anais do i seminário interinstitucional de pesquisa
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1 ANAIS DO I SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE PESQUISA 22 e 23 de setembro de 2011 2 URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS I SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE PESQUISA Apresentação Em janeiro de 2011, durante o desenvolvimento dos trabalhos de qualificação das dissertações de Mestrado do PPGL da URI-FW, realizou-se o I Seminário Interno de Pesquisa. Além da articulação de palestras que enfatizaram a importância da pesquisa acadêmica, destacou-se a necessidade de se quebrar o isolamento dessas pesquisas, a fim de colocá-las em discussão, justamente para que houvesse trocas de experiências e amadurecimento das propostas apresentadas. O I Seminário Institucional de Pesquisa, realizado nos dias 22 e 23 de setembro de 2011, na URI-FW, visa a dar continuidade às atividades realizadas naquele primeiro momento, mas dentro de uma dimensão maior. Agora, os discentes envolvidos não são somente os mestrandos do PPGL da URI-FW, mas também alunos do curso de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado que atuam em projetos de pesquisa ligados a programas de pósgraduação da UFSM e UFPel. Assim, fizeram-se presentes nesse seminário pesquisadores ligados aos seguintes Grupos de Pesquisa: Literatura, História e Imaginário e Comparatismo e Processos Culturais, coordenados pelos docentes do Mestrado em Letras da URI-FW; Literatura e Autoritarismo, coordenado pela Profa. Dra. Rosani Ketzer Umbach, da UFSM; e Ícaro, coordenado pelo Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique, da UFPel. Gostaríamos de manifestar um sincero agradecimento à Profa. Dra. Rosani Ketzer Umbach e ao Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique, que se mobilizaram e atenderam ao nosso convite e, mais uma vez, contribuíram com suas experiências para que contássemos com discussões qualificadas. Queremos agradecer também aos professores do Mestrado em Letras da 3 URI-FW – Dra. Denise Almeida Silva, Dr. Marcelo Marinho, Dra. Maria Thereza Veloso, Dra. Nelci Müller e Dr. Robson Pereira Gonçalves – pelo incentivo à realização deste seminário e pelo estímulo dado aos seus orientandos para que se fizessem presentes. Por último, mas nem por isso menos importante, gostaríamos de agradecer a cada um dos alunos envolvidos, dada a certeza de que esta jornada tenha contribuído para seu amadurecimento enquanto jovens pesquisadores, a fim de que mantenham o seu firme compromisso com a pesquisa qualificada ao longo de seu percurso acadêmico. Esperamos que este seminário cumpra com sua proposta. Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari Prof. Dr. Ricardo A. F. Martins (Organizadores) 4 O MEDO COMO ALICERCE DO POEMA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Amália Cardona Leites1 Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach2 Resumo: Os sentimentos de insegurança, inquietação e fragmentação na poesia muitas vezes correspondem diretamente ao momento histórico no qual o poema é escrito. O presente artigo tem como objetivo analisar os poemas Medo e Anoitecer, de Carlos Drummond de Andrade, verificando de que forma as transformações sociais ocorridas no século XX, especialmente a Segunda Guerra Mundial e o Estado Novo no Brasil, refletiram-se em sentimentos de opressão e sofrimento nos poemas. Para tanto, utilizaremos as perspectivas de Theodor Adorno, Antonio Candido e Jaime Ginzburg. Ressaltaremos o comprometimento social do poeta, que escreveu A rosa do povo em períodos históricos extremamente delicados e perigosos, e não se eximiu de tratar assuntos incômodos e dolorosos em seus poemas. Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. Poesia social. Theodor Adorno. 