salud Integral (POS), que se propõe a cobrir todas as intervenções e os procedimentos referentes à promoção, à prevenção, ao tratamento e à reabilitação em todos os níveis de complexidade. Ao POS, somam-se os Planes Complementarios de Salud, com serviços e/ou instalações adicionais aos do plano obrigatório. Este último é regulado pelo mencionado Consejo Nacional de Seguridad Social, enquanto os planos complementares se sujeitam às regulações da Superintendência Nacional de Salud. Existem também o regime contributivo (ao qual se subscrevem os trabalhadores com capacidade de pagamento) e o subsidiado (mediante subsídios à demanda transferidos pelo Estado à população de baixa renda). No entanto, como apontam Cardona et al. (2005), ainda permanecem vários temas críticos na reforma da lei de seguridade social colombiana, sendo a Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 538 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá cobertura um deles. Segundo esses autores, a elaboração da lei previa crescimento do PIB (e do mercado de trabalho, de onde provêm as cotizações sociais e o pagamento de impostos), que permitiria uma rápida ampliação da cobertura do seguro de saúde. No entanto, o crescimento econômico tem ficado bem abaixo do esperado (e, a partir de 2001, desvinculou-se do nível de arrecadação nacional o volume de recursos compartilhado com os governos infranacionais); ademais, o nível de desemprego e de informalidade da população trabalhadora tem mantido cifras muito altas, que apenas recentemente começaram a melhorar. Como conseqüência, ainda em 2004, uma proporção muito importante dos trabalhadores informais não desfrutava dos benefícios do seguro de saúde: nada menos que 40,9% da população estavam descobertos de quaisquer esquemas de seguro naquele ano. Vale mencionar que, como apontam os referidos autores, a cobertura de 59,1% tem sido fundamentalmente obtida com base na expansão da cobertura do regime subsidiado, posto que o regime contributivo segue sendo o mesmo de 1998. Outro ponto crítico mencionado refere-se ao enfraquecimento “[...] das estruturas e processos que fazem parte fundamental de qualquer política de saúde pública moderna” (Cardona et al., 2005, tradução nossa): a deterioração das políticas compreensivas de saúde pública, das estruturas de planejamento de saúde pública e o debilitamento de programas de promoção da saúde e de prevenção de enfermidades. Os municípios têm desempenhado um papel central no novo sistema de saúde colombiano, que tem sido acompanhado de recursos provenientes de transferências do Governo Central: são os municípios que regulam a concorrência entre as seguradoras (as EPS) e definem a população elegível para o regime subsidiado. O Governo Central manteve seu protagonismo na política de saúde com a formulação e a regulação dos atores que operam o sistema sanitário colombiano. No entanto, cabe mencionar que as funções de governança, regulação e controle foram sendo transferidas do Ministério de Salud para a Superintendência Nacional de Salud, criada como organismo autônomo em relação ao Ministério. Dessa forma, pode-se afirmar que a Colômbia tem realizado um verdadeiro processo de descentralização, de cunho privatizante, tanto pela criação de novos agentes privados que passam a operar no mercado sanitário (as EPS), como pela introdução de mecanismos de mercado no que tange aos prestadores de serviços de saúde públicos e privados, que competem entre si pela obtenção dos recursos, através da venda de seus serviços às populações seguradas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 539 4.2 O caso mexicano Desde 1983, o México vem experimentando dois processos de reforma no seu sistema de saúde. O primeiro foi orientado pela proposta denominada Reforma Estructural, que visava melhorar o acesso aos serviços de saúde e racionalizar recursos mediante a integração das instituições de seguro e de assistência à saúde, além de promover a descentralização na provisão dos serviços (Almeida; Pêgo, 2002). O segundo, iniciado nos anos 90, que prevalece ainda hoje, constitui-se, indubitavelmente, no resultado da agenda de reforma setorial veiculada pelo Banco Mundial de retração do papel do Estado e sua limitação à provisão de bens públicos e serviços assistenciais focalizados na população carente e limitados a uma “cesta básica”. A atual reforma resulta da presente hegemonia de um grupo de profissionais que, sob a liderança do atual Ministro da Saúde, Dr. Julio Frenk, construiu o conceito da Nueva Salud Publica. Como afirmam Almeida e Pêgo (2002, tradução nossa), ela constitui uma “[...] especialização do campo médico referida à saúde das populações, cujo objetivo era conhecer as necessidades da população e solucionar a demanda de forma a estabelecer um equilíbrio entre essas necessidades e os recursos”, definidos como escassos. Nessa proposta, ocupa um lugar central o modelo técnico assistencial e a racionalização do uso dos recursos (ou racionamento dos mesmos, coerente com as políticas de ajuste). Tal proposta, apoiada por grupos de interesses privados, está baseada na separação de funções de financiamento e prestação de serviços e em uma retração da ação estatal no campo da saúde. Nela, o setor privado presta serviços, o financiamento dá-se através de contribuições sociais, e o Estado regula o mercado de serviços, caracterizado pela livre escolha do consumidor. Nesse modelo, portanto, transferem-se as contribuições sociais ao mercado privado, com as quais os consumidores adquirem seguros e serviços de saúde, e amplia-se, assim, como no caso colombiano, o mercado ao setor privado de seguros e de serviços de saúde (principalmente os hospitalares). Existem três sistemas de afiliação ao sistema, o contributivo, o subsidiado e o vinculado, aos quais correspondem diferentes “cestas básicas” de serviços. Diferentemente do caso colombiano, essas “cestas básicas” não oferecem uma gama integral de serviços, dado que estes são definidos com base em critérios de custo-efetividade e de racionamento do gasto. Essa proposta de privatização do sistema de saúde foi aprofundada a partir de 2001, com a vitória do Presidente Vicente Fox, mediante a expansão do mercado de seguros privados de saúde, no marco do Seguro Popular de Salud. Segundo Almeida e Pêgo (2002), essa estratégia permite canalizar, para as seguradoras e para as operadoras de planos de saúde privados, os recursos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 540 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá previamente alocados em pagamentos diretos no ato da utilização dos serviços por parte da população de baixa renda, que não tem acesso à seguridade social e que não consegue ser atendida nos serviços públicos. No que tange ao processo de descentralização, também houve dois momentos da reforma de saúde. De acordo com Merino (s. d.), podem-se distinguir dois processos de descentralização no México. O primeiro, ocorreu ao longo da década de 80, quando se tratou de descentralizar a gestão da prestação dos serviços de saúde. Nele, foram transferidos a gestão de alguns hospitais e outros serviços de saúde, e estabeleceu-se a integração das instituições de seguro e de saúde em nível local. Entretanto tal processo era mais identificado como uma desconcentração de funções e não como um processo de descentralização, posto que não foi transferida para o nível local nenhuma responsabilidade em termos de formulação de políticas. O segundo processo de descentralização iniciou em 1996, quando a descentralização se apresentou como uma das estratégias principais do Programa de Reforma del Sector Salud 1995-2000. Nele, o eixo central consistia em reverter o excessivo centralismo do sistema de saúde e, em conseqüência, a alegada baixa eficiência nas decisões sobre a alocação dos recursos: falta de precisão na definição das responsabilidades de cada esfera de governo, burocratismo excessivo e inércia nas decisões de destinação de gasto entre os estados (Merino, s. d.). Essa reforma dotou a esfera local de maior autonomia no manejo das transferências recebidas do Governo Central no âmbito do sistema de saúde, que tiveram um aumento considerável. Ademais, isso se deu num contexto da reforma fiscal instituído através da reforma do artigo 115 da Constituição, no qual se formalizaram e se expandiram as funções dos municípios, incluindo a autonomia no uso dos recursos. No entanto, foi mantida uma importante centralização em matéria de arrecadação fiscal. Portanto, não foram gerados os incentivos para aumentar a contribuição local no financiamento dos serviços públicos, e foi mantido o poder do Governo Central em termos de sua capacidade de impor às demais esferas de governo (dependentes das transferências federais) as políticas formuladas desde o nível central. Assim, esse processo de descentralização foi bastante tímido, uma vez que, como afirma o referido autor, as principais funções de políticas públicas permaneceram no nível federal de governo. A isso, acrescenta-se uma baixa capacidade técnica e gerencial observada em grande parte dos municípios, ou seja, uma falta de acumulação técnica proveniente do longo período de centralismo mexicano. Na atual reforma, o financiamento proveniente de tributos é de nível federal, enquanto os estados arrecadam recursos provenientes da utilização de ser- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 541 viços de saúde (prêmios de seguros e co-pagamento). Além disso, é o Ministério da Saúde, no nível central de governo, que tem competência para definir a amplitude da “cesta básica” e das tecnologias que ela incorpora, enquanto os governos locais operam essa “cesta” de serviços e a adaptam segundo o perfil epidemiológico de sua região. A principal responsabilidade do nível local de governo é, sem dúvida, a contratação e a regulação de prestadores, como no caso colombiano. Dessa forma, pode-se afirmar que, enquanto o Governo Central define políticas de saúde — e, principalmente, a amplitude da “cesta básica” e os mecanismos de seu financiamento —, os governos locais se ocupam da operação do sistema, através de agentes privados por eles contratados. 4.3 O caso argentino A reforma do setor de saúde argentino parte de um sistema bastante peculiar, organizado sob o modelo bismarkiano, constituído das Obras Sociales, que são definidas e organizadas por setor de atividade. Nesse sistema fragmentado em múltiplos subsistemas, portanto, o acesso a um determinado subsistema de saúde ocorre a partir da pertinência em relação ao mercado formal de trabalho, segundo o setor de atividade (e ao seu respectivo sindicato), e, no que concerne aos aposentados, através do Programa del Instituto Nacional de Servicios Sociales para Pensionados y Jubilados (PAMI), criado em 1970. Sempre existiram, evidentemente, fortes desigualdades na oferta de serviços, nas distintas Obras Sociales, determinadas por seu diferente poder econômico. Além disso, até hoje, quase a metade da população argentina não está vinculada a nenhum desses subsistemas e, portanto, está formalmente atendida pelo setor público. Nos anos 90, surgiram várias propostas de reestruturação do sistema de saúde, apresentadas por diferentes setores da sociedade (os sindicatos de trabalhadores, o sindicato empresarial) e pelo Banco Mundial. Todas convergiam nos seguintes temas (Tafani, 1997): - a promoção (de distintas formas) de fusões entre Obras Sociales, de forma a promover grupos maiores de segurados, nos quais fosse possível um maior compartilhamento do risco, que lhes desse, portanto, maior viabilidade econômica; - a criação do Programa Médico Obrigatório, ou seja, a oferta de uma gama comum de serviços médico-hospitalares; - a regulação e o fortalecimento institucional, através da constituição de um marco regulatório que atuasse sobre as Obras Sociales. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 542 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá A reforma institucionalizou-se a partir de 1992, através da criação da Organización Solidaria de Atención Médica (OSAM). Esta introduziu um subsídio à demanda no âmbito das Obras Sociales, acoplado à instituição da livre-escolha, que se exercia mediante uma Cuota Parte de Atención Médica uniforme para todos os beneficiários (Cetrángolo; Devoto, 2002). Em 1993, foi concretamente instituída a livre-escolha por parte de beneficiários de Obras Sociales, e adotou-se o Programa Médico Obrigatório (ou seja, um conjunto de prestações básicas a ser oferecido por todas as Obras Sociales). Como, nesse sistema, o beneficiário aporta segundo seu salário, previu-se que, no caso de os custos das Obras Sociales ultrapassarem o valor arrecadado das cotas dos beneficiários, eles seriam compensados pelo Estado. Dessa forma, de acordo com Cetrángolo e Devoto (2002), o critério redistributivo presente no Fondo Solidario de Redistribución foi substituído por mecanismos de mercado, no qual as Obras Sociales mais poderosas (e com melhores planos de saúde) tendem a captar os indivíduos de mais alta renda. A livre-escolha tende a levar os assalariados de maior renda a migrarem para os planos que tenham melhores ofertas de serviços, com o que a tendência passa a ser a segmentação dos subsistemas de saúde segundo o nível de renda. Para contrabalançar essa tendência, foi criado o Programa Médico Obrigatório, no qual, como já referido anteriormente, o Estado subsidia o acesso no caso de a cotização mensal de cada trabalhador ser inferior ao equivalente a US$ 40,00. De todo modo, subsistem ainda importantes diferenças no acesso aos serviços de saúde, no campo do seguro social e no atualmente robusto setor privado (de seguro e de serviços de saúde). No que tange à descentralização da reforma sanitária, pode-se dizer que, ainda que o Ministério da Saúde seja a autoridade máxima, as províncias têm autonomia para formular e implementar políticas de saúde pública, bem como são as responsáveis pela provisão de serviços. Nesse sistema, cabe aos municípios a execução de programas e serviços de sua competência, mas se deve recordar que a autonomia e a responsabilidade municipal são definidas por cada província. Nessas condições, a reforma dos anos 90 incidiu fundamentalmente sobre o sistema de seguridade social e saúde (as Obras Sociales) e não alterou muito o sistema federativo no que diz respeito às relações intergovernamentais. 