Resistências no País do Futebol

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Resistências no País do Futebol
RESISTÊNCIAS NO PAÍS DO
FUTEBOL
A COPA EM CONTEXTO
Gerhard Dilger (org.)
Trad. Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti
São Paulo
Junho de 2014
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Gerhard Dilger (org.)
Junho de 2014
Tradução: Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti
Capa e diagramação: Ana Rüsche
A publicação que deu origem à presente obra foi o livro Fußball in Brasilien: Widerstand
und Utopie, publicado pela editora VSA de Hamburgo em 2014.
Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença CreativeCommons de
Atribuição + Uso não comercial + Não a obras derivadas (BY-NC-ND), ou seja, qualquer
pessoa tem o direito de copiar e distribuir a obra, desde que seja para fins não comerciais
e que os créditos dos autores, organizador e tradutores sejam respeitados.
Fundação Rosa Luxemburgo
www.rosaluxspba.org
R429r
Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por Gerhard
Dilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti.
Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por Gerhard
Dilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti –
São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2014.
116p.
ISBN: 978-85-68302-00-2
1. Futebol 2. História I. Título.
CDD - 796
Brasília, junho de 2013.
ÍNDICE
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O Brasil é uma caixinha de surpresas ..................................................................................... 9
Gerhard Dilger
O CONTEXTO INTERNACIONAL
2006: Como os alemães estenderam o tapete vermelho à FIFA................................... 15
Andreas Rüttenauer
2010: A África do Sul não foi uma história de sucesso ................................................... 23
Patrick Bond
Não precisamos copiar os europeus ..................................................................................... 35
Eduardo Galeano
Peneirar como no garimpo ...................................................................................................... 39
Martin Ling
A copa de 2018 na Rússia ....................................................................................................... 45
Vladimir Fomenko
O Brasil treina com blindados, canhões de água e pistolas ........................................... 55
Christian Russau
O embaixador de marcas: Paul Breitner no Brasil ............................................................ 59
Gerhard Dilger
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Caminhando pelo teto do Maracanã, Rio de Janeiro, 2013.
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O CONTEXTO BRASILEIRO
1968 - 1984: da militarização do futebol até a Democracia Corinthiana ............... 65
Thomas Fatheuer
Futebol e Nação - A identidade brasileira existe? ............................................................ 73
Thomas Fatheuer
Lula, Dilma e a Copa .................................................................................................................. 83
Juca Kfouri
Elas, no país do futebol ............................................................................................................. 89
Lívia Duarte
"Nós valemos mais!" ................................................................................................................. 95
Júlio Delmanto
A explosão de um modelo ..................................................................................................... 101
Raquel Rolnik
Gol de letras .............................................................................................................................. 109
Luiz Ruffato
Autores e autoras ................................................................................................................. 112
Leia mais: referências bibliográficas............................................................................. 114
Créditos das imagens ......................................................................................................... 115
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Torcedores do Ponta Preta no Pacaembu, São Paulo, dezembro de 2013.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
O BRASIL É UMA CAIXINHA DE
SURPRESAS
Gerhard Dilger
Trad. Kristina Michahelles
O futebol é uma caixinha de
surpresas, eis uma das tantas expressões em torno do esporte popular. De
fato, quem teria imaginado? O Brasil,
supostamente tão entusiasmado com
o futebol, não está simplesmente feliz
e agradecido por poder realizar a Copa de 2014. Não: durante as jornadas
de junho de 2013, milhões de brasileir@s foram às ruas durante a Copa
das Confederações. Não só por causa
do futebol, mas também por causa
dele. Poucas semanas antes do pontapé inicial no Itaquerão, a maioria da
população acredita que o megaevento
possa ter mais consequências negativas do que positivas para o Brasil. O
sentimento geral é mais de reserva do
que de entusiasmo, e no mundo inteiro surge a pergunta: o que acontece
no país do futebol?
expectativas e muitas perguntas. Na
Europa, onde os nítidos progressos
econômicos e sociais dos governos de
Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff durante muito tempo dominaram
a mídia, e não só de esquerda, o tom
mudou radicalmente. “Brazil takes off”
estampou a revista The Economist em
uma capa de 2010, com a imagem do
Cristo Redentor decolando. Três anos
mais tarde, o principal porta-voz do
capitalismo mundial perguntou: “Has
Brazil blown it?“, sugerindo que a decolagem fulminante virou um voo de galinha.
Na Feira do Livro de Frankfurt em
outubro de 2013, este paradoxo ficou
mais do que visível. De um lado, o
Brasil se apresentou como nação cultural em pleno desenvolvimento com
um impressionante espectro de liteNão foi apenas no Brasil que as jor- rat@s. Por outro lado, em uma fala
nadas de junho causaram surpresa, inaugural recheada de críticas, o
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escritor Luiz Ruffato causou furor ao anos. Na potência pós-soviética, em
apontar para a realidade amarga do que a comercialização e a corrupção
atual capitalismo selvagem1.
no futebol ainda florescem mais do
que aqui, a FIFA também pode esperar
Em Frankfurt, também constata- lucros bilionários.
mos que os livros em alemão sobre o
Brasil e a Copa de 2014 nem de longe
Quem também está rindo de orelha
refletiram essa situação contraditória. a orelha são empresas transnacionais
Por essa razão, a Fundação Rosa da Alemanha ou da Áustria que gaLuxemburgo (FRL) decidiu publicar nham dinheiro fornecendo armas para
um livro crítico, de esquerda, baseado os países-sede da Copa. Comparado a
na simpatia pelo Brasil e pelo futebol elas, a atuação de Paul Breitner como
brasileiro. O resultado, “Futebol no “embaixador de marcas” no Brasil paBrasil, utopia e resistência”2 , foi lan- rece até uma variante mais inofensiva
çado em maio, justo no momento em da mercantilização. Mais complicada
que o Brasil foi destaque em toda a é a exportação brasileira de “mão de
mídia.
obra e pé de obra para o norte do
mundo” (Eduardo Galeano). Ela reNo Brasil, onde o escritório regional presenta o reverso da medalha da deda FRL funciona desde 2003, apre- sorganização do futebol brasileiro
sentamos a edição original e esta ver- sujeita a interesses oligárquicos de
são resumida em português. O poder e lucro, e onde aos jogos do
objetivo da edição brasileira é mostrar Brasileirão comparece menos gente
nossa principal meta no trabalho polí- do que aos jogos da Segunda Divisão
tico no Brasil e no Cone Sul: enrique- na Alemanha.
cer o debate crítico na região, bem
como ambientá-lo dentro do contexto
“Não precisamos copiar os eurointernacional.
peus” – essa frase que Galeano proferiu em outro contexto, combina bem
Os textos sobre as Copas de 2006 com a tentativa de governos “prona Alemanha e em 2010 na África do gressistas” na América do Sul na déSul mostram que, antes do Brasil, cada passada de tentar imprimir uma
houve outros países em que os políti- política que superasse o neoliberaliscos atenderam, com bastante subser- mo. Acontece que justamente a realiviência, os desejos da FIFA.3 As zação da Copa de 2014 e dos Jogos
perspectivas não parecem muito me- Olímpicos de Verão de 2016, para os
lhores para a Rússia em 2018, a não quais o Brasil definitivamente quis se
ser que os acontecimentos no Brasil posicionar como global player, gerou
forcem os cartolas da federação mun- temores de que esse projeto poderia
dial a mudar de opinião nos próximos
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
historicamente excluída, mas uma inclusão via consumo. A esfera pública, a dimensão pública das cidades e seus
serviços, historicamente péssimos, pobres para os pobres, isso não mudou um
milímetro. O modelo de urbanização e de
desenvolvimento continuou voltado pra
Em sua missão de relatora especial favorecer quem ele sempre favoreceu. A
da ONU para o direito à moradia ade- explosão das ruas (…) exige uma outra
quada, desde o início Raquel Rolnik coisa."
posicionou-se ao lado dos comitês
Brasileiros e brasileiras tampouco
populares da Copa nas 12 cidades-sede. Uma visita feita por ela em fins de conseguiram se acostumar ao jeito
2013 é exemplar para essa atividade. autoritário da FIFA, que lembra as imPor ocasião de um dos seminários posições do Fundo Monetário Interapoiados pela FRL dos quatro comitês nacional, das quais o Brasil conseguiu
populares do Nordeste, Rolnik esteve se libertar no governo de Lula. Ninem Recife. Ali, manteve conversa di- guém esquece o famoso “chute no
retas com as autoridades, com os mo- traseiro” – necessário para manter os
radores ameaçados de remoções prazos nos preparativos da Copa, seforçadas e representantes da mídia, gundo o secretário-geral da FIFA,
além de um debate público na univer- Jérôme Valcke. E o texto de Lívia
sidade. Seguiram-se debates por vári- Duarte mostra que, no futebol maos dias na capital de Pernambuco e a chista, o caminho para uma verdadeiresistência contra as remoções im- ra equidade de gêneros ainda é muito
postas foi reforçada. Nas outras onze mais longo do que em outros lugares.
cidades-sede, os comitês populares da
Um destaque da nossa publicação
Copa também conseguiram alguns
em
alemão é o ensaio de Thomas
êxitos no trabalho junto aos atingidos.
Fatheuer sobre um século de história
“A explosão de junho (de 2013) é cultural e social do futebol brasileiro,
muito mais ampla que a questão da do qual apresentamos aqui os últimos
dois capítulos. “Lampejos de utopia”,
Copa,” constata Raquel Rolnik:
constata ele em vários momentos, co"É a explosão de um modelo de nega- mo na Democracia Corinthiana do
ção do direito à cidade para a maior par- grande Sócrates. “Continua em aberto
te da população (…) Ela é fruto também, a pergunta sobre se o sonho de um
me parece, dos anos recentes em que outro futebol, de um futebol belo,
ocorre um processo de inclusão muito também inclui o sonho de um outro
significativo
de
uma
parcela
correr perigo em toda a região – seria
uma amarga ironia. A aliança do Partido dos Trabalhadores com parcelas da
oligarquia que está no poder há 500
anos ameaça se tornar um gol contra,
analisa Juca Kfouri.
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mundo melhor”, conclui Fatheuer, com
cuidado.
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De fato, a realização e os resultados
da Copa de 2014 ainda estão em
aberto – tanto em termos futebolísticos quando em termos políticos. Talvez se confirme que logo o futebol,
tantas vezes visto como “ópio do povo“, fortaleceu a resistência contra o
capitalismo financeiro do século 21
em tantas esferas e talvez venha a ser
o catalisador de uma nova transformação social. O Brasil é uma caixinha
de surpresas…
Notas
1 Discurso de Luiz Ruffato na Abertura da
Feira do Livro de Frankfurt na íntegra
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffatona-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm.
2 Edição on-line "Fußball in Brasilien: Widers-
tand und Utopie" http://www.rosalux.de/publication/40370/fussball-in-brasilien-widerstand
-und-utopie.html.
3 Para uma comparação direta entre a África
do Sul e o Brasil, veja http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/05/140515_copa_peter_alegi_ms.shtml.
São Paulo, maio de 2014.
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O CONTEXTO INTERNACIONAL
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Dortmund, Alemanha, 2006.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
2006: COMO OS ALEMÃES
ESTENDERAM O TAPETE
VERMELHO À FIFA
Andreas Rüttenauer
Trad. Monika Ottermann
Joseph “Sepp” Blatter prestou um
grande serviço à Alemanha. Quem o
constata é a Chanceler alemã, Angela
Merkel, por ocasião de uma recepção
para o presidente da Federação Internacional de Futebol no dia 7 de julho
de 2006. “Aceitando-nos como sede
da Copa do Mundo, a FIFA demostrou
grande confiança em nós alemães”,
afirma ela e condecora Blatter com a
Ordem de Mérito da República Federal da Alemanha, no refeitório nobremente decorado do Gabinete da
Chancelaria, dois dias antes do término da Copa 2006. O homem do cantão
Valais finge comoção, como se ele não
soubesse que a condecoração fazia
parte daquele imenso negócio com
que o Governo Federal se submeteu à
FIFA.
nacionais mais otimistas do governo
não tinham julgado possível. Ela é um
sucesso comercial para a FIFA, uma
façanha logística inédita da parte da
organizadora, a Federação Alemã de
Futebol (DFB), e para o Estado, ela é a
grande festa tão esperada desde a
reunificação em outubro de 1990.
Franz Beckenbauer, o “imperador”
alemão do futebol, na época presidente do Comitê Organizador da Copa, está quase onipresente em todos
os dias de jogos. “É assim que o bom
Deus sonhou o mundo”, diz ele pouco
antes do fim da Copa sobre as festas
oficiais, organizadas pela FIFA nas cidades dos jogos. Centenas de milhares de pessoas reúnem-se nelas nos
dias dos jogos e brilham mais forte do
que o sol que, para as condições cliA Copa do Mundo levou a Alema- máticas alemãs, brilhava bastante nanha a um delírio nacional que até queles dias. No “país de um sonho de
mesmo
os
comercializadores verão”, em seu embrulho negro-rubro-
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dourado, não se encontra quase nin- privar Blatter da Ordem de Mérito
guém que queira contradizer ao im- recebida.
perador.
No verão de 2012, multiplicam-se
Cerca de seis anos depois – e um na Alemanha as reportagens sobre o
ano depois de ter sido bajulado mais pagamento de subornos no contexto
uma vez pelos digníssimos cavalheiros da decisão de levar Copas para a Rúse damas do esporte e da política, por sia e para o Qatar. Para Blatter, isto
ocasião da Copa Feminina de 2011 – parece ser a gota d’água. Numa entreBlatter se torna quase uma persona vista concedida ao tabloide suíço
non grata na Alemanha. Finalmente é Sonntagsblick, ele diz: “Uma Copa
documentado o que circulava na mídia comprada… Aí eu me lembro da licitahá tempos, a saber, que vários figu- ção da Copa 2006... no último instanrões da FIFA cobraram subornos te, alguém se levantou e deixou a sala.
exorbitantes da então empresa de E assim, a votação deu 10 para a Alemarketing para direitos esportivos ISL manha e 9 contra, em vez de 10 x 10.
(International Sport and Leisure). Um Eu fiquei contente, porque aí eu não
dos principais dirigentes da organiza- tive que desempatar. Mas, afinal... de
ção do futebol alemão convida Blatter repente alguém se levanta e sai. Tala renunciar.
vez eu tenha sido também muito bonzinho e ingênuo.”
Reinhard Rauball, presidente da Liga Alemã de Futebol (DFL), na qual se
Para a Alemanha, que continuava
organizam os 36 clubes pertencentes embriagada com seu sonho de verão,
às divisões (ligas) federais, opina: “Se- isto passa do limite. O jornal Frankfurgundo o estado atual da questão, ter Allgemeine Zeitung lança a mancheBlatter deveria entregar suas tarefas te “Conspurcaram nosso sonho de
o mais rápido possível a outras mãos.” verão”. Blatter afoga-se num shitstorm
Ele chega a convidar Blatter por tele- midiático e relativiza suas afirmações.
fone a renunciar à presidência da FI- É incrível que os alemães ainda não tiFA. Também Uli Hoeness, na época vessem percebido que o processo deainda o reconhecido chefão do FC cisório em favor da Alemanha havia
Bayern de Munique, exige a renúncia sido o resultado de jogadas bem marde Blatter. Reinhard Bütikofer, porta- cadas.
voz do Partido Verde no Parlamento
Em seu livro FIFA-Mafia (2012), o
Europeu, bem como o então diretor
jornalista
esportivo Thomas Kistner
da fração parlamentar do Partido
sintetiza
mais
uma vez todas as susSocialdemocrata (SPD), Thomas
peitas
que
deixam
a votação do ComiOppermann, exigem até mesmo
tê Executivo da FIFA no dia 6 de julho
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
de 2000 aparecer numa luz extremamente tenebrosa. As primeiras matérias tinham saído no jornal
Süddeutsche Zeitung e na revista Manager Magazin já três anos antes do
chute inicial da Copa 2006. Segundo
esses relatos, ainda pouco antes da
votação decisiva, as chances para a
Alemanha, embora uma candidata tão
segura de si, não pareciam nada boas.
Parecia haver uma clara maioria em
favor do concorrente África do Sul,
preferida também pelo presidente da
FIFA, Blatter. Isto incomoda não só o
pretencioso candidato da DFB, mas
principalmente o já falecido chefão
midiático Leo Kirch. Ele tinha comprado os direitos de transmissão daquela Copa e esperava um lucro muito
maior se ela fosse na Alemanha do
que se passasse para a África do Sul.
Por isto, bola-se uma estratégia esperta.
Mesmo assim, nos dias em que são
publicadas as pesquisas sobre a decisão, as vozes que denunciam um escândalo não são muito altas. Elas
foram abafadas pela feliz expectativa
do grande evento futebolístico. Também na denúncia de Fedor Radmann,
então vice do Comitê Organizador
que tinha mexido os pauzinhos na
candidatura para a Copa (fechando
um contrato “adequadamente remunerado” de consultoria com a holding
de Leo Kirch), a lama da copa alemã
não é remexida por muito tempo. O
tapete vermelho estendido para a FIFA não pode ter qualquer mancha.
Naquele entremeio preparam-se,
sem conflito e quase sem qualquer
discussão pública, os contratos com a
FIFA. As garantias governamentais
que a Federação Internacional exige
do país-anfitrião nunca são objeto de
maiores discussões públicas. Os direitos malucos que esses contratos concedem aos quinze patrocinadores
principais da Copa – o prefeito de
Munique, Christian Ude, chamou-os
de “contratos-mordaça” – são rapidamente garantidos. É verdade que se
critica frequentemente o direito da
FIFA de embolsar quase todos os lucros realizados durante a Copa isentos de impostos, mas ele nunca é
questionado seriamente.
O chefe da candidatura, Beckenbauer, na época presidente do FC
Bayern de Munique, manda seu time
de profissionais para um turnê pelos
países ainda indecisos que têm direito
de enviar um representante para a
executiva da FIFA. Kirch compra através de sua empresa CWL, os direitos
de transmissão por uma soma monstruosa que é depositada em contas fiduciárias. Parece que foi assim que os
votos de Malta e da Tailândia vieram
Neste ponto, o Estado permite topara a Alemanha. O sonho de verão é das as vezes uma verdadeira chantao resultado de negócios sinistros.
gem da parte de grandes organizações
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esportivas. Isto mostra o processo
decisório praticado pela UEFA, a
União Europeia de Futebol, quando se
trata da definição de cidades para finais da Copa Europeia. Após a Copa
do Mundo de 2006, os estádios da
Alemanha, novinhos em folha, estão
sendo sistematicamente desconsiderados na distribuição das finais da Liga
dos Campeões e da Copa UEFA.
Quando o governo alemão garante
uma isenção tributária para tais eventos, Hamburgo recebe prontamente a
final da Liga Europeia de 2010.
Para a competição de 2006, a FIFA
não precisa implorar por isenções. E
quando ela exige que também o torneio preparatório da Copa do Mundo,
a Copa das Confederações em 2005,
seja isento de impostos de renda e retenções na fonte, as respectivas cláusulas das garantias governamentais
são imediatamente corrigidos. “Para a
FIFA havia uma relação indissolúvel
entre a Copa do Mundo de 2006 e a
Copa das Confederações de 2005,
pois ela via a Copa das Confederações
de 2005 como elemento integral da
Copa de 2006, que servia basicamente para testar a aplicação organizatória do planejamento para a Copa
2006”, diz o relatório final do Ministério do Interior sobre a Copa 2006:
quando a FIFA quer alguma coisa, o
Estado alemão está à disposição.
naquela época que a Copa não era
subvencionada pelo Estado e que
também não existiam garantias em
caso de cancelamento, que o risco era
exclusivamente do anfitrião, a saber,
da Federação Alemã de Futebol. Também se vivia repetindo que o evento
gerava mais receitas do que gastos.
No entanto, no relatório final do Ministério do Interior aparecem dois
números que desmentem exatamente
isto. A União pagou 195,8 milhões de
Euros para a reforma que fez do Estádio Olímpico de Berlim uma arena
adequada para uma Copa da FIFA. Ela
subvencionou com 51 milhões de Euros a construção do Estádio da Copa
em Leipzig e investiu assim dinheiro
público num estádio que até hoje não
viu um único jogo da Primeira ou Segunda Divisão. Estas certamente não
foram os únicos recursos públicos que
foram canalizados diretamente para
os negócios da Copa do Mundo.
A nova Arena de Munique, no lixão
de Fröttmaning, cujo financiamento
privado é o grande orgulho do FC
Bayern de Munique, ficaria meio perdida no meio do nada se o Estado não
tivesse investido 210 milhões de Euros na conexão ao transporte público
e privado e no saneamento da região.
Para garantir um aproveitamento
econômico dessa área localizada no
norte de Munique, a região industrial
foi simplesmente redefinida como
O Ministério do Interior, responsá- área de uso especial, o que resultou
vel pelo esporte, gostava de afirmar numa redução de seu valor de mais
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
que 80 milhões para magros 14 mi- no Ministério do Interior – primeiro
lhões de Euros.
Otto Schily, depois Wolfgang Schäuble – utilizam-se de todas as possibiliO Estádio da Copa em Frankfurt dades para testar uma nova
custou ao Estado Federal de Hessen arquitetura de segurança interna.
20,5 milhões de Euros, e a prefeitura Nunca antes na história da Alemanha
de Frankfurt pagou 65 milhões. Em Federal, o Exército Federal foi empreColônia, a prefeitura subvencionou a gado de modo tão intensivo para a seconstrução de um novo estádio para a gurança interna como durante a Copa
Copa 2006 com mais que 25 milhões 2006. Segundo o Artigo 87a da Consde Euros. O Estádio da Copa em Kai- tituição Alemã, seu emprego interno é
serslautern, constantemente no ver- permitido somente quando serve “pamelho, é apelidado até hoje de uma ra a defesa contra uma ameaça imi“cova aberta de subvenções” que pro- nente à existência ou ordem
vavelmente jamais poderá ser fecha- fundamental democrática livre da
da. Quando o futebol profissional União ou de um Estado”. Já que se
levanta suas reivindicações, a política constatou esta situação, foram emfunciona, e ele pode confiar que nin- pregados durante a Copa 1.700 solguém levantará uma crítica sustentá- dados de 50 diferentes quartéis, e
vel – salvo alguns políticos honestos outros 5.300 soldados ou colaborana área do orçamento, bem como a dores civis do Exército Federal perAssociação dos Contribuintes. O fu- maneceram em estado de alerta. A
tebol é o campo predileto do populis- Força Aérea controla o espaço aéreo
mo. Quando a FIFA começa a instalar do País da Copa também com a ajuda
a Copa 2006 na Alemanha, ela é rece- de aviões de reconhecimento do tipo
bida em todas as partes de braços Awacs.
abertos. Para o futebol, a Alemanha
faz quase tudo.
Neste caso, a política utilizou-se da
popularidade do futebol para realizar
Já na fase da construção de todos duas ideias de uma nova estratégia de
esses lindos estádios, o governo fede- segurança com inclusão do Exército
ral começa a elaborar um conceito de Federal. Diante de tudo que o Estado
segurança para a Copa do Mundo. presenteou à FIFA, este pode ser chaTambém a promessa de fazer tudo que mado provavelmente de um presente
se possa imaginar em favor da segu- que, no âmbito da Copa 2006, a polítirança dos torcedores faz parte das ca de segurança deu a si mesma. As
garantias governamentais exigidas costumeiras discussões sobre a legitipela FIFA. Neste ponto, os apologistas midade do emprego do Exército Fede plantão em questões de segurança deral no interior da Alemanha,
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normalmente travadas de forma bastante acalorada, dão-se em volume
muito baixo e logo se perdem no ar.
Aproveitando do entusiasmo pelo futebol na Alemanha, paradigmas considerados intocáveis são claramente
redefinidos.
Na primavera de 2006, há um único
momento em que os alemães protestam pelo menos um pouco contra a
FIFA que, nos dias dos jogos, realiza
uma verdadeira ocupação das respectivas cidades, ostentando seus maçantes “uniformes” sociais e
marcando suas zonas proibidas para
realizar seus negócios desenfreados
perto dos estádios. O conflito diz respeito à sua cerveja. A Anheuser-Busch, grande cervejaria estadunidense
(“Bud”) e grande patrocinadora da FIFA, está exigindo exclusividade de
venda para seus produtos nos estádios e nas festas oficiais. Na Alemanha,
porém, a cerveja “gringa” possui uma
fama péssima. Políticos nacionais e
locais exigem “cerveja alemã para torcedores alemães” e tomam assim a dianteira num protesto contra a FIFA
que está apenas nascendo. No fim
chega-se a um meio termo que permite a venda de cervejas locais nas festas de torcedores.
Além disso, a cervejaria alemã Bitburger (“Bit”) conquista o direito de
vender sua cerveja dentro dos estádios. Devido ao perigo de confundir a
sigla “Bud” com a sigla “Bit”, seu uso
nas publicidades de produtos Anheuser-Busch é proibido na Alemanha.
Contudo, a Bitburger abre mão dessa
proibição pela qual tinha lutado na
justiça, e em troca recebe a permissão
de venda nos estádios. A temida revolução cervejeira é evitada, num país
em que quase ninguém se incomoda
com mudanças de certos nomes: na
estação central de Hannover, os altofalantes reproduzem regularmente a
saudação “Bem-vindos e bem-vindas à
Estação Copa-da-FIFA de Hannover!”
A ocupação é aceita pacificamente.
É verdade que se critica os advogados da FIFA que movem ações contra
tudo e todos que usam marcas registradas como “Copa da FIFA 2006”, e
certamente é franca e manifesta a
alegria por uma sentença de instância
superior que julga que expressões como “Copa do Mundo de Futebol 2006”
não podem ser protegidas como marcas registradas. Mas mesmo assim, em
grande parte, a conduta arrogante da
FIFA é aceita como um mal necessário.
