Anira Carolina Meneses de Carvalho Moura
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Anira Carolina Meneses de Carvalho Moura
sm Pró-Reitoria de Graduação Curso de Comunicação Social Trabalho de Conclusão de Curso REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES E VALENTE Autora: Anira Carolina Meneses de Carvalho Moura Orientadora: Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Brasília - DF 2013 ANIRA CAROLINA MENESES DE CARVALHO MOURA REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES E VALENTE Monografia apresentada ao curso de graduação em Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Jornalismo. Orientadora: Prof. Dra. Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Brasília 2013 Monografia de autoria de Anira Carolina Meneses de Carvalho Moura, intitulada "REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES E VALENTE", apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, em 5 de dezembro de 2013, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ___________________________________________________________ Prof. Dra. Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Orientadora Comunicação Social – UCB ___________________________________________________________ Prof. MSc. Fernanda Vasques Ferreira Comunicação Social – UCB ___________________________________________________________ Prof. MSc. Karina Gomes Barbosa da Silva Comunicação Social – UCB Brasília 2013 RESUMO Referência: MOURA, Anira Carolina Meneses de Carvalho. Título: Representações femininas em Branca de Neve e os Sete Anões e Valente. 2013. Comunicação Social - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013. Desde 1937, os estúdios Walt Disney produziram onze animações que deram às protagonistas o status de princesas: Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959), A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992), Pocahontas (1995), Mulan (1998), A Princesa e o Sapo (2009), Enrolados (2010) e Valente (2012). Por meio de análise de conteúdo e análise fílmica, este projeto busca analisar o modo como as mulheres foram representadas na animação mais antiga, Branca de Neve e os Sete Anões, e na mais recente, Valente. Parte-se da hipótese de que a mídia participa ativamente do processo de construção de gêneros e a ficção acompanhou as mudanças nas representações sociais a respeito do papel da mulher. Em contextos distintos, os filmes analisados trouxeram imagens diferentes acerca do feminino. Palavras-chave: Representações. Gênero. Princesas Disney. ABSTRACT Since 1937, the Walt Disney Studios produced eleven animated movies that gave to their protagonists the status of "princesses": Snow White and the Seven Dwarfs (1937), Cinderella (1950), Sleeping Beauty (1959), The Little Mermaid (1989), Beauty and the Beast (1991), Aladdin (1992), Pocahontas (1995), Mulan (1998), The Princess and the Frog (2009), Tangled (2010) and Brave (2012). By content analysis and film analysis, this project aims to investigate how women were represented in the oldest animated movie, Snow White and the Seven Dwarfs, and in the most recent one, Brave. It is based on the hypothesis that the media has a great part in the process of building genres and that the fiction followed the changes in the social representations about the women roles. In different contexts, the analyzed movies brought different images on women. Keyword: Representations. Gender. Disney Princesses. ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 – Vestida em trapos, Branca de Neve esfrega o chão do pátio do castelo, rodeada por pombas brancas.................................................................................... 36 Figura 2 – Ao ouvir Branca de Neve cantar, o príncipe pula o muro do castelo para observá-la.................................................................................................................. 37 Figura 3 – O príncipe se junta a Branca de Neve, com quem começa a cantar ....... 38 Figura 4 – Branca de Neve se assusta com o estranho e foge para dentro do castelo .................................................................................................................................. 39 Figura 5 – O príncipe canta para Branca de Neve sobre seu amor .......................... 39 Figura 6 – Ao ouvir a música cantada pelo príncipe, Branca de Neve demonstra estar emocionada e feliz ........................................................................................... 40 Figura 7 – Por um breve momento, Branca de Neve observa suas próprias roupas e gesticula de modo a parecer sentir vergonha de seus trajes simples ....................... 41 Figura 8 – A rainha observa o casal por uma das janelas do castelo....................... 41 Figura 9 – Branca de Neve “envia um beijo” ao príncipe por intermédio de uma das pombas brancas ........................................................................................................ 42 Figura 10 – O príncipe recebe o beijo enviado por Branca de Neve, selando o compromisso entre o casal........................................................................................ 42 Figura 11 – Branca de Neve conta aos anões a história de uma princesa que se apaixonou .................................................................................................................. 44 Figura 12 – Branca de Neve canta para os anões sobre seu romance .................... 44 Figura 13 – Em seu livro de feitiçaria, a rainha lê que o Sono da Morte possui um antídoto: o primeiro beijo de amor (em inglês, “Love’s First Kiss”) ............................ 45 Figura 14 – Branca de Neve faz seu pedido à suposta maçã miraculosa: ser levada ao castelo do príncipe, onde o casal viverá feliz para sempre .................................. 46 Figura 15 – O príncipe beija Branca de Neve, que está deitada no caixão em seu Sono de Morte ........................................................................................................... 48 Figura 16 – Após despertar do Sono da Morte, Branca de Neve é carregada pelo príncipe até seu cavalo branco.................................................................................. 49 Figura 17 – O casal se despede e se afasta do bosque, porém param para observar o castelo do príncipe ao longe................................................................................... 50 Figura 18 – A frase "...e viveram felizes para sempre" (em inglês, "...and they lived happily ever after") escrita no livro filmado em live-action ......................................... 51 Figura 19 – A rainha, sentada em seu trono............................................................. 54 Figura 20 – Branca de Neve ..................................................................................... 54 Figura 21 – O livro, filmado em live-action, apresenta a história ao espectador, na primeira cena do filme Branca de Neve e os Sete Anões ......................................... 56 Figura 22 – A segunda página da introdução à história de Branca de Neve, em livro filmado em live-action ................................................................................................ 56 Figura 23 – A rainha convoca o espírito presente em seu espelho mágico ............. 57 Figura 24 – O espelho mágico aparece .................................................................... 58 Figura 25 – O caçador não pretende matar a “linda princesa” ................................. 58 Figura 26 – Os animais rapidamente se encantam pela garota ............................... 59 Figura 27 – Os anões ficam admirados com a beleza de Branca de Neve .............. 60 Figura 28 – Outono: “Ela era tão linda em seu Sono de Morte que os anões não tiveram coragem de enterrá-la” ................................................................................. 61 Figura 29 – Inverno: “Eles fizeram um esquife de ouro e cristal e velaram seu corpo dia e noite”................................................................................................................. 61 Figura 30 – Primavera: “O príncipe, que procurava por toda parte, ouviu dizer que havia uma linda menina dormindo num esquife” ....................................................... 62 Figura 31 – Os anões não tiveram coragem de enterrar Branca de Neve devido à sua beleza. Fizeram um esquife de ouro e cristal para que pudessem admirá-la ..... 62 Figura 32 – Os anões velaram o corpo de Branca de Neve dia e noite ................... 63 Figura 33 – Branca de Neve, dormindo na cama dos anões, enquanto é observada .................................................................................................................................. 67 Figura 34 – A madrasta de Branca de Neve, em seus trajes de rainha ................... 68 Figura 35 – Branca de Neve enquanto criada, vestida de trapos ............................. 69 Figura 36 – Branca de Neve no vestido com o qual passa a maior parte do longametragem .................................................................................................................. 70 Figura 37 – A rainha, em seu disfarce de mendiga .................................................. 71 Figura 38 – Branca de Neve, limpando a casa dos sete anões................................ 74 Figura 39 – Merida diz que a mãe não pode obrigá-la a se casar ............................ 86 Figura 40 – O rei Fergus imita Merida quanto aos seus desejos de liberdade, e não por um casamento ..................................................................................................... 87 Figura 41 – No interior do castelo, Elinor simula uma conversa com Merida ........... 88 Figura 42 – Merida está no estábulo e simula uma conversa com a mãe ................ 88 Figura 43 – Merida decide competir por sua própria mão ........................................ 89 Figura 44 – Merida vence o torneio, acertando os três alvos ................................... 89 Figura 45 – Merida discursa sobre o rompimento da tradição para que cada jovem decida sobre o próprio destino .................................................................................. 90 Figura 46 – O jovem Macintosh é apresentado, juntamente com sua espada ......... 91 Figura 47 – Ao ser apresentado, o jovem MacGuffin quebra um pedaço de madeira para mostrar sua força .............................................................................................. 91 Figura 48 – O lorde Dingwall apresenta o seu filho como o terceiro pretendente de Merida ....................................................................................................................... 92 Figura 49 – O jovem Dingwall se despede de Merida .............................................. 92 Figura 50 – Elinor veste Merida com um apertado espartilho................................... 95 Figura 51 – Elinor penteia os indomáveis cabelos de Merida................................... 96 Figura 52 – Elinor esconde os cabelos de Merida, ao colocar na filha um capuz que os cobre por completo ............................................................................................... 96 Figura 53 – Merida não consegue respirar com a roupa, mas, para sua mãe, ela está perfeita............................................................................................................... 96 Figura 54 – O vestido de Merida se rasga, exibindo o espartilho ............................. 97 Figura 55 – As costuras do vestido de Merida também se abrem ............................ 97 Figura 56 – Ainda que esteja transformada em urso, Elinor escolhe um vestido para se cobrir..................................................................................................................... 98 Figura 57 – Os cabelos de Elinor estão presos durante a maior parte do filme ....... 99 Figura 58 – Nas cenas finais, o cabelo de Elinor está solto ..................................... 99 Figura 59 – No início do filme, Merida usa um vestidinho marrom, enquanto o de Elinor é em tom de púrpura ..................................................................................... 101 Figura 60 – Na maior parte do filme, Merida usa um vestido verde escuro ............ 101 Figura 61 – Elinor usa um vestido verde com detalhes dourados .......................... 101 Figura 62 – Nas cenas finais do filme, Merida usa um vestido preto, enquanto o de Elinor é azul............................................................................................................. 102 Figura 63 – Todos os personagens masculinos de Valente usam kilts, uma parafernália nacionalista escocesa ......................................................................... 102 Figura 64 – Elinor diz a Merida que uma princesa deve conhecer a história de seu reino ........................................................................................................................ 104 Figura 65 – Elinor ensina Merida a tocar harpa ...................................................... 104 Figura 66 – Elinor repreende Merida, pois uma princesa não deve encher a boca para comer .............................................................................................................. 104 Figura 67 – Elinor desperta Merida, pois uma princesa deve levantar cedo .......... 105 Figura 68 – Merida dispara flechas enquanto cavalga ........................................... 106 Figura 69 – A garota sobe ao topo da montanha Dente de Crânio ........................ 106 Figura 70 – Merida também é habilidosa com espadas ......................................... 108 Figura 71 – Na tapeçaria, está costurada a imagem da família.............................. 108 Figura 72 – Em Valente, a bruxa não é má ............................................................ 109 Figura 73 – Maudie é a babá dos trigêmeos Harris, Hubert e Hamish, vítima constante das traquinagens dos garotos ................................................................. 110 Figura 74 – Transformado em urso, um dos trigêmeos pula entre os seios de Maudie para pegar a chave do quarto onde Fergus prendeu Merida ...................... 111 Figura 75 – No fim do filme, Maudie é cortejada por um guerreiro do clã Dingwall 111 Figura 76 – O conflito principal de Valente é a relação problemática entre mãe e filha .......................................................................................................................... 113 Figura 77 – Elinor e Merida amadurecem ao longo do filme, e se entendem no final ................................................................................................................................ 113 Figura 78 – Fergus encoraja as aventuras de Merida ............................................ 114 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11 1.1 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA ......... 11 1.2 OBJETIVOS, PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ESTRUTURA ........ 14 2 ORIGEM DAS PRINCESAS NOS CONTOS DE FADAS ...................................... 17 2.1 A ORIGEM DOS CONTOS DE FADAS ........................................................... 17 2.2 OS CONTOS DE FADAS E A INFÂNCIA......................................................... 18 2.3 A PRESENÇA DA REALEZA E A REALEZA NA DISNEY ............................... 19 3 ORIGEM DAS PRINCESAS EM LENDAS E OUTRAS HISTÓRIAS .................... 24 3.1 OUTRAS FORMAS NARRATIVAS .................................................................. 24 3.2 PRINCESAS ORIGINÁRIAS DE OUTRAS FORMAS NARRATIVAS .............. 28 4 BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES .............................................................. 32 4.1 AMOR .............................................................................................................. 35 4.2 BELEZA............................................................................................................ 52 4.3 A MULHER COMO PRAZER VISUAL ............................................................. 63 4.4 FIGURINO ....................................................................................................... 67 4.5 A MULHER COMO MULHER .......................................................................... 72 4.6 RELAÇÃO ENTRE MADRASTA E ENTEADA ................................................. 76 5 VALENTE............................................................................................................... 80 5.1 AMOR .............................................................................................................. 83 5.2 BELEZA ........................................................................................................... 94 5.3 FIGURINO ....................................................................................................... 99 5.4 A MULHER COMO MULHER ........................................................................ 103 5.5 RELAÇÃO ENTRE MÃE E FILHA.................................................................. 111 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 115 11 1 INTRODUÇÃO 1.1 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA Desde seu início, o cinema clássico hollywoodiano tem tido sucesso em criar a ilusão de reproduzir a realidade tal qual ela é. Possui imenso potencial comunicativo e é um dos principais meios de comunicação de massa, com destaque na sociedade contemporânea. Poderoso por sua capacidade de atingir um grande público e influenciar na formação de ideias, conceitos e estereótipos, o cinema não atua simplesmente como forma de arte, mas, de certa maneira, também como um reprodutor e criador da realidade. O cinema de animação existe como uma linguagem dentro do cinema de ficção. A principal referência são os estúdios Walt Disney, cujas animações são famosas no mundo inteiro e, desde sua origem, têm conquistado gerações. O primeiro longa-metragem em animação dos estúdios Disney foi Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937. O filme foi um sucesso mundial e recebeu inclusive um Oscar honorário por sua contribuição ao cinema. Este foi apenas o primeiro de uma série de animações da Disney com figuras femininas em papéis de destaque. A saga iniciada com Branca de Neve continuou com Cinderela, em 1950; Aurora, em A Bela Adormecida, de 1959; Ariel, em A Pequena Sereia, de 1989; Bela, em A Bela e a Fera, de 1991; Jasmine, em Aladdin, de 1992; Pocahontas, de 1995; Mulan, de 1998; Tiana, em A Princesa e o Sapo, de 2009; Rapunzel, em Enrolados, de 2010; e Merida, em Valente, de 2012. No ano de 1999 foi criada pela The Walt Disney Company a linha Disney Princesas, com o objetivo de combater a queda nas vendas dos produtos da empresa. A franquia passou a incluir as personagens das animações em produtos escolares, bonecas, jogos etc. Iniciaram a linha as princesas Branca de Neve, Cinderela, Aurora, Ariel, Bela e Jasmine. Posteriormente, as personagens Pocahontas, Mulan, Tiana e Rapunzel receberam o status de princesas1, ainda que 1 Existem ainda outras personagens da Disney que já apareceram eventualmente em produtos da franquia, mas não fazem parte da linha oficial Disney Princesas, como: Alice (Alice no País das Maravilhas, 1951), Sininho (Peter Pan, 1953), Eilonwy (O Caldeirão Mágico, 1985), Esmeralda (O Corcunda de Notre-Dame, 1996), Mégara (Hércules, 1997), Dot (Vida de Inseto, 1998), Jane Porter (Tarzan, 1999), Jessie (Toy Story 2, 1999), Kida (Atlantis: O Reino Perdido, 2001) e Giselle (Encantada, 2007). 12 nem todas sejam coroadas nas histórias nas quais se inserem. No ano de 2013, foi incluída na linha a mais recente princesa das animações Disney, Merida, do filme Valente. Ao assistir aos filmes das princesas Disney em ordem cronológica, é possível perceber claramente uma diferença na maneira como a mulher é representada. As passivas Branca de Neve e Aurora das décadas de 1930 e 1950, por exemplo, à espera de um beijo do príncipe que as salvaria, deram espaço à coragem de Mulan e independência de Pocahontas nos anos 1990. A presente pesquisa tem como objeto de estudo os filmes Branca de Neve e os Sete Anões e Valente, que foram escolhidos por serem, respectivamente, o mais antigo e o mais recente filme de princesa da Disney, buscando analisar sob que aspectos as personagens femininas foram representadas nas obras. São analisadas as versões dubladas em português. A análise parte do conceito de representações sociais da Teoria das Representações Sociais (RS)2, criada pelo psicólogo social Serge Moscovici em 1961 na obra A Psicanálise, Sua Imagem e Seu Público. De acordo com o autor, o entendimento do fenômeno das representações sociais é mais fácil que sua conceituação. Segundo Jodelet: As representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social (JODELET, 2002, p. 22 apud ARRUDA, 2002, p. 138). Essa é a definição mais aceita entre os pesquisadores do campo. De maneira geral, as representações sociais seriam as construções compartilhadas pelo senso comum e reforçadas pela tradição. É nesse contexto que se insere a representação social da mulher. Como lembra Rafael Augustus Sêga (2000, p. 132), de acordo com Serge Moscovici “[...] não existe nada na representação que não esteja na realidade, exceto a representação em si”. A passividade da figura feminina dos anos 1937 que é vista em Branca de Neve e os Sete Anões, por exemplo, acompanhou a realidade das mulheres da época. E da mesma forma que os papéis femininos passaram por uma forte transição na sociedade ao longo do tempo, mudou também a 2 A teoria serve, neste trabalho, especialmente, para a compreensão do conceito de representação. Embora esse conceito possa ser utilizado de forma mais profunda e gerar, ele próprio, a análise, optamos por trabalhar de maneira mais pontual, utilizando a análise de conteúdo como método. 13 representação social da mulher, e sua representação por meio da mídia. A primeira animação da Disney a apresentar uma personagem claramente inovadora foi A Bela e a Fera (1991), mas diferenças sutis já podiam ser percebidas antes disso. Em 2012, Valente traz ainda mais inovações, rompendo paradigmas que envolvem as figuras femininas. As representações sociais convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas. Todos os novos elementos se juntam a esse modelo e se sintetizam nele. Assim, nós passamos a afirmar que a terra é redonda, associamos comunismo com a cor vermelha, inflação com o decréscimo do valor do dinheiro. Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adequam exatamente ao modelo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em determinada categoria, na realidade, a se tornar idêntico aos outros, sob pena de não ser nem compreendido, nem decodificado (MOSCOVICI, 2011, p. 34). Segundo Moscovici (2011, p. 108), as representações sociais são históricas e influenciam o indivíduo desde a primeira infância, passando de pais para filhos. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. [...] Cessa de ser efêmero, mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, permanente, quase imortal (MOSCOVICI, 2011, p. 41). Por essa razão, os estereótipos das representações sociais seriam dificilmente enfraquecidos: Através de sua autonomia e das pressões que elas exercem (mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que eles não são “nada mais que ideias”), elas são, contudo, como se fossem realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível (MOSCOVICI, 2011, p. 40). Como lembram Camargo, Justo e Alves (2011, p. 270), a teoria das representações sociais permite que o social e o psicológico sejam articulados para que se compreenda o pensamento a partir da elaboração social da realidade. As representações sociais orientam as ações dos indivíduos, mas são modificadas pelos acontecimentos ao longo do tempo. Os conteúdos representados também variam entre culturas diferentes, e mesmo dentro de uma sociedade. Mestre e Pinotti (2004, p. 3) comentam que “[...] as representações são responsáveis por comportamentos e atitudes dos indivíduos da coletividade, mas sofrem alterações a 14 partir da vivência na qual é forjada”. Segundo as autoras, a construção de representações depende de inúmeros fatores, e elas são tão diversas quanto as opiniões de onde nascem e os possíveis objetos de representação. O estudo se justifica pelo fato de que a análise a respeito das questões de gênero é pertinente para que se reflita acerca dessas construções pelos meios de comunicação, uma vez que eles são importantes construtores de realidades. Mestre e Pinotti (2004, p. 3) afirmam que estudar as representações pode ser uma forma de desvendar a sociedade da maneira como é percebida pelos indivíduos que nela estão inseridos: “As representações sociais explicariam como alguns comportamentos vistos como naturais foram, em verdade, construídos ‘naturalmente’ através do contato social”. Moscovici (2011, p. 42), por sua vez, comenta que quanto menos pensamos e nos tornamos conscientes das representações sociais, maior se torna sua influência. 1.2 OBJETIVOS, PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ESTRUTURA A presente pesquisa tem como objetivo conhecer a representação da mulher nos filmes Branca de Neve e os Sete Anões e Valente, analisando as características sob as quais as figuras femininas ficcionais foram construídas. Como a mulher foi representada no passado, e como é representada atualmente pelas princesas Disney? Parte-se da hipótese de que a mídia participa ativamente do processo de construção de gêneros e a ficção acompanhou as mudanças nas representações sociais a respeito do papel da mulher. A análise é feita sob o ponto de vista de produções estadunidenses dos estúdios Walt Disney, pois possuem grande influência no mundo e permanecem ainda hoje como referência para a maioria do público ocidental. As princesas da Disney, principalmente, têm influenciado gerações e estão presentes ativamente no imaginário popular. O método utilizado para analisar as obras é a análise de conteúdo que, no livro Análise de conteúdo, é definido por Laurence Bardin como: [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 2011, p. 42). 15 Segundo a autora, esta abordagem tem como finalidade fazer deduções lógicas justificadas quanto à origem das mensagens consideradas, como o emissor e seu contexto e/ou os efeitos dessas mensagens. Além de levar em consideração o que é dito em determinado texto, a análise de conteúdo também leva em conta como é dito. A partir de uma pré-análise de conteúdo dos produtos escolhidos e de uma exploração do material, foram percebidos alguns temas que recebem maior destaque nas obras. Foram definidas, assim, as seguintes categorias para análise: amor, beleza, a mulher como prazer visual, figurino, a mulher como mulher, e relação entre mãe e filha (ou, no caso de Branca de Neve e os Sete Anões, madrasta e enteada). Em seguida, os documentos foram interpretados. Segundo Bardin (2011, p. 117), a maioria dos procedimentos de análise se organiza em processos de categorização. Também foi utilizado como método para analisar as obras a análise fílmica. No artigo “Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s)” (2009, p. 1), Manuela Penafria afirma que o processo de análise fílmica implica em duas etapas: descrever o produto e estabelecer relações entre os elementos que foram decompostos, ou seja, interpretá-los. A imagem e o som, portanto, não serão ignorados na presente pesquisa. Entre as obras brasileiras já existentes e relacionadas ao tema, estão a tese de doutorado “E a mídia criou a mulher: como a TV e o cinema constroem o sistema de sexo/gênero”, de Liliane Machado; o artigo científico “Cinema de animação e as princesas: uma análise das categorias de gênero”, de Carolina Fossatti; e a dissertação “Girando entre Princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com crianças”, da antropóloga Michele Escoura Bueno. A abertura dessa pesquisa se dá, no primeiro capítulo, com a origem das princesas nos contos de fadas. Sete, entre as atuais onze princesas oficiais da Disney, tiveram sua procedência na tradição oral das histórias fantásticas repassadas de geração para geração: Branca de Neve, Cinderela, Aurora, Ariel, Bela, Tiana e Rapunzel. Em seguida, o segundo capítulo traz a origem das princesas que não foram baseadas nos tradicionais contos de fadas europeus, mas em outros tipos de narrativa, como os mitos e as lendas. 16 O quarto capítulo trata do filme Branca de Neve e os Sete Anões e, o quinto, de Valente. O imaginário feminino representado em cada obra é analisado de acordo com as categorias previamente definidas. 17 2 ORIGEM DAS PRINCESAS NOS CONTOS DE FADAS Este capítulo trata sobre a origem das princesas nos contos de fadas. Entre as atuais onze princesas que tiveram suas histórias contadas pelas produções dos estúdios Walt Disney, sete foram baseadas em histórias desse tipo, portanto se faz importante introduzir o assunto lembrando a origem dos contos de fadas de modo geral. É abordada, em seguida, a passagem das histórias da tradição oral, inicialmente destinadas para pessoas de todas as idades, para o domínio infantil. São, então, apresentados alguns dos motivos para a presença tão comum de personagens da realeza em contos de fadas. Por fim, são citados os contos que foram utilizados pela Disney e tornaram tais histórias sobre princesas ainda mais conhecidas, fazendo parte do imaginário popular moderno. 2.1 A ORIGEM DOS CONTOS DE FADAS É difícil determinar ao certo a época em que os contos de fadas tomaram forma. As narrativas que hoje integram uma mitologia universal foram transmitidas ao longo do tempo por meio da tradição oral, e repassadas de geração para geração. Nessa tradição, muitas das características iniciais foram perdidas. Os contos de fadas que até hoje se mantém como os mais populares tiveram sua origem na Europa. A função inicial das narrativas da tradição oral era entreter os habitantes de aldeias camponesas, ajudando-os a atravessar as longas noites de inverno, como apontam Corso e Corso em seu livro Fadas no Divã (2006, p. 16). As histórias não eram destinadas especificamente para crianças, mas também para adultos, contadas em reuniões ao redor de fogueiras: Os contos populares pré-modernos talvez fizessem pouco mais do que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia e a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês (CORSO & CORSO, 2006, p. 16). Durante séculos, os contos de fadas fizeram parte de momentos coletivos, direcionados a pessoas de todas as idades. Os contadores de histórias retratavam um mundo brutal, repleto de perigos e crueldades, sem nenhuma intenção de 18 esconder a verdadeira mensagem com a utilização de símbolos. Com o passar do tempo, a forma de tais narrativas se diversificou. De acordo com Corso e Corso, As modernas versões dos contos de fadas, que encantaram tanto nossos antepassados quanto as crianças de hoje, datam do século XIX. São tributárias da criação da família nuclear e da invenção da infância tal como a conhecemos hoje (CORSO & CORSO, 2006, p. 16). Segundo os autores (CORSO & CORSO, 2006, p. 16), a infantilização das narrativas tradicionais dos contos de fadas aconteceu paralela à exclusão das crianças do mundo do trabalho, visto que na Revolução Industrial os espaços de trabalho foram separados do espaço familiar. Além disso, com o advento dos ideais iluministas as crianças passaram a ser reconhecidas como sujeitos dotados de uma psicologia infantil diferente da subjetividade adulta. Com o passar dos tempos, a popularização dos livros e, mais recentemente, o advento do cinema e da televisão, os contos de fadas passaram cada vez mais para o domínio infantil. 2.2 OS CONTOS DE FADAS E A INFÂNCIA De acordo com Corso e Corso (2006, p. 18), a paixão pela fantasia começa na mais tenra idade, e não existe infância sem ela: “Ouvir histórias é um dos recursos de que as crianças dispõem para desenhar o mapa imaginário que indica seu lugar, na família e no mundo”. Segundo os autores (2006, p. 21), começou a ser dada uma importância social à infância há cerca de quatrocentos anos, e as narrativas folclóricas tradicionais antes relatadas para pessoas de diferentes idades passaram a ser direcionadas ao público infantil: As crianças demoraram até quase o fim do século XVI para serem dignas de alguma importância e atenção. Antes disso, quando sobreviviam aos altos índices de mortalidade infantil, eram criadas entre os adultos, compartilhando promiscuamente todos os aspectos da vida, até que a maturidade física as tornava um deles. A partir do momento em que passaram a valer mais para seus adultos, conquistaram o direito a um reduto literário (CORSO & CORSO, 2006, p. 32). Para Bettelheim, no livro A Psicanálise dos Contos de Fadas (1980, p. 13), com raras exceções, nenhuma forma literária é tão enriquecedora e satisfatória quanto o conto de fadas folclórico, seja para crianças ou adultos. Para ele, mais que com qualquer outro tipo de história, por meio das narrativas mágicas é possível 19 aprender sobre as soluções adequadas aos problemas interiores dos seres humanos. O autor comenta que os contos de fadas falam sobre as pressões internas graves infantis de uma maneira que a criança compreende inconscientemente, além de oferecer soluções para as possíveis dificuldades. Tanto para Bruno Bettelheim quanto para o casal Diana e Mário Corso, a sobrevivência dos contos de fadas até os dias de hoje ocorre devido à capacidade que têm de simbolizar conflitos psíquicos inconscientes que dizem respeito a grande parte das crianças do passado e da atualidade. Para Corso e Corso (2006, p. 16), a fantasia é "[...] resolutiva de conflitos, constitutiva de identidades, criadora de espaços psíquicos tão reais e potentes quanto a dita realidade da vida". 2.3 A PRESENÇA DA REALEZA E A REALEZA NA DISNEY Nos contos de fadas, é comum a presença de personagens da realeza, como menciona Bettelheim (1980, p. 244): “Nessa época os príncipes e princesas eram tão raros quanto hoje, mas aparecem com fartura nos contos”. Existem diversos exemplos de histórias com reis, rainhas, príncipes e princesas. Para o autor (1980, p. 244), esse tipo de personagem aparece com frequência porque se presta bem para as projeções do imaginário infantil: "Toda criança deseja algumas vezes ser um príncipe ou uma princesa – e às vezes, no inconsciente, acredita que é, apenas estando temporariamente rebaixada pelas circunstâncias". Ainda segundo Bettelheim, a posição dos reis e rainhas representaria poder absoluto, como aquele que os pais parecem possuir sobre os filhos. A facilidade das projeções e identificações com os personagens dos contos de fadas também se dá porque eles normalmente são referidos de maneira geral, com nomes comuns e genéricos, como assinala Bettelheim (1980, p. 51): “Se aparecem nomes, fica bem claro que não são nomes próprios, mas nomes gerais ou descritivos”. O autor lembra que, além dos personagens principais, quase nenhuma outra figura é nomeada nas histórias, nem mesmo os pais dos protagonistas: São referidos como “pai”, “mãe”, “madrasta”. [...] Se são “um rei” e “uma rainha”, são disfarces leves para pai e mãe, assim como o são “príncipe” e “princesa” para menino e menina (BETTELHEIM, 1980, p. 51). Apesar de comum a presença de personagens da realeza em contos de fadas, é escassa a bibliografia a respeito das razões para a constância na utilização 20 desse tipo de personagem. Além da análise de Bettelheim, não há muitas outras referências sobre os motivos para existirem tantas histórias sobre princesas, príncipes, reis e rainhas. Esse tipo de personagem, tanto as princesas quanto os outros ícones da realeza que possuem nomes genéricos em suas histórias, encontrou um ambiente propício para seu desenvolvimento na cultura de massa, como nos filmes que serão analisados aqui. É sabido que a cultura de massa trabalha com estereótipos e simplificações de personagens, com o intuito de estabelecer o contato mais imediato com a audiência massiva. No livro Mito e Magia (2011, p. 7), Karin Volobuef afirma que o mito e a magia, bem como a busca pela transcendência, são elementos que não estão enterrados no passado, e “[...] fazem parte de todos os tempos e lugares habitados pelo homem”. Segundo a autora, essas histórias estão ligadas “[...] àquilo que temos de mais humano: nossa capacidade de ter dúvidas, de sonhar com o inalcançável, de aspirar à espiritualidade, de sofrer ante o trágico e admirar o belo”. Ainda segundo Volobuef, “[...] o Homem é, de todos os seres, aquele que consegue fazer uso da fantasia para colorir seu mundo e se deleitar com seus encantos”. Devido a esses motivos, mito e magia fazem parte de nossas experiências de vida e estão na essência das mais variadas formas artísticas, inspirando continuamente a arte, a literatura e outros modos de produção cultural do Ocidente. Por serem baseadas em trabalhos já existentes e repletos de magia, muitas das obras dos estúdios Walt Disney carregam essas características consigo e continuam a encantar gerações ao longo do tempo. Entre os filmes da Disney que possuem princesas como protagonistas, sete tiveram suas origens em contos de fadas: Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959), A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), A Princesa e o Sapo (2009) e Enrolados (2010). Os estúdios Disney se tornaram mundialmente conhecidos pela magia de suas animações e personagens responsáveis por cativar gerações. Sobre a transposição das histórias de origem na tradição oral para o universo cinematográfico, Corso e Corso comentam: Vivemos num momento em que a mutação dos meios dessas histórias atingiu um ponto de virada: a tradição oral cedeu espaço ao império das imagens. Hoje, tudo o que se diz deve ser ilustrado. Os sons, os silêncios, a 21 entonação e a capacidade dramática, que faziam a glória de um bom contador de histórias foram substituídos pelas capacidades narrativas dos estúdios de cinema, da televisão e dos ilustradores de livros e quadrinhos (CORSO & CORSO, 2006, p. 17). Ainda segundo os autores (CORSO & CORSO, 2006, p. 17): “[...] o poder das comunicações no mundo globalizado acelerou um trabalho de transmissão de histórias que levou séculos de tradição oral, no Ocidente”. O primeiro conto de fadas recontado pelo cinema de Walt Disney foi Branca de Neve e os Sete Anões, no ano de 1937. Além disso, este foi também o primeiro longa-metragem produzido em animação e, Branca de Neve, a primeira princesa da Disney. Para Corso e Corso (2006, p. 78), a maior parte dos leitores ou ouvintes do conto que pensarem na personagem a imaginarão tal como foi retratada na versão da Disney, pois este [...] foi o precursor de uma linguagem que formará o gosto e o estilo de narrativa para crianças de gerações a partir daí. É tão marcante a influência desse filme que a imagem sugerida por ele para a personagem da Branca de Neve hoje é indissociável desta (CORSO & CORSO, 2006, p. 78). A história da versão Disney de Branca de Neve e os Sete Anões foi baseada no conto de fadas intitulado apenas Branca de Neve, coletado pelos alemães Wilhelm e Jacob Grimm, que ficaram conhecidos mundialmente como “irmãos Grimm". A história foi publicada no livro Contos da Criança e do Lar, de 1812, uma compilação com 86 narrativas recolhidas da tradição oral. Posteriormente, os alemães publicariam ainda dois outros volumes com novas narrativas, que totalizariam cerca de 240 peças. Eles foram responsáveis pela difusão de muitos contos de fadas que se mantiveram populares até os dias de hoje, como Rapunzel, O Príncipe Sapo, João e Maria, O Flautista de Hamelin e Rumpelstiltskin, entre outros. A história A Jovem Escrava, do italiano Giambattista Basile e publicada em 1634, apresenta semelhanças com a história Branca de Neve dos irmãos Grimm. Lançado em 1950, a animação Cinderela teve sua origem em um dos contos de fadas mais populares, também conhecido como Gata Borralheira, ou apenas Borralheira. A história da moça pobre rejeitada pela madrasta e por suas irmãs postiças teve diversas versões na tradição oral, mas aquela recriada pelo filme da Disney possui mais semelhanças com o conto de 1697, de Charles Perrault, um autor francês cujos trabalhos incluem as famosas narrativas O Gato de Botas, O 22 Pequeno Polegar e Barba Azul, entre outras. Os irmãos Grimm também tiveram sua versão para a história de Cinderela. Para Bettelheim, A borralheira de Perrault é adocicada e de uma bondade insípida e não tem nenhuma iniciativa (provavelmente por essa razão Disney escolheu a versão de Perrault como base de seu relato cinematográfico). A maioria das outras borralheiras são mais gente (BETTELHEIM, 1980, p. 292). A animação A Bela Adormecida, de 1959, também foi baseada no trabalho de Charles Perrault, com o conto A Bela Adormecida no Bosque (1697). O clássico conto narra a história de uma princesa enfeitiçada para cair em um sono profundo até que um príncipe a desperte com um beijo de amor verdadeiro. A história também possui uma versão dos irmãos Grimm (de 1812), e apresenta traços do conto Sol, Lua e Tália (1634), de Giambattista Basile. Originalmente baseada no conto de fadas A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen3, a versão de mesmo nome da Disney foi lançada em 1989, e fala sobre uma jovem sereia disposta a transformar-se em humana para conquistar o amor de um príncipe. A história do filme A Bela e a Fera, de 1991, foi baseada no tradicional conto de fadas homônimo, de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, de 1756. Neste conto, um príncipe é transformado em fera, e apenas se tornará príncipe novamente caso conquiste o coração de uma jovem. Há também outra versão bastante difundida da história, de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve e publicada em 1740. A animação A Princesa e o Sapo, lançada em 2009, possui muitas diferenças com a história original na qual foi baseada, mas teve sua origem a partir do conto de fadas O Príncipe Sapo, tradicionalmente a primeira história na compilação Contos da Criança e do Lar, dos irmãos Grimm. No conto, uma princesa conhece um sapo e, ao atirá-lo na parede, magicamente ele se transforma em um príncipe. Por último, a mais recente animação da Disney baseada em um conto de fadas é Enrolados, de 2009. O filme foi baseado no conto de fadas Rapunzel (1812), dos irmãos Grimm. Nesta história, Rapunzel é trancada em uma torre por sua madrasta, uma bruxa que a impede de ter qualquer contato com o mundo exterior. A franquia Princesas da Disney é composta ainda, por quatro outras princesas, que não tiveram suas histórias baseadas em contos de fadas tradicionais: 3 Outras obras conhecidas de Andersen são O Patinho Feio, A Polegarzinha, A Princesa e a Ervilha, e As Roupas Novas do Imperador. 23 Jasmine (do filme Aladdin, de 1992), Pocahontas (de Pocahontas, de 1995), Mulan (do filme Mulan, de 1998) e Merida (de Valente, de 2012). Apesar de não terem suas histórias baseadas em contos de fadas tradicionais europeus como as outras sete princesas citadas, estes filmes também foram originados a partir de histórias já existentes. O filme Aladdin provém de um conto da tradição árabe, enquanto Pocahontas e Mulan basearam-se em lendas, estadunidense e chinesa, respectivamente. Valente, por sua vez, apesar de contar uma história original, possui influências claras dos contos de fadas europeus. 24 3 ORIGEM DAS PRINCESAS EM LENDAS E OUTRAS HISTÓRIAS O segundo capítulo trata dos demais tipos narrativos nos quais a Disney se baseou para dar origem às suas quatro outras princesas: Jasmine (do filme Aladdin, de 1992), Pocahontas (de Pocahontas, de 1995), Mulan (do filme Mulan, de 1998) e Merida (de Valente, de 2012). Apesar de não terem seus roteiros baseados em contos de fadas como as outras sete princesas anteriormente citadas, os filmes Aladdin, Pocahontas e Mulan também foram originados a partir de histórias já existentes. Aladdin provém de um conto da tradição árabe, enquanto Pocahontas e Mulan basearam-se em lendas, estadunidense e chinesa, respectivamente. Valente, por sua vez, apesar de contar uma história original, possui influências claras dos contos de fadas tradicionais europeus. Este capítulo se inicia com uma abordagem dos conceitos de mito e lenda, formas narrativas diferentes dos contos de fadas, mas que também são transmitidas de geração em geração por meio da tradição oral. Em seguida, são citadas as histórias utilizadas pela Disney para a produção dos quatro filmes citados: o conto Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, a lenda de Pocahontas e a Balada de Hua Mulan. Posteriormente, é lembrada a origem de Valente. 3.1 OUTRAS FORMAS NARRATIVAS Segundo Maria do Carmo Pereira Coelho, na tese "As narrações da cultura indígena da Amazônia: lendas e histórias" (2003, p. 20), mitos, lendas e demais histórias transmitidas pela tradição oral são formas discursivas de revelar culturas diversas. Para a autora, as narrações, de uma maneira geral, são fundamentais para o desenvolvimento dos indivíduos, visto que contribuem para a compreensão de si e do outro. Com as mais diferentes formas narrativas, tornamo-nos capazes de compreender melhor as ações humanas, dando sentido e ordem ao caos: "Por meio da interpretação dos discursos narrativos, o ser humano expande, enriquece e reestrutura perpetuamente seu funcionamento psíquico" (2003, p. 20). De acordo com Coelho, os conceitos de mito e lenda tendem a se confundir, e é difícil definir de maneira clara as diferenças entre eles: "Tanto o mito quanto a lenda podem ser classificados como 'narrativas míticas' que se propõem a explicar a 25 origem ou a razão de um fenômeno" (2006, p. 26). Coelho cita Ciappini, que afirma: "Mitos e lendas são conceitos que se referem às narrativas de cunho popular, cuja origem é oral, meio pelo qual elas são passadas de geração em geração" (apud Coelho apud Brandão e Maria de Jesus, 2003, p. 26). Neste sentido, "ambos seriam a 'história miraculosa do sobrenatural' e do que dele se aproxima” (2003, p. 26). "O mito é uma resposta à tentativa arcaica e perene de responder às questões sobre a origem do mundo, dos elementos, dos fenômenos e outros", apontam Lima e Oliveira no artigo científico "O mito na formação da identidade" (2006, p. 1). Além disso, os autores afirmam que os mitos possuem como função a expressão da indagação do ser humano sobre o universo e a respeito do próprio ser. Eles lembram que, na linguagem comum, a palavra "mítico" conotava o sentido de falso, ou seja, mitos eram mentiras. Essa visão advém da noção moderna da separação entre razão e imaginação, e colocava os mitos como questões de pouco peso para o desenvolvimento humano4. Em uma visão antropológica, no entanto, "mito" possui muito de "verdade" e, mais que isso, uma verdade "profunda e perene": Significa história verdadeira, tão mais verdadeira quanto é revelação primordial, modelo das atividades e instituições humanas. É exemplar e sagrada: só pode ser recitada, cantada ou dançada em ocasião solene, o que lhe dá o caráter de santidade. O acesso a seu relato é reservado aos que já se submeterem a uma iniciação (LIMA & OLIVEIRA, 2006, p. 2). Segundo os autores, o mito seria, portanto, “a tentativa de dizer o indizível” (2006, p.3). Muitas vezes, essas histórias são reproduzidas por meio de cerimônias religiosas, que as mantêm vivas dentro de uma visão antropológica: A sacralidade do mito é garantida pela repetição dos rituais e cerimônias sagradas que relembram os feitos dos Entes sobrenaturais, com o objetivo de reviver o tempo primitivo, ao mesmo tempo em que fortalece o mito e a explicação da origem (LIMA & OLIVEIRA, 2006, p. 4). Coelho (2003, p. 25) propõe uma linha do tempo para observar o conceito de mito. De acordo com a autora, o pensamento centrado no "mythos" originou-se no período pré-socrático. A mitologia foi a primeira maneira encontrada para explicar a origem do mundo. Na Idade Média também houve pensadores bastante centrados no "mythos". Posteriormente, baseados em Aristóteles, filósofos como Tomás de 4 Noção essencialmente cartesiana. 