1. Considerações iniciais Sentimentos de insegurança, inquietação e fragmentação e as formas pelas quais eles se expressam na poesia têm sido objeto de estudo e análise por parte de diversos autores e teóricos. O século XX, caracterizado como “era das catástrofes”, foi marcado por duas grandes guerras e suas experiências de destruição em massa, representando o momento de decadência das instituições e dos valores da sociedade burguesa. Foi preciso que os pensadores reavaliassem seus conceitos e encontrassem novas maneiras de compreender as ciências humanas e as letras – entre elas, a teoria da poesia lírica. Dentre estas teorias temos duas que se opõe: A de Hegel e a de Adorno. A concepção hegeliana, centrada na categoria de totalidade, contrapõe-se à concepção adorniana que busca compreender a fragmentação formal e a ruptura como críticas da experiência social desumanizadora no século XX, e a poesia passa a ser atribuída de um papel específico na crítica da desumanização gerada pelo capitalismo e pela barbárie. Adorno critica as “consequências conservadoras” do conceito de totalidade, que não contemplariam as experiências individuais e sociais. Assim, a lírica em Hegel constituir-se-ia como expressão da subjetividade, e seria possível, em um poema, sentir a maneira específica 1 2 Mestranda, PPGL-UFSM. Orientadora 5 pela qual se dá a relação entre sujeito e mundo - e a sustentação da força de um sujeito estaria nesta totalidade metafísica. A unidade do poema se vincularia, desta forma, com a totalidade subjetiva. Adorno propõe uma inversão para esta tradição. O percurso de superação de conflitos dá lugar a uma razão antagônica dentro da qual as contradições não são superadas, e sugere a troca do ideal de permanência pela finitude da experiência histórica. O interesse seria direcionado, então, a uma concepção de sujeito incompleto, fraturado. Já no estudo Lírica e Sociedade Adorno propunha à lírica um “protesto contra um estado social que todo indivíduo experimenta como hostil, alheio, frio, opressivo” (2003). O individualismo burguês teria transformado o sujeito em mera coisa, e caberia à lírica a função social de resistência em um contexto hostil. Estes impasses não resolvidos voltariam à obra de arte e seriam elaborados como experiência estética. 2. Inquietações e fragmentação em Drummond Seguindo esta linha de pensamento, dirigimos nossa atenção agora para o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade e as ideias proferidas por Antonio Candido em Inquietudes na poesia de Drummond. Candido analisa a forma pela qual Carlos Drummond, que em suas primeiras obras não colocava em dúvida a integridade de seu ser a sua ligação com o mundo, passou, com o tempo, a desconfiar de si mesmo e de seu fazer poético, vendo a poesia como elaborada à custa da desfiguração ou da destruição do ser e do mundo. Nestas obras, o que se sobressai é a insatisfação do indivíduo consigo mesmo, o “eu” que poderia ter sido e não foi. O passado apresenta fragmentos do eu inicial, harmônico, dando a impressão de uma realidade mais plena. Assim, o ato de trazer o passado de volta constrói uma visão mais coesa que justifica a vida presente insatisfatória e sofrida. Esse presente repleto de inquietudes aparece ainda de forma indireta nas alusões à náusea, sujeira, estado de sonho ou sepultamento. A opressão do ser - que se sente morto em vida - transforma o passado em ressureição e redenção através da poesia, fundindo os conceitos de morte e criação, negação e afirmação. Essa negação aparece ainda nas referências a automutilação, sangue e poluição. Em Drummond, a consciência de viver em um mundo em que as relações humanas estão distorcidas, desfiguradas, condiciona o indivíduo em suas relações com o outro, com o amor, com a família e mesmo com a sociedade. 