Em vez de criticar a FIFA pela sua obsessão em proteger marcas registradas e exigir apoio político a esta
crítica, as Câmaras de Indústria e Comércio da Alemanha assessoram seus
membros em estratégias de contornar
o direito particular da FIFA, aconselham padeiros para fazer propaganda
de seus “pãezinhos Campeão do Mundo” em vez de “pãezinhos Copa” e de
registrar educadamente cada evento
de public viewing na Infront, a empresa
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
autorizada para gerenciar os direitos
da FIFA.
Não surge mais do que um mal-estar difuso diante das práticas comerciais da FIFA. E quando, com as
primeiras apresentações razoáveis da
seleção alemã, que até aquele momento era apenas objeto de sorrisos
compassivos, o sonho de verão começa a florescer com plena força, qualquer crítica à Federação Internacional
e a seu dono Blatter some definitivamente no delírio nacional negro-rubro-dourado. Somente quando não se
precisa mais da FIFA, depois de os últimos emissários da FIFA em seus ternos azuis deixarem a Alemanha após a
Copa Feminina de 2011, a crítica a
Blatter torna-se oportuna.
Provavelmente, porém, o suíço não
precisará temer por sua Ordem de
Mérito alemã. Parece que ele voltou a
cair nas boas graças de Berlim: no dia
10 de março de 2014, ele é recebido
em Berlim pelo novo Ministro da Cooperação Econômica, Gerd Müller.
Eles conversaram sobre o papel que o
futebol pode desempenhar na política
Norte-Sul. Pouco depois, Blatter
anunciou no twitter: “Conversamos
sobre possíveis projetos em comum
na África”. O cartola supremo que se
viu durante a Copa 2010 na África do
Sul já como futuro Prêmio Nobel da
Paz, deve ter gostado do encontro.
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Sul-africanos fazem festa, mesmo depois que a seleção de futebol do país foi eliminada.
Soweto, 2010.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
2010: A ÁFRICA DO SUL NÃO FOI
UMA HISTÓRIA DE SUCESSO
Patrick Bond
Trad. Petê Rissatti
"A Copa do Mundo na África do Sul foi
um sucesso financeiro imenso, imenso
para a África, para a África do Sul e para
a FIFA" – Sepp Blatter.
Com déficits financeiros de longo
prazo imensos e uma melhoria psicológica distorcida e pouco duradoura
na esteira do principal torneio de futebol do mundo, a experiência da
África do Sul no período de junho a julho de 2010 foi dúbia.
infraestrutura de construção associadas. Porém, houve também custos intangíveis relacionados à escolha da
sede da Copa do Mundo de 2010:
corrupção política, prioridades dúbias
e gastos excessivos, retorno de lucros,
suspensão das liberdades democráticas e da soberania, protestos e resistência, além da xenofobia.
A Máfia da FIFA, prioridades dúbias e
O governo comprometeu-se a gas- gastos excessivos
tar US$ 6 bilhões dos cofres públicos
A FIFA apoiou uma equipe sul-africom o intuito de preparar o país para a
cana branca racialmente pura durante
Copa do Mundo da FIFA de 2010. Esse
décadas, até a oposição, liderada pelo
montante destinou-se principalmente
falecido Dennis Brutus, tornar-se um
para construir e reformar dez estáditime formidável em 1976. No entanto,
os, acelerar a construção de uma linha
o apartheid de classes substituiu o
de trem de alta velocidade do Aeroapartheid racial, e essa troca levou a
porto O. R. Tambo para Sandton e erÁfrica do Sul contemporânea a conguer um novo aeroporto nas cercanias
tradições similares de exclusão,
de Durban, melhorando estradas e
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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intrínsecas às cidades que sediaram a 70.000 lugares, é uma delícia de ver,
Copa do Mundo de 2010.
contanto que mantenhamos os olhos
e a mente longe do atraso nas obras
Por exemplo, os turistas da Copa do de moradia, abastecimento de água,
Mundo conheceram as condições de saneamento, eletricidade, clínicas, esdeterioração da região de Cape Flats, colas e rodovias, e o aumento absurdo
enquanto, por sua vez, o novo estádio nos custos dessas construções.
Green Point, que custou US$ 630 milhões na Cidade do Cabo, recebera
Mais difícil de manter fora do pensubsídios vultuosos graças aos legis- samento é o estádio vizinho, o Estádio
ladores da Aliança Democrática do- Absa, sede do time de rúgbi Sharks,
minada por brancos liberais e ao que abriga 52.000 assentos e poderia
Congresso Nacional Africano negro e ser facilmente estendido. Os Sharks
nacionalista, respectivamente. Uma disseram que não conseguem mudar
reforma no campo de rúgbi de Ne- para o Mabhida porque os custos de
wlands (numa região residencial aluguel são altos. Trevor Phillips, exbranca) ou no estádio de Athlone (nu- diretor da Liga Premier de Futebol Sulma vizinhança negra) teria saído mui- Africana, pergunta: “O que vamos fato mais em conta. Segundo as zer com um estádio de futebol com
informações, este último foi rejeitado, 70.000 lugares em Durban depois que
de acordo com um representante da a Copa do Mundo tiver acabado?
FIFA, porque “um bilhão de telespec- Durban tem dois times de futebol que
tadores não deseja ver barracos e po- atrai um público de apenas poucos
breza nessa escala”.
milhares”.
A terceira maior cidade, Durban,
ostenta a mais memorável das novas
instalações esportivas (com custo
avaliado em US$ 440 milhões, ultrapassando os US$ 225 milhões do orçamento inicial), bem como o maior
índice de corruptibilidade e desfaçatez que emana de um prefeito, Mike
Sutcliffe, que tentou descaracterizar
um mercado nativo africano centenário para agradar a FIFA, o que foi rejeitado com a oposição da
comunidade. O estádio Moses
Mabhida, em Durban, com seus
Os vencedores locais nesse processo não são os futebolistas, tampouco
os times de rúgbi que, assim esperam
inutilmente os funcionários de alto
escalão municipais, encherão os elefantes brancos que são esses estádios.
Quem vence são as grandes corporações e os “tenderpreneurs” (empresários de licitação) negros politicamente
associados (que ganham licitações estatais graças à ação afirmativa, mesmo que relacionados a empresas
brancas estabelecidas), especialmente no setor da construção civil. Essa
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
estratégia de tenderpreneurship, ou de
comércio de licitações, era profundamente corrupta, segundo Moeletsi
Mbeki, irmão do ex-presidente Thabo:
“Era uma questão de cooptação, cooptar líderes nacionalistas africanos
através do seu enriquecimento particular”.
As macro-implicações serão sentidas com o passar dos anos, porque a
Copa do Mundo piorou a desigualdade de renda da África do Sul, a maior
do mundo, e montou um cenário para
as calamidades econômicas futuras,
uma vez que os pagamentos de dívida
vencerão. Os gastos excedentes em
novos estádios (em Durban, Cidade do
Cabo, Port Elizabeth, Nelspruit e Polokwane), mais as despesas de recondicionamento exorbitantes da Cidade
do Futebol, fizeram o Estado subsidiar
mais de US$ 3,6 bilhões, sem mencionar os gastos com infraestrutura associada.
Inclusive,
tornou-se
impossível para quase todos os estádios cobrirem suas despesas operacionais após a final da Copa do Mundo.
Uma parte excessiva das despesas
com estádios veio de importações
desnecessárias, numa época em que a
dívida externa sul-africana subiu de
US$ 24 bilhões que Nelson Mandela
herdou do apartheid para mais de US$
140 bilhões hoje. O pagamento de juros sobre dívidas, mais os dividendos
para empresas gigantes de origem sulafricana, mas agora multinacionais
com sede no exterior – Anglo American, BHP Billiton, DeBeers, Old Mutual, SAB-Miller beer, Liberty Life,
Didata, Investec Bank – levaram o país
à lanterna na classificação de mercados emergentes.
Também é importante contabilizar
outros custos indiretos para a economia. A Copa do Mundo foi parcialmente responsável pela bolha
imobiliária do país, que levou a economia a um aumento de 5% no PIB por
ano de 2004 a 2008, exatamente como aconteceu nos EUA antes da crise.
Com a Copa do Mundo como justificativa, o investimento estatal em
uma infraestrutura de transportes
nova e luxuosa foi às alturas. Os US$
3,6 bilhões da linha de trens rápidos
Gautrain custa aos passageiros cinco
vezes mais do que o previamente
anunciado e aposta na mudança de
comportamento dos ricos e a troca do
carro particular pelo trem, mas não
deslocou usuários suficientes no percurso Johannesburgo-Pretoria para
evitar uma conta de subsídio anual de
US$ 120 milhões. O break-even, ponto
de equilíbrio comercial, é de 100.000
passageiros/dia, mas apenas 45.000
utilizam o Gautrain. Como o líder sindicalista Zwelinzima Vavi comentou, o
Gautrain “não faz nada para aqueles
que realmente sofrem com problemas
de transporte – principalmente aqueles que precisam viajar para trabalhar
partindo de lugares como Soweto e
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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Diepsloot. Em vez disso, tira recursos
que poderiam melhorar a vida de milhões de trabalhadores nessa situação”.
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E será que foi inteligente para Durban construir o novo Aeroporto Internacional King Shaka, com custo de
US$ 1,1 bilhão, sendo que o antigo tinha capacidade excedente até 2017, e
considerando a duplicação da distância e as tarifas de táxi até o centro de
Durban? O fechamento do Aeroporto
Internacional de Durban provou ser,
antes do tempo, o maior constrangimento para a liderança do Comitê Organizador Local e para a Companhia
Aeroportuária da África do Sul, quando o King Shaka não conseguiu suportar os jatinhos particulares VIP que
lotaram o aeroporto em 7 de julho, o
dia da semifinal, deixando mais de
1.000 torcedores furiosos em aviões
que precisaram ser remanejados.
Perda de soberania e direitos democráticos
O jornalista esportivo Andrew
Jennings, autor de Jogo Sujo!1, documentou em detalhes mínimos o abuso
da FIFA em países-sede ao aumentar
muito a infraestrutura desnecessária
e superfaturada. De acordo com Jennings, um terço dos executivos da FIFA “está envolvido em propinas e
corrupção, fraudes de ingressos e
desvio de recursos”. Ninguém
descobriu fraudes explícitas na África
do Sul, apesar da mancomunação de
uma FIFA permeada pela corrupção e
de um governo permeado pela corrupção.
Mais tarde, descobriu-se que a maioria dos estádios de futebol construída para a Copa do Mundo foi vítima de
conluio entre empreiteiras, com uma
multa de US$ 200 milhões cobrada
das maiores empresas de construção
do país. Mas a corrupção mais perniciosa associada à Copa do Mundo foi
de fato aberta, na forma de contratos
lícitos que foram mantidos em sigilo
até um juiz ordenar sua abertura para
análise pública, em junho de 2010.
Segundo a conclusão de Jennings: “A
África do Sul curvou-se e deixou a
FIFA fazer do seu jeito. Funcionários
do alto escalão e governo botaram à
venda a África do Sul: ‘Adeus, África;
adeus, idiotas!’”
Esses contratos violaram de muitas
maneiras a soberania da África do Sul.
Os principais espaços geográficos, especialmente aqueles onde a população pobre movimenta a economia
informal, foram legalmente definidos
como Zonas de Exclusão de comércio
local (ou zonas da FIFA), deixando
temporariamente de lado a Constituição Sul-Africana. Assim, o governo
sul-africano foi obrigado a acatar as
leis da FIFA, inclusive a diminuição dos
direitos democráticos, como marchas
e protestos pacíficos.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
O aparato de segurança nacional
comunicou ao Parlamento que estenderia um “cordão” de 10 km ao redor
dos estádios, repletos de “controles
de distribuição aérea por aviões de
caças, patrulhas de fronteira conjuntas com países vizinhos, escolta policial para cruzeiros e equipes de
seguranças com treinamento ‘diplomático’”. O objetivo, segundo o Ministro da Segurança Nathi Mthethwa, era
“impedir extremismos nacionais, greves e protestos contra a situação dos
serviços públicos”.
Para servir à FIFA, Durban abriu
mão de grande parte de seu poder,
bem como do bom-senso. Para ilustrar, a poucos metros de distância de
onde foi negada à população pobre
sua fonte de pesca e renda, caras
marquises importadas (da Alemanha)
aparentemente precisavam da montagem feita por uma empresa de
construção alemã. E a FIFA assumiu a
ocupação exclusiva do Estádio Moses
Mabhida, mesmo que em 75% dos dias não tivesse havido jogos de futebol
durante o mês, mantendo as instalações fora do alcance de visitantes.
De acordo com o professor de jornalismo da Universidade de Wits, Anton Harber, foi parte de uma tomada
geral: “A FIFA baniu essas pessoas que
tentavam ganhar a vida ao redor dos
estádios, fez com que desviássemos
dinheiro de desenvolvimento para estádios luxuosos, e tivemos de abrir
mão de todos os tipos de direitos durante o mês em que estarão controlando nossas cidades”.
A FIFA não apenas foi totalmente
indenizada “em todos os processos
judiciais, reclamações e custos correlatos (inclusive honorários de consultores profissionais) que possam
incorrer ou ser infligidos ou ameaçados por terceiros”. Além disso, de
acordo com um acordo oficial, a África
do Sul forneceu força policial especificamente “para garantir a proteção
dos direitos de marketing, direitos de
difusão, marcas e outros direitos de
propriedade intelectual da FIFA e de
seus parceiros comerciais”. (Soube
disso em primeira mão quando, em 2
de julho, fui detido pela polícia por
circular um panfleto antixenofobia na
Fan Fest.)
Jornalistas que conseguiram credenciamento da FIFA também se
comprometiam a não “difamar” a Copa do Mundo durante as reportagens,
sob o risco de serem banidos. Portanto, a liberdade de imprensa ficou
comprometida. Com tal pressão, não é
surpresa alguma que o documentário
Fahrenheit 2010 tenha sido rejeitado
pelas três maiores redes de televisão
sul-africanas no período antes da Copa do Mundo. A definição de “difamação” da FIFA compreende qualquer
ação que “afete negativamente a posição do Comitê Organizador Local ou
a FIFA”.
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A FIFA também recebeu tratamento jurídico especial, com a perseguição
de várias dezenas de incidentes criminosos 24 horas por dia, 7 dias na
semana, inclusive a condenação a três
anos de prisão de um homem cujo crime era ter 30 ingressos para jogos da
FIFA “sem explicação”, quando a FIFA
tentou extinguir o mercado dos cambistas. Dois holandeses que realizavam uma ação de “marketing de
emboscada” foram presos com 36
mulheres que trajavam vestidos laranjas, representando a cervejaria
Bavaria, no jogo Holanda x Dinamarca, embora o logotipo da empresa fosse mínimo.
Casos desse tipo fizeram a FIFA parecer extremista. A perda da soberania estatal para a FIFA surpreendeu
observadores, considerando a enorme experiência que o ex-presidente
Thabo Mbeki e sua equipe de negociação acumularam em trâmites de política econômica mundial desde que o
apartheid terminara, em 1994. Ainda
assim, Mbeki concedeu à FIFA e a patrocinadores multinacionais pleno
aceso às “zonas de exclusão”, sem impostos, controles de câmbio ou preocupações com segurança.
Promessas de redistribuição descumpridas
Mais apoio logístico, controle de
acesso e proteção foram oferecidos
aos parceiros corporativos da FIFA
(Adidas, Sony, Visa, Emirates, CocaCola, Hyundai-Kia, McDonalds, gigantes da telefonia local como Telkom
e MTN, First National Bank, Continental Tyres, Castrol e a empresa de
TI indiana Satyam). Apenas os itens
endossados pela FIFA eram anunciados num raio de um quilômetro do estádio e nas principais rodovias.
Pouco dinheiro foi redistribuído e a
maioria evaporou. Artesanato, turismo e instalações futebolísticas locais
deveriam todos ser beneficiados. Mas,
como confessou o presidente provincial da Associação de Futebol SulAfricana em Western Cape, Norman
Arendse, a abordagem fatal “de cima
para baixo” da FIFA deixou os times de
futebol de base com meras “migalhas”.
À parte das vuvuzelas estoura-tímpano, a ostentação “africana” tão celebrada pela Copa do Mundo ficou
muda quando mulheres que em geral
vendiam “pap” (uma espécie de polenta) e “vleis” (“carne de preço acessível”)
fora dos estádios de futebol foram
enxotadas para no mínimo um quilômetro de distância. De acordo com o
eminente pesquisador Udesh Pillay,
do Conselho de Pesquisa de Ciências
Humanas da África do Sul, em 2005,
um em cada três sul-africanos esperava se beneficiar pessoalmente da Copa do Mundo, mas o número caiu para
um a cada cinco em 2009, e um a cada
cem na época em que os jogos começaram.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Danny Jordaan, diretor-presidente
do Comitê de Organização Local da
Copa do Mundo, previu em 2005 que
os jogos renderiam de lucro para a
África do Sul mais de US$ 7 bilhões,
mesmo após as despesas relacionadas
à infraestrutura após 2010. Contudo,
o resultado financeiro real gerou controvérsias acirradas. Primeiro, o mercado do setor turístico foi saturado
em muitas áreas, após um terço dos
apartamentos
reservados
pela
agência Match, da FIFA, terem sido
cancelados em maio. Muitos que
acrescentaram quartos às pousadas
ou mantiveram vários blocos de quartos de hotel em aberto perderam somas gigantescas.
Da mesma forma, trabalhadores
comuns foram enganados ao pensar
que se beneficiariam das oportunidades fabris associadas à parafernália da
Copa do Mundo, mas, conforme concluiu o porta-voz dos sindicatos sulafricanos, Patrick Craven, “As empresas locais não receberam o esperado,
as empresas chinesas acabaram sendo
as grandes vencedoras”. Trabalhadores perderam à medida que deixaram
de ganhar direitos de produção local
para os bonecos do mascote Zakumi,
que, em vez disso, foram produzidos
no que o movimento sindicalista chama de “estabelecimentos escravizantes” chineses, onde adolescentes
trabalham por US$ 3/dia. O homem
que tratou do acordo foi o Membro do
Parlamento no Congresso Nacional
Africano, Shiaan-Bin Huang, cujo distrito natal em Kwazulu-Natal, Newcastle, tinha muitas fábricas ociosas
que poderiam ter produzido os Zakumi.
Residentes também sofreram, especialmente se fossem da classe
trabalhadora e precisassem de tratamento em hospitais locais. Como observaram os jornalistas do jornal
Times, “As diretrizes da FIFA para hospitais designados no país – que incluíam manter as alas com metade de
sua capacidade ociosa – resultarão na
remoção de pacientes de longo prazo
dos seus leitos e sua transferência para instalações em outros lugar. Encaminhamentos para exames de rotina
nos principais hospitais especializados já foram diminuídas, se não interrompidas, até depois da Copa do
Mundo, deixando centenas de pacientes sem cuidados nos próximos dois
meses’.
Protestos e resistência
O humor da população pobre e trabalhadora permaneceu irritadiço nos
dias que antecederam o grande evento, com dezenas de protestos todos os
dias, de acordo com as estatísticas
policiais, a maioria pela falta de condições nos “serviços públicos”. Vários
protestos tinham como alvo explícito
a maneira como a Copa do Mundo estava sendo realizada.
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Por exemplo, mais de mil estudantes fizeram uma manifestação contra
o estádio de Mbombela (Nelspruit),
pois escolas desalojadas no processo
de construção não foram reconstruídas. Outros protestos relacionados à
Copa do Mundo foram realizados por
comerciantes informais em Durban e
na Cidade do Cabo, contra os governantes de Johannesburgo pelas vizinhança da Cidade do Futebol, no
empobrecido distrito de Riverlea,
contra as empreiteiras pelos operários, contra a construção de estádios
por portadores de necessidades especiais e contra os governos nacionais
por ativistas de quatro cidades que
tentavam realocar as fronteiras provincianas e deslocar seus municípios
para uma província mais próspera.
Em 13 de junho de 2010, em Durban, centenas de trabalhadores da segurança no Estádio Moses Mabhida
começaram a se revoltar após o jogo
Alemanha x Austrália, exigindo o pagamento de uma bonificação prometida. Recebiam apenas US$ 27,00 por
12 horas de trabalho; a terceirização e
a superexploração azedaram as relações empregatícias no setor de segurança, não raro uma área de risco. A
polícia lançou gás lacrimogêneo e
bombas de efeito moral em 300 pessoas para interromper o protesto e
prometeu que os líderes da revolta
seriam presos. Porém, metade dos dez
estádios sofreram o mesmo destino,
quando trabalhadores baixaram as
ferramentas contra os intermediários
do setor de segurança, levando a demissões em massa e obrigando a uma
A FIFA insistia numa zona sem pro- política de vigilância mais dispendiosa
testo, com proibições policiais regula- para auxiliar a FIFA na questão de seres das marchas empreendidas – gurança interna.
mesmo um comício inócuo em prol da
educação para todos no dia 7 de junho
O protesto mais bem-sucedido e
(embora a FIFA tivesse patrocinado o explicitamente contra a Copa do
grupo, One Goal, exigindo a permis- Mundo foi feito por centenas de cosão para a marcha) –, até resistência merciantes informais de Durban
suficiente ter surgido para sobrepujar frente ao deslocamento do centenário
a perturbação. Algumas vitórias fo- Mercado da Manhã. Se não fosse pela
ram registradas ao longo do caminho. resistência contínua por um período
Milhares de operários da construção de um ano, inclusive uma batalha
de estádios lutaram por maiores salá- campal com a polícia em meados de
rios e não raro conseguiram. E os ati- 2009, seu espaço teria sido transforvistas da AIDS, impedidos de mado num shopping center, sem esdistribuir camisinhas nos estádios, paço para eles.
contestaram e conseguiram esse direito.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Algumas das mobilizações mais impressionantes talvez tenham sido no
front mais complexo: a cultura pop.
Para ilustrar o desafio, o músico nascido na Somália e criado em Toronto,
K’naan, usou seu sucesso, Wavin’ Flags,
para promover a noção de que um garoto jovem num campo de futebol de
terra poderia simplesmente tomar
Coca-Cola e se tonar um jogador de
nível internacional. A música remixada para a FIFA autocensurava toda a
sua versão de letra mais realista e antiguerra.
Explicando porque remixou a música, K’naan disse: “Esta é uma época em
que todos nós nos juntamos, e o mundo esquece seus conflitos e problemas, em que nos concentramos na
união e na celebração. Esse momento
tem ligação agora com Wavin’ Flag”.
Esse tipo de comercialização e despolitização trágicas exigiu uma culture
jamming, prontamente feita na versão
Wavering Flag, do grupo de hip-hop
Playing Fields Connective. Então vieram os Chomsky AllStars, cuja imitação de Beautiful Gain para a Copa do
Mundo foi anunciada assim: “Misturando punk, blues, dub e afrobeat, Beautiful Gain, com sua melodia
contagiante e ritmos sublimes, tem
tudo para ser o Free Nelson Mandela do
século XXI”. Uma música de protesto
ainda mais marcante foi lançada por
uma rede de artistas que se uniram
para divulgar o Grupo de Apoio
Khulumani, a rede de vítimas antiapartheid que está processando empresas
nos
tribunais
norte-americanos por levarem lucros
e juros quando deveriam estar cumprindo sanções. Iain Robinson (Ewok),
de Durban, contribuiu com a música
Shame on the Beautiful Game, que logo
se juntou a outras músicas de protesto num CD de hip-hop produzido pelo
grupo baseado em Grahamstown, o
Defboyz.
Mas houve muitos atingidos pela
FIFA e seus aliados do governo sulafricano que não se deram tão bem.
Os pescadores de subsistência de
Durban tentaram combater, sem sucesso, uma remoção forçada dos píeres no parque da Fan Fest da Copa do
Mundo, na praia principal. Os comerciantes de Johannesburgo e Cidade
do Cabo também perderam sua batalha por espaço por conta das zonas de
exclusão. E os desalojados da Cidade
do Cabo foram transferidos para um
acampamento “temporário”, no melhor estilo apartheid, o Blikkiesdorp.
Outros vencidos foram ambientalistas
preocupados com as gigantescas
emissões de carbono da Copa do
Mundo – duas vezes o recorde de
2006 – e a tentativa do governo sulafricano de “compensar” essa pegada
através
de
estratégias
de
greenwashing, dissimulações do prejuízo ambiental como o Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo e as plantações inadequadas de árvores.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
31
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O mais problemático, as redes esquerdistas independentes, que em
geral se mobilizam contra grandes
eventos internacionais – a Conferência Mundial Contra o Racismo (12.000
manifestantes em 31 de agosto de
2001) e a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável (30.000 pessoas saíram às ruas em 31 de agosto
de 2002) – foram simplesmente incapazes de gerar entusiasmo para as
duas manifestações pretendidas.
Conclusão
A Copa do Mundo é um espetáculo
formidável, especialmente porque
atrai o maior público esportivo do
mundo. A África do Sul como anfitriã
passou quase impecável, ao contrário
das previsões dos afro-pessimistas. O
aumento do lucro da FIFA, se comparado aos jogos na Alemanha, foi de no
mínimo 50 por cento. Ainda assim,
também fica evidente que, além do
impulso psicológico inigualável – apesar de temporário – o ganho para a
sociedade foi excedido pelo ônus.
A experiência internacional sugere
que megaeventos esportivos sejam
organizados em grande parte pelo setor privado, com pouco ou nenhum
impacto para cidadãos ou dignitários
eleitos, embora suas decisões possam
ter implicações maiores nas políticas
públicas. Como Jennings enfatizou, a
“inexplicável estrutura” da FIFA… “é
aprimorada para realizar os jogos segundo as necessidades do capitalismo
global – sem checagens ou restrições.
Apenas cheques”. A experiência sulafricana não foi diferente. A Copa do
Mundo da FIFA de 2010 baseou-se
num discurso retórico de redução de
desigualdades socioeconômicas na
região e atendimento das necessidades do povo, porém era em grande
parte voltado para interesses corporativos, financiado com recursos públicos, com participação popular
limitada ou nula e solapando a soberania e os direitos democráticos.