26 Aquino e Descartes adotaram a lógica e a razão para a compreensão da realidade. Como “pai” da filosofia da razão, Descartes foi um dos principais filósofos que ajudaram a derrubar a ideia de mito, pois percebiam a razão como única fonte para o conhecimento seguro. Os pensadores do período iluminista também possuíam uma crença inabalável no poder da racionalidade. Coelho lembra que, no final do século XVIII e início do XIX, um grupo de pensadores consolidou o Romantismo, que revalorizou os mitos após um longo período centrado na razão. Neste movimento estético havia, [...] ao lado da lógica racionalista e da lógica do conhecimento sensível, um terceiro componente, o imaginário, e valorizando a força dos mitos e dos arquétipos, presentes no sonho, no devaneio, na fantasia (COELHO, 2003, p. 26). Coelho (2003, p. 26) assinala que o Romantismo, “[...] com sua propensão para valorizar elementos provenientes da cultura nacional e popular, foi um período literário especialmente vocacionado para o culto das lendas". A definição clássica de mito dada por Jabouille é: O mito é uma narrativa (com ação e personagens memoráveis), cujo autor não é identificável (porque pertence ao patrimônio cultural coletivo), que tem como tema o fundo lendário, étnico e imaginário (com base na tradição), e que, ao ser geralmente aceito, se integra num sistema, na maior parte dos casos religioso, e, muitas vezes sob forma literária (oral ou escrita), agrupase e constitui-se em mitologia” (apud COELHO, 2003, p. 31). Coelho (2003, p. 31-16) enumera algumas características dos mitos: a natureza permanente, a presença de seres sobrenaturais, o aspecto de que um mesmo conjunto de mitos e símbolos pode aparecer em várias sociedades, o fato de que os mitos podem se alargar de um "espaço sagrado" para um "universo profano", a afirmação de que o mito é uma resposta às mais variadas questões do ser humano, o fato de que podem assumir uma "dimensão histórica", na qual o homem reconhece as suas tradições, a capacidade de organização/compreensão do mundo e das coisas, e a qualidade de serem formas privilegiadas de se passar ensinamentos para a própria cultura em que emergem. As lendas não são muito diferentes dos mitos, pois também são narrativas de origem popular transmitidas ao longo do tempo por meio da tradição oral. Em "Gênero do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica" (2006, p. 65), Helena Nagamine Brandão afirma que o conceito de lenda 27 advém do latim legenda, "coisas que devem ser lidas". Segundo a autora (2006, p. 65), esse tipo de narrativa remonta aos primeiros séculos do Cristianismo, "[...] sendo então entendida como um gênero narrativo que reunia histórias e depoimentos sobre a vida de um santo, em cujas festas solenes eram lidos". São relatos referentes ao passado, e principalmente ao passado remoto, da forma como ele foi transmitido de geração em geração. Ainda de acordo com a autora, [...] o uso mais corrente do termo aproxima-a da saga, que é um relato referente ao passado, mais particularmente ao passado remoto, tal como se transmitiu de geração em geração, chegando a se consolidar enquanto tradição de histórias repletas de ingenuidade e transformadas pela faculdade poética da sensibilidade popular. Tal uso ressalta o caráter utilitário e estático da lenda, porque ela busca, quase sempre, transmitir uma idéia precisa de valores morais bastante educativos para a comunidade (BRANDÃO, 2006, p. 65). De acordo com Antônia Silva de Lima, na tese “A lenda da vitória-régia: dois olhares para um mesmo destino” (2002, p. 49-50), lendas são histórias populares a respeito das origens da organização de grupos, com uma especificidade que as diferencia dos contos e mitos: o fato de serem narrativas localizadas, ou seja, que apresentam uma característica geográfica, se ligam a um determinado local. Segundo a autora (2002, p. 54), enquanto o mito tem “[...] caráter universalizante, a lenda fixa-se numa visão mais direcionada, determinada em uma comunidade”. Lima resume o conceito de lenda como: [...] uma narrativa que relata a criação de uma realidade que representa a vida de um determinado povo ou comunidade, composta de personagens, a figura do herói, dos auxiliares sobrenaturais e/ou de natureza diversa, bem como de espaço sociocultural e geográfico de um tempo não cronologicamente determinado que garantam o seu caráter de história verdadeira. Tal narrativa comunica aos envolvidos com ela situações próprias de suas origens socioculturais (LIMA, 2002, p. 59-60). Para Lima (2002, p. 50), “[...] a eficácia da lenda consiste em falar para as pessoas da região de onde é proveniente”, pois assim dirige o ouvinte às origens. Nela estão combinados elementos da fantasia, do sonho e do real e, ao serem transmitidas por meio da oralidade, envolvem o narrador e os ouvintes em uma “reintegração dos acontecimentos da história”. Segundo a autora (2002, p. 50-51), os relatos apresentam significação e caráter sagrado para a comunidade à qual pertencem, mas podem ser vistos apenas como contos para aqueles que não possuem relação direta com sua origem. As lendas são histórias repletas de conhecimento que auxiliam os envolvidos a compreenderem seu meio sociocultural e transmitirem a experiência às gerações seguintes. 28 Coelho (2003, p. 18) percebe nas lendas a capacidade de poderem ser contadas por qualquer pessoa, a qualquer momento, visto que são transmitidas de modo folclórico e espontâneo, diferentemente dos mitos, que apresentavam uma transmissão religiosa. Brandão (2006, p. 65) atribui à lenda a característica de se configurar como uma narrativa com elementos coletivos que "[...] tenta dar conta da explicação de alguns elementos da natureza, ao mesmo tempo em que apresenta uma experiência de vida, indutora de maiores reflexões, prevalecendo uma moral, um ensinamento". Para Coelho, na atualidade as lendas passaram a ser consideradas produtos inconscientes da imaginação popular, ou seja, com características folclóricas, além de também serem reconhecidas por seus objetivos educacionais: [...] uma narrativa na qual um personagem, sujeito a um determinado contexto histórico, sintetiza os anseios de um segmento social ao incorporar em sua conduta ações ou idéias compartilhadas por esse grupo. O objetivo desse personagem, no caso, é de dar um exemplo de comportamento para que outros indivíduos sigam o mesmo caminho (COELHO, 2003, p. 34-35). Na sociedade moderna, as lendas tiveram seu caráter modificado com a industrialização, porém continuam apresentando os medos do ser humano e funcionando como alerta para os perigos nas chamadas lendas urbanas. 3.2 PRINCESAS ORIGINÁRIAS DE OUTRAS FORMAS NARRATIVAS Três, entre os até o momento onze filmes de princesas da Disney, tiveram suas histórias baseadas em formas narrativas diferentes dos contos de fadas tradicionais europeus lembrados no capítulo anterior. Estas obras apresentam características de mitos e lendas: Aladdin, de 1992, Pocahontas, de 1995, e Mulan, de 1998. Lançado no ano de 1992, o filme Aladdin foi a 31ª animação dos estúdios Walt Disney, e teve o roteiro baseado no conto "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa", contido na famosa coleção "As Mil e Uma Noites". A compilação reúne contos populares do Oriente Médio e do sul da Ásia em língua árabe e apresenta ainda outras histórias bastante conhecidas, como Simbad e Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Na obra, a personagem Sherazade é responsável por narrar todos os contos, unindo-os em uma complexa estrutura narrativa. Esta personagem, por si só, já se tornou uma espécie de lenda, conhecida em todo o mundo. 29 No artigo "Nas tramas das noites" (2008, p. 46), Christiane Damien Codenhoto aponta que, embora os textos de “As Mil e Uma Noites” datem dos séculos XIII ao XIX, são controversas as questões a respeito do nascimento da obra com definições exatas de datas ou locais, visto que as histórias foram edificadas ao longo dos séculos por autores anônimos. O único ponto de convergência, assinala a autora, é o fato de as histórias terem se originado no Oriente. Para Codenhoto (2008, p. 46), os contos “[...] se constituem por um entrelaçamento dos saberes chinês, judaico-cristão, persa, indiano, árabe e até mesmo o grego, o que, porém, não interfere na óptica de mundo muçulmana do livro". Ainda que com histórias abarrotadas de elementos maravilhosos e irreais, trazem muitas informações a respeito do mundo islâmico clássico. A autora cita Silvestre de Sacy (1817 e 1829), que enumerou algumas das características dos contos presentes na coleção “As Mil e Uma Noites”: [...] todos os personagens são muçulmanos; a maior parte dos acontecimentos se dá na região dos rios Tigre, Eufrates e Nilo; as ciências reais ou fantásticas são as mesmas de que os árabes se vangloriam; os gênios são da mitologia árabe; as religiões identificadas na obra são o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo, além das referências a Moisés, David e Asaf, que eram desconhecidos na Pérsia e na Índia antes da introdução do Islamismo (CODENHOTO, 2008, p. 46). Em um contexto ocidental e completamente diferente, Pocahontas, de 1995, foi a 33ª animação produzida pela Disney e o primeiro filme dos estúdios a se basear em uma personagem histórica real. A animação é uma adaptação da lenda da índia norte-americana que originalmente se chamava Matoaka, e conta a história de quando a jovem salvou o inglês John Smith, da Companhia Londrina da Virgínia, responsável pela colonização da nova colônia britânica. Os acontecimentos históricos datam do ano de 1607. A narrativa de Pocahontas como parte da história de colonização dos Estados Unidos se relaciona ao que Stuart Hall, ao enumerar exemplos de narrativas da cultura nacional no livro "A identidade cultural na pós-modernidade", descreve como mito fundacional: [...] uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo "real", mas de um tempo "mítico". Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em "comunidade" e desastres em triunfos [...]. Eles fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da colonização, pode ser construída. [...] Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos (HALL, 2005, p. 55). 30 De acordo com Lima (2002, p. 53), as lendas podem ser consideradas mitos de origem, em que cada narrativa revela o aparecimento de algo que faz parte do universo: “Os mitos de origem são narrativas consideradas histórias verdadeiras, porque os fenômenos dos quais tratam vieram a existir” (2002, p. 54). A história de Pocahontas é pertinente também sob este conceito, pois fala da origem de um povo e de suas experiências com relação à natureza e seus semelhantes. Além de apresentar elementos desse tipo de história, Pocahontas traz ainda aspectos próprios da indústria cultural, como a exaltação do amor romântico, considerado por Edgar Morin um “tema obsessional” da cultura de massa (2009, p. 131). É certo que este elemento também está presente nas outras animações da Disney, e principalmente naquelas citadas nesta pesquisa, porém, em Pocahontas o atributo se apresenta nitidamente pelo fato de a história original da índia norteamericana ter passado por alterações profundas que a tornariam mais atrativa no cinema por suas características como meio de comunicação de massa. Mulan, por sua vez, também é um exemplo de narrativa da cultura de seu país. O 36º longa-metragem animado dos estúdios Walt Disney, lançado em 1998, é ambientado na China e baseou-se na lenda local de Hua Mulan. No livro Mulan's Legend and Legacy in China and the United States (2010, p. 1), Lan Dong aponta que a lenda da jovem que tomou o lugar de seu pai e participou da guerra vestida de soldado apareceu no país entre os séculos IV e VI. De acordo com Lan Dong (2010, p. 2), a história de Mulan originou-se de uma lenda folclórica anônima intitulada "Mulan shi", que pode ser traduzido como "Balada de Mulan". Acredita-se que tenha sido composta durante as Dinastias do Norte, entre os anos 386 e 581. A autora assinala que a história já havia sido adaptada e recontada diversas vezes como parte do folclore chinês até ter sido traduzida para a língua inglesa no século XIX, recriada em espetáculos teatrais e, posteriormente, tornar-se internacionalmente conhecida com o lançamento da produção da Disney. O mais recente filme de princesa da Disney é Valente, de 2012, que foi produzido pelos estúdios em colaboração com sua subsidiária, a Pixar Animation Studios. Foi o 51º longa-metragem em animação da Disney. Ambientado nas Terras Altas da Escócia, conta a história de Merida, princesa e habilidosa arqueira determinada a desafiar as tradições de seu reino e trilhar o próprio caminho. Ao contrário de todos os filmes anteriormente citados neste e no capítulo anterior, Valente não se constitui como adaptação de nenhuma obra, nem em uma 31 história real. A narrativa partiu de uma história original idealizada pela diretora Brenda Chapman, mas apresenta elementos comuns aos contos de fadas que deram origens aos outros filmes de princesas da Disney, como a tradicional realeza europeia e a exaltação do casamento. Este filme busca, no entanto, romper com as construções da necessidade do casamento e a propagação dos comportamentos sem questionamento. Os costumes, de modo geral, são importantes elementos da tradição, sendo responsáveis pela transmissão de práticas e valores ao longo do tempo. De acordo com Eric Hobsbawm em A Invenção das Tradições (2012, p. 7), “[...] muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”. Para o autor, estas “tradições inventadas” seriam: [...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM, 2012, p. 8). Segundo o autor, o objetivo e a característica das tradições é a invariabilidade, mesmo quando se trata das tradições inventadas. As inovações são impedidas, pois as práticas são fixas e a repetição é imposta. Neste sentido, Valente é um filme inovador no rompimento com a obrigação de dar sequência a todos os valores impostos pelo passado de seu povo. 32 4 BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES Este capítulo aborda a personagem Branca de Neve, a primeira princesa, protagonista do primeiro longa-metragem em animação da história, e também primeira adaptação de um conto de fadas para um filme dos estúdios Disney. O filme foi um sucesso mundial e recebeu inclusive um Oscar honorário por sua contribuição ao cinema. A história do filme Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937, baseou-se em um conto de fadas dos irmãos Grimm, portanto se faz importante lembrar inicialmente a origem da personagem. Em seguida, são analisados os elementos por meio dos quais as mulheres foram representadas na versão cinematográfica produzida pela Disney. Para a realização desta análise, foram definidas seis categorias: amor, beleza, a mulher como prazer visual, figurino, a mulher como mulher e relação entre madrasta e enteada. De acordo com Corso e Corso (2006, p. 76), o conto A Jovem Escrava, do italiano Giambattista Basile e publicado em 1634, pode ser apontado como uma das origens para a história de Branca de Neve, apesar de também apresentar elementos presentes em A Bela Adormecida e Cinderela. A versão mais conhecida da história, contudo, é a coletada pelos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm. O conto dos Grimm (2012, p. 247-256) se inicia em um dia de inverno, quando uma rainha costurava em uma janela com batente de ébano preto. Ao levantar o rosto para observar os flocos de neve que caíam, espetou o dedo com a agulha, e três gotas de sangue caíram na neve. Ao ver o vermelho combinar tão bem com o branco, desejou ter uma filha “branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o batente da janela”. Algum tempo depois, deu à luz uma menina com essas características, que por isso foi chamada Branca de Neve. A rainha era considerada a mulher mais bela de seu país. Muito orgulhosa, todas as manhãs se admirava em frente a um espelho mágico, e o consultava, perguntando se existia no mundo alguém mais bela do que ela. O espelho sempre respondia que a rainha era a mais bela entre as mulheres do reino. Aos sete anos de idade, Branca de Neve tornou-se ainda mais bonita que a rainha. Ao fazer a pergunta recorrente, desta vez a mulher obteve como resposta que a menina era mil vezes mais bonita. Após ouvir tais palavras, a rainha passou a odiar Branca de Neve. 33 Insuflada pela inveja, a rainha chamou um caçador e ordenou que matasse a menina e, para comprovar, lhe trouxesse seu pulmão e fígado para que ela cozinhasse no sal e comesse. O caçador levou a garota ao local indicado, mas, ao sacar a faca para matá-la, Branca de Neve começou a chorar e implorar que a deixasse viver. Devido à sua beleza, o caçador sentiu pena e desistiu de matá-la. Apresentou como prova à rainha o pulmão e o fígado de um porco selvagem. A mulher cozinhou os órgãos no sal e os comeu. Branca de Neve vagava sozinha pela floresta, quando encontrou uma pequena cabana vazia. A menina entrou na casa e percebeu que lá era tudo muito pequeno, arrumado e limpo. Além disso, havia sete exemplares de cada objeto: sete camas, sete colheres, sete garfos etc. Naquela cabana, moravam sete anões, que estavam trabalhando como mineradores nas montanhas. Quando voltaram do trabalho, perceberam que alguém havia entrado na casa, e encontraram Branca de Neve deitada, dormindo na sétima cama. Ficaram felizes ao perceberem o quanto ela era bonita, portanto a deixaram continuar dormindo. Ao acordar, Branca de Neve contou aos anões sua história. Eles sentiram pena e disseram: Se você quiser cuidar da nossa casa e cozinhar, costurar, arrumar as camas, lavar e cerzir e também arrumar e limpar tudo direitinho, pode morar com a gente que nada lhe faltará. Nós voltamos para casa à noite, então até lá a comida tem de estar pronta, mas passamos o dia escavando ouro na mina e você estará sozinha. Cuidado com a rainha e não deixe ninguém entrar (GRIMM, 2012, p. 250). Naquele dia, acreditando ser novamente a mais bela da região, a rainha fez a costumeira pergunta ao espelho, mas obteve como resposta que Branca de Neve, atrás das sete montanhas, era mil vezes mais bonita. A rainha percebeu que havia sido enganada pelo caçador. Como sabia que além das sete montanhas só moravam os sete anões, deduziu que eles haviam acolhido Branca de Neve, e começou a traçar um novo plano para matá-la. A rainha decidiu vestir-se de vendedora ambulante, pintando o rosto para que ninguém a reconhecesse, e foi até a casa dos anões. Branca de Neve convidou a mulher para entrar, pois considerou que parecia uma pessoa honesta. A rainha fingiu que ajudaria a garota a atar melhor sua roupa, mas apertou o cordão tão forte que ela parou de respirar. Assim, a rainha foi embora, satisfeita. Ao anoitecer, os anões voltaram para casa e encontraram Branca de Neve deitada no chão, como se 34 tivesse morrido. Os anões perceberam que os laços da roupa da menina estavam muito apertados e cortaram o cordão até ela respirar novamente. Mais uma vez, a rainha perguntou ao espelho se existia no mundo alguém mais bela do que ela. A resposta novamente foi sobre Branca de Neve ser a mais bonita. A rainha voltou a se disfarçar, desta vez como uma velha vendedora de pentes, que na verdade estavam envenenados. Branca de Neve caiu no chão, como morta, assim que o pente fincou-se em sua cabeça, mas os anões chegaram logo e o retiraram. Ao perceber que havia falhado outra vez, já enfurecida, a rainha optou por outro método: preparou uma maçã de aspecto apetitoso, mas envenenada. A mulher vestiu-se de camponesa e foi à casa dos anões. Branca de Neve relutou em receber a maçã oferecida, mas aceitou ao ver a própria senhora comer um pedaço, pois ela havia enfeitiçado apenas uma parte da fruta. Ao morder a metade avermelhada da maçã, Branca de Neve caiu no chão, novamente como se tivesse morrido. Os anões retornaram da mina onde trabalhavam e encontraram Branca de Neve. Tentaram ajudá-la a retornar à vida, mas nada funcionava. Por acharem a aparência da menina tão boa e com faces ainda vermelhas, mandaram fazer um caixão de vidro, onde colocaram Branca de Neve de modo que pudessem continuar olhando para ela. Certo dia, um príncipe passou pela casa dos anões e viu Branca de Neve no caixão de vidro. O jovem leu na inscrição que se tratava da filha de um rei. O príncipe pediu que os anões lhe vendessem o caixão com Branca de Neve, mas eles não aceitaram. Ele pediu, então, que lhe dessem de presente, pois não poderia viver sem olhar para ela. Os anões se comoveram e aceitaram a proposta, portanto o príncipe a levou para seu castelo. No castelo, os criados reclamavam por precisar carregar um caixão com uma garota morta. Um deles abriu a tampa, ergueu Branca de Neve e deu um tapa em suas costas. Nesse instante, o pedaço de maçã envenenada que ela havia mordido saltou de sua garganta e a garota estava viva outra vez. O casamento com o príncipe foi programado para o dia seguinte, e a mãe de Branca de Neve também foi convidada para a festa. No casamento, obrigaram a rainha a calçar pantufas de ferro e dançar. Seus pés foram queimados, e ela só poderia parar de dançar quando caísse morta. 