4.4 O caso brasileiro A reforma sanitária, no Brasil, foi inspirada nos sistemas de saúde welfarianos de caráter universalista, com atenção integral à saúde destinada a todos os cidadãos, distanciando-se, portanto, das reformas propostas pelas Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 543 agências internacionais, que, ao contrário, propunham (e continuam propondo) uma retração do papel do Estado no âmbito das políticas sociais. Na Constituição de 1988, foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), baseado nos seguintes princípios: acesso integral e universal, descentralização e participação popular. Essa reforma demandou a união do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) (instituição de saúde vinculada à Previdência Social) ao Ministério da Saúde — historicamente separados —, a redistribuição de recursos e de responsabilidades entre as três esferas de governo e a institucionalização de instâncias de concertação entre elas, através das Comissões Intergestoras Bipartite — Ministério da Saúde e secretarias estaduais de saúde — e Tripartite — Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde. Foi institucionalizada, também, a participação popular, mediante a criação de conselhos de saúde em cada uma das três esferas de governo, nas quais 50% dos membros são representantes dos usuários do sistema de saúde. No entanto, no momento da proposição de um novo sistema de saúde inspirado nos Welfare States europeus, o setor privado já estava amplamente consolidado no setor de saúde do Brasil: existia, de um lado, um importante segmento de seguros privados (que passou a ser considerado, na nova Constituição, como “segmento de saúde suplementar”), e, de outro, os prestadores hospitalares foram, desde sempre, majoritariamente privados no Brasil. Dessa forma, ainda hoje, o gasto público representa apenas 44% do gasto total com saúde, sendo seguido, em ordem de importância, pelo gasto das famílias (34% do gasto total) e pelo gasto com seguros de saúde, que representa 22% do gasto total (Ugá; Santos, 2006). Até meados da década de 90, o gasto público com saúde guardava a marca do período anterior ao da nova Constituição, caracterizado por uma forte centralização do sistema de saúde e de seu financiamento no nível central. A descentralização de recursos tem sido marcada por reformas constitucionais, enquanto uma série de normas operacionais formuladas pelo Ministério da Saúde, em um processo que tem sido denominado, por vários autores, “descentralização tutelada”, definiram um processo de desconcentração da capacidade de gestão conduzido centralmente pelo Ministério da Saúde. Ainda a partir do processo de descentralização tributária introduzido pela Constituição — que ampliou a competência tributária de municípios e elevou o nível das transferências de tributos federais para as esferas infranacionais de governo — e, posteriormente, a partir da Emenda Constitucional nº 29, de 2000 — que estabelece níveis mínimos de crescimento do gasto público federal com saúde e percentagens mínimas de participação dos recursos próprios de Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 544 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá estados e municípios no financiamento do SUS —, observa-se uma progressiva descentralização no mesmo. Por essa emenda, os estados e os municípios passaram a ser obrigados a aportar, no mínimo, respectivamente, 12% e 15% de seus recursos próprios para a saúde. Como resultado dessas modificações, os municípios já estavam assumindo 22% do gasto público em saúde, percentual que não passava de 7% em 1980; nesse mesmo período, o percentual de gasto da esfera federal diminuiu de 75% em 1980 para 58% em 2002. No que diz respeito à descentralização mediante transferências financeiras da União às esferas infranacionais no âmbito do SUS, ela tem sido paulatinamente construída mediante uma série de “normas operacionais”4 formuladas pelo Ministério da Saúde. A primeira, a Norma Operacional Básica (NOB) 01/91, introduziu uma significativa recentralização do sistema, uma vez que as transferências de recursos se davam, enquanto ela esteve em vigor, fundamentalmente sob a forma de pagamento por serviços de saúde prestados por unidades sanitárias pertencentes às esferas subnacionais de governo. A NOB 01/93 tentou resgatar paulatinamente o processo de descentralização do SUS, introduzindo estímulos para que estados e municípios fossem adquirindo autonomia na gestão da rede assistencial, no seu âmbito de governo, e se habilitassem a receber repasses “fundo a fundo”. Um entendimento básico então pactuado pela NOB 01/93 foi o de que a descentralização deveria ser um processo lento e gradual, com liberdade de adesão por parte das unidades federadas, e que as instâncias locais de governo, paulatinamente, se habilitariam, institucional e tecnicamente, a adquirir maior grau de autonomia de gestão. A criação, nesse período, das Comissões Intergestoras Bipartite e Tripartite foi, sem dúvida, um grande avanço no sentido da construção de um espaço de concertação das políticas setoriais entre as três esferas de governo, constituindo-se, também, em mecanismo de democratização do processo decisório. Nesse espaço de pactuação, foi sendo construída, num demorado, mas democrático processo, a Norma Operacional Básica do SUS (NOB-SUS) 01/96, aprovada por portaria publicada no Diário Oficial da União de 6 de novembro de 1996. Esse novo instrumento veio consolidar e aprofundar os avanços no sentido da descentralização do sistema iniciados pela NOB/93. Aquelas esferas que cumprissem os requisitos para obterem a gestão plena do sistema passariam a ter autonomia para gerir o sistema de saúde como um todo na sua esfera de governo, isto é, todas as ações relativas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde. 4 Maiores detalhes sobre as normas operacionais figuram em Ugá et al. (2003). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Reformas do Estado, descentralização e políticas de saúde... 545 As principais inovações introduzidas por essa norma operacional foram a criação de um valor per capita nacional para o custeio de procedimentos de atenção básica e a criação de incentivos financeiros para o desenvolvimento de programas específicos (como, por exemplo, o Programa de Saúde da Família). Maiores avanços no sentido da descentralização de recursos (isto é, não só do volume de recursos transferidos pela União, mas também do nível de discricionariedade do gasto das esferas estadual e municipal) estão sendo introduzidos pelo Pacto Pela Saúde 2006, cuja operacionalização ainda está em curso. Atualmente (até que o referido pacto seja operacionalizado), existem três níveis de autonomia de gestão das secretarias estaduais e municipais de saúde, condicionados pelo cumprimento de diversas condições: - a “condição de gestão plena do sistema de saúde”, de máxima autonomia, na qual os gestores locais têm o poder de contratar e pagar provedores privados, recebem transferências globais desde o nível federal, destinadas à saúde, e se encarregam da execução de diversas políticas de saúde; - a “condição de gestão plena da atenção básica”, na qual os gestores têm autonomia total no que concerne a esse nível de atenção, mas a gestão da atenção secundária e a da terciária ficam nas mãos da Secretaria Estadual de Saúde (no caso em que esta tenha gestão plena do sistema de saúde) ou do Ministério da Saúde (no caso em que nem o município e nem o estado possuam gestão plena do sistema de saúde); - e, no caso dos municípios não habilitados, estes não têm nenhuma autonomia de gestão. Note-se que essas condições de gestão foram abolidas pelo “Pacto da Saúde”, que traz como principal diretriz a regionalização dos serviços, com o que saem ainda mais fortalecidos os governos infranacionais. Em resumo, pode-se dizer que se vem desenvolvendo, desde meados dos anos 90, um importante processo de descentralização do sistema de saúde brasileiro. Orientada tanto pela busca de um ajuste fiscal no Governo Federal como pelo incentivo a um maior protagonismo das esferas infranacionais de governo, a Emenda Constitucional nº 29 promoveu um significativo aumento da participação dessas esferas nos recursos, instaurada pela reforma tributária de 1988. Ademais, a maior participação no financiamento tem sido acompanhada por uma desconcentração do poder de gestão do sistema, ainda que a formulação de políticas esteja em mãos do Governo Federal. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 525-548, out. 2007 546 Angela Moulin S. Penalva Santos; Maria Alícia Dominguez Ugá 5 Descentralização e território: reflexões à guisa de conclusões Este artigo pretendeu descrever o modo como a reforma do sistema de saúde foi parte integrante das reformas de Estado nos quatro países latino-americanos considerados. Tais reformas conduziram à diminuição do tamanho do Estado, bem como à introdução de mecanismos de mercado na provisão da atenção à saúde, restringindo a cobertura populacional e abandonando, na maior parte dos casos, o sistema welfariano de tipo europeu. Como resultado, o Estado passou a ajustar suas políticas à sua capacidade de financiá-las. Se as reformas tivessem apenas a função de contribuir para o ajuste fiscal em cada país, não haveria nenhuma redefinição na organização de seus territórios. No entanto, as reformas incluíram a descentralização das políticas como instrumentos para melhorar a eficiência na alocação dos recursos públicos e a responsabilização do gestor público (além de contrair o gasto nas esferas centrais de governo). Por isso, elas traziam subjacente a possibilidade de fortalecimento dos governos infranacionais. Esses governos são constituídos por esferas intermediárias e municipais, mas, apenas no Brasil, estas últimas constituem “entes federativos” e desfrutam de ampla autonomia política, administrativa, legislativa e financeira. Nos demais países considerados, há uma variedade de situações institucionais, com maior ou menor grau de autonomia da instância municipal de governo, mas ela é sempre tutelada pelos governos intermediários. Existe também uma variedade de situações relativas à autonomia financeira, condição indispensável, mas não suficiente, para que a descentralização das políticas possa ser experimentada como fortalecimento do poder local, e não meramente como estratégia de desconcentração na execução das políticas. O fortalecimento dos governos infranacionais pode ocorrer, desde que o federalismo fiscal lhes assegure participação na arrecadação fiscal e lhes permita cobrar tributos próprios para o financiamento das políticas descentralizadas. Ademais, é necessário que haja participação infranacional nas decisões políticas e não apenas na fase de sua execução. Com isso em mente, é possível supor que as reformas nos sistemas de saúde, nos quatro países, tenham sido instrumentos de algum fortalecimento do poder infranacional: em menor escala, na Argentina (apenas os governos provinciais, que já desfrutavam de grande autonomia) e no México; mais significativamente, na Colômbia e, principalmente, no Brasil. 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Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, UERJ, v. 1, n. 1, maio 2006. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 525-548, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 549 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil: uma análise espacial* Guilherme Mendes Resende** Alexandre Manoel Angelo da Silva*** Doutorando (PhD Candidate) pela London School of Economics (LSE), Mestre em Economia pelo Cedeplar-UFMG e Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA-DF Mestre em Economia pela EPGE-FGV e Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA-DF Resumo Neste artigo, analisam-se os determinantes das taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil no período 1991-00. No modelo de erro espacial estimado, verifica-se que a ocorrência de choque aleatório em um desses municípios transborda para toda a Região Sul do Brasil. Além disso, as estimações mostram que, quanto maiores forem os níveis de escolaridade e as taxas de urbanização, maiores serão as taxas de crescimento da renda do trabalho. Por outro lado, quanto menores forem o número de homicídios, a concentração de renda e os níveis iniciais da renda, maiores serão as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região. Palavras-chave Externalidade; crescimento da renda do trabalho; municípios sulistas. * Artigo recebido em jan. 2006 e aceito para publicação em maio 2007. ** E-mail: [email protected] *** E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 550 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Abstract In this paper, we analyze the determinants of labor income growth rate of Brazilian Southern municipalities in the period 1991-2000. In the estimated spatial error model, we verify that one random shock on a specific municipality in the South region propagates itself throughout the region. Besides, the estimations show that the higher are schooling and urbanization rates, the higher is the labor income growth rate. On the other hand, the smaller are number of homicides, income inequality and initial income level, the higher is the labor income growth rate of Brazilian Southern municipalities. Key words Externalities; labor income growth; southern municipalities. Classificação JEL: R11, R58. 1 Introdução Este trabalho analisa os determinantes das taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil no período 1991-00, verificando também a existência de externalidades espaciais1 que podem estar influenciando o crescimento econômico desses municípios. No mainstream da teoria econômica, a discussão sobre externalidades espaciais (spillovers) é um tema recente (Fujita; Krugman; Venables, 1999). No que diz respeito à literatura empírica mundial, a relação entre as externalidades espaciais e o crescimento econômico é feita utilizando-se econometria espacial. Rey e Montoury (1999) fazem uma análise estadual para os Estados Unidos; Fingleton (1999) estuda as regiões da União Européia; e Moreno e Trehan (1997) utilizam uma amostra de países. No Brasil, o uso de modelos de econometria espacial para discutir essas externalidades tem se baseado, em sua maioria, em dados dos estados brasilei1 Neste artigo, os termos externalidade espacial, externalidade, spillover e transbordamento são utilizados como sinônimos; ou seja, esses termos representam a influência que determinada variável econômica de uma localidade gera sobre sua vizinhança. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 551 ros. Magalhães, Hewings e Azzoni (2000) utilizam técnicas de econometria espacial para estudar o processo de convergência de renda, por habitante, entre os estados brasileiros, no período 1970-95. Os resultados encontrados por esses autores mostram a existência de dependência espacial entre os estados brasileiros, sugerindo, portanto, que modelos, ou estudos, de crescimento econômico que utilizam dados dos estados brasileiros e ignoram a dependência espacial estão mal especificados. Silveira Neto (2001) fornece evidências empíricas da presença de spillovers de crescimento entre as economias dos estados brasileiros, no período 1985-97. A partir da estatística e de modelos econométricos espaciais, esse autor evidencia que a localização da economia estadual é um importante condicionante para seu crescimento econômico. Em outras palavras, a economia estadual é significativamente afetada pelos desempenhos das economias vizinhas. Trabalhos utilizando dados municipais ou microrregionais brasileiros são ainda pouco tratados pela literatura empírica. Monasterio e Ávila (2004) aplicam a econometria espacial para analisar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante das 58 áreas estatisticamente comparáveis gaúchas entre 1939 e 2001. Os resultados mostraram que áreas ricas tenderam a ser circundadas por áreas ricas; e áreas pobres, por outras igualmente pobres. O mesmo fenômeno foi encontrado para as taxas de crescimento do PIB por habitante. Utilizando-se modelos econométricos espaciais, verificou-se a ocorrência de convergência do PIB por habitante. Esses trabalhos fornecem um retrato do estado atual da discussão de crescimento econômico com externalidade espacial no Brasil. Em sua maioria, ao utilizarem dados estaduais, os estudos evidenciam sistematicamente a importância das externalidades espaciais no crescimento econômico. Neste estudo, são utilizados dados municipais e investigados os determinantes do crescimento da renda do trabalho por meio de um modelo espacial, a fim de captar as externalidades espaciais existentes nos municípios do sul brasileiro. Menciona-se, ainda, que os supostos determinantes do crescimento da renda do trabalho foram escolhidos em consonância com o modelo de Glaeser, Scheinkman e Shleifer (1995). Além desta Introdução, para que se alcance a investigação mencionada, far-se-á, na próxima seção, uma descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul. Em seguida, serão abordados, respectivamente, o modelo de crescimento econômico dos municípios, a metodologia, a base de dados, os resultados e as conclusões. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 552 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva 2 Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil Neste artigo, são utilizadas 594 áreas mínimas comparáveis (AMC)2, pertencentes aos três estados que integram a Região Sul do Brasil. A escolha dos municípios pertencentes aos três estados dessa região baseou-se somente na geografia política, desconsiderando-se quaisquer relações econômicas existentes entre os municípios da Região Sul e os de outras regiões. Contudo é válido destacar que, em estudos de economia espacial, essa arbitrariedade está sempre presente, isto é, sempre se deixa de reportar alguma fronteira. Por exemplo, se fosse estudado o crescimento dos municípios brasileiros, estar-se-ia deixando de reportar alguma região (de um país vizinho) que faz fronteira com o Brasil. No Mapa 1, em relação ao período 1991-00, apresentam-se as taxas médias de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil. A visualização do Mapa 1 sugere que os municípios de Santa Catarina tiveram, em média, taxas de crescimento da renda do trabalho significativamente maiores que os municípios dos outros estados do sul brasileiro. Em meio a essa prosperidade, existem alguns municípios que mostraram um fraco desempenho. Por exemplo, Xavantina apresentou uma taxa média de crescimento da renda do trabalho negativa. A análise visual do Mapa 1 sugere, então, que os municípios do Rio Grande do Sul e do Paraná tiveram as menores taxas de crescimento da renda do trabalho da Região Sul do Brasil. Entre os municípios do Paraná, observam-se vários pequenos espaços em branco, denotando possíveis clusters de municípios que apresentaram taxas negativas de crescimento da renda do trabalho, como é o caso dos municípios que circundam Juniópolis, Boa Esperança, Roncador ou São José da Boa Vista. Não obstante, nesse mapa, constata-se que os municípios do Paraná mais próximos aos pertencentes a Santa Catarina apresentam, quase sempre, altas taxas de crescimento da renda do trabalho. 