6 O mundo torto aparecerá ainda como obstáculo e desencontro, fator que ao mesmo tempo em que se opõe ao homem, opõe os homens entre si, criando desentendimentos e conflitos. Nesse mundo, os atos não tem necessariamente sentido nem se processam da forma usual. É deste entendimento que surge a ideia social de “mundo caduco, feito de instituições superadas que geram o desajuste e a iniquidade, devido aos quais os homens se enrodilham na solidão, na incomunicabilidade e no egoísmo” (CANDIDO, 1977). Esta sufocação do ser aparece no plano social na forma do medo. Medo que paralisa, sepulta o ser humano, impede a transformação e assegura a permanência do estado caduco da situação exterior. A consciência social, portanto, seria a redenção do poeta, e a própria poesia uma metáfora para revolução. Candido ressalta que essa função social da poesia aparece com mais ênfase na obra de Drummond a partir de 1942, tempo do fascismo, da Guerra da Espanha e da II Guerra Mundial, mas não se deve somente aos fatores externos. Deve-se, isso sim, às inquietudes e ao sentimento de insuficiência do eu, que busca completar-se no outro e, portanto substitui seus problemas particulares pelos coletivos. Desta forma, os sentimentos individuais são em parte justificados pelo meio, e a vontade de transformar o mundo é vista como forma de transformar a si mesmo, em uma via de mão dupla. Encarado como consequência da sociedade, o estrangulamento do ser poderia ser redimido pelas mudanças sociais, e a poesia social ganha em Drummond o sentido de discernir a condição humana através das atividades cotidianas, que adquiririam status de “discretas epopeias da vida contemporânea” (Ibidem,1977). O objeto poético seria a forma de realizar algo completo em si – mas tal problema não se resolve, e o que predominam são a busca e as indagações do eu poético. 3. Fragmentos da vida e obra do poeta Da escola modernista, Drummond herdou a liberdade linguística, os versos brancos e a temática do cotidiano - mas o poeta vai além de qualquer classificação, e deve ser apreciado de mente aberta, com “todo o sentimento do mundo”. Neste trabalho, nos concentramos em A Rosa do Povo. Escrita em 1945 e composta por 55 poemas, a obra é considerada a primeira obra madura e a de maior expressão do lirismo social e modernista, por refletir o tempo individual e coletivo vivido no mundo – a Segunda Guerra Mundial – e no país – o Estado Novo. Em poemas que abordam o amor, o cotidiano, a própria poesia e as temáticas social e existencial, Drummond deixa transparecer uma indecisão entre atração e repulsão, melancolia e ironia que caracterizam sua riqueza e fecundidade, mas, sobretudo, refletem seu momento 7 histórico. Desta forma, nosso objetivo aqui não é nos determos na classificação de sua poesia em certa escola ou movimento, e sim verificarmos como o sentimento de medo, fruto da conjuntura histórica de Drummond, aparece no fazer poético da obra em questão. Foi através de sua poesia que Drummond evidenciou o momento de fratura e compartilhou do sentimento de apreensão e insegurança pelo qual passava a sociedade durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto milhões de pessoas eram mortas do outro lado do Atlântico, o Brasil estava vivendo, desde 1937, o Estado Novo, regime totalitário fundado pelo presidente Getúlio Vargas no qual foram presos não só militantes de esquerda, mas também intelectuais vinculados a agremiações políticas comunistas - Graciliano Ramos e Monteiro Lobato, por exemplo, foram presos neste período. Alguns eram mantidos em cárcere ilegal por meses ou anos, sem sequer acusação formal ou processo judicial. No mundo todo, o século XX foi marcado de forma terrível pela destruição em massa de seres humanos por outros seres humanos, provocando a descrença no futuro e a desestabilização de todas as instituições, como nos referimos anteriormente. Em uma sociedade desiludida e sem rumo, as contradições não são passíveis de superação, e a tensão existente não é resolvida. Além da reificação produzida pelo individualismo burguês, a ascensão de regimes autoritários tornou fundamental o papel de resistência da arte. O horror das guerras, por exemplo, não mais permitia a representação de um sujeito lírico total e plenamente constituído. 