Na África do Sul, assim que o frisson
futebolístico arrefeceu e os protestos
sociais se tornaram mais persistentes,
as elites locais perceberam seu erro
em sediar esses jogos de forma tão
perdulária e arrogante. Podem aprender agora o que já sabemos: o lucro
com negócios e a alegria genuína associada ao esporte mais amado do
mundo são incompatíveis. A questão
para os brasileiros amantes do futebol
e para os críticos das regras corporativas multinacionais é se terão maior
sucesso estabelecendo uma pressão
compensatória e revertendo o poder
da FIFA. Apenas com um antídoto
contra a comercialização e o controle
estrangeiro podemos realmente
aproveitar a beleza do futebol.
Nota
1 Jogo
Sujo! – O mundo secreto da FIFA. Trad.
Renato M. de Oliveira. São Paulo: Panda Books,
2011.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
33
Torcedores do Bafana Bafana, como é conhecida a seleção da África do Sul, assistem ao
jogo de abertura da Copa do Mundo, em telão montado pela FIFA no bairro de Soweto.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
34
Eduardo Galeano, Brasília, 2014.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
NÃO PRECISAMOS COPIAR OS
EUROPEUS
Eduardo Galeano
Entrevista: Gerhard Dilger
Em períodos de Copa, uma placa
pendurada na porta de casa de Eduardo Galeano, em Montevidéu, adverte:
Cerrado por fútbol. Durante a Copa de
2010, o autor e torcedor uruguaio
analisou alguns aspectos do futebol
internacional.
Qual sua opinião sobre a equipe alemã?
Assombrosa. Tem a força e a velocidade dos velhos tempos, mas uma
elegância e uma alegria que talvez seja o aporte de tantos jovens incorporados em suas fileiras, em sua maioria
Don Eduardo, quem será campeão imigrantes ou filhos de imigrantes. No
futebol, como na vida, a mestiçagem
deste mundial – e por quê?
melhora.
Sou um péssimo profeta. E além
Por que os argentinos não consedisso, para completar, te confesso que
não quero conhecer o futuro. Quando guiram, finalmente?
uma cigana pega a minha mão e me
Eles brilharam em várias partidas
oferece lê-la, eu rogo: “Senhora, por
da
Copa e agora se foram, humilhados
favor, não seja cruel”. Eu não quero
por
uma goleada. Isso me entristece,
saber o que ocorrerá, nem sequer
ainda
que a vitória alemã tenha sido
pressenti-lo, por que o melhor da vida
totalmente
justa.
está sempre esperando à volta da
próxima esquina. E te acrescento algo
mais: por sorte. Os prognósticos falham. O tempo brinca com quem pretende adivinhá-lo.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
35
Em que falhou a Argentina?
36
Obviamente não cuidou do meio
campo, faltou articulação entre a vanguarda e a retaguarda e Messi foi limpamente bloqueado, na boa lei, pela
defesa alemã. Talvez isso tenha algo a
ver com a “messidependência”. Quando há um jogador de qualidade tão extraordinária, inevitavelmente se
produz uma realidade assim. De todos
os modos, diga-se de passagem, Messi
jogou, durante toda a Copa, muito
melhor do que outra superestrela,
Cristiano Ronaldo, que esteve no
Mundial mas ninguém viu.
Pelé disse que Maradona não é um
bom técnico: Está de acordo?
Qual é o seu balanço do mundial até
agora?
Meu bom amigo Pacho Maturana,
que foi diretor técnico de duas seleções e de várias equipes de diversos
países, costuma dizer, e não se equivoca: “O futebol é um reino mágico,
onde tudo pode ocorrer”. Nós, latinoamericanos, estávamos felizes, pois
pela primeira vez na história quatro
seleções nossas chegavam à antepenúltima etapa e, subitamente, paf, ficou o Uruguai solito contra a Europa.
E, salvo essa exceção, o Mundial se
converteu em uma eurocopa. Um
pouco antes, já não havia africanos
competindo. Toda África ficou fora
neste Mundial que é o primeiro Mundial africano da história. Os irmãos
Boateng brindam a dramática metáfora do que ocorreu: um Boateng se
foi, o que jogava em Gana, e ficou o
Boateng que joga na Alemanha.
No futebol atual, o treinador desempenha um trabalho insalubre. Altamente tóxico, eu diria: é o bode
expiatório das derrotas, e o mesmo
povo que o eleva aos céus, num momento, o expulsa para o inferno logo
Foi justamente a Celeste que acabou
em seguida. Há alguns anos, as pesso- com o sonho africano. Como viveu os
as sequer sabiam qual era o nome do momentos finais da partida contra Gatreinador, que depois passou a ser na?
chamado de diretor técnico.
Foi um filme de Hitchcock. Me corA grande maioria das estrelas sula- tou a respiração. A minha e a de todos
mericanas está jogando na Europa. Há que assistiram à partida mais emociochances de que essa exportação de re- nante deste mundial. Ganhou o Urucursos futebolísticos seja revertida?
guai, como se sabe, e assim ficou
Não. Nós, dos países do sul do mun- selada a derrota de toda a África. Eu
do, seguiremos exportando mão de festejei e, ao mesmo tempo, senti uma
obra e pé de obra para o norte do funda tristeza. No futebol, como na
vida, há alegrias que doem.
mundo.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Por que essa seleção uruguaia está lhor para o mais sulamericano dos sutão forte?
lamericanos: de que estava doente o
Brasil para precisar desse tipo de rePor que acredita no que faz e o en- médio?
tusiasmo compensa o que lhe falta.
Não sei se chegará à final, mas volta a
ser milagrosamente certo que um país
com menos habitantes que um bairro
de Buenos Aires pode ser capaz de
conquistar o troféu mundial. Festejamos isso, os poucos que somos, porEntrevista concedida por Eduardo Galeano a
que o Uruguai é um país muito Gerhard Dilger. Disponível em http://www.carfutebolizado e aqui todos os bebês tamaior.com.br/?/Editoria/Midia/%27A-caminascem gritando goooooool!!! A ca- seta-celeste-tem-muita-energia%27/12/15871
miseta celeste tem muita energia .
dentro. E a história também ajuda. Este nosso paisito soube ganhar duas
Olimpíadas de futebol, quando o
Mundial ainda nem existia, e dois
campeonatos mundiais, o primeiro
aqui em Montevidéu, e o de 1950,
quando derrotamos o Brasil na estréia
do maior estádio do mundo, o Maracanã, diante do rugido de duzentos mil
torcedores.
O Brasil, com sua “receita Dunga”,
fracassou. Que conselho daria a seus
vizinhos com vistas a 2014?
Eu não gosto de dar conselhos, nem
de recebê-los, mas nós, latinoamericanos, não vamos bem quando copiamos as receitas do êxito europeu.
Nem no futebol, nem em nada. E não
precisamos copiar. Li e escutei várias
vezes, a propósito desta seleção alemã, a que compete agora, o seguinte
elogio: “Parece uma equipe sulamericana”. A receita Dunga não era a me-
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Rio de Janeiro, 2009.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
PENEIRAR COMO NO GARIMPO
No negócio da exportação de jogadores
de futebol, a grande maioria dos
talentos passa pela trama
Martin Ling
Trad. Monika Ottermann
Na economia mundial, o Brasil é
conhecido por seu papel de fornecedor de matérias primas: cana de açúcar, soja, borracha e muito mais. No
entanto, o Brasil é também o Número
Um na exportação de jogadores profissionais de futebol: em torno de
5.000 jogadores de futebol possuem
um contrato fora de seu país. Desde
1993, a exportação de jogadores de
futebol rendeu aproximadamente
dois bilhões de Euros. Quem ganha em
primeiro lugar com o negócio da exportação são os agentes dos jogadores e os diretores dos clubes,
enquanto muitos jovens são eliminados da peneira já no Brasil e ficam sem
perspectiva. O antigo técnico da seleção brasileira, Carlos Dunga, lamentou esta situação já em 2009: “Todo
mundo diz que o comércio de
jogadores é como prostituição, mas
todo mundo ganha com ele.”
Será que ele muda para a Europa
antes da Copa no Brasil ou depois? Foi
esta a pergunta que preocupou os fãs
do futebol brasileiro ao longo de alguns anos. Afinal, o Quem é quem dos
clubes europeus de ponta estava caçando o jogador no qual se depositavam as esperanças da nossa seleção:
Neymar do Santos Futebol Clube, o
clube de Pelé. Já para a Copa 2010 na
África do Sul, numerosos/as especialistas e torcedores no país pentacampeão exigiram a convocação do
talento excepcional, naquela época
com 18 anos – mas sem sucesso. O
técnico da seleção, Dunga, muito realista, não se deixou amolar pelos desejos dos românticos. No entanto, a
estrela dos atacantes recebeu ofertas
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lucrativas também sem sua participação na Copa, por exemplo, do FC
Chelsea de Londres, que ofereceu ao
jogador de 18 anos nos últimos meses
de 2010 a soma de 55.000 Libras (em
torno de R$ 22.000) por semana. Os
cartolas do Santos, porém, conseguiram convencer Neymar a ficar – por
meio de um aumento de seus salários
para aproximadamente R$ 16.000 semanais, mais contratos de patrocínio.
Por enquanto parece ter passado o
tempo em que os clubes brasileiros tinham que vender, custe o que custar,
todos os seus talentos para cobrir os
rombos no orçamento. O Brasil faz
parte dos países emergentes que vêm
prosperando nos últimos anos, e uma
parte do dinheiro proveniente da
economia acelerada vai também para
o futebol em casa. Deste modo, pelo
menos estrelas já meio superadas como Ronaldinho, Deco, Roberto Carlos
ou Luís Fabiano puderam ser trazidas
de volta para os clubes nacionais, com
fartos vencimentos.
Entretanto, para os craques atuais,
o caminho privilegiado para o desenvolvimento da carreira própria ainda
passa pela Europa: para a grande
massa, primeiramente por motivos financeiros, já que jogadores médios
ganham mesmo hoje no Brasil muito
pouco – 90% dos aproximadamente
23.000 jogadores profissionais de futebol recebem em torno de R$ 1.000
mensais apenas. Para os jovens
talentos excepcionais, são principalmente aspectos esportivos que os
motivam a cruzar o Atlântico. Por exemplo, Neymar acabou enfrentando o
risco esportivo “Europa” em meados
de 2013, ainda antes da Copa, animado pelo técnico da seleção, Felipe
Scolari. Desta mudança, Scolari esperava um novo salto no desenvolvimento de seu pupilo exemplar, já que o
futebol na Europa aposta mais em tática, força e disciplina. Neymar chegou
finalmente ao FC Barcelona, onde deve apoiar Lionel Messi, a estrela mundial argentina, e aliviar seu trabalho.
Porém: sua transferência já virou caso
de justiça. Oficialmente, ele trocou de
clube por “apenas” 57,1 milhões de
Euros. Deste valor foram transferidos
40 milhões para uma empresa da família de Neymar, e vários contratos
acessórios não declarados, no valor de
mais de 38 milhões de Euros, atualmente estão sendo verificados, porque podem ser sujeitos a imposto.
Neymar, hoje com 22 anos, é o ídolo
de inúmeros brasileiros e brasileiras,
bem como o modelo de milhões de jovens jogadores de futebol no país que
sonham com a grande carreira. A cada
ano, aproximadamente mil jogadores
vão para a Europa, não só para as divisões principais, mas também para o
Leste Europeu, para a China ou até
mesmo para as Ilhas Faroé. No futebol, “Made in Brazil” simboliza uma
mercadoria de primeira qualidade.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Neste contexto, a produção de craques de futebol é realizada de modo
cada vez mais profissionalizado: “Primeiro semeamos, depois colhemos, e
finalmente vendemos nosso produto
no mercado. Diretamente para a mesa
do consumidor. Nosso principal mercado de venda é a Europa.” É assim
que o ex-jogador profissional Roberto
Carlos descreve a estratégia de sua
Escola de Futebol CR Promoções. Ali,
mais de 80 meninos do Brasil inteiro,
todos de famílias pobres ou extremamente pobres, têm um contrato. A Escola de Roberto gasta ao ano cerca de
R$ 10.000 por menino com alimentação, treino, alojamento, saúde e educação. Tudo é apostado numa só carta,
o esporte, e a formação escolar é negligenciada. O capitão da seleção de
1982, lendária e derrotada na beleza,
Sócrates, criticou esse desenvolvimento tempos atrás numa entrevista
concedida à revista alemã Spiegel:
“Dessa maneira, estamos criando gerações de excluídos, pois dos milhões
de rapazes vidrados no futebol, somente uma parcela infinitamente pequena consegue se tornar uma
estrela. Todos os outros, já que ficaram sem educação, são condenados à
miséria.”
A estrela absoluta entre as escolas
de futebol tem a pretensão de articular educação e formação de futebol: a
Academia Traffic de Futebol, a escola
de futebol mais moderna do Brasil.
Trata-se de uma área enorme, de
180.000 metros quadrados, com um
total de sete quadras de futebol, academia e piscina, numa localização isolada em Porto Feliz, a cerca de 120
quilômetros a noroeste de São Paulo.
A Academia, que pertence à agência
de marketing Traffic Sports Marketing, possui até mesmo um clube de
futebol próprio que joga nas divisões
brasileiras: Desportivo Brasil. Nele
jogam as “joias” entre os rapazes de
11 a 18 anos e adquirem assim prática
no jogo e resistência na competição. A
meta dos investidores: lapidando e
burilando, transformar diamantes
brutos em pedras preciosas que são
vendidos no mercado internacional
com lucros máximos.
O investimento não é barato:
Rodolfo Canavesi, vice-presidente do
Desportivo Brasil, estima os gastos
anuais pagos pela Academia para cada
jogador em quase R$ 50.000. Contudo, os alunos precisam pagar com desempenho. Quem não consegue
acompanhar as exigências é rapidamente eliminado. “O que conta é o desenvolvimento e a venda de
indivíduos. Quando consigo vender de
cada curso anual cinco ou seis jogadores, tenho lucro”, afirmou Canavesi ao
website esportivo alemão SPOX.
A agenda dos alunos não é nada folgada. O dia começa às sete horas com
um desjejum elaborado por um nutricionista. Seguem 90 minutos de treino
matinal – sempre sob os olhares de
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técnicos com experiência internacional. À tarde há cursos de inglês ou
sessões com uma psicóloga. Depois
vem novamente o treino na quadra.
“Eles podem ser bons jogadores, mas
também precisam ser preparados para a vida”, diz Canavesi e afirma que
considera, de certo modo, todos os
rapazes como seus “filhos”. “Aqui maximizamos as chances desses meninos
de alcançar algum dia o status de profissional”, diz Canavesi. “Temos a melhor infraestrutura possível – muitos
clubes não podem oferecer as condições que nós temos nem aos seus jogadores profissionais.“
para muitos, o sonho continua sendo a
Europa. Para facilitar o salto para lá, a
Traffic Sports Marketing associou-se
em 2010 ao GD Estoril Praia, que jogava na época na segunda divisão de
Portugal. Ali, a empresa controla 74%
dos negócios. Hoje, o Estoril Praia está
na primeira divisão, possui um técnico
brasileiro e tem jogadores brasileiros
de sobra. O clube foi a sensação da Liga Europeia de 2013/14, onde infernizou a vida do SC Freiburg, e em
fevereiro de 2014, o time ganhou de 1
a 0 do FC Porto, pondo assim um fim à
série de 81 jogos em casa sem derrota
que era o orgulho desse campeão.
A capacidade da Academia é de
pouco mais de cem alunos. Ela espalhou scouts no Brasil inteiro – uma boa
condição para atrair ao clube somente
jogadores que prometem o negócio
mais lucrativo possível numa posterior venda. Mas também há olheiros na
Argentina, no Paraguai, Uruguai ou
Chile. O conceito parece estar dando
certo. Jochen Lösch, um alemão uruguaio, desde 2007 o responsável pelas
transferências internacionais de Traffic, estima em 70 a 80 por cento o número dos jovens que conseguem
ascender do Desportivo Brasil para
uma carreira profissional. “Em clubes
tradicionais como Corinthians São
Paulo, são um a dois por cento.”
O Estoril Praia é uma das assim
chamadas plataformas de saída para
os talentos novos que colhem ali suas
primeiras experiências na Europa. Para os jogadores, adaptar-se em Portugal é mais fácil, já por causa do idioma.
Em janeiro de 2013, o 1. FC Köln contratou o zagueiro lateral Bruno
Nascimento e atualmente parece interessado no meio-campo Evandro. Se
a venda der certo, também a Traffic
Sports recebe uma fatia do bolo, pois
possui direitos de transferência no
caso desse playmaker. Para cada jogador, a empresa vende somente 50%
dos direitos – ou seja, cada transferência traz novos lucros.
Ao lado da participação no GD EsMesmo que o futebol nacional bra- toril Praia, a Traffic Sports mantém,
sileiro tenha que oferecer hoje nova- através do Desportivo Brasil, uma remente mais do que nos anos 1990, lação de cooperação com o
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
dinheiro para o voo de volta, e ainda
por cima, nem o celular estava funcionando. “Foi um pesadelo”, lembra-se
Douglas dos Santos. “Eu estava totalmente desesperado.” Douglas demorou três semanas para conseguir
No entanto, o profissionalismo de- voltar a São Paulo, e seus companheimonstrado pela Traffic Sports na ros ficaram até mesmo seis semanas a
transferência de jogadores do Brasil mais.
para a Europa não é aplicado por toInfelizmente, é pouco provável que
dos e em todos os casos. Em 2006, a
revista alemã Spiegel publicou uma esse tipo de experiência mude algo
matéria sobre o atacante brasileiro nos anseios de jovens brasileiros por
Douglas Rodrigues que foi atraído pa- uma carreira profissional: diz-se que
ra a Europa pelo agente de conduta 90% sonham com ela. O caminho norduvidosa Wilson Bellissi que lhe pro- mal passa muito menos por academias
meteu um salário mensal de 3.000 de luxo à moda da Traffic, mas pela assim chamada peneira, um procediEuros.
mento seletivo duríssimo no qual
Ele e outros cinco rapazes jogariam talentos são examinados e “peneirana Romênia. Com base nessa promes- dos”. Os “bons” vão para a cumbuca e
sa, o pai de Douglas vendeu seu carro chegam até um dos grandes clubes, os
e comprou uma passagem aérea para “ruins” precisam esperar pela próxima
o filho. Contudo, no aeroporto, de re- oportunidade. Cafu, três vezes partipente, tudo era diferente: não seria a cipante de finais de Copa e duas vezes
Romênia, e sim a República da Moldá- campeão do mundo, teve que sobrevia. Ali, porém, na cidade de Chisinau, viver a 14 dessas peneiras antes que
o agente de contato não apareceu, e conseguisse um contrato.
os rapazes continuaram a viagem para
Centenas de rapazes pegam suas
Frankfurt – subitamente, o FSV Mainz
05 manifestou seu interesse. Os jo- chuteiras e vêm para esses testes. Seja
vens talentos permaneceram cinco nas academias, seja nas peneiras:
dias no aeroporto, ainda cheios de es- sempre pesa sobre eles uma pressão
perança, antes de saberem que, nova- imensa, quase sobre-humana. A maimente de forma inesperada, também oria vem de famílias extremamente
o Mainz tinha perdido o interesse e pobres, e para estas, os filhos repreque a próxima tentativa seria com o sentam muitas vezes a única chance
Eintracht Frankfurt. Também ela fra- de qualquer ascensão social.
cassou. Os rapazes não tinham
Manchester United. O Manchester já
comprou a opção preferencial por alguns jogadores que poderá ser exercida assim que algum deles alcançar a
maioridade.
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E aqueles como Neymar, que dão
conta do salto, provocam por sua vez
sonhos em toda uma geração de crianças brasileiras. Apenas há de se notar que a trajetória de Neymar é
atípica: já aos onze anos, ele jogava no
FC Santos e era considerado uma
“joia” pelos vários técnicos do clube.
Portanto, ele foi poupado do duro caminho de seleção pelas peneiras. Uma
exceção que se explica também, mas
não só, por seu talento excepcional.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
A COPA DE 2018 NA RÚSSIA
Vladimir Fomenko
Trad. Kristina Michahelles
Os dados foram lançados no dia 2
de dezembro de 2010, quando a FIFA
escolheu para sede de sua 21ª Copa
do Mundo um país cuja seleção nacional brilhou pela ausência nos dois torneios anteriores: a Rússia. No
segundo turno da votação, a candidatura russa conseguiu se impor contra
três importantes adversários: Espanha /Portugal, Holanda/Bélgica e a
Inglaterra. Um grito de júbilo ecoou
pelo público, mas soou algo artificial.
Em 2007, o COI já elegera o balneário
de Sóchi no mar Negro para sediar os
Jogos Olímpicos de Inverno de 2014.
O esporte internacional (re)descobriu
a Rússia. Em Sóchi, Vladimir Putin
apresentou uma lista orgulhosa dos
megaeventos realizados e por realizar: os Jogos Universitários Internacionais de verão e inverno em Kasan e
Krasnoiarsk, os campeonatos mundiais de atletismo, patinação artística,
hóquei no gelo, bobsled e skeleton, assim como, não por último, a Copa do
Mundo de 2018.
De fato, a decisão da FIFA representa o auge do reconhecimento para
o futebol russo. Mas o seu bom desempenho na arena internacional ficou bem para trás na História do
século 20. Em 1966, o time nacional
russo, a Sbornaja, perdeu nas quartas
de final da Copa da Inglaterra contra a
Alemanha e obteve o quarto lugar. Em
1960, a União Soviética foi campeã
europeia e, depois, conquistou três
vezes o segundo lugar, a última em
1988, sob o comando do treinador
Valeriy Lobanovskiy, que deu o nome
ao estádio do Dínamo de Kiev – a cidade que, no início de 2014, viu acontecer as batalhas dos protestos na
praça Maidan.
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Acaso ou destino?
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Nos anos seguintes, a equipe nacional russa saiu da cena internacional e
somente ressurgiu brevemente durante o Campeonato Europeu de
2008 na Áustria e na Suíça. O time,
sob comando do treinador Guus Hiddink, obteve a medalha de bronze e,
com isso, um lugar entre os dez mais
no ranking mundial da FIFA. O então
presidente russo Dimitri Medvedev
ofereceu a cidadania russa a Hiddink,
e houve rumores de que o holandês
até começou a aprender russo. Mas
logo em seguida, em 2010, veio o “pesadelo de Maribor”: a Rússia perdeu
para a Eslovênia e não pode disputar a
Copa na África do Sul, assim como
perdeu a viagem para a Alemanha
quatro anos antes. Hiddink teve de
voltar para casa, mas nem o seu conterrâneo Dirk ‘Dick’ Advocaat conseguiu fazer o time russo melhorar.
Basta lembrar o fracasso no Campeonato Europeu na Polônia e na Ucrânia.
As opiniões dividem-se quando se
trata de escolher a modalidade de esporte número um na Rússia. No topo
da lista estão o futebol e o hóquei no
gelo, dependendo da época do ano e
do sucesso internacional, entremeados pela patinação artística, se levarmos em conta a audiência na TV.
Engana-se, no entanto, quem imagina
que a Rússia é um país de frio e inverno. As pessoas anseiam por ar livre,
grama e sol, e por isso o futebol é uma
atração inigualável – tanto para assistir quanto para jogar. Em 2008, o famoso diretor de comédias russo
Alexander Rogojkin gravou o filme A
partida, ou especificidades do futebol
nacional. Não chegou a ser um sucesso
de bilheteria e só depois ficou claro
que o diretor teve um momento de
percepção extra-sensorial: no filme, a
Rússia sedia a Copa de 2018. Na partida final, joga contra a Romênia e ganha. Um cenário realista pelo menos
até a metade, pois a Rússia vai participar em 2018. Mas Rogojkin não podia
saber disso quando teve a ideia. Algo
de místico existe nessa história – a
Romênia na final, e por que não?
Já que o anfitrião é qualificado automaticamente, os amantes russos do
futebol não precisam mais ter medo
de não ver sua seleção na Copa. O
Brasil foi qualificado como primeiro
da chave, antes de Portugal – mesmo
que não tenha sido fácil, foi justo. No
dia 17 de junho de 2014 a Rússia defende seu primeiro jogo contra a Coreia do Sul no estádio Pantanal de
Cuiabá. O jogo começa à uma da manhã, horário de Moscou. Já se estimam altos índices de audiência, e as
expectativas são elevadas. Quatro
anos de boom de futebol estão no programa, pois a meta é que os estádios
de quatro cidades - Moscou, São Petersburgo, Kasan e Sóchi – estejam
prontos pontualmente para a Copa
das Confederações em 2017. Para a
própria Copa foram escolhidas onze
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
cidades-sede, numa dura batalha de
concorrência e depois de muitos debates políticos nos níveis federal e regional. Quem se sentiu injustiçado,
nesse processo, foi principalmente
Krasnodar, a capital da região de Kuban, sede de dois times da primeira liga. De nada adiantaram as petições
dos faz e reivindicações apresentadas
em massa. A cidade dos cossacos perdeu para Sóchi, situada na mesma região.
Em todas as cidades exceto Sóchi e
Kazan estão sendo construídos estádios novos. Moscou oferecerá duas
arenas. O tradicional estádio Lushniki,
que funciona desde 1956, vai abrigar
a partida inaugural, uma das semifinais e a final, e será reformado para
ter a capacidade prevista de 90 mil lugares. O segundo local de jogos, a futura arena do Spartak, deverá ser
inaugurada em 2014 junto com uma
nova estação de metrô. O construtor
responsável é Leonid Fedun, o proprietário do FC Spartak e vice-presidente da firma de petróleo Lukoil. É a
única obra para a Copa de 2018 financiada integralmente com dinheiro
privado. O estádio terá lugar para 44
mil espectadores e vai contribuir para
reduzir o déficit em lugares para futebol durante o período de obras de
ampliação do estádio de Lushniki na
capital. Atualmente, Moscou está representada com quatro times na primeira divisão russa.
O escândalo em torno do projeto da
ilha Krestovsky em São Petersburgo
continua sendo o maior abacaxi dos
gerentes da FIFA. Projetado pelo japonês Kish Kurokawa em 2005, já é o estádio mais caro do mundo. Os custos
não param de crescer, enquanto todos
os prazos da obra estão sendo regularmente derrubados. O chefe do governo, Medvedev, fala de um escândalo e
nega qualquer novo subsídio estatal.