2 No decorrer do texto, AMC e municípios serão usados como termos sinônimos. É válido mencionar que, a partir das fronteiras municipais de 2000, o IBGE recalculou os dados de 1991 conforme as áreas censitárias. Portanto, no período 1991-00, para estudos com municípios, não há necessidade de se trabalhar com AMC. No entanto, em virtude de a agenda de pesquisa dos autores incluir períodos mais extensos na análise, por exemplo, 1970-00, optou-se por utilizar as AMC, de modo a tornar comparáveis futuros estudos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 553 Mapa Mapa 11 Taxas médias percentuais de crescimento da renda trabalho 594 Taxas médias percentuais de crescimento da renda do do trabalho dede594 municípios da Região Brasil 1991-00 municípios da Região Sul Sul do do Brasil —— 1991-00 FONTE FONTEDOS DOSDADOS DADOS BRUTOS: BRUTOS: IPEADATA. IPEADATA. Dados Dados macroeconômicos macroeconômicos ee regionais. regionais. Disponível Disponível em: em: <http://www.ipeadata.gov.br>. <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: em: jan. jan. 2006. 2006. NOTA: legenda,entre entreparênteses, parênteses, consta númerodede municípios respectiNOTA: Na Na legenda, consta o onúmero municípios nosnos respectivos dataxa taxa média médiade decrescimento crescimento renda do trabalho. vos intervalos intervalos da da da renda do trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 554 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Ao se observar a legenda do Mapa 1, verifica-se, também, que aproximadamente 50% dos municípios da Região Sul do Brasil apresentaram taxa média de crescimento da renda do trabalho acima de 2,9% e que cerca de 12% deles tiveram taxa média de crescimento da renda do trabalho negativa. Em 1991, os municípios da Região Sul tinham, em média, uma renda por habitante de cerca de R$ 168,00, com 85% dessa renda proveniente de rendimentos do trabalho; entre 1991 e 2000, a média das taxas de crescimento da renda por habitante dos municípios dessa região foi de 4,3%, enquanto a média das taxas de crescimento da renda do trabalho foi de 2,9%. Em conseqüência disso, em 2000, em média, a renda por habitante dos municípios da Região Sul passou a ser próxima de R$ 242,00, com 72% dela proveniente de rendimentos do trabalho. Em outras palavras, as transferências de renda efetuadas pelos Governos Federal, estaduais e municipais aumentaram a participação no total da renda gerada nesses municípios. Na Tabela 1, para os anos de 1991 e 2000, apresentam-se 20 variáveis referentes aos municípios da região estudada, com seus respectivos valores médios, mínimos, máximos e desvios-padrão. Em 1991, nesses municípios, em média, o coeficiente de Gini, que mensura a desigualdade interpessoal de renda, era 0,53; entre 1991 e 2000, esse coeficiente aumentou, em média, 0,1. Em vista disso, pode-se suspeitar que as transferências de renda aos municípios dessa região não contribuíram para a diminuição da desigualdade de renda, pois, em média, em 2000, verificou-se uma concentração de renda maior (coeficiente de Gini mais elevado) do que aquela observada em 1991. Contudo, ao se analisar o percentual de pessoas que moram em domicílios com renda domiciliar por habitante menor que um quarto do salário mínimo, uma proxy do nível de pobreza, que, na Tabela 1, está identificado como percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante menor que R$ 37,75, suspeita-se que as transferências de renda contribuíram para a diminuição do nível de pobreza existente na Região Sul. Em 1991, nos municípios sob enfoque, o percentual de pobres era de cerca de 17%. Entre 1991 e 2000, em média, esse percentual diminuiu aproximadamente sete pontos percentuais, indicando que as transferências diretas governamentais, apesar de não terem contribuído para a diminuição da desigualdade de renda, se mostraram importantes para a diminuição do número de pessoas pobres nesses municípios. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 555 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... Tabela 1 Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil — 1991 e 2000 1991 VARIÁVEIS Média (1) Taxa de crescimento da renda proveniente de rendimentos do trabalho (%) ............................... Taxa de crescimento da renda por habitante (%) ....................... Taxa de crescimento populacional (%) ....................................... Taxa de homicídios (média 1991-00) (%) .............................. População total .......................... Renda domiciliar total (R$ de 2000) ......................................... Proporção da renda proveniente de rendimentos do trabalho (%) Renda proveniente de rendimentos do trabalho (R$ de 2000) ......................................... Renda domiciliar por habitante (R$ de 2000) .............................. Índice de Gini ............................. Percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante < R$ 37,75 ................................. Número médio de anos de estudo .............................................. Percentual de pessoas analfabetas .......................................... Expectativa de vida (anos) ........ Taxa de mortalidade infantil ....... Taxa de fecundidade ................. Densidade populacional ............ Taxa de urbanização (%) .......... Percentual de domicílios com água encanada .......................... Percentual de domicílios com energia elétrica .......................... Mínimo Máximo Desvio-Padrão 2,90 -7,30 16,00 2,90 4,30 -4,80 12,20 2,10 -0,10 -8,70 7,10 1,90 16,60 37 255 3,30 1 206 92,40 1 315 035 9,60 101 409 9 155 578 0,85 7 701 314 133 396 0,66 115 401 663 551 890 0,94 524 803 190 40 892 963 0,04 33 569 117 168,20 0,53 69,40 0,36 525,20 0,71 58,80 0,06 17,40 0,80 58,60 10,20 4,10 1,90 8,60 0,80 19,60 67,50 31,60 2,90 76,70 55,10 2,60 56,30 11,10 2,00 2,60 8,00 47,30 74,30 80,20 4,70 3 051,80 100,00 8,80 3,40 11,40 0,50 255,90 22,20 48,90 6,80 95,40 20,00 88,40 37,30 100,00 11,30 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 556 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Tabela 1 Descrição socioeconômica de 594 municípios da Região Sul do Brasil — 1991 e 2000 2000 VARIÁVEIS Média (1) Mínimo Máximo Taxa de crescimento da renda proveniente de rendimentos do trabalho (%) .............................. Taxa de crescimento da renda por habitante (%) ....................... Taxa de crescimento populacional (%) ................................... Taxa de homicídios (média 1991-00) (%) .............................. População total .......................... 42 269 1 338 1 587 315 Renda domiciliar total (R$ de 247 102 983 849 583 2000) ......................................... 14 472 889 Proporção da renda proveniente de rendimentos do trabalho (%) 0,72 0,46 0,82 Renda proveniente de rendimentos do trabalho (R$ de 2000) .......................................... 10 465 254 175 025 720 374 665 Renda domiciliar por habitante (R$ de 2000) .............................. 242,80 96,60 709,90 0,54 0,40 0,77 Índice de Gini ............................. Percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante < R$ 37,75 ................................. 10,40 0,90 51,30 Número médio de anos de estudo ............................................ 5,00 2,90 9,30 Percentual de pessoas analfabetas .......................................... 13,60 2,30 34,90 71,20 61,50 77,90 Expectativa de vida (anos) ........ 18,80 7,20 42,30 Taxa de mortalidade infantil ....... 2,50 1,70 4,30 Taxa de fecundidade ................. 90,70 3,00 3 683,70 Densidade populacional ............ 63,60 8,30 100,00 Taxa de urbanização (%) .......... Percentual de domicílios com água encanada .......................... 65,40 8,60 96,90 Percentual de domicílios com energia elétrica .......................... 95,40 57,70 100,00 Desvio-Padrão 118 233 63 920 475 0,05 45 748 985 78,00 0,05 7,00 0,80 6,60 3,10 5,80 0,40 308,40 21,00 19,20 5,10 FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível:em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: jan. 2006. (1) A média é aritmética. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 557 No que concerne ao número médio de anos de estudo da população com 25 anos em diante, uma proxy do nível educacional, em 1991, os municípios da Região Sul do Brasil possuíam, em média, 4,1 anos. Entre 1991 e 2000, esse número médio foi elevado em 0,9 ano, passando, pois, para cinco anos. Ainda em relação à educação, no que diz respeito à taxa de analfabetismo entre pessoas com 25 anos ou mais de idade, entre 1991 e 2000, nesses municípios, houve diminuição de aproximadamente seis pontos percentuais, de modo que essa taxa de analfabetismo declinou de 19,6% para 13,6%. Entre 1991 e 2000, em média, a taxa de urbanização dos municípios da Região Sul aumentou em torno de oito pontos percentuais, passando de cerca de 55% para próxima de 63%. Desde que essa taxa representa uma proxy para o grau de aglomeração nas áreas urbanas desses municípios, esse aumento significa que, nesse período, houve uma diminuição das áreas rurais na Região Sul do Brasil. Em 1991, nos municípios dessa região, em cada 1.000 crianças, com até um ano de idade, morriam cerca de 31 crianças. Em 2000, nesses municípios, essa taxa de mortalidade infantil, uma proxy para o estado de saúde da população, passou a ser 18,8. No que diz respeito à porcentagem de domicílios com acesso à água encanada em 1991, os municípios sulistas apresentaram, em média, um percentual de 48,9%. Em 2000, tais municípios aumentaram esse acesso para 65,4%. Enfim, por meio dessa descrição, percebe-se que, entre 1991 e 2000, excetuando-se o indicador de desigualdade interpessoal da renda, índice de Gini, houve uma melhoria em todos os indicadores socioeconômicos dos municípios da Região Sul. 3 Um modelo de crescimento econômico dos municípios3 da Região Sul do Brasil Nesta seção, descreve-se o modelo que embasará o trabalho empírico. O modelo supõe que os municípios partilham idênticas dotações de trabalho e de capital, de modo que a poupança e a dotação exógena de trabalho não causam diferenças nas taxas de crescimento econômico dos municípios. Des- 3 O modelo descrito nesta seção está em consonância com Glaeser, Scheinkman e Shleifer (1995). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 558 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva sa forma, os municípios diferem-se somente via nível de produtividade e qualidade de vida. Assim, tem-se a seguinte função de produção:4 f ( Li ,t ) = Ai , t Lσi ,t , (1) onde Ai ,t representa o nível de produtividade do município i no tempo t; Li ,t representa a população da cidade i no tempo t; f (.) é uma função de produção Cobb-Douglas, comum entre os municípios, com elasticidade do produto em relação à mão-de-obra σ . Vale mencionar que a interpretação de é ampla, advindo de fontes educacionais e do nível da renda do trabalho. Em equilíbrio, no mercado de trabalho, a renda do trabalho é igual à produtividade marginal do trabalho: Wi ,t = σAi ,t Lσi ,t−1 (2) Definiu-se a utilidade total como a renda ponderada por um índice de qualidade de vida. Supondo que a qualidade de vida é uma função monotonicamente inversa do tamanho dos municípios: qualidade de vida = Qi ,t L−i ,δt (3) no qual δ > 0 . O índice de qualidade de vida Ai , t captura efeitos de vários fatores: criminalidade, densidade populacional, infra-estrutura social, urbanização, acesso aos serviços de saúde e desigualdade de renda. Assim, no município i, no ano t, a utilidade total da renda do trabalho é: U i ,t = σ A i , t Q i , t L σi , t− δ − 1 . (4) A partir da expressão (4), pode-se inferir que: U A Q L Ln i ,t +1 = Ln i ,t +1 + Ln i ,t +1 + (σ − δ − 1)Ln i ,t +1 U A Q L i ,t i ,t i ,t i ,t 4 (5) A suposição de que os estoques de capital dos municípios sulistas são idênticos e não influenciam a taxa de crescimento econômico advém de dois motivos: primeiro, constitui suposição básica do modelo de Glaeser; Scheinkman e Shleifer (1995); segundo, no Brasil, em nível municipal, no que concerne ao ano de 1991, apesar de já existirem dados para o estoque de capital privado (<www.nemesis.org.br/docs/estcapmun.pdf>), não existem dados relativos de total de estoque de capital (privado mais público). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 559 Assume-se que: A Ln i ,t +1 = X i',t β + ε i ,t +1 A i ,t (6) Qi ,t +1 = X i',tθ + ζ i ,t +1 Q i ,t e Ln (7) onde, X i ,t é um vetor com as características dos municípios no tempo t, determinando o crescimento tanto da produtividade quanto da qualidade de vida dos municípios. Ao se associar (5), (6) e (7), com algumas manipulações algébricas, pode-se escrever a seguinte equação: W 1 ' Ln i ,t +1 = X i ,t (δβ + σθ − θ ) + ϖ i ,t +1 Wi ,t 1 + δ − σ (8) em que χ i,t e ϖ i,t são termos não correlacionados com as características dos municípios. O resultado desse modelo é que a regressão representante do crescimento da renda do trabalho pode ser interpretada como uma função das características (produtividade e qualidade de vida) dos municípios. Mais precisamente, o crescimento da renda do trabalho é uma ponderação entre o nível de produtividade e a qualidade de vida. Nesse modelo empírico, os sinais esperados para os coeficientes representativos dos níveis da produtividade e da qualidade de vida estão no Quadro 1. Salienta-se que os sinais esperados das variáveis têm como referência as teorias de crescimento econômico informadas na coluna REFERENCIAL TEÓRICO do Quadro 1. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 560 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Quadro 1 Sinais esperados para os coeficientes representativos dos níveis da produtividade e da qualidade de vida dos municípios da Região Sul do Brasil CARACTERÍSTICAS DOS MUNICÍPIOS Produtividade Qualidade de vida VARIÁVEIS SINAL ESPERADO Renda do trabalho em 1991 (Ln) Número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade (proxy para capital humano) Percentual de domicílios com acesso à água encanada (proxy para infra-estrutura social) Percentual de domicílios com acesso à iluminação elétrica (proxy para infra-estrutura social) Taxa de mortalidade infantil (proxy para estado de saúde) Densidade populacional (proxy para efeitos de congestão) Taxa de urbanização (proxy para economias de aglomeração) Taxa de homicídios (proxy para criminalidade) Índice de Gini (proxy para desigualdade na distribuição interpessoal de renda) _ REFERENCIAL TEÓRICO – Solow (1956) + Lucas (1988); Mankiw, Romer e Weil (1992) + Barro (1990) + Barro (1990) – _ + – Bloom, Canning e Sevilha (2001) Fujita, Krugman e Venables (1999) Fujita, Krugman e Venables (1999) — Alesina e Rodrick (1994) 4 Metodologia Esta seção descreve como se investigará a relação entre a taxa de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul, variável dependente, e suas variáveis explicativas, variáveis que mensuram a produtividade e a qualidade de vida dos municípios, conforme descrito na seção anterior. Inicialmente, utilizar-se-ão os testes I de Moran (Assunção, 2004) e Local Indicators of Spatial Association (LISA) (Anselin, 1995), a fim de se construir uma análise exploratória dos dados espaciais, analisando-se se existe autocorrelação espacial nas taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios dessa região. A estatística, ou índice I de Moran, é uma estatística de autocorrelação espacial, que indica se a distribuição dos dados no espaço segue algum padrão não aleatório. Caso exista um padrão espacial para a variável em análise — taxa Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 561 de crescimento da renda do trabalho —, há duas possibilidades: autocorrelação positiva, caso em que os valores semelhantes se aproximam no espaço, ou negativa, caso em que os valores se distanciam espacialmente. Uma outra indicação da distribuição espacial de uma variável qualquer é a estatística LISA. Neste caso, a estatística LISA ilustrará os resultados apresentados pelo índice I de Moran. Segundo Pimentel e Haddad (2004), enquanto a estatística de Moran apresenta um resultado global para um determinado espaço econômico, a estatística LISA indica uma associação espacial local, no âmbito de cada unidade regional, apresentando a existência, ou não, de clusters de valores de uma dada variável em um determinado espaço. Com isso, é possível definir o tipo de “clusterização” existente para a variável em análise, que é a taxa de crescimento da renda do trabalho entre 1991 e 2000.5 Em um passo subseqüente, a fim de ratificar a presença de autocorrelação espacial no modelo econométrico, far-se-á, também, o teste I de Moran nos resíduos dos Mínimos Quadrados Ordinários (MQO). Se a presença de autocorrelação espacial for confirmada, usar-se-á a estratégia sugerida por Florax, Folmer e Rey (2003) na escolha do modelo econométrico apropriado para se analisar quais são as variáveis que determinam as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul. Basicamente, a econometria espacial sugere dois modelos: autocorrelação espacial na variável dependente (defasagem espacial) ou autocorrelação espacial no erro (erro espacial). No modelo de defasagem espacial, acrescenta-se, entre as variáveis explicativas do modelo clássico de MQO, uma defasagem espacial da variável dependente. Estima-se, assim, por meio do método de Máxima Verossimilhança (MV), o modelo especificado na equação (9). y = ρWy + Xβ 1 + ε ε ~ N (0, σ 2 I n ) (9) Aqui, y é um vetor (nx1), que representa as taxas de crescimento da renda do trabalho municipais. A matriz X (nxK) representa as variáveis explicativas, sendo β1 o vetor (Kx1) de coeficientes, que inclui tanto os coeficientes das proxies do nível de produtividade quanto os coeficientes das proxies do nível de qualidade de vida dos municípios estudados. A matriz W (nxn) é a matriz de contigüidade6, e o parâmetro ρ é o coeficiente de defasagem espacial, o qual capta os 5 6 Ver Silva e Resende (2005), para uma aplicação detalhada das estatísticas de Moran e LISA. A relação de contigüidade adotada neste trabalho foi a chamada Queen, ou seja, são considerados vizinhos os municípios que têm fronteiras ou vértices com outros. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 562 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva efeitos de transbordamento das taxas de crescimento da renda do trabalho sobre os vizinhos. No modelo de erro espacial, modela-se o erro, ε , do modelo de MQO da seguinte forma: ε = λWε + u . Aqui, λ é um escalar do coeficiente do erro, e u ~ N (0, σ 2 I ) . Assim, tem-se o modelo de erro espacial especificado na equação (10). (10) y = Xβ + ( I − λW ) −1 ε 1 Como dito anteriormente, este trabalho segue a abordagem sugerida por Florax, Folmer e Rey (2003), para a escolha da especificação apropriada do modelo a ser estimado. As ferramentas usadas para identificar o modelo apropriado são os testes de Multiplicador de Lagrange (ML) em sua versão robusta.7 Esses autores seguem os seguintes passos: a) estime via MQO o modelo y = Xβ 1 + ε ; b) teste a hipótese de ausência de dependência espacial devido a uma omissão da defasagem espacial da variável dependente ou devido à omissão do erro espacial auto-regressivo, usando MLρ e MLλ respectivamente; c) se ambos os testes não forem significantes, a estimação do primeiro passo é utilizada como a especificação final, caso contrário, siga o passo (d); d) se ambos os testes forem significantes, estime a especificação que apresentar o maior valor do teste, por exemplo, se MLρ > MLλ então, estime o modelo (9), defasagem espacial. Se ML ρ < MLλ , então, estime o modelo (10), erro espacial, caso contrário, siga o passo (e); e) se MLρ for significativo, mas MLλ não, estime o modelo (9), caso contrário, siga o passo (f); f) estime o modelo (10). Assim, por meio dessa metodologia, escolher-se-á o modelo econométrico apropriado para se analisar quais são as variáveis (representativas da produtividade e da qualidade de vida) que determinam as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil. 7 Para maiores detalhes, ver Florax, Folmer e Rey (2003, p.562) . Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 563 5 Base de dados A amostra consiste em 594 áreas mínimas comparáveis dos municípios da Região Sul do Brasil para o período 1991-00. Todas as variáveis utilizadas foram obtidas no Ipeadata (2006): (logaritmo da) renda do trabalho em 1991 (R$ de 2000), percentual de domicílios com água encanada; percentual de domicílios com iluminação elétrica; número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade; taxa de mortalidade infantil até um ano de idade (por 1.000 nascidos vivos); índice de Gini; taxa de urbanização; densidade populacional; e taxa de homicídios8 (média dos anos da década de 80). No que concerne às variáveis independentes, foram utilizados dados do início do período, ou seja, do ano de 1991. A variável dependente do modelo estimado é a taxa média anual de crescimento da renda do trabalho entre 1991 e 2000. Em virtude de apresentarem índices de correlação elevados com outras variáveis, não foram incluídas no modelo as seguintes variáveis: percentual de pessoas de 25 anos ou mais de idade analfabetas; percentual de pessoas com renda domiciliar por habitante abaixo de R$ 37,75; esperança de vida ao nascer (taxa de urbanização em 1991)^2 e (índice de Gini em 1991)^2 . Com isso, minimizam-se os problemas decorrentes da multicolinearidade. Ao se utilizarem as variáveis no início da década, ou o uso da média da década anterior9, para explicar os fatores que determinam as taxas de crescimento econômico da década, supõe-se que essas variáveis influenciam por alguns anos as taxas de crescimento econômico dos municípios. Essa hipótese leva consigo a idéia de que os efeitos da educação, da infra-estrutura e das condições de saúde sobre as taxas de crescimento econômico não se dissipam imediatamente, mas se distribuem uniformemente ao longo do período. Assim, controla-se, também, a possível endogeneidade do modelo. 6 Resultados Como proposto inicialmente, na metodologia, para o período 1991-00, apresenta-se o Gráfico de Moran10 (Figura 1) para as taxas médias de crescimento 8 Cálculo da taxa: divisão do grupo populacional (multiplicado por 100.000) pela população de referência. 9 É o caso da taxa de homicídios. 10 O cálculo da estatística I de Moran, bem como a construção do Gráfico de Moran e todas as análises posteriores foram feitas utilizando-se o software Geoda 0.95i, disponível no site: <http://sal.agecon.uiuc.edu/geoda_main.php>. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 564 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil. Destaca-se que, acima da Figura 1, se encontra a estatística I de Moran. Figura 1 Taxas médias de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil — 1991-00 FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: jan. 2006. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 565 A análise visual do Gráfico de Moran sugere a existência de autocorrelação espacial positiva nas taxas médias de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região, visto que essas taxas se concentram no primeiro e no terceiro quadrantes. Verifica-se, pois, que municípios com alta (baixa) taxa de crescimento da renda do trabalho11, em média, são vizinhos de municípios com alta (baixa) taxa de crescimento da renda do trabalho. Corroborando a análise visual, a estatística I de Moran mostrou-se significante em um nível de 0,01%, a partir de testes com aproximadamente 10.000 permutações. A fim de ilustrar a autocorrelação espacial verificada por meio da estatística I de Moran, o Mapa 2 demonstra os resultados da estatística LISA, em um nível de confiança de 95%, apresentando, pois, quatro regimes espaciais para as taxas médias de crescimento da renda do trabalho, entre 1991 e 2000, dos municípios da Região Sul do Brasil. O Mapa 2 confirma que, em um nível de 95% de confiança, existe um padrão para a configuração espacial da taxa de crescimento da renda do trabalho entre 1991 e 2000. Nota-se que, no Paraná, nos municípios que circundam Moreira Sales, Boa Esperança, Ubiratã, Campina da Lagoa, Cândido Abreu e Jacarezinho, dentre outros, preponderam municípios no padrão baixo-baixo, ou seja, municípios com baixa taxa de crescimento da renda do trabalho, que são cercados por municípios com baixa taxa de crescimento da renda do trabalho. A configuração espacial baixo-baixo também está presente em alguns municípios do Rio Grande do Sul, como Caçapava do Sul, Piratini e seus respectivos vizinhos. No Mapa 2, pode-se também visualizar, ao redor de Curitiba, um cluster de municípios no padrão alto-alto, isto é, municípios com alta taxa de crescimento da renda do trabalho que são cercados por municípios com alta taxa de crescimento da renda do trabalho. A partir dos resultados apresentados, inspeciona-se, por meio da aplicação da estatística I de Moran nos erros do modelo MQO, a presença de autocorrelação espacial. Essa estatística confirmou os resultados apresentados, ao indicar que os erros do modelo MQO são autocorrelacionados. Concluiu-se, então, que, no modelo de crescimento econômico dos municípios da Região Sul, há autocorrelação espacial.12 Desse modo, justifica-se a utilização das técnicas de econometria espacial na estimação. 11 Ressalta-se que alta (baixa) taxa de crescimento, aqui, se refere à taxa de crescimento acima (abaixo) da média padronizada das taxas de crescimento dos municípios sulistas. 12 Os resultados da aplicação da estatística I de Moran nos resíduos dos modelos estimados constam no Quadro 2. Os respectivos gráficos estão na Figura 2. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 566 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Mapa 2 Mapa 2 de “clusterização” dos municípios da Região dodo Brasil — 1991-00 Mapa Mapa de "clusterização" dos municípios RegiãoSul Sul Brasil — 1991-00 FONTE DOS DADOS BRUTOS: IPEADATA. Dados macroeconômicos e regionais. Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: jan. 2006. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 567 Conforme descrito na Metodologia, a fim de se escolher qual modelo (defasagem espacial ou erro espacial) é o mais adequado para esta análise, seguiram-se as recomendações de Florax, Folmer e Rey (2003), de modo que se explicitam, no Quadro 2, os testes MLρ e MLλ . Em virtude de MLλ e MLρ serem significativos, seguiu-se o passo (d) da seção 4 (Metodologia). Desde que MLλ > MLρ, no Quadro 2, utiliza-se apenas a coluna erro espacial na análise de quais são as variáveis que determinam as taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios do sul do Brasil. Entretanto, ainda no Quadro 2, reportam-se, também, os resultados dos estimadores MQO e do modelo de defasagem espacial. No Quadro 2, é importante salientar que os resultados da aplicação da estatística I de Moran nos resíduos do modelo estimado erro espacial13 mostram que a autocorrelação espacial foi tratada. Conforme se esperava, o parâmetro λ , que mensura a autocorrelação espacial, foi significativo. Como bem salienta Rey e Montoury (1999), quando λ ≠ 0 , um choque ocorrido em uma unidade geográfica espalha-se não só para os seus vizinhos imediatos, mas por todas as outras unidades. Assim, pode-se afirmar que a ocorrência de choque em um município da Região Sul do Brasil transborda para toda ela. É válido destacar que, no que concerne à vantagem em se estimar via modelo erro espacial em vez de MQO, se pode observar a diferença de magnitude em alguns parâmetros, principalmente número médio de anos de estudo e índice de Gini. Haja vista que, neste estudo, parece não haver diferença entre os sinais das estimativas MQO e erro espacial. Em outras palavras, a ausência de correção de dependência espacial parece não afetar o sinal da estimativa. Em relação a essa correção, outro ponto importante é que, enquanto o modelo MQO possui R2 de 0,31, o modelo de erro espacial possui R2 de 0,44. Isso sugere que, nesse modelo que corrige a dependência espacial, uma parcela maior dos diferenciais das taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da amostra é explicada. Ou seja, no modelo de erro espacial, aproximadamente 44% dos diferenciais de crescimento entre os municípios da Região Sul do Brasil são explicados, enquanto, no MQO, apenas 31% são explicados. Mesmo com essa vantagem explícita do modelo de erro espacial em relação ao MQO, é válido mencionar que ainda existe um vasto espaço para identificar outros condicionantes das taxas de crescimento econômico dos municípios da Região. 13 O gráfico está na Figura 2 deste artigo. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Resíduos da regressão do modelo de Mínimos Quadrados Ordinários (MQO) à esquerda e modelo de erro espacial à direita, para a amostra de municípios da Região Sul do Brasil Figura 2 568 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 569 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... Quadro 2 Resultados das estimativas econométricas VARIÁVEL DEPENDENTE: TAXA ANUAL DE CRESCIMENTO DA RENDA DO TRABALHO ENTRE 1991 E 2000 Variáveis Constante λ ρ Dummy para os municípios do Estado de Santa Catarina Dummy para os municípios do Estado do Rio Grande do Sul Ln (renda do trabalho em 1991) Número médio de anos de estudo em 1991 Percentual de domicílios com água encanada em 1991 Percentual de domicílios com energia elétrica em 1991 Mortalidade infantil em 1991 Densidade populacional em 1991 Taxa de urbanização em 1991 (%) Taxa de homicídios média entre 1980 e 1990 (%) Índice de Gini em 1991 R2 Mínimos Quadrados Ordinários Defasagem Espacial Erro Espacial 16,8287 14,3265 16,6207 (0,000) (0,000) (0,000) - - 0,52 - - (0,000) - 0,3995 - - (0,000) - 0,2752 (0,462) -0,1282 (0,716) 0,7380 (0,126) -1,0586 (0,001) -0,8376 (0,024) -0,8150 (0,137) -0,5339 (0,000) -0,4626 (0,000) -0,5152 (0,000) 1,5398 (0,000) 1,1649 (0,000) 1,0654 (0,000) -0,0381 (0,005) -0,0302 (0,015) -0,0302 (0,018) -0,0189 (0,165) -0,0145 (0,250) 0,0036 (0,801) -0,02 (0,283) -0,0001 (0,747) -0,0143 (0,292) -0,0005 (0,275) -0,02 (0,219) -0,0006 (0,202) 0,0306 (0,008) 0,0282 (0,008) 0,0342 (0,002) -0,0244 (0,071) -0,0250 (0,045) -0,0307 (0,012) -17,8647 (0,000) -15,4970 (0,000) -19,2735 (0,000) 0,31 0,40 0,44 (continua) Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 570 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva Quadro 2 Resultados das estimativas econométricas VARIÁVEL DEPENDENTE: TAXA ANUAL DE CRESCIMENTO DA RENDA DO TRABALHO ENTRE 1991 E 2000 Variáveis Mínimos Quadrados Ordinários Defasagem Espacial Diagnóstico para dependência espacial Teste I de Moran (teste dos resíduos) 0,245 (1) (0,00) MLρ (lag) MLλ (erro) Teste LR Erro Espacial 0,025 (0,15) -0,023 (0,21) 72,03 (0,00) - - 92,53 (0,00) - - - 60,44 (0,00) 84,66 (0,00) NOTA: 1. Vale ressaltar que, na metodologia para a escolha do modelo espacial adequado, os resíduos devem ter distribuição normal, o que se verifica no caso de grandes amostras, de acordo com o teorema central do limite. 2. Valores p entre parênteses. te(1) O teste I de Moran, feito a partir dos resíduos da regressão de Mínimos Quadrados Ordinájrios, rejeitou a hipótese nula, ou seja, rejeitou a hipótese de ausência de autocorrelação espacial. As dummies para os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul não foram significativas, mostrando que, entre eles, não há diferença significativa nas taxas de crescimento da renda de trabalho. Mais uma vez, isso mostra que o modelo utilizado corrige para o efeito da dependência espacial e, mais importante, mostra a importância dos atributos capturados nas variáveis explicativas (responsáveis pelos diferenciais de crescimento dos municípios da Região Sul), pois, observando-se apenas a Figura 1, se ficaria com a impressão de que, em relação aos municípios dos outros dois estados da Região Sul, os de Santa Catarina possuíam taxas significativamente maiores de crescimento da renda do trabalho. Em um nível de 95% de confiança, foram seis as variáveis estatisticamente significativas: renda do trabalho em 1991, número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade em 1991, percentual de pessoas com acesso à água encanada em 1991, taxa de urbanização em 1991, taxa de homicídios em 1991 e Índice de Gini em 1991. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 571 À exceção do coeficiente do percentual de pessoas com acesso à água encanada, todos os coeficientes significativos estão em consonância com os sinais esperados pela teoria econômica, conforme Quadro 1. O coeficiente do nível da renda do trabalho é negativo e significativo, mostrando que municípios com níveis iniciais de renda do trabalho mais baixos tendem a crescer mais rapidamente que os municípios com maiores níveis de renda14. A proxy do grau de escolaridade da população, número médio de anos de estudo, apresentou um sinal positivo, demonstrando, portanto, que, quanto maior for o nível de escolaridade da população, maior será a taxa de crescimento da renda do trabalho do município. O coeficiente da taxa de urbanização também foi positivo e significativo, mostrando que, quando se aumenta o percentual de urbanização em 1%, a taxa de crescimento da renda do trabalho dos municípios estudados se eleva em 0,03%. As estimativas mostraram também que, nesses municípios, a concentração de renda e a criminalidade impactam negativamente a taxa de crescimento da renda do trabalho. Na Região Sul do Brasil, quanto maior for o índice de Gini115, que mensura a desigualdade de renda, menor será a taxa de crescimento da renda do trabalho. Em uma sociedade mais desigual, seus habitantes têm menor poder de barganha para negociar as perdas; isso implica que as relações de trabalho se desenvolvem de maneira menos eficiente, diminuindo, portanto, o produto marginal do trabalho e, conseqüentemente, a taxa de crescimento da renda do trabalho. Nos municípios da Região, quanto maior for a taxa de homicídio (média do número de homicídios na década de 80), que é uma proxy da criminalidade, menor será a taxa de crescimento da renda do trabalho. Nesse caso, a análise sugere que municípios mais violentos geram uma pior qualidade de vida para seus habitantes, diminuindo a utilidade fornecida pela renda do trabalho e, assim, impactando negativamente as taxas de crescimento da renda do trabalho.16 No que concerne ao percentual de pessoas com acesso à água encanada, o sinal do coeficiente foi negativo, ao contrário do que se esperava, conforme consta na seção 3, no Quadro 1. Não se encontrou uma explicação razoável para o sinal negativo desse coeficiente. 14 Pode-se afirmar a ocorrência de convergência beta condicional, ou seja, os municípios não estão convergindo para um mesmo nível de renda do trabalho, mas, sim, para os próprios níveis de estado estacionário. 15 O índice de Gini varia de 0 a 1; quanto mais próximo estiver de 1, maior será a concentração de renda. 16 Outra possível explicação para esse coeficiente da taxa de homicídio é que, em virtude de o modelo aqui apresentado não incluir o logaritmo da população das AMC, essa taxa pode estar captando possíveis deseconomias de aglomeração. Isso se explica, porque a violência tende a ser maior nas áreas metropolitanas, usualmente já saturadas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 572 Guilherme Mendes Resende; Alexandre Manoel Angelo da Silva 7 Conclusões Neste artigo, investigou-se que variáveis são determinantes das taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul. Investigou-se, também, se existe autocorrelação espacial na taxa de crescimento da renda do trabalho desses municípios. No que diz respeito a essa autocorrelação, verificou-se que, na Região Sul do Brasil, municípios com alta (baixa) taxa de crescimento da renda do trabalho, em média, são vizinhos de municípios com alta (baixa) taxa de crescimento da renda do trabalho. No modelo de erro espacial estimado, constatou-se que a ocorrência de choque em um município da Região transborda para toda ela. No que concerne à vantagem em se corrigir a dependência espacial, dois pontos merecem ser destacados: há diferença de magnitude em alguns parâmetros, e uma parcela maior dos diferenciais das taxas de crescimento da renda do trabalho dos municípios sob enfoque (da amostra) é explicada. Além disso, em um nível de confiança de 95%, foram seis as variáveis estatisticamente significativas que mostraram determinar o crescimento da renda do trabalho dos municípios da Região Sul do Brasil: renda do trabalho em 1991, número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade (proxy de educação), percentagem de domicílios com acesso à água encanada (proxy de infra-estrutura social), taxa de urbanização (proxy para economias de aglomeração), taxa de homicídios (proxy para o nível de criminalidade) e índice de Gini (proxy para o nível de desigualdade de renda). À exceção do coeficiente da percentagem de domicílios com acesso à água encanada, todos os outros coeficientes significativos estão em consonância com os resultados apontados pela teoria econômica. Ressalta-se que não se obteve uma explicação razoável para a taxa de crescimento da renda do trabalho variar em sentido contrário ao aumento do acesso das pessoas à água encanada. Sendo assim, nos municípios estudados, quanto maiores forem os níveis de escolaridade e as taxas de urbanização, maiores serão suas taxas de crescimento da renda do trabalho. Por outro lado, quanto menores forem o número de homicídios, a concentração de renda e os níveis iniciais da renda, maiores serão as taxas de crescimento da renda do trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 549-576, out. 2007 Crescimento econômico dos municípios da Região Sul do Brasil... 573 Referências ALESINA, A.; RODRICK, D. Distributive politics and economic growth. 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Acreditava-se que, com a internacionalização do sistema bancário, seria possível solucionar a grande fragilidade estrutural do setor financeiro brasileiro: a ausência de mecanismos privados domésticos de financiamento de longo prazo. Percebe-se, no entanto, que, embora o setor bancário brasileiro se tenha fortalecido e consolidado, não ocorreram mudanças significativas referentes à oferta de crédito para o setor produtivo, uma vez que o sistema bancário optou por um tipo de estratégia e rentabilidade que privilegia a liquidez dos títulos de dívida pública em detrimento do crédito. Palavras-chave Reestruturação do setor bancário; internacionalização do setor bancário; concentração bancária. Abstract The end of inflationary process after the introduction of the Real Plan took the Brazilian banking sector to undertake a process of reorganization by the increase * Artigo recebido em fev. 2005 e aceito para publicação em maio 2007. ** A autora agradece as contribuições de um parecerista anônimo. O apoio do Funpesquisa-UFSC é reconhecido. E-mail: [email protected] Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 578 Patrícia F. F. Arienti of the banking concentration as well as the internationalization of the sector. It was supposed that the internationalization of the banking system would solve the great fragility structural of the Brazilian financial sector: the absence of domestic private mechanisms of financing of long run credit. It is perceived, however, that even so the Brazilian banking sector has been fortified and consolidated, changes of credit supply for the productive sector has not occurred once the banking system has opted for a strategy that has privileged the liquidity of the of public debt at the expenses of the credit. Key words Bank system restructuring; financial globalization; bank sector concentration. Classificação JEL: E65, G21. 1 Introdução A implementação do Plano Real e o conseqüente controle da inflação impossibilitaram ao setor bancário a manutenção de sua rentabilidade através da receita inflacionária. A inviabilidade da manutenção da receita inflacionária indicava que o sistema financeiro teria de passar por um processo de ajuste, de forma a adaptar sua dinâmica operacional ao novo contexto macroeconômico. Dessa forma, logo após a implementação do Plano Real, a primeira estratégia de ajuste adotada pelos bancos que operavam no País foi compensar a perda da receita inflacionária com o crescimento da oferta de crédito, mantendo, dessa forma, o mesmo nível de rentabilidade anterior à estabilidade econômica. A manutenção da rentabilidade do setor através da adoção de uma estratégia de ajuste baseada numa postura mais agressiva no que concerne à oferta de crédito evitou, temporariamente, uma reestruturação mais profunda do setor bancário após a implementação do Plano Real.1 1 Ao explicar a manutenção da rentabilidade dos principais bancos nesse período, deve-se também destacar o papel desempenhado pelo significativo aumento das receitas provenientes de prestação de serviços, especialmente beneficiada pela liberalização da cobrança de tarifas. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 579 O crescimento do crédito no período inicial do Plano ocorreu, apesar da adoção de uma política restritiva por parte das autoridades monetárias como forma de controlar a explosão do mesmo. Na época, o pensamento econômico do Governo era o de que a estabilidade econômica, na medida em que eliminasse os ganhos inflacionários, levaria os bancos a compensarem essa perda de receita através da expansão das operações de crédito. Conforme Soares (2001, p. 10), [...] aparentemente, em virtude dessa unanimidade, a preocupação principal do governo era a de como evitar a explosão do crédito. O crescimento exagerado do crédito poderia fragilizar os bancos e criar uma bolha de consumo, ameaçando a estabilização de preços. Para evitar esse crescimento, o Banco Central estabelece uma política rigorosa de depósitos compulsórios sobre depósitos à vista, a prazo e sobre outras operações, e adota normas mais restritivas para a concessão de créditos. Entretanto, apesar da política restritiva, os estudos mostram que os créditos cresceram. A política monetária restritiva adotada pelas autoridades monetárias no início do Plano Real acabou por reforçar a tendência de queda do ritmo de crescimento econômico do País, que começava a aparecer já em 1995. O cenário econômico recessivo de 1995, somado à manutenção de uma taxa de juros bastante elevada, reduziu fortemente a capacidade dos devedores de saldarem suas dívidas. Diante desse quadro, a inadimplência no setor bancário aumentou substancialmente, especialmente no segundo semestre de 1995, após a crise do México. De acordo com Baer e Nazini (1999) apud Salviano Jr. (2004), para o conjunto do sistema financeiro, a taxa de inadimplência passou de 5% em setembro de 1994 para 15% em 1997. Dessa forma, embora, no primeiro momento do Plano Real, o setor bancário tenha sido capaz de se adaptar ao novo contexto macroeconômico através de uma postura mais ousada de aumento no seu nível de crédito, essa postura tornou-se mais conservadora após o delineamento de uma crise bancária, em 1995. Nessas condições, evidenciou-se a fragilidade tanto dos vários bancos que haviam entrado no mercado, a partir da reforma financeira de 1988, apenas com o intuito de servirem de balcão de aplicações, como daqueles que não conseguiram se ajustar ao fim da inflação e, conseqüentemente, à perda dos ganhos de floating. Além disso, a intervenção nos Bancos Nacional e Econômico provocou a perspectiva da instauração de uma crise bancária. A partir de 1995, observou-se um cenário de crescente fragilidade macroeconômica, marcado por um brutal aperto de liquidez, juros altos e recorrentes choques externos — a partir da crise mexicana — e elevado grau de inadimplência dentro do setor bancário. Diante da forte ameaça de uma crise bancária em 1995 e 1996, iniciou-se a reestruturação do setor bancário brasileiro, baseada em duas grandes alterações: o aumento da concentração bancária Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 580 Patrícia F. F. Arienti e a internacionalização do setor, ambas interligadas. Além disso, paralelamente ao processo de reestruturação, o sistema bancário brasileiro buscou ajustar seu funcionamento aos condicionamentos impostos pela adesão do Acordo da Basiléia, ocorrida em 1994. O objetivo deste artigo é avaliar os resultados da reestruturação do sistema bancário brasileiro ao longo da década de 90 do século XX e a sua consolidação no período de 2000 a 2003, considerando a dupla dimensão dos bancos numa economia capitalista: por um lado, o desempenho do setor como reflexo da procura de novas fontes de lucro por parte dos bancos individuais; por outro, o impacto da reestruturação do sistema bancário do País, após a entrada de instituições estrangeiras e após o aumento do seu grau de concentração, no desempenho do papel indispensável do sistema bancário para o dinamismo da economia capitalista, ou seja, no fornecimento de crédito aos outros agentes econômicos. Assim, ao longo da segunda seção, buscar-se-á avaliar o processo dessa reestruturação do setor bancário brasileiro. Na terceira seção, a rentabilidade e a oferta de crédito serão analisadas, considerando apenas os bancos privados. Finalmente, conclui-se o artigo afirmando que, embora o setor bancário brasileiro se tenha fortalecido e consolidado a partir da reestruturação implementada, não ocorreram alterações significativas no que diz respeito à oferta de crédito para o setor produtivo, uma vez que o setor optou por um tipo de estratégia que privilegia a liquidez dos títulos de dívida pública em detrimento do crédito. 2 A crise e a reestruturação do sistema bancário: concentração bancária e internacionalização do setor 2.1 A concentração bancária A fim de evitar uma crise de insolvência e de possibilitar o processo de reestruturação do sistema bancário, as autoridades governamentais implementaram, dentre outras medidas prudenciais, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (Proer), em 1995, e o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes), além do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), em agosto de 1996. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 581 O Proer foi instituído como um mecanismo de financiamento, para que instituições saudáveis pudessem absorver bancos em dificuldades. Através dele, os passivos e ativos recuperáveis das instituições insolventes foram transferidos para outras instituições, enquanto os débitos irrecuperáveis foram absorvidos pelo Banco Central. Além disso, o Banco Central também financiou a absorção, pelos bancos adquirentes, da parcela recuperável da carteira da instituição insolvente (Freitas, 1998). Dessa forma, através dos referidos programas, o Estado arcou não apenas com o ônus do ajuste, mas também com o próprio movimento de encerramento de bancos que não conseguiram se ajustar ao novo contexto macroeconômico e à perda dos ganhos inflacionários. Nos anos seguintes à implementação do Proer, ocorreu uma significativa redução do número de instituições financeiras, através de processos de transferência de controle, incorporações, cancelamentos e liquidações, financiados, em grande medida, por ele próprio. Segundo Salviano Jr. (2004, p. 69-70), [...] exemplos mais significativos desse movimento de consolidação dentro do sistema financeiro foram as aquisições do Banco Econômico pelo Excel (1995 — vendido em 1998 ao Banco BilbaoVizcaya), do Banco Nacional pelo Unibanco (1995), do Bamerindus pelo HSBC (1997), do Banco de Crédito Nacional (BCN) pelo Bradesco (1998) e, mais recentemente, do Banco Real pelo ABN Amro (1999). O Proer destinava-se apenas aos bancos privados. Os bancos estaduais, no entanto, devido à menor flexibilidade para a redução dos custos e à existência de carteiras de operações de crédito em situação muito fragilizada, foram ainda mais duramente atingidos pela perda dos ganhos de floating. Segundo Salviano Jr. (2004), os mais afetados foram aqueles responsáveis pelos maiores fundos de liquidez das dívidas estaduais. Assim, em agosto de 1996, através da Medida Provisória n° 1.514, foi instituído o Proes, com a finalidade de sanear o sistema financeiro público estadual. Segundo Salviano Jr. (2004, p. 81), a proposta fundamental do Programa é “[...] reduzir ao mínimo a presença das instituições financeiras controladas por governos estaduais no sistema financeiro”. Pacotes que incluíam 100% dos recursos necessários ao saneamento dos bancos estaduais foram oferecidos aos estados. Em contrapartida, caberia ao estado receptor desses recursos comprometer-se a adotar uma das seguintes estratégias para com seus bancos estaduais: (a) liquidação; (b) privatização; (c) transferência do seu controle para o Governo Federal, a fim de futura privatização; ou (d) transformação do banco numa agência de desenvolvimento. Naqueles casos em que houvesse apenas o saneamento, sem a transferência de controle acionário ou a transformação em agências de fomento, a ajuda do Governo Federal limitar-se-ia a apenas 50% dos recursos necessários. Caberia aos governos estaduais assumirem o restante. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 582 Patrícia F. F. Arienti O resultado foi que o processo de saneamento se deu mediante uma combinação entre as várias alternativas: as privatizações representaram a principal estratégia, ocorreram algumas liquidações, e, em alguns casos, como o do Banrisul, o banco permaneceu com seus controladores mesmo após o saneamento (Salviano Jr., 2004). De acordo com Paula e Marques (2005, p. 13), Dos 35 bancos estaduais existentes em 1996, 10 foram extintos, 6 privatizados pelos governos estaduais, 7 federalizados para posterior privatização, 5 reestruturados com recursos do Proes e apenas 3 não participaram do programa, conforme dados de julho de 1998. O objetivo desse programa não foi apenas reduzir a participação do Estado na atividade bancária, mas também resolver o problema do déficit público. De fato, de acordo com Puga (1999), o relacionamento entre bancos estaduais, Governo Estadual e Governo Federal era marcado pela seguinte prática: como havia poucas restrições ao volume de financiamentos que os governos estaduais podiam obter de seus bancos, o abuso no endividamento implicava que os fluxos de caixa dos estados se tornavam insuficientes para atender aos serviços da dívida, gerando problemas de liquidez para os seus bancos. Pressões políticas exercidas pelos governadores levavam o Banco Central a socorrer essas instituições, seja através do redesconto ou de um empréstimo de liquidez, seja mediante a injeção de liquidez no mercado. Essa prática terminava dificultando a condução da política monetária.2 A partir da implementação do Proes e do Proer, começou a se delinear a primeira das transformações que iriam alterar a configuração do sistema bancário nacional: o crescimento da concentração do setor. Conforme mostra a Tabela 1, entre 1996 e 2003, 67 bancos foram eliminados como resultado desse processo. A partir dos dados da Tabela 1, pode-se perceber que a concentração do setor bancário reflete dois movimentos distintos. Primeiramente, ocorreu uma profunda alteração na composição da propriedade dos bancos, no Brasil, com o aumento da participação dos bancos estrangeiros (como será visto na seção seguinte) e com uma significante redução da participação dos bancos nacionais e dos bancos públicos. Em segundo lugar, o processo de concentração ocorrido no País vai além da mudança de propriedade dos bancos, uma vez que o aumento da participação dos bancos privados no setor tem acontecido paralelamente à redução da participação dos bancos públicos, como pode ser visto na Tabela 1. Conforme Corrêa e Almeida Filho (2001), a concentração bancária não é, em si, uma novidade no País. A grande novidade na década de 90 está no fato 2 Ressalta-se, no entanto, que o Proes se destinava apenas aos bancos estaduais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 583 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro de que ela vem se realizando a partir de uma mudança de propriedade dos bancos, com maior participação dos bancos estrangeiros em detrimento da participação dos bancos estaduais. Pode-se, portanto, constatar que o aumento da participação do setor privado e, principalmente, de bancos estrangeiros, paralelamente à redução da participação dos bancos públicos, é, de fato, uma mudança estrutural na configuração do sistema bancário operante no Brasil. Tabela 1 Número de instituições financeiras no Brasil — 1996-03 TIPOS DE INSTITUIÇÃO Bancos privados nacionais .............. Bancos com controle estrangeiro ... Bancos com participação estrangeira ......................... Bancos públicos nacionais e Caixa Econômia Federal TOTAL ................. 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 130 119 105 96 93 82 75 78 40 45 58 67 69 70 65 62 29 26 17 12 13 14 11 10 32 231 27 217 23 203 19 194 17 192 16 182 16 167 14 164 FONTE: Bacen/Cosif. 2.2 A internacionalização do setor bancário Além do movimento de crescimento da concentração bancária, a outra grande transformação ocorrida no desenho do sistema bancário nacional foi a crescente desnacionalização do setor, através da entrada dos bancos estrangeiros. Deve-se ressaltar, no entanto, que a concentração e a internacionalização do sistema bancário estão intimamente interligadas, uma vez que o próprio movimento de fusões e aquisições de bancos nacionais pelos bancos estrangeiros implica um aumento do grau de concentração bancária.3 3 Ressalta-se, no entanto, que a internacionalização do sistema bancário brasileiro, quando se toma a participação dos estrangeiros no total de ativos, pode ser considerada tímida frente ao resto da América Latina, do Leste Europeu e mesmo de alguns países asiáticos. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 584 Patrícia F. F. Arienti Em agosto de 1995, num contexto de fragilidade crescente do sistema bancário nacional (através da Exposição de Motivos n° 311, encaminhada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República e aprovada por este), o Governo brasileiro determinou serem do interesse nacional tanto a entrada como o aumento da participação de instituições estrangeiras no sistema financeiro nacional.4 Vasconcelos, Fucidji e Strachman (2002) ressaltam que um dos principais argumentos a favor do ingresso de bancos estrangeiros no Brasil é o de que eles possuem elevada experiência e técnica em operações de crédito adquiridas em seus países de origem. Dessa forma, a abertura aos bancos estrangeiros poderia contribuir para o aumento do fornecimento do crédito. Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 64): A expectativa de muitos analistas, inclusive a do governo, era que os bancos estrangeiros viriam para o Brasil com o objetivo de explorar o segmento de crédito, oferecendo, para isso, taxas de juros e prazos mais atraentes que os dos bancos nacionais. As armas que utilizariam para tanto seriam a maior expertise na concessão de crédito e os menores custos operacionais. Entre os defensores da abertura do sistema financeiro às instituições estrangeiras havia a expectativa de que, com a entrada desses bancos, aumentaria a qualidade dos serviços e a concorrência. Uma vez que as instituições estrangeiras trazem consigo tecnologias de gerenciamento de recursos e inovações de produtos e serviços ao mercado brasileiro, um melhor serviço a um menor preço e com maior eficiência seria oferecido. Devido à concorrência, o setor bancário como um todo passaria a buscar maior eficiência operacional, o que ajudaria a reduzir os elevados custos bancários no Brasil, barateando a oferta de crédito. Havia implícita a hipótese do mainstream econômico de que a eficiência microeconômica levaria, automaticamente, à eficiência macroeconômica (Carvalho; Studart; Alves Jr., 2002). Conforme já visto na Tabela 1, no período entre 1996 e 2001, a participação dos bancos estrangeiros no País aumentou consideravelmente. A partir de 2002, no entanto, observa-se um movimento de redução da participação desses bancos. Com relação a essa reversão, Paula e Marques (2005, p. 15) ressaltam que [...] recentemente, a turbulência do mercado financeiro na América Latina e a aversão global ao risco em 2002 provocaram uma retração na expansão dos bancos estrangeiros, no continente e no Brasil. No caso brasileiro, a 4 Para um relato da legislação referente à entrada de bancos estrangeiros no País desde a Constituição de 1946, ver Freitas (1998). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 585 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro tentativa de venda do Sudameris do Brasil (Grupo Intesa) ao Banco Itaú, posteriormente vendido ao ABN Armo, e a venda do BBV Banco para o Bradesco, no início de 2003, são sinais claros de que alguns bancos estrangeiros que não conseguiram criar escala suficiente para competir no varejo decidiram vender seus ativos no Brasil. Ainda com relação à Tabela 1, deve-se destacar que, embora os bancos estrangeiros tenham aumentado sua participação no sistema bancário brasileiro ao longo do período, os grandes bancos nacionais (principalmente Bradesco, Itaú e Unibanco) também participaram ativamente do processo de fusões e aquisições bancárias, “[...] através de aquisições de bancos estaduais em leilões de privatização e de bancos domésticos estrangeiros de porte médio” (Paula; Marques, 2005, p. 16), mantendo, dessa forma, uma participação importante no setor. A Tabela 2 permite uma avaliação do grau da ampliação da participação das instituições estrangeiras no sistema bancário nacional. Tabela 2 Participação percentual dos bancos estrangeiros no sistema bancário brasileiro — 1994-03 ANOS PATRIMÔNIO 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 9,57 13,08 10,29 14,29 21,86 25,46 28,31 30,72 32,89 28,06 DEPÓSITOS 4,58 5,4 4,36 7,54 15,14 16,80 21,14 20,14 19,82 17,56 ATIVOS 7,16 8,39 9,79 12,82 18,38 23,19 27,41 29,86 27,38 20,73 FONTE: Bacen/Cosif. O acentuado aumento da participação estrangeira no patrimônio líquido do setor explica-se pelas aquisições de importantes instituições nacionais a partir de 1997. A partir de 2002, a venda de bancos estrangeiros explica a redução. A participação estrangeira nos depósitos do sistema bancário nacional também foi crescente ao longo do período, com exceção do ano de 1996. Finalmente, no que diz respeito ao ativo total do setor bancário nacional, a participação do setor estrangeiro aumentou de 7,16% em 1994 para 29,86% em 2001. A reversão dos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 586 Patrícia F. F. Arienti dados a partir de 2002 representa a contrapartida da “[...] vigorosa reação do setor privado nacional à investida das instituições estrangeiras no mercado brasileiro” (Paula; Marques, 2005, p. 20). 2.3 A adesão ao Acordo da Basiléia5 Um outro fator que passou a interferir diretamente nas operações dos bancos foi a adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia, em agosto de 1994, no mesmo momento em que a economia se estabilizava. Buscava-se adotar medidas prudenciais mais restritivas ao setor bancário, de forma a garantir-lhe maior solidez . O Comitê da Basiléia foi criado, em 1975, pelo Bank for International Settlements (BIS), com o objetivo de harmonizar os princípios de supervisão bancária em todos os países. O Acordo da Basiléia foi discutido e aprovado em julho de 1988 pelos representantes dos bancos centrais do grupo dos países denominado G10. O objetivo do Acordo é fixar um padrão comum na forma de determinação do capital dos bancos, visando reduzir as diferenças entre as normas aplicáveis às instituições financeiras dos diversos países. Para tal, o Acordo padronizou o conceito de capital e estabeleceu os requerimentos mínimos para a capitalização dos bancos. Para padronizar o conceito de capital, o Acordo instituiu o que pode ser considerado como componente do capital, sendo a soma desses componentes denominada Patrimônio Líquido Ajustado (PLA). Para determinar os requerimentos de capital dos bancos, o Acordo criou uma nova sistemática de cálculo do capital, onde são considerados vários ativos dos bancos e os seus riscos de perda. A partir dessa sistemática de cálculo, estima-se, então, o capital que o banco deve ter, ou seja, o seu Patrimônio Líquido Exigível (PLE). Segundo Soares (2001, p. 27), [...] nessa nova sistemática, o montante de capital de um banco é determinado em função de dois conceitos. O primeiro refere-se à razão capital-ativo — corresponde ao inverso da alavancagem [...] e mostra a relação entre capital e ativo que o banco deve manter [...]. O segundo conceito refere-se ao risco diferenciado das operações ativas. Assim, um banco que assume grandes riscos na sua carteira de empréstimos, por exemplo, deve ter mais capital do que se fosse mais conservador na sua política de empréstimos. A adesão ao Acordo implica o compromisso, por parte da autoridade monetária do país, de exigir dos bancos nacionais um nível de capital compatível 5 Esta seção está baseada principalmente em Soares (2001). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 587 com o volume de suas operações ativas, ou seja, que o Patrimônio Líquido Ajustado dos bancos seja igual ou superior ao Patrimônio Líquido Exigível. Assim, segundo Soares (2001, p. 28), [...] para tanto, o Banco Central do país deve estabelecer quais contas do balancete patrimonial os bancos podem considerar como componente do capital ou seja, do PLA, e, além disso, deve fixar a alavancagem do sistema financeiro e estabelecer o risco — ponderação — dos vários ativos bancários, o que permite calcular o PLE. O Brasil só aderiu ao acordo em agosto de 1994, com a Resolução n° 2.099 do Banco Central. Através dessa resolução, estabeleceu-se a nova sistemática de cálculo do Patrimônio Líquido Exigível dos bancos em função do risco dos ativos, conforme recomendado pelo Acordo da Basiléia, embora o procedimento para o cálculo do Patrimônio Líquido Ajustado só viesse a ser estabelecido em agosto de 1998, com a Resolução n° 2.543. Segundo Soares (2001, p. 30-31), a Resolução n. 2099 estabelece que as instituições financeiras que operam no Brasil devem calcular o capital exigível (PLE), considerando a razão capital-ativo igual a 0,08 (alavancagem de 12,5) e quatro classificações de risco dos ativos, com ponderação de 0%, 20%, 50% e 100%, a saber: 1) risco nulo (fator de ponderação 0%) — atribuído aos ativos como recursos em caixa, reservas junto à autoridade monetária, títulos públicos federais e reservas em moeda estrangeira depositadas no BC; 2) risco reduzido (fator de ponderação 20%) — atribuído aos depósitos bancários de livre movimentação mantidos em bancos, aplicações em ouro, disponibilidades em moeda estrangeira e créditos tributários; 3) risco reduzido (fator de ponderação 50%) — atribuído aos títulos estaduais e municipais, financiamentos habitacionais e aplicações no interbancário; 4) risco normal (fator de ponderação de 100%) — atribuído às operações de empréstimos e financiamento, aplicações em ações, debêntures, obrigações da Eletrobrás, Títulos da Dívida Agrária (TDA), operações vinculadas a bolsas de valores, de mercadorias e futuros. Na prática, o que passou a ocorrer é que, para cada R$ 100,00 que os bancos estejam dispostos a aplicar em créditos, eles precisam ter R$ 8,00 de capital. Contudo, para uma aplicação de R$ 100,00 em títulos do Governo Federal, não é necessário nenhum comprometimento do seu patrimônio. “Ou seja, a limitação de os bancos comprarem títulos do Governo Federal passa a ser a sua capacidade de captar recursos a um custo inferior ao rendimento desses títulos.” (Soares, 2001, p. 31). Ao longo dos últimos anos, ocorreram várias alterações na Resolução n° 2.099 por parte do Banco Central, todas com o objetivo de aumentar ainda mais Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 588 Patrícia F. F. Arienti a segurança do sistema bancário nacional. “De modo geral, são alterações do índice de alavancagem e do nível de riscos dos ativos” (Soares, 2001, p. 31). Observa-se, contudo, que, a cada alteração da Resolução n° 2.099, o limite do banco para aplicar em crédito foi diminuído. Além disso, mesmo os bancos com folga para concederem crédito podem não o fazer, com receio de que uma próxima alteração nessa resolução os leve a aumentar o capital e/ou a reduzir o volume de crédito. A Resolução n° 2.099 também introduziu novas restrições, que acabaram por favorecer os grandes bancos, como o aumento do nível absoluto de reserva de capital mínimo para operar uma instituição financeira, além da imposição de um período extremamente curto para que os bancos pequenos se adaptassem a ela. Segundo Troster (2004), o capital mínimo absoluto necessário para a abertura de uma instituição financeira teve seus valores dobrados com a Resolução n° 2.099. De acordo com Troster (2004, p. 71-72), [...] nenhum banco comercial pode operar com um nível de capital inferior a R$ 7 milhões. Este é aplicável unicamente às atividades bancárias que constituem padrões dos bancos comerciais. Para outros tipos de atividades, como os empréstimos imobiliários, operações de investimento bancário, etc., é necessário um capital adicional. Se um banco pretende operar em dois setores, ele deve ter um capital mínimo maior do que se pretendesse operar em apenas um, independentemente de suas operações correntes. A adesão ao Acordo da Basiléia interferiu tanto na estrutura de mercado do setor como na operacionalidade dos bancos. No que diz respeito à estrutura de mercado, a exigência do Governo brasileiro de capital mínimo, ponderado pelo risco das operações ativas do banco em níveis elevados, dificultou a sobrevivência de algumas instituições de pequeno e/ou de médio porte que atuavam normalmente com alavancagem maior do que das grandes instituições (Paula; Marques, 2005). Além disso, o aumento do capital inicial para a autorização de funcionamento dos bancos foi “[...] importante para a intensificação das F&A, pois, na impossibilidade de novos aportes dos controladores, restaria a solução da venda do banco, da admissão de novos sócios ou da redução das operações ativas” (Rocha, 2001, p. 11, apud Paula; Marques, 2005, p. 18). A busca de solidez do setor bancário muitas vezes entra em conflito com o estímulo à competitividade do mercado bancário. No caso brasileiro, ao privilegiar a solidez do sistema, deu-se pouca atenção aos princípios de defesa da concorrência (Paula; Marques, 2005), de tal forma que a regulamentação prudencial terminou por estimular o aumento da concentração bancária no período. De fato, segundo Belaisch (2003, p. 6), não apenas o número de bancos tem sido gradualmente reduzido desde 1996, como cerca de dois terços dos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 589 seus ativos estão concentrados em 10 instituições, as quais mantêm cerca de 70% dos depósitos e fornecem 75% dos empréstimos. Segundo Belaisch (2003), essa concentração do sistema bancário brasileiro sugere a existência de uma estrutura de mercado não competitiva, fazendo com que os bancos se comportem como monopólios ou oligopólios e levando a uma situação na qual o diferencial entre juros pagos pelos bancos sobre os depósitos e os juros recebidos pelos empréstimos seja alto, desencorajando maiores depósitos e volume de empréstimos. No que diz respeito à operacionalidade dos bancos, a principal alteração ocorrida a partir da adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia foi a realocação dos recursos das aplicações bancárias, os quais passaram a privilegiar os ativos de pequena ponderação de risco em detrimento dos de elevada ponderação. Segundo Soares (2001), antes da adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia (em 1994), a proporção crédito/ativo total era praticamente estável. Após a adesão, contudo, a relação apresentou tendência à diminuição. Ou seja, após 1994, houve crescimento dos bancos, mas os créditos tiveram uma importância menor nesse crescimento. Por outro lado, o acréscimo dos seus ativos deve-se basicamente ao aumento da carteira de títulos públicos federais. De fato, [...] os bancos, desde a crise bancária de 1995, vêm realizando um ajuste profundo na sua estrutura patrimonial, expresso tanto na diminuição da alavancagem de suas operações ativas, em particular do crédito, como na elevação da participação relativa de títulos públicos na composição do ativo bancário (Alves apud Soares, 2001, p. 36). 