35 4.1 AMOR A adaptação da Disney para a história de Branca de Neve apresenta diversas modificações com relação ao conto de fadas dos irmãos Grimm. A primeira, e talvez a mais visível, é uma romantização muito maior da história. O príncipe, interesse amoroso de Branca de Neve, aparece apenas no final do conto original. Este é um aspecto típico dos contos de fadas tradicionais, como lembra Joan Gould no livro Fiando palha, tecendo ouro: [...] em contos de fadas clássicos, o herói só aparece no final, e então não como um homem de carne e osso, mas como a prova viva de que a heroína agora está madura o suficiente para o amor e o casamento; é uma espécie de presente de formatura (GOULD, 2007, p. 47). Na versão cinematográfica Branca de Neve e os Sete Anões, no entanto, a primeira aparição do personagem acontece logo nos primeiros minutos de projeção, quando o rapaz vê a garota e, de imediato, se apaixona e declara seu afeto pela princesa. Isso exemplifica o destaque maior que será dado ao personagem e, consequentemente, ao amor, na adaptação do conto para o cinema. Segundo Gould, [...] Disney projeta uma visão água-com-açúcar da vida da mulher, radicalmente diferente das histórias místicas de sofrimento e transcendência encontradas nas obras dos irmãos Grimm e outras obras tradicionais. Em lugar da transformação, Disney põe romance como o cerne da vida de uma mulher. Os contos mudam, passando de antigas narrativas de evolução interior, que é o enredo natural da heroína, para romances musicais em que um jovem casal se apaixona no instante em que se conhece, mas tem de superar os pais-monstros antes de poder se casar (GOULD, 2007, p. 46). A exaltação do amor romântico é um aspecto bastante valorizado pela indústria cultural. No livro Cultura de Massas do Século XX (2009, p. 131), Edgar Morin afirma que o amor é o tema central da felicidade moderna, e tornou-se também tópico obsessivo da cultura de massa. Segundo o autor, estas características o fazem aparecer mesmo em situações nas quais normalmente não estaria implicado. No cinema ocidental, e ainda mais marcadamente no cinema hollywoodiano, é raro encontrar um filme em que o tópico não esteja presente, quando não em papel de relevância. De acordo com Morin (2009, p. 131), certamente já havia uma presença do amor de maneira obsessiva nos romances fantasiosos do século XVII e no teatro burguês do começo do século XX, mas a cultura de massa universalizou, em todos os setores, a obsessão pelo tema, transformando-o no que chama de “grande 36 arquétipo dominante da cultura de massa”. O autor comenta que a ideia do amor como legítima obsessão da vida remonta de um passado distante, e é justificada pelo princípio lírico do sentimento, sempre apresentado de maneira poética. No filme Branca de Neve e os Sete Anões, a personagem-título é apresentada na terceira cena, vestida com trapos, esfregando o chão do pátio do castelo (Figura 1). A menina está rodeada por pombas brancas, simbologia clara para pureza e virgindade, além de paz e amor. Ao fundo, uma cerejeira pode ser observada, árvore cujas flores também são um símbolo relacionado à inocência e castidade. Enquanto trabalha, Branca de Neve debruça-se sobre o poço, e canta para os pássaros: “Sabem de um segredo? Não irão contar? Ouçam então o que eu vou dizer Quem quiser realizar Aquilo que sonhou Basta o eco repetir O que você falou Um dia (um dia) Eu serei feliz Sonhando (sonhando) Assim (assim) Aquele (aquele) Com quem eu sonhei Eu quero (eu quero) Pra mim (pra mim)” Figura 1 – Vestida em trapos, Branca de Neve esfrega o chão do pátio do castelo, rodeada por pombas brancas 37 No cinema ocidental, o amor é exibido como uma necessidade para que as pessoas se sintam realizadas. Como lembra Morin (2009, p. 133), no curso imaginário da cultura de massa, o amor “[...] é o fundamento tornado necessário e evidente de qualquer vida pessoal”. Na ética do individualismo privado, o amor é o fundamento nuclear da existência: “É a aventura justificadora da vida – é o encontro de seu próprio destino: amar é ser verdadeiramente, é comunicar-se verdadeiramente com o outro, é conhecer a intensidade e a plenitude” (2009, p. 135). Como uma resposta imediata ao pedido que Branca de Neve faz ao poço, um príncipe chega ao local, montado em um cavalo branco. O rapaz pula o muro do castelo e se junta à garota (Figura 2), com quem começa a cantar (Figura 3). A ideia do homem perfeito como um príncipe encantado que chegará em um cavalo branco para conhecer sua donzela persiste, inclusive, até os dias de hoje, como um símbolo da idealização do amor romântico. Figura 2 – Ao ouvir Branca de Neve cantar, o príncipe pula o muro do castelo para observá-la 38 Figura 3 – O príncipe se junta a Branca de Neve, com quem começa a cantar Branca de Neve se assusta com o estranho que repentinamente se uniu a ela em um dueto. A menina corre para dentro do castelo (Figura 4), de onde o observa pela varanda. O príncipe, então, canta (Figura 5): “Ouça, eu lhe peço O que eu quero dizer Esta canção que eu canto É só para você O amor compôs o tema E o poema vem de você Sinto que algum dia Esta canção que eu fiz Venha fazer o nosso Destino muito feliz” 39 Figura 4 – Branca de Neve se assusta com o estranho e foge para dentro do castelo Figura 5 – O príncipe canta para Branca de Neve sobre seu amor 40 Ao ouvir a música cantada pelo rapaz, a garota demonstra emoção e felicidade (Figura 6), mas por um breve momento observa suas próprias roupas e gesticula de modo a aparentar sentir vergonha de seus trajes e/ou não se considerar digna daquele afeto (Figura 7). Apesar de ser a filha órfã de um rei, neste momento a garota está na posição de criada. Com um movimento de câmera que exibe uma das janelas do castelo, vê-se que o jovem casal estava sendo observado pela rainha, cujo rosto apresenta clara expressão de ódio, inveja e ciúme (Figura 8). A cena se encerra com Branca de Neve “enviando um beijo” ao príncipe por intermédio de uma das pombas brancas, selando o compromisso entre eles (Figuras 9 e 10). Figura 6 – Ao ouvir a música cantada pelo príncipe, Branca de Neve demonstra estar emocionada e feliz 41 Figura 7 – Por um breve momento, Branca de Neve observa suas próprias roupas e gesticula de modo a parecer sentir vergonha de seus trajes simples Figura 8 – A rainha observa o casal por uma das janelas do castelo 42 Figura 9 – Branca de Neve “envia um beijo” ao príncipe por intermédio de uma das pombas brancas Figura 10 – O príncipe recebe o beijo enviado por Branca de Neve, selando o compromisso entre o casal 43 Na dissertação Um amor desses de cinema: os amores nos filmes de amor hollywoodianos, Karina Gomes Barbosa assinala que a construção narrativa do amor no cinema normalmente segue uma ordem de acontecimentos: [...] os casais se conhecem, vivenciam os primeiros momentos do encantamento, descobrem a paixão e, finalmente, enfrentam um obstáculo que leva ou ao happy end ou ao final infeliz (GOMES BARBOSA, 2009, p. 159). Segundo a autora, o momento do conhecimento é curto e a descoberta da paixão pode ocorrer imediatamente. Neste filme, nota-se pelo sorriso em seu rosto que o príncipe interessou-se por Branca de Neve no exato momento em que a viu. A música cantada por ele confirma esta ideia. Quanto à garota, ainda que em um primeiro momento tenha se assustado e fugido do rapaz, logo demonstra corresponder aos sentimentos expostos na canção. O amor fílmico começa com um primeiro encontro definitivo entre os amantes. O início amoroso é sempre um momento importante na narrativa fílmica. Conhecer o outro causa impacto ao sujeito amoroso. Ele sabe que, dali por diante, depois daquele primeiro olhar trocado, da primeira experiência compartilhada, sua vida mudará. O cinema nos assegura disso ao dar especial atenção ao primeiro momento entre os amantes. [...] fica estabelecido que esse momento é o primeiro turning point do filme (GOMES BARBOSA, 2009, p. 161). O príncipe apenas aparecerá novamente no final do filme, quando desperta Branca de Neve da morte com um beijo. Apesar disso, ele possui grande importância para a história e se faz presente na mente da personagem durante toda a narrativa. O rapaz é o sonho da garota, que o espera. No meio do filme, os anões pedem a Branca de Neve que lhes conte uma história. “Uma história de amor”, pede Dengoso. A garota então narra a história de uma princesa que se apaixonou facilmente (Figura 11): “Qualquer um veria que aquele príncipe encantado era o único para mim. Não existe outro como ele em lugar algum”, ela afirma. A garota canta, de maneira nostálgica (Figura 12): “Era o meu romance Eu não resisti O sonho que eu sonhei Há de acontecer O castelo que eu imaginei De verdade, ele um dia há de ser O meu eterno amor Um dia encontrarei E feliz eu irei viver com esse amor No sonho que sempre sonhei” 44 Enquanto Branca de Neve conta a história por meio da música, vemos Zangado afastado do grupo, encostado no piano, resmungando: "Mulheres...". Figura 11 – Branca de Neve conta aos anões a história de uma princesa que se apaixonou Figura 12 – Branca de Neve canta para os anões sobre seu romance 45 Morin comenta que, assim como o amor real, na cultura de massa o sentimento também está impregnado de imaginário. Todas as características citadas pelo autor podem ser percebidas no modo como Branca de Neve se refere ao rapaz: [...] o ser amado é o objeto de projeções afetivas que são as mesmas da divinização: o êxtase, a adoração, o fervor têm a mesma natureza que os sentimentos religiosos, mas em escala de um ser mortal (MORIN, 2009, p. 136). Após ser informada pelo espelho mágico que Branca de Neve ainda está viva, a rainha desce ao porão de seu castelo e prepara a maçã envenenada que envia suas vítimas para o Sono da Morte. A rainha descobre, no entanto, que a estratégia possui um antídoto (Figura 13): "A vítima do Sono da Morte só ressuscitará ao receber o primeiro beijo de amor". Apesar do aviso, a rainha não o teme, pois acredita que os anões pensarão que Branca de Neve está realmente morta e a sepultarão ainda viva. Figura 13 – Em seu livro de feitiçaria, a rainha lê que o Sono da Morte possui um antídoto: o primeiro beijo de amor (em inglês, “Love’s First Kiss”) 46 Na cabana, sozinha, enquanto assa uma torta para Zangado, Branca de Neve canta novamente: “O sonho que eu sonhei Pode acontecer O meu eterno amor Um dia encontrarei” O príncipe e, consequentemente, o amor, são, ainda, os motivos pelos quais Branca de Neve morde a maçã envenenada, após a rainha, disfarçada de mendiga, dizer que se trata de uma maçã miraculosa, que pode realizar todos os sonhos. Ela questiona: “Haverá alguma coisa que seu coração deseje? Talvez você ame alguém”. “É, eu amo alguém”, responde Branca de Neve. “Eu sabia, eu sabia. A vovó conhece o coração das moças. Agora pegue a maçã e faça um pedido”, diz a rainha. “Eu desejo... Desejo...”, Branca de Neve inicia o pedido. Há um corte de cena para exibir os anões que correm de volta para casa para salvarem a garota após terem sido avisados pelos animais do bosque que ela corria perigo. Após retornar para a cena na cabana, vemos Branca de Neve concluir seu pedido (Figura 14): “...e que ele me leve então para o seu castelo, onde viveremos felizes para sempre”. “Ótimo! Isso! Agora prove. Não deixe o desejo esfriar”, diz a rainha. É nesse momento que a menina morde a maçã e cai no Sono da Morte. Figura 14 – Branca de Neve faz seu pedido à suposta maçã miraculosa: ser levada ao castelo do príncipe, onde o casal viverá feliz para sempre 47 O principal destaque do amor na narrativa, no entanto, é revelado apenas no final do filme. É, afinal, por meio de um beijo do príncipe que Branca de Neve é despertada da morte. Nos contos de fadas, de uma maneira geral, o amor tende a superar os conflitos fundamentais5. Entretanto, no conto original Branca de Neve ressuscita após um criado que carregava seu caixão bater em suas costas e o pedaço de maçã envenenada saltar de sua garganta. Na versão cinematográfica, é o amor, representado por meio do gesto do beijo, que salva a princesa da morte. Em A psicanálise dos contos de fadas (1980, p. 14-15), Bruno Bettelheim comenta que as histórias modernas voltadas para crianças tendem a evitar problemas existenciais como a morte, porém, para o autor, esta é uma entre as questões cruciais para todos e, as crianças, particularmente, precisam de sugestões simbólicas sobre como crescer e amadurecer a salvo: As estórias "fora de perigo" não mencionam nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo pela vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos (BETTELHEIM, 1980, p. 14-15). Repetindo a música de quando conheceu e se apaixonou por Branca de Neve, o príncipe se aproxima do caixão e a beija (Figura 15). O jovem se apaixona ainda mais pela imagem de passividade da mulher. Ela logo desperta do Sono da Morte. Com este gesto, conota-se ao príncipe o papel de herói. Para Gould (2007, p. 46-47), a mudança no modo como a personagem é salva demonstra uma inclinação patriarcal na maneira como os estúdios Disney adaptam os contos de fadas: "A responsabilidade por seu destino se desloca, passando da heroína, ela própria, para o herói, anteriormente quase invisível, que agora se torna o agente da mudança". 5 Esta característica resolutiva de conflitos tem também raízes mitológicas, como aponta Morin (2009, p. 135). 48 Figura 15 – O príncipe beija Branca de Neve, que está deitada no caixão em seu Sono de Morte A cena exemplifica outra afirmação de Morin (2009, p. 135) acerca da exploração da presença do amor na cultura de massa: “[...] o amor é o que resiste, em última instância, à destruição, o que pode desafiar o final dos tempos, o que é, de fato, forte como a morte”. O fato de Branca de Neve retornar da morte por meio do amor também demonstra a valorização extrema do sentimento no filme. Segundo Morin (2009, p. 134), o beijo na boca simboliza um tipo sintético de amor, ao mesmo tempo espiritual e carnal, no qual as almas se conjugam em um sentimento total: “[...] o beijo na boca é um ato de duplo consumo antropofágico, de absorção da substância carnal e de troca de almas; é comunhão e comunicação da psique no eros”. Gomes Barbosa (2009, p. 104) corrobora: “No amor romântico hollywoodiano, é por meio da mágica do toque dos lábios que o compromisso e a promessa do amor eterno são selados”. Branca de Neve ressuscita com o beijo do príncipe e é então carregada por ele até seu cavalo branco (Figura 16). Os anões e os animais da floresta festejam o despertar da menina. O casal se despede e afasta-se do bosque, porém param para observar um castelo ao longe (Figura 17). O palácio está enquadrado no centro da 49 imagem, visto de longe e entre nuvens, como se estivesse no céu, reforçando a ideia de sonho e idealismo. Ainda que fosse filha de um rei, no início do filme, Branca de Neve havia sido rebaixada pela madrasta para a posição de criada. Casando-se com o príncipe, haverá um retorno à posição social da garota que, ao ser levada para viver a vida do rapaz, voltará à realeza. O sonho de Branca de Neve enfim se realiza, com o amor encontrado, o castelo imaginado tornado verdade, e a promessa da felicidade esperada. Como trilha sonora extradiegética para a cena, aparece novamente a última parte da canção de quando Branca de Neve sonhava com seu príncipe: “O meu eterno amor Um dia encontrarei E feliz eu irei viver com todo esse amor No sonho que sempre sonhei” Figura 16 – Após despertar do Sono da Morte, Branca de Neve é carregada pelo príncipe até seu cavalo branco 50 Figura 17 – O casal se despede e se afasta do bosque, porém param para observar o castelo do príncipe ao longe Após o despertar de Branca de Neve, todos os acontecimentos se sucedem muito rápido. Este é outro aspecto abordado por Gomes Barbosa em relação à construção narrativa dos filmes de amor: O amor romântico e o amor-paixão são incapazes de apresentar narrativamente o que ocorre depois do desfecho. O final feliz, especialmente, se impõe como um argumento narrativo importante, deixando subentendido que se prolonga no tempo e no espaço (GOMES BARBOSA, 2009, p. 165-166). O amor na cultura de massa é exibido com uma necessidade de eternidade, que, para Morin, “[...] insere-se no happy end enquanto imagem mitológica integrada e euforizante” (2009, p. 135). A ideia de eternidade é expressa claramente por meio da frase “...e viveram felizes para sempre” (em inglês, “...and they lived happily ever after”), típica do encerramento de contos de fadas e presente também em suas versões cinematográficas, o que não poderia deixar de ocorrer em Branca de Neve e os Sete Anões (Figura 18). Bettelheim (1980, p. 11) comenta que, ao concluírem com este final, os contos de fadas introduzem o dilema de desejar viver eternamente e indicam que a única coisa capaz de ultrapassar os limites do nosso tempo na Terra é construir uma 51 ligação satisfatória com outrem: “[...] ensinam que quando uma pessoa assim o fez, alcançou o máximo, em segurança emocional de existência e permanência de relação disponível para o homem; e só isto pode dissipar o medo da morte”. Figura 18 – A frase "...e viveram felizes para sempre" (em inglês, "...and they lived happily ever after") escrita no livro filmado em live-action Segundo Morin (2009, p. 132), a partir da década de 1930, com o happy end, o amor se tornou “triunfal”. O final feliz normalmente é visto na cultura de massa como uma superação dos obstáculos da vida com realização na união de um casal, muitas vezes resultando em casamento. Em “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”, David Bordwell fala sobre a construção frequentemente encontrada nos filmes de Hollywood, que se utiliza de preceitos clássicos de roteirização. Quanto às suas conclusões, ele afirma que os finais clássicos surgem “[...] como um ajuste mais ou menos arbitrário de um mundo desarranjado no curso dos oitenta minutos precedentes”. Segundo o autor, grande parte desses finais exibe o clichê da 52 felicidade de um casal romântico heterossexual, muitas vezes com um beijo apaixonado. Quanto à transposição dos contos de fadas para o cinema de uma maneira romantizada, Gomes Barbosa conclui: Neles, encontram retalhos da moral dos contos de fada, que incluía lições de salvação da alma pela bondade, pela abnegação, pela redenção do mal, e que foi substituída pela grande lição da salvação da alma pelo amor (GOMES BARBOSA, 2009, p. 186-187). 4.2 BELEZA Desde o conto original dos irmãos Grimm, já podia ser observada na história de Branca de Neve uma supervalorização da beleza. No longa-metragem dos estúdios Disney, esta continua a ser uma das principais características da narrativa. A beleza é, afinal, o fator que move o conflito central: o desejo da rainha de continuar sendo a mulher mais bela do reino, ainda que, para isso, precise matar sua enteada Branca de Neve. A sociedade sempre valorizou a beleza. No entanto, de acordo com Umberto Eco, no livro História da Beleza (2010, p. 14), ela jamais foi absoluta e imutável, assumindo faces diferentes em cada período histórico e país. Segundo o autor, o que é considerado belo depende da cultura e da época. Em O Mito da Beleza (1992), Naomi Wolf concorda com a ideia de Eco sobre a natureza não absoluta e imutável da beleza, mas afirma que a importância que se dá à qualidade existe de uma maneira objetiva e universal: As mulheres devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação esta necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm maior sucesso na reprodução. A beleza da mulher tem relação com sua fertilidade; e, como esse sistema se baseia na seleção sexual, ele é inevitável e imutável (WOLF, 1992, p. 15). Devido a esse sistema baseado na seleção sexual, de acordo com Wolf (1992, p. 99), as mulheres são treinadas para serem rivais umas das outras no que diz respeito à beleza. Para a autora, faz parte da lógica da beleza insistir que sempre considerem as outras como possíveis adversárias. Em diversas produções da cultura de massa, entre elas uma série de produtos cinematográficos, a vilã é constantemente exibida como uma mulher feia, contrapondo-se à bela mocinha. No caso do filme analisado, ambas, Branca de Neve e a rainha, são bonitas, mas isso 53 não é suficiente para a madrasta, que se sente ameaçada por perder seu posto de “mais bela do reino”. Nesse sentido, não basta ser apenas bela, é preciso ser sempre a mais bonita. A questão da beleza é responsável por dar origem a uma competição e rivalidade entre as mulheres do filme. Segundo Wolf (1992, p. 17-18), embora o mito da beleza sempre tenha existido de alguma maneira desde os primórdios do patriarcado, a sua forma moderna é uma invenção recente, que data do período da Revolução Industrial. A autora comenta que, anteriormente, o valor das mulheres de classe média residia em suas capacidades de trabalho, sagacidade econômica, força física e fertilidade. A supervalorização da beleza tal como conhecemos teve início com a industrialização, quando as mulheres burguesas foram submetidas à domesticidade e tornaram-se alfabetizadas e ociosas. Ainda de acordo com Wolf, o mito da beleza não está ligado apenas à aparência, mas também ao comportamento: As qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável. [...] A juventude e (até recentemente) a virgindade foram "bonitas" nas mulheres por representarem a ignorância sexual e a falta de experiência (WOLF, 1992, p. 17). De fato, em Branca de Neve e os Sete Anões é marcante também o destaque dado ao comportamento da protagonista. A personagem é bela, mas também pura, inocente, casta e virginal, como o seu próprio nome sugere. Além disso, é representada ainda como uma moça boa, indefesa, passiva, terna, delicada, frágil, ingênua, obediente e domesticada. Essas características são contrastadas com a determinação, inveja, ciúme, vaidade, poder e maturidade da rainha. Em questões de aparência, a rainha pode ser descrita como uma mulher alta, de corpo esguio, pele clara e olhos verdes (Figura 19). Pode ser observado que usa maquiagem, com batom vermelho na boca e um forte lápis preto nos olhos. Por outro lado, como descreve o espelho mágico, Branca de Neve nasceu com “lábios vermelhos como o sangue, cabelos negros como o ébano e pele branca como a neve”. A garota é magra, de baixa estatura, e possui olhos castanhos. Por suas bochechas rosadas e cílios bastante marcados, também se subentende que utiliza maquiagem, com blush e rímel, destacando ainda mais sua beleza natural (Figura 20). A princesa possui ainda uma bela voz. 54 É interessante pensar sobre a estatura das personagens. Para o imaginário popular, mulheres mais altas transmitem a ideia de serem poderosas. Além disso, a mulher baixa é vista como ideal para o homem. As figuras da rainha e de Branca de Neve estão relacionadas a esses estereótipos. Figura 19 – A rainha, sentada em seu trono Figura 20 – Branca de Neve 55 Para a sociedade, a ideia de beleza está geralmente associada à fase da juventude, fator perceptível na razão pela qual a rainha sente tanta inveja de Branca de Neve. Ela foi durante muito tempo a mulher mais bonita do reino, mas agora perdeu a juventude e o posto foi tomado por sua enteada. Além disso, a rainha provavelmente já não é mais fértil, enquanto Branca de Neve está no início da puberdade, aparentando ter cerca de quatorze anos. É possível perceber que o corpo da rainha é de uma mulher madura, enquanto o de Branca de Neve ainda está em desenvolvimento. Sobre a relação entre beleza e juventude, Wolf comenta: O envelhecimento na mulher é "feio" porque as mulheres adquirem poder com o passar do tempo e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o curso da vida de todas (WOLF, 1992, p. 17). Diana e Mário Corso lembram que, para a cultura medieval cristã, a beleza feminina tendia a identificar com o maligno e a influência do demônio, [...] o que vem a ser o coroamento de uma longa carreira de preconceito para com a mulher. Como os contos de fadas desde sempre foram dessacralizados, nunca foram muito afetados por essa visão cristã da beleza como um problema (como o esconderijo do diabo); a beleza era sempre um bom sinal, e a feiúra, o signo dos maus (CORSO & CORSO, 2006, p. 79). No primeiro minuto de Branca de Neve e os Sete Anões, o espectador é apresentado à história, escrita em um livro bastante decorado, filmado em liveaction. A escolha remonta à ideia de que o roteiro do filme foi baseado em uma narrativa já existente, no caso o conto de fadas dos irmãos Grimm. Nas páginas, lêse (Figuras 21 e 22): “Era uma vez uma linda princesinha chamada Branca de Neve. Sua vaidosa e malvada madrasta, a rainha, notou um dia que a beleza de Branca de Neve excederia a sua. Cobriu então a princesinha de andrajos e obrigou-a a trabalhar como criada. Todo dia a vaidosa rainha consultava um espelho mágico: 'Mágico espelho meu, quem é mais bela do que eu?'