Nos blogs da Internet, surgem comparações: com o dinheiro investido na futura arena Zenit daria para construir
2,2 estádios londrinos Emirates ou 3,5
arenas Donbass de Donezk. A Gazprom, originalmente responsável pelo
financiamento do estádio, repassou a
responsabilidade para a Prefeitura de
São Petersburgo. Agora, a cidade financia o megaprojeto e o gigante do
gás serve suas receitas tributárias. O
prefeito Georgy Poltavchenko já reduziu as expectativas: a cidade contribuirá com 35 bilhões de rublos, e nenhum
centavo a mais. Os pessimistas falam
de uma despesa total de 45 a 50 bilhões de rublos (mais de um bilhão de
euros). Não é por isso que a Copa vai
fracassar. O estádio mais setentrional
no Golfo da Finlândia, um estádio de
elite da Uefa, com 70 mil lugares, do
tamanho de três Praças Vermelhas,
cobertura retrátil e gramado móvel,
estará pronto pontualmente para a
Copa das Confederações. O ministro
dos Esportes, Vitalij Mutko quer pessoalmente que o estádio seja usado no
Mundial de 2018.
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Ministro Mutko, dos esportes: três cidades esperam desde já poder lucrar
anos passaram, há quatro pela frente com a Copa e um boom turístico.
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O lema é economizar. O orçamento
da Copa é de “modestos” 663 bilhões
de rublos, sendo que um terço cabe à
FIFA, um terço aos patrocinadores e o
último terço aos cofres do Estado. Isso
cai bem para a opinião pública. Vale
observar as duas cidades-sede “exóticas”, Saransk e Kaliningrado. Saransk,
a capital da Mordóvia, recebeu da
FIFA (e do ministro Mutko) algo parecido com um coringa. Além de uma
arena moderna, faltam hotéis e infraestrutura. O exclave báltico de Kaliningrado também começa da estaca
zero. A prioridade é o aspecto político,
diz-se. Kaliningrado seria um local
ideal de jogos para equipes da Europa
(Alemanha, Polônia e talvez até a Romênia) e é o posto avançado do oeste:
com Ecaterimburgo, nos montes
Urais, e Sóchi, no sul, forma o grande
triângulo da Copa. Como uma parte
de Ecaterimburgo faz parte da Ásia,
será a primeira vez que uma Copa se
realiza concomitantemente na Europa
e na Ásia.
Esperam-se impulsos para a infraestrutura em numerosas outras cidades russas. 32 seleções nacionais
precisarão de alojamento e locais para
treinar. A FIFA já tem uma lista de 33
cidades que se candidataram. O sorteio dos grupos só vai acontecer no
dia 25 de junho de 2015, mas Kaluga,
Ulianovsk, Krasnodar e muitas outras
Pensando projetos no Kremlin
O que significam, para a Rússia atual, o esporte de ponta e os megaprojetos a ele ligados? A resposta mais
usual significa: nada além da expressão de uma vontade de pensar projetos no sentido negativo. Depois de
Sóchi e da Copa, será a vez dos Jogos
Universitários de Interno de 2019 em
Krasnojarsk (cidade escolhida – sem
alternativas – depois da renúncia de
St. Gallen no ano anterior). Em 2015
serão recebidas as candidaturas para
a realização dos Jogos Olímpicos de
Verão de 2024. Discute-se a candidatura de São Petersburgo. Na lista estão também as cidades de Baku, Doha,
Roma, Istambul e outros, inclusive
Berlim.
Não se sabe se este acúmulo de
megaprojetos é uma ideia fixa do chefe do Kremlin ou se deriva da política
de modernização do país. Mas uma
coisa é certa: depois do ganho em valor nacional com os jogos olímpicos
em Sóchi (observe-se: pela primeira
vez na história pós-soviética), o esporte assume um lugar de crescente
importância para a consciência social
e a política russa. Isso está ligado, por
um lado, com a ideologia de um novo
conservadorismo e, por outro, com
uma abertura mais tolerante em rela-
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
ção a um ambiente que se globaliza.
Ou, para citar o presidente do COI,
Thomas Bach: “Todos aqueles que
olham para a Rússia sem preconceitos
viram em Sóchi um novo rosto deste
país, um rosto bem-sucedido, simpático, patriótico e aberto para o mundo”. Os otimistas chegam a ver uma
“purificação” que faz a Rússia progredir. Poucos dias depois, essa visão foi
prejudicada pelos acontecimentos na
Crimeia, espera-se que não de forma
irreparável.
no mundo. Com estimados 11 milhões
de migrantes, está entre os EUA e a
Alemanha. Em Moscou vivem atualmente cerca de 2 milhões de imigrantes, em sua maioria provenientes dos
antigos países da União Soviética. A
quota federal prevê uma décima parte
desse total. O resto, segundo Karimov, serve de instrumento de pressão
contra a seguridade social de trabalhadores russos. Há um ano tentou-se
instituir a ideia de uma semana de 60
horas de trabalho para trabalhadores
russos, enquanto o emigrante em méO papel atual do esporte para a so- dia já agora rala 57 horas por semana.
ciedade e a política é tão dinâmico
quanto ele próprio e depende dos
Esses e outros fatos fazem parte de
atores se eles querem usar essa van- um estudo feito em 2013 pelo Centro
tagem ou ignorá-la – o que parece ser de Moscou para Direitos Trabalhistas
o caso da oposição, tanto dos liberais e Sociais, que teve por objetivo invesquanto da esquerda. Os motivos para tigar a influência de trabalhadores
tal são padrões de pensamento con- estrangeiros sobre os direitos trabaservadores (“impossível unir esporte e lhistas de cidadãos russos. Segundo
política”) e talvez também a frustra- esse estudo, 60% dos emigrantes e
ção com o visível domínio da direita 22% dos trabalhadores com passanacionalista nos movimentos de fãs.
porte russo estão em relação precária
de trabalho – ou seja, sem contrato de
trabalho. 18% dos emigrantes e 8%
dos russos trabalham sete dias por
O custo social
semana. O salário em média é de 90 a
Enquanto isso, o boom de constru- 132 rublos por hora (cerca de 2 a 3,5
ção olímpica tem cobrado um preço euros). As mulheres estrangeiras gaelevado. Segundo Renato Karimov, nham ainda menos: 77 rublos por hopresidente do Sindicato dos Traba- ra. E 20% dos emigrantes e 13% dos
lhadores Migrantes de Moscou, Sóchi russos indicaram ter experimentado
foi construída por migrantes sem sta- trabalhos forçados.
tus legal. Segundo dados da ONU, a
Rússia é o segundo maior país do
mundo que mais atrai trabalhadores
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Lei sobre trabalho escravo
50
Toda essa questão ganhou relevância por causa do Mundial de Futebol.
Durante o verão de 2013, o presidente Putin assinou a lei FZ-108 “sobre os
preparativos para a Copa de 2018”.
Alguns pontos tornam esse documento um pano vermelho para os sindicatos, que há meses já se mobilizam
contra a lei. De um lado, a lei levanta
garantias de direito mínimas contra
trabalho desregulamentado, horasextras, turnos noturnos e aos domingos. Por outro lado, o controle do Estado sobre o emprego de
trabalhadores estrangeiros foi totalmente abolido. Nos dez estádios em
obras na Rússia, de Moscou a Kaliningrado, nos próximos anos não se precisará nem de autorização de trabalho
do Serviço de Migração, nem do aviso
habitual das repartições ligadas ao
trabalho ou tributárias sobre emprego e demissão de migrantes. Tudo fica
a cargo do empregador. Os estimados
75 mil a 100 mil trabalhadores empregados nas obras dos novos estádios da Copa ficam num vácuo jurídico.
nas obras da Copa, o mercado nacional de trabalho está sendo esvaziado,
com consequente redução dos salários e das garantias de direitos trabalhistas, bem como um aumento do
desemprego. Segundo ele, a lei deveria ser anulada e reescrita com a participação dos sindicatos. Situação
parecida foi observada antes do Campeonato Europeu de 2012 na Ucrânia,
mas todas as instâncias de decisão,
inclusive a Uefa, fizeram vista grossa
na época. O show era mais importante.
No âmbito das consultas da Comissão Trilateral (Estado, empregadores,
sindicatos), a KTR aprovou a resolução de rever a lei escandalosa – um
bom sinal para dezenas de milhares de
trabalhadores ocupadas nas obras, no
saneamento urbano e nos inúmeros
serviços durante a própria Copa. A lei
regula o status da totalidade de pessoas ocupadas de todas as empresas
reconhecidas como “FIFA-Contractors”. Isso inclui muitas empreiteiras,
fornecedores, dúzias de patrocinadores e licenciadores da FIFA, bem como
suas filiais – agência de recrutamento
A Confederação Russa do Trabalho e de serviços terceirizados, empresas
(KTR), associação sindical indepen- nos ramos de segurança, catering, pudente e parceira da Fundação Rosa blicidade, etc.
Luxemburg, teme um aumento da criminalidade ligado ao comércio humano e a trabalhos forçados, incluindo
menores de idade. Segundo o ativista O que acontece no futebol russo?
Alexander Lechtman, da KTF, o trabaDepois do breve êxito em 2008, o
lho escravo é praticamente legalizado futebol russo praticamente ficou apa-
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
gado no cenário internacional. Os dois
clubes mais populares, Spartak e ZSKA Moscou, tiveram de deixar a Liga
dos Campeões vergonhosamente por
duas vezes seguidas. Cai o interesse
pela primeira divisão russa, estagnam
ou caem os números de visitantes e da
audiência. A Confederação Russa de
Futebol (RFB) impôs ao campeonato
russo o calendário europeu outonoprimavera. A consequência são campos cobertos de neve e tribunas vazias, enquanto as arenas modernas
ainda estão por ser construídas. Mas o
negócios dos agentes esportivos está
florescendo, times de excelência já se
integraram totalmente na bolsa internacional de jogadores. O limite interno de legionários foi flexibilizado
drasticamente: agora, até sete estrangeiros podem se candidatar simultaneamente a jogar fora do país.
Os clubes de Moscou e São Petersburgo financeiramente mais importantes são vergonhosamente egoístas
e orientados pelo lucro – e preparam
um novo golpe: um campeonato conjunto com 18 seleções de ponta da
Rússia e da Ucrânia, bem como uma
segunda divisão comum como alternativa às duas nacionais. O argumento é o de que a integração é o único
caminho para resolver a crise do futebol doméstico e responder às demandas da Uefa por um fair play financeiro
ao qual hoje a maioria dos clubes russos e ucranianos não correspondem. A
alternativa seria uma liga “top” com
altas receitas ou um aumento drástico
do limite superior para o financiamento por acionista. A visão pesa um
bilhão de dólares e é uma ideia de
Alexei Miller, chefe da Gazprom, mais
ou menos acompanhado pelos donos
dos grandes clubes russos. As federações nacionais, a Uefa e a grande maioria dos clubes da primeira divisão
estão céticos. Os recentes acontecimentos políticos na Ucrânia reduzem
as chances de sucesso para este projeto ou até mesmo o inviabilizam no
médio prazo.
Primeiro o dinheiro, depois o esporte
O bem-sucedido exemplo da Liga
Continental de Hóquei sobre o Gelo
foi emblemático para o projeto de
Miller. Desde 2008, a Liga é responsável pelo jogo popular na Rússia, no
âmbito de acordos de três anos de duração com a federação nacional. Do
torneio do KHL também sai o campeão russo de hóquei sobre o gelo. O
ganhador da série final Leste-Oeste
recebe a taça Gagárin. Segunda liga de
hóquei sobre o gelo mais forte do
mundo (depois da NHL norte-americana), a KHL atrai cada vez mais atores da Europa e da Ásia. Dos 24 clubes
originais, cresceu em sua sexta temporada para um total de 28 clubes da
Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão,
Letônia, Ucrânia, Eslováquia, República Tcheca e Croácia. Para 2014/15,
está programada uma ampliação para
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32 times. A seleção de Jokerit de
Helsinki também vai trocar a “SM-liiga” finlandesa pela KHL. A dominação
russa no ramo do hóquei sobre o gelo
europeu passou por um grande mudança estrutural graças ao capital da
Gazprom.
fórmula estrangeira “10 + 15“ (até dez
jogadores estrangeiros simultaneamente no grupo) para a próxima temporada significaria o fim da Sbornaja,
acha o diretor honorário do RFB, Viacheslav Koloskov. Os dois lados enrijeceram suas posições, e a evolução
futura certamente também dependeEsses procedimentos ousados cho- rá do comportamento da seleção ruscaram o mundo esportivo e alguns sa no Brasil.
políticos. O senador Vjacheslav
Fetisov, lenda viva do hóquei sobre o
gelo, iniciou um boicote financeiro aos
clubes, ou seja: nenhum centavos mais Hooligans versus futebol
deve sair dos caixas das grandes emNos últimos anos, o noticiário sobre
presas com participação estatal para o futebol russo foi marcado por uma
os clubes. “A Bósnia-Herzegovina vai série de escândalos nos estádios. Em
participar da Copa no Brasil? Por que novembro de 2012, um goleiro do
não devemos seguir o caminho da Dynamo de Moscou foi ferido por um
Bósnia? Um clube deve gastar tanto explosivo arremessado por um torcequanto ganha”, diz Juri Belous, ex-di- dor. Pouco antes, um jogo da Taça da
rigente do FC Rostov. O conflito só vai Rússia foi interrompido por distúrbios
se aguçar. O novo treinador nacional no público. Hostilidades, ofensas, paFabio Capello, a grande esperança do lavras de ordem obscenas na torcida
ministro Minister Mutko, prorrogou o fazem parte do dia a dia. O apogeu
seu contrato com o RFB até 2018 e triste aconteceu no dia 30 de outubro
possivelmente vai atuar em uma con- de 2013 em Jaroslawl durante um jotrarreforma que prioriza os interesses go da Taca da Rússia: 5 mil torcedores
da seleção nacional. Ele não imagina do Spartak vindos de outras partes do
nenhum “caminho bósnio” (a seleção país travaram uma batalha de quase
completa da Bósnia joga no exterior). uma hora com unidades especiais
Capello, que tem 67 anos, quer que no OMON da polícia, enquanto na tribumínimo cinco ou até seis jovens joga- na surgiu por alguns segundos uma
dores russos tenham a oportunidade bandeira com uma suástica. Um tribue o direito de jogar com a casa cheia – nal sentenciou um fã de Vladimir a
e não no frio do inverno – como titula- pagar multa de 1,5 milhões de rublos
res das principais equipes da primeira (cerca de 30 mil euros) ao FC Spartak.
divisão. Os lobistas da primeira divi- Isso foi um marco importante. Nunca,
são planejam uma cesura: a nova antes, um torcedor russo foi tão
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
duramente castigado. Uma lei sobre
as torcidas aprovada em 2013 visa
acabar com a confusão e a queda no
número de visitantes aos estádios.
Prevê “listas negras”, castigos mais
duros e medidas de segurança. Ao
mesmo tempo, a Duma discute voltar
a autorizar a venda de cerveja nos estádios, sempre apontando para os
costumes no ocidente. Desde 2005, a
Rússia proíbe vender ou levar cerveja
para os estádios.
As pessoas que simplesmente se interessam por futebol demonstram um
descontentamento crescente com o
comportamento não apenas dos fãs
radicais como também dos legisladores. A atmosfera nos estádios, que
crescentemente viram palco de grupos marginalizados de com fundo xenófobo, fica tensa. Este tipo de
evolução é um desafio principalmente
para a Copa planejada. No exterior
surgem acusações de que ataques racistas fazem parte do cotidiano do futebol russo. Vagner Love, o jogador
estrangeiro mais bem-sucedido e
campeão de gols em 2008 na primeira
liga, delimita o fenômeno à região de
São Petersburgo e diz que teria sido
vaiado apenas uma vez lá. Dá para entende: afinal, Love jogou durante sete
anos para o ZSKA de Moscou, cujo arquirrival é o Zenit São Petersburgo.
Rússia entre muitos grupos organizados de torcedores tanto quanto em
outros lugares do mundo, O importante é que a sua influência e a aceitação de suas ideias diminuam. Quando,
em 2012, saiu publicado um “manifesto” escandaloso no site de um clube
de torcedores do Zenit São Petersburgo – entre outras reivindicações,
pedindo que o clube escolha seus jogadores segundo a cor da pele e
orientação sexual - a maioria dos torcedores reagiu com crítica e o episódio foi visto como perda de reputação
para o Zenit e para a Rússia. A Federação Panrussa de Torcedores chegou
a cogitar em processar o clube, o que
antes teria sido impensável. O episódio mostra como é tensa a situação
social na Rússia, em especial em relação aos migrantes.
A Copa no Brasil tem por lema a luta
contra qualquer forma de racismo.
Trata-se de um país que respeita a diversidade, disse a presidente Dilma
Rousseff em fevereiro de 2014. Quatro anos mais tarde, será a vez da Rússia… E o país gigantesco se apresenta
para dentro e para fora com modernas
instalações esportivas, uma infraestrutura desenvolvida nas grandes cidades e na província, um autêntico
espírito de fair play e uma cultura (de
consumo) simpática e entusiasmada
em torno do futebol, aquele jogo fasViolência, xenofobia e ideias nacio- cinante para pequenos e grandes, munalistas e até de extrema direita infe- lheres e homens, pobres e ricos, fieis e
lizmente podem ser encontradas na ateístas... Afinal, queremos projetar
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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um futuro positivo, não é mesmo? E,
claro, a cena final do filme: Rússia
contra Romênia, com um final feliz...
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Epílogo. Em 2018 se realizarão na
Rússia as próximas eleições presidenciais. E chega de sonhar aqui...
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
O BRASIL TREINA COM
BLINDADOS, CANHÕES DE ÁGUA E
PISTOLAS
Christian Russau
Trad. Kristina Michahelles
O real está em campo. Para as
grandes empresas, a Copa do Mundo
e as Olimpíadas no Brasil significam
um negócio e tanto. E não só para as
empresas que participam da construção dos estádios. Pois o Brasil também
está comprando equipamentos técnicos de segurança para se armar e proteger contra potenciais terroristas – e
contra a massa de manifestantes. Empresas da Alemanha e da Áustria encabeçam a lista de fornecedores,
enquanto críticos da Copa alertam
contra a militarização no interior do
país.
O Globo, maior jornal brasileiro, teve
esse entendimento. “A Polícia Militar
do Rio de Janeiro aposta em uma nova
arma para controlar manifestações:
um canhão de água com jato de forte
pressão. Quem foi ao centro da cidade
neste sábado pôde ver o veículo, escoltado por batedores, em direção da
sede do Batalhão de Choque na Cidade Nova.” A matéria, escrita no auge
das manifestações, avisa que “os turcos que foram às ruas em Istambul
conhecem bem a força desse jato de
água”. E na foto de um dos canhões de
água não é difícil identificar duas letras em um círculo: V e W – a logo da
Ele é grande. Negro. Seu número de maior montadora da Alemanha, a
conhecimento é 27-0002. Está no país Volkswagen.
desde final de junho de 2013 e vem
sendo utilizado nas ruas contra maniCorte. Outro programa, outro cefestantes. No carro há um assento. De nário: imagens ao vivo de Istambul na
lá se dispara o jato de água. Quem for internet, praça Taksim, manifestantes
atingido é derrubado na rua, podendo envoltos numa nuvem de gás lacrimoser ferido. Até o jornal Extra, filhote de gêneo. Os projéteis vazios estampam
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a imagem da bandeira brasileira e a
expressão made in Brazil. Os cartuchos
são da Condor Tecnologias Não-Letais
S.A., um fabricante de armas não-letais, como se autodesigna a empresa
com sede no Rio de Janeiro, uma das
maiores produtoras mundiais de gás
lacrimogêneo. Procurada, a Condor
Tecnologias confirmou ter fornecido o
gás. “A Turquia é um dos países para
onde a Condor exporta, mas a polícia
turca também compra esse tipo de
equipamento de outros fornecedores,
americanos e coreanos entre outros”,
diz um comunicado da empresa. Enquanto no Rio veículos blindados alemães deixam manifestantes em
pânico, na praça Taksim em Istambul
eles fogem do gás lacrimogêneo brasileiro. O novo modelo de divisão internacional do trabalho.
exemplares chegaram em maio de
2013 e foram empregados pela primeira vez durante a visita do Papa nas
Jornadas Mundiais Católicas no Rio
de Janeiro. “Precisamos dos blindados
para proteger as pessoas nos estádios
durante os megaeventos”, argumentou o general da Aeronáutica, Marcio
Roland Heise. O carro de combate
dispõe de dois canhões de 35mm e é
capaz de abater aviões a curta distância. O preço total para a frota de blindados produzida por Krauss-Maffei,
Blohm + Voss e Siemens está estimada
em 40 milhões de dólares.
Também o pequeno fabricante austríaco de armas Glock vai lucrar com
os eventos esportivos no Brasil. Segundo informações do jornal Gazeta
do Povo, a polícia federal e a Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro
fecharam um acordo exclusivo com a
empresa para armar duas unidades de
polícia durante os Jogos Olímpicos a
serem realizados no Rio de Janeiro em
2016. Segundo relatos dos jornais,
militares e policiais brasileiros viajaram para Viena, custeados pela “famosa firma austríaca”.
Mas a indústria do armamento oferece outras opções. Nos preparativos
dos megaeventos esportivos, o governo brasileiro não hesitou quando se
tratou de ir às compras sob o lema
“proteção contra riscos e terrorismo”.
Por 70 milhões de dólares, o Brasil
encomendou equipamentos de segurança nos EUA, em Israel e na AlemaPelo menos a aquisição dos blindanha: blindados, drones, robôs com
dos
alemães, segundo a Folha de São
controle remoto com câmeras e dePaulo
segue uma recomendação extectores de substâncias químicas.
pressa da FIFA. Até mesmo críticos
Da Alemanha, o Brasil comprou 34 como o sociólogo e urbanista Carlos
exemplares usados do tanque Gepard Vainer, do Ippur/UFRJ,apontam para
1A2 que também pode ser controlado o fato de que as providências de arremotamente.
Os
primeiros mamento foram exigidas por
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
organismos internacionais como a federação Internacional do Futebol. “A
FIFA se dirigiu às nossas Forças Armadas na condição de consultor militar e determinou que tipo de armas
teriam de ser compradas, ridicularizando totalmente a soberania militar”.
Vainer adverte que os megaeventos
dão um novo impulso à militarização
da segurança pública – segundo ele, “o
legado mais obstinado da ditadura
militar”. Além disso, a criação de uma
Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos
fere o princípio federativo do Brasil e,
com isso, a ordem democrática do
país. “Essas inovações técnicas em
nome do futebol deixarão como legado transformações duradouras antidemocráticas e inconstitucionais”,
teme o professor.
Amorim sobre a “garantia da lei e da
ordem”. Ela se refere explicitamente
ao “período antes e durante o evento”.
E o ministro da Defesa não pega exatamente leve: protestos durante a
Copa podem ser classificados como
“atos terroristas”, passíveis de 15 a 30
anos de prisão.
No final de junho de 2013, a mídia
brasileira começou a noticiar as preocupações dos patrocinadores internacionais da Copa. Eles temem que os
protestos possam vir a prejudicar a
imagem das suas marcas. O governo
brasileiro, pelo jeito, reagiu com todos
os meios legais à sua disposição. No
país do futebol, não pode acontecer o
que não pode existir: protestos contra
o futebol e a Copa, contra as despesas
milionárias do Estado, contra as remoções por causa do boom imobiliário
A preocupação é compartilhada nas doze cidades-sede.
também por muitas organizações e
Quer dizer que nem tudo é tão inomovimentos da sociedade civil, que há
fensivo
quanto gostam de assegurar
anos vêm alertando contra a militarios
patrocinadores
da FIFA? Os fabrização do espaço público. Face às
cantes
de
assentos
para os estádios
aquisições de armas pelo governo que
dos
Estados
da
Francônia
e da Suábia,
agora se tornaram públicas, cresce a
os
escritórios
de
arquitetura
e de plapreocupação de que até as Olimpíanejamento
de
Berlim,
Munique,
das de 2016 o Rio de Janeiro venha a
ser “completamente militarizado”, co- Stuttgart e Hamburg, será que a demo diz uma análise detalhada do Co- senvolvedora alemã da tecnologia da
mitê Popular das Olimpíadas e da linha do gol, o fabricantes de chuteiras
Copa do Mundo no Rio de Janeiro. Is- da Francônia com as três listras ou as
so combina com informações mais re- mais de cem empresas alemãs que já
centes sobre a Portaria Nr. 3.461/MD em 2010 aderiram à inciativa WinWin
assinada em 19 de dezembro de 2013 2014/16“ a fim de transferir conhecipelo ministro da Defesa Celso mentos alemães ao Brasil por ocasião
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da Copa, a Confederação da Indústria
Alemã que instalou um conselho brasileiro especialmente para a Copa de
2014 - será que todos eles têm consciência de que o seu envolvimento
pode representar um risco de imagem? Nas últimas décadas, participar
de eventos como a Copa costumava
trazer um ganho em imagem para as
empresas, mas provavelmente isso
continua um ponto de interrogação
face à esperada onda de protestos no
Brasil neste ano. Pelo menos s empresas não deviam ter tanta certeza, pois
“o Brasil não é para amadores”, como
costumava dizer o compositor Tom
Jobim.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
O EMBAIXADOR DE MARCAS:
PAUL BREITNER NO BRASIL
Gerhard Dilger
Trad. Kristina Michahelles
Paul Breitner é um visitante
popular em São Paulo. Num sábado
ensolarado de abril em 2013 o campeão mundial de 1974 e “embaixador
de marcas” de Munique esteve pela
segunda vez na megametrópole brasileira numa visita-relâmpago para
promover a Copa da Juventude do
Bayern de Munique (FC Bayern Youth
Cup).
semanas depois no canal de TV inglês
ITV).
Pode ser. Mas os motivos para a miséria do futebol brasileiro também
têm – e principalmente – origens estruturais. Os maiores talentos continuam sendo exportados, ainda que
essa tendência esteja declinando com
a crise financeira na Europa e a fase de
crescimento no Brasil do século 21.