4. Anoitecer Neste cenário Drummond lançou A Rosa do Povo, levantando o debate acerca da posição do artista no mundo e na realidade social de seu tempo. Reconhecendo a fragilidade de conceitos como justiça, paz e liberdade em um mundo que se desmoronava ao seu redor, o poeta partilhou do temor vivido pelos seus contemporâneos e retratou o medo existente em todos os aspectos da vida particular e coletiva. O poema Anoitecer, por exemplo, desde seu título já indica o momento em que o dia, a luz e a vida vão embora, em que um ciclo se fecha. Para o eu lírico, esse momento é repleto apenas do sentimento de medo. Na primeira estrofe percebemos que na cidade não há uma igreja com sino tocando para chamar os fiéis e talvez oferecer um alívio espiritual ou alguma possibilidade de redenção – ouvem-se apenas os sons das buzinas e sirenes que, com seus apitos trágicos, uivam segredos. Não é mais possível esconder-se ou refugiar-se, já que as sirenes perpassam o ambiente. Sirenes de carros de polícia lembram que o opressor está em todo o lugar. 8 Na segunda estrofe, a natureza está ausente, os pássaros não retornam para seus ninhos – inevitável ver nos pássaros a liberdade, que não dá sinais de retornar ao cotidiano. No lugar da vida natural temos as multidões exaustas após um dia de trabalho, qual óleo escorrendo, subsumindo-se em seu próprio ambiente, sem mais sonhos ou esperanças. Na terceira estrofe, o corpo, prostrado, não deseja apenas sono, porque sabe que não é possível descansar. A única maneira de fugir da árida realidade é através da morte. E mesmo que exista a esperança de paz na morte, o medo sobrepõe-se a qualquer outro sentimento. Na última estrofe, percebemos que o eu lírico duvida mesmo da existência destes elementos (paz e calma), e a hora que deveria ser de delicadeza e abrigo torna-se finalmente a hora dos corvos, animais funestos que violam não só o corpo, mas a consciência do eu poético através de seu passado e de seu futuro. Sem nenhuma possibilidade de mudança ou esperança de transformação, fica apenas o medo e a constatação de sua própria decadência. A experiência de fratura e de insegurança aparece ainda em outros poemas de A Rosa do Povo, ressaltando o comprometimento social do poeta em um momento histórico extremamente delicado e perigoso, que não se exime de tratar assuntos incômodos e dolorosos em seus poemas. Drummond fez sua parte como poeta e ser humano em um mundo caduco, e não acidentalmente tornou-se um dos maiores poetas brasileiros. Referências ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades. 2003. pg.65-90. ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 21 ed. São Paulo: Record. 2000. CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In Vários Escritos.São Paulo: Duas Cidades. 1977. pg. 67-97 GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios . In Alea.Estudos Neolatinos.Vol5.nº01. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2003000100005> Acesso em 08 de junho de 2011. JUNIOR, Arnaldo Nogueira. Carlos Drummond de Andrade. Disponível <http://www.releituras.com/drummond_bio.asp> Acesso em 07 de junho de 2011. em: 9 LITERATURA COMPARADA: MAUS – A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE Carla Carine Gerhardt3 Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach4 Resumo: Através da obra de Art Spiegelman, Maus – a história de um sobrevivente, livro de histórias em quadrinhos, que recria o ambiente autoritarista alemão da 2ª Guerra Mundial, pretendo analisar alguns dos aspectos que proporcionam uma leitura compreensiva e crítica acerca do tema, além de, consequentemente, estabelecer uma comparação através dos temas subjacentes. Esses temas são caracterizados por questões históricas, fatos sociais, cronologia presente na narrativa, projeção da subjetividade sobre o testemunho e suas implicações para a validade de documentos históricos, variadas formas de expressão, desvios psicológicos e aspectos estético/estruturais (antropomorfismo, texto multimodal, etc.). Palavras-chave: Art Spiegelman. História. Psicanálise. Repressão. Estética. 