. Enquanto o espelho respondeu: 'Tu és a mais bela', Branca de Neve ficou livre da inveja e da crueldade da rainha”. 56 Figura 21 – O livro, filmado em live-action, apresenta a história ao espectador, na primeira cena do filme Branca de Neve e os Sete Anões Figura 22 – A segunda página da introdução à história de Branca de Neve, em livro filmado em live-action 57 A cena seguinte à introdução da narrativa por meio da exibição das páginas do livro demonstra o que estava escrito. Em uma das torres do castelo, a rainha consulta o espelho mágico para confirmar sua posição como a mais bela do reino (Figura 23), porém recebe como resposta (Figura 24): “Famosa é a vossa beleza, majestade, porém há uma menina entre nós com tanto encanto e suavidade que eu digo, ela é mais bela do que vós”. A afirmação de que o encanto e a suavidade de Branca de Neve tornam-na mais bonita que a rainha funciona para corroborar a ideia de que o comportamento casto da protagonista está relacionado à afirmação de Wolf a respeito das qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres serem símbolos para o comportamento feminino desejável. Figura 23 – A rainha convoca o espírito presente em seu espelho mágico 58 Figura 24 – O espelho mágico aparece Durante todo o filme, é destacado o quanto Branca de Neve é bonita. Quando a rainha ordena ao caçador que leve Branca de Neve para o bosque e a mate, é também a partir da característica que ele retruca: “Mas majestade, a linda princesa!” (Figura 25). Figura 25 – O caçador não pretende matar a “linda princesa” 59 Os animais da floresta se mostram encantados ao conhecerem Branca de Neve (Figura 26), se aproximando rapidamente da garota e dispostos a ajudá-la. Figura 26 – Os animais rapidamente se encantam pela garota A importância dada à beleza de Branca de Neve é vista também quando os sete anões a encontram pela primeira vez, dormindo em suas camas. “Ela é um bocado bonita”, é o que diz Atchim, ao que Dengoso concorda: “Ela é belíssima... parece até um anjo!” (Figura 27). A beleza da moça é tamanha que se compara a algo que não é real, mas divino. 60 Figura 27 – Os anões ficam admirados com a beleza de Branca de Neve Quando a rainha prepara a maçã envenenada que enviará Branca de Neve para o Sono da Morte, novamente a característica é referenciada: “E agora... uma morte muito especial para alguém tão bela”, diz a mulher. Após Branca de Neve cair no Sono de Morte, a passagem do tempo é exibida ao espectador por meio de imagens com representações das estações do ano, e textos que explicam o que aconteceu na história durante o período (Figuras 28, 29 e 30). Ainda que Branca de Neve estivesse em seu Sono de Morte, os anões não tiveram coragem de enterrá-la devido à sua beleza, portanto fizeram um esquife de ouro e cristal por onde pudessem continuar admirando-a (Figura 31) e velaram seu corpo dia e noite (Figura 32). O príncipe ouviu dizer que havia uma linda menina dormindo em um esquife, e foi procurá-la. Mais uma vez, portanto, a beleza é exaltada como a principal característica da personagem. É a beleza que coloca Branca de Neve em perigo, e é também a beleza que a salva no final, junto ao amor, fazendo-a vencer até mesmo a morte. 61 Figura 28 – Outono: “Ela era tão linda em seu Sono de Morte que os anões não tiveram coragem de enterrá-la” Figura 29 – Inverno: “Eles fizeram um esquife de ouro e cristal e velaram seu corpo dia e noite” 62 Figura 30 – Primavera: “O príncipe, que procurava por toda parte, ouviu dizer que havia uma linda menina dormindo num esquife” Figura 31 – Os anões não tiveram coragem de enterrar Branca de Neve devido à sua beleza. Fizeram um esquife de ouro e cristal para que pudessem admirá-la 63 Figura 32 – Os anões velaram o corpo de Branca de Neve dia e noite 4.3 A MULHER COMO PRAZER VISUAL No artigo “Prazer visual e cinema narrativo” (1983), Laura Mulvey discute o significado do prazer erótico no cinema de Hollywood, especialmente o lugar central ocupado pela imagem da mulher. A autora faz o que chama de “uso político da psicanálise” (1983, p. 437) para demonstrar como o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou o cinema e abriu espaços para uma objetificação sexual feminina. De acordo com Mulvey (1983, p. 438), a representação da forma da mulher é realizada em uma ordem simbólica que remete apenas a castração e existe um paradoxo no falocentrismo, ou seja, na convicção acerca de uma superioridade masculina simbolizada no falo, pois a ideia depende da imagem da mulher castrada para possuir significado: “Para o sistema, já existe uma ideia de mulher como a eterna vítima: é a sua carência que produz o falo como presença simbólica; seu desejo é compensar a falta que o falo significa”. 64 Para a autora, na formação do inconsciente da cultura patriarcal a mulher existe como o significante do outro masculino, não apresentando significado próprio. Ela é um espetáculo mudo, que oferece momentos de contemplação erótica: [...] presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando lingüístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado (MULVEY, 1983, p. 438). O cinema é um sistema de representação avançado que coloca questões sobre os modos pelos quais o inconsciente estrutura as formas de ver e o prazer relacionado ao ato de olhar, conforme apresenta Mulvey (1983, p. 439). Para ela, Hollywood se restringe a “[...] uma mise en scène formal que reflete uma concepção ideológica dominante do cinema”, cujos preceitos básicos raramente são desafiados e as preocupações formais refletem as obsessões psíquicas da sociedade responsável por produzi-lo. De acordo com Mulvey (1983, p. 440-441), o cinema oferece diversas possibilidades de prazeres, entre eles a escopofilia. O prazer escopofílico está relacionado a usar outra pessoa como objeto de estímulo sexual por meio do ato de olhar. A autora lembra que Freud considerava este um dos instintos da sexualidade, existente independentemente das zonas erógenas: “Nesse ponto ele associou a escopofilia com o ato de tomar as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e controlador”. Para Freud, a escopofilia se inicia na infância, com a curiosidade de observar o que está reservado e proibido, como os genitais dos outros. Mulvey (1983, p. 441) comenta que, embora seja modificado por diversos fatores, em especial devido à constituição do ego, esse instinto continua a existir como base erótica para o prazer em observar, de modo ativo e controlador, outra pessoa como objeto. O cinema produzido em Hollywood apresenta uma beleza formal que satisfaz o espectador ao jogar com suas próprias obsessões formativas. Além disso, segundo Mulvey (1983, p. 441) não são apenas as convenções narrativas nas quais o cinema se desenvolveu que contribuem para as fantasias voyeuristas dos espectadores, como também as próprias condições projetivas, visto que sugerem uma ilusão de separação entre o filme e a plateia, e dos espectadores em relação uns aos outros, provocada pelo contraste, brilho, luz e sombra entre a tela e o auditório. A situação é semelhante a “um rápido espionar num mundo privado”. 65 Além de satisfazer a necessidade primordial de prazer visual, o cinema atua no desenvolvimento da escopofilia em seu aspecto narcisista e na constituição de um ego, que surge pela identificação com a imagem vista. Mulvey (1983, p. 444) comenta que o prazer no olhar foi dividido em ativo/masculino e passivo/feminino. Nesse sentido, a mulher “[...] sustenta o olhar, representa e significa o desejo masculino”: O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com esta fantasia. Em seu papel tradicional exibicionista, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição de “para-ser-olhada” (MULVEY, 1983, p. 444). O ato de observar funciona como uma fonte de prazer, e o cinema oferece isso aos espectadores, para quem o entretenimento na tela é exibido. De acordo com Mulvey (1983, p. 452), três séries diferentes de olhares estão associadas com o cinema: “[...] o da câmera que registra o acontecimento pró-fílmico, o da platéia quando assiste ao produto final, e aquele dos personagens dentro da ilusão da tela”. Segundo a autora, as convenções do cinema tradicional narrativo tendem a rejeitar os dois primeiros, que se tornam subordinados ao terceiro, o olhar dos personagens, pois existe o objetivo de impedir que a plateia tome consciência da câmera e se distancie do que observa. Conforme aponta a autora (1983, p. 444-445), por meio desses mecanismos sobre os quais o cinema hegemônico tem trabalhado, o público se torna uma espécie de voyeur e a forma feminina é oferecida para o deleite visual do espectador e dos personagens masculinos na narrativa, exibida como objeto de seus olhares fixos combinados, unificados. É, como aponta Mulvey (1983, p. 451), uma “(passiva) matéria bruta para o (ativo) olhar do homem”, que ganha o controle e a posse da mulher por meio do olhar dos personagens. Em Branca de Neve e os Sete Anões, é o olhar dos personagens masculinos que determina as personagens femininas. O próprio julgamento e aprovação a respeito da beleza da rainha e de Branca de Neve, aspecto motivador para a trama do filme, é dado por um personagem masculino: o espelho mágico. Como objeto, o espelho é uma superfície que reflete a imagem e, na cultura, tende a ser um símbolo para a verdade: [...] a beleza só existe para um olhar, sem esse reconhecimento ela não faz sentido, por isso o espelho é o complemento necessário da imagem. O olhar no espelho traz sempre uma pergunta e uma resposta. Cada um o 66 contempla tentando se ver "de fora", buscando decifrar o impacto de sua imagem nos olhos dos outros, interrogando como somos vistos (CORSO & CORSO, 2006, p. 80). A mulher é, portanto, a imagem, enquanto o homem exerce o papel de portador do olhar e, no caso do espelho mágico, tal afirmação se exemplifica de maneira concreta. O interesse do príncipe por Branca de Neve também acontece após observála à primeira vista e ficar contente com aquilo que observa (ver novamente a figura 2). É a partir da satisfação com a aparência da garota, bem como com a bela voz que ele ouve cantar, que o jovem decide se aproximar dela. Da mesma maneira, ocorre uma aprovação por parte dos anões, que acreditavam haver um monstro em sua casa, mas ficam especialmente tranquilos ao perceberem que se trata de uma bela moça (rever a figura 27). Neste momento, Branca de Neve está dormindo em suas camas (Figura 33), exposta para a observação, a aprovação e os comentários dos homens. A própria descrição de Freud acerca da escopofilia poderia facilmente ser aplicada com relação ao modo como os anões a observam: a princesa está sujeita a um olhar fixo, curioso e controlador. A observação de Freud se aplica do mesmo modo ao final do longametragem, quando os anões acreditam que Branca de Neve está morta, mas são incapazes de enterrá-la devido à sua beleza, portanto a colocam em um esquife de ouro e cristal e velam seu corpo dia e noite (ver outra vez a figura 32). A menina supostamente está morta, mas isso não a impede de continuar sendo observada. Nestes dois momentos do filme em que é observada pelos anões, em especial, a personagem é um espetáculo literalmente mudo e paralisado, exposto apenas para a apreciação e contemplação dos olhares masculinos, pois não está consciente, apenas dormindo, indiscutivelmente na condição feminina denominada por Mulvey de “para-ser-olhada”. 67 Figura 33 – Branca de Neve, dormindo na cama dos anões, enquanto é observada 4.4 FIGURINO Outro fator importante a ser abordado acerca da representação das personagens em Branca de Neve e os Sete Anões é o figurino. No longa-metragem, as diferenças entre Branca de Neve e a madrasta são acentuadas pelas vestes que utilizam, representando, entre outros aspectos, as posições de poder de ambas. Em História da Beleza (2010, p. 105), Umberto Eco lembra que, nas sociedades antigas, a diferença entre ricos e pobres era manifestada de maneira exemplar por meio do vestuário, das armas e das armaduras: “Para manifestar seu poder, os senhores adornam-se de ouro, jóias, e vestem roupas com as cores mais preciosas, como a púrpura”. De acordo com o autor, representam riqueza as cores artificiais, derivadas de minerais ou vegetais e que passam por elaborações complicadas. De fato, a cor púrpura é a que está mais presente nas vestes da rainha, em seu longo vestido com mangas compridas (Figura 34). 68 Os trajes da rainha incluem também uma longa capa preta, cuja parte interna é revestida de vermelho e, ligada ao manto, há uma gola alta branca. Ela usa um capuz preto que deixa apenas o seu rosto exposto, e em sua cintura está amarrado um cinto vermelho. A rainha usa ainda uma coroa de ouro sobre sua cabeça, com um brilhante na ponta central, e um colar com um pingente vermelho. Ainda segundo Eco: Um colete verde ou vermelho, para não falar de um ornamento feito de ouro ou de pedras preciosas (que freqüentemente são aquelas que hoje chamamos de quartzo, como a ágata ou o ônix) é coisa rara e admirável. A riqueza das cores e o esplendor das gemas são um signo de poder, logo, o objeto de desejo e maravilha (ECO, 2010, p. 105). As cores presentes no figurino estão cercadas de simbolismo. A cor púrpura, além de ser considerada preciosa e representante das classes mais nobres, traz uma ideia de mistério e poder. Igualmente relacionado ao poder, bem como à evocação do terror, está o preto, em destaque na capa e no capuz da rainha. O vermelho, por sua vez, tende a ser símbolo para paixão, bem como para ódio, energia e força, além de também estar relacionado à realeza. Figura 34 – A madrasta de Branca de Neve, em seus trajes de rainha 69 Por outro lado, Eco afirma (2010, p. 105) que os pobres vestiam-se com tecidos de cores pálidas e modestas: “É normal que um camponês vista tecidos brutos, não tocados pelo tintureiro, consumidos pelo uso, de um cinza ou de um marrom quase sempre sujo”. Branca de Neve é a filha órfã de um rei, portanto não é pobre, mas é obrigada pela madrasta a trabalhar como criada e viver como tal. No início do filme, enquanto limpa o pátio do castelo, a personagem usa um simples vestido marrom, no qual podem ser observados diversos rasgos e remendos. Em seu cabelo, há uma tiara com um laço azul escuro. A menina calça sapatos de madeira, semelhantes a típicos sapatos holandeses (Figura 35). Figura 35 – Branca de Neve enquanto criada, vestida de trapos Em um segundo momento do filme, após sair do castelo e ir ao bosque colher flores acompanhada pelo caçador, Branca de Neve usa uma roupa diferente, com a qual continuará até o final do longa-metragem (Figura 36). Suas novas vestes estão mais relacionadas ao que costumamos ver nas representações de princesas. O novo vestido da garota é azul na parte superior, e possui uma saia amarela. O 70 amarelo traz uma ideia de luminosidade, enquanto o azul evoca tranquilidade. As mangas da roupa são grossas, azuis com detalhes em vermelho. As golas do vestido são altas e brancas. Há, ainda, uma capa vermelha. No cabelo de Branca de Neve, uma tiara também vermelha e com um laço. Da mesma forma, a figura do laço se faz presente no sapato amarelo da garota, com um salto alto. Essa variedade de cores está relacionada ao que Eco afirma ao dizer: [...] os deserdados, que têm a ventura de viver em uma natureza certamente avara e dura, [...] podem gozar apenas do espetáculo da vegetação, do céu, da luz solar ou lunar, das flores. E, portanto, é natural que seu conceito instintivo de Beleza identifique-se com a variedade de cores que a natureza sabe oferecer (ECO, 2010, p. 107). Figura 36 – Branca de Neve no vestido com o qual passa a maior parte do longa-metragem Não foi apenas a condição de poder das personagens que se acentuou a partir das cores utilizadas nos figurinos. De modo geral, nos produtos da cultura de massa os vilões tendem a usar roupas mais escuras, enquanto os mocinhos vestemse em trajes de tons mais claros. 71 Enquanto, em seus trajes de realeza, a rainha vestia uma roupa marcada principalmente pelo púrpura, uma das cores de destaque no novo figurino de Branca de Neve é o amarelo. Tais cores são complementares. No livro A Cor Como Informação, Luciano Guimarães afirma: Das cores primárias e secundárias, o amarelo é a cor de maior luminosidade, enquanto o violeta é a cor de menor luminosidade, ou seja, o amarelo é a cor menos "bloqueada" e que, portanto, provoca maior participação do receptor e também maior atenção (GUIMARÃES, 2004, p. 29). As vestes da madrasta também mudam durante o filme. Ao se disfarçar como uma velha mendiga, no lugar de seu vestido real a mulher passa a usar uma espécie de mortalha preta, encapuzada, e sapatos igualmente simples e escuros (Figura 37). Desta vez, o preto é a única cor, ressaltando a ideia de terror e o aspecto da personagem como bruxa. Para a cultura ocidental, a cor geralmente está associada a conotações negativas. O preto é uma cor comumente representativa de vilões, o que pode ser visto, inclusive, nos outros filmes de princesas da Disney: está presente, por exemplo, no vestuário de Malévola, de A Bela Adormecida (1959) e Úrsula, de A Pequena Sereia (1989). Figura 37 – A rainha, em seu disfarce de mendiga 72 4.5 A MULHER COMO MULHER Em Branca de Neve e os Sete Anões, apesar de protagonistas, as personagens femininas estão em número bastante reduzido em comparação à quantidade de homens. São apenas duas, enquanto dez figuras masculinas aparecem na história: o príncipe, os sete anões, o espelho mágico e o caçador. Além disso, as mulheres estão competindo. As duas mulheres são representadas por meio de características opostas. De um lado, há a garota bonita, bondosa, terna, delicada, frágil, ingênua, pura, casta, virginal, indefesa, sonhadora, passiva, frágil, humilde, obediente e domesticada. De outro, a madrasta também bonita, mas cruel, invejosa, ciumenta, poderosa, madura, determinada, soberba, orgulhosa, dominadora e manipuladora. Estes aspectos completamente opostos lembram os mitos de Eva e Lilith, respectivamente a “mulher anjo” e a “mulher demônio”. De uma forma arquetípica, para a sociedade, a ideia tradicional a respeito do conceito de feminino está fortemente associada à figura de Eva, com a qual se relaciona a representação de Branca de Neve. De acordo com o livro Gênesis da Bíblia cristã, Eva teria sido a primeira companheira de Adão, criada a partir de sua costela. É um símbolo6 que representa fraqueza e dependência com relação ao homem, se submetendo à soberania masculina e aceitando sua condição como inferior. Por outro lado, a figura da rainha em Branca de Neve e Sete Anões pode ser identificada com Lilith, não tão conhecida quanto Eva e apagada pela consciência coletiva, mas que também teve origem no mito da tradição hebraica. Roberto Sicuteri, no livro Lilith, a Lua Negra (1985, p. 12), deduz que a história foi perdida ou removida da versão bíblica "[...] durante a época de transposição da versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da Igreja". Na tese Ecos de Lilith (2009, p. 33), Sheila Pelegri de Sá descreve a origem do ícone, que teria sido companheira de Adão antes mesmo de Eva, criada a partir do barro e de impurezas como saliva e sangue. Segundo o mito, Lilith se rebela ao 6 Um exemplo da imagem de Eva associada ao arquétipo de mulher passiva na cultura popular pode ser visto no poema "O dia da criação", de Vinícius de Moraes, no trecho que diz: "Nem tu mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada". 73 ser designada por Deus a exercer uma posição submissa em relação ao primeiro homem, [...] recusando-se, em especial, a se deitar por baixo de Adão durante a cópula, por não compreender a razão de ter sido destinado a ela o sacrifício de suportar o peso do esposo. Adão, respondendo com uma recusa seca, nega o pedido da esposa de inverter posições. Tal pedido, entretanto, viria a estabelecer uma paridade que significaria a igualdade entre os dois corpos e as duas almas (SÁ, 2009, p. 33-34). Ao rebelar-se contra Adão e Deus, Lilith foi banida para o inferno e passou a assumir uma postura destrutiva. Lilith tornou-se um modelo de liberdade, independência, sensualidade e busca pela igualdade. Seu próprio nome está relacionado a conceitos obscuros, significando “da noite”. A noite, como um símbolo, traz representações associadas ao mal e à morte. Ainda de acordo com Sá, enquadramentos semelhantes que polarizam divindades e personagens podem ser encontrados nas mais diferentes culturas: [...] ou representam a bondade, a generosidade e a pureza – e a elas são associadas imagens etéreas, luminosas e angelicais – ou representam a crueldade, os prazeres carnais – sendo a elas relacionadas imagens violentas, lascivas e mortas (SÁ, 2009, p. 32). É por meio de uma maçã que Branca de Neve é envenenada. O simbolismo deste como o fruto do desejo proibido também remete à tradição bíblica, com o mito de Adão e Eva. Para Corso e Corso (2006, p. 83), “É morder essa maçã que altera o destino de Branca de Neve, morre uma menina e nasce uma mulher, o veneno é a sexualidade”. Segundo os autores, a garota que até aquele momento era casta recebe da madrasta a primeira tentação. Desde a cena de apresentação de Branca de Neve, no início do filme, limpando a escadaria do castelo, percebem-se a passividade e obediência da personagem. O trabalho como criada foi uma imposição de sua madrasta, mas a garota o faz sem reclamar. Ao chegar à casa dos sete anões, Branca de Neve continua a fazer trabalhos domésticos, e se mostra uma excelente dona de casa (Figura 38). Imediatamente após chegar ao local, decide limpá-lo até ficar perfeitamente limpo e arrumado. No conto de fadas tradicional, é dito que a cabana dos anões já está muito limpa quando Branca de Neve chega, enquanto no filme está completamente suja, desarrumada e empoeirada, ressaltando o quanto é necessário alguém que cuide das tarefas. 