3 Análise dos efeitos da reestruturação do sistema bancário brasileiro A avaliação dos efeitos da reestruturação do setor bancário brasileiro requer que se leve em consideração a dupla dimensão das instituições bancárias em uma economia capitalista. Por um lado, os bancos são agentes econômicos submetidos à lógica da valorização da riqueza num mundo incerto e no qual decisões são irreversíveis (Freitas, 1997). Os bancos compartilham da mesma lógica de concorrência capitalista de qualquer outro agente econômico e, portanto, possuem preferência pela liquidez e expectativas relativas ao futuro norteando suas estratégias de valorização. Por outro lado, a atividade bancária é indispensável ao dinamismo do capitalismo, não apenas porque os bancos “[...] ocupam um lugar central no processo de criação monetária, na economia capitalista moderna, em que a moeda de crédito é o principal meio de liquidação dos Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 590 Patrícia F. F. Arienti contratos econômicos” (Freitas, 1997, p. 62), mas também porque o finance necessário para o investimento é decorrente da atividade bancária. Assim, uma avaliação da performance do sistema bancário brasileiro após ter passado por um processo de reestruturação necessita considerar sua dupla dimensão: por um lado, o desempenho do setor como reflexo da procura de novas fontes de lucro por parte dos bancos individuais; por outro, o impacto da reestruturação do sistema bancário do País sobre o desempenho do seu papel indispensável para o dinamismo da economia capitalista, ou seja, no fornecimento de crédito aos outros agentes econômicos. 3.1 Avaliação da performance do setor bancário após a reestruturação 3.1.1 Critérios de eficiência Os bancos brasileiros têm aumentado sua lucratividade nos últimos anos. Em estudo recente, Belaisch (2003) afirma que os retornos sobre os ativos (ROA ou a taxa de lucro antes dos impostos e/ou ativos) e sobre as ações (ROE ou taxa de lucros antes dos impostos e/ou ações) dos bancos comerciais no País vêm aumentando. O grau de rentabilidade, calculado pela proporção do lucro líquido sobre o patrimônio líquido, mede a capacidade que a instituição tem de, administrando seus ativos e passivos, gerar renda para os seus acionistas, ou seja, a taxa de retorno para os proprietários de seu capital. Os resultados estão indicados na Tabela 3. Tabela 3 Percentual de rentabilidade de bancos selecionados — 1994-03 DISCRIMINAÇÃO 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Rentabilidade ....... 14,36 11,87 12,32 16,26 23,0 19,2 19,2 27,0 8,54 14,7 FONTE DOS DADOS BRUTOS: PAULA, Luiz Fernando Rodrigues de; ALVES JÚNIOR, Antônio José; MARQUES, Maria Beatriz Leme. Ajuste patrimonial e padrão de rentabilidade dos bancos privados no Brasil durante o Plano Real. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-319, abr./jun., 2001. Bacen/Cosif. NOTA: Os bancos selecionados até 1999 são América do Sul, Bandeirantes, BCN, Boavista, Bradesco, HSBC, Bamerindus, Itaú, Mercantil de São Paulo, Noroeste e Unibanco; a partir de 2000, Bradesco, Unibanco, Itaú, Safra, HSBC, Bank Boston, Citibank e ABN AMRO. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 591 Os dados apresentados na Tabela 3 mostram que os principais bancos privados operando no País, nacionais e estrangeiros, apresentaram uma alta taxa de rentabilidade patrimonial, acima de 11% no período entre 1994 e 1999, com exceção do ano de 1997. Para o período de 2000 a 2003, a rentabilidade foi, em média, de 20%. Sem dúvida, os bancos vêm apresentando um desempenho cada vez mais satisfatório, desde o início da reestruturação do setor. 3.1.2 O sistema bancário brasileiro e a oferta de crédito A expectativa do Governo e dos defensores da abertura financeira era de que a estabilidade da moeda, a internacionalização e a reestruturação bancária, facilitada pelos recursos do Proer, promoveriam o ajustamento dos bancos, de modo que estes acabariam não apenas por expandir suas operações de crédito (como forma de compensar a perda das receitas decorrentes dos ganhos inflacionários), como também ocorreria uma redução nos spreads bancários. A ampliação da presença estrangeira no sistema bancário brasileiro e as modificações geradas por ela no âmbito do mercado bancário nacional não tiveram, contudo, o impacto esperado pelos seus defensores em termos de aumento da oferta de crédito e redução dos custos do crédito. Observa-se que, no que diz respeito à relação entre crédito bancário e PIB, no período 1993-00, houve uma queda na participação do crédito bancário em relação ao Produto Interno Bruto brasileiro, a qual estava no patamar de 29,2% em 1993 e caiu para 26,9,7% em 2000, mesmo após a entrada dos bancos estrangeiros no sistema financeiro doméstico (Soares, 2001). Em dezembro de 2004, essa relação foi de 27% (Bacen, 2005). Além disso, Belaisch (2003, p. 4) observa que o sistema bancário brasileiro tem uma relação ativo/PIB semelhante à dos EUA, mas oferece apenas metade do crédito em proporção ao PIB. Conforme já exposto anteriormente, no início do Plano Real houve um forte crescimento nas operações de crédito, apesar da política restritiva adotada pelas autoridades monetárias.6 A partir de 1996, devido à ameaça de uma crise bancária em 1995, à instabilidade do nível de atividade econômica e ao aumento do nível de inadimplência, começou a desaceleração nas operações de crédito, que se intensificou no período 1997-98; já a partir de 1999, ocorreu uma reversão nessa tendência. 6 Ressalta-se, no entanto, que a elevação das operações de crédito já vinha ocorrendo antes mesmo do Plano Real. De janeiro de 1989 a junho de 1994, os bancos privados haviam ampliado sua participação no mercado de crédito, respectivamente, de 10% para 42% (Soares, 2001, p. 17). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 592 Patrícia F. F. Arienti A Tabela 4 mostra a evolução do crédito no País e permite algumas conclusões no que diz respeito ao papel dos bancos privados, nacionais e estrangeiros, na oferta de crédito. De acordo com a Tabela 4, percebe-se que, de fato, os bancos estrangeiros aumentaram sua oferta de crédito, que passou de 11,71% em 1997 para 31,51% em 2001. No entanto, constata-se que, até 2002, mesmo após a redução do número de bancos nacionais (devido às fusões e incorporações) e o aumento dos bancos estrangeiros, os bancos nacionais ainda eram os principais responsáveis pela oferta de crédito por parte dos bancos privados, sendo que, até 2000, os bancos públicos ainda eram os principais ofertantes de crédito. Os dados de 2003 refletem o movimento de redução da participação dos bancos estrangeiros no sistema bancário brasileiro e o aumento da participação dos bancos nacionais (já visto anteriormente). Tabela 4 Participação percentual das instituições bancárias nas operações de crédito desse segmento — dez. 1997-03 BANCOS Bancos públicos e caixas econômicas ........... Bancos privados nacionais ............................... Bancos com controle estrangeiro ................... Cooperativas de crédito .................................. TOTAL .......................... DEZ/97 DEZ/98 DEZ/99 DEZ/00 DEZ/01 DEZ/02 DEZ/03 52,2 53,22 47,45 39,07 24,75 28,56 32,75 35,35 30,97 31,66 34,53 42,13 39,73 41,31 11,71 14,88 19,75 25,16 31,51 29,94 23,82 0,74 100,00 0,93 100,00 1,14 100,00 1,24 100,00 1,61 100,00 1,77 100,00 2,14 100,00 FONTE: Bacen/Cosif. Considerando que, mesmo no período de queda dos empréstimos (a partir de 1996), a rentabilidade do setor bancário permaneceu elevada (como pode ser visto na Tabela 3), percebe-se que o setor bancário brasileiro foi capaz de buscar formas alternativas de rentabilidade num novo contexto econômico, marcado não apenas por uma conjuntura de instabilidade macroeconômica (especialmente a partir da crise asiática, em 1998), mas também, e principalmente, por um ambiente econômico, dentro do próprio setor bancário, distinto daquele do início do Plano Real. Na verdade, o setor bancário brasileiro “[...] manteve o seu comportamento histórico, através do qual, em momentos de aumento do risco dos empréstimos, substitui a oferta de crédito por aplicações em outros instrumentos capa- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 593 zes de continuar garantindo uma alta rentabilidade” (Corrêa; Almeida Filho, 2001, p. 16). Assim, parece muito significativo o fato de que o aumento dos títulos públicos em carteira no ativo dos grandes bancos múltiplos privados tenha crescido. Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 65), para os bancos estrangeiros, no “[...] biênio 1994/1995, a participação dos títulos e valores se situa acima dos 23% do total do ativo. Com a queda dos juros ao longo dos anos 1996 e 1997, a participação dos títulos e valores chega a 12%. Daí em diante, essa rubrica atinge a casa dos 28,9% em 2000”. Os bancos privados nacionais tiveram um comportamento muito semelhante, “[...] excetuando-se aí o fato de suas aplicações em títulos terem chegado, no fim de 1994, a 12% dos ativos: reflexo da remonetização de parte da dívida pública e do aumento dos empréstimos durante o primeiro semestre do Plano Real. A partir de 1995, a tendência inverteu-se” (Carvalho; Studart; Alves Jr., 2002, p. 65). No entanto, a expansão das aplicações em títulos tiveram como contrapartida uma redução no crescimento da oferta de crédito. Segundo Carvalho, Studart e Alves Jr. (2002, p. 65), [...] os bancos estrangeiros mantiveram a participação das operações de crédito flutuando em um intervalo, cujo mínimo se situou em dezembro de 1994 (23%), e o máximo, em dezembro de 2000 (25%). Já os bancos privados nacionais, depois de experimentarem um aumento significativo na participação das operações de crédito sobre o ativo, que atingiu a marca de 38% em dezembro de 1994, reduziram-na regularmente, como que compensando o aumento dos títulos em carteira, chegando até 26% do ativo em 1999, para subir a 27,3% em 2000. Além disso, chama atenção o fato de que a postura dos bancos estrangeiros em nada se diferenciou da dos bancos nacionais. De fato, esses dados refletem a adoção de uma posição mais conservadora por parte dos bancos estrangeiros, a partir dos momentos de crise e incerteza, semelhante ao comportamento dos bancos privados nacionais. A lógica dos bancos privados em momentos de instabilidade, sejam os bancos nacionais, sejam os estrangeiros, é a de expressar uma maior preferência pela liquidez. Além disso, deve-se ressaltar que a adesão do Brasil ao Acordo da Basiléia também impeliu o setor bancário a aplicar em títulos públicos federais e, ao mesmo tempo, desestimulou as operações de crédito. Observa-se, no entanto, que, se, por um lado, esse tipo de comportamento é característico da própria dinâmica bancária em período de instabilidade, por outro, para que os bancos sejam capazes de manter, ao mesmo tempo, rentabilidade e preferência pela liquidez, é necessário que exista a disponibilidade de instrumentos adequados a esse tipo de estratégia. De fato, a adoção por parte dos bancos desse tipo de estratégia conservadora, baseada na redução da oferta de crédito e no aumento das operações com Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 594 Patrícia F. F. Arienti títulos públicos, só se viabilizou devido à política econômica executada pelo Governo. Por um lado, não se pode negar que, passado o período inicial da implementação do Plano Real, as autoridades monetárias atuaram no sentido de tentar reverter essa tendência do setor bancário de encarecimento e redução da oferta de crédito. Assim, a redução da oferta de crédito em favor do aumento das operações com títulos públicos ocorreu, apesar de o Banco Central ter implementado um conjunto de medidas objetivando a redução das margens cobradas do tomador final e da busca da queda dos juros básicos da economia.7 Por outro lado, a própria condução da política econômica estimulou o setor bancário a aumentar suas operações com títulos públicos. Diante da necessidade de captação de recursos externos e do fracasso em controlar o déficit público, o Governo viu-se obrigado a manter taxas de juros reais elevadas durante todo o período. A política de juros elevada levou ao crescimento acelerado das despesas com serviços da dívida, enquanto a entrada de recursos do exterior obrigou as autoridades monetárias a adotarem uma política de esterilização, com o intuito de reduzir pressões inflacionárias. O resultado dessas opções de política econômica foi o aumento do déficit público e a necessidade de novas emissões de títulos públicos, sempre com taxas de juros elevadas. Além disso, a partir de 1997, buscando manter a política cambial vigente, o Governo passou a ofertar crescentemente títulos públicos com correção cambial. Na medida em que o sistema bancário possuía parte de seu passivo dolarizado, a oferta de títulos cambiais, na ocasião, efetuou-se justamente com o intuito de oferecer uma oportunidade de hedge cambial, demandada pelos investidores externos, bancos e empresas. Paula, Alves Jr. e Marques (2001, p. 313) afirmam que [...] em dezembro de 1998, os bancos (públicos e privados) teriam cerca de US$ 65,5 bilhões em títulos cambiais, em suas carteiras, montante que superava em muito as obrigações externas do sistema bancário, ou seja, em US$ 5,67 bilhões. [...] Estes dados mostram que os bancos estavam protegidos ante uma possível desvalorização cambial, e as informações veiculadas na imprensa mostram que eles tiveram elevados ganhos nos meses de janeiro e fevereiro de 1999, com a flexibilização da política cambial efetuada no início do ano e a desvalorização cambial ocorrida a seguir. 7 A fim de promover a redução dos spreads bancários, em outubro de 1999, reduziu-se o compulsório sobre os depósitos a prazo e à vista. Segundo o então Presidente do Banco Central, Armínio Fraga, essas mudanças nas normas levariam à redução dos juros e ao aumento da oferta de crédito. Posteriormente, outras reduções foram efetuadas. “Um ano depois de lançar esse pacote de medidas, o Banco Central anunciou nova rodada de mudanças. Reconhecendo, desta forma, que as inúmeras medidas adotadas não tinham surtido o efeito esperado” (Soares, 2001, p. 5-6). Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 595 Desse modo, o Governo, repetindo o mesmo papel desempenhado nos anos 70 e no início dos anos 80, assumiu novamente o risco cambial dos agentes privados. Neste ponto, é interessante ressaltar a suposição exposta anteriormente, ou seja, a de que os bancos estrangeiros ingressantes no País, ao invés de adotarem uma postura mais agressiva com relação à concessão do crédito bancário, terminaram por assumir comportamento semelhante ao dos bancos privados nacionais e estrangeiros que já operavam no País antes da flexibilização das condições da entrada dos bancos estrangeiros, a partir de 1995. De fato, os bancos estrangeiros, assim como os bancos privados nacionais, vêm priorizando as aplicações em títulos públicos, os quais, devido ao elevado nível da taxa de juros, vêm possibilitando ao setor bancário brasileiro como um todo expressiva rentabilidade com baixa assunção de riscos. “Em 2000, os bancos estrangeiros adquiriram 52% do total de títulos emitidos pelo Tesouro como pelo Banco Central” (Freitas; Prates, 2001, p. 100), o que demonstra que, ao longo do período, os novos bancos ingressantes no País vêm direcionando suas aplicações em ativos para títulos públicos, de forma a se tornarem os principais compradores nos leilões primários. Os bancos são, portanto, agentes dinâmicos, impulsionados pela lógica concorrencial, sejam eles nacionais, sejam estrangeiros. No que diz respeito aos spreads bancários, ressalta-se que, embora tenha ocorrido uma redução substancial no nível de spread bancário brasileiro, estes permanecem bastante elevados. Os spreads praticados nas operações bancárias podem ser definidos como a diferença entre a taxa de aplicação nas operações de empréstimos e a taxa de captação de recursos pelas instituições financeiras. Oreiro et al. (2006) observam que, embora os spreads bancários tenham caído vertiginosamente, desde a implementação do Plano Real, ainda permanecem em níveis muito elevados. Em 1994, antes da implementação do Plano Real, o spread médio dos empréstimos para pessoas físicas e jurídicas praticados no sistema bancário brasileiro era de, aproximadamente, 120%. No início de 1995, devido à adoção, por parte do Banco Central, de uma política monetária fortemente contracionista no período após a implementação do Plano Real, o spread médio cobrado pelos bancos brasileiros alcançou um valor máximo de 150%. Em 1996, esses valores foram reduzidos significativamente, “[...] em função de um relaxamento das medidas de arrocho monetário e uma diminuição da desconfiança dos agentes em relação ao processo de contágio da crise mexicana até atingir o patamar de aproximadamente 40% ao ano no início de 2000” (Oreiro et al., 2006, p. 12), permanecendo, a partir de então, nesse nível elevadíssimo. Em estudo recente (Oreiro et al., 2006), apontam-se evidências de que um dos principais determinantes macroeconômicos para o elevado spread bancá- Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 596 Patrícia F. F. Arienti rio brasileiro seria a elevada volatilidade da taxa de juros no País. A alta volatilidade da taxa de juros afeta o spread bancário, uma vez que eleva o risco de taxa de juros enfrentado pelos bancos e aumenta seu grau de aversão ao risco; além disso, a volatilidade da taxa de juros implica um baixo crescimento da produção industrial, o que “[...] impacta negativamente tanto no crescimento dos níveis de inadimplência dos empréstimos, quanto na menor demanda por crédito, diminuindo os ganhos de escala que poderiam ser obtidos nas operações de crédito” (Oreiro et al., 2006, p. 25). 3.1.3 O impacto da abertura do setor bancário sobre o sistema bancário nacional A avaliação da contribuição da entrada dos bancos estrangeiros para a performance do setor bancário brasileiro como um todo permite que se chegue a duas conclusões. Primeiramente, é possível constatar que a mudança no controle patrimonial dos bancos e o aumento da concentração bancária, de fato, provocaram uma alteração estrutural no desenho do sistema bancário brasileiro.8 A estabilização da moeda levou a um profundo ajuste no sistema bancário, na segunda metade da década de 90. A abertura financeira, a criação do Proer e do Proes e a adoção de uma regulamentação prudencial foram os pilares desse ajuste, o qual gerou uma mudança estrutural no sistema bancário nacional, caracterizada por um forte movimento de concentração e desnacionalização dos bancos. Uma vez aceito que houve, de fato, alteração estrutural na configuração do sistema bancário operante no Brasil, pode-se perceber que essa alteração criou dois movimentos internamente. O primeiro deles diz respeito à resposta dada pelos bancos nacionais à pressão competitiva gerada pelo ingresso de bancos estrangeiros. Os grandes bancos nacionais, visando fortalecer suas posições no mercado, também optaram pela aquisição de outras instituições. Esse foi o caso, por exemplo, do Bradesco, que adquiriu o Banco de Crédito Nacional (BCN)9; do Unibanco, que comprou o Banco Nacional e o Banco Diben; e do Banco Itaú, que adquiriu o Banerj e o Bemge através dos leilões de privatização. Além disso, o Itaú associou-se ao Bankers Trust. Freitas e Prates (2001, p. 99) ressaltam que [...] durante os sete anos do Plano Real, os três maiores bancos privados nacionais consolidaram sua liderança no sistema, mas houve significativas 8 9 Esse ponto é desenvolvido por Corrêa e Almeida Filho (2001). O BCN passava por dificuldades após ter adquirido o Credireal. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 597 mudanças nas demais posições. Os bancos Bamerindus e Nacional, que ocupavam lugar de destaque em junho de 1994 (respectivamente, terceiro e quarto lugares), faliram, e tais posições eram ocupadas, em dezembro de 2000, pelo Unibanco (comprador do Nacional) e pelo espanhol Santander, que adotou uma postura agressiva de aquisição de bancos nacionais. Conclui-se, dessa forma, que alguns dos grandes bancos nacionais foram capazes de se ajustar à entrada dos bancos estrangeiros, mudando suas estratégias concorrenciais, no intuito de enfrentar positivamente a competição dos novos entrantes internacionais. O segundo movimento ocorrido dentro dessa nova configuração do sistema bancário operante no Brasil diz respeito à atuação dos próprios bancos estrangeiros no mercado bancário nacional. Vários autores têm ressaltado em suas análises que a atuação dos bancos com controle estrangeiro no País não tem sido diferente daquela empreendida pelos bancos privados nacionais, o que sugere, portanto, que outros fatores são mais determinantes na explicação do desempenho desses agentes do que propriamente a nacionalidade do controlador. A hipótese de vários autores (Corazza, 2000; Carvalho, 2001; Vasconcelos; Fucidji; Strachman, 2002) é a de que os bancos estrangeiros, em certa medida, se adaptam ao ambiente e às condições encontradas no País em que se estabelecem. Ou seja, os impactos da entrada de agentes estrangeiros em sistemas bancários domésticos dependem das condições do setor previamente à entrada. Corrêa e Almeida Filho (2001) e Carvalho (2001) afirmam que os bancos estrangeiros, ao operarem no mercado bancário nacional, acabaram desenvolvendo a mesma lógica de funcionamento dos bancos privados nacionais. No caso brasileiro, essa lógica é especulativa, a qual está fundamentada na possibilidade de ganhos alternativos aos da oferta de crédito, principalmente do crédito de longo prazo. Dessa forma, contrariando todo o discurso otimista no que diz respeito à internacionalização do setor bancário, os bancos de controle estrangeiro operando no País não têm aumentado o volume de crédito a um custo reduzido; antes, eles têm optado pela aplicação de recursos nos ativos classificados com menor risco, ou seja, os títulos públicos federais, seguindo, dessa forma, o comportamento dos bancos nacionais. Do que foi exposto até aqui, pode-se perceber que os bancos atuam como qualquer firma capitalista, tomando suas decisões de portfólio de acordo com suas expectativas de rentabilidade e de risco, sua preferência pela liquidez e tendo como principal objetivo a obtenção de lucro, independentemente da origem de sua propriedade. Dessa forma, no ambiente de instabilidade macroeconômica observada no País, desde 1995, com recorrentes choques externos, as decisões das instituições bancárias privadas têm sido afetadas por um elevado grau de incerteza. A estratégia dominante da firma bancária tem sido conciliar rentabilidade, preferência pela liquidez e aversão ao risco, priorizando Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 598 Patrícia F. F. Arienti aplicações em títulos públicos federais, que são ativos de menor risco, em detrimento das operações de crédito para o setor privado, que, embora possam oferecer um elevado retorno, possuem também maior grau de risco de crédito, principalmente em um contexto de grande instabilidade macroeconômica. Não se trata apenas de uma estratégia conservadora, mas também de uma opção extremamente rentável, que só tem sido possível devido às políticas macroeconômicas seguidas pelo Governo. 4 Conclusão A introdução do Plano Real e a conseqüente queda dos índices de inflação levaram os bancos a se adaptarem ao novo ambiente macroeconômico. O ajuste inicial por parte do sistema bancário foi feito através do aumento da oferta de crédito. Contudo, a partir de 1995, com a perspectiva da instauração de uma crise bancária, iniciou-se a reestruturação do setor bancário brasileiro, através da internacionalização, do saneamento do setor e da adesão ao Acordo da Basiléia. Embora o setor bancário brasileiro se tenha fortalecido e consolidado, não ocorreram mudanças referentes à oferta de crédito para o setor produtivo, uma vez que se adotou um tipo de estratégia que privilegia a liquidez dos títulos de dívida pública em detrimento do crédito. Tal estratégia é explicada, em parte, pelo fato de os bancos serem agentes econômicos que buscam seus lucros, que têm aversão ao risco e que trabalham num ambiente marcado pela incerteza, visando, assim, sempre conciliar risco e lucratividade em suas decisões de portfólio. Logo, dadas as incertezas geradas pela fragilidade macroeconômica que tomava conta do País a partir da segunda metade da década de 90, a opção por operações de títulos públicos indexados ao câmbio parece bastante coerente. Por outro lado, no que diz respeito ao Governo, a crença num projeto de desenvolvimento baseado no espontaneísmo do mercado não possibilitou que ele atuasse criando oportunidades de investimentos de longo prazo. O seu projeto estava baseado na crença de que o mercado bancário, após o fim da inflação, se auto-regularia em direção ao aumento do crédito como resposta à internacionalização e à reestruturação do setor. Além disso, a ausência de outras formas de financiamento do setor público levou-o a garantir aos aplicadores em títulos públicos uma grande rentabilidade e sem riscos, mantendo a lógica de aplicação especulativa e de curto prazo. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 Reestruturação e consolidação do sistema bancário privado brasileiro 599 Referências BANCO CENTRAL DO BRASIL — BACEN. Notas para a imprensa — Política Monetária e operações de crédito do SFN. Disponível em: <www.bcb.gov.br>. Acesso em: 5 nov. 2005. BELAISCH, Agnes. Do Brazilian banks compete? Washington: International Monetary Fund, 2003. (IMF Working paper, 03/113). CARVALHO, Carlos Eduardo; STUDART, Rogério; ALVES Jr., Antônio José. Desnacionalização do setor bancário e financiamento das empresas: a experiência recente. Brasília: IPEA, 2002. (Texto para discussão, 882). CARVALHO, Fernando J. Cardim, The recent expansion of foreign banks in Brazil: first results. 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Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 577-600, out. 2007 601 ORIENTAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS 1 - A revista Ensaios FEE, publicação semestral da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser (FEE), divulga artigos de caráter científico, da área da economia e das demais ciências sociais. 2 - Os artigos submetidos à Editoria da revista serão encaminhados para apreciação de pareceristas internos e externos à FEE pelo sistema double blind review, ou seja, o processo de avaliação assegura o anonimato de autores e de pareceristas. 3 - O artigo deve conter as palavras-chave do texto, obedecendo o número máximo de três, em português e inglês, e o código de classificação do Journal of Economic Literature (JEL). 4 - O artigo deve vir acompanhado do nome completo do autor, de sua titulação acadêmica e do nome das instituições a que está vinculado, além do endereço para contato, e-mail, telefone ou fax. 5 - Devem ser encaminhadas três cópias impressas do artigo, com as páginas numeradas na margem superior e não excedendo 30 laudas de 24 linhas, em papel A4, com espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12, incluindo notas, bibliografia e outras referências. As cópias impressas devem vir acompanhadas do arquivo correspondente em MS-Word. 6 - São também aceitos trabalhos sob a forma de notas, comentários ou resenhas de livros. As notas e os comentários devem ter, no máximo, 15 laudas de 30 linhas, e as resenhas, 5 laudas de 27 linhas. 7 - As notas de rodapé devem conter apenas informações explicativas ou complementares e ser numeradas em ordem seqüencial. 8 - As citações devem ser feitas no próprio texto, indicando o sobrenome do autor, a data da publicação e o número da página (Vanin, 1980, p. 8). As citações em língua estrangeira devem vir traduzidas, ficando a critério do autor a publicação do original em nota de rodapé. 9 - As referências bibliográficas devem conter o nome completo do autor, o título da obra, o local e a data de publicação, o nome do editor e o número de páginas, enquadrando-se em uma das situações a seguir referidas: a) livros - POCHMANN, Márcio. O emprego na globalização: a nova internacionalização do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo, 2001, 151p. CASTRO, Antônio B. de; SOUZA, Francisco E. P. de. A economia brasileira em marcha forçada. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1985, 217p. 602 Rosana Ribeiro; Adir A. Juliano b) capítulo ou artigo de livro - MIRANDA, MIRANDA,José JoséCarlos Carlos da daRocha. Rocha. Dinâmica Dinâmicafinanfinanb) capítulo ceira e política macroeconômica. In: TAVARES, M. C.; FIORI, J. L. (Org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 243-275. c) periódico - CONJUNTURA ECONÔMICA. Rio de Janeiro: FGV, n. 12, dez. 2000. d) artigo de periódico - BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados d) artigos de periódico - “globalizados”. Economia e Sociedade, Campinas,-n. 4, p. 1-20, 1997. PARTICIPAÇÃO do Brasil nos investimentos diretos mundiais. Carta da SOBEET, São Paulo, v. 1, n. 4, set./out. 1997. e) artigo de jornal - SALGUEIRO, Sônia. Autopeças brasileiras conquistam mercado externo. Gazeta Mercantil, São Paulo, p. A-4, 6-8 mar. 2000. PARTICIPAÇÃO de salários no PIB cai para 38%. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 2-5, 12 dez.1997. f) informação ou texto obtidos pela internet - livro eletrônico (monografia) DICIONÁRIO da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 1988. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dIDLPO> Acesso em: 8 mar. 1999. - periódico eletrônico (revista, anuário, etc...) BOLETIM INFORMATIVO DE PESSOAL. Porto Alegre: Secretaria da Fazenda/RS, n. 31, jul. 2001. Disponível em: <http://www.sefaz.rs.gov.br> Acesso em: 14 dez. 2001. - artigo de periódico em meio eletrônico O IED no Brasil e no mundo: principais tendências. Sinopse Econômica. Disponível em: <http://bndes.gov.br/sinopse/poleco.htm > Acesso em: 21 mar. 2000. - banco de dados IBGE-SIDRA. 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Os artigos aprovados passam por revisão de português e adaptação às normas técnicas da ABNT, sendo as provas submetidas ao(s) autor(es). 12 - Os artigos, em língua portuguesa (Brasil), inglesa ou espanhola, devem ser apresentados na sua versão definitiva e acompanhados de título, de abstract, em inglês, e de um resumo, em português, com 10 linhas no máximo. A remessa dos artigos à Revista implica a cessão dos direitos autorais à FEE. 13 - Os artigos publicados estarão disponibilizados na internet, através do site www.fee.rs.gov.br 14 - Toda correspondência deverá ser enviada à: Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser Ensaios FEE Rua Duque de Caxias, 1691 CEP 90 010-283 — Porto Alegre — RS E-mail: [email protected] Fone: (0XX51) 3216-9132 Fax: (0XX51) 3216-9134 604 Rosana Ribeiro; Adir A. Juliano 605 FICHA DE ASSINATURA As revistas Indicadores Econômicos FEE e Ensaios FEE podem ser adquiridas na Livraria da FEE, Rua Duque de Caxias, 1691, térreo, CEP 90010-283, Porto Alegre-RS, de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 12h e das 13h30min às 18h, ou por fone (0xx51) 3216-9118, fax (0xx51) 3216-9134, e-mail [email protected], ou, ainda, pela homepage www.fee.rs.gov.br Você também pode optar por uma assinatura, preenchendo o formulário abaixo e enviando o cheque ou o comprovante de depósito para a Secretaria das Revistas, no 6º andar do endereço acima. Publicação Desejo receber a revista Ensaios FEE pelo preço de R$ 40,00 cada assinatura anual (edição semestral). Desejo receber a revista Indicadores Econômicos FEE pelo preço de R$ 75,00 cada assinatura anual (edição trimestral). 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