1. Introdução Maus – A história de um sobrevivente foi escrita por Art Spiegelman (1986) e retrata a narrativa de parte da vida de seu pai, Vladek Spiegelman, judeu polonês que vivenciou física e psicologicamente o período nazista e repressor da 2ª Guerra Mundial, conseguindo sobreviver a ele. Escrita na forma curiosa de história em quadrinhos, a obra tem seus personagens retratados por animais: os judeus são ilustrados como ratos (Maus5), os nazistas como gatos e, por incrível que pareça, existiam poloneses não judeus, que eram ilustrados como porcos. Essa representação é paralela com o que o autor coloca em sua epígrafe, de autoria de Adolf Hitler, onde “Os judeus são indubitavelmente uma raça, mas eles não são humanos”. Adolf Hitler6. Ou seja, este trabalho revelará de que forma pessoas inocentes foram julgadas simplesmente pelo que elas são e não pelo que cometeram ou algo parecido. Além dessa constatação, a obra envolve vários outros aspectos que também podem ser considerados para fins de análise, tais como as questões históricas, a sucessiva cronológica e narrativa, os fatos sociais, a projeção da subjetividade sobre o testemunho, os desvios psicológicos e os aspectos estético/estruturais do texto, que serão estudados a fio mais adiante neste trabalho. Tudo isso será relacionado com o propósito de estabelecer uma real literatura comparada, onde surgirão várias problemáticas, como, por exemplo, a questão da veracidade dos 3 Graduanda em Letras – Português e Literaturas da Língua Portuguesa da UFSM. Orientadora 5 Maus, do título – ratos, em alemão. 6 Hitler (apud SPIEGELMAN, 1986). 4 10 relatos, que envolvem o paradigma da incerteza da validade das fontes, da memória e dos fatos históricos descritos, bem como os traços que desenvolvem seus possíveis desvios. 2. Uma sucessão cronológica e histórica Depois da epígrafe feita pelo autor – a assertiva de Hitler, destacada na introdução deste trabalho – a história se inicia com a ida de Art à casa de seu pai Vladek. Este começa a relatar, conforme desejo do filho, toda a parte de sua vida que engloba os desafios impostos pelo regime nazista, a qual vai, aproximadamente, de 1930 a 1944. Primeiramente, Vladek conhece Anja, com a qual se casa e passa toda a trama. No início, Vladek ganha uma fábrica de tecidos de seu sogro, a qual é posteriormente saqueada. Em 1938, fica perplexo ao ver pela primeira vez uma bandeira suástica7, no centro de uma cidadezinha da Tchecoslováquia, por onde passava de trem com sua esposa. Já em 1939, recebe uma carta de recrutamento para a guerra, consequência da não aceitação do regime de fome que seu pai impunha e que havia dado certo para seu irmão Marcus, que não fora chamado. Na guerra é pego como prisioneiro pelos alemães e levado para um campo de concentração, onde ganha pouco alimento e passa muito frio, ou seja, vive miseravelmente. Só consegue ir para um lugar melhor porque aceita a condição de trabalhar duro, mover montanhas. Algum tempo depois consegue se libertar, ir para casa e ficar com a família, que agora já era composta por doze pessoas, quase todos parentes de Anja. Em meados de 1940, a vigilância nazista estava muito rigorosa e todo cuidado era pouco. Vladek conseguia contornar a polícia vendendo ou comprando sem cupons, os quais eram obrigatórios. Como a situação econômica estava crítica, tentaram vender seus móveis, mas foram enganados e perderam tudo, tendo que ir, como todos os outros judeus, viver em alojamentos. Depois disso, por um longo período, toda a família, sucessivamente, teve que ir se mudando, alguns se separando para nunca mais se verem. É o caso dos pais de Anja, que, por terem idade superior a 70 anos e não poderem mais gerar mão de obra para os alemães, foram levados embora e consequentemente mortos. Caso semelhante foi o do primeiro filho do casal Spiegelman, Richieu, que fora entregue à irmã de Anja para que ficasse mais seguro. A irmã, no entanto, envenenou todas as crianças que cuidava, entre elas Richieu, e a si mesma, para que os alemães não os levassem para morrer nas câmaras de gás. 7 Símbolo do nazismo. 