74 Quando os anões retornam do trabalho na mina e conhecem a garota, Branca de Neve pede para que não a mandem embora, pois provavelmente seria morta pela rainha. Para convencê-los, ela propõe: “Se me deixarem ficar, eu tomarei conta de tudo”. A jovem então enumera as tarefas domésticas que pode fazer: “Eu lavo, varro, costuro, cozinho. [...] Sei fazer boas tortas e bons pudins”. Os anões gostam da ideia, principalmente por ter alguém que cozinhe para eles. Em seguida, Branca de Neve prepara o jantar. Com isso, legitima-se a ideia de que as mulheres devem ser responsáveis pelos afazeres domésticos. Os anões, por outro lado, trabalham fora, em um serviço considerado pesado, como mineradores. O trabalho doméstico, aliado à sua beleza e passividade, são as moedas de troca de Branca de Neve. Figura 38 – Branca de Neve, limpando a casa dos sete anões Além de fazer as tarefas domésticas, Branca de Neve age como uma mãe em relação aos anões, obrigando-os a se lavarem antes de comer. Eles obedecem, pois desejam agradar a princesa. À noite, cedem suas camas para que a garota durma confortavelmente, ainda que, devido a essa escolha, precisem dormir em bancos de 75 madeira, gavetas, armários, e até em pias e caldeirões. Esse “cavalheirismo” reforça a ideia de que a personagem se trata de uma mulher frágil. Entre todos os anões, Zangado é o único que demora a gostar de Branca de Neve. Quando Soneca comenta que ela é belíssima e parece um anjo, ele diz: “Anjo? Ela é mulher, e as mulheres são falsas, cheias de sortilégio”. Para ele, as mulheres, de maneira geral, são símbolo de sedução e traição, noção também bastante difundida na sociedade. Mesmo os elogios dos outros personagens voltados a Branca de Neve, conforme Corso e Corso, [...] ocultam um número proporcional de críticas e preconceitos para o sexo feminino, cuja face perigosa é explicitada com requintes, principalmente na figura da madrasta de Branca de Neve. De acordo com esses relatos, a jovem extrai seus encantos do fato de que ainda é inocente, portanto não sabe usar os ardis típicos da fêmea humana. Carente de poder formal, a mulher sempre foi vista maquinando formas sutis de exercê-lo, e esses são seus feitiços (CORSO & CORSO, 2006, p. 76). Branca de Neve também passa a ser zelada pelos homenzinhos, que se tornam responsáveis por ela. Eles se preocupam em deixá-la sozinha em casa, advertindo-a sobre os possíveis perigos. No conto de fadas tradicional, a morte da rainha ocorre com o aval de Branca de Neve, que a convida para o seu casamento com o príncipe e permite que a obriguem a calçar pantufas de ferro e dançar em brasa até a morte. Na versão cinematográfica, ao serem avisados pelos animais da floresta que a princesa corre perigo, os anões apressam-se em socorrê-la. Avistam a rainha disfarçada e a perseguem até uma montanha, de onde a mulher cai após um raio acertar o local onde ela se apoiava. Para Corso e Corso (2006, p. 79), “Não é de estranhar que a vingança também coubesse aos anões, assim como antes haviam se incumbido da segurança da princesa”. Além dos anões, Branca de Neve já havia sido protegida por outra figura masculina anteriormente: o caçador, que desobedeceu a rainha e se recusou a matar a princesa. A partir destes exemplos, vemos que, em um mundo onde as duas únicas mulheres competem, são os homens que oferecem proteção. É a ingenuidade de Branca de Neve que a torna vítima da rainha que, disfarçada de mendiga, lhe oferece a maçã envenenada. Ainda que tenha sido avisada pelos anões para prestar atenção, tomar cuidado e não deixar ninguém entrar na casa, visto que a rainha é uma mulher astuta e perigosa, a princesa não hesita em abrir a porta para aquela que acredita ser apenas uma velhinha indefesa. 76 Branca de Neve também é sonhadora, e passa a maior parte do longametragem desejando seu príncipe encantado, ainda que tenham se visto apenas uma vez. Está marcado desde o início da projeção o desejo da personagem por se casar. As principais questões acerca da representação da rainha como mulher englobam a sua obsessão por ser sempre a mulher mais bela do reino e a relação com a enteada Branca de Neve. 4.6 RELAÇÃO ENTRE MADRASTA E ENTEADA Um aspecto que não pode ser negligenciado em uma análise de Branca de Neve e os Sete Anões é a relação familiar entre a protagonista e sua madrasta: a princesa precisa se salvar de alguém que normalmente teria o papel de cuidar dela. Em grande parte das versões do conto de fadas tradicional, a rainha é a mãe de Branca de Neve, porém, no filme, passa a ser sua madrasta. Nos contos de fadas, de uma forma geral, quando existe uma mãe má ela é representada por uma bruxa ou por uma madrasta. Como lembram Corso e Corso (2006, p. 79), “Branca de Neve tem o azar de ter as duas, com um detalhe adicional: sua madrasta é bela, sua feiúra é interior”. No artigo “Entre desafiadora e má: uma análise das representações simbólicas das madrastas em contos de fadas” (2008, p. 1), Luciana Gonçalves comenta que, ainda que a maior parte das mulheres seja desde cedo ensinada por suas culturas a serem mães, nenhuma é educada para ser madrasta, pois a existência desta figura indica que a ausência da mãe ocorreu devido a uma fatalidade, seja a morte, o abandono ou uma necessidade de afastamento. De acordo com Gonçalves (2008, p. 1), não é exatamente a falta da mãe que nos amedronta acerca da figura da madrasta, mas a ausência dos sentimentos de amor e cuidado representados pela mãe: “Assim, para a madrasta sobra o papel de severa, obsessiva, displicente, raivosa e vingativa. Ela antagoniza todos os predicados da mãe”. Nos contos de fadas, geralmente as madrastas buscam todas as artimanhas possíveis para anular a presença dos filhos do primeiro casamento, excluindo-os de qualquer privilégio ou conforto, conforme aponta Gonçalves (2008, p. 4). A autora comenta que é persistente, também, 77 [...] o temperamento perverso da madrasta, que cria situações para sobrecarregar a enteada de serviços pesados, humilhantes, afastando-a da sua real condição de princesa-rainha. Noutros momentos, cria estratégias para abandonar ou aniquilar o enteado/a. E, nesta cega perseguição ao alvo de sua inveja, a madrasta é desenhada como determinada, chegando a ser insistente, não desistindo até que seu intento seja realizado (GONÇALVES, 2008, p. 4). As enteadas dos contos em geral são submetidas pelas madrastas a realizarem os serviços domésticos, o que, para Gonçalves (2008, p. 4), provavelmente acontece “[...] para afastar cada vez mais a menina órfã de sua condição especial de beleza, delicadeza e bondade”. A madrasta representa, ainda, uma mulher que tem ligação com a morte da menina boa, e não com a vida, tanto que não gera nenhum descendente, mas se apropria de forma maléfica do descendente de outra mulher. Do ponto de vista psicanalítico, Bettelheim (1980) diz que a divisão típica dos contos de fadas entre uma mãe boa – que geralmente está morta – e uma madrasta malvada é útil para as crianças, pois lhes permite aprender a lidar com sentimentos contraditórios: Não é apenas uma forma de preservar a mãe interna totalmente boa, quando na verdade a mãe real não é inteiramente boa, mas permite à criança ter raiva da "madrasta" malvada sem comprometer a boa vontade da mãe verdadeira, que é encarada como uma pessoa diferente. Assim, o conto de fadas sugere a forma da criança lidar com sentimentos contraditórios que de outro modo a esmagariam neste estágio onde a habilidade de integrar emoções contraditórias apenas está começando. A fantasia da madrasta malvada não só conserva intacta a mãe boa, como também impede a pessoa de se sentir culpada a respeito dos pensamentos e desejos raivosos quanto a ela – uma culpa que interferiria seriamente na boa relação com a mãe (BETTELHEIM, 1980, p. 73) Bettelheim (1980, p. 125) comenta também que, na fantasia infantil, a boa mãe nunca teria ciúmes de sua filha ou impediria que ela vivesse feliz com seu príncipe. A madrasta é alguém que está atrapalhando o caminho da heroína. De acordo com Corso e Corso (2006, p. 17), a sobrevivência das diversas histórias de abandono dos filhos por mães ou madrastas egoístas indica que as crianças querem saber a respeito dos limites e da ambivalência do amor materno. Segundo os autores, “[...] o tema das madrastas invejosas e más [...] interessa às crianças porque nomeiam indiretamente a rivalidade das mães em relação a suas filhas, que o mito da perfeição do amor materno obriga a recalcar”. Em Branca de Neve e os Sete Anões, a rainha era a mulher mais bela do reino, mas vivia em constante insegurança acerca de seus encantos, portanto 78 consultava sempre o espelho mágico sobre a supremacia de sua beleza. Para ela, não bastava ser bela, pois essa beleza deveria ser insuperável. Branca de Neve é afastada de sua posição de princesa, coberta de andrajos e obrigada a trabalhar como criada quando a madrasta percebe que um dia a beleza da menina poderia exceder a sua. No entanto, a jovem fica livre da maldade da mulher até o dia em que amadurece e o espelho responde que a beleza da rainha foi superada. O desejo por matar Branca de Neve se dá quando a moça ameaça a posição de supremacia da beleza da rainha. Percebe-se, nesse comportamento, inveja, ciúme, narcisismo e orgulho feridos por parte da mulher, que remetem à problemática feminina da relação com a mãe, como apontam Corso e Corso: Não podemos esquecer de que a menina floresce na mesma proporção em que sua mãe perde o viço, restando o incontornável conflito de como se parecer com esta, tornando-se uma mulher, na mesma época em que a mãe vê declinar seus atrativos femininos. Essas histórias são bem claras, avisam à futura mulher que a juventude da mãe morrerá esperneando e que não há lugar para duas mulheres desejáveis no núcleo familiar (CORSO & CORSO, 2006, p. 75). A trama é iniciada quando a rainha perde o lugar como única beldade. Para Corso e Corso (2006, p. 80), o fato de a rainha pretender devorar as vísceras de Branca de Neve significa um desejo de incorporar os atributos da jovem: “[...] a incorporação é a forma mais primária de identificação”. Corso e Corso relacionam as atitudes da rainha com Branca de Neve com o rompimento que naturalmente acontece entre mães e filhas. Na primeira infância, meninos e meninas tendem a ser dedicados às mães, porém as garotas abrem mão dessa modalidade amorosa, voltando para o pai a ideia do que será seu futuro objeto amoroso heterossexual: Geralmente, esse primeiro amor com a mãe sucumbe em meio a um mar de queixas, acusações e mágoas. A menina desvincula-se da mãe acusando-a de tê-la abandonado, descuidado e preterido. Tem também queixas de que a mãe não a dotou dos atributos (fálicos, dirão os psicanalistas) de que ela precisava para ser valiosa e escolhida na sua preferência, por fim ainda acusa a mãe de ser ela própria castrada e desvalida, incapaz de dar-lhe o que ela necessita. Essas queixas se enlaçam às queixas relativas ao desmame, de ter recebido pouco leite ou por tempo insuficiente (CORSO & CORSO, 2006, p. 82). Em Four Archetypes, Carl Jung (2004, p. 15) define o arquétipo da mãe. Ao arquétipo materno, estão associados a solicitude, a simpatia, a sabedoria, o instinto por ajudar, ou seja, tudo o que é benigno, que alimenta e sustenta. Não é essa a imagem que temos a respeito da madrasta em Branca de Neve e os Sete Anões. Segundo o autor, no lado negativo do arquétipo materno está o que traz conotações 79 obscuras, como o inevitável destino no mundo dos mortos. Esse aspecto se associa muito mais à ideia do que a rainha representa para a enteada. O filme da Disney adaptou o conto de fadas Branca de Neve, dos irmãos Grimm, tornando-o referência na história da animação e do cinema de modo geral, mantendo-se até hoje no imaginário popular como uma narrativa que propaga o ideal do que supostamente deve ser almejado pelas mulheres. A moça bela, bondosa e delicada tem o seu final feliz, levada ao castelo do príncipe encantado, com o amor vencendo todos os obstáculos. A mulher má, invejosa e manipuladora é eliminada pelos homens que ofereceram proteção à garota boa. As representações do feminino estão baseadas no antagonismo entre o bem e o mal, e do que deve ou não inspirar o comportamento das meninas para que se realizem da mesma forma que Branca de Neve. Há, no entanto, outras maneiras sob as quais a mulher foi representada em animações dos estúdios Disney. Enquanto este capítulo buscou analisar o primeiro filme de princesa, o próximo trata da obra mais recente, Valente, que apresenta novos modelos. 80 5 VALENTE Este capítulo aborda o filme Valente, que apresenta a décima primeira princesa da Disney, Merida. Lançado no ano de 2012, é uma produção dos estúdios Walt Disney em colaboração com sua subsidiária, a Pixar Animation Studios, que inclui em sua filmografia grandes sucessos como Toy Story (1995), Procurando Nemo (2003), Wall-E (2008) e Up (2009). A personagem foi a primeira protagonista feminina da Pixar, e é a mais recente princesa da Disney, incluída na franquia em maio de 2013. O longa-metragem foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme de Animação no mesmo ano. Valente conta uma história original, não foi baseado em nenhuma obra previamente existente, porém possui influências claras dos contos de fadas europeus. É importante, inicialmente, citar a sua origem. Em seguida, são analisados os aspectos relativos às representações das mulheres no filme, que apresentam algumas inovações em relação à Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937. A análise será feita a partir das categorias definidas anteriormente: amor, beleza, figurino, a mulher como mulher e relação entre mãe e filha. A narrativa partiu de uma história original idealizada por Brenda Chapman, que inicialmente era também a diretora do filme – primeira diretora mulher de uma animação da Pixar, vale dizer. De acordo com o que a cineasta contou em entrevistas, a inspiração para o roteiro do filme veio dos contos de fadas coletados pelos irmãos Grimm e por Hans Christian Andersen, mas principalmente pela relação com sua própria filha. Segundo ela, foi preciso enfrentar um trabalho difícil para convencer o chefe de criação da Pixar e da Disney, John Lasseter, a fazer um filme de princesa que não seguisse o arquétipo das personagens anteriores. Ambientado nas Terras Altas da Escócia, Valente conta a história de Merida, princesa e habilidosa arqueira determinada a desafiar as tradições de seu reino e trilhar o próprio caminho. Merida é filha do rei Fergus e da rainha Elinor, do reino de DunBroch. Ainda criança, em um de seus aniversários a menina ganha um arco de presente do pai. Ao treinar, a garota acidentalmente atira a flecha na floresta, onde vê luzes mágicas, e passa a segui-las. Quando retorna, a rainha conta à filha que há quem diga que as luzes mágicas levam as pessoas aos seus destinos. Nesse momento, Mor’du, um gigantesco urso, aparece e ataca a família. Elinor foge com Merida, enquanto o rei 81 fica para lutar com o urso, que arranca sua perna esquerda. Fergus promete encontrar Mor’du novamente e vingar-se. A história continua anos depois. O modo como o rei Fergus perdeu sua perna se tornou lenda e Merida ganhou irmãos: os sapecas príncipes trigêmeos Hamish, Hubert e Harris. Já adolescente, Merida está sendo treinada pela mãe para se tornar uma boa rainha, embora esteja interessada em uma vida de liberdade. Certo dia, os lordes Dingwall, MacGuffin e Macintosh, chefes dos clãs que compõem o reino, aceitam o convite para apresentarem seus filhos como pretendentes para o noivado com Merida. Cada clã deve trazer o primogênito para competir nos jogos esportivos pela mão da princesa em casamento. A garota se enraivece ao descobrir, pois não possui a intenção de se casar. A competição deve ser escolhida pela princesa, que decide por uma disputa de arco e flecha. Durante os jogos, acidentalmente o filho do Lorde Dingwall vence, porém Merida decide lutar por sua própria mão, acertando os três alvos. Elinor e Merida brigam, pois a rainha considera que a filha envergonhou a família e os lordes com sua atitude e é possível que uma guerra comece se o erro não for reparado. Durante a discussão, Merida destrói a tapeçaria que exibe a imagem da família, dividindo a parte onde está costurada a figura de Elinor. Em um ato impulsivo, a rainha joga o arco da filha em uma fogueira. Merida foge do castelo com seu cavalo e vê novamente as luzes mágicas. Ao lembrar os dizeres de sua mãe sobre as luzes levarem ao destino, Merida as segue e encontra uma cabana onde funciona a loja Artes e Manhas, que vende peças em madeira inspiradas em ursos. A dona é uma velha senhora que a princesa logo descobre ser uma bruxa. A menina pede a ela um feitiço que mude sua mãe e seu destino. A bruxa conta que a última vez que fez isso foi para um príncipe que queria a força de dez homens, e entrega à garota um doce encantado. Ao retornar ao castelo, Merida dá o doce a Elinor, que se transforma em um urso, embora continue com a personalidade humana. A garota inicialmente não entende por que a mãe se tornou um urso e reclama por ter recebido um feitiço inútil, mas admite para a rainha que pediu a uma bruxa um encantamento que a transformasse. O rei Fergus ouve o rugir de Elinor como urso e inicia uma caçada pelo castelo, juntamente com os lordes. Com a ajuda dos trigêmeos, Merida e Elinor conseguem escapar do castelo. 82 Na floresta, mãe e filha procuram as luzes mágicas que as levariam até a casa da bruxa para desfazer o feitiço. Ao chegarem à cabana, descobrem que a velha senhora viajou para um festival, mas deixou um recado para a garota, explicando que, ao segundo nascer do sol, o feitiço será permanente, a menos que decifre o enigma “Sina alterada, olhe sua alma, remende a união por orgulho separada”. No dia seguinte, Merida e Elinor procuram comida pela floresta e passam um tempo juntas, se divertindo e se conhecendo melhor. De repente, Elinor ataca Merida, como se fosse um urso também internamente e não possuísse a consciência de que aquela era sua filha. As duas avistam luzes mágicas e são levadas por elas às antigas ruínas de um castelo. Por um buraco, a menina cai em um salão que descobre ter sido a antiga sala do trono da história que sua mãe costumava lhe contar. Na lenda, um rei dividiu o reino entre os seus quatro filhos, porém o mais velho dos príncipes queria governar sozinho e seguir seu próprio caminho, o que fez com que o reino se desfizesse em guerra, caos e ruínas. No salão, Merida descobre uma pedra onde estão entalhadas as figuras de quatro irmãos, porém um deles foi dividido, da mesma forma como a garota fez com a mãe na tapeçaria. A princesa percebe, então, que foi a essa história que a bruxa se referiu quando disse que o feitiço já havia acontecido antes: o irmão que se separou da família para seguir seu próprio destino se tornou Mor’du. O urso, que vive nas ruínas, ataca Merida. A menina escapa com a ajuda de sua mãe. Merida compreende que, se não remendar a tapeçaria, Elinor se tornará um urso de verdade como Mor’du. Elas voltam ao castelo de DunBroch, onde Fergus e os lordes estão brigando e prestes a iniciar uma guerra. Para distrair os homens enquanto Elinor sobe as escadas sem ser vista, Merida faz um discurso sobre as lendas relacionadas ao reino e a importância de manter as alianças. A menina admite que foi egoísta e suas atitudes criaram uma rachadura que precisava ser reparada para restaurar a união do reino. Com a ajuda de sua mãe – que se esconde atrás dos lordes e se comunica com Merida por meio da linguagem de sinais –, a princesa diz que decidiu fazer o que é certo e quebrar a tradição, citando a importância de todos serem livres para contarem sua própria história, seguindo seus corações e encontrando o amor no tempo certo. Os jovens lordes aprovam a chance de escolherem seu próprio destino, e fica decidido que deveriam conquistar 83 o coração da princesa antes de terem sua mão em casamento. Todos seguem para uma comemoração enquanto Merida e Elinor sobem para o quarto da tapeçaria. Elinor e Merida procuram linha e agulha para remendar o tecido, mas Fergus as encontra e ataca a rainha transformada em urso, acreditando que o animal assassinou sua esposa. Merida tenta convencê-lo de que o urso é sua mãe, porém ele não acredita e tranca a garota no quarto para protegê-la. O rei se reúne com os lordes para capturar o urso, enquanto a princesa tenta fugir do quarto para salvar sua mãe. A menina descobre que seus irmãos também se transformaram em ursos, após comerem o resto do doce enfeitiçado. Eles a ajudam a sair do quarto, assustando a babá Maudie, a quem Fergus confiou a chave. Merida e os irmãos cavalgam até o local onde Fergus e os lordes amarraram Elinor, enquanto a garota costura a tapeçaria. A princesa luta com seu próprio pai para impedir que a mãe seja morta. Mor’du aparece e ataca todos. Ao atacar Merida, Elinor se solta das cordas para proteger a filha e o mata, derrubando uma rocha em cima do urso. O espírito sai do corpo de Mor’du, mostrando sua figura humana, de quando ele ainda era um príncipe. Ele faz uma reverência para Merida e voa para longe, como uma luz mágica. Ao ver que está amanhecendo, Merida se apressa para colocar a tapeçaria costurada em cima de Elinor, porém a rainha não retorna à forma humana. A garota chora e abraça a mãe, pedindo desculpas pelo que fez e implorando para tê-la de volta. Quando o sol nasce completamente, Elinor volta a ser humana. Todos comemoram, os lordes se despedem e retornam às suas terras. Merida e a mãe cavalgam juntas pela Escócia. 