Mais problemática é a estrutura emperrada do negócio do futebol, comandado por funcionários corruptos,
os príncipes regionais (presidentes
das federações) e a TV Globo. Um exemplo: o Campeonato Brasileiro da
Primeira Divisão é realizado em 38
dias de jogos ao longo de apenas sete
meses.
Ao avaliar o futebol local, o "embaixador" Breitner não foi nada diplomático. “Hoje, o Brasil já não toca mais o
primeiro violino, nem mesmo o segundo ou o terceiro. Os brasileiros
dormiram nos seus louros, ficaram
parados uma década e jogam um futebol do passado. O futebol do século 21
é jogado na Europa” (e, lá, principalmente na Espanha e na Alemanha – o
“Para mim, penteado ou roupa são
futebol da Premier League britânica
acessórios
secundários”, diz Breitner
também é “chato, já era”, declarou
secamente, acostumado à provocação
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dos repórteres por causa do seu antigo visual afro e solicitado a listar os
“cinco penteados mais lindos” entre os
jogadores na ativa. “Mas o meu antigo
penteado voltou a entrar na moda,
como demonstra o jogador brasileiro
Dante, do Bayern”. Existem jogadores
chamados Breitner na Alemanha, como no Brasil e na Colômbia? “Não, entre os jogadores alemães não costuma
haver nomes artísticos, e as crianças
não podem ser batizadas com sobrenomes”.
No Brasil é diferente. Embora
Breitner, embaixador e olheiro do
Bayern, tivesse observado atentamente várias das partidas de vinte
minutos nas belíssimas instalações
esportivas do Colégio Porto Seguro,
essa variante da Copa da Juventude
não parece ser muito propícia para
buscar talentos fora do ramo estabelecido de clubes. Dessa vez, quem ditou as regras foi a Câmara
Brasil-Alemanha de Indústria e Comércio.
Da rodada final brasileira no segundo Youth Cup que Breitner veio assistir em São Paulo participaram os times
das três escolas alemãs – Corcovado,
no Rio de Janeiro, Humboldt e Porto
Seguro, de São Paulo, bem como as
escolas Pastor Dohms (Porto Alegre)
e Benjamin Constant (São Paulo), em
que também se ensina o alemão.
Na seleção das equipes, foi evidente
a influência dos interesses dos patrocinadores Audi e a seguradora Allianz
– envolvida no megaprojeto da hidrelétrica de Belo Monte –, que querem
ampliar a sua presença em São Paulo,
no Rio de Janeiro e em Porto Alegre.
Dessa forma, além das placas de publicidade superdimensionadas na beira do
campo, os jovens também vestiram ca“Na Índia, participam jovens de fave- misetas com as logomarcas dos patrocilas que jamais teriam oportunidades pa- nadores por cima dos uniformes
recidas”, diz Breitner. Na Áustria, escolares.
segundo ele, surgem talentos dos bairros operários de Viena. Efetivamente,
O vencedor – com louros – foi a
em vários países a Copa da Juventude equipe de Benjamin Constant, que setem um lado social. Os dez jogadores manas mais tarde viajou para a rodada
austríacos entre 12 e 16 anos que via- final em Munique. Não por acaso, o tijaram para a rodada final em Munique me – assim como a própria escola, do
eram todos provenientes de institui- bairro paulistano de classe média de
ções sociais, e todos os alemães inte- Vila Mariana – era bem mais misturagravam times da divisão de ruas do em sua composição étnica e social
intercultural buntkicktgut (Interkulturelle do que as três escolas alemãs praticaStraßenliga buntkicktgut) de Munique.
mente totalmente “brancas”.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Além do "Brasil, participaram da
rodada final em Munique times da
China, da Alemanha, da Itália, do Japão, da Áustria e da Rússia. Os alunos
de São Paulo conquistaram o quinto
lugar. Em 2014, ano da Copa, o FC
Bayern Youth Cup voltou a ser realizado sem participação brasileira.
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Rio de Janeiro, 2013.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
O CONTEXTO BRASILEIRO
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Ziraldo e Henfil sobre a Copa de 1970.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
1968-1984: DA MILITARIZAÇÃO DO
FUTEBOL ATÉ A DEMOCRACIA
CORINTHIANA
Thomas Fatheuer
Trad. Monika Ottermann
O fracasso da seleção na Copa 1966
na Inglaterra lançou o futebol brasileiro numa profunda crise. Os responsáveis mostraram um ar perdido e
errático. O nome do então presidente
da Confederação Brasileira de Desportos ficaria mais tarde conhecido
por torcedores do futebol no mundo
inteiro: era João Havelange.
Saldanha não tinha nada de um técnico profissional. Era jornalista – e um
dos críticos mais ferozes da seleção.
Mas havia outro aspecto que tornava
sua escolha uma sensação: Saldanha
era esquerdista confesso e supostamente membro do proibido Partido
Comunista Brasileiro. Sob seu comando, a seleção brasileira realizou
uma série de excelentes jogos e se
A primeira tentativa de superar a qualificou sem nenhum ponto negaticrise consistia na militarização do fu- vo.
tebol. Em 1968 instituiu-se uma Comissão Nacional de Futebol para
Nesse contexto ocorreu no dia 31
aplicar a hierarquia militar também ao de agosto de 1969 uma estranha
futebol. Esse lance foi outro fracasso. coincidência. Em junho de 1969, o
Em 1969, com a fase de qualificação presidente Artur da Costa e Silva,
para a próxima Copa às portas, o ner- eleito durante a ditadura militar, adovosismo cresceu. Nessa situação, eceu com tal gravidade que não podia
Havelange decidiu dar um passo sur- continuar no exercício do cargo. Os
preendente e ousado, provavelmente militares fizeram de tudo para evitar a
nascido do desespero: ele nomeou passagem do cargo para um vice-preJoão Saldanha treinador da seleção. sidente civil. Em 31 de agosto, eles
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baixaram um ato que mudava a Constituição, o AI-12, e instituíram uma
junta militar sob o comando de Emílio
Garrastazu Médici. No mesmo dia, o
Brasil e o Paraguai encontraram-se no
Rio de Janeiro, no Maracanã. Era o último jogo da qualificação, o jogo decisivo. Mais de 180.000 pessoas
presenciaram a vitória do Brasil (1:0) e
sua qualificação para a Copa do Mundo 1970 no México. Mais tarde,
Saldanha contou uma história muito
especial sobre esse dia 31 de agosto:
antes do jogo, o General Eloi Menezes,
responsável pelo esporte, o teria informado que o presidente Costa e Silva teria morrido e que deveria ser
observado um minuto de silêncio em
sua homenagem. Já que Saldanha esperava em vez do silêncio uma onda
de apitos, ele desaconselhou o ato. O
minuto de silêncio não foi realizado –
e o suposto falecimento revelou-se
como notícia falsa: Costa e Silva faleceu apenas em dezembro.
futebol era o ditador. Era previsível
que essa situação não podia durar por
muito tempo.
Saldanha foi demitido ainda antes
da Copa no México. Sobre sua demissão circulam até hoje duas versões diferentes. A história mais popular é
sem dúvida aquela que afirma que
Médici quis se intrometer na composição do time para conseguir a nomeação de Dario José dos Santos (“Dadá
Maravilha”), um atacante muito bem
sucedido e muito popular. Saldanha
teria ficado chateado e dito sua frase
mais famosa: “O presidente escala
seus ministros, e eu escalo minha seleção.”
Alguns jogos mal disputados certamente contribuíram para a demissão
de Saldanha, bem como sua desconfiança acerca de Pelé, a quem julgou
gravemente míope e cuja convocação
para o México ele colocava em dúvida.
Seja como for, o regime certamente
Com Médici chegou à presidência também não queria ter que partilhar
da Republica um militar que era apai- um possível triunfo na Copa com um
xonado pelo futebol. Ele tinha a cora- comunista.
gem de entrar em estádios lotados,
O sucessor de Saldanha era Mário
brincava com a bola em shows de TV Zagallo, e com ele aconteceu finale tentava tirar proveito da populari- mente aquela reorganização da seledade do futebol em favor da junta e ção que é chamada de “militarização”.
de sua própria pessoa. Portanto, em Jerônimo Bastos, um oficial militar, foi
1969 uma dupla estranha ocupava nomeado chefe da delegação brasileidois cargos importantes no Brasil, ra para a Copa no México, e outros
talvez os dois mais importantes de militares foram incluídos nos prepatodos: um comunista era o técnico da rativos. O mais conhecido entre eles
seleção, e um apaixonado pelo foi Cláudio Coutinho que se tornaria
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
mais tarde (1978) o técnico da seleção. Coutinho representava um estilo
de futebol muito diferente do estilo
de Saldanha, que era muito impulsivo.
Ele procurava embasar o treino num
fundamente científico e julgava a boa
condição física o pressuposto decisivo
para ganhar a Copa.
Finalmente ela começou, a tão sonhada Copa do Mundo de Futebol de
1970 no México. Até então, nenhum
evento de jogos de futebol tinha sido
usado e abusado no Brasil tão abertamente para fins políticos como essa
Copa. O hino “Pra frente Brasil”, canção brasileira oficial da Copa, refletia
bem o espírito nacionalista da ditadura: “Noventa milhões em ação, pra
frente Brasil do meu coração. […] Todos unidos na mesma emoção.” Bem,
todos não. Durante a Copa, o embaixador alemão no Brasil, Ehrenfried
von Holleben, foi sequestrado por
guerrilheiros da Vanguarda Popular
Revolucionária, de orientação de esquerda. No dia 17 de junho, o governo
aceitou, em troca da libertação do
embaixador, a saída de 40 presos políticos para a Argélia. Em consequência, o regime reforçou a repressão e
instrumentalizou a seleção para fazer
propaganda contra a guerrilha. Os que
lutavam na resistência à ditadura foram acusados de perturbar o time
brasileiro. No dia 17 de junho, a Folha
de São Paulo escreveu: “Notícias do
México mostram a perturbação que a
notícia sobre o sequestro causou na
nossa seleção. Pelé, Rivelino e outros
jogadores pronunciaram-se e condenaram o ato terrorista.”
Não obstante esta “perturbação”, o
Brasil ganhou a Copa soberanamente:
na final, a seleção venceu, aparentemente sem qualquer esforço, a Itália
com o placar de 4 a 1. O governo
aproveitou o triunfo descaradamente,
e Médici recebeu a seleção com uma
afirmação verdadeiramente ideal-típica sobre a suposta fusão de futebol
e interesse nacional: “Identifico, na
vitória conquistada na fraterna disputa esportiva, a prevalência de princípios que nós devemos amar para a
nossa luta em favor do desenvolvimento nacional.” Além disso, ele caracterizou o sucesso no futebol uma
“afirmação do valor do homem brasileiro”.
De fato, graças ao futebol, os militares conseguiram comemorar em
1970 um dos raros momentos de relativa popularidade. Essa popularidade, porém, não se devia só ao futebol.
Desde 1968, a economia brasileira
estava crescendo dez por cento ao
ano. Nos anos de chumbo, o Brasil viveu seu milagre econômico. Os militares acolheram a ideia de uma
“superpotência Brasil” e reforçaram a
propaganda nacionalista. No mesmo
ano de 1970 foi também anunciada a
construção da Transamazônica, a
grande estrada que cortaria toda a
Amazônia – um projeto prenhe de
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simbologia de integração e grandeza
nacional. Assustados pelos protestos
de 1968, os militares não só tinham
redobrado a repressão como também
lançado um sistemático trabalho propagandístico. Para essa política, o sucesso futebolístico de 1970 caiu como
uma luva, mas não foi o único elemento em sua construção.
Para os adversários do regime, porém, aparentemente não foi fácil desenvolver uma postura não ambígua
acerca da seleção. Muitos grupos da
esquerda tinham lançado a orientação
de torcer contra o Brasil. Segundo as
afirmações de todos os envolvidos, isto funcionou somente até o primeiro
gol de Rivelino no jogo contra a
Tchecoslováquia. Por um momento
sinistro, torturadores e torturados
regozijaram-se juntos com a seleção.
O futebol – e na sociedade profundamente dividida de 1970, provavelmente só ele – foi capaz de produzir
momentos como este, mas não produziu união ou reconciliação. A tortura continuava assim como a
resistência contra o regime. Assim se
mostrou também que a seleção representava algo diferente e maior que
o poder político. Afinal, o futebol justamente não é a nação, mesmo quando um regime se utiliza do futebol
para sua ideologia. Desta maneira sobreviveu uma contranarrativa à
cooptação da Copa 1970 pelos militares: que foi um comunista que tinha
A Copa 1970 e o dilema da esquerda
Numa história em quadrinhos, Henfil (Henrique de Sousa Filho), o famoso
cartunista brasileiro, caracterizou bem a desunião da esquerda durante a Copa
1970. Os desenhos mostram um intelectual diante do televisor, durante um jogo da Copa. O texto:
“Um país inteiro para por causa do futebol, mas não para para resolver o
problema da fome... Este sim é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecê-lo de
que são explorados, subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder!
Assim o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de injustiças... Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta de Pelé invadindo a grande área inglesa... Pênalti! Pênalti! Juiz filho da mãe! Pênalti,
seu safado!”1
1 Citado segundo GUTERMAN, Marcos. O Futebol Explica o Brasil: o Caso da Copa de 70. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, p. 48 (dissertação de Mestrado
em História).
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
construído aquela seleção e a condu- A faísca de uma utopia: a Democracia
zido ao sucesso. No México, a ditadura Corinthiana
militar e o comunismo conseguiram
Na época da ditadura militar, o fuvencer ao mesmo tempo.
tebol teve um papel importante não
Para outros envolvidos, a vitória de só para a propaganda e a ideologia dos
1970 desbravou o caminho para uma militares, mas era também um mocarreira notável. João Havelange, filho mento na resistência e no movimento
de um comerciante de armas, foi elei- pela democracia. Em 1982, os tempos
to em 1974 presidente da FIFA e ocu- do milagre econômico brasileiro já
pou esse cargo por 24 anos. pertenciam a um passado remoto, a
Juntamente com seu genro Ricardo ditadura militar era cada vez mais criTeixeira, por décadas no comando da ticada e estava indo em direção ao seu
CBF, ele transformou a FIFA em um fim. Eram tempos de novos inícios,
consórcio multinacional, poderoso e tanto na política como na cultura, mas
não transparente, que comercializa o não é absolutamente automático que
megaevento global mais popular. De lá tempos como este atinjam também o
para cá, ambos já perderam seus car- futebol. Em São Paulo, porém, estava
gos e cargos honoríficos porque se nascendo um dos maiores milagres na
confirmaram cada vez mais as acusa- história do futebol.
ções maciças de corrupção. Enquanto
Na maioria dos casos, o surgimento
isto, o “sistema FIFA” continua sob o
de
algo novo dá-se juntamente com a
comando do então secretário-geral de
crise
do antigo. O SC Corinthians é um
Havelange, Joseph Blatter.
dos clubes mais populares do Brasil.
No Brasil, as continuidades são ain- Em 1981, entretanto, ele não estava
da mais dolorosas. Ricardo Teixeira indo nada bem, em termos esportivos.
teve que deixar seu cargo, mas conse- Isto fomentou a crescente insatisfaguiu impor como sucessor seu homem ção com o autoritário presidente do
de confiança José Maria Marin. Marin clube, Vicente Matheus, amigo declafez claramente carreira política du- rado da ditadura militar. A eleição de
rante a ditadura militar e é acusado de um novo presidente estava destinada
ser o autor intelectual do assassinato a acalmar os ânimos. Foi um velho
do jornalista Vladimir Herzog, porque truque: uma mudança para garantir a
tinha taxado a emissora onde Herzog continuidade. O longo jejum de sutrabalhava de não patriota e subver- cessos esportivo e a crescente pressiva. Atualmente, José Maria Marin é são dos torcedores motivaram o novo
o presidente do Comitê Organizador presidente, Waldemar Pires, a arrisda Copa.
car uma maior abertura. A grande
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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70
mudança aconteceu quando Pires nomeou em 1982 Adilson Alves – sociólogo barbudo e filho de um antigo
presidente do clube – como chefe da
divisão de futebol. Com ele começou
no clube uma abertura democrática
que entrou na história como a Democracia Corinthiana.
Adilson ouvia os jogadores e discutia com eles o futuro do clube. Esta
cultura participativa chegou ao seu
auge quando, em 1983, os jogadores
reivindicaram a nomeação de seu colega Zé Maria como treinador e foram
ouvidos.
Sócrates, também chamado de doutor, um dos protagonistas da Democracia Corinthiana, descreveu esse
tempo na retrospectiva: “Tomamos
cada decisão coletivamente e participamos do Conselho Deliberativo do
clube”. Em tudo isto se zelava sempre
pela mais absoluta igualdade: “O voto
do funcionário mais simples tinha o
mesmo peso que o do representante
da empresa, seu voto tinha o mesmo
valor. Tudo foi muito democrático. Esse tempo foi maravilhoso e mudou todos nós”, maravilha-se Sócrates, o
meio-campo alto e magrão, ainda anos
depois. “As pessoas que estavam envolvidas nesta microssociedade estavam em constante comunicação, cada
um participava e decidia junto. Os novatos ficaram no início realmente desesperados: "Por que aqui ninguém
fala sobre futebol?’”
Um desenvolvimento desta espécie
é possível somente em tempos especiais. Naquela época, a politização da
sociedade tomava conta de todos os
setores. A sociedade estava numa fase
de abertura e rebelião – hoje falaríamos de uma “primavera brasileira” –,
mas uma primavera que não passou
tão rapidamente. “O Corinthians foi a
metáfora perfeita para a situação do
país. O clube veio de uma direção autoritária, estava numa crise, e os jogador queriam mais participação – assim
como o país inteiro.” Mesmo assim, o
desenvolvimento no Corinthians permaneceu único e não se tornou o chute inicial nem parte de uma abertura
geral no futebol brasileiro.
A razão disto pode ser que a realização das ideias democráticas
precisava de personalidades extraordinárias – sem elas, o episódio da Democracia Corinthiana provavelmente
não teria acontecido. Geralmente se
elenca os jogadores Sócrates,
Casagrande,
Zenon,
Juninho,
Wladimir e Biro-Biro como protagonistas da abertura, mas não obstante
todo espírito coletivo, não é possível
negar o papel destacado de Sócrates.
Em 1983/84, ele se engajou ativamente na campanha pela eleição direta do presidente (Diretas Já!) que
mobilizava o Brasil e exigia democracia. Na realização de suas ideias, os jogadores contaram também com a
ajuda do jovem publicitário Washington Olivetto. Ele ficou sabendo dos
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
eventos no Corinthians e criou o nome Democracia Corinthiana, uma
“marca” perfeita. Também o lema “Ser
campeão é detalhe”, atribuído a Sócrates, comprova-se até hoje como
uma síntese genial do espírito daquele
tempo.
Mesmo assim foi justamente o sucesso que fez da Democracia Corinthiana mais do que uma curiosa
nota de rodapé na história do futebol.
O doido time democrático ganhou em
1982 o Campeonato Paulista. A vitória pode ter sido um detalhe, mas foi
um detalhe fundamental, pois o sucesso fez do episódio uma lição importante para o futebol, ao mostrar: a
coisa pode ser bem diferente! Um outro futebol é possível e pode até mesmo dar resultados.
Ainda que a vitória fosse apenas um
detalhe – o futebol não o foi. Com a figura destacada de Sócrates, a Democracia Corinthiana simboliza também
o futebol lúdico. É isto que a conecta a
uma época importante e trágica do
futebol brasileiro. Sócrates e, claro,
Zico, eram os heróis das seleções das
Copas de 1982 e de 1986 – seleções
que jogaram soberbamente, mas que
fracassaram de modo infeliz contra a
Itália (1982) e contra a França (1986).
Mesmo assim, para muitos brasileiros
e brasileiras, o futebol dos anos oitenta está muito acima dos sucessos posteriores.
Epílogo
Também a Democracia Corinthiana
não era eterna, mas ela foi pelo menos
a faísca da utopia de um futebol diferente. Em 1984, Sócrates foi para a
Itália, inclusive decepcionado com o
fracasso da campanha pelas eleições
diretas, a cujo sucesso ele tinha vinculado sua permanência no Brasil.
Depois de sua saída voltou no Corinthians aos poucos a normalidade, e
ela alcançou seu ponto mais baixo
com a presidência de Alberto Dualib
entre 1993 e 2007. Dualib fechou em
2004 um contrato com a MSI, um grupo de investidores que teria relações
com o oligarca russo Boris Beresowski. O Corinthians tornou-se praticamente propriedade da MSI. Em 2007,
a justiça brasileira pôs um fim à cooperação com a MSI, por causa de corrupção e desvio de dinheiro. Um
pequeno consolo: entre os torcedores
do Corinthians tinha surgido um movimento “Fora Dualib!” que chegou a
ter forte influência na sociedade e no
clube.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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Greve de professores no Rio de Janeiro, 2013.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
FUTEBOL E NAÇÃO – A IDENTIDADE
BRASILEIRA EXISTE?
Thomas Fatheuer
Trad. Monika Ottermann
Em seu texto Foot-ball Mulato, Gilberto Freyre aludia já em 1938 a um
tema que domina até hoje o discurso e
os relatos sobre o futebol no Brasil.
Em seu elogio eufórico dos jogadores
brasileiros que foram para a Copa na
França, ele acreditou ter descoberto
um “mulatismo flamboyant” que
transformava o jogo inglês em coisa
totalmente diferente, a saber, em uma
dança dionisíaca. Desta forma, o futebol se tornaria uma “verdadeira afirmação do Brasil”, mas não
simplesmente o futebol, o jogo de futebol como tal, e sim este futebol diferente, o jogo de futebol dos mulatos
e dos negros, o futebol “mestiço”.
Desde então desenvolve-se no
Brasil um debate sem fim sobre a pergunta se em alguma época teria existido este futebol particular, esta
dança dionisíaca, este futebol-arte. E
se tiver existido, será que este futebol
consegue ainda sobreviver num mundo globalizado que globalizou também o futebol? Qual é a relação entre
este futebol e a ideia de uma identidade nacional? E será que tal identidade
pode ser embasada ainda hoje nas supostas diferenças ao “homem mecanizado do Ocidente” (Freyre)? A
grande vantagem do futebol é que ele,
acerca destas perguntas, pode narrar
histórias em vez de dar uma resposta
inequívoca.
Entretanto, pode ser útil dar primeiro uma breve olhada para outro
lado da fronteira. Também o vizinho
difícil (ao menos no futebol) Argentina
desenvolveu no início do século passado uma narrativa sobre um estilo
particular de jogar futebol, a saber, o
futebol criollo (crioulo), com seus bons
dribladores e individualistas, que
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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74
No entanto, também no Brasil, o fuestaria marcado pelos imigrantes
(aqui: os espanhóis e italianos, em dis- tebol-arte não está isento de conflitos. Nem todos @s brasileir@
tinção dos ingleses).
concordam com a narrativa do futePara o crioulismo futebolístico ar- bol-arte. Hoje em dia já não existe
gentino, os pontos de referência eram uma “tradição inventada” que cria coo campo improvisado de bairro, ou munhão, mas antes há um leque de
seja, o futebol não organizado na pe- disputas que permitem perceber coriferia das cidades, e a figura do pibe, mo o Brasil discute sobre si mesmo.
do “malandro”. A figura do futebol criUma breve retrospectiva sobre as
oulo é desenvolvida por delimitação,
especialmente em relação aos “outros Copas desde 1970 permite delinear
bem este debate. Com a vitória bride longe”, isto é, “o inglês”.
lhante no México parecia alcançado e
Os paralelos à construção brasileira garantido o que Nick Hornby celebrado futebol-arte são óbvios, apenas ria depois como o “ideal platônico”:
ocorre que, no Brasil, o elemento do um futebol brasileiro que era belo e,
jogador negro é central. E ambas as ao mesmo tempo, dava resultados.
construções são habitadas por uma Contudo, uma olhada mais atenta soproximidade à visão de mundo natu- bre a seleção brasileira de 1970 ajuda
ralista: jogadores crioulos, negros e a relativizar um pouco esse mito. Na
mulatos jogam de modo diferente memória predominam certamente os
porque são diferentes. “Um jogador lances brilhantes de Pelé, Rivelino e
crioulo nasce como tal”, afirma Pablo outros, mas o triunfo brasileiro foi
Alabarces1. Também na valorização também construído sobre um bom
dos jogadores negros por Freyre e desempenho do conjunto da equipe,
Mário Filho vislumbra-se constante- uma defesa sólida e uma excelente
mente uma imagem do ser humano condição física. O destaque para o
que atribui àqueles jogadores quali- treinamento sistemático desempedades especiais. De certa maneira, o nhou um papel central no debate púdiscurso da ascensão social do joga- blico em torno da Copa. Ainda sob o
dor negro não deixa de ser um racismo treinador comunista Saldanha tinha
às avessas: da mestiçagem problemá- começado uma preparação para o
tica nasceu uma imagem glorificada, México que estava cientificamente
mesmo que as explicações das habili- fundamentada. Saldanha contratou
dades particulares dos negros tenham um especialista para treinos em granrecorrido sempre a elementos sociais des altitudes, o professor Lamartine, e
e culturais2.
este se tornou uma figura-chave do
“Projeto México”. O comunista e o
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
regime autoritário encontraram-se na
Para muit@s brasileir@s, os times
valorização do planejamento que de 1982 e de 1986 (com certas restritambém foi destacado em notícias e ções) representam a encarnação do
matérias da época.
futebol-arte. Em 1982, um time dos
sonhos em torno de Sócrates, Zico,
Recentemente, cientistas analisa- Júnior e Falcão jogou, segundo a opiram detalhadamente como a avalia- nião de muitas pessoas, o melhor fução de México 1970 na imprensa tebol de todos os tempos e fracassou
brasileira se transformou ao longo dos tragicamente na última partida do
anos. Enquanto o enfoque recaía ini- grupo com 2x3 contra a Itália – é a ascialmente sobre os métodos científi- sim chamada “tragédia de Sarriá”. O
cos e o “Projeto México”, ele mudou técnico de ambas as Copas era Telê
rapidamente em favor da ênfase no Santana, um adepto confesso do
espetáculo do futebol-arte.
ofensivo “futebol de espetáculo”. No
Ainda que a memória coletiva mar- outro extremo da escala encontramginalize esse lado científico-sistemá- se as Copas do Mundo de 1990 e de
tico do futebol brasileiro, ele continua 2010. Na primeira, o técnico Sebasvivo na organização do futebol. Um tião Lazaroni tinha anunciado uma
dos colaboradores da comissão técni- “era Dunga”, e na segunda, o técnico
ca de 1970 chamava-se Carlos foi o próprio Dunga. Nomear no Brasil
Alberto Parreira. Este homem ganha- uma era de futebol deliberadamente
ria a Copa de 1994 como técnico, e segundo um sólido zagueiro sem brisua sombra se estende até os dias de lho técnico era uma provocação delihoje: ele é o chefe da comissão técnica berada e um abandono indicativo do
futebol-arte. Em ambas as Copas, o
da seleção brasileira na Copa 2014.
