Resistências no País do Futebol
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Resistências no País do Futebol
RESISTÊNCIAS NO PAÍS DO FUTEBOL A COPA EM CONTEXTO Gerhard Dilger (org.) Trad. Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti São Paulo Junho de 2014 FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Gerhard Dilger (org.) Junho de 2014 Tradução: Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti Capa e diagramação: Ana Rüsche A publicação que deu origem à presente obra foi o livro Fußball in Brasilien: Widerstand und Utopie, publicado pela editora VSA de Hamburgo em 2014. Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença CreativeCommons de Atribuição + Uso não comercial + Não a obras derivadas (BY-NC-ND), ou seja, qualquer pessoa tem o direito de copiar e distribuir a obra, desde que seja para fins não comerciais e que os créditos dos autores, organizador e tradutores sejam respeitados. Fundação Rosa Luxemburgo www.rosaluxspba.org R429r Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por Gerhard Dilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti. Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por Gerhard Dilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti – São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2014. 116p. ISBN: 978-85-68302-00-2 1. Futebol 2. História I. Título. CDD - 796 Brasília, junho de 2013. ÍNDICE 5 O Brasil é uma caixinha de surpresas ..................................................................................... 9 Gerhard Dilger O CONTEXTO INTERNACIONAL 2006: Como os alemães estenderam o tapete vermelho à FIFA................................... 15 Andreas Rüttenauer 2010: A África do Sul não foi uma história de sucesso ................................................... 23 Patrick Bond Não precisamos copiar os europeus ..................................................................................... 35 Eduardo Galeano Peneirar como no garimpo ...................................................................................................... 39 Martin Ling A copa de 2018 na Rússia ....................................................................................................... 45 Vladimir Fomenko O Brasil treina com blindados, canhões de água e pistolas ........................................... 55 Christian Russau O embaixador de marcas: Paul Breitner no Brasil ............................................................ 59 Gerhard Dilger FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 6 Caminhando pelo teto do Maracanã, Rio de Janeiro, 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 7 O CONTEXTO BRASILEIRO 1968 - 1984: da militarização do futebol até a Democracia Corinthiana ............... 65 Thomas Fatheuer Futebol e Nação - A identidade brasileira existe? ............................................................ 73 Thomas Fatheuer Lula, Dilma e a Copa .................................................................................................................. 83 Juca Kfouri Elas, no país do futebol ............................................................................................................. 89 Lívia Duarte "Nós valemos mais!" ................................................................................................................. 95 Júlio Delmanto A explosão de um modelo ..................................................................................................... 101 Raquel Rolnik Gol de letras .............................................................................................................................. 109 Luiz Ruffato Autores e autoras ................................................................................................................. 112 Leia mais: referências bibliográficas............................................................................. 114 Créditos das imagens ......................................................................................................... 115 FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 8 Torcedores do Ponta Preta no Pacaembu, São Paulo, dezembro de 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O BRASIL É UMA CAIXINHA DE SURPRESAS Gerhard Dilger Trad. Kristina Michahelles O futebol é uma caixinha de surpresas, eis uma das tantas expressões em torno do esporte popular. De fato, quem teria imaginado? O Brasil, supostamente tão entusiasmado com o futebol, não está simplesmente feliz e agradecido por poder realizar a Copa de 2014. Não: durante as jornadas de junho de 2013, milhões de brasileir@s foram às ruas durante a Copa das Confederações. Não só por causa do futebol, mas também por causa dele. Poucas semanas antes do pontapé inicial no Itaquerão, a maioria da população acredita que o megaevento possa ter mais consequências negativas do que positivas para o Brasil. O sentimento geral é mais de reserva do que de entusiasmo, e no mundo inteiro surge a pergunta: o que acontece no país do futebol? expectativas e muitas perguntas. Na Europa, onde os nítidos progressos econômicos e sociais dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff durante muito tempo dominaram a mídia, e não só de esquerda, o tom mudou radicalmente. “Brazil takes off” estampou a revista The Economist em uma capa de 2010, com a imagem do Cristo Redentor decolando. Três anos mais tarde, o principal porta-voz do capitalismo mundial perguntou: “Has Brazil blown it?“, sugerindo que a decolagem fulminante virou um voo de galinha. Na Feira do Livro de Frankfurt em outubro de 2013, este paradoxo ficou mais do que visível. De um lado, o Brasil se apresentou como nação cultural em pleno desenvolvimento com um impressionante espectro de liteNão foi apenas no Brasil que as jor- rat@s. Por outro lado, em uma fala nadas de junho causaram surpresa, inaugural recheada de críticas, o FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 9 10 escritor Luiz Ruffato causou furor ao anos. Na potência pós-soviética, em apontar para a realidade amarga do que a comercialização e a corrupção atual capitalismo selvagem1. no futebol ainda florescem mais do que aqui, a FIFA também pode esperar Em Frankfurt, também constata- lucros bilionários. mos que os livros em alemão sobre o Brasil e a Copa de 2014 nem de longe Quem também está rindo de orelha refletiram essa situação contraditória. a orelha são empresas transnacionais Por essa razão, a Fundação Rosa da Alemanha ou da Áustria que gaLuxemburgo (FRL) decidiu publicar nham dinheiro fornecendo armas para um livro crítico, de esquerda, baseado os países-sede da Copa. Comparado a na simpatia pelo Brasil e pelo futebol elas, a atuação de Paul Breitner como brasileiro. O resultado, “Futebol no “embaixador de marcas” no Brasil paBrasil, utopia e resistência”2 , foi lan- rece até uma variante mais inofensiva çado em maio, justo no momento em da mercantilização. Mais complicada que o Brasil foi destaque em toda a é a exportação brasileira de “mão de mídia. obra e pé de obra para o norte do mundo” (Eduardo Galeano). Ela reNo Brasil, onde o escritório regional presenta o reverso da medalha da deda FRL funciona desde 2003, apre- sorganização do futebol brasileiro sentamos a edição original e esta ver- sujeita a interesses oligárquicos de são resumida em português. O poder e lucro, e onde aos jogos do objetivo da edição brasileira é mostrar Brasileirão comparece menos gente nossa principal meta no trabalho polí- do que aos jogos da Segunda Divisão tico no Brasil e no Cone Sul: enrique- na Alemanha. cer o debate crítico na região, bem como ambientá-lo dentro do contexto “Não precisamos copiar os eurointernacional. peus” – essa frase que Galeano proferiu em outro contexto, combina bem Os textos sobre as Copas de 2006 com a tentativa de governos “prona Alemanha e em 2010 na África do gressistas” na América do Sul na déSul mostram que, antes do Brasil, cada passada de tentar imprimir uma houve outros países em que os políti- política que superasse o neoliberaliscos atenderam, com bastante subser- mo. Acontece que justamente a realiviência, os desejos da FIFA.3 As zação da Copa de 2014 e dos Jogos perspectivas não parecem muito me- Olímpicos de Verão de 2016, para os lhores para a Rússia em 2018, a não quais o Brasil definitivamente quis se ser que os acontecimentos no Brasil posicionar como global player, gerou forcem os cartolas da federação mun- temores de que esse projeto poderia dial a mudar de opinião nos próximos Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto historicamente excluída, mas uma inclusão via consumo. A esfera pública, a dimensão pública das cidades e seus serviços, historicamente péssimos, pobres para os pobres, isso não mudou um milímetro. O modelo de urbanização e de desenvolvimento continuou voltado pra Em sua missão de relatora especial favorecer quem ele sempre favoreceu. A da ONU para o direito à moradia ade- explosão das ruas (…) exige uma outra quada, desde o início Raquel Rolnik coisa." posicionou-se ao lado dos comitês Brasileiros e brasileiras tampouco populares da Copa nas 12 cidades-sede. Uma visita feita por ela em fins de conseguiram se acostumar ao jeito 2013 é exemplar para essa atividade. autoritário da FIFA, que lembra as imPor ocasião de um dos seminários posições do Fundo Monetário Interapoiados pela FRL dos quatro comitês nacional, das quais o Brasil conseguiu populares do Nordeste, Rolnik esteve se libertar no governo de Lula. Ninem Recife. Ali, manteve conversa di- guém esquece o famoso “chute no retas com as autoridades, com os mo- traseiro” – necessário para manter os radores ameaçados de remoções prazos nos preparativos da Copa, seforçadas e representantes da mídia, gundo o secretário-geral da FIFA, além de um debate público na univer- Jérôme Valcke. E o texto de Lívia sidade. Seguiram-se debates por vári- Duarte mostra que, no futebol maos dias na capital de Pernambuco e a chista, o caminho para uma verdadeiresistência contra as remoções im- ra equidade de gêneros ainda é muito postas foi reforçada. Nas outras onze mais longo do que em outros lugares. cidades-sede, os comitês populares da Um destaque da nossa publicação Copa também conseguiram alguns em alemão é o ensaio de Thomas êxitos no trabalho junto aos atingidos. Fatheuer sobre um século de história “A explosão de junho (de 2013) é cultural e social do futebol brasileiro, muito mais ampla que a questão da do qual apresentamos aqui os últimos dois capítulos. “Lampejos de utopia”, Copa,” constata Raquel Rolnik: constata ele em vários momentos, co"É a explosão de um modelo de nega- mo na Democracia Corinthiana do ção do direito à cidade para a maior par- grande Sócrates. “Continua em aberto te da população (…) Ela é fruto também, a pergunta sobre se o sonho de um me parece, dos anos recentes em que outro futebol, de um futebol belo, ocorre um processo de inclusão muito também inclui o sonho de um outro significativo de uma parcela correr perigo em toda a região – seria uma amarga ironia. A aliança do Partido dos Trabalhadores com parcelas da oligarquia que está no poder há 500 anos ameaça se tornar um gol contra, analisa Juca Kfouri. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 11 mundo melhor”, conclui Fatheuer, com cuidado. 12 De fato, a realização e os resultados da Copa de 2014 ainda estão em aberto – tanto em termos futebolísticos quando em termos políticos. Talvez se confirme que logo o futebol, tantas vezes visto como “ópio do povo“, fortaleceu a resistência contra o capitalismo financeiro do século 21 em tantas esferas e talvez venha a ser o catalisador de uma nova transformação social. O Brasil é uma caixinha de surpresas… Notas 1 Discurso de Luiz Ruffato na Abertura da Feira do Livro de Frankfurt na íntegra http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffatona-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm. 2 Edição on-line "Fußball in Brasilien: Widers- tand und Utopie" http://www.rosalux.de/publication/40370/fussball-in-brasilien-widerstand -und-utopie.html. 3 Para uma comparação direta entre a África do Sul e o Brasil, veja http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/05/140515_copa_peter_alegi_ms.shtml. São Paulo, maio de 2014. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O CONTEXTO INTERNACIONAL FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 13 14 Dortmund, Alemanha, 2006. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 2006: COMO OS ALEMÃES ESTENDERAM O TAPETE VERMELHO À FIFA Andreas Rüttenauer Trad. Monika Ottermann Joseph “Sepp” Blatter prestou um grande serviço à Alemanha. Quem o constata é a Chanceler alemã, Angela Merkel, por ocasião de uma recepção para o presidente da Federação Internacional de Futebol no dia 7 de julho de 2006. “Aceitando-nos como sede da Copa do Mundo, a FIFA demostrou grande confiança em nós alemães”, afirma ela e condecora Blatter com a Ordem de Mérito da República Federal da Alemanha, no refeitório nobremente decorado do Gabinete da Chancelaria, dois dias antes do término da Copa 2006. O homem do cantão Valais finge comoção, como se ele não soubesse que a condecoração fazia parte daquele imenso negócio com que o Governo Federal se submeteu à FIFA. nacionais mais otimistas do governo não tinham julgado possível. Ela é um sucesso comercial para a FIFA, uma façanha logística inédita da parte da organizadora, a Federação Alemã de Futebol (DFB), e para o Estado, ela é a grande festa tão esperada desde a reunificação em outubro de 1990. Franz Beckenbauer, o “imperador” alemão do futebol, na época presidente do Comitê Organizador da Copa, está quase onipresente em todos os dias de jogos. “É assim que o bom Deus sonhou o mundo”, diz ele pouco antes do fim da Copa sobre as festas oficiais, organizadas pela FIFA nas cidades dos jogos. Centenas de milhares de pessoas reúnem-se nelas nos dias dos jogos e brilham mais forte do que o sol que, para as condições cliA Copa do Mundo levou a Alema- máticas alemãs, brilhava bastante nanha a um delírio nacional que até queles dias. No “país de um sonho de mesmo os comercializadores verão”, em seu embrulho negro-rubro- FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 15 16 dourado, não se encontra quase nin- privar Blatter da Ordem de Mérito guém que queira contradizer ao im- recebida. perador. No verão de 2012, multiplicam-se Cerca de seis anos depois – e um na Alemanha as reportagens sobre o ano depois de ter sido bajulado mais pagamento de subornos no contexto uma vez pelos digníssimos cavalheiros da decisão de levar Copas para a Rúse damas do esporte e da política, por sia e para o Qatar. Para Blatter, isto ocasião da Copa Feminina de 2011 – parece ser a gota d’água. Numa entreBlatter se torna quase uma persona vista concedida ao tabloide suíço non grata na Alemanha. Finalmente é Sonntagsblick, ele diz: “Uma Copa documentado o que circulava na mídia comprada… Aí eu me lembro da licitahá tempos, a saber, que vários figu- ção da Copa 2006... no último instanrões da FIFA cobraram subornos te, alguém se levantou e deixou a sala. exorbitantes da então empresa de E assim, a votação deu 10 para a Alemarketing para direitos esportivos ISL manha e 9 contra, em vez de 10 x 10. (International Sport and Leisure). Um Eu fiquei contente, porque aí eu não dos principais dirigentes da organiza- tive que desempatar. Mas, afinal... de ção do futebol alemão convida Blatter repente alguém se levanta e sai. Tala renunciar. vez eu tenha sido também muito bonzinho e ingênuo.” Reinhard Rauball, presidente da Liga Alemã de Futebol (DFL), na qual se Para a Alemanha, que continuava organizam os 36 clubes pertencentes embriagada com seu sonho de verão, às divisões (ligas) federais, opina: “Se- isto passa do limite. O jornal Frankfurgundo o estado atual da questão, ter Allgemeine Zeitung lança a mancheBlatter deveria entregar suas tarefas te “Conspurcaram nosso sonho de o mais rápido possível a outras mãos.” verão”. Blatter afoga-se num shitstorm Ele chega a convidar Blatter por tele- midiático e relativiza suas afirmações. fone a renunciar à presidência da FI- É incrível que os alemães ainda não tiFA. Também Uli Hoeness, na época vessem percebido que o processo deainda o reconhecido chefão do FC cisório em favor da Alemanha havia Bayern de Munique, exige a renúncia sido o resultado de jogadas bem marde Blatter. Reinhard Bütikofer, porta- cadas. voz do Partido Verde no Parlamento Em seu livro FIFA-Mafia (2012), o Europeu, bem como o então diretor jornalista esportivo Thomas Kistner da fração parlamentar do Partido sintetiza mais uma vez todas as susSocialdemocrata (SPD), Thomas peitas que deixam a votação do ComiOppermann, exigem até mesmo tê Executivo da FIFA no dia 6 de julho Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto de 2000 aparecer numa luz extremamente tenebrosa. As primeiras matérias tinham saído no jornal Süddeutsche Zeitung e na revista Manager Magazin já três anos antes do chute inicial da Copa 2006. Segundo esses relatos, ainda pouco antes da votação decisiva, as chances para a Alemanha, embora uma candidata tão segura de si, não pareciam nada boas. Parecia haver uma clara maioria em favor do concorrente África do Sul, preferida também pelo presidente da FIFA, Blatter. Isto incomoda não só o pretencioso candidato da DFB, mas principalmente o já falecido chefão midiático Leo Kirch. Ele tinha comprado os direitos de transmissão daquela Copa e esperava um lucro muito maior se ela fosse na Alemanha do que se passasse para a África do Sul. Por isto, bola-se uma estratégia esperta. Mesmo assim, nos dias em que são publicadas as pesquisas sobre a decisão, as vozes que denunciam um escândalo não são muito altas. Elas foram abafadas pela feliz expectativa do grande evento futebolístico. Também na denúncia de Fedor Radmann, então vice do Comitê Organizador que tinha mexido os pauzinhos na candidatura para a Copa (fechando um contrato “adequadamente remunerado” de consultoria com a holding de Leo Kirch), a lama da copa alemã não é remexida por muito tempo. O tapete vermelho estendido para a FIFA não pode ter qualquer mancha. Naquele entremeio preparam-se, sem conflito e quase sem qualquer discussão pública, os contratos com a FIFA. As garantias governamentais que a Federação Internacional exige do país-anfitrião nunca são objeto de maiores discussões públicas. Os direitos malucos que esses contratos concedem aos quinze patrocinadores principais da Copa – o prefeito de Munique, Christian Ude, chamou-os de “contratos-mordaça” – são rapidamente garantidos. É verdade que se critica frequentemente o direito da FIFA de embolsar quase todos os lucros realizados durante a Copa isentos de impostos, mas ele nunca é questionado seriamente. O chefe da candidatura, Beckenbauer, na época presidente do FC Bayern de Munique, manda seu time de profissionais para um turnê pelos países ainda indecisos que têm direito de enviar um representante para a executiva da FIFA. Kirch compra através de sua empresa CWL, os direitos de transmissão por uma soma monstruosa que é depositada em contas fiduciárias. Parece que foi assim que os votos de Malta e da Tailândia vieram Neste ponto, o Estado permite topara a Alemanha. O sonho de verão é das as vezes uma verdadeira chantao resultado de negócios sinistros. gem da parte de grandes organizações FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 17 18 esportivas. Isto mostra o processo decisório praticado pela UEFA, a União Europeia de Futebol, quando se trata da definição de cidades para finais da Copa Europeia. Após a Copa do Mundo de 2006, os estádios da Alemanha, novinhos em folha, estão sendo sistematicamente desconsiderados na distribuição das finais da Liga dos Campeões e da Copa UEFA. Quando o governo alemão garante uma isenção tributária para tais eventos, Hamburgo recebe prontamente a final da Liga Europeia de 2010. Para a competição de 2006, a FIFA não precisa implorar por isenções. E quando ela exige que também o torneio preparatório da Copa do Mundo, a Copa das Confederações em 2005, seja isento de impostos de renda e retenções na fonte, as respectivas cláusulas das garantias governamentais são imediatamente corrigidos. “Para a FIFA havia uma relação indissolúvel entre a Copa do Mundo de 2006 e a Copa das Confederações de 2005, pois ela via a Copa das Confederações de 2005 como elemento integral da Copa de 2006, que servia basicamente para testar a aplicação organizatória do planejamento para a Copa 2006”, diz o relatório final do Ministério do Interior sobre a Copa 2006: quando a FIFA quer alguma coisa, o Estado alemão está à disposição. naquela época que a Copa não era subvencionada pelo Estado e que também não existiam garantias em caso de cancelamento, que o risco era exclusivamente do anfitrião, a saber, da Federação Alemã de Futebol. Também se vivia repetindo que o evento gerava mais receitas do que gastos. No entanto, no relatório final do Ministério do Interior aparecem dois números que desmentem exatamente isto. A União pagou 195,8 milhões de Euros para a reforma que fez do Estádio Olímpico de Berlim uma arena adequada para uma Copa da FIFA. Ela subvencionou com 51 milhões de Euros a construção do Estádio da Copa em Leipzig e investiu assim dinheiro público num estádio que até hoje não viu um único jogo da Primeira ou Segunda Divisão. Estas certamente não foram os únicos recursos públicos que foram canalizados diretamente para os negócios da Copa do Mundo. A nova Arena de Munique, no lixão de Fröttmaning, cujo financiamento privado é o grande orgulho do FC Bayern de Munique, ficaria meio perdida no meio do nada se o Estado não tivesse investido 210 milhões de Euros na conexão ao transporte público e privado e no saneamento da região. Para garantir um aproveitamento econômico dessa área localizada no norte de Munique, a região industrial foi simplesmente redefinida como O Ministério do Interior, responsá- área de uso especial, o que resultou vel pelo esporte, gostava de afirmar numa redução de seu valor de mais Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto que 80 milhões para magros 14 mi- no Ministério do Interior – primeiro lhões de Euros. Otto Schily, depois Wolfgang Schäuble – utilizam-se de todas as possibiliO Estádio da Copa em Frankfurt dades para testar uma nova custou ao Estado Federal de Hessen arquitetura de segurança interna. 20,5 milhões de Euros, e a prefeitura Nunca antes na história da Alemanha de Frankfurt pagou 65 milhões. Em Federal, o Exército Federal foi empreColônia, a prefeitura subvencionou a gado de modo tão intensivo para a seconstrução de um novo estádio para a gurança interna como durante a Copa Copa 2006 com mais que 25 milhões 2006. Segundo o Artigo 87a da Consde Euros. O Estádio da Copa em Kai- tituição Alemã, seu emprego interno é serslautern, constantemente no ver- permitido somente quando serve “pamelho, é apelidado até hoje de uma ra a defesa contra uma ameaça imi“cova aberta de subvenções” que pro- nente à existência ou ordem vavelmente jamais poderá ser fecha- fundamental democrática livre da da. Quando o futebol profissional União ou de um Estado”. Já que se levanta suas reivindicações, a política constatou esta situação, foram emfunciona, e ele pode confiar que nin- pregados durante a Copa 1.700 solguém levantará uma crítica sustentá- dados de 50 diferentes quartéis, e vel – salvo alguns políticos honestos outros 5.300 soldados ou colaborana área do orçamento, bem como a dores civis do Exército Federal perAssociação dos Contribuintes. O fu- maneceram em estado de alerta. A tebol é o campo predileto do populis- Força Aérea controla o espaço aéreo mo. Quando a FIFA começa a instalar do País da Copa também com a ajuda a Copa 2006 na Alemanha, ela é rece- de aviões de reconhecimento do tipo bida em todas as partes de braços Awacs. abertos. Para o futebol, a Alemanha faz quase tudo. Neste caso, a política utilizou-se da popularidade do futebol para realizar Já na fase da construção de todos duas ideias de uma nova estratégia de esses lindos estádios, o governo fede- segurança com inclusão do Exército ral começa a elaborar um conceito de Federal. Diante de tudo que o Estado segurança para a Copa do Mundo. presenteou à FIFA, este pode ser chaTambém a promessa de fazer tudo que mado provavelmente de um presente se possa imaginar em favor da segu- que, no âmbito da Copa 2006, a polítirança dos torcedores faz parte das ca de segurança deu a si mesma. As garantias governamentais exigidas costumeiras discussões sobre a legitipela FIFA. Neste ponto, os apologistas midade do emprego do Exército Fede plantão em questões de segurança deral no interior da Alemanha, FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 19 20 normalmente travadas de forma bastante acalorada, dão-se em volume muito baixo e logo se perdem no ar. Aproveitando do entusiasmo pelo futebol na Alemanha, paradigmas considerados intocáveis são claramente redefinidos. Na primavera de 2006, há um único momento em que os alemães protestam pelo menos um pouco contra a FIFA que, nos dias dos jogos, realiza uma verdadeira ocupação das respectivas cidades, ostentando seus maçantes “uniformes” sociais e marcando suas zonas proibidas para realizar seus negócios desenfreados perto dos estádios. O conflito diz respeito à sua cerveja. A Anheuser-Busch, grande cervejaria estadunidense (“Bud”) e grande patrocinadora da FIFA, está exigindo exclusividade de venda para seus produtos nos estádios e nas festas oficiais. Na Alemanha, porém, a cerveja “gringa” possui uma fama péssima. Políticos nacionais e locais exigem “cerveja alemã para torcedores alemães” e tomam assim a dianteira num protesto contra a FIFA que está apenas nascendo. No fim chega-se a um meio termo que permite a venda de cervejas locais nas festas de torcedores. Além disso, a cervejaria alemã Bitburger (“Bit”) conquista o direito de vender sua cerveja dentro dos estádios. Devido ao perigo de confundir a sigla “Bud” com a sigla “Bit”, seu uso nas publicidades de produtos Anheuser-Busch é proibido na Alemanha. Contudo, a Bitburger abre mão dessa proibição pela qual tinha lutado na justiça, e em troca recebe a permissão de venda nos estádios. A temida revolução cervejeira é evitada, num país em que quase ninguém se incomoda com mudanças de certos nomes: na estação central de Hannover, os altofalantes reproduzem regularmente a saudação “Bem-vindos e bem-vindas à Estação Copa-da-FIFA de Hannover!” A ocupação é aceita pacificamente. É verdade que se critica os advogados da FIFA que movem ações contra tudo e todos que usam marcas registradas como “Copa da FIFA 2006”, e certamente é franca e manifesta a alegria por uma sentença de instância superior que julga que expressões como “Copa do Mundo de Futebol 2006” não podem ser protegidas como marcas registradas. Mas mesmo assim, em grande parte, a conduta arrogante da FIFA é aceita como um mal necessário. Em vez de criticar a FIFA pela sua obsessão em proteger marcas registradas e exigir apoio político a esta crítica, as Câmaras de Indústria e Comércio da Alemanha assessoram seus membros em estratégias de contornar o direito particular da FIFA, aconselham padeiros para fazer propaganda de seus “pãezinhos Campeão do Mundo” em vez de “pãezinhos Copa” e de registrar educadamente cada evento de public viewing na Infront, a empresa Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto autorizada para gerenciar os direitos da FIFA. Não surge mais do que um mal-estar difuso diante das práticas comerciais da FIFA. E quando, com as primeiras apresentações razoáveis da seleção alemã, que até aquele momento era apenas objeto de sorrisos compassivos, o sonho de verão começa a florescer com plena força, qualquer crítica à Federação Internacional e a seu dono Blatter some definitivamente no delírio nacional negro-rubro-dourado. Somente quando não se precisa mais da FIFA, depois de os últimos emissários da FIFA em seus ternos azuis deixarem a Alemanha após a Copa Feminina de 2011, a crítica a Blatter torna-se oportuna. Provavelmente, porém, o suíço não precisará temer por sua Ordem de Mérito alemã. Parece que ele voltou a cair nas boas graças de Berlim: no dia 10 de março de 2014, ele é recebido em Berlim pelo novo Ministro da Cooperação Econômica, Gerd Müller. Eles conversaram sobre o papel que o futebol pode desempenhar na política Norte-Sul. Pouco depois, Blatter anunciou no twitter: “Conversamos sobre possíveis projetos em comum na África”. O cartola supremo que se viu durante a Copa 2010 na África do Sul já como futuro Prêmio Nobel da Paz, deve ter gostado do encontro. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 21 22 Sul-africanos fazem festa, mesmo depois que a seleção de futebol do país foi eliminada. Soweto, 2010. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 2010: A ÁFRICA DO SUL NÃO FOI UMA HISTÓRIA DE SUCESSO Patrick Bond Trad. Petê Rissatti "A Copa do Mundo na África do Sul foi um sucesso financeiro imenso, imenso para a África, para a África do Sul e para a FIFA" – Sepp Blatter. Com déficits financeiros de longo prazo imensos e uma melhoria psicológica distorcida e pouco duradoura na esteira do principal torneio de futebol do mundo, a experiência da África do Sul no período de junho a julho de 2010 foi dúbia. infraestrutura de construção associadas. Porém, houve também custos intangíveis relacionados à escolha da sede da Copa do Mundo de 2010: corrupção política, prioridades dúbias e gastos excessivos, retorno de lucros, suspensão das liberdades democráticas e da soberania, protestos e resistência, além da xenofobia. A Máfia da FIFA, prioridades dúbias e O governo comprometeu-se a gas- gastos excessivos tar US$ 6 bilhões dos cofres públicos A FIFA apoiou uma equipe sul-africom o intuito de preparar o país para a cana branca racialmente pura durante Copa do Mundo da FIFA de 2010. Esse décadas, até a oposição, liderada pelo montante destinou-se principalmente falecido Dennis Brutus, tornar-se um para construir e reformar dez estáditime formidável em 1976. No entanto, os, acelerar a construção de uma linha o apartheid de classes substituiu o de trem de alta velocidade do Aeroapartheid racial, e essa troca levou a porto O. R. Tambo para Sandton e erÁfrica do Sul contemporânea a conguer um novo aeroporto nas cercanias tradições similares de exclusão, de Durban, melhorando estradas e FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 23 24 intrínsecas às cidades que sediaram a 70.000 lugares, é uma delícia de ver, Copa do Mundo de 2010. contanto que mantenhamos os olhos e a mente longe do atraso nas obras Por exemplo, os turistas da Copa do de moradia, abastecimento de água, Mundo conheceram as condições de saneamento, eletricidade, clínicas, esdeterioração da região de Cape Flats, colas e rodovias, e o aumento absurdo enquanto, por sua vez, o novo estádio nos custos dessas construções. Green Point, que custou US$ 630 milhões na Cidade do Cabo, recebera Mais difícil de manter fora do pensubsídios vultuosos graças aos legis- samento é o estádio vizinho, o Estádio ladores da Aliança Democrática do- Absa, sede do time de rúgbi Sharks, minada por brancos liberais e ao que abriga 52.000 assentos e poderia Congresso Nacional Africano negro e ser facilmente estendido. Os Sharks nacionalista, respectivamente. Uma disseram que não conseguem mudar reforma no campo de rúgbi de Ne- para o Mabhida porque os custos de wlands (numa região residencial aluguel são altos. Trevor Phillips, exbranca) ou no estádio de Athlone (nu- diretor da Liga Premier de Futebol Sulma vizinhança negra) teria saído mui- Africana, pergunta: “O que vamos fato mais em conta. Segundo as zer com um estádio de futebol com informações, este último foi rejeitado, 70.000 lugares em Durban depois que de acordo com um representante da a Copa do Mundo tiver acabado? FIFA, porque “um bilhão de telespec- Durban tem dois times de futebol que tadores não deseja ver barracos e po- atrai um público de apenas poucos breza nessa escala”. milhares”. A terceira maior cidade, Durban, ostenta a mais memorável das novas instalações esportivas (com custo avaliado em US$ 440 milhões, ultrapassando os US$ 225 milhões do orçamento inicial), bem como o maior índice de corruptibilidade e desfaçatez que emana de um prefeito, Mike Sutcliffe, que tentou descaracterizar um mercado nativo africano centenário para agradar a FIFA, o que foi rejeitado com a oposição da comunidade. O estádio Moses Mabhida, em Durban, com seus Os vencedores locais nesse processo não são os futebolistas, tampouco os times de rúgbi que, assim esperam inutilmente os funcionários de alto escalão municipais, encherão os elefantes brancos que são esses estádios. Quem vence são as grandes corporações e os “tenderpreneurs” (empresários de licitação) negros politicamente associados (que ganham licitações estatais graças à ação afirmativa, mesmo que relacionados a empresas brancas estabelecidas), especialmente no setor da construção civil. Essa Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto estratégia de tenderpreneurship, ou de comércio de licitações, era profundamente corrupta, segundo Moeletsi Mbeki, irmão do ex-presidente Thabo: “Era uma questão de cooptação, cooptar líderes nacionalistas africanos através do seu enriquecimento particular”. As macro-implicações serão sentidas com o passar dos anos, porque a Copa do Mundo piorou a desigualdade de renda da África do Sul, a maior do mundo, e montou um cenário para as calamidades econômicas futuras, uma vez que os pagamentos de dívida vencerão. Os gastos excedentes em novos estádios (em Durban, Cidade do Cabo, Port Elizabeth, Nelspruit e Polokwane), mais as despesas de recondicionamento exorbitantes da Cidade do Futebol, fizeram o Estado subsidiar mais de US$ 3,6 bilhões, sem mencionar os gastos com infraestrutura associada. Inclusive, tornou-se impossível para quase todos os estádios cobrirem suas despesas operacionais após a final da Copa do Mundo. Uma parte excessiva das despesas com estádios veio de importações desnecessárias, numa época em que a dívida externa sul-africana subiu de US$ 24 bilhões que Nelson Mandela herdou do apartheid para mais de US$ 140 bilhões hoje. O pagamento de juros sobre dívidas, mais os dividendos para empresas gigantes de origem sulafricana, mas agora multinacionais com sede no exterior – Anglo American, BHP Billiton, DeBeers, Old Mutual, SAB-Miller beer, Liberty Life, Didata, Investec Bank – levaram o país à lanterna na classificação de mercados emergentes. Também é importante contabilizar outros custos indiretos para a economia. A Copa do Mundo foi parcialmente responsável pela bolha imobiliária do país, que levou a economia a um aumento de 5% no PIB por ano de 2004 a 2008, exatamente como aconteceu nos EUA antes da crise. Com a Copa do Mundo como justificativa, o investimento estatal em uma infraestrutura de transportes nova e luxuosa foi às alturas. Os US$ 3,6 bilhões da linha de trens rápidos Gautrain custa aos passageiros cinco vezes mais do que o previamente anunciado e aposta na mudança de comportamento dos ricos e a troca do carro particular pelo trem, mas não deslocou usuários suficientes no percurso Johannesburgo-Pretoria para evitar uma conta de subsídio anual de US$ 120 milhões. O break-even, ponto de equilíbrio comercial, é de 100.000 passageiros/dia, mas apenas 45.000 utilizam o Gautrain. Como o líder sindicalista Zwelinzima Vavi comentou, o Gautrain “não faz nada para aqueles que realmente sofrem com problemas de transporte – principalmente aqueles que precisam viajar para trabalhar partindo de lugares como Soweto e FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 25 Diepsloot. Em vez disso, tira recursos que poderiam melhorar a vida de milhões de trabalhadores nessa situação”. 26 E será que foi inteligente para Durban construir o novo Aeroporto Internacional King Shaka, com custo de US$ 1,1 bilhão, sendo que o antigo tinha capacidade excedente até 2017, e considerando a duplicação da distância e as tarifas de táxi até o centro de Durban? O fechamento do Aeroporto Internacional de Durban provou ser, antes do tempo, o maior constrangimento para a liderança do Comitê Organizador Local e para a Companhia Aeroportuária da África do Sul, quando o King Shaka não conseguiu suportar os jatinhos particulares VIP que lotaram o aeroporto em 7 de julho, o dia da semifinal, deixando mais de 1.000 torcedores furiosos em aviões que precisaram ser remanejados. Perda de soberania e direitos democráticos O jornalista esportivo Andrew Jennings, autor de Jogo Sujo!1, documentou em detalhes mínimos o abuso da FIFA em países-sede ao aumentar muito a infraestrutura desnecessária e superfaturada. De acordo com Jennings, um terço dos executivos da FIFA “está envolvido em propinas e corrupção, fraudes de ingressos e desvio de recursos”. Ninguém descobriu fraudes explícitas na África do Sul, apesar da mancomunação de uma FIFA permeada pela corrupção e de um governo permeado pela corrupção. Mais tarde, descobriu-se que a maioria dos estádios de futebol construída para a Copa do Mundo foi vítima de conluio entre empreiteiras, com uma multa de US$ 200 milhões cobrada das maiores empresas de construção do país. Mas a corrupção mais perniciosa associada à Copa do Mundo foi de fato aberta, na forma de contratos lícitos que foram mantidos em sigilo até um juiz ordenar sua abertura para análise pública, em junho de 2010. Segundo a conclusão de Jennings: “A África do Sul curvou-se e deixou a FIFA fazer do seu jeito. Funcionários do alto escalão e governo botaram à venda a África do Sul: ‘Adeus, África; adeus, idiotas!’” Esses contratos violaram de muitas maneiras a soberania da África do Sul. Os principais espaços geográficos, especialmente aqueles onde a população pobre movimenta a economia informal, foram legalmente definidos como Zonas de Exclusão de comércio local (ou zonas da FIFA), deixando temporariamente de lado a Constituição Sul-Africana. Assim, o governo sul-africano foi obrigado a acatar as leis da FIFA, inclusive a diminuição dos direitos democráticos, como marchas e protestos pacíficos. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O aparato de segurança nacional comunicou ao Parlamento que estenderia um “cordão” de 10 km ao redor dos estádios, repletos de “controles de distribuição aérea por aviões de caças, patrulhas de fronteira conjuntas com países vizinhos, escolta policial para cruzeiros e equipes de seguranças com treinamento ‘diplomático’”. O objetivo, segundo o Ministro da Segurança Nathi Mthethwa, era “impedir extremismos nacionais, greves e protestos contra a situação dos serviços públicos”. Para servir à FIFA, Durban abriu mão de grande parte de seu poder, bem como do bom-senso. Para ilustrar, a poucos metros de distância de onde foi negada à população pobre sua fonte de pesca e renda, caras marquises importadas (da Alemanha) aparentemente precisavam da montagem feita por uma empresa de construção alemã. E a FIFA assumiu a ocupação exclusiva do Estádio Moses Mabhida, mesmo que em 75% dos dias não tivesse havido jogos de futebol durante o mês, mantendo as instalações fora do alcance de visitantes. De acordo com o professor de jornalismo da Universidade de Wits, Anton Harber, foi parte de uma tomada geral: “A FIFA baniu essas pessoas que tentavam ganhar a vida ao redor dos estádios, fez com que desviássemos dinheiro de desenvolvimento para estádios luxuosos, e tivemos de abrir mão de todos os tipos de direitos durante o mês em que estarão controlando nossas cidades”. A FIFA não apenas foi totalmente indenizada “em todos os processos judiciais, reclamações e custos correlatos (inclusive honorários de consultores profissionais) que possam incorrer ou ser infligidos ou ameaçados por terceiros”. Além disso, de acordo com um acordo oficial, a África do Sul forneceu força policial especificamente “para garantir a proteção dos direitos de marketing, direitos de difusão, marcas e outros direitos de propriedade intelectual da FIFA e de seus parceiros comerciais”. (Soube disso em primeira mão quando, em 2 de julho, fui detido pela polícia por circular um panfleto antixenofobia na Fan Fest.) Jornalistas que conseguiram credenciamento da FIFA também se comprometiam a não “difamar” a Copa do Mundo durante as reportagens, sob o risco de serem banidos. Portanto, a liberdade de imprensa ficou comprometida. Com tal pressão, não é surpresa alguma que o documentário Fahrenheit 2010 tenha sido rejeitado pelas três maiores redes de televisão sul-africanas no período antes da Copa do Mundo. A definição de “difamação” da FIFA compreende qualquer ação que “afete negativamente a posição do Comitê Organizador Local ou a FIFA”. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 27 28 A FIFA também recebeu tratamento jurídico especial, com a perseguição de várias dezenas de incidentes criminosos 24 horas por dia, 7 dias na semana, inclusive a condenação a três anos de prisão de um homem cujo crime era ter 30 ingressos para jogos da FIFA “sem explicação”, quando a FIFA tentou extinguir o mercado dos cambistas. Dois holandeses que realizavam uma ação de “marketing de emboscada” foram presos com 36 mulheres que trajavam vestidos laranjas, representando a cervejaria Bavaria, no jogo Holanda x Dinamarca, embora o logotipo da empresa fosse mínimo. Casos desse tipo fizeram a FIFA parecer extremista. A perda da soberania estatal para a FIFA surpreendeu observadores, considerando a enorme experiência que o ex-presidente Thabo Mbeki e sua equipe de negociação acumularam em trâmites de política econômica mundial desde que o apartheid terminara, em 1994. Ainda assim, Mbeki concedeu à FIFA e a patrocinadores multinacionais pleno aceso às “zonas de exclusão”, sem impostos, controles de câmbio ou preocupações com segurança. Promessas de redistribuição descumpridas Mais apoio logístico, controle de acesso e proteção foram oferecidos aos parceiros corporativos da FIFA (Adidas, Sony, Visa, Emirates, CocaCola, Hyundai-Kia, McDonalds, gigantes da telefonia local como Telkom e MTN, First National Bank, Continental Tyres, Castrol e a empresa de TI indiana Satyam). Apenas os itens endossados pela FIFA eram anunciados num raio de um quilômetro do estádio e nas principais rodovias. Pouco dinheiro foi redistribuído e a maioria evaporou. Artesanato, turismo e instalações futebolísticas locais deveriam todos ser beneficiados. Mas, como confessou o presidente provincial da Associação de Futebol SulAfricana em Western Cape, Norman Arendse, a abordagem fatal “de cima para baixo” da FIFA deixou os times de futebol de base com meras “migalhas”. À parte das vuvuzelas estoura-tímpano, a ostentação “africana” tão celebrada pela Copa do Mundo ficou muda quando mulheres que em geral vendiam “pap” (uma espécie de polenta) e “vleis” (“carne de preço acessível”) fora dos estádios de futebol foram enxotadas para no mínimo um quilômetro de distância. De acordo com o eminente pesquisador Udesh Pillay, do Conselho de Pesquisa de Ciências Humanas da África do Sul, em 2005, um em cada três sul-africanos esperava se beneficiar pessoalmente da Copa do Mundo, mas o número caiu para um a cada cinco em 2009, e um a cada cem na época em que os jogos começaram. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Danny Jordaan, diretor-presidente do Comitê de Organização Local da Copa do Mundo, previu em 2005 que os jogos renderiam de lucro para a África do Sul mais de US$ 7 bilhões, mesmo após as despesas relacionadas à infraestrutura após 2010. Contudo, o resultado financeiro real gerou controvérsias acirradas. Primeiro, o mercado do setor turístico foi saturado em muitas áreas, após um terço dos apartamentos reservados pela agência Match, da FIFA, terem sido cancelados em maio. Muitos que acrescentaram quartos às pousadas ou mantiveram vários blocos de quartos de hotel em aberto perderam somas gigantescas. Da mesma forma, trabalhadores comuns foram enganados ao pensar que se beneficiariam das oportunidades fabris associadas à parafernália da Copa do Mundo, mas, conforme concluiu o porta-voz dos sindicatos sulafricanos, Patrick Craven, “As empresas locais não receberam o esperado, as empresas chinesas acabaram sendo as grandes vencedoras”. Trabalhadores perderam à medida que deixaram de ganhar direitos de produção local para os bonecos do mascote Zakumi, que, em vez disso, foram produzidos no que o movimento sindicalista chama de “estabelecimentos escravizantes” chineses, onde adolescentes trabalham por US$ 3/dia. O homem que tratou do acordo foi o Membro do Parlamento no Congresso Nacional Africano, Shiaan-Bin Huang, cujo distrito natal em Kwazulu-Natal, Newcastle, tinha muitas fábricas ociosas que poderiam ter produzido os Zakumi. Residentes também sofreram, especialmente se fossem da classe trabalhadora e precisassem de tratamento em hospitais locais. Como observaram os jornalistas do jornal Times, “As diretrizes da FIFA para hospitais designados no país – que incluíam manter as alas com metade de sua capacidade ociosa – resultarão na remoção de pacientes de longo prazo dos seus leitos e sua transferência para instalações em outros lugar. Encaminhamentos para exames de rotina nos principais hospitais especializados já foram diminuídas, se não interrompidas, até depois da Copa do Mundo, deixando centenas de pacientes sem cuidados nos próximos dois meses’. Protestos e resistência O humor da população pobre e trabalhadora permaneceu irritadiço nos dias que antecederam o grande evento, com dezenas de protestos todos os dias, de acordo com as estatísticas policiais, a maioria pela falta de condições nos “serviços públicos”. Vários protestos tinham como alvo explícito a maneira como a Copa do Mundo estava sendo realizada. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 29 30 Por exemplo, mais de mil estudantes fizeram uma manifestação contra o estádio de Mbombela (Nelspruit), pois escolas desalojadas no processo de construção não foram reconstruídas. Outros protestos relacionados à Copa do Mundo foram realizados por comerciantes informais em Durban e na Cidade do Cabo, contra os governantes de Johannesburgo pelas vizinhança da Cidade do Futebol, no empobrecido distrito de Riverlea, contra as empreiteiras pelos operários, contra a construção de estádios por portadores de necessidades especiais e contra os governos nacionais por ativistas de quatro cidades que tentavam realocar as fronteiras provincianas e deslocar seus municípios para uma província mais próspera. Em 13 de junho de 2010, em Durban, centenas de trabalhadores da segurança no Estádio Moses Mabhida começaram a se revoltar após o jogo Alemanha x Austrália, exigindo o pagamento de uma bonificação prometida. Recebiam apenas US$ 27,00 por 12 horas de trabalho; a terceirização e a superexploração azedaram as relações empregatícias no setor de segurança, não raro uma área de risco. A polícia lançou gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral em 300 pessoas para interromper o protesto e prometeu que os líderes da revolta seriam presos. Porém, metade dos dez estádios sofreram o mesmo destino, quando trabalhadores baixaram as ferramentas contra os intermediários do setor de segurança, levando a demissões em massa e obrigando a uma A FIFA insistia numa zona sem pro- política de vigilância mais dispendiosa testo, com proibições policiais regula- para auxiliar a FIFA na questão de seres das marchas empreendidas – gurança interna. mesmo um comício inócuo em prol da educação para todos no dia 7 de junho O protesto mais bem-sucedido e (embora a FIFA tivesse patrocinado o explicitamente contra a Copa do grupo, One Goal, exigindo a permis- Mundo foi feito por centenas de cosão para a marcha) –, até resistência merciantes informais de Durban suficiente ter surgido para sobrepujar frente ao deslocamento do centenário a perturbação. Algumas vitórias fo- Mercado da Manhã. Se não fosse pela ram registradas ao longo do caminho. resistência contínua por um período Milhares de operários da construção de um ano, inclusive uma batalha de estádios lutaram por maiores salá- campal com a polícia em meados de rios e não raro conseguiram. E os ati- 2009, seu espaço teria sido transforvistas da AIDS, impedidos de mado num shopping center, sem esdistribuir camisinhas nos estádios, paço para eles. contestaram e conseguiram esse direito. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Algumas das mobilizações mais impressionantes talvez tenham sido no front mais complexo: a cultura pop. Para ilustrar o desafio, o músico nascido na Somália e criado em Toronto, K’naan, usou seu sucesso, Wavin’ Flags, para promover a noção de que um garoto jovem num campo de futebol de terra poderia simplesmente tomar Coca-Cola e se tonar um jogador de nível internacional. A música remixada para a FIFA autocensurava toda a sua versão de letra mais realista e antiguerra. Explicando porque remixou a música, K’naan disse: “Esta é uma época em que todos nós nos juntamos, e o mundo esquece seus conflitos e problemas, em que nos concentramos na união e na celebração. Esse momento tem ligação agora com Wavin’ Flag”. Esse tipo de comercialização e despolitização trágicas exigiu uma culture jamming, prontamente feita na versão Wavering Flag, do grupo de hip-hop Playing Fields Connective. Então vieram os Chomsky AllStars, cuja imitação de Beautiful Gain para a Copa do Mundo foi anunciada assim: “Misturando punk, blues, dub e afrobeat, Beautiful Gain, com sua melodia contagiante e ritmos sublimes, tem tudo para ser o Free Nelson Mandela do século XXI”. Uma música de protesto ainda mais marcante foi lançada por uma rede de artistas que se uniram para divulgar o Grupo de Apoio Khulumani, a rede de vítimas antiapartheid que está processando empresas nos tribunais norte-americanos por levarem lucros e juros quando deveriam estar cumprindo sanções. Iain Robinson (Ewok), de Durban, contribuiu com a música Shame on the Beautiful Game, que logo se juntou a outras músicas de protesto num CD de hip-hop produzido pelo grupo baseado em Grahamstown, o Defboyz. Mas houve muitos atingidos pela FIFA e seus aliados do governo sulafricano que não se deram tão bem. Os pescadores de subsistência de Durban tentaram combater, sem sucesso, uma remoção forçada dos píeres no parque da Fan Fest da Copa do Mundo, na praia principal. Os comerciantes de Johannesburgo e Cidade do Cabo também perderam sua batalha por espaço por conta das zonas de exclusão. E os desalojados da Cidade do Cabo foram transferidos para um acampamento “temporário”, no melhor estilo apartheid, o Blikkiesdorp. Outros vencidos foram ambientalistas preocupados com as gigantescas emissões de carbono da Copa do Mundo – duas vezes o recorde de 2006 – e a tentativa do governo sulafricano de “compensar” essa pegada através de estratégias de greenwashing, dissimulações do prejuízo ambiental como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e as plantações inadequadas de árvores. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 31 32 O mais problemático, as redes esquerdistas independentes, que em geral se mobilizam contra grandes eventos internacionais – a Conferência Mundial Contra o Racismo (12.000 manifestantes em 31 de agosto de 2001) e a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável (30.000 pessoas saíram às ruas em 31 de agosto de 2002) – foram simplesmente incapazes de gerar entusiasmo para as duas manifestações pretendidas. Conclusão A Copa do Mundo é um espetáculo formidável, especialmente porque atrai o maior público esportivo do mundo. A África do Sul como anfitriã passou quase impecável, ao contrário das previsões dos afro-pessimistas. O aumento do lucro da FIFA, se comparado aos jogos na Alemanha, foi de no mínimo 50 por cento. Ainda assim, também fica evidente que, além do impulso psicológico inigualável – apesar de temporário – o ganho para a sociedade foi excedido pelo ônus. A experiência internacional sugere que megaeventos esportivos sejam organizados em grande parte pelo setor privado, com pouco ou nenhum impacto para cidadãos ou dignitários eleitos, embora suas decisões possam ter implicações maiores nas políticas públicas. Como Jennings enfatizou, a “inexplicável estrutura” da FIFA… “é aprimorada para realizar os jogos segundo as necessidades do capitalismo global – sem checagens ou restrições. Apenas cheques”. A experiência sulafricana não foi diferente. A Copa do Mundo da FIFA de 2010 baseou-se num discurso retórico de redução de desigualdades socioeconômicas na região e atendimento das necessidades do povo, porém era em grande parte voltado para interesses corporativos, financiado com recursos públicos, com participação popular limitada ou nula e solapando a soberania e os direitos democráticos. Na África do Sul, assim que o frisson futebolístico arrefeceu e os protestos sociais se tornaram mais persistentes, as elites locais perceberam seu erro em sediar esses jogos de forma tão perdulária e arrogante. Podem aprender agora o que já sabemos: o lucro com negócios e a alegria genuína associada ao esporte mais amado do mundo são incompatíveis. A questão para os brasileiros amantes do futebol e para os críticos das regras corporativas multinacionais é se terão maior sucesso estabelecendo uma pressão compensatória e revertendo o poder da FIFA. Apenas com um antídoto contra a comercialização e o controle estrangeiro podemos realmente aproveitar a beleza do futebol. Nota 1 Jogo Sujo! – O mundo secreto da FIFA. Trad. Renato M. de Oliveira. São Paulo: Panda Books, 2011. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 33 Torcedores do Bafana Bafana, como é conhecida a seleção da África do Sul, assistem ao jogo de abertura da Copa do Mundo, em telão montado pela FIFA no bairro de Soweto. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 34 Eduardo Galeano, Brasília, 2014. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto NÃO PRECISAMOS COPIAR OS EUROPEUS Eduardo Galeano Entrevista: Gerhard Dilger Em períodos de Copa, uma placa pendurada na porta de casa de Eduardo Galeano, em Montevidéu, adverte: Cerrado por fútbol. Durante a Copa de 2010, o autor e torcedor uruguaio analisou alguns aspectos do futebol internacional. Qual sua opinião sobre a equipe alemã? Assombrosa. Tem a força e a velocidade dos velhos tempos, mas uma elegância e uma alegria que talvez seja o aporte de tantos jovens incorporados em suas fileiras, em sua maioria Don Eduardo, quem será campeão imigrantes ou filhos de imigrantes. No futebol, como na vida, a mestiçagem deste mundial – e por quê? melhora. Sou um péssimo profeta. E além Por que os argentinos não consedisso, para completar, te confesso que não quero conhecer o futuro. Quando guiram, finalmente? uma cigana pega a minha mão e me Eles brilharam em várias partidas oferece lê-la, eu rogo: “Senhora, por da Copa e agora se foram, humilhados favor, não seja cruel”. Eu não quero por uma goleada. Isso me entristece, saber o que ocorrerá, nem sequer ainda que a vitória alemã tenha sido pressenti-lo, por que o melhor da vida totalmente justa. está sempre esperando à volta da próxima esquina. E te acrescento algo mais: por sorte. Os prognósticos falham. O tempo brinca com quem pretende adivinhá-lo. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 35 Em que falhou a Argentina? 36 Obviamente não cuidou do meio campo, faltou articulação entre a vanguarda e a retaguarda e Messi foi limpamente bloqueado, na boa lei, pela defesa alemã. Talvez isso tenha algo a ver com a “messidependência”. Quando há um jogador de qualidade tão extraordinária, inevitavelmente se produz uma realidade assim. De todos os modos, diga-se de passagem, Messi jogou, durante toda a Copa, muito melhor do que outra superestrela, Cristiano Ronaldo, que esteve no Mundial mas ninguém viu. Pelé disse que Maradona não é um bom técnico: Está de acordo? Qual é o seu balanço do mundial até agora? Meu bom amigo Pacho Maturana, que foi diretor técnico de duas seleções e de várias equipes de diversos países, costuma dizer, e não se equivoca: “O futebol é um reino mágico, onde tudo pode ocorrer”. Nós, latinoamericanos, estávamos felizes, pois pela primeira vez na história quatro seleções nossas chegavam à antepenúltima etapa e, subitamente, paf, ficou o Uruguai solito contra a Europa. E, salvo essa exceção, o Mundial se converteu em uma eurocopa. Um pouco antes, já não havia africanos competindo. Toda África ficou fora neste Mundial que é o primeiro Mundial africano da história. Os irmãos Boateng brindam a dramática metáfora do que ocorreu: um Boateng se foi, o que jogava em Gana, e ficou o Boateng que joga na Alemanha. No futebol atual, o treinador desempenha um trabalho insalubre. Altamente tóxico, eu diria: é o bode expiatório das derrotas, e o mesmo povo que o eleva aos céus, num momento, o expulsa para o inferno logo Foi justamente a Celeste que acabou em seguida. Há alguns anos, as pesso- com o sonho africano. Como viveu os as sequer sabiam qual era o nome do momentos finais da partida contra Gatreinador, que depois passou a ser na? chamado de diretor técnico. Foi um filme de Hitchcock. Me corA grande maioria das estrelas sula- tou a respiração. A minha e a de todos mericanas está jogando na Europa. Há que assistiram à partida mais emociochances de que essa exportação de re- nante deste mundial. Ganhou o Urucursos futebolísticos seja revertida? guai, como se sabe, e assim ficou Não. Nós, dos países do sul do mun- selada a derrota de toda a África. Eu do, seguiremos exportando mão de festejei e, ao mesmo tempo, senti uma obra e pé de obra para o norte do funda tristeza. No futebol, como na vida, há alegrias que doem. mundo. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Por que essa seleção uruguaia está lhor para o mais sulamericano dos sutão forte? lamericanos: de que estava doente o Brasil para precisar desse tipo de rePor que acredita no que faz e o en- médio? tusiasmo compensa o que lhe falta. Não sei se chegará à final, mas volta a ser milagrosamente certo que um país com menos habitantes que um bairro de Buenos Aires pode ser capaz de conquistar o troféu mundial. Festejamos isso, os poucos que somos, porEntrevista concedida por Eduardo Galeano a que o Uruguai é um país muito Gerhard Dilger. Disponível em http://www.carfutebolizado e aqui todos os bebês tamaior.com.br/?/Editoria/Midia/%27A-caminascem gritando goooooool!!! A ca- seta-celeste-tem-muita-energia%27/12/15871 miseta celeste tem muita energia . dentro. E a história também ajuda. Este nosso paisito soube ganhar duas Olimpíadas de futebol, quando o Mundial ainda nem existia, e dois campeonatos mundiais, o primeiro aqui em Montevidéu, e o de 1950, quando derrotamos o Brasil na estréia do maior estádio do mundo, o Maracanã, diante do rugido de duzentos mil torcedores. O Brasil, com sua “receita Dunga”, fracassou. Que conselho daria a seus vizinhos com vistas a 2014? Eu não gosto de dar conselhos, nem de recebê-los, mas nós, latinoamericanos, não vamos bem quando copiamos as receitas do êxito europeu. Nem no futebol, nem em nada. E não precisamos copiar. Li e escutei várias vezes, a propósito desta seleção alemã, a que compete agora, o seguinte elogio: “Parece uma equipe sulamericana”. A receita Dunga não era a me- FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 37 38 Rio de Janeiro, 2009. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto PENEIRAR COMO NO GARIMPO No negócio da exportação de jogadores de futebol, a grande maioria dos talentos passa pela trama Martin Ling Trad. Monika Ottermann Na economia mundial, o Brasil é conhecido por seu papel de fornecedor de matérias primas: cana de açúcar, soja, borracha e muito mais. No entanto, o Brasil é também o Número Um na exportação de jogadores profissionais de futebol: em torno de 5.000 jogadores de futebol possuem um contrato fora de seu país. Desde 1993, a exportação de jogadores de futebol rendeu aproximadamente dois bilhões de Euros. Quem ganha em primeiro lugar com o negócio da exportação são os agentes dos jogadores e os diretores dos clubes, enquanto muitos jovens são eliminados da peneira já no Brasil e ficam sem perspectiva. O antigo técnico da seleção brasileira, Carlos Dunga, lamentou esta situação já em 2009: “Todo mundo diz que o comércio de jogadores é como prostituição, mas todo mundo ganha com ele.” Será que ele muda para a Europa antes da Copa no Brasil ou depois? Foi esta a pergunta que preocupou os fãs do futebol brasileiro ao longo de alguns anos. Afinal, o Quem é quem dos clubes europeus de ponta estava caçando o jogador no qual se depositavam as esperanças da nossa seleção: Neymar do Santos Futebol Clube, o clube de Pelé. Já para a Copa 2010 na África do Sul, numerosos/as especialistas e torcedores no país pentacampeão exigiram a convocação do talento excepcional, naquela época com 18 anos – mas sem sucesso. O técnico da seleção, Dunga, muito realista, não se deixou amolar pelos desejos dos românticos. No entanto, a estrela dos atacantes recebeu ofertas FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 39 40 lucrativas também sem sua participação na Copa, por exemplo, do FC Chelsea de Londres, que ofereceu ao jogador de 18 anos nos últimos meses de 2010 a soma de 55.000 Libras (em torno de R$ 22.000) por semana. Os cartolas do Santos, porém, conseguiram convencer Neymar a ficar – por meio de um aumento de seus salários para aproximadamente R$ 16.000 semanais, mais contratos de patrocínio. Por enquanto parece ter passado o tempo em que os clubes brasileiros tinham que vender, custe o que custar, todos os seus talentos para cobrir os rombos no orçamento. O Brasil faz parte dos países emergentes que vêm prosperando nos últimos anos, e uma parte do dinheiro proveniente da economia acelerada vai também para o futebol em casa. Deste modo, pelo menos estrelas já meio superadas como Ronaldinho, Deco, Roberto Carlos ou Luís Fabiano puderam ser trazidas de volta para os clubes nacionais, com fartos vencimentos. Entretanto, para os craques atuais, o caminho privilegiado para o desenvolvimento da carreira própria ainda passa pela Europa: para a grande massa, primeiramente por motivos financeiros, já que jogadores médios ganham mesmo hoje no Brasil muito pouco – 90% dos aproximadamente 23.000 jogadores profissionais de futebol recebem em torno de R$ 1.000 mensais apenas. Para os jovens talentos excepcionais, são principalmente aspectos esportivos que os motivam a cruzar o Atlântico. Por exemplo, Neymar acabou enfrentando o risco esportivo “Europa” em meados de 2013, ainda antes da Copa, animado pelo técnico da seleção, Felipe Scolari. Desta mudança, Scolari esperava um novo salto no desenvolvimento de seu pupilo exemplar, já que o futebol na Europa aposta mais em tática, força e disciplina. Neymar chegou finalmente ao FC Barcelona, onde deve apoiar Lionel Messi, a estrela mundial argentina, e aliviar seu trabalho. Porém: sua transferência já virou caso de justiça. Oficialmente, ele trocou de clube por “apenas” 57,1 milhões de Euros. Deste valor foram transferidos 40 milhões para uma empresa da família de Neymar, e vários contratos acessórios não declarados, no valor de mais de 38 milhões de Euros, atualmente estão sendo verificados, porque podem ser sujeitos a imposto. Neymar, hoje com 22 anos, é o ídolo de inúmeros brasileiros e brasileiras, bem como o modelo de milhões de jovens jogadores de futebol no país que sonham com a grande carreira. A cada ano, aproximadamente mil jogadores vão para a Europa, não só para as divisões principais, mas também para o Leste Europeu, para a China ou até mesmo para as Ilhas Faroé. No futebol, “Made in Brazil” simboliza uma mercadoria de primeira qualidade. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Neste contexto, a produção de craques de futebol é realizada de modo cada vez mais profissionalizado: “Primeiro semeamos, depois colhemos, e finalmente vendemos nosso produto no mercado. Diretamente para a mesa do consumidor. Nosso principal mercado de venda é a Europa.” É assim que o ex-jogador profissional Roberto Carlos descreve a estratégia de sua Escola de Futebol CR Promoções. Ali, mais de 80 meninos do Brasil inteiro, todos de famílias pobres ou extremamente pobres, têm um contrato. A Escola de Roberto gasta ao ano cerca de R$ 10.000 por menino com alimentação, treino, alojamento, saúde e educação. Tudo é apostado numa só carta, o esporte, e a formação escolar é negligenciada. O capitão da seleção de 1982, lendária e derrotada na beleza, Sócrates, criticou esse desenvolvimento tempos atrás numa entrevista concedida à revista alemã Spiegel: “Dessa maneira, estamos criando gerações de excluídos, pois dos milhões de rapazes vidrados no futebol, somente uma parcela infinitamente pequena consegue se tornar uma estrela. Todos os outros, já que ficaram sem educação, são condenados à miséria.” A estrela absoluta entre as escolas de futebol tem a pretensão de articular educação e formação de futebol: a Academia Traffic de Futebol, a escola de futebol mais moderna do Brasil. Trata-se de uma área enorme, de 180.000 metros quadrados, com um total de sete quadras de futebol, academia e piscina, numa localização isolada em Porto Feliz, a cerca de 120 quilômetros a noroeste de São Paulo. A Academia, que pertence à agência de marketing Traffic Sports Marketing, possui até mesmo um clube de futebol próprio que joga nas divisões brasileiras: Desportivo Brasil. Nele jogam as “joias” entre os rapazes de 11 a 18 anos e adquirem assim prática no jogo e resistência na competição. A meta dos investidores: lapidando e burilando, transformar diamantes brutos em pedras preciosas que são vendidos no mercado internacional com lucros máximos. O investimento não é barato: Rodolfo Canavesi, vice-presidente do Desportivo Brasil, estima os gastos anuais pagos pela Academia para cada jogador em quase R$ 50.000. Contudo, os alunos precisam pagar com desempenho. Quem não consegue acompanhar as exigências é rapidamente eliminado. “O que conta é o desenvolvimento e a venda de indivíduos. Quando consigo vender de cada curso anual cinco ou seis jogadores, tenho lucro”, afirmou Canavesi ao website esportivo alemão SPOX. A agenda dos alunos não é nada folgada. O dia começa às sete horas com um desjejum elaborado por um nutricionista. Seguem 90 minutos de treino matinal – sempre sob os olhares de FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 41 42 técnicos com experiência internacional. À tarde há cursos de inglês ou sessões com uma psicóloga. Depois vem novamente o treino na quadra. “Eles podem ser bons jogadores, mas também precisam ser preparados para a vida”, diz Canavesi e afirma que considera, de certo modo, todos os rapazes como seus “filhos”. “Aqui maximizamos as chances desses meninos de alcançar algum dia o status de profissional”, diz Canavesi. “Temos a melhor infraestrutura possível – muitos clubes não podem oferecer as condições que nós temos nem aos seus jogadores profissionais.“ para muitos, o sonho continua sendo a Europa. Para facilitar o salto para lá, a Traffic Sports Marketing associou-se em 2010 ao GD Estoril Praia, que jogava na época na segunda divisão de Portugal. Ali, a empresa controla 74% dos negócios. Hoje, o Estoril Praia está na primeira divisão, possui um técnico brasileiro e tem jogadores brasileiros de sobra. O clube foi a sensação da Liga Europeia de 2013/14, onde infernizou a vida do SC Freiburg, e em fevereiro de 2014, o time ganhou de 1 a 0 do FC Porto, pondo assim um fim à série de 81 jogos em casa sem derrota que era o orgulho desse campeão. A capacidade da Academia é de pouco mais de cem alunos. Ela espalhou scouts no Brasil inteiro – uma boa condição para atrair ao clube somente jogadores que prometem o negócio mais lucrativo possível numa posterior venda. Mas também há olheiros na Argentina, no Paraguai, Uruguai ou Chile. O conceito parece estar dando certo. Jochen Lösch, um alemão uruguaio, desde 2007 o responsável pelas transferências internacionais de Traffic, estima em 70 a 80 por cento o número dos jovens que conseguem ascender do Desportivo Brasil para uma carreira profissional. “Em clubes tradicionais como Corinthians São Paulo, são um a dois por cento.” O Estoril Praia é uma das assim chamadas plataformas de saída para os talentos novos que colhem ali suas primeiras experiências na Europa. Para os jogadores, adaptar-se em Portugal é mais fácil, já por causa do idioma. Em janeiro de 2013, o 1. FC Köln contratou o zagueiro lateral Bruno Nascimento e atualmente parece interessado no meio-campo Evandro. Se a venda der certo, também a Traffic Sports recebe uma fatia do bolo, pois possui direitos de transferência no caso desse playmaker. Para cada jogador, a empresa vende somente 50% dos direitos – ou seja, cada transferência traz novos lucros. Ao lado da participação no GD EsMesmo que o futebol nacional bra- toril Praia, a Traffic Sports mantém, sileiro tenha que oferecer hoje nova- através do Desportivo Brasil, uma remente mais do que nos anos 1990, lação de cooperação com o Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto dinheiro para o voo de volta, e ainda por cima, nem o celular estava funcionando. “Foi um pesadelo”, lembra-se Douglas dos Santos. “Eu estava totalmente desesperado.” Douglas demorou três semanas para conseguir No entanto, o profissionalismo de- voltar a São Paulo, e seus companheimonstrado pela Traffic Sports na ros ficaram até mesmo seis semanas a transferência de jogadores do Brasil mais. para a Europa não é aplicado por toInfelizmente, é pouco provável que dos e em todos os casos. Em 2006, a revista alemã Spiegel publicou uma esse tipo de experiência mude algo matéria sobre o atacante brasileiro nos anseios de jovens brasileiros por Douglas Rodrigues que foi atraído pa- uma carreira profissional: diz-se que ra a Europa pelo agente de conduta 90% sonham com ela. O caminho norduvidosa Wilson Bellissi que lhe pro- mal passa muito menos por academias meteu um salário mensal de 3.000 de luxo à moda da Traffic, mas pela assim chamada peneira, um procediEuros. mento seletivo duríssimo no qual Ele e outros cinco rapazes jogariam talentos são examinados e “peneirana Romênia. Com base nessa promes- dos”. Os “bons” vão para a cumbuca e sa, o pai de Douglas vendeu seu carro chegam até um dos grandes clubes, os e comprou uma passagem aérea para “ruins” precisam esperar pela próxima o filho. Contudo, no aeroporto, de re- oportunidade. Cafu, três vezes partipente, tudo era diferente: não seria a cipante de finais de Copa e duas vezes Romênia, e sim a República da Moldá- campeão do mundo, teve que sobrevia. Ali, porém, na cidade de Chisinau, viver a 14 dessas peneiras antes que o agente de contato não apareceu, e conseguisse um contrato. os rapazes continuaram a viagem para Centenas de rapazes pegam suas Frankfurt – subitamente, o FSV Mainz 05 manifestou seu interesse. Os jo- chuteiras e vêm para esses testes. Seja vens talentos permaneceram cinco nas academias, seja nas peneiras: dias no aeroporto, ainda cheios de es- sempre pesa sobre eles uma pressão perança, antes de saberem que, nova- imensa, quase sobre-humana. A maimente de forma inesperada, também oria vem de famílias extremamente o Mainz tinha perdido o interesse e pobres, e para estas, os filhos repreque a próxima tentativa seria com o sentam muitas vezes a única chance Eintracht Frankfurt. Também ela fra- de qualquer ascensão social. cassou. Os rapazes não tinham Manchester United. O Manchester já comprou a opção preferencial por alguns jogadores que poderá ser exercida assim que algum deles alcançar a maioridade. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 43 44 E aqueles como Neymar, que dão conta do salto, provocam por sua vez sonhos em toda uma geração de crianças brasileiras. Apenas há de se notar que a trajetória de Neymar é atípica: já aos onze anos, ele jogava no FC Santos e era considerado uma “joia” pelos vários técnicos do clube. Portanto, ele foi poupado do duro caminho de seleção pelas peneiras. Uma exceção que se explica também, mas não só, por seu talento excepcional. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto A COPA DE 2018 NA RÚSSIA Vladimir Fomenko Trad. Kristina Michahelles Os dados foram lançados no dia 2 de dezembro de 2010, quando a FIFA escolheu para sede de sua 21ª Copa do Mundo um país cuja seleção nacional brilhou pela ausência nos dois torneios anteriores: a Rússia. No segundo turno da votação, a candidatura russa conseguiu se impor contra três importantes adversários: Espanha /Portugal, Holanda/Bélgica e a Inglaterra. Um grito de júbilo ecoou pelo público, mas soou algo artificial. Em 2007, o COI já elegera o balneário de Sóchi no mar Negro para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014. O esporte internacional (re)descobriu a Rússia. Em Sóchi, Vladimir Putin apresentou uma lista orgulhosa dos megaeventos realizados e por realizar: os Jogos Universitários Internacionais de verão e inverno em Kasan e Krasnoiarsk, os campeonatos mundiais de atletismo, patinação artística, hóquei no gelo, bobsled e skeleton, assim como, não por último, a Copa do Mundo de 2018. De fato, a decisão da FIFA representa o auge do reconhecimento para o futebol russo. Mas o seu bom desempenho na arena internacional ficou bem para trás na História do século 20. Em 1966, o time nacional russo, a Sbornaja, perdeu nas quartas de final da Copa da Inglaterra contra a Alemanha e obteve o quarto lugar. Em 1960, a União Soviética foi campeã europeia e, depois, conquistou três vezes o segundo lugar, a última em 1988, sob o comando do treinador Valeriy Lobanovskiy, que deu o nome ao estádio do Dínamo de Kiev – a cidade que, no início de 2014, viu acontecer as batalhas dos protestos na praça Maidan. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 45 Acaso ou destino? 46 Nos anos seguintes, a equipe nacional russa saiu da cena internacional e somente ressurgiu brevemente durante o Campeonato Europeu de 2008 na Áustria e na Suíça. O time, sob comando do treinador Guus Hiddink, obteve a medalha de bronze e, com isso, um lugar entre os dez mais no ranking mundial da FIFA. O então presidente russo Dimitri Medvedev ofereceu a cidadania russa a Hiddink, e houve rumores de que o holandês até começou a aprender russo. Mas logo em seguida, em 2010, veio o “pesadelo de Maribor”: a Rússia perdeu para a Eslovênia e não pode disputar a Copa na África do Sul, assim como perdeu a viagem para a Alemanha quatro anos antes. Hiddink teve de voltar para casa, mas nem o seu conterrâneo Dirk ‘Dick’ Advocaat conseguiu fazer o time russo melhorar. Basta lembrar o fracasso no Campeonato Europeu na Polônia e na Ucrânia. As opiniões dividem-se quando se trata de escolher a modalidade de esporte número um na Rússia. No topo da lista estão o futebol e o hóquei no gelo, dependendo da época do ano e do sucesso internacional, entremeados pela patinação artística, se levarmos em conta a audiência na TV. Engana-se, no entanto, quem imagina que a Rússia é um país de frio e inverno. As pessoas anseiam por ar livre, grama e sol, e por isso o futebol é uma atração inigualável – tanto para assistir quanto para jogar. Em 2008, o famoso diretor de comédias russo Alexander Rogojkin gravou o filme A partida, ou especificidades do futebol nacional. Não chegou a ser um sucesso de bilheteria e só depois ficou claro que o diretor teve um momento de percepção extra-sensorial: no filme, a Rússia sedia a Copa de 2018. Na partida final, joga contra a Romênia e ganha. Um cenário realista pelo menos até a metade, pois a Rússia vai participar em 2018. Mas Rogojkin não podia saber disso quando teve a ideia. Algo de místico existe nessa história – a Romênia na final, e por que não? Já que o anfitrião é qualificado automaticamente, os amantes russos do futebol não precisam mais ter medo de não ver sua seleção na Copa. O Brasil foi qualificado como primeiro da chave, antes de Portugal – mesmo que não tenha sido fácil, foi justo. No dia 17 de junho de 2014 a Rússia defende seu primeiro jogo contra a Coreia do Sul no estádio Pantanal de Cuiabá. O jogo começa à uma da manhã, horário de Moscou. Já se estimam altos índices de audiência, e as expectativas são elevadas. Quatro anos de boom de futebol estão no programa, pois a meta é que os estádios de quatro cidades - Moscou, São Petersburgo, Kasan e Sóchi – estejam prontos pontualmente para a Copa das Confederações em 2017. Para a própria Copa foram escolhidas onze Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto cidades-sede, numa dura batalha de concorrência e depois de muitos debates políticos nos níveis federal e regional. Quem se sentiu injustiçado, nesse processo, foi principalmente Krasnodar, a capital da região de Kuban, sede de dois times da primeira liga. De nada adiantaram as petições dos faz e reivindicações apresentadas em massa. A cidade dos cossacos perdeu para Sóchi, situada na mesma região. Em todas as cidades exceto Sóchi e Kazan estão sendo construídos estádios novos. Moscou oferecerá duas arenas. O tradicional estádio Lushniki, que funciona desde 1956, vai abrigar a partida inaugural, uma das semifinais e a final, e será reformado para ter a capacidade prevista de 90 mil lugares. O segundo local de jogos, a futura arena do Spartak, deverá ser inaugurada em 2014 junto com uma nova estação de metrô. O construtor responsável é Leonid Fedun, o proprietário do FC Spartak e vice-presidente da firma de petróleo Lukoil. É a única obra para a Copa de 2018 financiada integralmente com dinheiro privado. O estádio terá lugar para 44 mil espectadores e vai contribuir para reduzir o déficit em lugares para futebol durante o período de obras de ampliação do estádio de Lushniki na capital. Atualmente, Moscou está representada com quatro times na primeira divisão russa. O escândalo em torno do projeto da ilha Krestovsky em São Petersburgo continua sendo o maior abacaxi dos gerentes da FIFA. Projetado pelo japonês Kish Kurokawa em 2005, já é o estádio mais caro do mundo. Os custos não param de crescer, enquanto todos os prazos da obra estão sendo regularmente derrubados. O chefe do governo, Medvedev, fala de um escândalo e nega qualquer novo subsídio estatal. Nos blogs da Internet, surgem comparações: com o dinheiro investido na futura arena Zenit daria para construir 2,2 estádios londrinos Emirates ou 3,5 arenas Donbass de Donezk. A Gazprom, originalmente responsável pelo financiamento do estádio, repassou a responsabilidade para a Prefeitura de São Petersburgo. Agora, a cidade financia o megaprojeto e o gigante do gás serve suas receitas tributárias. O prefeito Georgy Poltavchenko já reduziu as expectativas: a cidade contribuirá com 35 bilhões de rublos, e nenhum centavo a mais. Os pessimistas falam de uma despesa total de 45 a 50 bilhões de rublos (mais de um bilhão de euros). Não é por isso que a Copa vai fracassar. O estádio mais setentrional no Golfo da Finlândia, um estádio de elite da Uefa, com 70 mil lugares, do tamanho de três Praças Vermelhas, cobertura retrátil e gramado móvel, estará pronto pontualmente para a Copa das Confederações. O ministro dos Esportes, Vitalij Mutko quer pessoalmente que o estádio seja usado no Mundial de 2018. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 47 Ministro Mutko, dos esportes: três cidades esperam desde já poder lucrar anos passaram, há quatro pela frente com a Copa e um boom turístico. 48 O lema é economizar. O orçamento da Copa é de “modestos” 663 bilhões de rublos, sendo que um terço cabe à FIFA, um terço aos patrocinadores e o último terço aos cofres do Estado. Isso cai bem para a opinião pública. Vale observar as duas cidades-sede “exóticas”, Saransk e Kaliningrado. Saransk, a capital da Mordóvia, recebeu da FIFA (e do ministro Mutko) algo parecido com um coringa. Além de uma arena moderna, faltam hotéis e infraestrutura. O exclave báltico de Kaliningrado também começa da estaca zero. A prioridade é o aspecto político, diz-se. Kaliningrado seria um local ideal de jogos para equipes da Europa (Alemanha, Polônia e talvez até a Romênia) e é o posto avançado do oeste: com Ecaterimburgo, nos montes Urais, e Sóchi, no sul, forma o grande triângulo da Copa. Como uma parte de Ecaterimburgo faz parte da Ásia, será a primeira vez que uma Copa se realiza concomitantemente na Europa e na Ásia. Esperam-se impulsos para a infraestrutura em numerosas outras cidades russas. 32 seleções nacionais precisarão de alojamento e locais para treinar. A FIFA já tem uma lista de 33 cidades que se candidataram. O sorteio dos grupos só vai acontecer no dia 25 de junho de 2015, mas Kaluga, Ulianovsk, Krasnodar e muitas outras Pensando projetos no Kremlin O que significam, para a Rússia atual, o esporte de ponta e os megaprojetos a ele ligados? A resposta mais usual significa: nada além da expressão de uma vontade de pensar projetos no sentido negativo. Depois de Sóchi e da Copa, será a vez dos Jogos Universitários de Interno de 2019 em Krasnojarsk (cidade escolhida – sem alternativas – depois da renúncia de St. Gallen no ano anterior). Em 2015 serão recebidas as candidaturas para a realização dos Jogos Olímpicos de Verão de 2024. Discute-se a candidatura de São Petersburgo. Na lista estão também as cidades de Baku, Doha, Roma, Istambul e outros, inclusive Berlim. Não se sabe se este acúmulo de megaprojetos é uma ideia fixa do chefe do Kremlin ou se deriva da política de modernização do país. Mas uma coisa é certa: depois do ganho em valor nacional com os jogos olímpicos em Sóchi (observe-se: pela primeira vez na história pós-soviética), o esporte assume um lugar de crescente importância para a consciência social e a política russa. Isso está ligado, por um lado, com a ideologia de um novo conservadorismo e, por outro, com uma abertura mais tolerante em rela- Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto ção a um ambiente que se globaliza. Ou, para citar o presidente do COI, Thomas Bach: “Todos aqueles que olham para a Rússia sem preconceitos viram em Sóchi um novo rosto deste país, um rosto bem-sucedido, simpático, patriótico e aberto para o mundo”. Os otimistas chegam a ver uma “purificação” que faz a Rússia progredir. Poucos dias depois, essa visão foi prejudicada pelos acontecimentos na Crimeia, espera-se que não de forma irreparável. no mundo. Com estimados 11 milhões de migrantes, está entre os EUA e a Alemanha. Em Moscou vivem atualmente cerca de 2 milhões de imigrantes, em sua maioria provenientes dos antigos países da União Soviética. A quota federal prevê uma décima parte desse total. O resto, segundo Karimov, serve de instrumento de pressão contra a seguridade social de trabalhadores russos. Há um ano tentou-se instituir a ideia de uma semana de 60 horas de trabalho para trabalhadores russos, enquanto o emigrante em méO papel atual do esporte para a so- dia já agora rala 57 horas por semana. ciedade e a política é tão dinâmico quanto ele próprio e depende dos Esses e outros fatos fazem parte de atores se eles querem usar essa van- um estudo feito em 2013 pelo Centro tagem ou ignorá-la – o que parece ser de Moscou para Direitos Trabalhistas o caso da oposição, tanto dos liberais e Sociais, que teve por objetivo invesquanto da esquerda. Os motivos para tigar a influência de trabalhadores tal são padrões de pensamento con- estrangeiros sobre os direitos trabaservadores (“impossível unir esporte e lhistas de cidadãos russos. Segundo política”) e talvez também a frustra- esse estudo, 60% dos emigrantes e ção com o visível domínio da direita 22% dos trabalhadores com passanacionalista nos movimentos de fãs. porte russo estão em relação precária de trabalho – ou seja, sem contrato de trabalho. 18% dos emigrantes e 8% dos russos trabalham sete dias por O custo social semana. O salário em média é de 90 a Enquanto isso, o boom de constru- 132 rublos por hora (cerca de 2 a 3,5 ção olímpica tem cobrado um preço euros). As mulheres estrangeiras gaelevado. Segundo Renato Karimov, nham ainda menos: 77 rublos por hopresidente do Sindicato dos Traba- ra. E 20% dos emigrantes e 13% dos lhadores Migrantes de Moscou, Sóchi russos indicaram ter experimentado foi construída por migrantes sem sta- trabalhos forçados. tus legal. Segundo dados da ONU, a Rússia é o segundo maior país do mundo que mais atrai trabalhadores FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 49 Lei sobre trabalho escravo 50 Toda essa questão ganhou relevância por causa do Mundial de Futebol. Durante o verão de 2013, o presidente Putin assinou a lei FZ-108 “sobre os preparativos para a Copa de 2018”. Alguns pontos tornam esse documento um pano vermelho para os sindicatos, que há meses já se mobilizam contra a lei. De um lado, a lei levanta garantias de direito mínimas contra trabalho desregulamentado, horasextras, turnos noturnos e aos domingos. Por outro lado, o controle do Estado sobre o emprego de trabalhadores estrangeiros foi totalmente abolido. Nos dez estádios em obras na Rússia, de Moscou a Kaliningrado, nos próximos anos não se precisará nem de autorização de trabalho do Serviço de Migração, nem do aviso habitual das repartições ligadas ao trabalho ou tributárias sobre emprego e demissão de migrantes. Tudo fica a cargo do empregador. Os estimados 75 mil a 100 mil trabalhadores empregados nas obras dos novos estádios da Copa ficam num vácuo jurídico. nas obras da Copa, o mercado nacional de trabalho está sendo esvaziado, com consequente redução dos salários e das garantias de direitos trabalhistas, bem como um aumento do desemprego. Segundo ele, a lei deveria ser anulada e reescrita com a participação dos sindicatos. Situação parecida foi observada antes do Campeonato Europeu de 2012 na Ucrânia, mas todas as instâncias de decisão, inclusive a Uefa, fizeram vista grossa na época. O show era mais importante. No âmbito das consultas da Comissão Trilateral (Estado, empregadores, sindicatos), a KTR aprovou a resolução de rever a lei escandalosa – um bom sinal para dezenas de milhares de trabalhadores ocupadas nas obras, no saneamento urbano e nos inúmeros serviços durante a própria Copa. A lei regula o status da totalidade de pessoas ocupadas de todas as empresas reconhecidas como “FIFA-Contractors”. Isso inclui muitas empreiteiras, fornecedores, dúzias de patrocinadores e licenciadores da FIFA, bem como suas filiais – agência de recrutamento A Confederação Russa do Trabalho e de serviços terceirizados, empresas (KTR), associação sindical indepen- nos ramos de segurança, catering, pudente e parceira da Fundação Rosa blicidade, etc. Luxemburg, teme um aumento da criminalidade ligado ao comércio humano e a trabalhos forçados, incluindo menores de idade. Segundo o ativista O que acontece no futebol russo? Alexander Lechtman, da KTF, o trabaDepois do breve êxito em 2008, o lho escravo é praticamente legalizado futebol russo praticamente ficou apa- Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto gado no cenário internacional. Os dois clubes mais populares, Spartak e ZSKA Moscou, tiveram de deixar a Liga dos Campeões vergonhosamente por duas vezes seguidas. Cai o interesse pela primeira divisão russa, estagnam ou caem os números de visitantes e da audiência. A Confederação Russa de Futebol (RFB) impôs ao campeonato russo o calendário europeu outonoprimavera. A consequência são campos cobertos de neve e tribunas vazias, enquanto as arenas modernas ainda estão por ser construídas. Mas o negócios dos agentes esportivos está florescendo, times de excelência já se integraram totalmente na bolsa internacional de jogadores. O limite interno de legionários foi flexibilizado drasticamente: agora, até sete estrangeiros podem se candidatar simultaneamente a jogar fora do país. Os clubes de Moscou e São Petersburgo financeiramente mais importantes são vergonhosamente egoístas e orientados pelo lucro – e preparam um novo golpe: um campeonato conjunto com 18 seleções de ponta da Rússia e da Ucrânia, bem como uma segunda divisão comum como alternativa às duas nacionais. O argumento é o de que a integração é o único caminho para resolver a crise do futebol doméstico e responder às demandas da Uefa por um fair play financeiro ao qual hoje a maioria dos clubes russos e ucranianos não correspondem. A alternativa seria uma liga “top” com altas receitas ou um aumento drástico do limite superior para o financiamento por acionista. A visão pesa um bilhão de dólares e é uma ideia de Alexei Miller, chefe da Gazprom, mais ou menos acompanhado pelos donos dos grandes clubes russos. As federações nacionais, a Uefa e a grande maioria dos clubes da primeira divisão estão céticos. Os recentes acontecimentos políticos na Ucrânia reduzem as chances de sucesso para este projeto ou até mesmo o inviabilizam no médio prazo. Primeiro o dinheiro, depois o esporte O bem-sucedido exemplo da Liga Continental de Hóquei sobre o Gelo foi emblemático para o projeto de Miller. Desde 2008, a Liga é responsável pelo jogo popular na Rússia, no âmbito de acordos de três anos de duração com a federação nacional. Do torneio do KHL também sai o campeão russo de hóquei sobre o gelo. O ganhador da série final Leste-Oeste recebe a taça Gagárin. Segunda liga de hóquei sobre o gelo mais forte do mundo (depois da NHL norte-americana), a KHL atrai cada vez mais atores da Europa e da Ásia. Dos 24 clubes originais, cresceu em sua sexta temporada para um total de 28 clubes da Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Letônia, Ucrânia, Eslováquia, República Tcheca e Croácia. Para 2014/15, está programada uma ampliação para FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 51 52 32 times. A seleção de Jokerit de Helsinki também vai trocar a “SM-liiga” finlandesa pela KHL. A dominação russa no ramo do hóquei sobre o gelo europeu passou por um grande mudança estrutural graças ao capital da Gazprom. fórmula estrangeira “10 + 15“ (até dez jogadores estrangeiros simultaneamente no grupo) para a próxima temporada significaria o fim da Sbornaja, acha o diretor honorário do RFB, Viacheslav Koloskov. Os dois lados enrijeceram suas posições, e a evolução futura certamente também dependeEsses procedimentos ousados cho- rá do comportamento da seleção ruscaram o mundo esportivo e alguns sa no Brasil. políticos. O senador Vjacheslav Fetisov, lenda viva do hóquei sobre o gelo, iniciou um boicote financeiro aos clubes, ou seja: nenhum centavos mais Hooligans versus futebol deve sair dos caixas das grandes emNos últimos anos, o noticiário sobre presas com participação estatal para o futebol russo foi marcado por uma os clubes. “A Bósnia-Herzegovina vai série de escândalos nos estádios. Em participar da Copa no Brasil? Por que novembro de 2012, um goleiro do não devemos seguir o caminho da Dynamo de Moscou foi ferido por um Bósnia? Um clube deve gastar tanto explosivo arremessado por um torcequanto ganha”, diz Juri Belous, ex-di- dor. Pouco antes, um jogo da Taça da rigente do FC Rostov. O conflito só vai Rússia foi interrompido por distúrbios se aguçar. O novo treinador nacional no público. Hostilidades, ofensas, paFabio Capello, a grande esperança do lavras de ordem obscenas na torcida ministro Minister Mutko, prorrogou o fazem parte do dia a dia. O apogeu seu contrato com o RFB até 2018 e triste aconteceu no dia 30 de outubro possivelmente vai atuar em uma con- de 2013 em Jaroslawl durante um jotrarreforma que prioriza os interesses go da Taca da Rússia: 5 mil torcedores da seleção nacional. Ele não imagina do Spartak vindos de outras partes do nenhum “caminho bósnio” (a seleção país travaram uma batalha de quase completa da Bósnia joga no exterior). uma hora com unidades especiais Capello, que tem 67 anos, quer que no OMON da polícia, enquanto na tribumínimo cinco ou até seis jovens joga- na surgiu por alguns segundos uma dores russos tenham a oportunidade bandeira com uma suástica. Um tribue o direito de jogar com a casa cheia – nal sentenciou um fã de Vladimir a e não no frio do inverno – como titula- pagar multa de 1,5 milhões de rublos res das principais equipes da primeira (cerca de 30 mil euros) ao FC Spartak. divisão. Os lobistas da primeira divi- Isso foi um marco importante. Nunca, são planejam uma cesura: a nova antes, um torcedor russo foi tão Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto duramente castigado. Uma lei sobre as torcidas aprovada em 2013 visa acabar com a confusão e a queda no número de visitantes aos estádios. Prevê “listas negras”, castigos mais duros e medidas de segurança. Ao mesmo tempo, a Duma discute voltar a autorizar a venda de cerveja nos estádios, sempre apontando para os costumes no ocidente. Desde 2005, a Rússia proíbe vender ou levar cerveja para os estádios. As pessoas que simplesmente se interessam por futebol demonstram um descontentamento crescente com o comportamento não apenas dos fãs radicais como também dos legisladores. A atmosfera nos estádios, que crescentemente viram palco de grupos marginalizados de com fundo xenófobo, fica tensa. Este tipo de evolução é um desafio principalmente para a Copa planejada. No exterior surgem acusações de que ataques racistas fazem parte do cotidiano do futebol russo. Vagner Love, o jogador estrangeiro mais bem-sucedido e campeão de gols em 2008 na primeira liga, delimita o fenômeno à região de São Petersburgo e diz que teria sido vaiado apenas uma vez lá. Dá para entende: afinal, Love jogou durante sete anos para o ZSKA de Moscou, cujo arquirrival é o Zenit São Petersburgo. Rússia entre muitos grupos organizados de torcedores tanto quanto em outros lugares do mundo, O importante é que a sua influência e a aceitação de suas ideias diminuam. Quando, em 2012, saiu publicado um “manifesto” escandaloso no site de um clube de torcedores do Zenit São Petersburgo – entre outras reivindicações, pedindo que o clube escolha seus jogadores segundo a cor da pele e orientação sexual - a maioria dos torcedores reagiu com crítica e o episódio foi visto como perda de reputação para o Zenit e para a Rússia. A Federação Panrussa de Torcedores chegou a cogitar em processar o clube, o que antes teria sido impensável. O episódio mostra como é tensa a situação social na Rússia, em especial em relação aos migrantes. A Copa no Brasil tem por lema a luta contra qualquer forma de racismo. Trata-se de um país que respeita a diversidade, disse a presidente Dilma Rousseff em fevereiro de 2014. Quatro anos mais tarde, será a vez da Rússia… E o país gigantesco se apresenta para dentro e para fora com modernas instalações esportivas, uma infraestrutura desenvolvida nas grandes cidades e na província, um autêntico espírito de fair play e uma cultura (de consumo) simpática e entusiasmada em torno do futebol, aquele jogo fasViolência, xenofobia e ideias nacio- cinante para pequenos e grandes, munalistas e até de extrema direita infe- lheres e homens, pobres e ricos, fieis e lizmente podem ser encontradas na ateístas... Afinal, queremos projetar FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 53 um futuro positivo, não é mesmo? E, claro, a cena final do filme: Rússia contra Romênia, com um final feliz... 54 Epílogo. Em 2018 se realizarão na Rússia as próximas eleições presidenciais. E chega de sonhar aqui... Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O BRASIL TREINA COM BLINDADOS, CANHÕES DE ÁGUA E PISTOLAS Christian Russau Trad. Kristina Michahelles O real está em campo. Para as grandes empresas, a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil significam um negócio e tanto. E não só para as empresas que participam da construção dos estádios. Pois o Brasil também está comprando equipamentos técnicos de segurança para se armar e proteger contra potenciais terroristas – e contra a massa de manifestantes. Empresas da Alemanha e da Áustria encabeçam a lista de fornecedores, enquanto críticos da Copa alertam contra a militarização no interior do país. O Globo, maior jornal brasileiro, teve esse entendimento. “A Polícia Militar do Rio de Janeiro aposta em uma nova arma para controlar manifestações: um canhão de água com jato de forte pressão. Quem foi ao centro da cidade neste sábado pôde ver o veículo, escoltado por batedores, em direção da sede do Batalhão de Choque na Cidade Nova.” A matéria, escrita no auge das manifestações, avisa que “os turcos que foram às ruas em Istambul conhecem bem a força desse jato de água”. E na foto de um dos canhões de água não é difícil identificar duas letras em um círculo: V e W – a logo da Ele é grande. Negro. Seu número de maior montadora da Alemanha, a conhecimento é 27-0002. Está no país Volkswagen. desde final de junho de 2013 e vem sendo utilizado nas ruas contra maniCorte. Outro programa, outro cefestantes. No carro há um assento. De nário: imagens ao vivo de Istambul na lá se dispara o jato de água. Quem for internet, praça Taksim, manifestantes atingido é derrubado na rua, podendo envoltos numa nuvem de gás lacrimoser ferido. Até o jornal Extra, filhote de gêneo. Os projéteis vazios estampam FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 55 56 a imagem da bandeira brasileira e a expressão made in Brazil. Os cartuchos são da Condor Tecnologias Não-Letais S.A., um fabricante de armas não-letais, como se autodesigna a empresa com sede no Rio de Janeiro, uma das maiores produtoras mundiais de gás lacrimogêneo. Procurada, a Condor Tecnologias confirmou ter fornecido o gás. “A Turquia é um dos países para onde a Condor exporta, mas a polícia turca também compra esse tipo de equipamento de outros fornecedores, americanos e coreanos entre outros”, diz um comunicado da empresa. Enquanto no Rio veículos blindados alemães deixam manifestantes em pânico, na praça Taksim em Istambul eles fogem do gás lacrimogêneo brasileiro. O novo modelo de divisão internacional do trabalho. exemplares chegaram em maio de 2013 e foram empregados pela primeira vez durante a visita do Papa nas Jornadas Mundiais Católicas no Rio de Janeiro. “Precisamos dos blindados para proteger as pessoas nos estádios durante os megaeventos”, argumentou o general da Aeronáutica, Marcio Roland Heise. O carro de combate dispõe de dois canhões de 35mm e é capaz de abater aviões a curta distância. O preço total para a frota de blindados produzida por Krauss-Maffei, Blohm + Voss e Siemens está estimada em 40 milhões de dólares. Também o pequeno fabricante austríaco de armas Glock vai lucrar com os eventos esportivos no Brasil. Segundo informações do jornal Gazeta do Povo, a polícia federal e a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro fecharam um acordo exclusivo com a empresa para armar duas unidades de polícia durante os Jogos Olímpicos a serem realizados no Rio de Janeiro em 2016. Segundo relatos dos jornais, militares e policiais brasileiros viajaram para Viena, custeados pela “famosa firma austríaca”. Mas a indústria do armamento oferece outras opções. Nos preparativos dos megaeventos esportivos, o governo brasileiro não hesitou quando se tratou de ir às compras sob o lema “proteção contra riscos e terrorismo”. Por 70 milhões de dólares, o Brasil encomendou equipamentos de segurança nos EUA, em Israel e na AlemaPelo menos a aquisição dos blindanha: blindados, drones, robôs com dos alemães, segundo a Folha de São controle remoto com câmeras e dePaulo segue uma recomendação extectores de substâncias químicas. pressa da FIFA. Até mesmo críticos Da Alemanha, o Brasil comprou 34 como o sociólogo e urbanista Carlos exemplares usados do tanque Gepard Vainer, do Ippur/UFRJ,apontam para 1A2 que também pode ser controlado o fato de que as providências de arremotamente. Os primeiros mamento foram exigidas por Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto organismos internacionais como a federação Internacional do Futebol. “A FIFA se dirigiu às nossas Forças Armadas na condição de consultor militar e determinou que tipo de armas teriam de ser compradas, ridicularizando totalmente a soberania militar”. Vainer adverte que os megaeventos dão um novo impulso à militarização da segurança pública – segundo ele, “o legado mais obstinado da ditadura militar”. Além disso, a criação de uma Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos fere o princípio federativo do Brasil e, com isso, a ordem democrática do país. “Essas inovações técnicas em nome do futebol deixarão como legado transformações duradouras antidemocráticas e inconstitucionais”, teme o professor. Amorim sobre a “garantia da lei e da ordem”. Ela se refere explicitamente ao “período antes e durante o evento”. E o ministro da Defesa não pega exatamente leve: protestos durante a Copa podem ser classificados como “atos terroristas”, passíveis de 15 a 30 anos de prisão. No final de junho de 2013, a mídia brasileira começou a noticiar as preocupações dos patrocinadores internacionais da Copa. Eles temem que os protestos possam vir a prejudicar a imagem das suas marcas. O governo brasileiro, pelo jeito, reagiu com todos os meios legais à sua disposição. No país do futebol, não pode acontecer o que não pode existir: protestos contra o futebol e a Copa, contra as despesas milionárias do Estado, contra as remoções por causa do boom imobiliário A preocupação é compartilhada nas doze cidades-sede. também por muitas organizações e Quer dizer que nem tudo é tão inomovimentos da sociedade civil, que há fensivo quanto gostam de assegurar anos vêm alertando contra a militarios patrocinadores da FIFA? Os fabrização do espaço público. Face às cantes de assentos para os estádios aquisições de armas pelo governo que dos Estados da Francônia e da Suábia, agora se tornaram públicas, cresce a os escritórios de arquitetura e de plapreocupação de que até as Olimpíanejamento de Berlim, Munique, das de 2016 o Rio de Janeiro venha a ser “completamente militarizado”, co- Stuttgart e Hamburg, será que a demo diz uma análise detalhada do Co- senvolvedora alemã da tecnologia da mitê Popular das Olimpíadas e da linha do gol, o fabricantes de chuteiras Copa do Mundo no Rio de Janeiro. Is- da Francônia com as três listras ou as so combina com informações mais re- mais de cem empresas alemãs que já centes sobre a Portaria Nr. 3.461/MD em 2010 aderiram à inciativa WinWin assinada em 19 de dezembro de 2013 2014/16“ a fim de transferir conhecipelo ministro da Defesa Celso mentos alemães ao Brasil por ocasião FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 57 58 da Copa, a Confederação da Indústria Alemã que instalou um conselho brasileiro especialmente para a Copa de 2014 - será que todos eles têm consciência de que o seu envolvimento pode representar um risco de imagem? Nas últimas décadas, participar de eventos como a Copa costumava trazer um ganho em imagem para as empresas, mas provavelmente isso continua um ponto de interrogação face à esperada onda de protestos no Brasil neste ano. Pelo menos s empresas não deviam ter tanta certeza, pois “o Brasil não é para amadores”, como costumava dizer o compositor Tom Jobim. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O EMBAIXADOR DE MARCAS: PAUL BREITNER NO BRASIL Gerhard Dilger Trad. Kristina Michahelles Paul Breitner é um visitante popular em São Paulo. Num sábado ensolarado de abril em 2013 o campeão mundial de 1974 e “embaixador de marcas” de Munique esteve pela segunda vez na megametrópole brasileira numa visita-relâmpago para promover a Copa da Juventude do Bayern de Munique (FC Bayern Youth Cup). semanas depois no canal de TV inglês ITV). Pode ser. Mas os motivos para a miséria do futebol brasileiro também têm – e principalmente – origens estruturais. Os maiores talentos continuam sendo exportados, ainda que essa tendência esteja declinando com a crise financeira na Europa e a fase de crescimento no Brasil do século 21. Mais problemática é a estrutura emperrada do negócio do futebol, comandado por funcionários corruptos, os príncipes regionais (presidentes das federações) e a TV Globo. Um exemplo: o Campeonato Brasileiro da Primeira Divisão é realizado em 38 dias de jogos ao longo de apenas sete meses. Ao avaliar o futebol local, o "embaixador" Breitner não foi nada diplomático. “Hoje, o Brasil já não toca mais o primeiro violino, nem mesmo o segundo ou o terceiro. Os brasileiros dormiram nos seus louros, ficaram parados uma década e jogam um futebol do passado. O futebol do século 21 é jogado na Europa” (e, lá, principalmente na Espanha e na Alemanha – o “Para mim, penteado ou roupa são futebol da Premier League britânica acessórios secundários”, diz Breitner também é “chato, já era”, declarou secamente, acostumado à provocação FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 59 60 dos repórteres por causa do seu antigo visual afro e solicitado a listar os “cinco penteados mais lindos” entre os jogadores na ativa. “Mas o meu antigo penteado voltou a entrar na moda, como demonstra o jogador brasileiro Dante, do Bayern”. Existem jogadores chamados Breitner na Alemanha, como no Brasil e na Colômbia? “Não, entre os jogadores alemães não costuma haver nomes artísticos, e as crianças não podem ser batizadas com sobrenomes”. No Brasil é diferente. Embora Breitner, embaixador e olheiro do Bayern, tivesse observado atentamente várias das partidas de vinte minutos nas belíssimas instalações esportivas do Colégio Porto Seguro, essa variante da Copa da Juventude não parece ser muito propícia para buscar talentos fora do ramo estabelecido de clubes. Dessa vez, quem ditou as regras foi a Câmara Brasil-Alemanha de Indústria e Comércio. Da rodada final brasileira no segundo Youth Cup que Breitner veio assistir em São Paulo participaram os times das três escolas alemãs – Corcovado, no Rio de Janeiro, Humboldt e Porto Seguro, de São Paulo, bem como as escolas Pastor Dohms (Porto Alegre) e Benjamin Constant (São Paulo), em que também se ensina o alemão. Na seleção das equipes, foi evidente a influência dos interesses dos patrocinadores Audi e a seguradora Allianz – envolvida no megaprojeto da hidrelétrica de Belo Monte –, que querem ampliar a sua presença em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Dessa forma, além das placas de publicidade superdimensionadas na beira do campo, os jovens também vestiram ca“Na Índia, participam jovens de fave- misetas com as logomarcas dos patrocilas que jamais teriam oportunidades pa- nadores por cima dos uniformes recidas”, diz Breitner. Na Áustria, escolares. segundo ele, surgem talentos dos bairros operários de Viena. Efetivamente, O vencedor – com louros – foi a em vários países a Copa da Juventude equipe de Benjamin Constant, que setem um lado social. Os dez jogadores manas mais tarde viajou para a rodada austríacos entre 12 e 16 anos que via- final em Munique. Não por acaso, o tijaram para a rodada final em Munique me – assim como a própria escola, do eram todos provenientes de institui- bairro paulistano de classe média de ções sociais, e todos os alemães inte- Vila Mariana – era bem mais misturagravam times da divisão de ruas do em sua composição étnica e social intercultural buntkicktgut (Interkulturelle do que as três escolas alemãs praticaStraßenliga buntkicktgut) de Munique. mente totalmente “brancas”. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Além do "Brasil, participaram da rodada final em Munique times da China, da Alemanha, da Itália, do Japão, da Áustria e da Rússia. Os alunos de São Paulo conquistaram o quinto lugar. Em 2014, ano da Copa, o FC Bayern Youth Cup voltou a ser realizado sem participação brasileira. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 61 62 Rio de Janeiro, 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto O CONTEXTO BRASILEIRO FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 63 64 Ziraldo e Henfil sobre a Copa de 1970. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 1968-1984: DA MILITARIZAÇÃO DO FUTEBOL ATÉ A DEMOCRACIA CORINTHIANA Thomas Fatheuer Trad. Monika Ottermann O fracasso da seleção na Copa 1966 na Inglaterra lançou o futebol brasileiro numa profunda crise. Os responsáveis mostraram um ar perdido e errático. O nome do então presidente da Confederação Brasileira de Desportos ficaria mais tarde conhecido por torcedores do futebol no mundo inteiro: era João Havelange. Saldanha não tinha nada de um técnico profissional. Era jornalista – e um dos críticos mais ferozes da seleção. Mas havia outro aspecto que tornava sua escolha uma sensação: Saldanha era esquerdista confesso e supostamente membro do proibido Partido Comunista Brasileiro. Sob seu comando, a seleção brasileira realizou uma série de excelentes jogos e se A primeira tentativa de superar a qualificou sem nenhum ponto negaticrise consistia na militarização do fu- vo. tebol. Em 1968 instituiu-se uma Comissão Nacional de Futebol para Nesse contexto ocorreu no dia 31 aplicar a hierarquia militar também ao de agosto de 1969 uma estranha futebol. Esse lance foi outro fracasso. coincidência. Em junho de 1969, o Em 1969, com a fase de qualificação presidente Artur da Costa e Silva, para a próxima Copa às portas, o ner- eleito durante a ditadura militar, adovosismo cresceu. Nessa situação, eceu com tal gravidade que não podia Havelange decidiu dar um passo sur- continuar no exercício do cargo. Os preendente e ousado, provavelmente militares fizeram de tudo para evitar a nascido do desespero: ele nomeou passagem do cargo para um vice-preJoão Saldanha treinador da seleção. sidente civil. Em 31 de agosto, eles FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 65 66 baixaram um ato que mudava a Constituição, o AI-12, e instituíram uma junta militar sob o comando de Emílio Garrastazu Médici. No mesmo dia, o Brasil e o Paraguai encontraram-se no Rio de Janeiro, no Maracanã. Era o último jogo da qualificação, o jogo decisivo. Mais de 180.000 pessoas presenciaram a vitória do Brasil (1:0) e sua qualificação para a Copa do Mundo 1970 no México. Mais tarde, Saldanha contou uma história muito especial sobre esse dia 31 de agosto: antes do jogo, o General Eloi Menezes, responsável pelo esporte, o teria informado que o presidente Costa e Silva teria morrido e que deveria ser observado um minuto de silêncio em sua homenagem. Já que Saldanha esperava em vez do silêncio uma onda de apitos, ele desaconselhou o ato. O minuto de silêncio não foi realizado – e o suposto falecimento revelou-se como notícia falsa: Costa e Silva faleceu apenas em dezembro. futebol era o ditador. Era previsível que essa situação não podia durar por muito tempo. Saldanha foi demitido ainda antes da Copa no México. Sobre sua demissão circulam até hoje duas versões diferentes. A história mais popular é sem dúvida aquela que afirma que Médici quis se intrometer na composição do time para conseguir a nomeação de Dario José dos Santos (“Dadá Maravilha”), um atacante muito bem sucedido e muito popular. Saldanha teria ficado chateado e dito sua frase mais famosa: “O presidente escala seus ministros, e eu escalo minha seleção.” Alguns jogos mal disputados certamente contribuíram para a demissão de Saldanha, bem como sua desconfiança acerca de Pelé, a quem julgou gravemente míope e cuja convocação para o México ele colocava em dúvida. Seja como for, o regime certamente Com Médici chegou à presidência também não queria ter que partilhar da Republica um militar que era apai- um possível triunfo na Copa com um xonado pelo futebol. Ele tinha a cora- comunista. gem de entrar em estádios lotados, O sucessor de Saldanha era Mário brincava com a bola em shows de TV Zagallo, e com ele aconteceu finale tentava tirar proveito da populari- mente aquela reorganização da seledade do futebol em favor da junta e ção que é chamada de “militarização”. de sua própria pessoa. Portanto, em Jerônimo Bastos, um oficial militar, foi 1969 uma dupla estranha ocupava nomeado chefe da delegação brasileidois cargos importantes no Brasil, ra para a Copa no México, e outros talvez os dois mais importantes de militares foram incluídos nos prepatodos: um comunista era o técnico da rativos. O mais conhecido entre eles seleção, e um apaixonado pelo foi Cláudio Coutinho que se tornaria Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto mais tarde (1978) o técnico da seleção. Coutinho representava um estilo de futebol muito diferente do estilo de Saldanha, que era muito impulsivo. Ele procurava embasar o treino num fundamente científico e julgava a boa condição física o pressuposto decisivo para ganhar a Copa. Finalmente ela começou, a tão sonhada Copa do Mundo de Futebol de 1970 no México. Até então, nenhum evento de jogos de futebol tinha sido usado e abusado no Brasil tão abertamente para fins políticos como essa Copa. O hino “Pra frente Brasil”, canção brasileira oficial da Copa, refletia bem o espírito nacionalista da ditadura: “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração. […] Todos unidos na mesma emoção.” Bem, todos não. Durante a Copa, o embaixador alemão no Brasil, Ehrenfried von Holleben, foi sequestrado por guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária, de orientação de esquerda. No dia 17 de junho, o governo aceitou, em troca da libertação do embaixador, a saída de 40 presos políticos para a Argélia. Em consequência, o regime reforçou a repressão e instrumentalizou a seleção para fazer propaganda contra a guerrilha. Os que lutavam na resistência à ditadura foram acusados de perturbar o time brasileiro. No dia 17 de junho, a Folha de São Paulo escreveu: “Notícias do México mostram a perturbação que a notícia sobre o sequestro causou na nossa seleção. Pelé, Rivelino e outros jogadores pronunciaram-se e condenaram o ato terrorista.” Não obstante esta “perturbação”, o Brasil ganhou a Copa soberanamente: na final, a seleção venceu, aparentemente sem qualquer esforço, a Itália com o placar de 4 a 1. O governo aproveitou o triunfo descaradamente, e Médici recebeu a seleção com uma afirmação verdadeiramente ideal-típica sobre a suposta fusão de futebol e interesse nacional: “Identifico, na vitória conquistada na fraterna disputa esportiva, a prevalência de princípios que nós devemos amar para a nossa luta em favor do desenvolvimento nacional.” Além disso, ele caracterizou o sucesso no futebol uma “afirmação do valor do homem brasileiro”. De fato, graças ao futebol, os militares conseguiram comemorar em 1970 um dos raros momentos de relativa popularidade. Essa popularidade, porém, não se devia só ao futebol. Desde 1968, a economia brasileira estava crescendo dez por cento ao ano. Nos anos de chumbo, o Brasil viveu seu milagre econômico. Os militares acolheram a ideia de uma “superpotência Brasil” e reforçaram a propaganda nacionalista. No mesmo ano de 1970 foi também anunciada a construção da Transamazônica, a grande estrada que cortaria toda a Amazônia – um projeto prenhe de FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 67 68 simbologia de integração e grandeza nacional. Assustados pelos protestos de 1968, os militares não só tinham redobrado a repressão como também lançado um sistemático trabalho propagandístico. Para essa política, o sucesso futebolístico de 1970 caiu como uma luva, mas não foi o único elemento em sua construção. Para os adversários do regime, porém, aparentemente não foi fácil desenvolver uma postura não ambígua acerca da seleção. Muitos grupos da esquerda tinham lançado a orientação de torcer contra o Brasil. Segundo as afirmações de todos os envolvidos, isto funcionou somente até o primeiro gol de Rivelino no jogo contra a Tchecoslováquia. Por um momento sinistro, torturadores e torturados regozijaram-se juntos com a seleção. O futebol – e na sociedade profundamente dividida de 1970, provavelmente só ele – foi capaz de produzir momentos como este, mas não produziu união ou reconciliação. A tortura continuava assim como a resistência contra o regime. Assim se mostrou também que a seleção representava algo diferente e maior que o poder político. Afinal, o futebol justamente não é a nação, mesmo quando um regime se utiliza do futebol para sua ideologia. Desta maneira sobreviveu uma contranarrativa à cooptação da Copa 1970 pelos militares: que foi um comunista que tinha A Copa 1970 e o dilema da esquerda Numa história em quadrinhos, Henfil (Henrique de Sousa Filho), o famoso cartunista brasileiro, caracterizou bem a desunião da esquerda durante a Copa 1970. Os desenhos mostram um intelectual diante do televisor, durante um jogo da Copa. O texto: “Um país inteiro para por causa do futebol, mas não para para resolver o problema da fome... Este sim é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecê-lo de que são explorados, subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder! Assim o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de injustiças... Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta de Pelé invadindo a grande área inglesa... Pênalti! Pênalti! Juiz filho da mãe! Pênalti, seu safado!”1 1 Citado segundo GUTERMAN, Marcos. O Futebol Explica o Brasil: o Caso da Copa de 70. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, p. 48 (dissertação de Mestrado em História). Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto construído aquela seleção e a condu- A faísca de uma utopia: a Democracia zido ao sucesso. No México, a ditadura Corinthiana militar e o comunismo conseguiram Na época da ditadura militar, o fuvencer ao mesmo tempo. tebol teve um papel importante não Para outros envolvidos, a vitória de só para a propaganda e a ideologia dos 1970 desbravou o caminho para uma militares, mas era também um mocarreira notável. João Havelange, filho mento na resistência e no movimento de um comerciante de armas, foi elei- pela democracia. Em 1982, os tempos to em 1974 presidente da FIFA e ocu- do milagre econômico brasileiro já pou esse cargo por 24 anos. pertenciam a um passado remoto, a Juntamente com seu genro Ricardo ditadura militar era cada vez mais criTeixeira, por décadas no comando da ticada e estava indo em direção ao seu CBF, ele transformou a FIFA em um fim. Eram tempos de novos inícios, consórcio multinacional, poderoso e tanto na política como na cultura, mas não transparente, que comercializa o não é absolutamente automático que megaevento global mais popular. De lá tempos como este atinjam também o para cá, ambos já perderam seus car- futebol. Em São Paulo, porém, estava gos e cargos honoríficos porque se nascendo um dos maiores milagres na confirmaram cada vez mais as acusa- história do futebol. ções maciças de corrupção. Enquanto Na maioria dos casos, o surgimento isto, o “sistema FIFA” continua sob o de algo novo dá-se juntamente com a comando do então secretário-geral de crise do antigo. O SC Corinthians é um Havelange, Joseph Blatter. dos clubes mais populares do Brasil. No Brasil, as continuidades são ain- Em 1981, entretanto, ele não estava da mais dolorosas. Ricardo Teixeira indo nada bem, em termos esportivos. teve que deixar seu cargo, mas conse- Isto fomentou a crescente insatisfaguiu impor como sucessor seu homem ção com o autoritário presidente do de confiança José Maria Marin. Marin clube, Vicente Matheus, amigo declafez claramente carreira política du- rado da ditadura militar. A eleição de rante a ditadura militar e é acusado de um novo presidente estava destinada ser o autor intelectual do assassinato a acalmar os ânimos. Foi um velho do jornalista Vladimir Herzog, porque truque: uma mudança para garantir a tinha taxado a emissora onde Herzog continuidade. O longo jejum de sutrabalhava de não patriota e subver- cessos esportivo e a crescente pressiva. Atualmente, José Maria Marin é são dos torcedores motivaram o novo o presidente do Comitê Organizador presidente, Waldemar Pires, a arrisda Copa. car uma maior abertura. A grande FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 69 70 mudança aconteceu quando Pires nomeou em 1982 Adilson Alves – sociólogo barbudo e filho de um antigo presidente do clube – como chefe da divisão de futebol. Com ele começou no clube uma abertura democrática que entrou na história como a Democracia Corinthiana. Adilson ouvia os jogadores e discutia com eles o futuro do clube. Esta cultura participativa chegou ao seu auge quando, em 1983, os jogadores reivindicaram a nomeação de seu colega Zé Maria como treinador e foram ouvidos. Sócrates, também chamado de doutor, um dos protagonistas da Democracia Corinthiana, descreveu esse tempo na retrospectiva: “Tomamos cada decisão coletivamente e participamos do Conselho Deliberativo do clube”. Em tudo isto se zelava sempre pela mais absoluta igualdade: “O voto do funcionário mais simples tinha o mesmo peso que o do representante da empresa, seu voto tinha o mesmo valor. Tudo foi muito democrático. Esse tempo foi maravilhoso e mudou todos nós”, maravilha-se Sócrates, o meio-campo alto e magrão, ainda anos depois. “As pessoas que estavam envolvidas nesta microssociedade estavam em constante comunicação, cada um participava e decidia junto. Os novatos ficaram no início realmente desesperados: "Por que aqui ninguém fala sobre futebol?’” Um desenvolvimento desta espécie é possível somente em tempos especiais. Naquela época, a politização da sociedade tomava conta de todos os setores. A sociedade estava numa fase de abertura e rebelião – hoje falaríamos de uma “primavera brasileira” –, mas uma primavera que não passou tão rapidamente. “O Corinthians foi a metáfora perfeita para a situação do país. O clube veio de uma direção autoritária, estava numa crise, e os jogador queriam mais participação – assim como o país inteiro.” Mesmo assim, o desenvolvimento no Corinthians permaneceu único e não se tornou o chute inicial nem parte de uma abertura geral no futebol brasileiro. A razão disto pode ser que a realização das ideias democráticas precisava de personalidades extraordinárias – sem elas, o episódio da Democracia Corinthiana provavelmente não teria acontecido. Geralmente se elenca os jogadores Sócrates, Casagrande, Zenon, Juninho, Wladimir e Biro-Biro como protagonistas da abertura, mas não obstante todo espírito coletivo, não é possível negar o papel destacado de Sócrates. Em 1983/84, ele se engajou ativamente na campanha pela eleição direta do presidente (Diretas Já!) que mobilizava o Brasil e exigia democracia. Na realização de suas ideias, os jogadores contaram também com a ajuda do jovem publicitário Washington Olivetto. Ele ficou sabendo dos Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto eventos no Corinthians e criou o nome Democracia Corinthiana, uma “marca” perfeita. Também o lema “Ser campeão é detalhe”, atribuído a Sócrates, comprova-se até hoje como uma síntese genial do espírito daquele tempo. Mesmo assim foi justamente o sucesso que fez da Democracia Corinthiana mais do que uma curiosa nota de rodapé na história do futebol. O doido time democrático ganhou em 1982 o Campeonato Paulista. A vitória pode ter sido um detalhe, mas foi um detalhe fundamental, pois o sucesso fez do episódio uma lição importante para o futebol, ao mostrar: a coisa pode ser bem diferente! Um outro futebol é possível e pode até mesmo dar resultados. Ainda que a vitória fosse apenas um detalhe – o futebol não o foi. Com a figura destacada de Sócrates, a Democracia Corinthiana simboliza também o futebol lúdico. É isto que a conecta a uma época importante e trágica do futebol brasileiro. Sócrates e, claro, Zico, eram os heróis das seleções das Copas de 1982 e de 1986 – seleções que jogaram soberbamente, mas que fracassaram de modo infeliz contra a Itália (1982) e contra a França (1986). Mesmo assim, para muitos brasileiros e brasileiras, o futebol dos anos oitenta está muito acima dos sucessos posteriores. Epílogo Também a Democracia Corinthiana não era eterna, mas ela foi pelo menos a faísca da utopia de um futebol diferente. Em 1984, Sócrates foi para a Itália, inclusive decepcionado com o fracasso da campanha pelas eleições diretas, a cujo sucesso ele tinha vinculado sua permanência no Brasil. Depois de sua saída voltou no Corinthians aos poucos a normalidade, e ela alcançou seu ponto mais baixo com a presidência de Alberto Dualib entre 1993 e 2007. Dualib fechou em 2004 um contrato com a MSI, um grupo de investidores que teria relações com o oligarca russo Boris Beresowski. O Corinthians tornou-se praticamente propriedade da MSI. Em 2007, a justiça brasileira pôs um fim à cooperação com a MSI, por causa de corrupção e desvio de dinheiro. Um pequeno consolo: entre os torcedores do Corinthians tinha surgido um movimento “Fora Dualib!” que chegou a ter forte influência na sociedade e no clube. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 71 72 Greve de professores no Rio de Janeiro, 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto FUTEBOL E NAÇÃO – A IDENTIDADE BRASILEIRA EXISTE? Thomas Fatheuer Trad. Monika Ottermann Em seu texto Foot-ball Mulato, Gilberto Freyre aludia já em 1938 a um tema que domina até hoje o discurso e os relatos sobre o futebol no Brasil. Em seu elogio eufórico dos jogadores brasileiros que foram para a Copa na França, ele acreditou ter descoberto um “mulatismo flamboyant” que transformava o jogo inglês em coisa totalmente diferente, a saber, em uma dança dionisíaca. Desta forma, o futebol se tornaria uma “verdadeira afirmação do Brasil”, mas não simplesmente o futebol, o jogo de futebol como tal, e sim este futebol diferente, o jogo de futebol dos mulatos e dos negros, o futebol “mestiço”. Desde então desenvolve-se no Brasil um debate sem fim sobre a pergunta se em alguma época teria existido este futebol particular, esta dança dionisíaca, este futebol-arte. E se tiver existido, será que este futebol consegue ainda sobreviver num mundo globalizado que globalizou também o futebol? Qual é a relação entre este futebol e a ideia de uma identidade nacional? E será que tal identidade pode ser embasada ainda hoje nas supostas diferenças ao “homem mecanizado do Ocidente” (Freyre)? A grande vantagem do futebol é que ele, acerca destas perguntas, pode narrar histórias em vez de dar uma resposta inequívoca. Entretanto, pode ser útil dar primeiro uma breve olhada para outro lado da fronteira. Também o vizinho difícil (ao menos no futebol) Argentina desenvolveu no início do século passado uma narrativa sobre um estilo particular de jogar futebol, a saber, o futebol criollo (crioulo), com seus bons dribladores e individualistas, que FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 73 74 No entanto, também no Brasil, o fuestaria marcado pelos imigrantes (aqui: os espanhóis e italianos, em dis- tebol-arte não está isento de conflitos. Nem todos @s brasileir@ tinção dos ingleses). concordam com a narrativa do futePara o crioulismo futebolístico ar- bol-arte. Hoje em dia já não existe gentino, os pontos de referência eram uma “tradição inventada” que cria coo campo improvisado de bairro, ou munhão, mas antes há um leque de seja, o futebol não organizado na pe- disputas que permitem perceber coriferia das cidades, e a figura do pibe, mo o Brasil discute sobre si mesmo. do “malandro”. A figura do futebol criUma breve retrospectiva sobre as oulo é desenvolvida por delimitação, especialmente em relação aos “outros Copas desde 1970 permite delinear bem este debate. Com a vitória bride longe”, isto é, “o inglês”. lhante no México parecia alcançado e Os paralelos à construção brasileira garantido o que Nick Hornby celebrado futebol-arte são óbvios, apenas ria depois como o “ideal platônico”: ocorre que, no Brasil, o elemento do um futebol brasileiro que era belo e, jogador negro é central. E ambas as ao mesmo tempo, dava resultados. construções são habitadas por uma Contudo, uma olhada mais atenta soproximidade à visão de mundo natu- bre a seleção brasileira de 1970 ajuda ralista: jogadores crioulos, negros e a relativizar um pouco esse mito. Na mulatos jogam de modo diferente memória predominam certamente os porque são diferentes. “Um jogador lances brilhantes de Pelé, Rivelino e crioulo nasce como tal”, afirma Pablo outros, mas o triunfo brasileiro foi Alabarces1. Também na valorização também construído sobre um bom dos jogadores negros por Freyre e desempenho do conjunto da equipe, Mário Filho vislumbra-se constante- uma defesa sólida e uma excelente mente uma imagem do ser humano condição física. O destaque para o que atribui àqueles jogadores quali- treinamento sistemático desempedades especiais. De certa maneira, o nhou um papel central no debate púdiscurso da ascensão social do joga- blico em torno da Copa. Ainda sob o dor negro não deixa de ser um racismo treinador comunista Saldanha tinha às avessas: da mestiçagem problemá- começado uma preparação para o tica nasceu uma imagem glorificada, México que estava cientificamente mesmo que as explicações das habili- fundamentada. Saldanha contratou dades particulares dos negros tenham um especialista para treinos em granrecorrido sempre a elementos sociais des altitudes, o professor Lamartine, e e culturais2. este se tornou uma figura-chave do “Projeto México”. O comunista e o Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto regime autoritário encontraram-se na Para muit@s brasileir@s, os times valorização do planejamento que de 1982 e de 1986 (com certas restritambém foi destacado em notícias e ções) representam a encarnação do matérias da época. futebol-arte. Em 1982, um time dos sonhos em torno de Sócrates, Zico, Recentemente, cientistas analisa- Júnior e Falcão jogou, segundo a opiram detalhadamente como a avalia- nião de muitas pessoas, o melhor fução de México 1970 na imprensa tebol de todos os tempos e fracassou brasileira se transformou ao longo dos tragicamente na última partida do anos. Enquanto o enfoque recaía ini- grupo com 2x3 contra a Itália – é a ascialmente sobre os métodos científi- sim chamada “tragédia de Sarriá”. O cos e o “Projeto México”, ele mudou técnico de ambas as Copas era Telê rapidamente em favor da ênfase no Santana, um adepto confesso do espetáculo do futebol-arte. ofensivo “futebol de espetáculo”. No Ainda que a memória coletiva mar- outro extremo da escala encontramginalize esse lado científico-sistemá- se as Copas do Mundo de 1990 e de tico do futebol brasileiro, ele continua 2010. Na primeira, o técnico Sebasvivo na organização do futebol. Um tião Lazaroni tinha anunciado uma dos colaboradores da comissão técni- “era Dunga”, e na segunda, o técnico ca de 1970 chamava-se Carlos foi o próprio Dunga. Nomear no Brasil Alberto Parreira. Este homem ganha- uma era de futebol deliberadamente ria a Copa de 1994 como técnico, e segundo um sólido zagueiro sem brisua sombra se estende até os dias de lho técnico era uma provocação delihoje: ele é o chefe da comissão técnica berada e um abandono indicativo do futebol-arte. Em ambas as Copas, o da seleção brasileira na Copa 2014. Brasil fracassou ingloriamente. A Portanto, um olhar analítico sobre a competição entre o futebol-arte e o Copa do México 1970 mostra que a futebol orientado por resultados tertão popular justaposição de futebol- minou num curioso 2x2 negativo. Em arte versus futebol de resultados é todas as quatro Copas nas quais o tiuma simplificação grosseira, e, geral- me brasileiro mais se assemelhava à mente, isto é também prontamente construção ideal-típica, o sucesso não admitido. No entanto, simplificações veio. Com certeza, isto é especialsão necessárias para realçar conste- mente triste para aqueles ideólogos lações ideal-típicas. E na história das que pensam que no futebol conta soCopas podemos efetivamente identi- mente o sucesso, pois, assim, uma falficar quatro torneios que represen- ta de sucesso significa o fracasso puro, tam quase perfeitamente o litígio em sem qualquer porém – e principaltorno do futebol-arte. mente sem tragédia. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 75 76 Ora, como ficou isto nas Copas que o Brasil ganhou após 1970? Em 1994, o técnico foi Parreira. Certamente, Parreira é da ala do futebol orientado por resultados e sem consideração pela beleza, mas ele não o perseguia com a mesma radicalidade que seu antecessor. Por exemplo, foi ele que chamou o ambíguo Romário de volta à seleção. O Brasil ganhou a final nos pênaltis, depois de um magro 0:0 contra a Itália. Obviamente, o 0:0 é um contraste agudo ao 4x1 contra o mesmo adversário em 1970. Mesmo assim, o sucesso de 1994 não pode ser creditado inequivocamente na conta do futebol de resultados. No ataque brilhavam (pelo menos em alguns momentos decisivos) Romário e Bebeto. Principalmente Romário encarnava as esperanças do “verdadeiro” futebol brasileiro: um técnico rico em truques, e ao lado dele um bad boy não adaptado. A Copa de 2002 é um caso à parte, em muitos aspectos. O Brasil e a Alemanha chegaram à final sem terem enfrentado grandes times durante o torneio e sem terem mostrado um futebol verdadeiramente convincente. Em comparação, a final não foi nada mal e terminou em 2x0 para o Brasil. Também Felipe Scolari, o técnico de então e de hoje, não é certamente nenhum adepto do futebol-arte. A memória da Copa de 2002 no Brasil, porém, é fortemente marcada pelo duelo de Ronaldo contra Kahn. A cena-chave é o 1x0 de Ronaldo contra Kahn (que não conseguiu segurar a bola). O teórico de futebol Marcos Guterman cita o sociólogo Oliveira Ferreira, para demonstrar o grande significado desse gol: “Ou não seria esse símbolo suficiente para mostrar como os subdesenvolvidos são capazes de humilhar, liquidar as pretenções do Primeiro Mundo?” Com a bomba de Ronaldo, diz Guterman, um “povo massacrado” venceu contra a arrogância do Primeiro Mundo, tão perfeitamente encarnada por Oliver Kahn3. E, mais uma vez, o “complexo de vira-lata” foi superado. Por isto, a Copa 2002 retoma antes outro mito central do futebol brasileiro que fica um pouco desajustado dentro do eterno debate sobre o futebol-arte: o mito da estrela solitária, do craque que faz a diferença. Em um único instante feliz, Ronaldo, que tinha passado antes da Copa por uma profunda crise e que parecia carregar a derrota na final contra a França em 1998 como chumbo nas chuteiras, libertou a si e ao Brasil de todos os traumas. Também em 2014, as esperanças e os sonhos estão divididos: o atual técnico da seleção brasileira, Felipe Scolari, pertence antes ao campo do futebol de resultados, mas seu jogador decisivo, Neymar, representa inequivocamente os sonhos do futebol-arte. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto No entanto, será que realmente existe uma identidade brasileira particular que se reflete no futebol ou para a qual o futebol é um importante fator constitutivo? José Miguel Wisnik, um dos teóricos mais recentes do futebol brasileiro, está entre aqueles que respondem a esta pergunta de modo afirmativo, mas também de modo surpreendente. Wisnik é músico, compositor e cientista literário. Por isto, a estreita relação entre futebol e música em sua pequena teoria não é uma surpresa: seu ponto de partida são as palavras famosas de um samba de Noel Rosa, do ano 1932: “O samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas, são coisas nossas”4. Coisas nossas – esta é a busca por identidade embasada em qualidades localizadas principalmente na área corporal e criativa. Prontidão é uma espécie de “inteligência do corpo”. O samba e quase igualmente o futebol representam o surgimento de uma tradição nova e própria. Constitutivos desta identidade são conceitos e termos estranhos como a ginga. Wisnik descreve essa identidade como “a disposição a habitar os intervalos do ritmo, os hiatos da linguagem, os meneios do corpo”5. que está inseparavelmente ligada à mescla dos grupos de migrantes. A integração de elementos da cultura negra desempenha um papel especialmente importante. O ideal de um “Brasil branco”, acalentado pelas elites conservadoras, pulverizou-se nas culturas urbanas da mestiçagem dos anos 1920. Das cinzas da fracassada identidade ocidental branca nasceu a cultura da disposição. Num brilhante estudo sobre os anos 1920 em São Paulo, Nicolau Sevcenko cunhou o termo ousado e genial de uma cidadania fundada na emoção, para cujo surgimento o futebol teria um papel decisivo. E Wisnik afirma até mesmo que, na raiz das “coisas nossas”, há uma mais-valia às avessas, uma mais-valia de prazer – uma mais-valia de prazer que tira sua força exatamente dos espaços vazios, dos não-espaços. Segundo ele, essa importância de espaços vazios caracteriza, também e especialmente, o futebol: futebol e cultura estariam fundamentados no deslize, na síncope, no drible, em tudo que não é fixado. Neste contexto, um hiato não se esgota no nonsense, mas é “justamente o lugar do lapso criativo, da suspensão que admite o vazio sem Esta corporalidade e musicalidade o qual não se formula o inesperado”7. particulares do samba são as conDesta maneira fundamenta-se não sequências de uma nova cultura urbasó, mas também no futebol uma nova na que vem surgindo principalmente narrativa sobre o que significa ser no Rio de Janeiro e em São Paulo – e brasileiro/a. Aqui, uma grande FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 77 78 reinterpretação é constitutiva: a mescla das culturas não é mais o destino negativo da nação, mas é agora vista de modo positivo. Assim surgem os novos mitos na busca das raízes que não existem. É evidente que uma identidade brasileira assim construída não está embasada no futebol, mas o futebol é um de seus elementos constitutivos, e o discurso sobre o futebol é simultaneamente a linguagem privilegiada na qual é possível refletir sobre a nação e a identidade. Se isto for assim, então a insistência no futebol-arte é mais do que o prazer pelo futebol belo, algo que existe no mundo inteiro. Se for assim, esta construção da identidade brasileira não teria um vínculo estreitíssimo com o futebol como tal, e sim com uma determinada interpretação do futebol e da alegria difundida por ele. O constitutivo não seria o resultado, o sucesso, mas a mais-valia de prazer, de alegria, passaria a ser na cultura e no futebol uma nova “marca registrada” do Brasil. No entanto, os tempos mudaram também em outros aspectos. Hoje em dia, a velha maldição “O Brasil não é um país sério” não possui mais poder. O Brasil é um importante “jogador global”, um global player, ele determina as letras de uma nova categoria que visa o futuro. O Brasil é BRICS, é investment grade; o Brasil alcançou o futuro. Na pessoa de Lula, o pessimismo das elites parecia se comprovar definitivamente como um absurdo: quem conduz o Brasil definitivamente para o futuro é um migrante do Nordeste, um típico “mestiço”. Segundo Lula, o Brasil vive “um momento mágico”. O país já não é mais um eterno perdedor. A nação dos “malandros incuráveis” (Nelson Rodrigues) quer pertencer agora ao grupo dos vencedores da nova ordem mundial. Vencedores, porém, perdem o charme dos não favoritos. No mundo inteiro, brasileiros e brasileiras são agora não só percebidos/as como especialistas em alegria que driblam a bola e rebolam as cadeiras, mas também como exportadores/as de soja e extrativistas de petróleo; eles/elas compram bancos privados suíços (por exemplo, a Sarasin Bank), constroem barragens faraônicas e plantam cana de açúcar na África. Ocasionalmente são considerados/as por vizinhos latino-americanos um novo poder subimperial. Com este novo Brasil que está se acostumando aos sucessos e se embriagando com eles combinaria também um sucesso no futebol. Este deveria ter sido conquistado na última Copa, na África do Sul, sob o comando do técnico Dunga. Dunga representava o abandono de tudo que era importante para o futebol-arte. Os termos centrais do técnico foram disciplina e orientação pelo resultado – sempre Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto contra o pano de fundo do desastre de 2006 (na Alemanha), onde as estrelas do Brasil brilharam pela falta de vontade no campo e pelos exageros na vida noturna. Agora, o desleixo deveria ser combatido com “virtudes prussianas”. As convicções de Dunga provocaram pelo menos protestos maciços. Sua afirmação: “O que interessa no jogo do futebol é o resultado” foi comentado assim pelo afro-brasileiro Joel dos Santos, historiador e autor de uma história muito popular do futebol brasileiro: “Se for assim, temos que abandonar o futebol”. Nunca o clima foi tão ruim como em 2010. Quase uma nação inteira queixava-se de Dunga e de seu futebol de resultado. E também em 2014 está se mostrando que não é tão fácil fazer da Copa de Futebol um evento mundial de afirmação do novo Brasil. Os protestos em junho de 2013 acabaram definitivamente com a história do Brasil como “país de vencedores” (presidenta Dilma Rousseff). Será que, no futebol, pode se expressar uma identidade diferente, fundamentada justamente na diferença? Os defensores do futebol-arte assim o desejam e o esperam. É um debate popular, no qual são tratadas não só questões do futebol, mas também questões fundamentais da identidade nacional. E sempre aparecem jogadores que reavivam a esperança por um futebol do puro prazer – basta assistir alguns vídeos de Neymar. Mesmo assim recomenda-se cautela – também o futebol-arte está sujeito à pressão que cobra resultados, e a suposta dicotomia é certamente uma forte simplificação. Talvez seja também verdade que o futebol-arte é uma construção que existe mais na teoria do que na prática. O futebol-arte é um sonho com o futebol – e exatamente como sonho e ideia, ele se comprova uma “rica fonte de sentido” (Alabarces). E ele não narra somente um sonho de futebol, mas exatamente também o sonho de identidades embasadas na criatividade do corpo, no drible, no talento musical. É algo muiÉ óbvio que, depois de 2010, os de- to diferente do espírito capitalista do fensores do futebol-arte estão nova- sucesso, embora, na prática, esteja inmente de vento em popa quando se dissoluvelmente vinculado a ele. trata do eterno debate entre o futebol de resultados e o futebol-arte. Desta Por isto é provável que a maior forma, a insistência num futebol da ameaça ao sonho do futebol-arte não mais-valia de prazer torna-se uma venha de seu adversário antigo e bem narrativa contra um Brasil que busca conhecido, o futebol de resultado. sua identidade no sucesso econômico e Antes da Copa 2006, a Nike mostrou na integração no mercado internacional. com sua campanha “Joga Bonito” FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 79 80 como o futebol-arte pode se tornar uma estratégia de marketing. Introduzidos pelo rebelde de futebol Éric Cantona (!), os craques afro-brasileiros extremamente bem-humorados Ronaldo, Ronaldinho e Robinho exibiram suas brincadeiras para a admiração do consumidor. A ideia do futebol-arte combina com um tempo em que se dissolvem as grandes narrativas da nação, da pátria e da identidade. As comunidades imaginárias da nação correm o risco de se tornar – segundo o cientista cultural argentino-mexicano Néstor García Canclini – comunidades interpretativas de consumidores. Em medida crescente, identidades são determinadas pelo consumo e “dependem daquilo que se possui” . O futebol-arte combina com um nacionalismo do mercado que promete diversão em lugar das grandes narrativas nacionais. Antes de cada Copa de Futebol, a TV brasileira e especialmente a propaganda utilizam a bandeira verde-amarela do país e da seleção. Assim, a pátria inteira calça hoje as chuteiras. Provavelmente, ninguém encarna isto mais do que Neymar: graças a seus dribles geniais, ele é um garoto que encarna a esperança do futebol-arte e simultaneamente um garoto-propaganda ideal. Neymar é considerado o jogador de futebol mais bem comercializado do mundo. Importante é não só sua magia com a bola, não, importante é também seu penteado. Quando ele dançou na cabina do Santos ao som de “Ai, se te pego”, o vídeo registrou 20 milhões de acessos e fez assim da canção de Michel Teló um hit mundial. A imagem dos sonhos da nação mistura-se antes da Copa do Mundo com as imagens da propaganda que são cooptadas sem vergonha pelo nacional. O auge desse novo nacionalismo do mercado foi alcançado pela cerveja argentina Quilmes, com seus clipes famosos8. A propaganda nacionalista, carregada pelo “jogo bonito”, já não representa um projeto nacional. Por isto, as palavras do argentino Pablo Alabarces aplicam-se também ao Brasil: “Os problemas econômicos, políticos, sociais e históricos de nossa sociedade podem ser resolvidos somente no plano do real. Esta sabedoria continua válida […], não obstante a campanha publicitária da cervejaria Quilmes. A crise, a nação, nosso futuro comum não se resolvem no estádio de futebol. E muito menos na TV. Mas, possivelmente, na rua e na política9.” Foi exatamente isto que milhões de brasileiros/as mostraram em junho de 2013, mas ainda fica aberta a pergunta se o sonho de um outro futebol, de um futebol belo, também inclui o sonho de um outro mundo melhor. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Notas 1 ALABARCES, Pablo. Fútbol y Patria. El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2002. 81 2 Ibidem. 3 GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil. Uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2009. 4 WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio – O futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 5 Ibidem 6 7 Ibidem. Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 8 Os clipes publicitários de Quilmes são famosos por seu engrandecimento patético da seleção argentina e nem mesmo hesitam em envolver Deus. Um exemplo pode ser assistido em http://esfericobalon.blogspot.de/2013/11/lanueva-publicidad-futbolera-de-quilmes.html. Um detalhe pitoresco é que a Quilmes pertence hoje ao grupo brasileiro-belga InBev, de Anheuser-Busch, o maior conglomerado cervejeiro do mundo. 9 Cf. ALABARCES. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 82 Juca Kfouri, 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto LULA, DILMA E A COPA Juca Kfouri Lula se deixou seduzir pela cartolaMas por que Lula acabou de braços gem do futebol brasileiro. dados com Teixeira e ainda criou uma loteria, a Timemania, para que os cluDilma, não, porque não a acaricia bes pagassem a fortuna que devem ao nem homenageia. Estado, algo na casa dos 2 bilhões de Mas também não rompe, quando euros? deveria fazê-lo. Por que Lula, de inegável sensibilidade popular, não rompeu com A relação do Estado nacional com a Teixeira, sabendo que seria aplaudido superestrutura do futebol brasileiro é, nas ruas se o fizesse? para dizer o minímo e usar uma terminologia da psicologia, esquizofrênica. Ora, se Lula tinha a obrigação de ser Lula, por exemplo, sabia perfeitamente quem era a deplorável figura de Ricardo Teixeira e assinou, como primeira lei de sua gestão, o Estatuto do Torcedor, um soco no estômago da Confederação Brasileira de Futebol, a famigerada CBF que Teixeira presidia e da qual teve de sair por envolvimento em grossa corrupção. pragmático nas alianças políticas para não assustar as elites do Brasil, razão pela qual conviveu muito bem com expresidentes como José Sarney e Fernando Collor, inimigos figadais em outros tempos, nada justifica que não tenha rompido com a mixórdia do futebol. Se não por virtude, por oportunismo. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 83 Mas Lula deixou-se seduzir. 84 Primeiramente, de olho numa cadeira no Conselho de Segurança da ONU, pela bela ideia de levar a seleção brasileira ao Haiti devastado. Embora influente ministra nos oito anos da gestão Lula, primeiro como ministra de Minas e Energia, depois na Casa Civil, ela pegou o bonde andando como presidenta da República e precisa fazer com que ele chegue ao seu destino sem maiores acidentes. Depois, estreitamento feito com Teixeira, pelos rapapés do cartola, leNo capítulo das relações pessoais vando craques ao gabinete presiden- ela jamais se deu com Teixeira e fez cial para autografar bolas e camisas questão de nunca recebê-lo no Paláverdes e amarelas. cio do Planalto, circunstância provaConquistado o direito de receber a velmente de peso para que o cartola Copa do Mundo, então, Lula embalou- abandonasse tudo, a CBF e o Comitê se na ilusão de mostrar um Brasil pu- Organizador Local da Copa do Mundo, e corresse para Boca Ratón, na jante ao mundo. Flórida, Estados Unidos. Embarcou no discurso que sabia Mas digere um sapo ainda maior. falso da Copa do Mundo do capital privado e abriu os cofres públicos para A presidenta também não disfarça que o Brasil organizasse o torneio que não gosta do substituto de Teixeimais caro de todos os tempos, com a ra, o ex-governador biônico de São construção de pelo menos cinco está- Paulo nos tempos da ditadura, José dios que não serão ocupados após o Maria Marin. Mundial: em Brasília, em Cuiabá, em Natal, em Manaus e no Recife. Não gosta e não o recebe em sua sala, mas terá de suportá-lo, por exPermitiu que se erguesse em São emplo, na abertura da Copa, em 12 de Paulo, que já tem o estádio do Mo- junho deste ano, no estádio do Corumbi, um novo palco, do seu clube de rinthians. coração, o Corinthians. Lado a lado estará com quem, um Viu o Maracanã, no Rio de Janeiro, e dia, em discurso que está gravado pao Mineirão, em Belo Horizonte, serem ra a posteridade, elogiou o policial postos abaixo para se transformarem Sérgio Paranhos Fleury que, durante a nas modernas, e anódinas, arenas tão ditadura, torturou seu ex-marido, ao gosto da FIFA e, principalmente, Carlos Araújo, pai de sua filha, avô de das empreiteiras. seu neto, então importante combatente da resistência aos militares. Dilma Rousseff que se vire. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Na Copa das Confederações, em juA Copa está custando mais que as nho do ano passado, Dilma ouviu uma três últimas edições do torneio da FIsonora vaia ao abrir o torneio ao lado FA somadas. de Joseph Blatter e de Marin. Sim, a Copa do Mundo de 2002, no Por sua posição ambígua, ela desa- Japão e Coreia do Sul, mais a Copa do grada gregos e troianos, porque nem Mundo da Alemanha, em 2006, mais a rompe nem acarícia. Copa do Mundo na África do Sul, em 2010, somadas, custaram 30 bilhões Lula, por exemplo, acha uma boba- de dólares (US$ 16 bilhões, US$ 6 bigem ela não querer fazer fotos ao lado lhões e US$ 8 bilhões respectivamende Marin e pergunta: "Ela não quer te) e a no Brasil chegará aos 40 bilhões fotos ao lado de Neymar? Pois tem de de dólares. fazer ao lado do Marin também". Os dados são de um estudo da ConO pragmatismo do Partido dos Tra- sultoria Legislativa do Senado Federal balhadores, sua realpolitik, extrapolou brasileiro, onde o governo Rousseff qualquer limite aceitável para os ver- tem maioria. dadeiros militantes da esquerda brasileira. No governo Lula, o Brasil obteve o direito de sediar os dois maiores Ruim com o PT, pior sem ele, talvez, eventos do planeta - e não apenas os mas o fato é que a dupla Lula & Dilma dois maiores eventos esportivos da é responsável por uma Copa do Mun- Terra, o que já não seria pouco. do no Brasil que passará longe de ser uma Copa do Mundo do Brasil. Para trazer a Copa do Mundo não foi necessário um grande esforço, A festa que o mundo verá nos está- porque candidatura única na América dios estará a léguas de distância do do Sul, fruto de barganha entre que acontecerá nas ruas do país, mui- Joseph Blatter e Ricardo Teixeira. O to provavelmente tomado por nova cartola brasileiro se comprometeu a onda de protestos, como a que trans- não disputar a presidência da FIFA, formou, no ano passado, a Copa das facilitando a reeleição do suíço, em Confederações na Copa das Manifes- troca de receber a Copa e articulou tações. com as associações nacionais sulComo já dito, a Copa no Brasil será a americanas que nenhuma delas se mais cara da história, o que se poderia canditaria, com Julio Grondona, da justificar pelo fato de ser a mais re- Argentina, como grande aliado. cente. Mas não é tão simples. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 85 86 Já a Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, veio graças ao poder de sedução de Lula, único presidente que falou aos votantes no Comitê Olímpico Internacional em sua língua nativa. Único, aliás, não, porque Barack Obama, que defendeu a candidatura de Chicago também... Manifestações em junho do ano passado. À medida que o país foi tomando conhecimento da suntuosidade das novas arenas erguidas para o torneio, o povo saiu às ruas para exigir hospitais, escolas e transportes coletivos com "padrão FIFA". Pois eis que as duas façanhas poA transnacional que comanda o fudem se transformar em enormes tiros tebol mundial com mão de ferro e pela culatra. pouca transparência, passou a dividir A Copa do Mundo, por exemplo, com os governos federal, estaduais e prometida como a Copa da iniciativa municipais, o papel de vilão, muito privada, principalmente no que diria embora, justiça seja feita, não tenha respeito aos estádios, é quase inteira- pedido para o Brasil receber seu festimente financiada por dinheiro público val da bola e nem muito menos exigiu e, pior, além de os estádios serem er- que o país o recebesse com 12 sedes, guidos com dinheiro da população de ao contrário, oito lhe bastavam. maneira direta ou indireta, os legados Foi a megalomania do governo Lula prometidos de infraestrutura foram que estabeleceu o absurdo que resulsendo abandonados um a um diante tará nos elefantes brancos espalhados de suas magnitudes e da falta de repelo país, numa irônica, e trágica recursos para implementá-los. petição do que fez a ditadura nos anos Tanto que, no começo de fevereiro, 70. Só que, então, os protestos eram baseado em resultado de pesquisa proibidos e coibidos militarmente, sob que revelou o desencanto da popula- a justificativa de "integrar" o Brasil ção com o rumos da Copa, o governo por meio do futebol. mudou sua estratégia e assumiu a O fiasco à época deve se repetir ideia de fazer campanhas publicitárias agora. que tentarão vender a imagem de que o Brasil fará a Copa das Copas, baseaVozes como a de Pelé se erguem das no fato de que estarão presentes contra os protestos na Copa do Muntodos os oito campeões mundiais. do, com pouca chance de serem bemParece pouco diante dos protestos sucedidas. que levaram a Copa das ConfederaO Rei, como é chamado por ter sido ções ser chamada de a Copa das o fabuloso craque que foi, chegou ao Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto cúmulo de dizer que futebol e política não têm nada a ver e que o futebol passa ao largo da endêmica corrupção nacional. No país de Havelange e Teixeira... O que deverá proporcionar duas Copas distintas e complementares: uma nos estádios, em clima festivo para ser transmitido para o mundo inteiro; outra fora dele, que por mais que se queira esconder terá a imprenPerdida, e distante dos temas fute- sa do mundo inteiro como testemubolísticos, Rousseff tem cometido er- nha. ros primários, objeto do escárnio da crítica especializada. Ela disse, por exQuem sabe, assim, a FIFA aprenda. emplo, em janeiro, que o Brasil havia Porque salta aos olhos que a entidade vencido cinco vezes a Taça Jules Ri- tem feito escolhas que dão preferênmet, desconhecendo que desde 1970, cia a países de democracias recentes e exatamente quando o Brasil a con- pouco contrôle social, não tivesse a quistou pela terceira vez e a obteve de última Copa sido disputada na África maneira definitiva. do Sul, a próxima no Brasil e a seguinte na Rússia. Tão ignorante como ela nos temas futebolísticos, sua ministra da CultuPara não falar no Qatar, onde o dira, Marta Suplicy, declarou que as crí- nheiro jorra fácil dos campos de peticas aos gastos no Maracanã não se tróleo. justificavam porque "era a primeira Tudo que favorece as empreiteiras reforma em 60 anos" no estádio que é e os políticos. o cartão postal do futebol nacional. Ocorre que de 1999 para cá, o estádio A surpresa, no caso brasileiro, está foi reformado para receber o Mundial na avaliação desinformada sobre a de Clubes da FIFA, em 2000, e os Jo- História do país, cuja imagem é assogos Pan-Americanos, em 2007. ciada ao Carnaval, futebol, belas praiA FIFA parece convencida de que a escolha do Brasil se transformará em enorme equívoco e busca apostar que a paixão do povo pelo futebol poderá minimizar os protestos. as e mulheres nuas. Nada mais falso. Não o Brasil tem seu passado marcado por levantes populares de norte a sul como, só nos últimos 30 anos, o País saiu às ruas para exigir eleições Nada indica, no entanto, ao contrá- para presidente e, em seguida, para depor o presidente eleito, envolvido rio. em corrupção. Tudo leva a crer que o clima de 2013 se repetirá, até em maior escala. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 87 O Partido dos Trabalhadores, de Lula e Dilma, teve papel fundamental nas duas ocasiões. 88 Hoje, vítima da realpolitik que abraçou, deixou de se distinguir e se surpreende com a ferocidade das reivindicações de um povo que se beneficiou de sua política social voltada aos excluídos mas que quer mais. Tudo isso num ano em que haverá eleição para presidente. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto ELAS, NO PAÍS DO FUTEBOL Lívia Duarte No país do futebol (masculino), é comum ouvir que somos uns “190 milhões de técnicos de futebol”. A afirmação está na publicidade, as transmissões de jogos pela TV, nas manchetes de jornal cada vez que o técnico – o oficial, aquele designado pela Confederação Brasileira de Futebol - escala a seleção. Não deixa de estar também na boca do povo. Mas uma rápida conversa com torcedoras mostra que o número de opiniões “que contam” numa sociedade ainda marcada pelo machismo é menor: 97 milhões de técnicas de futebol teriam suas opiniões rejeitadas pelo simples fato de serem mulheres. Se por um lado a crescente presença de delas nos estádios, muitas vezes sozinhas ou acompanhadas apenas por outras mulheres, ou o aumento do número de jornalistas que se dedicam à imprensa esportiva, podem ser um sinal de mudança – como é simbólico para a sociedade em geral a eleição de uma presidenta da república –, as mostras de sexismo no Brasil ainda prevalecem em muitos campos, entre eles, nos de futebol. E neste caso, se explicitam no lugar “destinado” a cada grupo. E as narrativas são parte deste lugar. Conheci Kaká Soares, 45, no Maracanã, que ela frequenta desde os 3 anos de idade, antes com o pai e há muitos anos sozinha ou com amigos e amigas. Chegamos cedo e corremos para ocupar as cadeiras novas na arquibancada nesta tarde de sábado. O motivo não foi lotação. Era dia de estádio vazio. Uns 18 mil compareceram para o jogo do campeonato local quando o tradicional Fluminense de Kaká venceu por 4X1 o pequeno Boavista. Ela precisa se apressar porque vai ornamentar o estádio com uma FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 89 90 faixa da sua torcida organizada, a Flu Mulher. Este é o único grupo de torcedoras exclusivamente feminino já reconhecido por uma equipe no país (“e no mundo”, inclui a fundadora orgulhosa). O local acordado com as demais torcidas e a polícia para a faixa branca tem menos destaque do que o destinado às outras seis organizadas do Fluminense, maiores, mais antigas e mistas – predominantemente masculinas. muitas obrigações. Como mulher tem a questão da família, fica ainda mais complicado. Mas eu espero que torcedoras de outros times façam o mesmo, é diferente de fazer parte de um núcleo feminino de torcida mista”, destaca. O Fluminense começou perdendo e só empatou pouco antes do intervalo. Um torcedor de outra organizada gritava pela substituição de um jogador, bufando, gesticulando, ficando de pé e tentando impor sua opinião aos demais torcedores. As “tricolindas” não pareciam concordar. Mas não gritavam de volta. Diziam entre elas que era preciso mais tempo antes da substituição. No intervalo, Kaká falou com o torcedor, velho conhecido das arquibancadas. Ele ouviu estressado. E deu de ombros. Antes, ela já me havia advertido sobre onde, na opinião dela, aparece o preconceito no estádio. Está sobretudo no discurso: “homem nunca acha que futebol é lugar de mulher. Até chegar a prestar atenção e ver que eu entendo de futebol vai ouvir a gente conversando aqui e garantir que sou louca! Eu não estou aqui pelas pernas do Fred! Até são bonitas, eu acho, mas jogador vai e vem, meu amor é pelo meu clube!”. Como em qualquer torcida, as “tricolindas” – apelido usado por elas mesmas, que se refere às três cores do clube e à suposta boa aparência das torcedoras – vestem uniforme com a marca da torcida, vão juntas ao estádio e usam faixas e bandeiras para se identificar no “templo” do futebol. São cerca de 3 mil as cadastradas no site, mais de 10 mil “curtem” a página do Facebook, mas apenas 60 tem carteirinha e pagam mensalidade na agremiação. Dentro e fora do estádio, muitas vestem camisas da torcida, mas também é pequena a reunião na arquibancada – num jogo comum como este, não passam de dez. Num clássico, a média é de 50. “Só criei a torcida em 2006 para ser uma coisa diferente, torcida só de mulheres. É muito difícil, as direções das outras são quase sempre de homens e eles não querem dividir poder, espaço, al- Espelho da sociedade gum apoio que o clube dê para viajar, ou ingressos de cortesia, por exemplo. Mariana Vidal, 30, é flamenguista e Ser torcida organizada quer dizer ter bancária. Seu “time do coração”, o Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Flamengo, é outro dos quatro grandes clubes da cidade – e, aliás, grande rival do Fluminense. A torcedora não faz parte de uma organizada, mas segue sua equipe no estádio, na TV, nos jornais. Pelo Facebook, exibe em sua foto de perfil a camisa e o amor pelo clube. É pela rede social que acaba completando a opinião da torcedora do time adversário: “No futebol não enfrento mais machismo que o dia a dia, o futebol é igualmente machista. Na verdade, acho que o futebol é o maior espelho da sociedade, então quando você está no estádio, na torcida do Flamengo, e ouve a torcida adversária gritando "silêncio na favela", com raiva, como se ser favelado fosse o pior dos xingamentos, você sente todo o preconceito social. É a mesma coisa quando alguém diz que Fluminense “é time de bicha” e o Botafogo “é torcida de mulher”, como se ser mulher fosse um xingamento”, explica, enumerando estereótipos preconceituosos das grandes equipes da cidade que são reforçados pelas torcidas nos estádios. Mariana, e várias outras torcedoras com quem conversei, garante que nunca passou, nem presenciou, situações de assédio sexual nos estádios. Mas as conversas sobre futebol explicitam, numa sociedade machista, quem deve estar em qual lugar: “Você chega num bar, no trabalho, ou no ônibus, vê alguns homens falando cada besteira... e falam alto, em grupo, como se fossem os detentores da verdade. Ainda assim, um garçom concorda, o trocador abana a cabeça aprovando... porque são homens”, descreve, acrescentando: “se fosse uma mulher a dar essa mesma opinião, seriam sinceros e diriam que ela não entende nada de futebol ou, o mais provável, debochariam”, sentencia, explicando que por este motivo muitas restringem suas opiniões a um grupo de amigos que lhes respeite, mesmo sem ter as mesmas opiniões. Mulher na torcida: só se for bonita? “Impedimento. Sabe o que é? Explica pra mim então!”. É possível apostar que a maioria das mulheres que já declarou a um homem seu interesse por futebol ouviu questões assim. A regra do impedimento, aliás, é um questionamento considerado básico para mulheres! Mas também a escalação de times e perguntas sobre nomes de jogadores são desafios comumente destinados a estas “invasoras” de espaços masculinos. Nos treinos, as torcidas mistas aparecem para questionar, pressionar ou apoiar os jogadores da equipe. A Flu Mulher, quando aparece, “distrai” os jogadores. É como narram os jornais, lembrando – até quando não mencionam – o velho estereótipo das “marias-chuteiras”. É assim que se apelidaram o grupo de mulheres que FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 91 92 só se aproximam de clubes, torcidas e estádios, para tietarem jogadores – como fariam com astros da música – ou por estarem interessadas em relacionamentos sexuais com eles, o que seria atalho para fama e ascensão social. O cenário das orgias sexuais e este grupo de mulheres interessadas em jogadores ganhou especial destaque com o desaparecimento da jovem Eliza Samúdio, em 2010. Em vídeos na internet, ela dizia que tinha sido examante do goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, com quem teria um filho. O corpo de Eliza nunca foi encontrado, mas as investigações apontaram para o jogador como responsável. Ele foi condenado por assassinato em março de 2013. Ela não se definia como tal, mas muito se falou do mundo deste tipo de “maria-chuteiras”, na época. Quando diz que as pernas do atacante Fred interessam menos que seu time do coração, Kaká também está se afastando desse estereótipo e, por alternância, demarcando seu lugar de torcedora que ama o clube, sabe do jogo, e quer legitimidade. No estádio, os torcedores vão jogar junto, são o 12º jogador, tem como missão empurrar rumo a vitória. As mulheres, segundo muitos comentários nos estádios e na TV, estão lá para enfeitar, embelezar, trazer a família, colaborar com um ambiente de paz. É o que garantem os narradores na TV. E “pra você que se liga na Globo”, bordão exaustivamente repetido nas transmissões da maior emissora do país, não faltarão imagens de mulheres (dentro dos padrões de beleza), das arquibancadas direto para sua tela nos intervalos e paralizações dos jogos. Apesar de não haver pesquisas sobre o sexo dos frequentadores de estádio, ainda é claro que o sexo feminino é a minoria. Mas somadas às crianças torcedoras, elas parecem predominar nestas “brechas” das transmissões. Kaká concorda que tudo isso reforça preconceitos, mas afirma que “já engoliu”. Aliás, voluntariamente ou não, sua torcida adota o apelido que reforça o binômio torcedora-beleza: as “tricolindas”. Para ela, pouco a pouco as barreiras vão se quebrando e importante mesmo é abrir espaço nos lugares de poder das torcidas – as direções, os privilégios. Na TV ou lavando roupa suja? Almerinda França, 66, estava no Fluminense x Boavista com a neta e a organizada Flunitor, que reúne homens e mulheres. Não diz os anos de Maracanã que acumula, mas arregala os olhos para mostrar que são muitos: “venho desde solteira!” Diz que a desconfiança às opiniões femininas é coisa de sempre. Mas que vem mudando conforme aumenta a quantidade de “mulheres especialistas” em futebol, Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto àquelas que trabalham na imprensa. A percepção de Almerinda aparece respaldada num interessante trabalho acadêmico sobre mulheres e futebol. concentra transmissões de jogos e é possível perceber o crescimento numérico, na última década, daquelas que trabalham entrevistando jogadores nos gramados, ou da sua presença Lara Tejada Stahlberg1, no disserta- em “mesas-redondas”, inclusive com ção de mestrado “Mulheres em Cam- quadros ou programas inteiros aprepo: Novas reflexões acerca do sentados por mulheres. feminino no futebol”, fala de diferentes lugares ocupados pelas mulheres Mas tudo isso pode ser matizado dentro e fora dos gramados, inclusive para dar a real dimensão dos desafios. como jornalistas. A pesquisadora da Num domingo pela manhã, no tradiciUniversidade Federal de São Carlos, onal Esporte Espetacular da TV GloSão Paulo, explica – baseando-se no bo, maior canal de TV aberta do país, o livro de Mauricio Stycer (2009) sobre “Bolsa Redonda” é o espaço das muo jornal Lance!, um dos períodicos es- lheres. O quadro quinzenal batizado portivos mais respeitados do país e com o nome de um produto identificujas reportagens são, majoritaria- cado como feminino reúne – anunciamente sobre futebol - que as mulheres do mesmo na apresentação do eram 30% a 40% das profissionais nas programa na internet – quatro muredações brasileiras, número que na lheres com níveis diferentes de codécada de 1990 caia para 10% no caso nhecimento sobre o esporte. Não há da imprensa esportiva. Conclui a au- registros na TV brasileira de um protora: “As razões para tão pequenas grama com homens que não sabem do porcentagens passariam por motivos que falam ganhando um precioso esque não são exatamente novidades: paço! Na página do programa na inmulheres sofrem, sim, preconceitos, ternet não faltam comentários do tipo sobre sua afinidade ou capacidade de “como mulher me senti envergonhada compreender especialmente o fute- com essa proposta de mesa redonda! bol”. A antropóloga comenta ainda Nada contra explicar o que é impedique elas eram e são muitas vezes de- mento, último homem - termos do signadas a cobrir divisões de base ou futebol - mas colocar mulheres espeesportes com apelo menos masculino cificamente pra fazer isso corrobora a que o futebol. De lá pra cá, apesar de ideia de que mulher não entende de não apresentar outras estatísticas, a futebol!” e, da parte dos homens, “a autora afirma que as porcentagens Fernanda Gentil é a mais gostosa de estão mudando. E diz o mesmo a per- todas! Que delícia de mulher!” ou cepção de quem “zapeia” canais aos “Mulher não sabe de nada de futebol, domingos, quando a TV brasileira mais FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 93 tivesse lavando uma loça ou passando uma roupa ganhava mais” (sic). 94 Não faltam na miscelânea da internet, onde é possível também se esconder no anonimado, comentários sobre a incapacidade de mulheres falarem sobre futebol e sobre como elas – especialmente as mais atraentes – só estão onde estão por oferecerem favores sexuais a alguém. No trabalho de Lara Stahlberg, algumas jornalistas entrevistadas comentam que se uma mulher garante um “furo” de reportagem, imediatamente depois se multiplicam comentários de que o resultado de seu trabalho é, na verdade, fruto de relações ‘promíscuas’ com homens do mundo do futebol. Nota 1 Assista em http://www.bdtd.ufscar.br/ht- docs/tedeSimplificado//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5946 No país que vê jogar apenas no replay a maior jogadora de futebol de todos os tempos, Marta, premiada mais vezes que qualquer homem como melhor do mundo pela FIFA, é possível que a mudança de comportamento ainda precise de muito tempo para acontecer, dentro e fora das quatro linhas. Mas a presença e insistência delas vai abrindo espaço e evitando impedimentos. Pouco importa se o tema da mesa-redonda é futebol. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto "NÓS VALEMOS MAIS!" Júlio Delmanto – Interessante, a gente chama o pessoal de jornal e nunca vem ninguém, não. Agora vêm porque a senhora veio – reclamava um morador da comunidade Coque, região central de Recife, com o dedo apontado para a caravana de jornalistas, ativistas e vizinhos seus que sofria sob o sol da tarde enquanto verificava os impactos da Copa do Mundo nesta região. – Não tem problema, é por isso que estou aqui – respondeu Raquel Rolnik, relatora da ONU para o direito à moradia, responsável por atrair os repórteres da imprensa local. – Desculpa, mas eu tive que falar, gente! – finalizou o rapaz, que na sequência enfiou-se em uma das vielas que ladeiam um mal cheiroso córrego, este por sua vez “arrodeado”, como dizem os recifenses, pelos escombros das casas já destruídas pelo governo – que em troca do compromisso de saída prometeu indenizações aos que vivem há décadas nesta região. “Nós valemos mais”. Além de estar nas camisetas de alguns dos ativistas do Comitê Popular da Copa de Pernambuco, acompanhada de uma hashtag, esta frase pode ser vista pichada em paredes tanto da comunidade do Coque quanto no Loteamento São Francisco, município de Camaragibe, onde as remoções de moradores também acompanham obras relacionadas à Copa do Mundo. Ambos locais foram visitados por Raquel Rolnik em uma agenda de trabalho realizada na cidade do Recife nos dias 29 e 30 de novembro. As atividades culminaram com um debate público ocorrido na Faculdade de Direito, organizado pelo Comitê e apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 95 96 No caso do Coque, são cerca de 60 famílias ameaçadas por obras de um terminal viário que será construído na região, mesmo com a área sendo definida como ZEIS – Zona Especial de Interesse Social, o que deveria representar o reconhecimento do direito de as pessoas permanecerem ali e determinar que um projeto de urbanização fosse implementado. Já em Camaragibe, as ameaças se dão por conta da Arena Pernambuco, que receberá jogos da Copa e pode ser avistada de algumas regiões do bairro. Das 126 famílias ameaçadas, 105 já deixaram o local, sendo que muitas delas sequer receberam as (baixas) indenizações prometidas. As que ainda resistem, o fazem sob constante ameaça de remoção violenta, sem que haja sinalização de disposição de negociação por parte do poder público. Em ambos os locais, a revolta com a forma como as “negociações” estão sendo implementadas e com os ínfimos valores oferecidos pelas moradias é bastante forte. “Eles infringem o direito da gente na cara da gente, não O seminário Entre 29 de novembro e 1º de dezembro de 2013, o Comitê Popular da Copa de Recife, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, organizou o seminário “Legados e relegados da Copa do Mundo: Quando o direito à cidade é violado”, na capital de Pernambuco. Com participação de diversos ativistas, intelectuais e membros de comitês sediados no Nordeste, o evento pautou-se pela troca de experiências entre os que atuam na resistência aos impactos do Mundial e pela busca de atuações conjuntas, tendo também uma etapa pública, constituída de um debate com Raquel Rolnik, relatora das Nações Unidas pelo direito à moradia. Com uma metodologia que privilegiou o diálogo e a troca de informações, o evento propiciou intercâmbio entre os distintos Comitês Popular, com o cearense. Segundo seus ativistas, a principal expressão dos impactos do campeonato mundial de futebol na capital Fortaleza é a construção de um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que impacta dezenas de famílias, de 22 comunidades, em seus 12,7km de extensão em via dupla. Como mostrou reportagem do portal de notícias G1, 75% das obras de mobilidade inicialmente divulgadas como conectadas à Copa do Mundo estavam atrasadas no início de 2014 ou foram canceladas. No caso do VLT também há atrasos e muita desinformação, o que não impede o governo de manter uma meta de Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto pedem nem com licença pra entrar, e a gente é que está errado? Na época de eleição chegam aqui pedindo votos”, questionava uma das moradoras numa das inúmeras rodinhas formadas em torno a Rolnik durante o dia. “A gente se sente injustiçado, na próxima eleição vamos colocar um portão pra esses políticos não entrarem”, continuou antes de ser interrompida pelo senhor a seu lado, de boné e bigode, que prosseguia com novas reclamações e explicações, num processo que durou o dia todo, como se as vidas daquelas pessoas fossem, por ação esta- tal, organizadas dentro de uma só narrativa de violência e angústia. “É expulsão mesmo, querem construir à força”, apontava. Para os microfones e moradores, Rolnik incansavelmente explicava que “o parâmetro do direito à moradia é: está saindo daí para melhorar ou para piorar? A questão não é necessariamente o valor da indenização, se é 10 mil, 20 mil, não dá pra dizer sem saber. Mas é que com o valor oferecido você não tem outra alternativa senão piorar, e assim não pode ser”. “Cinco mil 2185 desapropriações para sua construção. Desde 2011 as comunidades têm se articulado num processo de resistência que inclui o Comitê Popular da cidade, que se preocupa também com a questão da exploração sexual e das baixas indenizações para os que não puderem evitar seu desalojo. A questão da exploração sexual também é importante para os membros do comitê baiano, assim como a do tráfico de pessoas. Além disso, denunciam que muitos comerciantes foram prejudicados com a reconstrução do estádio da Fonte Nova, pois nas imediações do novo projeto se buscará impedir seu trabalho, sobretudo durante o Mundial. Já no caso do Comitê Popular do Rio Grande do Norte, a questão principal também é enfrentar as desapropriações forçadas, num processo que gerou a criação da Associação Potiguar dos Atingidos pelas obras da Copa. Formado no final de 2010, o Comitê de Pernambuco chegou a participar de uma auditoria junto com a ouvidoria da Presidência da República, articulação que gerou como produto um dossiê. Também foram realizadas manifestações públicas e seminários, após os quais avalia-se que houve avanços e conquistas, como a redução das desapropriações em Camaragibe – município vizinho a Recife – e o impedimento de desapropriações no bairro central do Coque. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 97 98 seiscentos e sessenta e cinco reais me ofereceram”, repetia e repetia a moradora, entre incrédula e indignada. “O Coque é o quilombo do pobre, a gente não quer sair daqui!”, continuou, disputando a palavra com outros vizinhos seus que cercavam a relatora da ONU. “Hoje a tarde mesmo eu disse ‘Glória a Deus, vem um povo bom por aí’, que bom que vocês chegaram”, dizia Dona Maria, com o rosto suado e sentada em uma cadeira no meio de sua cozinha, nos fundos do Coque, uma das partes mais precárias da comunidade. Durante a conversa, as rugas em sua pele escura quase ficavam imperceptíveis diante de sua energia: “Estou esperando os homens virem aqui fazer alguma coisa por mim, eu não tenho pra onde ir, tenho quatro netos”, declarava, relatando pagar cem reais por mês de aluguel por seu barraco cheio de gaiolas de pássaros. “A gente não pode mais falar sobre derrubar, porque derrubar está todo mundo derrubando já”, explicava uma senhora, moradora do Loteamento São Francisco. “Agora eu vou lutar, porque eu só vou sair com o meu pai, de 81 anos, cadeirante porque teve um AVC de tanto nervoso, se a gente tiver o dinheiro pra pagar outra casa. Meu pai é digno e mora aqui há 50 anos”, relatava. “A pessoa sair do que é seu, do que lutou pra ter, de graça? Isso não tem graça nenhuma”, emendou uma amiga sua, braços cruzados e tom enervado. Com uma camisa de campanha política, uma cruz de madeira no peito e cabelo cortado com franja, estilo indígena, uma senhora chamou Rolnik para o portão de sua casa. “Para viver não há limites”, dizia a camiseta de sua amiga, que afirmava ser avó de duas crianças, uma delas com problemas mentais. “Estou aqui me acabando por causa desses problemas, é um desespero. Vamos ficar no meio da rua?”, questionava essa, enquanto aquela resumia: “Essa Copa é do Satanás, é do Diabo, não é de Deus, não. Isso tá destruindo a vida de todo mundo”. Em comum entre as duas, a mesma promessa: “Daqui eu não saio, não. Só se derem um tiro no meu pé”. Como ninguém duvida que sejam capazes disso, o clima seguia tenso com o por do sol e a saída da comitiva, que seguiu para o centro da cidade, onde aconteceu o debate público. A relatora, barrada Inicialmente previsto para ser realizado em um auditório da Câmara Municipal do Recife, o evento foi transferido de última hora para uma faculdade por conta do veto do presidente da Câmara, que disse temer que a discussão fosse um pretexto para uma invasão do espaço por movimentos sociais e manifestantes. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto Mesmo com a mudança, o abafado e tradicional auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) estava lotado, mais um índice da grande repercussão que a visita de Rolnik causou – a mídia local também teve considerável interesse por suas declarações e denúncias. Além da urbanista, André Souza, do Comitê Popular do Ceará, também compôs a mesa de debates. atenção midiática e do capital internacional, os megaeventos estimulam também sentimentos nacionalistas e de engajamento da população, a relatora da ONU apontou que eles criam espaço para o que se tem denominado de “estado de exceção”, ou seja, em nome de sua realização “é possível fazer coisas que seriam inimagináveis em outras condições, e isso a gente pode ver aqui e em outros países”. Após destacar que, pela primeira vez, em seis anos de mandato como relatora do direito à moradia adequada, havia sido barrada em uma Câmara municipal, Raquel Rolnik lembrou como os megaeventos esportivos constituem espaços “para desconstruir direitos”. “Recife foi um dos nascedouros da luta pelo reconhecimento do direito à moradia, e por isso é muito chocante ver isso ser desconstruído”, apontou, lembrando que “a ideia de direito à moradia nada tem a ver com a ideia de que moradia é mercadoria, um bem, um produto que você compra – ela é um direito humano, um lugar a partir do qual as pessoas possam ter acesso a condições para poder atender ao conjunto de seus direitos”. “O megaevento abre essa possibilidade, e a grande questão é que a partir daí você escancara uma porta e vai passando tudo”, prosseguiu, analisando a existência de processos que vão “capturando o espaço e o território, única e exclusivamente como campo de valorização do investimento financeiro, abstrato, internacional e globalizado”. “Com um pequeno detalhe: no território tem gente morando”, criticou, antes de finalizar lembrando a importância da resistência e da luta política para frear os impactos desses ataques: “Acho que a gente tem que ter esperança, tem que acreditar que a defesa dos direitos humanos e urbanos é ainda fundamental e vale a pena”, concluiu, sob fortes aplausos dos presentes. Sendo assim, na opinião de Rolnik o direito à moradia “é uma espécie de portal, de porta de entrada para o direito à educação, à saúde, expressão cultural, ao acesso ao trabalho”. Ressaltando que, além de atraírem FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 99 100 Raquel Rolnik em Camaragibe, novembro de 2013. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto A EXPLOSÃO DE UM MODELO Raquel Rolnik Entrevista: Júlio Delmanto Em 2007, quando a escolha do Brasil para sede da Copa de 2014 foi divulgada, houve grandes celebrações na mídia e até nas ruas, com shows e festas. Você esperava que, meses antes da abertura dos jogos, estivesse sendo questionada até a própria realização do evento, sem falar no baixo apoio da população? perceber a extensão da questão quando virei relatora pro direito à moradia adequada, meu mandato começou em maio de 2008. Como relatores nós recebemos muitas denúncias de violações do direito à moradia, e justamente naquele momento estavam chegando denúncias da África do Sul, em função da preparação para a Copa. Tinha uma comunidade grande que tinha sofrido remoções, estavam sendo removidos para containers de metal, que o pessoal chamava de “micro-ondas”, imagine as condições que aquilo tinha, então eu comecei a acompanhar a questão e o tema e recebi também várias denúncias de Beijing. Na verdade, naquele momento eu estava bem pouco ligada nesse assunto. Eu estava acompanhando muito mais à distância, eu havia saído do governo no início de 2007, fiquei no Ministério das Cidades até final de 2006. Eu saí justamente porque estava discordando da forma como estavam se encaminhando as decisões em relação à política urbana – a questão da Copa Até que recebi um grande dossiê, de e das Olimpíadas não foi a razão da uma entidade internacional de defesa minha saída, mas eu já não estava do direito à moradia, em que recupeconcordando. Eu comecei a acomparavam coisas que vinham desde nhar e comecei a me envolver e FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 101 102 Atenas. A partir de ali eu decidi dedicar um relatório temático anual – eu tenho que fazer dois como relatora, pra apresentar pro conselho de direitos humanos da ONU – sobre o tema megaeventos e direito à moradia. Aí eu comecei a acompanhar e para mim esse foi o sinal de alerta de que essa celebração da recepção da Copa e da Olimpíada como grandes eventos tinha problemas e tinha um potencial de ser encaminhada de uma forma com efeitos perversos. A partir dali começamos a acompanhar, fazer visitas e a sociedade civil também começou a se estruturar, com comitês populares, e etc. Já nesse momento eu pensei que essa questão, num momento ou outro, seria contestada, mas se a gente olhar ela só ganhou envergadura com as manifestações de junho de 2013, até então embora os comitês tenham crescido, a atenção pra pauta ainda era muito limitada. Desde o início você está atenta a outras experiências de megaeventos: África do Sul, Grécia, Índia, Inglaterra. O que tem de comparável com o que estamos vivendo no Brasil? Acho que tem dois grandes grupos de países, pra começar a conversa. Minha fala é do ponto de vista da moradia, é claro, apesar de haver outras violações de direitos humanos e de existirem outras questões do ponto de vista urbanístico mais geral. O que é comum é que crescentemente os megaeventos têm sido associados a grandes operações comerciais de venda de produtos, que tanto podem ser de produtos dos patrocinadores, que ganham essa enorme visibilidade global, e com a falácia da história do legado, que marca muito a experiência dos jogos sobretudo a partir de Barcelona, a ideia da transformação urbanística das cidades associada aos jogos também passa a ser muito importante. A ideia da promoção de grandes projetos urbanísticos em geral vendidos na esfera global para o capital financeiro internacional, que justamente nesse período crescentemente opera no sentido da financeirização do mercado imobiliário e da globalização do mercado imobiliário, os jogos acabaram sendo um grande palco pra que esses projetos vendidos no mundo financeiro pudessem se estabelecer. Isso é um elemento digamos comum, ele vai ocorrer também na Inglaterra, em outros países, o que há de particular no caso da Índia, da África do Sul e do Brasil é que um processo de transformação urbanística desse tipo envolve uma urbanidade incompleta e a existência de um grande número de assentamentos humanos, populares, semilegais, informais, legais, ambíguos, que apresentam certa ambiguidade em relação a sua pertinência na cidade, não são plenamente reconhecidos. São as favelas, os loteamentos populares. E esse tem sido o Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto palco fundamental, tem sido o local onde esses projetos se instalam, destituindo essas pessoas do acesso a esse lugar e removendo sem respeitar o direito à moradia adequada. E por que você fala em “falácia do legado”? Isso vale para o caso do Brasil, onde era meio claro que não haveria legado algum além dos estádios, ou em geral, com sua utilização sendo mais uma justificativa pra realização dos Então, embora em Barcelona, em eventos do que uma possibilidade conLondres, você tenha operações de creta? gentrificação e de enobrecimento que afetam o direito à moradia dos mais O legado é uma grande operação pobres, claro, mas essas daqui têm a comunicacional, simbólica e ideológiespecificidade da existência da inse- ca. Do mesmo modo que a associação gurança de posse desses grupos, isso é das marcas com o esporte no mundo uma diferença marcante. Não por empresarial envolve operações simacaso os projetos vão exatamente em bólicas e ideológicas, na questão do cima delas, porque não reconhecendo legado também, sua ideia é uma consseus direitos não são pagas as desa- trução que justifica a frente de expanpropriações como deveriam ser. são imobiliária que ela representa. E mais que isso, o Carlos Vainer aponta É isso que você chama de “dualidade isso com muita clareza, ela é o que da condição urbana”? permite a ideia da exceção, a construExatamente, você tem um pedaço ção da exceção em relação às regras e da cidade produzido, digamos, plena- à legalidade existente. Então você tem mente no interior da regulação urba- a exceção em nome do legado, ele vai nística e jurídica, e uma outra parte da justificar todas as desconstituições de cidade, em muitos casos muito maior direitos que isso promove. do que essa, tem elementos de regulação e de legalidade conjugados com elementos que vão por fora, com outras lógicas, etc. E majoritariamente são habitadas por população de baixa renda. A dualidade é que nesses locais a cidadania e os direitos humanos são permanentemente negociados, eles não são assumidos e reconhecidos plenamente. Você mencionou os grandes protestos de junho do ano passado. Eles são fruto principalmente da revolta contra os gastos da Copa ou se conjugam com outras questões urbanas? A Copa é apenas uma das questões, seguramente. A explosão de junho, na minha opinião, é a explosão de um modelo de negação do direito à cidade para a maior parte da população. Ela é fruto também, me parece, dos anos recentes em que ocorre um processo FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 103 104 de inclusão muito significativo de uma parcela historicamente excluída, mas uma exclusão via consumo. A esfera pública, a dimensão pública das cidades e seus serviços, historicamente péssimos, pobres para os pobres, isso não mudou um milímetro. O modelo de urbanização e de desenvolvimento continuou voltado pra favorecer quem ele sempre favoreceu. A explosão das ruas me parece que revela que explode esse modelo, e exige uma outra coisa, então ela é muito mais ampla que a questão da Copa. Sim, é uma nova geração de movimentos sociais, não há a menor dúvida. Os movimentos que emergiram ainda no final dos anos 1970, na luta contra a ditadura, pela afirmação do direito à cidade e pela reforma urbana, que foram muito intensos e que cresceram de patamar nos anos 1980 e se constituíram como uma frente na Constituinte, conquistando uma institucionalidade, eles tinham uma enorme identidade do ponto de vista político com os novos partidos que entraram no poder e estabeleceram suas coalizões. À medida que isso foi crescendo os limites apareceram E nesse contexto a questão urbana é muito claramente, a geração que vai recolocada na cena política, agora por pra rua em junho de 2013 não tinha movimentos muito diferentes do que nem nascido nos anos 1980! foram os que discutiam o tema nos anos 1980. Desinformação, ameaças, pressões e repressões Em 4 de março de 2013, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), rede que reúne comitês formados nas cidades que receberão jogos do Mundial, foi recebida oficialmente pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Após apresentação exatamente de Raquel Rolnik, que divulgou um de seus relatórios sobre os impactos do megaevento sobre a moradia, Giselle Tanaka ocupou a tribuna representando a articulação. Ressaltando que “a realização destes eventos esportivos no Brasil poderia ter criado a possibilidade de viabilizar significativos investimentos sociais e na infraestrutura”, ela ponderou que os grandes investimentos mobilizados para estes megaeventos aprofundam a desigualdade social e as violações de direitos no país: “Isto parece ser um tema comum relacionado aos megaeventos e megaprojetos: servir ao lucro de uns e causar prejuízo a milhões”, concluiu. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto É uma geração nascida nos anos 1990, ela já nasceu em outro contexto, outro momento, ela não tem compromisso com aquela história e ela já nasce a partir dessa inclusão meia boca, que é a inclusão que foi conquistada nos anos 1990 – inclusão meia boca: universalizou o ensino mas o ensino é de quinta categoria, tem subsídios pra habitação mas essa habitação, como o Minha casa, Minha vida, também é de quinta, repete os velhos modelos de exclusão territorial. Então essa geração é nova, ela começa de outro patamar. Parcelas muito pequenas dos antigos movimentos de moradia tiveram a sensibilidade de entender que há uma nova geração e a capacidade de se articular, a maioria inclusive ficou numa posição resistente, não conseguiram romper a inclusão seletiva na qual eles também estão comprometidos. Você acha que isso coloca a questão urbana em outro patamar de luta e disputa? Há um elemento muito importante no Brasil na questão urbana que é a classe média, aqui ela é um ator muito importante. E nos anos 1970, foi em nome da classe que média que se montou esse modelo de desenvolvimento excludente. Só que aconteceram duas coisas com a classe média: em primeiro lugar, ela ampliou-se e, em segundo, ela rachou do ponto de vista de ideológico. Uma parte da classe média, que sustenta o modelo excludente baseado no automóvel, na circulação pra poucos e etc., também não quer mais isso como modo de Em sua fala, Tanaka apresentou a estimativa da Ancop, que naquele momento avaliava em 170 mil o número de pessoas afetadas por remoções relacionadas à Copa e aos Jogos Olímpicos de 2016, o que representaria um “êxodo forçado” no qual “quase 1 em cada 1.000 brasileiros estão ameaçados de perder suas moradias por conta de jogos que não durarão sequer um mês cada”. No primeiro semestre de 2013, a Ancop divulgou um dossiê intitulado “Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil”, no qual esta estimativa de 170 mil remoções é considerada “conservadora”. A depender das fontes, o número pode chegar a 200 ou 250 mil pessoas atingidas, num país que tem 15 milhões de domicílios urbanos destituídos de condições mínimas de habitabilidade e um déficit habitacional de cerca de 5 milhões e 500 mil moradias – os números constam de dados oficiais divulgados em 2008 pelo Ministério das Cidades. De acordo com essa projeção, aproximadamente 11% dos domicílios permanentes nas capitais nordestinas e de 6 a 8% nas capitais do Sul e do FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 105 Sudeste encontram-se em más condições, sendo que em 71% dos casos isso se deve à carência de infraestrutura. 106 Adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1966 e subscrito pelo Brasil em 1992, o Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece em seu artigo 11 o direito à moradia adequada, que também é salvaguardado pela Constituição Federal brasileira e pelo Estatuto da Cidade. As leis não têm impedido, no entanto, que no processo de preparação para os megaeventos as ações governamentais tenham não só agido a contento sobre esse cenário como removendo ainda mais famílias , sobretudo, nas palavras do dossiê, provenientes “de comunidades localizadas em regiões que, ao longo do tempo, tiveram enormes valorizações e passaram a ser objeto da cobiça dos que fazem da valorização imobiliária a fonte de seus fabulosos lucros”. Segundo o estudo da Ancop, “os motivos alegados para a remoção forçada são, evidentemente, outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em questão de riscos ambientais e, mesmo, a melhoria de suas condições de vida... mesmo que a sua revelia e contra sua vontade. Como pressuposto mais geral, a ideia de que os pobres, coitados, não sabem o que é melhor para eles”. As estratégias utilizadas seriam parecidas em todo território nacional, iniciando-se geralmente com a “produção sistemática da desinformação, que se alimenta de notícias truncadas ou falsas, a que se somam propaganda enganosa e boatos”. Em seguida, viriam as ameaças e, caso haja resistência, mesmo que desorganizada, advém o recrudescimento da pressão política e psicológica. “Ato final: a retirada dos serviços públicos e a remoção violenta”, conclui o dossiê. “Em todas as fases há uma variada combinação de violações aos direitos humanos: direito à moradia e direito à informação nestas situações caminham juntos, como juntas caminhas as violações que se concretizam. Desta forma, este relatório optou por apresentar os casos segundo as categorias ‘desinformação e rumores’, ‘ameaças de remoção’ e ‘remoções realizadas ou em andamento’, lembrando que em áreas extensas de um mesmo projeto, diferentes subáreas estão sujeitas a diferentes estratégias que, combinadamente, aumentam o terror e a pressão”, resume a Ancop. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto vida, também rejeita isso. Então movimentos como o do Parque Augusta, por exemplo, que é um movimento por espaço público, é algo que hoje discute direito à cidade. E está vindo de outra matriz, que não é a da precariedade, da favela, que luta por saneamento, mas está aí, faz parte também do caldo das manifestações de junho, assim como o movimento dos cicloativistas, que em parte vem das classes médias. Está falando de outro modo vida, isso também amplia não só os setores sociais mas até as pautas do direito à cidade, isso é muito importante do ponto de vista político, é uma nova configuração. Mas tenho certeza absoluta que as periferias, a juventude das periferias esteve presente, é um elemento fundamental nas manifestações de junho, porque ela já vinha há anos se estruturando com coletivos culturais, de reflexão, com grupos de estudo, isso já estava acontecendo muito forte, como também o Movimento Passe Livre, que eu acompanho desde 2005, é um negócio que tem quase dez anos, não apareceu hoje. E nesse período que você tem acompanhado diversas denúncias e resistências, o que pode ser destacado como conquista dos movimentos e dos atingidos pela Copa? Eu acho que teve várias conquistas, em várias cidades brasileiras. Eu acompanhei bastante Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Porto Alegre, Curitiba, Recife, e em várias situações houve recuos do ponto de vista dos projetos, comunidades que iam ser atingidas deixaram de ser porque os projetos mudaram, em segundo lugar a forma de se fazer remoção, que continua a não ser de acordo com o que diz o direito à moradia adequada, também mudou muito, teve uma evolução. No começo, as empreiteiras saíam derrubando casa com as pessoas dentro, isso não acontece mais. As compensações aumentaram, hoje o que está sendo oferecido pra Vila do Autódromo, no Rio, sair dali é um lugar ali perto, com uma condição melhor, isso tudo foi fruto das mobilizações, dos próprios atingidos e da sua rede de apoio. Hoje tem uma parcela das pessoas que diz que realmente é absurdo mas agora “já era”, já está perdido. O que você acha que ainda está em disputa e o que não tem mais jeito? Não, não “já era” de jeito nenhum. A Vila do Autódromo está aí, não saiu até agora e pode não sair, a resistência continua. Acho que em relação especificamente à Copa, como ela já vai ser agora em junho, nós temos uma grande questão que são as “Fan Fests”, as áreas públicas que vão ser tomadas pela FIFA e nas quais as pessoas não vão poder trabalhar, as pessoas não vão poder se apropriar livremente, acho que isso será um grande embate, FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 107 108 é e será. Fora a questão da prostituição, fora a questão dos moradores de rua que devem sofrer repressão e ser tirados à força da rua, tem várias questões que ainda são muito relevantes e importantes e precisam ser chamadas atenção. Os próximos mundiais de futebol serão no Qatar e na Rússia, então provavelmente a relação entre megaeventos e violação de direitos irá permanecer. Sim, eu espero que a próxima relatora siga acompanhando esse tema. Acredito também que a partir da experiência do Brasil, das relações que e pontes que se estabeleceram, isso deva seguir e incluir mais e mais gente nesse debate, que é a ponta do iceberg pra gente discutir modelo de cidade, os projetos urbanísticos e os megaprojetos, independente dos próprios megaeventos. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto GOL DE LETRAS 109 Luiz Ruffato Míope, baixinho e esquelético, recusavam-se a me aproveitar, ainda que nas peladas no campinho calvo do bairro, sem alambrado, arquibancada ou vestiário, repasto de um cavalo magro que a ninguém pertencia. Nem por isso refreou minha paixão pelo futebol. Permanecia nas imediações, e sempre que alguém faltava, se machucava ou se ausentava por “motivo de força-maior” (a mãe convocava o jogador no meio da partida para fazer um mandado, por exemplo), eu entrava no gramado, pronto a distribuir caneladas e cotoveladas nas sombras que adivinhasse ao meu lado. Mas, se a bola a mim não se entregava, paciência, eu dedicava a ela os melhores recônditos da minha memória. Declinava a escalação dos times do campeonato em curso e de todos os precedentes e, sem esforço, lembrava o placar de um jogo ocorrido quinze, vinte anos atrás - a pedidos, podia até mesmo narrar os gols, histrionicamente, com a voz e os tiques de um lo- cutor famoso qualquer, à escolha da platéia. De lambujem, conhecia de cor várias poesias lidas na biblioteca da escola, o que me avalizava junto às meninas, e escrevia extensas e derramadas cartas de amor, o que garantia admiração e dependência dos colegas. Por isso, me chamavam de intelectual. Eu não sabia, ainda, mas todo este talento predestinava-me a dias de maior glória! Treze anos completos eu tinha, quando, junto com a turma, aventureime nas fraldas do estádio pela primeira vez. Se fascinaram-me os urros uníssonos provindos das arquibancadas, o Ah! de um chute torto, o Ih! de uma jogada perigosa, o Ôh! de uma bola na trave, o Uh! de um quase gol, espantou-me nosso silêncio avassalador, quando, no segundo tempo, vencendo por três a zero, a torcida adversária cadenciava os afrontosos olés com retumbantes cantos, orquestrados por bumbos, tambores e FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 110 cornetas. Desconsolados, cruzamos ruas e avenidas em ônibus lotados e nos recolhemos abatidos em nossas casinhas baixas, de quintais minúsculos. A semana arrastou-se, nublada. Nos corredores da escola, até mesmo as gargalhadas eram aflitas. Se queremos ajudar nosso time, concluímos, devemos arranjar algo que enlace os corações alquebrados. E outra coisa não nos tirava o sono. Então, durante uma aula de Língua Portuguesa, sussurrei, sem calcular, que, quem sabe, talvez eu pudesse rabiscar umas canções de incentivo, umas palavras de ordem, o que vocês acham? O alvoroço no fundão contagiou a classe, e a professora, inábil para reprimir a excitação dos alunos, deixou a sala e voltou com a diretora, que, além de um interminável sermão, cortou-nos o recreio pelo resto do mês. Nada, porém, impediu que a novidade se disseminasse. Todas as manhãs, cercavam-me no portão de entrada, indagando, E aí? Como estão os trabalhos? Misterioso, respondia, importante, Está indo, colhendo frescos suspiros e buliçosos olhares das meninas. Mentia, entretanto: as noites dedicava a capturar as palavras, mas elas, zombeteiras, ocultavam-se nos desvãos da porta, debaixo da cama, entre as camisas carinhosamente dobradas no guarda-roupa, penduravam-se picumãs no teto, escorriam como o mofo nas paredes. Ao acordar, folhas em branco sobre o criado-mu- do. Pensava desistir, a empreitada acima da minha capacidade, quando, numa madrugada tormentosa, despertado pela claridade de um relâmpago, o trovão estremeceu meu corpo, e, assustado, acendi a luz, surpreendendo um ninho atordoado de palavras, rapidamente transformadas em ritmo e rima por meus dedos ávidos. Os mais diligentes alunos já se depararam comigo recostado vitorioso ao portão de entrada da escola, tanta ansiedade. O burburinho se esparramou e, então, engrossado o ajuntamento, anunciei os versos que comporiam nossa canção de estímulo, nossas palavras de ordem. Descontrolada, a turba me tomou nos braços e, em coro, desfilou pelos corredores e pelo pátio, bagunça contemporizada pela diretora, ela mesma, imagino, inconfessada torcedora do nosso time. O resto da semana ensaiamos os cantos, que no domingo inundaram as arquibancadas engalanadas do estádio. A minha vida tomou outros rumos, já ninguém reconhece, por detrás da minha barba espessa, o intelectual que fui. Mas ainda hoje ecoa, nas tardes quentes de domingo, aquele dia da minha maior felicidade: palavras nascidas dentro de mim, tornadas vozes emocionadas de centenas, milhares de desconhecidos. Não, isso não esquecerei jamais. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 111 Brasil e Japão, 3x0. Copa das Confederações, 2013. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 112 AUTORES E AUTORAS Patrick Bond é professor para Política do Desenvolvimento na Universidade KwaZulu-Natal em Durban (África do Sul), onde dirige o Centro de Estudos da Sociedade Civil, pesquisando sobre questões de política econômica, meio ambiente, sociedade e geopolítica. Júlio Delmanto é jornalista, doutorando em História Social e trabalhou no escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo. Gerhard Dilger trabalhou como correspondente para mídia de língua alemã em São Paulo e Porto Alegre de 1999 a 2012. Desde 2013 dirige o escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo. Espera que surja um campeão sul-americano na Copa de 2014 e torce pelo Inter. Lívia Duarte é jornalista. Está muito longe de ser fanática por futebol. Sabe o suficiente para não ser humilhada em mesas de bar. Torce por uma vitória do Fluminense desde que percebeu a fascinação do avô pelas narrações no rádio de pilha. Thomas Fatheuer viveu e trabalhou no Brasil de 1992 a 2010, onde dirigiu o escritório da Fundação Heinrich Böll, no Rio de Janeiro. Desde o seu doutorado publicado em 1985, “Gols contra, sociologia e futebol”, escreve sobre o assunto, com especial atenção para o futebol brasileiro. Na Alemanha, torce pelo Werder Bremen e no Brasil, pelo Flamengo. Vladimir Fomenko, tradutor, é vice-dNiretor do escritório da Fundação Rosa Luxemburg em Moscou. Eduardo Galeano é escritor (As veias abertas da América Latina, Futebol: ao sol e à sombra, e muitos mais), torcedor, internacionalista e uruguayo. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto 113 Juca Kfouri é corinthiano e o crítico mais famoso da FIFA no Brasil. Trabalha quase 24 horas por dia, escrevendo no seu Blog do Juca, no jornal Folha de São Paulo, comentando no rádio e no canal de TV ESPN Brasil, bem como escrevendo dúzias de prefácios e posfácios de livros no mundo inteiro. Martin Ling, jornalista e economista, é fã do Sankt Pauli, do Barça e da Argentina. Vive em Berlim, onde escreve como editor internacional no diário socialista neues deutschland, bem como na revista mensal Lateinamerika-Nachrichten. Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e trabalhou como relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, de 2010 a 2014. Luiz Ruffato, escritor e flamenguista, mora em São Paulo. Aqui, Gol de letras é publicado pela primeira vez. Entre muitos romances e antologias, organizou Entre as quatro linhas - Contos sobre futebol, São Paulo: Editora DSOP, 2014. Andreas Rüttenauer, torcedor do 1860 de Munique, escreve desde 2001 para o diário berlinense taz, die tageszeitung. Após 2006, foi editor de esportes. Em 2012, candidatou-se ao cargo de presidente da Confederação Alemã de Futebol. Desde abril de 2014 é co-diretor do taz. Christian Russau, escritor, tradutor e jornalista, vive em Berlim. Coopera com a rede de solidariedade para o Brasil KoBra, com o centro de pesquisa e documentação Chile-Lateinamerika e a agência noticiosa LateinamerikaNachrichten. Seu clube é o TeBe, que joga um futebol autêntico na Sexta Divisão. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 114 LEIA MAIS Referências bibliográficas Augustino, Gilberto: Futebol e Ditadura Militar no Brasil, in: Revista Nossa História 14/2004. Borges, Luiz: Não mais vira-latas... Um homen genial! O Brasil como país do futebol, in: Esporte e Sociedade, 8/2008, S. 1–15. Castro, Ruy: Estrela Solitária. Um brasileiro chamado Garrincha, São Paulo 1995. DaMatta, Roberto: Futebol – ópio do povo x drama de justiça social, in: Novos Estudos Cebrap, 4/1982, S. 54–60. Fernandez, Renato Lanna: Fluminense Foot-Ball Club. A construção de uma identidade clubistica no futebol carioca (1902–1933), Rio de Janeiro 2010. Guterman, Marcos: O futebol explica o Brasil. O caso da copa de 70, São Paulo 2006. Máximo, João: João Saldanha, Rio de Janeiro 1966. Omena de Melo, Eric Silva: Percepcções urbanas em jogo. Os impactos da Copa do Mundo de 1950 à luz da imprensa carioca, Rio de Janeiro 2011. Pereira, Leonardo Affonso De Miranda: Footballmania. Uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2000. Rodrigues, Nelson: A sombra das chuteiras mortais. Crônicas do Futebol, São Paulo 1993. Rodrigues Filho, Mario: O negro no foot-ball brasileiro, Rio de Janeiro 1947. Sevcenko, Nicolau: Orfeu extático na metrópole, São Paulo 1992. Ventura, Roberto: Estilo Tropical, São Paulo 1991. Wisnik, José: Veneno Remédio – O futebol e o Brasil, São Paulo 2008. Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto CRÉDITOS DAS IMAGENS Anja Kessler: capa, p. 38, 62 e 72. Gerhard Dilger: p. 8, 34, 64, 82 e 100. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil, p. 111. Marcello Casal Jr /Agência Brasil: p. 22 e 33. Mídia Ninja: p. 4. Sergio Gonçalves: contracapa. Tânia Rêgo/ Agência Brasil: p. 6. Wissen, Wikimedia Commons: p. 14. FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO 115 Para a composição e diagramação deste livro foram utilizados softwares livres, programas que podem ser usados, copiados, estudados e redistruídos sem restrições - são alguns deles: Firefox, Open Office, GIMP e Scribus. A fonte Lato utilizada no miolo também é livre. A fonte que indentifica a Fundação Rosa Luxemburgo é a Linotype Univers. Fundação Rosa Luxemburgo Rua Ferreira de Araújo, 36 - Pinheiros 05428-000 São Paulo - SP, Brasil www.rosaluxspba.org