5.1 AMOR Valente apresenta elementos comuns aos contos de fadas que deram origem aos outros filmes de princesas da Disney, como a tradicional realeza europeia e o encantamento, mas se afasta da ideia clássica ao negligenciar a presença do amor romântico com o casamento no final, comumente associados a essas histórias. O foco principal do longa-metragem é a relação entre Merida e sua mãe, a rainha Elinor. No livro Morfologia do conto maravilhoso (1984, p. 73), Vladimir Propp cita as esferas de ação que geralmente estão relacionadas aos personagens nos contos de 84 fadas, e indica o casamento como parte da esfera das princesas. A união está presente na própria definição que o autor dá para os contos de magia, como uma das principais maneiras como essas narrativas se encerram: Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a) e passando por funções intermediárias, termina com o casamento (Wº) ou outras funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a recompensa (F), a obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da perseguição (Rs), etc (PROPP, 1984, p. 85). Em Valente, vemos a história começar a partir de um dano e se encerrar com sua reparação. Quando Propp enumera as funções dos personagens nos contos de fadas (1984, p. 58) de acordo com a ordem em que normalmente acontecem, a ideia do casamento aparece novamente, como a 31ª, a última função: “O herói se casa e sobe ao trono”. A história de Valente busca romper com as construções da necessidade do casamento e a propagação dos costumes sem que houvesse qualquer questionamento da tradição. É também o primeiro filme de princesa da Disney cuja protagonista não possui um interesse amoroso. Desde o início do longa-metragem, Merida fala sobre a ideia de destino: “Dizem que o nosso destino está ligado à nossa terra, que ele é parte de nós assim como nós somos dela. Outros dizem que o destino é costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga à de muitos outros. É a única coisa que buscamos, ou que lutamos para mudar. Alguns nunca encontram o destino, mas outros são levados a ele”. O destino traçado para Merida é casar com um nobre e governar o reino de seus pais, mas a garota não está disposta a aceitar sua sina e busca uma maneira de alterá-la. O casamento é o destino que a sociedade tradicionalmente propõe às mulheres. Nas comunidades ocidentais antigas, era comum que as mulheres fossem oferecidas em casamento para perpetuar alianças entre clãs. Esse sistema cultural no qual os casamentos são realizados entre pessoas de grupos diferentes chama-se exogamia. No livro O segundo sexo: fatos e mitos (1970, p. 95), Simone de Beauvoir aponta que era socialmente útil que a mulher fizesse parte das prestações mediante as quais cada clã estabelecia uma relação de reciprocidade com o outro, ao invés de se fechar sobre si mesmo ao ceder a mulher a um de seus próprios homens. Essa ideia está ligada ao tabu do incesto que, ao proibir que sejam realizadas uniões 85 entre pessoas do mesmo grupo, obriga a troca entre os clãs. O casamento exógamo traz um benefício social que o casamento sanguíneo não permite, além de fazer com que as mulheres sejam usadas como instrumentos de comunicação. A autora (1970, p. 95) cita Lévi-Strauss que, em As estruturas elementares do parentesco, diz que “[...] o lado de reciprocidade que estabelece o casamento não se firma entre homens e mulheres, e sim entre homens através de mulheres que são apenas a principal oportunidade”. Para Beauvoir (1970, p. 92), essa prática fez com que as mulheres se encontrassem sempre sob a tutela dos homens, “[...] a única questão consiste em saber se após o casamento ela fica sujeita à autoridade do pai [...] ou se ela se submete, a partir de então, à autoridade do marido”. Em todos os casos, segundo Lévi-Strauss (apud Beauvoir, p. 92), a mulher é “apenas o símbolo de sua linhagem” e, para a autora, “a mediadora do direito, não a detentora”. Beauvoir (1970, p. 102) comenta, ainda, que o destino da mulher permaneceu ligado à propriedade privada durante séculos, e sua história está bastante relacionada com a da herança. Segundo a autora, os proprietários tendem a se apegar mais à propriedade que à própria vida, o que ultrapassa os limites da vida temporal: “[...] essa sobrevivência só se realiza se a propriedade continua nas mãos do proprietário: ela só pode ser sua além da morte, se pertencer a indivíduos em quem se prolongue e se reconheça, que são seus”. Nesse sentido, era essencial um casamento que gerasse herdeiros para garantirem uma continuidade na posse das terras. Pelo casamento, a mulher não é mais emprestada por um clã a outro; ela é radicalmente tirada do grupo em que nasceu e anexada ao do esposo; êle compra-a como compra uma rês ou um escravo e impõe-lhe as divindades domésticas; e os filhos que ela engendra pertencem à família do esposo. Se ela fosse herdeira, transmitiria as riquezas da família paterna à do marido: excluem-na cuidadosamente da sucessão. Mas, inversamente, pelo fato de nada possuir, a mulher não é elevada à dignidade de pessoa; ela própria faz parte do patrimônio do homem, primeiramente do pai e em seguida do marido (BEAUVOIR, 1970, p. 103). Quando Elinor informa Merida de que cada clã apresentará um pretendente para competir por sua mão em casamento, diz que foi para isso que a menina se preparou durante toda a vida, ao que Merida retruca: “Não, foi para isso que você me preparou toda a minha vida. Eu não vou aceitar isso. Não pode me obrigar!” (Figura 39). A garota foi educada para o casamento e a realeza, e não tendo em vista um desenvolvimento pessoal. 86 Elinor, com as raízes fincadas na tradição, não entende por que é tão difícil para a filha aceitar a ideia do casamento: “É um casamento, não é o fim do mundo”. Para Merida, este é o fim da vida que ela deseja: “Não é justo!”. Como, nas sociedades antigas, ao casar, a tutela da mulher passava de seu pai para o marido, Merida tem motivos para acreditar que o casamento a afastaria ainda mais da tão almejada liberdade. Figura 39 – Merida diz que a mãe não pode obrigá-la a se casar Em certo momento do filme, o próprio rei Fergus imita Merida para Elinor, dizendo com uma voz estridente: “Eu não quero me casar, eu quero ficar solteira e deixar meus cabelos soltos ao vento enquanto cavalgo no vale, disparando flechas ao pôr do sol” (Figura 40). Com a imitação, o pai da garota ressalta a opinião irredutível da personagem a respeito do assunto e faz, também, uma espécie de piada com o novo padrão feminino que suas atitudes propõem. 87 Figura 40 – O rei Fergus imita Merida quanto aos seus desejos de liberdade, e não por um casamento A cena seguinte mostra Merida e Elinor em locais diferentes, cada uma simulando uma conversa com a outra. Elinor está no castelo e fala com Fergus como se ele fosse Merida (Figura 41), enquanto a menina se encontra no estábulo e conversa com o seu cavalo, Angus, como se este fosse sua mãe (Figura 42). Elinor: “Merida, todo esse trabalho, todo esse tempo gasto, preparando você, ensinando você, dando a você tudo o que nós nunca tivemos... Eu preciso saber: o que é que você espera de nós?”. Merida: “Cancelem essa reunião, ué! Iria matá-los? Você é a rainha, pode dizer aos lordes que a princesa não está pronta para isso. Na verdade, ela pode não estar pronta nunca, então é isso, bom dia para vocês, esperamos as suas declarações de guerra ao amanhecer”. Elinor: “Eu entendo que tudo isso pareça injusto. Eu mesma tinha reservas quanto ao meu noivado, mas não podemos fugir do que somos, filha”. Merida: “Eu não quero que a minha vida acabe. Quero minha liberdade”. Elinor: “Mas você estaria disposta a pagar o preço que a sua liberdade custaria?”. Merida: “Eu não estou fazendo isso para magoar você”. Elinor: “Merida, se tentasse ver o que eu faço. Eu faço tudo por amor”. Merida: “Mas é a minha vida e... Eu não tô pronta”. Elinor: “Acho que entenderá se você...”. Merida: “Acho que eu posso fazer você entender, é só você...”. Elinor e Merida: “...escutar”. Merida: “Eu juro, Angus, isso não vai acontecer comigo. Não se eu puder impedir”. A partir desse diálogo, Elinor ressalta a preparação de Merida para o casamento e a importância disso para os seus pais e o reino. Ao dizer que ela própria tinha reservas quanto ao seu noivado e que “não podemos fugir do que somos”, reforça-se a ideia do destino e da tradição que deve continuar. A garota, por sua vez, explica que não está pronta para o casamento, e na verdade talvez nunca 88 esteja. Ainda assim, ambas acreditam que estão certas e são capazes de convencer uma à outra com uma conversa. Figura 41 – No interior do castelo, Elinor simula uma conversa com Merida Figura 42 – Merida está no estábulo e simula uma conversa com a mãe De acordo com as leis do reino de DunBroch, o primogênito de cada um dos grandes líderes pode ser apresentado como campeão e competir pela mão da princesa, provando seu valor por meio da força nos jogos. Além de ter sua mão oferecida em casamento para perpetuar a tradição da aliança entre os clãs, a mulher é disputada como um prêmio. Merida percebe na própria lei uma chance de se livrar da obrigação do casamento, pois também é primogênita, então deve poder lutar por sua própria mão. Como a escolha da prova deveria ser determinada pela princesa, ela decide pelo 89 arco e flecha, pois é uma habilidosa arqueira e tem grandes chances de vencer. Ao se apresentar para o torneio, ela fala: “Eu sou Merida, primogênita descendente do clã de DunBroch, e pela minha própria mão eu vou lutar” (Figura 43). A garota acerta os três alvos, vencendo os outros competidores (Figura 44). Ao competir por si mesma, Merida busca assumir o controle sobre seu próprio destino. Os arcos também são considerados pela cultura como símbolos do destino, com as flechas representando as metas a serem alcançadas, pois apontam os caminhos. Figura 43 – Merida decide competir por sua própria mão Figura 44 – Merida vence o torneio, acertando os três alvos A atitude de Merida gera um incidente diplomático do reino de DunBroch com os outros clãs, cujos lordes ainda consideram que a menina deve escolher um de 90 seus primogênitos para se casar, assim como diz a tradição. Em seu discurso para restaurar as alianças no reino, Merida diz (Figura 45): “Decidi fazer o que é certo e quebrar a tradição. Minha mãe, a rainha, sente, em seu coração, que nós estamos livres para escrever nossa própria história, seguindo nossos corações e encontrando o amor no tempo certo”. Na fala da princesa, podemos perceber que continua a existir uma ideia romântica. O casamento estaria associado ao amor. Merida apoia que o casamento não seja imposto, mas, ao defender o direito à liberdade sentimental, ainda acredita que o amor deve ser encontrado. Além disso, considera haver um “tempo certo”, o que conota a esse sentimento um aspecto mágico e idealizado. Figura 45 – Merida discursa sobre o rompimento da tradição para que cada jovem decida sobre o próprio destino É interessante pensar sobre a representação dos três jovens lordes, completamente diferentes da maneira como os príncipes geralmente são mostrados nos filmes da Disney. Os pretendentes de Merida não correspondem ao imaginário tradicional de beleza ou de comportamento. Ao apresentarem seus descendentes, os lordes Macintosh, MacGuffin e Dingwall destacam as qualidades de seus filhos. Macintosh afirma que seu filho defendeu as terras dos invasores do Norte e derrotou mil inimigos com sua própria espada (Figura 46). MacGuffin diz que seu primogênito afundou os navios vikings e, com suas próprias mãos, aniquilou dois mil inimigos (Figura 47). Dingwall, por sua vez, apresenta o filho único que, segundo ele, foi cercado por dez mil romanos e derrotou uma armada inteira sozinho, direcionando o navio com uma mão e 91 empunhando a espada com a outra, derrotando, assim, a esquadra invasora (Figura 48). São marcadas, portanto, na fala dos pais, a força física e as supostas conquistas territoriais dos jovens, porém a impressão que eles passam é de que se trata de mentiras com o objetivo de causar admiração e se sobressaírem em relação aos demais. Além de não estarem no padrão de beleza, os pretendentes mostram-se desajeitados, atrapalhados e imaturos. Talvez, se algum deles se encaixasse na ideia de príncipe encantado, a posição de Merida contra o casamento tivesse sido diferente. É como se a imagem que passam reforçasse que os rapazes não servem para o casamento e que, para uma mulher que controla o seu destino, homens com baixo nível intelectual não estão na lista de possíveis maridos. Figura 46 – O jovem Macintosh é apresentado, juntamente com sua espada Figura 47 – Ao ser apresentado, o jovem MacGuffin quebra um pedaço de madeira para mostrar sua força 92 Figura 48 – O lorde Dingwall apresenta o seu filho como o terceiro pretendente de Merida No final do filme, quanto os clãs se preparam para ir embora de DunBroch, é possível ver Elinor, Merida e os três jovens lordes se despedindo. Dingwall beija o braço da princesa, enquanto ela tenta se afastar (Figura 49). É o mesmo rapaz que acidentalmente havia vencido o torneio de arco e flecha antes da garota entrar na disputa por si própria. Ao exibir novamente a interação entre os jovens, o filme mostra que ainda existe um interesse e não é impossível que, no futuro, Merida escolha algum deles para ser seu marido. Figura 49 – O jovem Dingwall se despede de Merida Outra questão de destaque é a relação entre o rei Fergus e a rainha Elinor, que exibe uma forma moderna de relacionamento. Não parece haver uma relação 93 de poder entre marido e mulher, mas de felicidade, amor e carinho, com as individualidades de cada um devidamente respeitadas. O peso que cada gênero assume na relação representa o que seria o casamento ideal. No artigo “Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações” (2002)7, Maria de Fátima Araújo fala que o tipo de união onde o amor atua como fundamento do casamento é uma invenção moderna que surgiu com a ordem burguesa a partir do século XVIII, período em que a sexualidade passou a ocupar lugar importante na união conjugal. De acordo com a autora, antes disso a consensualidade, a escolha e a paixão amorosa apenas eram vivenciadas nas relações de adultério, enquanto a sexualidade tinha a reprodução como função específica, pois a procriação era parte da aliança firmada entre os clãs. Conforme Araújo, com a ideologia burguesa, o amor individual passou a ser valorizado, e a paixão e o erotismo a predominarem na relação conjugal: “Esse novo ideal de casamento impõe aos esposos que se amem ou que pareçam se amar e que tenham expectativas a respeito do amor e da felicidade no matrimônio”. A autora cita Mcfarlane (1990), que “[...] denominou de casamento malthusiano o modelo de união conjugal que tem como premissas básicas o afeto, a amizade e o companheirismo”. Além disso, nesse tipo de casamento a procriação não seria o objetivo principal. Esse modelo foi proposto pelo clérigo inglês Malthus no século XVIII e, segundo Araújo, as mudanças sugeriam uma relação de mais igualdade entre os homens e mulheres, quando até aquele momento prevalecia a dominação masculina na maior parte das sociedades: “O casamento se tornava um refúgio dentro de um mundo competitivo e individualista”. É uma relação como essa que vemos entre Elinor e Fergus: parece existir afeto, companheirismo, amizade e igualdade entre os parceiros. O relacionamento dos pais de Merida também simboliza uma espécie de “futuro” para a princesa. Elinor não é passiva, é inteligente e controladora, reivindica seu espaço. Fergus às vezes acaba sendo subordinado ao que a rainha deseja. Se o destino de Merida acontecesse como ditado pela tradição e ela se casasse com um dos lordes que lhe foram pretendidos, provavelmente entraria em uma relação semelhante nesse sentido. 7 Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932002000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 11 novembro 2013. 94 5.2 BELEZA Merida pode ser descrita8 como uma garota magra e de estatura média. Sua pele é branca, com sardas, e os olhos são azuis como os de seu pai. O aspecto mais marcante na aparência da personagem, no entanto, são seus longos e indomáveis cabelos ruivos encaracolados. A rainha Elinor, por sua vez, é alta e esguia, com o corpo de uma mulher madura, possui a pele branca e os olhos castanhos. Seus cabelos são igualmente escuros, além de longos. Ambas as personagens se encaixam no padrão de beleza ocidental contemporâneo. Antes de ser apresentada aos pretendentes, Elinor arruma Merida, preparando-a para ser exibida aos olhares masculinos. Um espartilho é colocado na garota, apertando sua cintura (Figura 50). Seus longos e indomesticáveis cabelos são penteados (Figura 51) e presos por um capuz branco (Figura 52), sem deixar nenhuma mecha aparente. Contrariando sua mãe, Merida até tenta soltar uma pequena parte do cabelo, mas Elinor logo se apressa em escondê-la novamente. O cabelo de Merida é uma representação gráfica da vitalidade da personagem, desregrado e ruivo, simbolizando sua paixão interior. O uso da cor branca no capuz pode representar a tentativa de conter os instintos da personagem. Para a cultura ocidental, o branco está relacionado à pureza, paz, ordem e calma. Ao ser colocado sobre a cabeça de Merida, é como se domesticasse seus pensamentos, sua personalidade que tem extensão no cabelo. Ao terminar de arrumar a filha, Elinor a descreve como “absolutamente linda”. Merida diz que não consegue respirar, o vestido está apertado e não consegue nem mesmo se mexer, mas para Elinor “está perfeito” (Figura 53). A princesa é preparada para ser exibida e ter sua beleza aprovada pelos homens. Essa beleza é, contudo, comportada, representando um aprisionamento da real natureza 8 livre da Merida passou a fazer parte da franquia Disney Princesas no ano de 2013 e a imagem da personagem passou por algumas mudanças. No redesenho, ela ficou mais magra e, sua roupa, diferente: o vestido se tornou mais brilhante e com mangas mais baixas, e o cinto passou a exibir o padrão representativo do clã DunBroch. O cabelo da personagem também foi alterado, com cachos mais definidos e menos desgrenhados como vistos no filme, e sua pele parece estar coberta por maquiagem. A imagem não foi bem recebida pelo público, que realizou uma petição online recolhendo assinaturas para evitar as mudanças no desenho de Merida, pois consideraram que a nova imagem sexualizou a personagem e transmitia às garotas a ideia de que a versão realista de Merida era inferior. De acordo com a Disney, não havia razões para tamanha polêmica, visto que este novo modelo da personagem seria usado apenas para uma linha limitada de produtos. 95 personagem. Merida não consegue ter nada espontâneo, está amordaçada e pronta para a exibição. A preparação de Merida para a exibição e aprovação do vislumbre masculino pode ser vinculada às ideias de Laura Mulvey (1975), pois Elinor busca torná-la um espetáculo para uma contemplação que pode ser considerada erótica. A beleza de Merida será oferecida para o deleite visual não somente dos personagens masculinos da narrativa, mas também do espectador, ao ser colocada na condição feminina que Mulvey definiu como “para-ser-olhada”. A mãe prepara a garota para que seja admirada, mas Merida não se sente bonita, e sim aprisionada. Os jovens pretendentes de Merida não são belos (ver novamente as figuras 46, 47 e 48), porém a princesa deve estar perfeitamente arrumada para eles. Como afirmou Wolf (1992, p. 15), encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, mas não para os homens. Estes, por sua vez, devem lutar para possuir as mulheres belas. Figura 50 – Elinor veste Merida com um apertado espartilho 96 Figura 51 – Elinor penteia os indomáveis cabelos de Merida Figura 52 – Elinor esconde os cabelos de Merida, ao colocar na filha um capuz que os cobre por completo Figura 53 – Merida não consegue respirar com a roupa, mas, para sua mãe, ela está perfeita 97 Quando Merida se apresenta para competir por si própria na disputa de arco e flecha, já não está com o capuz branco que cobria seus cabelos, porém a roupa apertada a impede de se movimentar adequadamente. Reclamando sobre o “vestido inútil”, ela se movimenta de modo que a roupa se rasga (Figuras 54 e 55). Apesar de a aparência de Merida poder ser considerada bonita, seu comportamento não apresenta as qualidades tradicionalmente desejáveis para uma mulher. Diferentemente de Branca de Neve que, além de naturalmente bonita, era dócil, obediente e passiva, entre outras características que correspondem ao arquétipo do feminino, Merida é rebelde e voluntariosa. Figura 54 – O vestido de Merida se rasga, exibindo o espartilho Figura 55 – As costuras do vestido de Merida também se abrem 98 Elinor, por sua vez, continua vaidosa e se recusa a abandonar sua delicadeza mesmo após ser transformada em urso. A rainha continua andando sobre dois pés, e reluta em deixar de usar sua coroa de rainha, tendo dificuldade, também, para aceitar andar sem roupas, ainda que seu corpo esteja coberto por pelos (Figura 56). É possível inferir que existe uma simbologia no fato de Elinor, seguidora dos padrões delicados esperados do comportamento feminino, se transformar justamente em um animal selvagem como um urso. É a partir deste encontro com o selvagem dentro de si que acontecem as transformações internas da personagem, que se torna mais livre. Figura 56 – Ainda que esteja transformada em urso, Elinor escolhe um vestido para se cobrir No início do filme, e durante a maior parte do tempo em que a personagem está em sua forma humana, os longos cabelos de Elinor estão presos por uma fita dourada (Figura 57). Nas cenas finais, contudo, seus cabelos estão soltos (Figura 58). A rainha também já não se importa em ficar sem a coroa. Essa mudança externa simboliza as suas modificações interiores. Após todos os acontecimentos, além de entender melhor o ponto de vista da filha, Elinor também demonstra ter se libertado um pouco das amarras dos costumes sociais. 99 Figura 57 – Os cabelos de Elinor estão presos durante a maior parte do filme Figura 58 – Nas cenas finais, o cabelo de Elinor está solto 5.3 FIGURINO Diversas roupas são usadas pelas personagens ao longo de Valente. No início do filme, a pequena Merida usa um vestido e sapatos marrons. Nesse momento, Elinor está com um vestido púrpura de mangas longas. Como visto anteriormente, o púrpura é uma das cores mais preciosas, conotando riqueza. Na cabeça da rainha, há uma coroa de ouro com uma esmeralda no meio e uma ametista de cada lado. Em seu pescoço, um colar com um pingente redondo (Figura 59). Os ornamentos com pedras valiosas exibem a posição da personagem como rainha. 100 Já adolescente, na maior parte do filme Merida usa um vestido verde escuro (Figura 60). A roupa é simples e não muito justa no corpo da princesa, permitindo que ela se movimente livremente e faça suas atividades. Para a competição na qual os pretendentes dos clãs aliados disputam a mão de Merida em casamento, a princesa foi arrumada por sua mãe com o apertado espartilho e o vestido azul claro, que apresenta detalhes dourados na gola e na parte de baixo da saia (ver novamente figura 53). Há também um cinto dourado. A cor dourada lembra o ouro, e funciona como representação de nobreza. O azul, principalmente em tons claros, representa tranquilidade. Durante a maior parte do tempo em que está em sua forma humana, Elinor usa uma roupa formal. Seu vestido9 é verde-esmeralda com detalhes brilhantes e possui mangas longas. Ela também usa um cinto com correntes douradas e, novamente, a coroa de rainha (Figura 61). Nas cenas finais de Valente, Merida usa um vestido preto. A roupa de Merida é de um modelo bastante semelhante ao vestido verde escuro que utilizou durante o resto do longa-metragem, com a única diferença da cor. O preto é uma cor comumente associada aos vilões, e a mocinha usar um vestido de cor preta é algo raramente visto no cinema, principalmente se tratando de uma princesa. Esse uso representa mais uma quebra de padrões realizada pelo filme. O último traje de Elinor é um vestido azul escuro (Figura 62). A cor azul evoca tranquilidade e harmonia, portanto seu uso nas vestes da rainha também mostra uma Elinor modificada, mais calma. Os detalhes em dourado continuam a aparecer em sua roupa, lembrando a realeza da personagem. 9 As vestes de Elinor foram claramente inspiradas na pintura Ellen Terry as Lady Macbeth (1889), de John Singer Sargent. 