Brasil fracassou ingloriamente. A
Portanto, um olhar analítico sobre a competição entre o futebol-arte e o
Copa do México 1970 mostra que a futebol orientado por resultados tertão popular justaposição de futebol- minou num curioso 2x2 negativo. Em
arte versus futebol de resultados é todas as quatro Copas nas quais o tiuma simplificação grosseira, e, geral- me brasileiro mais se assemelhava à
mente, isto é também prontamente construção ideal-típica, o sucesso não
admitido. No entanto, simplificações veio. Com certeza, isto é especialsão necessárias para realçar conste- mente triste para aqueles ideólogos
lações ideal-típicas. E na história das que pensam que no futebol conta soCopas podemos efetivamente identi- mente o sucesso, pois, assim, uma falficar quatro torneios que represen- ta de sucesso significa o fracasso puro,
tam quase perfeitamente o litígio em sem qualquer porém – e principaltorno do futebol-arte.
mente sem tragédia.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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Ora, como ficou isto nas Copas que
o Brasil ganhou após 1970? Em 1994,
o técnico foi Parreira. Certamente,
Parreira é da ala do futebol orientado
por resultados e sem consideração
pela beleza, mas ele não o perseguia
com a mesma radicalidade que seu
antecessor. Por exemplo, foi ele que
chamou o ambíguo Romário de volta à
seleção. O Brasil ganhou a final nos
pênaltis, depois de um magro 0:0 contra a Itália. Obviamente, o 0:0 é um
contraste agudo ao 4x1 contra o mesmo adversário em 1970. Mesmo assim, o sucesso de 1994 não pode ser
creditado inequivocamente na conta
do futebol de resultados. No ataque
brilhavam (pelo menos em alguns momentos decisivos) Romário e Bebeto.
Principalmente Romário encarnava as
esperanças do “verdadeiro” futebol
brasileiro: um técnico rico em truques,
e ao lado dele um bad boy não adaptado.
A Copa de 2002 é um caso à parte,
em muitos aspectos. O Brasil e a
Alemanha chegaram à final sem terem
enfrentado grandes times durante o
torneio e sem terem mostrado um futebol verdadeiramente convincente.
Em comparação, a final não foi nada
mal e terminou em 2x0 para o Brasil.
Também Felipe Scolari, o técnico de
então e de hoje, não é certamente nenhum adepto do futebol-arte. A memória da Copa de 2002 no Brasil,
porém, é fortemente marcada pelo
duelo de Ronaldo contra Kahn. A
cena-chave é o 1x0 de Ronaldo contra
Kahn (que não conseguiu segurar a
bola). O teórico de futebol Marcos
Guterman cita o sociólogo Oliveira
Ferreira, para demonstrar o grande
significado desse gol: “Ou não seria
esse símbolo suficiente para mostrar
como os subdesenvolvidos são capazes de humilhar, liquidar as pretenções do Primeiro Mundo?” Com a
bomba de Ronaldo, diz Guterman, um
“povo massacrado” venceu contra a
arrogância do Primeiro Mundo, tão
perfeitamente encarnada por Oliver
Kahn3. E, mais uma vez, o “complexo
de vira-lata” foi superado.
Por isto, a Copa 2002 retoma antes
outro mito central do futebol brasileiro que fica um pouco desajustado
dentro do eterno debate sobre o futebol-arte: o mito da estrela solitária,
do craque que faz a diferença. Em um
único instante feliz, Ronaldo, que tinha passado antes da Copa por uma
profunda crise e que parecia carregar
a derrota na final contra a França em
1998 como chumbo nas chuteiras, libertou a si e ao Brasil de todos os
traumas.
Também em 2014, as esperanças e
os sonhos estão divididos: o atual técnico da seleção brasileira, Felipe
Scolari, pertence antes ao campo do
futebol de resultados, mas seu jogador decisivo, Neymar, representa inequivocamente
os
sonhos
do
futebol-arte.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
No entanto, será que realmente
existe uma identidade brasileira particular que se reflete no futebol ou
para a qual o futebol é um importante
fator constitutivo? José Miguel
Wisnik, um dos teóricos mais recentes
do futebol brasileiro, está entre aqueles que respondem a esta pergunta de
modo afirmativo, mas também de
modo surpreendente. Wisnik é músico, compositor e cientista literário.
Por isto, a estreita relação entre futebol e música em sua pequena teoria
não é uma surpresa: seu ponto de
partida são as palavras famosas de um
samba de Noel Rosa, do ano 1932: “O
samba, a prontidão e outras bossas
são nossas coisas, são coisas nossas”4.
Coisas nossas – esta é a busca por
identidade embasada em qualidades
localizadas principalmente na área
corporal e criativa. Prontidão é uma
espécie de “inteligência do corpo”. O
samba e quase igualmente o futebol
representam o surgimento de uma
tradição nova e própria. Constitutivos
desta identidade são conceitos e termos estranhos como a ginga. Wisnik
descreve essa identidade como “a disposição a habitar os intervalos do ritmo, os hiatos da linguagem, os
meneios do corpo”5.
que está inseparavelmente ligada à
mescla dos grupos de migrantes. A integração de elementos da cultura negra
desempenha
um
papel
especialmente importante. O ideal de
um “Brasil branco”, acalentado pelas
elites conservadoras, pulverizou-se
nas culturas urbanas da mestiçagem
dos anos 1920. Das cinzas da fracassada identidade ocidental branca
nasceu a cultura da disposição.
Num brilhante estudo sobre os
anos 1920 em São Paulo, Nicolau
Sevcenko cunhou o termo ousado e
genial de uma cidadania fundada na
emoção, para cujo surgimento o futebol teria um papel decisivo. E Wisnik
afirma até mesmo que, na raiz das
“coisas nossas”, há uma mais-valia às
avessas, uma mais-valia de prazer –
uma mais-valia de prazer que tira sua
força exatamente dos espaços vazios,
dos não-espaços.
Segundo ele, essa importância de
espaços vazios caracteriza, também e
especialmente, o futebol: futebol e
cultura estariam fundamentados no
deslize, na síncope, no drible, em tudo
que não é fixado. Neste contexto, um
hiato não se esgota no nonsense, mas é
“justamente o lugar do lapso criativo,
da suspensão que admite o vazio sem
Esta corporalidade e musicalidade o qual não se formula o inesperado”7.
particulares do samba são as conDesta maneira fundamenta-se não
sequências de uma nova cultura urbasó,
mas também no futebol uma nova
na que vem surgindo principalmente
narrativa
sobre o que significa ser
no Rio de Janeiro e em São Paulo – e
brasileiro/a. Aqui, uma grande
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
77
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reinterpretação é constitutiva: a
mescla das culturas não é mais o destino negativo da nação, mas é agora
vista de modo positivo. Assim surgem
os novos mitos na busca das raízes
que não existem.
É evidente que uma identidade brasileira assim construída não está embasada no futebol, mas o futebol é um
de seus elementos constitutivos, e o
discurso sobre o futebol é simultaneamente a linguagem privilegiada na
qual é possível refletir sobre a nação e
a identidade. Se isto for assim, então a
insistência no futebol-arte é mais do
que o prazer pelo futebol belo, algo
que existe no mundo inteiro. Se for
assim, esta construção da identidade
brasileira não teria um vínculo estreitíssimo com o futebol como tal, e sim
com uma determinada interpretação
do futebol e da alegria difundida por
ele. O constitutivo não seria o resultado, o sucesso, mas a mais-valia de
prazer, de alegria, passaria a ser na
cultura e no futebol uma nova “marca
registrada” do Brasil.
No entanto, os tempos mudaram
também em outros aspectos. Hoje em
dia, a velha maldição “O Brasil não é
um país sério” não possui mais poder.
O Brasil é um importante “jogador
global”, um global player, ele determina
as letras de uma nova categoria que
visa o futuro. O Brasil é BRICS, é investment grade; o Brasil alcançou o futuro. Na pessoa de Lula, o pessimismo
das elites parecia se comprovar definitivamente como um absurdo: quem
conduz o Brasil definitivamente para
o futuro é um migrante do Nordeste,
um típico “mestiço”. Segundo Lula, o
Brasil vive “um momento mágico”. O
país já não é mais um eterno perdedor.
A nação dos “malandros incuráveis”
(Nelson Rodrigues) quer pertencer
agora ao grupo dos vencedores da nova ordem mundial.
Vencedores, porém, perdem o
charme dos não favoritos. No mundo
inteiro, brasileiros e brasileiras são
agora não só percebidos/as como especialistas em alegria que driblam a
bola e rebolam as cadeiras, mas também como exportadores/as de soja e
extrativistas de petróleo; eles/elas
compram bancos privados suíços (por
exemplo, a Sarasin Bank), constroem
barragens faraônicas e plantam cana
de açúcar na África. Ocasionalmente
são considerados/as por vizinhos latino-americanos um novo poder subimperial.
Com este novo Brasil que está se
acostumando aos sucessos e se embriagando com eles combinaria também um sucesso no futebol. Este
deveria ter sido conquistado na última
Copa, na África do Sul, sob o comando
do técnico Dunga. Dunga representava o abandono de tudo que era importante para o futebol-arte. Os termos
centrais do técnico foram disciplina e
orientação pelo resultado – sempre
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
contra o pano de fundo do desastre de
2006 (na Alemanha), onde as estrelas
do Brasil brilharam pela falta de vontade no campo e pelos exageros na vida noturna. Agora, o desleixo deveria
ser combatido com “virtudes prussianas”.
As convicções de Dunga provocaram pelo menos protestos maciços.
Sua afirmação: “O que interessa no
jogo do futebol é o resultado” foi comentado assim pelo afro-brasileiro
Joel dos Santos, historiador e autor de
uma história muito popular do futebol
brasileiro: “Se for assim, temos que
abandonar o futebol”. Nunca o clima
foi tão ruim como em 2010. Quase
uma nação inteira queixava-se de
Dunga e de seu futebol de resultado. E
também em 2014 está se mostrando
que não é tão fácil fazer da Copa de
Futebol um evento mundial de afirmação do novo Brasil. Os protestos
em junho de 2013 acabaram definitivamente com a história do Brasil como “país de vencedores” (presidenta
Dilma Rousseff).
Será que, no futebol, pode se expressar uma identidade diferente,
fundamentada justamente na diferença? Os defensores do futebol-arte
assim o desejam e o esperam. É um
debate popular, no qual são tratadas
não só questões do futebol, mas também questões fundamentais da identidade nacional. E sempre aparecem
jogadores que reavivam a esperança
por um futebol do puro prazer – basta
assistir alguns vídeos de Neymar.
Mesmo assim recomenda-se cautela – também o futebol-arte está sujeito à pressão que cobra resultados, e a
suposta dicotomia é certamente uma
forte simplificação. Talvez seja também verdade que o futebol-arte é uma
construção que existe mais na teoria
do que na prática. O futebol-arte é um
sonho com o futebol – e exatamente
como sonho e ideia, ele se comprova
uma “rica fonte de sentido”
(Alabarces). E ele não narra somente
um sonho de futebol, mas exatamente
também o sonho de identidades embasadas na criatividade do corpo, no
drible, no talento musical. É algo muiÉ óbvio que, depois de 2010, os de- to diferente do espírito capitalista do
fensores do futebol-arte estão nova- sucesso, embora, na prática, esteja inmente de vento em popa quando se dissoluvelmente vinculado a ele.
trata do eterno debate entre o futebol
de resultados e o futebol-arte. Desta
Por isto é provável que a maior
forma, a insistência num futebol da ameaça ao sonho do futebol-arte não
mais-valia de prazer torna-se uma venha de seu adversário antigo e bem
narrativa contra um Brasil que busca conhecido, o futebol de resultado.
sua identidade no sucesso econômico e Antes da Copa 2006, a Nike mostrou
na integração no mercado internacional. com sua campanha “Joga Bonito”
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
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80
como o futebol-arte pode se tornar
uma estratégia de marketing. Introduzidos pelo rebelde de futebol Éric
Cantona (!), os craques afro-brasileiros extremamente bem-humorados
Ronaldo, Ronaldinho e Robinho exibiram suas brincadeiras para a admiração do consumidor. A ideia do
futebol-arte combina com um tempo
em que se dissolvem as grandes narrativas da nação, da pátria e da identidade. As comunidades imaginárias da
nação correm o risco de se tornar –
segundo o cientista cultural argentino-mexicano Néstor García Canclini –
comunidades interpretativas de consumidores. Em medida crescente,
identidades são determinadas pelo
consumo e “dependem daquilo que se
possui” .
O futebol-arte combina com um
nacionalismo do mercado que promete diversão em lugar das grandes narrativas nacionais. Antes de cada Copa
de Futebol, a TV brasileira e especialmente a propaganda utilizam a bandeira verde-amarela do país e da
seleção. Assim, a pátria inteira calça
hoje as chuteiras. Provavelmente,
ninguém encarna isto mais do que
Neymar: graças a seus dribles geniais,
ele é um garoto que encarna a esperança do futebol-arte e simultaneamente um garoto-propaganda ideal.
Neymar é considerado o jogador de
futebol mais bem comercializado do
mundo. Importante é não só sua magia com a bola, não, importante é
também seu penteado. Quando ele
dançou na cabina do Santos ao som de
“Ai, se te pego”, o vídeo registrou 20
milhões de acessos e fez assim da
canção de Michel Teló um hit mundial.
A imagem dos sonhos da nação
mistura-se antes da Copa do Mundo
com as imagens da propaganda que
são cooptadas sem vergonha pelo nacional. O auge desse novo nacionalismo do mercado foi alcançado pela
cerveja argentina Quilmes, com seus
clipes famosos8. A propaganda nacionalista, carregada pelo “jogo bonito”,
já não representa um projeto nacional. Por isto, as palavras do argentino
Pablo Alabarces aplicam-se também
ao Brasil: “Os problemas econômicos,
políticos, sociais e históricos de nossa
sociedade podem ser resolvidos somente no plano do real. Esta sabedoria continua válida […], não obstante a
campanha publicitária da cervejaria
Quilmes. A crise, a nação, nosso futuro comum não se resolvem no estádio
de futebol. E muito menos na TV. Mas,
possivelmente, na rua e na política9.”
Foi exatamente isto que milhões de
brasileiros/as mostraram em junho de
2013, mas ainda fica aberta a pergunta se o sonho de um outro futebol, de
um futebol belo, também inclui o sonho de um outro mundo melhor.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Notas
1
ALABARCES, Pablo. Fútbol y Patria. El fútbol
y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2002.
81
2 Ibidem.
3 GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o
Brasil. Uma história da maior expressão popular do
país. São Paulo: Contexto, 2009.
4 WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio – O
futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
5 Ibidem
6
7
Ibidem.
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na
metrópole. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
8 Os clipes publicitários de Quilmes são famosos por seu engrandecimento patético da
seleção argentina e nem mesmo hesitam em envolver Deus. Um exemplo pode ser assistido em
http://esfericobalon.blogspot.de/2013/11/lanueva-publicidad-futbolera-de-quilmes.html.
Um detalhe pitoresco é que a Quilmes pertence
hoje ao grupo brasileiro-belga InBev, de Anheuser-Busch, o maior conglomerado cervejeiro do
mundo.
9 Cf. ALABARCES.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
82
Juca Kfouri, 2013.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
LULA, DILMA E A COPA
Juca Kfouri
Lula se deixou seduzir pela cartolaMas por que Lula acabou de braços
gem do futebol brasileiro.
dados com Teixeira e ainda criou uma
loteria, a Timemania, para que os cluDilma, não, porque não a acaricia bes pagassem a fortuna que devem ao
nem homenageia.
Estado, algo na casa dos 2 bilhões de
Mas também não rompe, quando euros?
deveria fazê-lo.
Por que Lula, de inegável sensibilidade
popular, não rompeu com
A relação do Estado nacional com a
Teixeira,
sabendo que seria aplaudido
superestrutura do futebol brasileiro é,
nas
ruas
se
o fizesse?
para dizer o minímo e usar uma terminologia da psicologia, esquizofrênica.
Ora, se Lula tinha a obrigação de ser
Lula, por exemplo, sabia perfeitamente quem era a deplorável figura de
Ricardo Teixeira e assinou, como primeira lei de sua gestão, o Estatuto do
Torcedor, um soco no estômago da
Confederação Brasileira de Futebol, a
famigerada CBF que Teixeira presidia
e da qual teve de sair por envolvimento em grossa corrupção.
pragmático nas alianças políticas para
não assustar as elites do Brasil, razão
pela qual conviveu muito bem com expresidentes como José Sarney e
Fernando Collor, inimigos figadais em
outros tempos, nada justifica que não
tenha rompido com a mixórdia do futebol.
Se não por virtude, por oportunismo.
FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO
83
Mas Lula deixou-se seduzir.
84
Primeiramente, de olho numa cadeira no Conselho de Segurança da
ONU, pela bela ideia de levar a seleção brasileira ao Haiti devastado.
Embora influente ministra nos oito
anos da gestão Lula, primeiro como
ministra de Minas e Energia, depois na
Casa Civil, ela pegou o bonde andando
como presidenta da República e precisa fazer com que ele chegue ao seu
destino sem maiores acidentes.
Depois, estreitamento feito com
Teixeira, pelos rapapés do cartola, leNo capítulo das relações pessoais
vando craques ao gabinete presiden- ela jamais se deu com Teixeira e fez
cial para autografar bolas e camisas questão de nunca recebê-lo no Paláverdes e amarelas.
cio do Planalto, circunstância provaConquistado o direito de receber a velmente de peso para que o cartola
Copa do Mundo, então, Lula embalou- abandonasse tudo, a CBF e o Comitê
se na ilusão de mostrar um Brasil pu- Organizador Local da Copa do Mundo, e corresse para Boca Ratón, na
jante ao mundo.
Flórida, Estados Unidos.
Embarcou no discurso que sabia
Mas digere um sapo ainda maior.
falso da Copa do Mundo do capital
privado e abriu os cofres públicos para
A presidenta também não disfarça
que o Brasil organizasse o torneio que não gosta do substituto de Teixeimais caro de todos os tempos, com a ra, o ex-governador biônico de São
construção de pelo menos cinco está- Paulo nos tempos da ditadura, José
dios que não serão ocupados após o Maria Marin.
Mundial: em Brasília, em Cuiabá, em
Natal, em Manaus e no Recife.
Não gosta e não o recebe em sua
sala, mas terá de suportá-lo, por exPermitiu que se erguesse em São emplo, na abertura da Copa, em 12 de
Paulo, que já tem o estádio do Mo- junho deste ano, no estádio do Corumbi, um novo palco, do seu clube de rinthians.
coração, o Corinthians.
Lado a lado estará com quem, um
Viu o Maracanã, no Rio de Janeiro, e dia, em discurso que está gravado pao Mineirão, em Belo Horizonte, serem ra a posteridade, elogiou o policial
postos abaixo para se transformarem Sérgio Paranhos Fleury que, durante a
nas modernas, e anódinas, arenas tão ditadura, torturou seu ex-marido,
ao gosto da FIFA e, principalmente, Carlos Araújo, pai de sua filha, avô de
das empreiteiras.
seu neto, então importante combatente da resistência aos militares.
Dilma Rousseff que se vire.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Na Copa das Confederações, em juA Copa está custando mais que as
nho do ano passado, Dilma ouviu uma três últimas edições do torneio da FIsonora vaia ao abrir o torneio ao lado FA somadas.
de Joseph Blatter e de Marin.
Sim, a Copa do Mundo de 2002, no
Por sua posição ambígua, ela desa- Japão e Coreia do Sul, mais a Copa do
grada gregos e troianos, porque nem Mundo da Alemanha, em 2006, mais a
rompe nem acarícia.
Copa do Mundo na África do Sul, em
2010, somadas, custaram 30 bilhões
Lula, por exemplo, acha uma boba- de dólares (US$ 16 bilhões, US$ 6 bigem ela não querer fazer fotos ao lado lhões e US$ 8 bilhões respectivamende Marin e pergunta: "Ela não quer te) e a no Brasil chegará aos 40 bilhões
fotos ao lado de Neymar? Pois tem de de dólares.
fazer ao lado do Marin também".
Os dados são de um estudo da ConO pragmatismo do Partido dos Tra- sultoria Legislativa do Senado Federal
balhadores, sua realpolitik, extrapolou brasileiro, onde o governo Rousseff
qualquer limite aceitável para os ver- tem maioria.
dadeiros militantes da esquerda brasileira.
No governo Lula, o Brasil obteve o
direito de sediar os dois maiores
Ruim com o PT, pior sem ele, talvez, eventos do planeta - e não apenas os
mas o fato é que a dupla Lula & Dilma dois maiores eventos esportivos da
é responsável por uma Copa do Mun- Terra, o que já não seria pouco.
do no Brasil que passará longe de ser
uma Copa do Mundo do Brasil.
Para trazer a Copa do Mundo não
foi necessário um grande esforço,
A festa que o mundo verá nos está- porque candidatura única na América
dios estará a léguas de distância do do Sul, fruto de barganha entre
que acontecerá nas ruas do país, mui- Joseph Blatter e Ricardo Teixeira. O
to provavelmente tomado por nova cartola brasileiro se comprometeu a
onda de protestos, como a que trans- não disputar a presidência da FIFA,
formou, no ano passado, a Copa das facilitando a reeleição do suíço, em
Confederações na Copa das Manifes- troca de receber a Copa e articulou
tações.
com as associações nacionais sulComo já dito, a Copa no Brasil será a americanas que nenhuma delas se
mais cara da história, o que se poderia canditaria, com Julio Grondona, da
justificar pelo fato de ser a mais re- Argentina, como grande aliado.
cente. Mas não é tão simples.
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Já a Olimpíada de 2016, no Rio de
Janeiro, veio graças ao poder de sedução de Lula, único presidente que
falou aos votantes no Comitê Olímpico Internacional em sua língua nativa.
Único, aliás, não, porque Barack Obama, que defendeu a candidatura de
Chicago também...
Manifestações em junho do ano passado.
À medida que o país foi tomando
conhecimento da suntuosidade das
novas arenas erguidas para o torneio,
o povo saiu às ruas para exigir hospitais, escolas e transportes coletivos
com "padrão FIFA".
Pois eis que as duas façanhas poA transnacional que comanda o fudem se transformar em enormes tiros
tebol
mundial com mão de ferro e
pela culatra.
pouca transparência, passou a dividir
A Copa do Mundo, por exemplo, com os governos federal, estaduais e
prometida como a Copa da iniciativa municipais, o papel de vilão, muito
privada, principalmente no que diria embora, justiça seja feita, não tenha
respeito aos estádios, é quase inteira- pedido para o Brasil receber seu festimente financiada por dinheiro público val da bola e nem muito menos exigiu
e, pior, além de os estádios serem er- que o país o recebesse com 12 sedes,
guidos com dinheiro da população de ao contrário, oito lhe bastavam.
maneira direta ou indireta, os legados
Foi a megalomania do governo Lula
prometidos de infraestrutura foram
que
estabeleceu o absurdo que resulsendo abandonados um a um diante
tará
nos elefantes brancos espalhados
de suas magnitudes e da falta de repelo
país, numa irônica, e trágica recursos para implementá-los.
petição do que fez a ditadura nos anos
Tanto que, no começo de fevereiro, 70. Só que, então, os protestos eram
baseado em resultado de pesquisa proibidos e coibidos militarmente, sob
que revelou o desencanto da popula- a justificativa de "integrar" o Brasil
ção com o rumos da Copa, o governo por meio do futebol.
mudou sua estratégia e assumiu a
O fiasco à época deve se repetir
ideia de fazer campanhas publicitárias
agora.
que tentarão vender a imagem de que
o Brasil fará a Copa das Copas, baseaVozes como a de Pelé se erguem
das no fato de que estarão presentes contra os protestos na Copa do Muntodos os oito campeões mundiais.
do, com pouca chance de serem bemParece pouco diante dos protestos sucedidas.
que levaram a Copa das ConfederaO Rei, como é chamado por ter sido
ções ser chamada de a Copa das o fabuloso craque que foi, chegou ao
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
cúmulo de dizer que futebol e política
não têm nada a ver e que o futebol
passa ao largo da endêmica corrupção
nacional. No país de Havelange e Teixeira...
O que deverá proporcionar duas
Copas distintas e complementares:
uma nos estádios, em clima festivo
para ser transmitido para o mundo inteiro; outra fora dele, que por mais
que se queira esconder terá a imprenPerdida, e distante dos temas fute- sa do mundo inteiro como testemubolísticos, Rousseff tem cometido er- nha.
ros primários, objeto do escárnio da
crítica especializada. Ela disse, por exQuem sabe, assim, a FIFA aprenda.
emplo, em janeiro, que o Brasil havia Porque salta aos olhos que a entidade
vencido cinco vezes a Taça Jules Ri- tem feito escolhas que dão preferênmet, desconhecendo que desde 1970, cia a países de democracias recentes e
exatamente quando o Brasil a con- pouco contrôle social, não tivesse a
quistou pela terceira vez e a obteve de última Copa sido disputada na África
maneira definitiva.
do Sul, a próxima no Brasil e a seguinte
na Rússia.
Tão ignorante como ela nos temas
futebolísticos, sua ministra da CultuPara não falar no Qatar, onde o dira, Marta Suplicy, declarou que as crí- nheiro jorra fácil dos campos de peticas aos gastos no Maracanã não se tróleo.
justificavam porque "era a primeira
Tudo que favorece as empreiteiras
reforma em 60 anos" no estádio que é
e
os
políticos.
o cartão postal do futebol nacional.
Ocorre que de 1999 para cá, o estádio
A surpresa, no caso brasileiro, está
foi reformado para receber o Mundial na avaliação desinformada sobre a
de Clubes da FIFA, em 2000, e os Jo- História do país, cuja imagem é assogos Pan-Americanos, em 2007.
ciada ao Carnaval, futebol, belas praiA FIFA parece convencida de que a
escolha do Brasil se transformará em
enorme equívoco e busca apostar que
a paixão do povo pelo futebol poderá
minimizar os protestos.
as e mulheres nuas. Nada mais falso.
Não o Brasil tem seu passado marcado por levantes populares de norte
a sul como, só nos últimos 30 anos, o
País saiu às ruas para exigir eleições
Nada indica, no entanto, ao contrá- para presidente e, em seguida, para
depor o presidente eleito, envolvido
rio.
em corrupção.
Tudo leva a crer que o clima de
2013 se repetirá, até em maior escala.
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O Partido dos Trabalhadores, de
Lula e Dilma, teve papel fundamental
nas duas ocasiões.
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Hoje, vítima da realpolitik que abraçou, deixou de se distinguir e se surpreende com a ferocidade das
reivindicações de um povo que se beneficiou de sua política social voltada
aos excluídos mas que quer mais.
Tudo isso num ano em que haverá
eleição para presidente.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
ELAS, NO PAÍS DO FUTEBOL
Lívia Duarte
No país do futebol (masculino), é
comum ouvir que somos uns “190 milhões de técnicos de futebol”. A afirmação está na publicidade, as
transmissões de jogos pela TV, nas
manchetes de jornal cada vez que o
técnico – o oficial, aquele designado
pela Confederação Brasileira de Futebol - escala a seleção. Não deixa de
estar também na boca do povo. Mas
uma rápida conversa com torcedoras
mostra que o número de opiniões “que
contam” numa sociedade ainda marcada pelo machismo é menor: 97 milhões de técnicas de futebol teriam
suas opiniões rejeitadas pelo simples
fato de serem mulheres.
Se por um lado a crescente presença de delas nos estádios, muitas vezes
sozinhas ou acompanhadas apenas
por outras mulheres, ou o aumento do
número de jornalistas que se dedicam
à imprensa esportiva, podem ser um
sinal de mudança – como é simbólico
para a sociedade em geral a eleição de
uma presidenta da república –, as
mostras de sexismo no Brasil ainda
prevalecem em muitos campos, entre
eles, nos de futebol. E neste caso, se
explicitam no lugar “destinado” a cada
grupo. E as narrativas são parte deste
lugar.
Conheci Kaká Soares, 45, no Maracanã, que ela frequenta desde os 3
anos de idade, antes com o pai e há
muitos anos sozinha ou com amigos e
amigas. Chegamos cedo e corremos
para ocupar as cadeiras novas na arquibancada nesta tarde de sábado. O
motivo não foi lotação. Era dia de estádio vazio. Uns 18 mil compareceram
para o jogo do campeonato local
quando o tradicional Fluminense de
Kaká venceu por 4X1 o pequeno Boavista. Ela precisa se apressar porque
vai ornamentar o estádio com uma
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faixa da sua torcida organizada, a Flu
Mulher. Este é o único grupo de torcedoras exclusivamente feminino já
reconhecido por uma equipe no país
(“e no mundo”, inclui a fundadora orgulhosa). O local acordado com as demais torcidas e a polícia para a faixa
branca tem menos destaque do que o
destinado às outras seis organizadas
do Fluminense, maiores, mais antigas
e mistas – predominantemente masculinas.
muitas obrigações. Como mulher tem
a questão da família, fica ainda mais
complicado. Mas eu espero que torcedoras de outros times façam o mesmo, é diferente de fazer parte de um
núcleo feminino de torcida mista”,
destaca.
O Fluminense começou perdendo e
só empatou pouco antes do intervalo.
Um torcedor de outra organizada gritava pela substituição de um jogador,
bufando, gesticulando, ficando de pé e
tentando impor sua opinião aos demais torcedores. As “tricolindas” não
pareciam concordar. Mas não gritavam de volta. Diziam entre elas que
era preciso mais tempo antes da
substituição. No intervalo, Kaká falou
com o torcedor, velho conhecido das
arquibancadas. Ele ouviu estressado.
E deu de ombros. Antes, ela já me havia advertido sobre onde, na opinião
dela, aparece o preconceito no estádio. Está sobretudo no discurso: “homem nunca acha que futebol é lugar
de mulher. Até chegar a prestar atenção e ver que eu entendo de futebol
vai ouvir a gente conversando aqui e
garantir que sou louca! Eu não estou
aqui pelas pernas do Fred! Até são
bonitas, eu acho, mas jogador vai e
vem, meu amor é pelo meu clube!”.
Como em qualquer torcida, as “tricolindas” – apelido usado por elas
mesmas, que se refere às três cores do
clube e à suposta boa aparência das
torcedoras – vestem uniforme com a
marca da torcida, vão juntas ao estádio e usam faixas e bandeiras para se
identificar no “templo” do futebol. São
cerca de 3 mil as cadastradas no site,
mais de 10 mil “curtem” a página do
Facebook, mas apenas 60 tem carteirinha e pagam mensalidade na agremiação. Dentro e fora do estádio,
muitas vestem camisas da torcida,
mas também é pequena a reunião na
arquibancada – num jogo comum como este, não passam de dez. Num
clássico, a média é de 50. “Só criei a
torcida em 2006 para ser uma coisa
diferente, torcida só de mulheres. É
muito difícil, as direções das outras
são quase sempre de homens e eles
não querem dividir poder, espaço, al- Espelho da sociedade
gum apoio que o clube dê para viajar,
ou ingressos de cortesia, por exemplo.
Mariana Vidal, 30, é flamenguista e
Ser torcida organizada quer dizer ter bancária. Seu “time do coração”, o
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Flamengo, é outro dos quatro grandes
clubes da cidade – e, aliás, grande rival
do Fluminense. A torcedora não faz
parte de uma organizada, mas segue
sua equipe no estádio, na TV, nos jornais. Pelo Facebook, exibe em sua foto de perfil a camisa e o amor pelo
clube. É pela rede social que acaba
completando a opinião da torcedora
do time adversário: “No futebol não
enfrento mais machismo que o dia a
dia, o futebol é igualmente machista.
Na verdade, acho que o futebol é o
maior espelho da sociedade, então
quando você está no estádio, na torcida do Flamengo, e ouve a torcida adversária gritando "silêncio na favela",
com raiva, como se ser favelado fosse
o pior dos xingamentos, você sente
todo o preconceito social. É a mesma
coisa quando alguém diz que Fluminense “é time de bicha” e o Botafogo
“é torcida de mulher”, como se ser
mulher fosse um xingamento”, explica,
enumerando estereótipos preconceituosos das grandes equipes da cidade
que são reforçados pelas torcidas nos
estádios.
Mariana, e várias outras torcedoras
com quem conversei, garante que
nunca passou, nem presenciou, situações de assédio sexual nos estádios.
Mas as conversas sobre futebol explicitam, numa sociedade machista,
quem deve estar em qual lugar: “Você
chega num bar, no trabalho, ou no
ônibus, vê alguns homens falando cada besteira... e falam alto, em grupo,
como se fossem os detentores da verdade. Ainda assim, um garçom concorda, o trocador abana a cabeça
aprovando... porque são homens”,
descreve, acrescentando: “se fosse
uma mulher a dar essa mesma opinião,
seriam sinceros e diriam que ela não
entende nada de futebol ou, o mais
provável, debochariam”, sentencia,
explicando que por este motivo muitas restringem suas opiniões a um
grupo de amigos que lhes respeite,
mesmo sem ter as mesmas opiniões.
Mulher na torcida: só se for bonita?
“Impedimento. Sabe o que é? Explica pra mim então!”. É possível apostar
que a maioria das mulheres que já declarou a um homem seu interesse por
futebol ouviu questões assim. A regra
do impedimento, aliás, é um questionamento considerado básico para
mulheres! Mas também a escalação
de times e perguntas sobre nomes de
jogadores são desafios comumente
destinados a estas “invasoras” de espaços masculinos.
Nos treinos, as torcidas mistas aparecem para questionar, pressionar ou
apoiar os jogadores da equipe. A Flu
Mulher, quando aparece, “distrai” os
jogadores. É como narram os jornais,
lembrando – até quando não mencionam – o velho estereótipo das “marias-chuteiras”. É assim que se
apelidaram o grupo de mulheres que
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só se aproximam de clubes, torcidas e
estádios, para tietarem jogadores –
como fariam com astros da música –
ou por estarem interessadas em relacionamentos sexuais com eles, o que
seria atalho para fama e ascensão social. O cenário das orgias sexuais e este grupo de mulheres interessadas em
jogadores ganhou especial destaque
com o desaparecimento da jovem Eliza Samúdio, em 2010. Em vídeos na
internet, ela dizia que tinha sido examante do goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, com quem teria um filho. O corpo de Eliza nunca foi
encontrado, mas as investigações
apontaram para o jogador como responsável. Ele foi condenado por assassinato em março de 2013. Ela não
se definia como tal, mas muito se falou
do mundo deste tipo de “maria-chuteiras”, na época. Quando diz que as
pernas do atacante Fred interessam
menos que seu time do coração, Kaká
também está se afastando desse estereótipo e, por alternância, demarcando seu lugar de torcedora que ama
o clube, sabe do jogo, e quer legitimidade.
No estádio, os torcedores vão jogar
junto, são o 12º jogador, tem como
missão empurrar rumo a vitória. As
mulheres, segundo muitos comentários nos estádios e na TV, estão lá para
enfeitar, embelezar, trazer a família,
colaborar com um ambiente de paz. É
o que garantem os narradores na TV. E
“pra você que se liga na Globo”, bordão
exaustivamente repetido nas transmissões da maior emissora do país,
não faltarão imagens de mulheres
(dentro dos padrões de beleza), das
arquibancadas direto para sua tela
nos intervalos e paralizações dos jogos. Apesar de não haver pesquisas
sobre o sexo dos frequentadores de
estádio, ainda é claro que o sexo feminino é a minoria. Mas somadas às crianças torcedoras, elas parecem
predominar nestas “brechas” das
transmissões.
Kaká concorda que tudo isso reforça preconceitos, mas afirma que “já
engoliu”. Aliás, voluntariamente ou
não, sua torcida adota o apelido que
reforça o binômio torcedora-beleza:
as “tricolindas”. Para ela, pouco a pouco as barreiras vão se quebrando e
importante mesmo é abrir espaço nos
lugares de poder das torcidas – as direções, os privilégios.
Na TV ou lavando roupa suja?
Almerinda França, 66, estava no
Fluminense x Boavista com a neta e a
organizada Flunitor, que reúne homens e mulheres. Não diz os anos de
Maracanã que acumula, mas arregala
os olhos para mostrar que são muitos:
“venho desde solteira!” Diz que a desconfiança às opiniões femininas é coisa de sempre. Mas que vem mudando
conforme aumenta a quantidade de
“mulheres especialistas” em futebol,
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
àquelas que trabalham na imprensa. A
percepção de Almerinda aparece respaldada num interessante trabalho
acadêmico sobre mulheres e futebol.
concentra transmissões de jogos e é
possível perceber o crescimento numérico, na última década, daquelas
que trabalham entrevistando jogadores nos gramados, ou da sua presença
Lara Tejada Stahlberg1, no disserta- em “mesas-redondas”, inclusive com
ção de mestrado “Mulheres em Cam- quadros ou programas inteiros aprepo: Novas reflexões acerca do sentados por mulheres.
feminino no futebol”, fala de diferentes lugares ocupados pelas mulheres
Mas tudo isso pode ser matizado
dentro e fora dos gramados, inclusive para dar a real dimensão dos desafios.
como jornalistas. A pesquisadora da Num domingo pela manhã, no tradiciUniversidade Federal de São Carlos, onal Esporte Espetacular da TV GloSão Paulo, explica – baseando-se no bo, maior canal de TV aberta do país, o
livro de Mauricio Stycer (2009) sobre “Bolsa Redonda” é o espaço das muo jornal Lance!, um dos períodicos es- lheres. O quadro quinzenal batizado
portivos mais respeitados do país e com o nome de um produto identificujas reportagens são, majoritaria- cado como feminino reúne – anunciamente sobre futebol - que as mulheres do mesmo na apresentação do
eram 30% a 40% das profissionais nas programa na internet – quatro muredações brasileiras, número que na lheres com níveis diferentes de codécada de 1990 caia para 10% no caso nhecimento sobre o esporte. Não há
da imprensa esportiva. Conclui a au- registros na TV brasileira de um protora: “As razões para tão pequenas grama com homens que não sabem do
porcentagens passariam por motivos que falam ganhando um precioso esque não são exatamente novidades: paço! Na página do programa na inmulheres sofrem, sim, preconceitos, ternet não faltam comentários do tipo
sobre sua afinidade ou capacidade de “como mulher me senti envergonhada
compreender especialmente o fute- com essa proposta de mesa redonda!
bol”. A antropóloga comenta ainda Nada contra explicar o que é impedique elas eram e são muitas vezes de- mento, último homem - termos do
signadas a cobrir divisões de base ou futebol - mas colocar mulheres espeesportes com apelo menos masculino cificamente pra fazer isso corrobora a
que o futebol. De lá pra cá, apesar de ideia de que mulher não entende de
não apresentar outras estatísticas, a futebol!” e, da parte dos homens, “a
autora afirma que as porcentagens Fernanda Gentil é a mais gostosa de
estão mudando. E diz o mesmo a per- todas! Que delícia de mulher!” ou
cepção de quem “zapeia” canais aos “Mulher não sabe de nada de futebol,
domingos, quando a TV brasileira mais
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tivesse lavando uma loça ou passando
uma roupa ganhava mais” (sic).
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Não faltam na miscelânea da internet, onde é possível também se esconder no anonimado, comentários
sobre a incapacidade de mulheres falarem sobre futebol e sobre como elas
– especialmente as mais atraentes –
só estão onde estão por oferecerem
favores sexuais a alguém. No trabalho
de Lara Stahlberg, algumas jornalistas
entrevistadas comentam que se uma
mulher garante um “furo” de reportagem, imediatamente depois se multiplicam comentários de que o
resultado de seu trabalho é, na verdade, fruto de relações ‘promíscuas’ com
homens do mundo do futebol.
Nota
1 Assista em http://www.bdtd.ufscar.br/ht-
docs/tedeSimplificado//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5946
No país que vê jogar apenas no replay a maior jogadora de futebol de
todos os tempos, Marta, premiada
mais vezes que qualquer homem como melhor do mundo pela FIFA, é
possível que a mudança de comportamento ainda precise de muito tempo
para acontecer, dentro e fora das quatro linhas. Mas a presença e insistência delas vai abrindo espaço e
evitando impedimentos. Pouco importa se o tema da mesa-redonda é
futebol.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
"NÓS VALEMOS MAIS!"
Júlio Delmanto
– Interessante, a gente chama o
pessoal de jornal e nunca vem ninguém, não. Agora vêm porque a senhora veio – reclamava um morador
da comunidade Coque, região central
de Recife, com o dedo apontado para a
caravana de jornalistas, ativistas e vizinhos seus que sofria sob o sol da
tarde enquanto verificava os impactos
da Copa do Mundo nesta região.
– Não tem problema, é por isso que
estou aqui – respondeu Raquel Rolnik,
relatora da ONU para o direito à moradia, responsável por atrair os repórteres da imprensa local.
– Desculpa, mas eu tive que falar,
gente! – finalizou o rapaz, que na
sequência enfiou-se em uma das vielas que ladeiam um mal cheiroso córrego, este por sua vez “arrodeado”,
como dizem os recifenses, pelos escombros das casas já destruídas pelo
governo – que em troca do compromisso
de saída prometeu indenizações aos
que vivem há décadas nesta região.
“Nós valemos mais”. Além de estar
nas camisetas de alguns dos ativistas
do Comitê Popular da Copa de Pernambuco, acompanhada de uma hashtag, esta frase pode ser vista pichada
em paredes tanto da comunidade do
Coque quanto no Loteamento São
Francisco, município de Camaragibe,
onde as remoções de moradores também acompanham obras relacionadas
à Copa do Mundo. Ambos locais foram
visitados por Raquel Rolnik em uma
agenda de trabalho realizada na cidade do Recife nos dias 29 e 30 de novembro. As atividades culminaram
com um debate público ocorrido na
Faculdade de Direito, organizado pelo
Comitê e apoiado pela Fundação Rosa
Luxemburgo.
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No caso do Coque, são cerca de 60
famílias ameaçadas por obras de um
terminal viário que será construído na
região, mesmo com a área sendo definida como ZEIS – Zona Especial de Interesse Social, o que deveria
representar o reconhecimento do direito de as pessoas permanecerem ali
e determinar que um projeto de urbanização fosse implementado.
Já em Camaragibe, as ameaças se
dão por conta da Arena Pernambuco,
que receberá jogos da Copa e pode ser
avistada de algumas regiões do bairro.
Das 126 famílias ameaçadas, 105 já
deixaram o local, sendo que muitas
delas sequer receberam as (baixas)
indenizações prometidas. As que ainda resistem, o fazem sob constante
ameaça de remoção violenta, sem que
haja sinalização de disposição de negociação por parte do poder público.
Em ambos os locais, a revolta com a
forma como as “negociações” estão
sendo implementadas e com os ínfimos valores oferecidos pelas moradias é bastante forte. “Eles infringem o
direito da gente na cara da gente, não
O seminário
Entre 29 de novembro e 1º de dezembro de 2013, o Comitê Popular da Copa
de Recife, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, organizou o seminário “Legados e relegados da Copa do Mundo: Quando o direito à cidade é violado”, na
capital de Pernambuco. Com participação de diversos ativistas, intelectuais e
membros de comitês sediados no Nordeste, o evento pautou-se pela troca de
experiências entre os que atuam na resistência aos impactos do Mundial e pela
busca de atuações conjuntas, tendo também uma etapa pública, constituída de
um debate com Raquel Rolnik, relatora das Nações Unidas pelo direito à moradia.
Com uma metodologia que privilegiou o diálogo e a troca de informações, o
evento propiciou intercâmbio entre os distintos Comitês Popular, com o cearense. Segundo seus ativistas, a principal expressão dos impactos do campeonato
mundial de futebol na capital Fortaleza é a construção de um Veículo Leve sobre
Trilhos (VLT), que impacta dezenas de famílias, de 22 comunidades, em seus
12,7km de extensão em via dupla.
Como mostrou reportagem do portal de notícias G1, 75% das obras de mobilidade inicialmente divulgadas como conectadas à Copa do Mundo estavam atrasadas no início de 2014 ou foram canceladas. No caso do VLT também há atrasos
e muita desinformação, o que não impede o governo de manter uma meta de
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
pedem nem com licença pra entrar, e a
gente é que está errado? Na época de
eleição chegam aqui pedindo votos”,
questionava uma das moradoras numa das inúmeras rodinhas formadas
em torno a Rolnik durante o dia. “A
gente se sente injustiçado, na próxima
eleição vamos colocar um portão pra
esses políticos não entrarem”, continuou antes de ser interrompida pelo
senhor a seu lado, de boné e bigode,
que prosseguia com novas reclamações e explicações, num processo que
durou o dia todo, como se as vidas daquelas pessoas fossem, por ação esta-
tal, organizadas dentro de uma só
narrativa de violência e angústia. “É
expulsão mesmo, querem construir à
força”, apontava.
Para os microfones e moradores,
Rolnik incansavelmente explicava que
“o parâmetro do direito à moradia é:
está saindo daí para melhorar ou para
piorar? A questão não é necessariamente o valor da indenização, se é 10
mil, 20 mil, não dá pra dizer sem saber.
Mas é que com o valor oferecido você
não tem outra alternativa senão piorar, e assim não pode ser”. “Cinco mil
2185 desapropriações para sua construção. Desde 2011 as comunidades têm se
articulado num processo de resistência que inclui o Comitê Popular da cidade,
que se preocupa também com a questão da exploração sexual e das baixas indenizações para os que não puderem evitar seu desalojo.
A questão da exploração sexual também é importante para os membros do
comitê baiano, assim como a do tráfico de pessoas. Além disso, denunciam que
muitos comerciantes foram prejudicados com a reconstrução do estádio da Fonte Nova, pois nas imediações do novo projeto se buscará impedir seu trabalho,
sobretudo durante o Mundial. Já no caso do Comitê Popular do Rio Grande do
Norte, a questão principal também é enfrentar as desapropriações forçadas,
num processo que gerou a criação da Associação Potiguar dos Atingidos pelas
obras da Copa.
Formado no final de 2010, o Comitê de Pernambuco chegou a participar de
uma auditoria junto com a ouvidoria da Presidência da República, articulação
que gerou como produto um dossiê. Também foram realizadas manifestações
públicas e seminários, após os quais avalia-se que houve avanços e conquistas,
como a redução das desapropriações em Camaragibe – município vizinho a Recife – e o impedimento de desapropriações no bairro central do Coque.
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seiscentos e sessenta e cinco reais me
ofereceram”, repetia e repetia a moradora, entre incrédula e indignada.
“O Coque é o quilombo do pobre, a
gente não quer sair daqui!”, continuou, disputando a palavra com outros
vizinhos seus que cercavam a relatora
da ONU.
“Hoje a tarde mesmo eu disse ‘Glória a Deus, vem um povo bom por aí’,
que bom que vocês chegaram”, dizia
Dona Maria, com o rosto suado e sentada em uma cadeira no meio de sua
cozinha, nos fundos do Coque, uma
das partes mais precárias da comunidade. Durante a conversa, as rugas em
sua pele escura quase ficavam imperceptíveis diante de sua energia: “Estou esperando os homens virem aqui
fazer alguma coisa por mim, eu não
tenho pra onde ir, tenho quatro netos”,
declarava, relatando pagar cem reais
por mês de aluguel por seu barraco
cheio de gaiolas de pássaros.
“A gente não pode mais falar sobre
derrubar, porque derrubar está todo
mundo derrubando já”, explicava uma
senhora, moradora do Loteamento
São Francisco. “Agora eu vou lutar,
porque eu só vou sair com o meu pai,
de 81 anos, cadeirante porque teve
um AVC de tanto nervoso, se a gente
tiver o dinheiro pra pagar outra casa.
Meu pai é digno e mora aqui há 50
anos”, relatava. “A pessoa sair do que é
seu, do que lutou pra ter, de graça? Isso não tem graça nenhuma”, emendou
uma amiga sua, braços cruzados e tom
enervado.
Com uma camisa de campanha política, uma cruz de madeira no peito e
cabelo cortado com franja, estilo indígena, uma senhora chamou Rolnik para o portão de sua casa. “Para viver
não há limites”, dizia a camiseta de sua
amiga, que afirmava ser avó de duas
crianças, uma delas com problemas
mentais. “Estou aqui me acabando por
causa desses problemas, é um desespero. Vamos ficar no meio da rua?”,
questionava essa, enquanto aquela
resumia: “Essa Copa é do Satanás, é do
Diabo, não é de Deus, não. Isso tá destruindo a vida de todo mundo”. Em comum entre as duas, a mesma
promessa: “Daqui eu não saio, não. Só
se derem um tiro no meu pé”. Como
ninguém duvida que sejam capazes
disso, o clima seguia tenso com o por
do sol e a saída da comitiva, que seguiu para o centro da cidade, onde
aconteceu o debate público.
A relatora, barrada
Inicialmente previsto para ser realizado em um auditório da Câmara
Municipal do Recife, o evento foi
transferido de última hora para uma
faculdade por conta do veto do presidente da Câmara, que disse temer que
a discussão fosse um pretexto para
uma invasão do espaço por movimentos sociais e manifestantes.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
Mesmo com a mudança, o abafado e
tradicional auditório da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) estava lotado,
mais um índice da grande repercussão
que a visita de Rolnik causou – a mídia
local também teve considerável interesse por suas declarações e denúncias. Além da urbanista, André Souza,
do Comitê Popular do Ceará, também
compôs a mesa de debates.
atenção midiática e do capital internacional, os megaeventos estimulam
também sentimentos nacionalistas e
de engajamento da população, a relatora da ONU apontou que eles criam
espaço para o que se tem denominado
de “estado de exceção”, ou seja, em
nome de sua realização “é possível fazer coisas que seriam inimagináveis
em outras condições, e isso a gente
pode ver aqui e em outros países”.
Após destacar que, pela primeira
vez, em seis anos de mandato como
relatora do direito à moradia adequada, havia sido barrada em uma Câmara municipal, Raquel Rolnik lembrou
como os megaeventos esportivos
constituem espaços “para desconstruir direitos”. “Recife foi um dos
nascedouros da luta pelo reconhecimento do direito à moradia, e por isso
é muito chocante ver isso ser desconstruído”, apontou, lembrando que
“a ideia de direito à moradia nada tem
a ver com a ideia de que moradia é
mercadoria, um bem, um produto que
você compra – ela é um direito humano, um lugar a partir do qual as pessoas possam ter acesso a condições para
poder atender ao conjunto de seus direitos”.
“O megaevento abre essa possibilidade, e a grande questão é que a partir
daí você escancara uma porta e vai
passando tudo”, prosseguiu, analisando a existência de processos que vão
“capturando o espaço e o território,
única e exclusivamente como campo
de valorização do investimento financeiro, abstrato, internacional e globalizado”. “Com um pequeno detalhe: no
território tem gente morando”, criticou, antes de finalizar lembrando a
importância da resistência e da luta
política para frear os impactos desses
ataques: “Acho que a gente tem que
ter esperança, tem que acreditar que
a defesa dos direitos humanos e urbanos é ainda fundamental e vale a pena”, concluiu, sob fortes aplausos dos
presentes.