101 Figura 59 – No início do filme, Merida usa um vestidinho marrom, enquanto o de Elinor é em tom de púrpura Figura 60 – Na maior parte do filme, Merida usa um vestido verde escuro Figura 61 – Elinor usa um vestido verde com detalhes dourados 102 Figura 62 – Nas cenas finais do filme, Merida usa um vestido preto, enquanto o de Elinor é azul Em contraste com os trajes utilizados pelas personagens femininas, é interessante pensar também sobre as roupas dos homens. Todos usam típicos saiotes masculinos escoceses, chamados kilts, uma parafernália nacionalista característica (Figura 63). De acordo com Hugh Trevor-Roper (2012, p. 27), o kilt é “[...] feito de um tecido de lã axadrezado (tartan) cuja cor e padrão indicam o ‘clã’ a que pertencem”. Na cena em que os lordes representantes dos três clãs são apresentados, é possível ver que a roupa de cada grupo segue um determinado padrão. Segundo o autor, o kilt é um traje que foi desenvolvido depois da união da Escócia com a Inglaterra, como forma de protesto. Figura 63 – Todos os personagens masculinos de Valente usam kilts, uma parafernália nacionalista escocesa 103 5.4 A MULHER COMO MULHER Em Valente, existem quatro personagens mulheres: a princesa Merida, a rainha Elinor, a bruxa, e Maudie, a babá dos trigêmeos. Entre as figuras masculinas, existem pelo menos onze em papéis relevantes: o rei Fergus; os três irmãos de Merida, Harris, Hubert e Hamish; o lorde Dingwall, o lorde MacGuffin e o lorde Macintosh, cada um com seu filho; além do urso Mor’du. Há mais mulheres que em Branca de Neve e os Sete Anões, porém continuam sendo menos que os homens. Neste caso, a relação acaba sendo muito inferior proporcionalmente. Merida possui uma personalidade independente, forte, destemida, corajosa, e é desobediente e indomável, como mostrado por sua própria representação gráfica e por sua qualidade que dá nome ao filme: Valente. De acordo com o Dicionário Michaelis Online, a palavra significa “que tem valor”, “corajoso, denodado, intrépido”. A princesa deseja a liberdade e não se sujeita às normas com docilidade. Está determinada a fazer suas próprias escolhas e ser a protagonista de sua vida, trilhando o destino. Elinor, por sua vez, é séria, autoritária, diplomática, elegante, polida e perfeccionista. É a perfeita rainha, seguidora de normas sociais e da tradição. Elinor treina a filha para se tornar uma boa rainha: ensina-a a projetar e articular as palavras de modo que seja compreendida de qualquer lugar do salão real, afirma a necessidade de aprender a história do seu reino (Figura 64), ensina Merida a tocar harpa (Figura 65), diz que não pode encher a boca para comer (Figura 66), incentiva-a acordar cedo (Figura 67), afirma que sorrir é fundamental e que uma princesa deve ter compaixão, ser paciente, cautelosa, asseada e, acima de tudo, buscar a perfeição. Além disso, não deve levantar a voz, fazer desenhos ou gargalhar. O treinamento da futura rainha busca torná-la apta para o desempenho das funções reais como sucessora10 do trono de seus pais. As normas enumeradas por Elinor também estão relacionadas ao comportamento que a sociedade espera das mulheres, ao arquétipo da feminilidade, com bondade, simpatia e, principalmente, delicadeza. A própria escolha da harpa como instrumento lembra a suavidade 10 Outro produto cultural recente bastante popular que fala a respeito do treinamento da princesa adolescente para a sucessão real é a série de livros O Diário da Princesa, de Meg Cabot, que foi adaptada para o cinema em filme homônimo de 2001. 104 comumente associada ao feminino, além de ser um dos instrumentos tradicionais da Grã-Bretanha. Figura 64 – Elinor diz a Merida que uma princesa deve conhecer a história de seu reino Figura 65 - Elinor ensina Merida a tocar harpa Figura 66 – Elinor repreende Merida, pois uma princesa não deve encher a boca para comer 105 Figura 67 – Elinor desperta Merida, pois uma princesa deve levantar cedo Ao descrever seus irmãos, no entanto, Merida diz que eles podem fazer qualquer coisa, enquanto ela nunca pode fazer nada, visto que é a princesa e deve ser um exemplo: “Tenho deveres, responsabilidades, expectativas. Minha vida inteira foi planejada, me preparando para o dia em que me tornarei... Bom, minha mãe. Ela manda em cada dia da minha vida”. Enquanto da mulher é exigido que siga um ideal de comportamento, aos homens cabe uma maior liberdade. Beauvoir (1970, p. 177) aponta que a mulher “[...] precisa de um esforço moral maior que o do homem para escolher o caminho da independência”. Merida comemora que, de vez em quando, há um dia em que não precisa ser uma princesa: “Nada de lições nem expectativas, um dia onde qualquer coisa pode acontecer, um dia em que posso mudar o meu destino”, ela diz. A garota, então, cavalga com seu cavalo Angus, treinando suas habilidades como arqueira, disparando flechas em alvos ao longo do caminho (Figura 68). Ela sobe até o topo da montanha Dente de Crânio, onde bebe a água da Cascata de Fogo (Figura 69). O desejo de Merida por liberdade está marcado na canção “O céu eu vou tocar”, trilha sonora para as cenas citadas, cuja letra diz: “Ventos frios me chamando Vejo o céu azul brilhar As montanhas sussurrando Que para a luz vão me levar Vou correr Vou voar E o céu eu vou tocar 106 Onde os bosques têm segredos E as montanhas imensidão Águas guardam os reflexos Dos tempos que se vão Vou gostar de cada história Meu sonho guardarei Como o mar e a tempestade Valente sempre serei” O desejo por liberdade e o gosto pelas aventuras, no entanto, são incompatíveis com as expectativas que recaem sobre Merida. Figura 68 – Merida dispara flechas enquanto cavalga Figura 69 – A garota sobe ao topo da montanha Dente de Crânio Desde pequena, Merida sempre se interessou por armas. Ainda criança, em seu aniversário, vemos a menininha pedir ao pai para disparar uma flecha. O rei dá de presente à filha um pequeno arco, sobre o qual a rainha Elinor imediatamente 107 reclama: “Um arco, Fergus? Ela é uma dama!”. O comportamento do rei é incongruente com o de um pai para com a filha princesa, mas faz parte do novo ideal de casamento e amor, em que o pai também faz parte da educação dos filhos. Merida cresce e a mãe continua a reprovar seu hobby. Em outro momento do filme, vemos Elinor dizer: “Uma princesa não coloca suas armas sobre a mesa. Uma princesa nem deve possuir armas, na minha opinião”. Além do arco e flecha, Merida também sabe manejar perfeitamente uma espada, chegando a lutar com seu pai no final do filme enquanto protege a mãe (Figura 70). O uso das armas simboliza uma vontade de ser independente e ter o controle sobre a própria vida, além de aproximá-la da posição de igualdade com os homens. Merida tem predileção, ainda, por outras atividades tradicionalmente de domínio masculino, como a cavalgada (ver novamente figura 68) e o alpinismo (rever figura 69). Suas atividades preferidas estão todas distantes do conceito sobre como supostamente deveria ser uma dama. A forma como a personagem Merida foi criada contribui para o rompimento de estereótipos a respeito do mito da “feminilidade”, ou seja, da delicadeza feminina. No artigo “O peso da feminilidade” (2003, p. 2), Maria Rita Kehl questiona: Por que as mulheres estariam limitadas à expressão dos sentimentos delicados, da intimidade, do que é vivido em segredo? Por que os estereótipos ligados à vida doméstica continuam tão presentes nas representações sociais do que seja "próprio" das mulheres, quando há quase um século as mulheres já romperam a barreira da privacidade e vêm participando cada vez mais da vida pública? (KEHL, 2003, p. 2). A autora (2003, p. 2) acredita que existe uma inércia característica das formações culturais que “[...] faz com que continuemos nos valendo de representações estabelecidas para dar conta de fenômenos novos, até que – ‘só depois’ - uma nova expressão possa emergir”. Para Kehl, é logicamente impossível definir um conjunto fechado a respeito de um padrão de mulher, e a isso se somou a invisibilidade e o seu silêncio históricos: [...] “as mulheres, ao longo de séculos, não se fizeram representar no campo da cultura a não ser como objetos da fantasia dos homens”. De acordo com Kehl (2003, p. 2), ao longo dos séculos, de geração para geração, mulheres se calaram e delegaram aos outros a responsabilidade de falar por elas: “O que se produziu no anonimato e na opressão (consentida ou não) 108 secular das mulheres foi a ilusão de uma leveza, de uma delicadeza – típicas armas usadas pelos mais fracos para dominar seus senhores sem despertar a fúria deles”. Figura 70 – Merida também é habilidosa com espadas Apesar de tantas inovações na representação de Merida, que se difere do estereótipo de princesa, o conflito de Valente é resolvido a partir de uma atividade tipicamente feminina e relacionada à domesticação da mulher: a costura. O feitiço que transformou Elinor em urso é quebrado apenas quando Merida remenda a união das figuras da família na tapeçaria, utilizando agulha e linha. Dessa maneira, há uma espécie de reencontro da personagem com o feminino que poderia estar adormecido dentro de si. Há um claro alinhamento com a ideia de que as mulheres não precisam ser absolutamente masculinizadas para serem livres. Figura 71 – Na tapeçaria, está costurada a imagem da família 109 Apesar de sua condição de mulher, Elinor apresenta autoridade e é uma rainha respeitada por todos os personagens masculinos do filme, que valorizam sua opinião e se esforçam para agradá-la, rapidamente se desculpando quando seus comportamentos são desaprovados por ela. Por exemplo, basta que Elinor se aproxime com um olhar reprovador para que os homens parem com suas brigas irracionais. Existe, também, em Valente, uma clara representação de superioridade intelectual feminina. Os homens são mostrados de uma forma que poderia até mesmo ser considerada “acéfala”. São imaturos, irresponsáveis, impulsivos e irracionais, capazes de iniciar brigas pelos motivos mais fúteis. A função principal dos personagens é a de serem fontes de piadas e provocarem o riso no público. Nesse filme, a princesa recorre à ajuda de uma mulher, que é também uma bruxa11 (Figura 71). Diferentemente do arquétipo de bruxa, a de Valente não é má. Ela faz o feitiço pedido por Merida após a garota comprar todas as suas peças em forma de urso, e até mesmo questiona se a princesa tem certeza sobre o que está fazendo. Considerando que é comum ter mulheres em papéis de vilãs, é interessante ver, nesse filme, uma bruxa inovadora. E o vilão, neste caso, é um personagem masculino: o urso Mor’du. Figura 72 – Em Valente, a bruxa não é má 11 A imagem da bruxa de Valente se assemelha bastante à da bruxa da animação A Viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. 110 Há, ainda, outra personagem feminina no filme: Maudie, a babá dos trigêmeos Harris, Hubert e Hamish (Figura 72). Ela é uma constante vítima das traquinagens dos meninos, que a enganam para conseguir mais bolinhos. É também bastante medrosa: quando vê Elinor transformada em urso no interior do castelo, Maudie se assusta facilmente e corre, gritando em desespero. A aparência de Maudie merece ser destacada. Ela é uma mulher de estatura baixa, gorda e de seios grandes. Suas roupas são em tons marrons, e os cabelos estão completamente cobertos por um capuz da mesma cor. Como visto anteriormente, segundo Eco (2010, p. 105), nas sociedades antigas as pessoas de classes sociais mais baixas vestiam roupas com tecidos de cores pálidas e modestas, que não haviam sido tocados por tintureiros e estavam consumidos pelo uso, em tons cinzas ou marrons quase sempre sujos. Os grandes seios de Maudie participam da função narrativa: Fergus deixa a babá responsável por guardar a chave do quarto onde prendeu Merida para que a menina não seja atacada pelo urso. Ela guarda a chave entre seus seios, e um dos trigêmeos – transformado em urso – precisa pular entre eles para pegá-la (Figura 73). No fim do longa-metragem, a babá é vista sendo cortejada por um forte guerreiro do clã Dingwall (Figura 74). Figura 73 – Maudie é a babá dos trigêmeos Harris, Hubert e Hamish, vítima constante das traquinagens dos garotos 111 Figura 74 – Transformado em urso, um dos trigêmeos pula entre os seios de Maudie para pegar a chave do quarto onde Fergus prendeu Merida Figura 75 – No fim do filme, Maudie é cortejada por um guerreiro do clã Dingwall 5.5 RELAÇÃO ENTRE MÃE E FILHA Na maior parte dos filmes de princesas da Disney e em contos de fadas da tradição europeia, o amor romântico é o tema principal das histórias. Na grande maioria das narrativas infantis, também é comum a ausência da figura materna, o que acontece, inclusive, em Branca de Neve e os Sete Anões. No filme Valente, no entanto, o relacionamento entre Merida e sua mãe, a rainha Elinor, é o assunto mais relevante. Para impor sua opinião e romper a tradição, Merida precisa enfrentar os nobres, mas a principal barreira é sua própria mãe, que sempre tentou moldá-la, afirmando querer apenas o melhor para a filha e fazer tudo por amor. A garota 112 assegura, com todas as letras, não querer reproduzir o modelo de sua mãe: “Nunca serei como você. Eu prefiro morrer do que ser como você”. Elinor não entende o motivo para tanta contestação. É comum que, em determinado momento da vida, aconteça um rompimento natural entre mães e filhas. A adolescência é um período particularmente difícil a esse relacionamento, o que é utilizado como temática para o conflito principal de Valente. Por não parecer possível um entendimento com a mãe, Merida foge do castelo e busca uma maneira de mudar Elinor. A mudança acaba sendo ao pé-daletra, em uma alteração física, e a rainha se transforma em urso. O novo objetivo de Merida passa a ser ter sua mãe de volta à forma humana. De acordo com Jung (2004, p. 19), o arquétipo da mãe está relacionado ao complexo materno, que acontece tanto nos filhos quantos nas filhas, porém se manifesta de maneiras diferentes para cada um. O autor definiu quatro variáveis do complexo materno nas mulheres, e uma delas é chamada de “resistência à mãe”. Esta é, segundo o autor (2004, p. 26), a forma suprema do complexo materno negativo. Nesse caso, existe uma defesa da filha com relação à supremacia materna, que é vista como um exemplo daquilo que não deve ser seguido. Conforme Jung (2004, p. 27), esse tipo de filha sabe o que não deseja, mas tem dificuldade em saber o que escolheria como seu próprio destino. Os instintos estão tão fortemente concentrados na mãe em uma forma negativa de resistência que não há atitude para construir uma vida própria. Segundo o autor, este complexo pode se manifestar sob a forma de violenta repulsa ou completa indiferença a tudo o que está relacionado à família e convenções. Para o autor, esse complexo também pode vir acompanhado do surgimento de traços masculinos. É um arquétipo que pode facilmente ser associado ao relacionamento entre Merida e Elinor. Ao longo do filme, mãe e filha são levadas a passar mais tempo juntas, o que faz com que se conheçam melhor e tentem entender uma à outra. Há um amadurecimento de ambas as partes. Ao fim do longa-metragem, cada uma tem a oportunidade de proteger a outra. Fergus e os outros nobres atacam Elinor transformada em urso, mas Merida enfrenta o próprio pai para proteger sua mãe. Em seguida, quando a menina é atacada por Mor’du, Elinor se solta das cordas nas quais foi amarrada, defende a filha, e é inclusive a responsável por matar o urso gigante. 113 Figura 76 – O conflito principal de Valente é a relação problemática entre mãe e filha Figura 77 – Elinor e Merida amadurecem ao longo do filme, e se entendem no final É possível perceber também que, enquanto a rainha busca refrear os desejos de liberdade de Merida, o rei Fergus incentiva a menina e permite que ela tenha um comportamento considerado tipicamente masculino. É, afinal, ele quem lhe dá o arco, quando ela ainda é uma criança. A proximidade com relação ao pai está representada na própria imagem dos personagens, pois os traços físicos de Merida são semelhantes aos do rei, e não aos de sua mãe. Fergus, como a filha, possui cabelos ruivos e olhos azuis. Há, em determinado momento, uma cena em que a família está na mesa de jantar, e Merida chega com seu arco. Elinor imediatamente reclama quanto à garota ter colocado o objeto sobre a mesa e diz que uma princesa nem mesmo deveria ter 114 armas, mas o pai defende: “Deixa ela. Princesa ou não, aprender a lutar é essencial”. A menina tenta chamar a atenção da mãe e conta suas aventuras: “Mãe, sabe o que eu fiz hoje? Escalei o Dente de Crânio e bebi da Cascata de Fogo” (Figura 77). Os irmãos da garota ficam impressionados e Fergus a encoraja: “Cascata de fogo? Dizem que apenas os reis antigos eram valentes o suficiente para beber da cascata”. Elinor, no entanto, está ocupada lendo cartas e nem mesmo escuta o que a filha tem a dizer: “O que você fez, filha?”. Merida, desanimada, responde que não foi nada. Logo em seguida, Elinor questiona o tamanho do prato da garota, mas Fergus apenas fala: “E daí?”. De acordo com Marina Warner, no livro Da Fera à Loira (1999, p. 240), nos contos de fadas da tradição europeia as figuras paternas tendiam a ser absolvidas de responsabilidade. De fato, em Valente é Elinor quem se mostra mais responsável pela criação de Merida. O filme traz, portanto, novas representações também na configuração familiar, mas mantém alguns traços dos pais típicos dos contos. Figura 78 – Fergus encoraja as aventuras de Merida 115 CONCLUSÃO As definições mais comuns a respeito das representações sociais apontamnas como construções compartilhadas pelo senso comum e reforçadas pela tradição. A representação social da mulher se insere nesse contexto, e é reforçada por intermédio dos meios de comunicação de massa, entre eles o cinema. As animações também participam desse processo, e ao longo do tempo os filmes de princesas da Disney têm exercido papel significativo na construção de estereótipos acerca das figuras femininas. Essas personagens são alguns dos principais modelos para o público receptor infantil ocidental. As representações sociais criam convenções, localizando as pessoas em modelos determinados e, quando alguém não se adequa, tende a ser incompreendido e difícil de ser decodificado. É importante questionar os padrões propagados e refletir a respeito das diversas questões que os envolvem, o que nos ajuda a desvendar a sociedade em que vivemos. Como afirmou Moscovici, quanto mais a origem das representações sociais é esquecida, mais elas se tornam permanentes e difíceis de se enfraquecerem. Esse é o motor das tradições, que, de acordo com Hobsbawm, inculcam valores e normas de comportamento, implicando uma continuidade em relação ao passado. As tradições, no entanto, são inventadas. Na realidade, não é apenas porque algo é constantemente repetido que significa que é verdadeiro e/ou necessariamente o único modelo possível. Ao escolher o mais antigo e o mais recente filme de princesa da Disney como objetos de análise, esta pesquisa buscou compreender os aspectos sob os quais as mulheres foram representadas, para poder fazer uma contraposição entre eles. Ao pensar em uma comparação entre Branca de Neve e os Sete Anões e Valente, podem ser percebidas diferenças bastante marcantes. Por meio desta análise, foi possível notar que a adaptação cinematográfica de Branca de Neve e os Sete Anões romantizou a história do conto de fadas original dos irmãos Grimm, dando destaque para a figura do príncipe e transformando-o no salvador da donzela em perigo. O amor tem função tão importante na narrativa que é responsável por trazer a personagem de volta à vida. Este filme é apenas um entre os diversos produtos da indústria cultural que dão destaque ao sentimento e têm influenciado na formação de um imaginário que supervaloriza o amor romântico, 116 colocando-o como tema central da felicidade moderna. O casamento era o ponto culminante para as princesas tradicionais dos contos de fadas. Branca de Neve e os Sete Anões reforça a ideia de que a aparência feminina é mais importante que seu intelecto e o papel da mulher na sociedade é o de ser dona de casa. A beleza está associada a um padrão de comportamento delicado. Além disso, o filme exibe a mulher na condição de espetáculo silencioso que serve apenas para a contemplação masculina. O filme de 1937 traz, ainda, as representações da “mulher anjo” e da “mulher demônio”, que se contrapõem como modelos de comportamento. A rivalidade, a competição e a inveja entre mulheres também estão presentes na narrativa, bem como o imaginário da madrasta como uma figura má que deseja eliminar a enteada. A passividade da figura feminina de 1937 pode ter acompanhado a realidade das mulheres no período, porém os papéis femininos passaram por uma forte transição na sociedade ao longo do último século, o que se torna claro pelas próprias representações analisadas, com a distância de 75 anos entre elas. Valente traz, em 2012, novas representações femininas. A protagonista, Merida não é uma donzela em perigo, e jamais esperaria um beijo de um príncipe que a salvasse: ela deseja ser a protagonista de seu próprio destino. A personagem luta por sua independência, seus direitos e seu espaço no mundo, em vez de aceitar o que lhe é convencionalmente oferecido. No cinema hollywoodiano hegemônico, também são raríssimos os filmes que trazem a relação entre mulheres como foco principal. Valente faz isso, e não de uma forma negativa, em que os únicos sentimentos possíveis entre mulheres estão relacionados a inveja e rivalidade. Apesar das inovações realizadas por Valente, é possível perceber também permanências em relação à ideia de feminino. O conflito principal do filme é resolvido a partir de uma atividade que remete diretamente à domesticação da mulher: a costura. Além disso, ainda há a presença de uma idealização das relações amorosas – mesmo que não enquadradas na tradicional ideia do príncipe que salva a princesa. A primeira animação da Disney a apresentar uma personagem claramente inovadora foi A Bela e a Fera (1991), ao trazer o conceito de mulher cuja beleza está naturalizada em seu próprio nome, mas que também valoriza a inteligência. Em seguida, Aladdin (1992) mostrou a princesa Jasmine, que desobedeceu as leis de 117 seu reino e se casou com um ladrão. Em 1995, a índia Pocahontas escolheu ficar com seu povo a mudar de continente para se casar com um europeu. Mulan (1998) nos apresenta uma mulher que se veste como homem e vai à guerra. Mais de uma década depois, em 2009 a Disney teve sua primeira princesa negra, a trabalhadora Tiana, do filme A Princesa e o Sapo. O ano seguinte, 2010, trouxe Enrolados, uma adaptação do conto Rapunzel, em que a princesa luta e busca fazer suas próprias escolhas. Embora estes filmes já trouxessem uma diferenciação no olhar sobre a mulher, é provável que Valente tenha auxiliado ainda mais a trazer novas possibilidades de representação no cinema de animação da Disney. Os filmes Branca de Neve e os Sete Anões e Valente se colocam, então, como propostas antagônicas no que diz respeito às imagens de mulher que são oferecidas. Este estudo mostrou como as representações fazem parte de um universo mais amplo. É importante que a cultura de massa traga representações de diferentes modelos de vida, incluindo ideias de mulher que variem do estereótipo que tem sido repetido por séculos. Não há problema na existência de histórias românticas e que têm o casamento como objetivo principal, na presença de princesas que possuem um príncipe como interesse amoroso, nas mulheres consideradas belas, ou mesmo nas personagens que atuam como donas de casa. O lado negativo acontece quando são esses os únicos tipos de representação que aparecem na comunicação da cultura de massa. É fundamental – e também um desafio – que os produtos culturais exibam a diversidade da sociedade em vez de apenas continuar propagando estereótipos já consolidados. 118 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Maria de Fátima. Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações. Psicol. cienc. prof. [online]. 2002, vol.22, n.2, pp. 70-7. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932002000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 11 novembro 2013. ARRUDA, Ângela. Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 177, nov. 2002, p. 127-147. 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