Sendo assim, na opinião de Rolnik o
direito à moradia “é uma espécie de
portal, de porta de entrada para o direito à educação, à saúde, expressão
cultural, ao acesso ao trabalho”. Ressaltando que, além de atraírem
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Raquel Rolnik em Camaragibe, novembro de 2013.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
A EXPLOSÃO DE UM MODELO
Raquel Rolnik
Entrevista: Júlio Delmanto
Em 2007, quando a escolha do Brasil
para sede da Copa de 2014 foi divulgada, houve grandes celebrações na mídia e até nas ruas, com shows e festas.
Você esperava que, meses antes da
abertura dos jogos, estivesse sendo
questionada até a própria realização do
evento, sem falar no baixo apoio da população?
perceber a extensão da questão
quando virei relatora pro direito à
moradia adequada, meu mandato começou em maio de 2008.
Como relatores nós recebemos
muitas denúncias de violações do direito à moradia, e justamente naquele
momento estavam chegando denúncias da África do Sul, em função da
preparação para a Copa. Tinha uma
comunidade grande que tinha sofrido
remoções, estavam sendo removidos
para containers de metal, que o pessoal chamava de “micro-ondas”, imagine as condições que aquilo tinha,
então eu comecei a acompanhar a
questão e o tema e recebi também várias denúncias de Beijing.
Na verdade, naquele momento eu
estava bem pouco ligada nesse assunto. Eu estava acompanhando muito
mais à distância, eu havia saído do governo no início de 2007, fiquei no Ministério das Cidades até final de 2006.
Eu saí justamente porque estava discordando da forma como estavam se
encaminhando as decisões em relação
à política urbana – a questão da Copa
Até que recebi um grande dossiê, de
e das Olimpíadas não foi a razão da
uma
entidade internacional de defesa
minha saída, mas eu já não estava
do
direito
à moradia, em que recupeconcordando. Eu comecei a acomparavam
coisas
que vinham desde
nhar e comecei a me envolver e
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Atenas. A partir de ali eu decidi dedicar um relatório temático anual – eu
tenho que fazer dois como relatora,
pra apresentar pro conselho de direitos humanos da ONU – sobre o tema
megaeventos e direito à moradia. Aí
eu comecei a acompanhar e para mim
esse foi o sinal de alerta de que essa
celebração da recepção da Copa e da
Olimpíada como grandes eventos tinha problemas e tinha um potencial
de ser encaminhada de uma forma
com efeitos perversos. A partir dali
começamos a acompanhar, fazer visitas e a sociedade civil também começou a se estruturar, com comitês
populares, e etc. Já nesse momento eu
pensei que essa questão, num momento ou outro, seria contestada, mas
se a gente olhar ela só ganhou envergadura com as manifestações de junho de 2013, até então embora os
comitês tenham crescido, a atenção
pra pauta ainda era muito limitada.
Desde o início você está atenta a outras experiências de megaeventos:
África do Sul, Grécia, Índia, Inglaterra.
O que tem de comparável com o que
estamos vivendo no Brasil?
Acho que tem dois grandes grupos
de países, pra começar a conversa.
Minha fala é do ponto de vista da moradia, é claro, apesar de haver outras
violações de direitos humanos e de
existirem outras questões do ponto
de vista urbanístico mais geral. O que
é comum é que crescentemente os
megaeventos têm sido associados a
grandes operações comerciais de
venda de produtos, que tanto podem
ser de produtos dos patrocinadores,
que ganham essa enorme visibilidade
global, e com a falácia da história do
legado, que marca muito a experiência
dos jogos sobretudo a partir de Barcelona, a ideia da transformação urbanística das cidades associada aos
jogos também passa a ser muito importante.
A ideia da promoção de grandes
projetos urbanísticos em geral vendidos na esfera global para o capital
financeiro internacional, que justamente nesse período crescentemente
opera no sentido da financeirização
do mercado imobiliário e da globalização do mercado imobiliário, os jogos acabaram sendo um grande palco
pra que esses projetos vendidos no
mundo financeiro pudessem se estabelecer. Isso é um elemento digamos
comum, ele vai ocorrer também na Inglaterra, em outros países, o que há de
particular no caso da Índia, da África
do Sul e do Brasil é que um processo
de transformação urbanística desse
tipo envolve uma urbanidade incompleta e a existência de um grande número de assentamentos humanos,
populares, semilegais, informais, legais, ambíguos, que apresentam certa
ambiguidade em relação a sua pertinência na cidade, não são plenamente
reconhecidos. São as favelas, os loteamentos populares. E esse tem sido o
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
palco fundamental, tem sido o local
onde esses projetos se instalam, destituindo essas pessoas do acesso a esse lugar e removendo sem respeitar o
direito à moradia adequada.
E por que você fala em “falácia do legado”? Isso vale para o caso do Brasil,
onde era meio claro que não haveria legado algum além dos estádios, ou em
geral, com sua utilização sendo mais
uma justificativa pra realização dos
Então, embora em Barcelona, em eventos do que uma possibilidade conLondres, você tenha operações de creta?
gentrificação e de enobrecimento que
afetam o direito à moradia dos mais
O legado é uma grande operação
pobres, claro, mas essas daqui têm a comunicacional, simbólica e ideológiespecificidade da existência da inse- ca. Do mesmo modo que a associação
gurança de posse desses grupos, isso é das marcas com o esporte no mundo
uma diferença marcante. Não por empresarial envolve operações simacaso os projetos vão exatamente em bólicas e ideológicas, na questão do
cima delas, porque não reconhecendo legado também, sua ideia é uma consseus direitos não são pagas as desa- trução que justifica a frente de expanpropriações como deveriam ser.
são imobiliária que ela representa. E
mais que isso, o Carlos Vainer aponta
É isso que você chama de “dualidade isso com muita clareza, ela é o que
da condição urbana”?
permite a ideia da exceção, a construExatamente, você tem um pedaço ção da exceção em relação às regras e
da cidade produzido, digamos, plena- à legalidade existente. Então você tem
mente no interior da regulação urba- a exceção em nome do legado, ele vai
nística e jurídica, e uma outra parte da justificar todas as desconstituições de
cidade, em muitos casos muito maior direitos que isso promove.
do que essa, tem elementos de regulação e de legalidade conjugados com
elementos que vão por fora, com outras lógicas, etc. E majoritariamente
são habitadas por população de baixa
renda. A dualidade é que nesses locais
a cidadania e os direitos humanos são
permanentemente negociados, eles
não são assumidos e reconhecidos
plenamente.
Você mencionou os grandes protestos de junho do ano passado. Eles são
fruto principalmente da revolta contra
os gastos da Copa ou se conjugam com
outras questões urbanas?
A Copa é apenas uma das questões,
seguramente. A explosão de junho, na
minha opinião, é a explosão de um
modelo de negação do direito à cidade
para a maior parte da população. Ela é
fruto também, me parece, dos anos
recentes em que ocorre um processo
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de inclusão muito significativo de uma
parcela historicamente excluída, mas
uma exclusão via consumo. A esfera
pública, a dimensão pública das cidades e seus serviços, historicamente
péssimos, pobres para os pobres, isso
não mudou um milímetro. O modelo
de urbanização e de desenvolvimento
continuou voltado pra favorecer
quem ele sempre favoreceu. A explosão das ruas me parece que revela que
explode esse modelo, e exige uma outra coisa, então ela é muito mais ampla
que a questão da Copa.
Sim, é uma nova geração de movimentos sociais, não há a menor dúvida. Os movimentos que emergiram
ainda no final dos anos 1970, na luta
contra a ditadura, pela afirmação do
direito à cidade e pela reforma urbana, que foram muito intensos e que
cresceram de patamar nos anos 1980
e se constituíram como uma frente na
Constituinte, conquistando uma institucionalidade, eles tinham uma
enorme identidade do ponto de vista
político com os novos partidos que
entraram no poder e estabeleceram
suas coalizões. À medida que isso foi
crescendo os limites apareceram
E nesse contexto a questão urbana é muito claramente, a geração que vai
recolocada na cena política, agora por pra rua em junho de 2013 não tinha
movimentos muito diferentes do que nem nascido nos anos 1980!
foram os que discutiam o tema nos
anos 1980.
Desinformação, ameaças, pressões e repressões
Em 4 de março de 2013, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da
Copa (Ancop), rede que reúne comitês formados nas cidades que receberão jogos do Mundial, foi recebida oficialmente pelo Conselho de Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas. Após apresentação exatamente de Raquel
Rolnik, que divulgou um de seus relatórios sobre os impactos do megaevento
sobre a moradia, Giselle Tanaka ocupou a tribuna representando a articulação.
Ressaltando que “a realização destes eventos esportivos no Brasil poderia
ter criado a possibilidade de viabilizar significativos investimentos sociais e na
infraestrutura”, ela ponderou que os grandes investimentos mobilizados para
estes megaeventos aprofundam a desigualdade social e as violações de direitos no país: “Isto parece ser um tema comum relacionado aos megaeventos e
megaprojetos: servir ao lucro de uns e causar prejuízo a milhões”, concluiu.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
É uma geração nascida nos anos
1990, ela já nasceu em outro contexto, outro momento, ela não tem compromisso com aquela história e ela já
nasce a partir dessa inclusão meia boca, que é a inclusão que foi conquistada nos anos 1990 – inclusão meia
boca: universalizou o ensino mas o
ensino é de quinta categoria, tem
subsídios pra habitação mas essa habitação, como o Minha casa, Minha
vida, também é de quinta, repete os
velhos modelos de exclusão territorial. Então essa geração é nova, ela começa de outro patamar. Parcelas
muito pequenas dos antigos movimentos de moradia tiveram a sensibilidade de entender que há uma nova
geração e a capacidade de se articular,
a maioria inclusive ficou numa posição
resistente, não conseguiram romper a
inclusão seletiva na qual eles também
estão comprometidos.
Você acha que isso coloca a questão
urbana em outro patamar de luta e disputa?
Há um elemento muito importante
no Brasil na questão urbana que é a
classe média, aqui ela é um ator muito
importante. E nos anos 1970, foi em
nome da classe que média que se
montou esse modelo de desenvolvimento excludente. Só que aconteceram duas coisas com a classe média:
em primeiro lugar, ela ampliou-se e,
em segundo, ela rachou do ponto de
vista de ideológico. Uma parte da
classe média, que sustenta o modelo
excludente baseado no automóvel, na
circulação pra poucos e etc., também
não quer mais isso como modo de
Em sua fala, Tanaka apresentou a estimativa da Ancop, que naquele momento avaliava em 170 mil o número de pessoas afetadas por remoções relacionadas à Copa e aos Jogos Olímpicos de 2016, o que representaria um “êxodo
forçado” no qual “quase 1 em cada 1.000 brasileiros estão ameaçados de perder suas moradias por conta de jogos que não durarão sequer um mês cada”.
No primeiro semestre de 2013, a Ancop divulgou um dossiê intitulado “Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil”, no qual esta estimativa
de 170 mil remoções é considerada “conservadora”. A depender das fontes, o
número pode chegar a 200 ou 250 mil pessoas atingidas, num país que tem 15
milhões de domicílios urbanos destituídos de condições mínimas de habitabilidade e um déficit habitacional de cerca de 5 milhões e 500 mil moradias – os
números constam de dados oficiais divulgados em 2008 pelo Ministério das
Cidades. De acordo com essa projeção, aproximadamente 11% dos domicílios
permanentes nas capitais nordestinas e de 6 a 8% nas capitais do Sul e do
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Sudeste encontram-se em más condições, sendo que em 71% dos casos isso se
deve à carência de infraestrutura.
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Adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1966
e subscrito pelo Brasil em 1992, o Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece em seu artigo 11 o direito à moradia adequada, que também é salvaguardado pela Constituição Federal brasileira e
pelo Estatuto da Cidade. As leis não têm impedido, no entanto, que no processo de preparação para os megaeventos as ações governamentais tenham não
só agido a contento sobre esse cenário como removendo ainda mais famílias ,
sobretudo, nas palavras do dossiê, provenientes “de comunidades localizadas
em regiões que, ao longo do tempo, tiveram enormes valorizações e passaram
a ser objeto da cobiça dos que fazem da valorização imobiliária a fonte de seus
fabulosos lucros”.
Segundo o estudo da Ancop, “os motivos alegados para a remoção forçada
são, evidentemente, outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em questão de riscos ambientais e, mesmo, a melhoria de suas condições de vida... mesmo que a sua revelia e contra sua vontade. Como
pressuposto mais geral, a ideia de que os pobres, coitados, não sabem o que é
melhor para eles”.
As estratégias utilizadas seriam parecidas em todo território nacional, iniciando-se geralmente com a “produção sistemática da desinformação, que se
alimenta de notícias truncadas ou falsas, a que se somam propaganda enganosa e boatos”. Em seguida, viriam as ameaças e, caso haja resistência, mesmo que
desorganizada, advém o recrudescimento da pressão política e psicológica.
“Ato final: a retirada dos serviços públicos e a remoção violenta”, conclui o dossiê.
“Em todas as fases há uma variada combinação de violações aos direitos humanos: direito à moradia e direito à informação nestas situações caminham
juntos, como juntas caminhas as violações que se concretizam. Desta forma,
este relatório optou por apresentar os casos segundo as categorias ‘desinformação e rumores’, ‘ameaças de remoção’ e ‘remoções realizadas ou em andamento’, lembrando que em áreas extensas de um mesmo projeto, diferentes
subáreas estão sujeitas a diferentes estratégias que, combinadamente, aumentam o terror e a pressão”, resume a Ancop.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
vida, também rejeita isso. Então movimentos como o do Parque Augusta,
por exemplo, que é um movimento por
espaço público, é algo que hoje discute direito à cidade. E está vindo de outra matriz, que não é a da
precariedade, da favela, que luta por
saneamento, mas está aí, faz parte
também do caldo das manifestações
de junho, assim como o movimento
dos cicloativistas, que em parte vem
das classes médias. Está falando de
outro modo vida, isso também amplia
não só os setores sociais mas até as
pautas do direito à cidade, isso é muito importante do ponto de vista político, é uma nova configuração. Mas
tenho certeza absoluta que as periferias, a juventude das periferias esteve
presente, é um elemento fundamental
nas manifestações de junho, porque
ela já vinha há anos se estruturando
com coletivos culturais, de reflexão,
com grupos de estudo, isso já estava
acontecendo muito forte, como também o Movimento Passe Livre, que eu
acompanho desde 2005, é um negócio
que tem quase dez anos, não apareceu
hoje.
E nesse período que você tem acompanhado diversas denúncias e resistências, o que pode ser destacado como
conquista dos movimentos e dos atingidos pela Copa?
Eu acho que teve várias conquistas,
em várias cidades brasileiras. Eu
acompanhei bastante Rio de Janeiro,
São Paulo, Fortaleza, Porto Alegre,
Curitiba, Recife, e em várias situações
houve recuos do ponto de vista dos
projetos, comunidades que iam ser
atingidas deixaram de ser porque os
projetos mudaram, em segundo lugar
a forma de se fazer remoção, que continua a não ser de acordo com o que
diz o direito à moradia adequada,
também mudou muito, teve uma evolução. No começo, as empreiteiras
saíam derrubando casa com as pessoas dentro, isso não acontece mais. As
compensações aumentaram, hoje o
que está sendo oferecido pra Vila do
Autódromo, no Rio, sair dali é um lugar ali perto, com uma condição melhor, isso tudo foi fruto das
mobilizações, dos próprios atingidos e
da sua rede de apoio.
Hoje tem uma parcela das pessoas
que diz que realmente é absurdo mas
agora “já era”, já está perdido. O que você acha que ainda está em disputa e o
que não tem mais jeito?
Não, não “já era” de jeito nenhum. A
Vila do Autódromo está aí, não saiu
até agora e pode não sair, a resistência
continua. Acho que em relação especificamente à Copa, como ela já vai ser
agora em junho, nós temos uma grande questão que são as “Fan Fests”, as
áreas públicas que vão ser tomadas
pela FIFA e nas quais as pessoas não
vão poder trabalhar, as pessoas não
vão poder se apropriar livremente,
acho que isso será um grande embate,
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é e será. Fora a questão da prostituição, fora a questão dos moradores de
rua que devem sofrer repressão e ser
tirados à força da rua, tem várias
questões que ainda são muito relevantes e importantes e precisam ser
chamadas atenção.
Os próximos mundiais de futebol serão no Qatar e na Rússia, então provavelmente a relação entre megaeventos
e violação de direitos irá permanecer.
Sim, eu espero que a próxima relatora siga acompanhando esse tema.
Acredito também que a partir da experiência do Brasil, das relações que e
pontes que se estabeleceram, isso deva seguir e incluir mais e mais gente
nesse debate, que é a ponta do iceberg pra gente discutir modelo de cidade, os projetos urbanísticos e os
megaprojetos, independente dos próprios megaeventos.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
GOL DE LETRAS
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Luiz Ruffato
Míope, baixinho e esquelético, recusavam-se a me aproveitar, ainda
que nas peladas no campinho calvo do
bairro, sem alambrado, arquibancada
ou vestiário, repasto de um cavalo
magro que a ninguém pertencia. Nem
por isso refreou minha paixão pelo futebol. Permanecia nas imediações, e
sempre que alguém faltava, se machucava ou se ausentava por “motivo
de força-maior” (a mãe convocava o
jogador no meio da partida para fazer
um mandado, por exemplo), eu entrava no gramado, pronto a distribuir caneladas e cotoveladas nas sombras
que adivinhasse ao meu lado. Mas, se
a bola a mim não se entregava, paciência, eu dedicava a ela os melhores
recônditos da minha memória. Declinava a escalação dos times do campeonato em curso e de todos os
precedentes e, sem esforço, lembrava
o placar de um jogo ocorrido quinze,
vinte anos atrás - a pedidos, podia até
mesmo narrar os gols, histrionicamente, com a voz e os tiques de um lo-
cutor famoso qualquer, à escolha da
platéia. De lambujem, conhecia de cor
várias poesias lidas na biblioteca da
escola, o que me avalizava junto às
meninas, e escrevia extensas e derramadas cartas de amor, o que garantia
admiração e dependência dos colegas.
Por isso, me chamavam de intelectual.
Eu não sabia, ainda, mas todo este
talento predestinava-me a dias de
maior glória!
Treze anos completos eu tinha,
quando, junto com a turma, aventureime nas fraldas do estádio pela primeira vez. Se fascinaram-me os urros
uníssonos provindos das arquibancadas, o Ah! de um chute torto, o Ih! de
uma jogada perigosa, o Ôh! de uma
bola na trave, o Uh! de um quase gol,
espantou-me nosso silêncio avassalador, quando, no segundo tempo, vencendo por três a zero, a torcida
adversária cadenciava os afrontosos
olés com retumbantes cantos, orquestrados por bumbos, tambores e
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cornetas. Desconsolados, cruzamos
ruas e avenidas em ônibus lotados e
nos recolhemos abatidos em nossas
casinhas baixas, de quintais minúsculos. A semana arrastou-se, nublada.
Nos corredores da escola, até mesmo
as gargalhadas eram aflitas. Se queremos ajudar nosso time, concluímos,
devemos arranjar algo que enlace os
corações alquebrados. E outra coisa
não nos tirava o sono.
Então, durante uma aula de Língua
Portuguesa, sussurrei, sem calcular,
que, quem sabe, talvez eu pudesse rabiscar umas canções de incentivo,
umas palavras de ordem, o que vocês
acham? O alvoroço no fundão contagiou a classe, e a professora, inábil para reprimir a excitação dos alunos,
deixou a sala e voltou com a diretora,
que, além de um interminável sermão,
cortou-nos o recreio pelo resto do
mês. Nada, porém, impediu que a novidade se disseminasse. Todas as manhãs, cercavam-me no portão de
entrada, indagando, E aí? Como estão
os trabalhos? Misterioso, respondia,
importante, Está indo, colhendo frescos suspiros e buliçosos olhares das
meninas. Mentia, entretanto: as noites dedicava a capturar as palavras,
mas elas, zombeteiras, ocultavam-se
nos desvãos da porta, debaixo da cama, entre as camisas carinhosamente
dobradas no guarda-roupa, penduravam-se picumãs no teto, escorriam
como o mofo nas paredes. Ao acordar,
folhas em branco sobre o criado-mu-
do. Pensava desistir, a empreitada
acima da minha capacidade, quando,
numa madrugada tormentosa, despertado pela claridade de um relâmpago, o trovão estremeceu meu corpo,
e, assustado, acendi a luz, surpreendendo um ninho atordoado de palavras, rapidamente transformadas em
ritmo e rima por meus dedos ávidos.
Os mais diligentes alunos já se depararam comigo recostado vitorioso
ao portão de entrada da escola, tanta
ansiedade. O burburinho se esparramou e, então, engrossado o ajuntamento, anunciei os versos que
comporiam nossa canção de estímulo,
nossas palavras de ordem. Descontrolada, a turba me tomou nos braços
e, em coro, desfilou pelos corredores e
pelo pátio, bagunça contemporizada
pela diretora, ela mesma, imagino, inconfessada torcedora do nosso time.
O resto da semana ensaiamos os cantos, que no domingo inundaram as arquibancadas engalanadas do estádio.
A minha vida tomou outros rumos,
já ninguém reconhece, por detrás da
minha barba espessa, o intelectual
que fui. Mas ainda hoje ecoa, nas tardes quentes de domingo, aquele dia
da minha maior felicidade: palavras
nascidas dentro de mim, tornadas vozes emocionadas de centenas, milhares de desconhecidos. Não, isso não
esquecerei jamais.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
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Brasil e Japão, 3x0. Copa das Confederações, 2013.
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AUTORES E AUTORAS
Patrick Bond é professor para Política do Desenvolvimento na Universidade
KwaZulu-Natal em Durban (África do Sul), onde dirige o Centro de Estudos da
Sociedade Civil, pesquisando sobre questões de política econômica, meio ambiente, sociedade e geopolítica.
Júlio Delmanto é jornalista, doutorando em História Social e trabalhou no
escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo.
Gerhard Dilger trabalhou como correspondente para mídia de língua alemã
em São Paulo e Porto Alegre de 1999 a 2012. Desde 2013 dirige o escritório
regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo. Espera que surja um
campeão sul-americano na Copa de 2014 e torce pelo Inter.
Lívia Duarte é jornalista. Está muito longe de ser fanática por futebol. Sabe o
suficiente para não ser humilhada em mesas de bar. Torce por uma vitória do
Fluminense desde que percebeu a fascinação do avô pelas narrações no rádio
de pilha.
Thomas Fatheuer viveu e trabalhou no Brasil de 1992 a 2010, onde dirigiu o
escritório da Fundação Heinrich Böll, no Rio de Janeiro. Desde o seu doutorado
publicado em 1985, “Gols contra, sociologia e futebol”, escreve sobre o assunto,
com especial atenção para o futebol brasileiro. Na Alemanha, torce pelo Werder Bremen e no Brasil, pelo Flamengo.
Vladimir Fomenko, tradutor, é vice-dNiretor do escritório da Fundação Rosa
Luxemburg em Moscou.
Eduardo Galeano é escritor (As veias abertas da América Latina, Futebol: ao sol
e à sombra, e muitos mais), torcedor, internacionalista e uruguayo.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
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Juca Kfouri é corinthiano e o crítico mais famoso da FIFA no Brasil. Trabalha
quase 24 horas por dia, escrevendo no seu Blog do Juca, no jornal Folha de São
Paulo, comentando no rádio e no canal de TV ESPN Brasil, bem como escrevendo dúzias de prefácios e posfácios de livros no mundo inteiro.
Martin Ling, jornalista e economista, é fã do Sankt Pauli, do Barça e da Argentina. Vive em Berlim, onde escreve como editor internacional no diário socialista
neues
deutschland,
bem
como
na
revista
mensal
Lateinamerika-Nachrichten.
Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e trabalhou como relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, de 2010 a
2014.
Luiz Ruffato, escritor e flamenguista, mora em São Paulo. Aqui, Gol de letras é
publicado pela primeira vez. Entre muitos romances e antologias, organizou Entre as quatro linhas - Contos sobre futebol, São Paulo: Editora DSOP, 2014.
Andreas Rüttenauer, torcedor do 1860 de Munique, escreve desde 2001
para o diário berlinense taz, die tageszeitung. Após 2006, foi editor de esportes.
Em 2012, candidatou-se ao cargo de presidente da Confederação Alemã de
Futebol. Desde abril de 2014 é co-diretor do taz.
Christian Russau, escritor, tradutor e jornalista, vive em Berlim. Coopera
com a rede de solidariedade para o Brasil KoBra, com o centro de pesquisa e
documentação Chile-Lateinamerika e a agência noticiosa LateinamerikaNachrichten. Seu clube é o TeBe, que joga um futebol autêntico na Sexta Divisão.
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LEIA MAIS
Referências bibliográficas
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14/2004.
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Fernandez, Renato Lanna: Fluminense Foot-Ball Club. A construção de uma identidade
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Mundo de 1950 à luz da imprensa carioca, Rio de Janeiro 2011.
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Wisnik, José: Veneno Remédio – O futebol e o Brasil, São Paulo 2008.
Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto
CRÉDITOS DAS IMAGENS
Anja Kessler: capa, p. 38, 62 e 72.
Gerhard Dilger: p. 8, 34, 64, 82 e 100.
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil, p. 111.
Marcello Casal Jr /Agência Brasil: p. 22 e 33.
Mídia Ninja: p. 4.
Sergio Gonçalves: contracapa.
Tânia Rêgo/ Agência Brasil: p. 6.
Wissen, Wikimedia Commons: p. 14.
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Para a composição e diagramação deste livro foram utilizados softwares livres, programas que podem ser usados, copiados, estudados e redistruídos sem restrições - são alguns deles: Firefox, Open Office,
GIMP e Scribus. A fonte Lato utilizada no miolo também é livre. A fonte
que indentifica a Fundação Rosa Luxemburgo é a Linotype Univers.
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