11 Vladek e Anja, não vendo mais outra saída, tentaram fugir de uma vez para a Holanda, mas foram enganados e capturados pelos nazistas. Estes os levaram para Auschwitz e recolheram todos os seus últimos pertences. Os homens foram para um lado e as mulheres para o outro. Os dois voltaram a se ver apenas depois de terem saído vivos daquele pesadelo. Algum tempo depois é que Anja se suicida. 3. Questões sociais Depois de feita esta retrospectiva narrativa e histórica, podemos concluir que quem for ler a obra terá uma visão clara do que foi a angústia vivida pelos personagens, além de poder estar bem próximo de tudo o que eles passaram e sofreram. Surge então uma perspectiva de que o texto foi escrito com o intuito de não só relatar os fatos vividos por Vladek e muitos outros, mas também de expressar os sentimentos (medos, traumas, terror, repúdio, saudade, solidão, culpa, etc.) pelos quais eles passaram. No plano coletivo, o não reconhecimento do luto gera uma espécie de continuação do mesmo e o não apagamento das consequências geradas pela repressão que, portanto, ainda não acabou8. É como se ainda restasse uma embalagem de alimento, jogada num canto, e que, mesmo tendo seu conteúdo já consumido e digerido, ainda permanece inerente ao tempo e à memória. Dessa forma, ao compartilhar tudo o que viveu com milhares de leitores, Vladek livra-se dessa repressão, dos sintomas que o impregnavam e causavam dor. É o chamado direito à verdade e à memória, amplamente discutido e posto em ação em nossa sociedade atual9. 4. Literatura subjetiva De acordo com Rosani Ketzer Umbach, organizadora do livro Memórias da repressão (2008), o papel da memória da repressão na literatura teria uma importância central: Para muitos autores, escrever é recordar. E, para aqueles que viveram sob regimes ditatoriais, a escrita representa também um meio de transmitir experiências de vida, muitas vezes traumáticas. Nesse sentido, a memória da repressão na literatura tem importância central. É precisamente o escritor quem tem a possibilidade de modelar, reconstruir e recordar através de sua criação estética.10 8 De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho, na palestra Direito à memória e à verdade – Justiça de Transição e os 10 Anos da Comissão de Anistia, em 02/09/2011 na Câmara de Vereadores de Santa Maria. 9 Idem. 10 In: Rosani Ketzer UMBACH, Memórias da repressão (2008), apresentação. 12 O mesmo acontece em nossa obra, que, mesmo tendo a criação estética feita pelo filho, que projeta no texto as experiências de vida do pai, não suprime nada do que lhe é posto. Como a literatura atual pode ser constituída por uma linguagem um tanto quanto subjetiva, o narrador sente-se mais à vontade para relatar fatos que podem ser meramente fictícios. A pessoa pode cometer esse tipo de desvio conscientemente, simplesmente para atenuar a sua situação ou torná-la mais expressiva. Ela pode, também, cometê-lo inconscientemente, à medida que se analisa que os eventos traumáticos estão ligados fortemente a certos sentimentos que podem vincular um ou outro tipo de descrição do passado, ou seja, o indivíduo pode distanciar-se da realidade histórica através do sentimentalismo, da vontade de revolta, de vingança. Josef Breuer, médico e cientista austríaco, nesse sentido, denominou como método catártico o tratamento que possibilita a liberação de afetos e emoções ligadas a acontecimentos traumáticos que não puderam ser expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolorosa.11 Na obra de Spiegelman, aparecem várias vezes relatos munidos de um sentimentalismo exacerbado por parte de Vladek. Um exemplo é quando ele relata, com muita emoção, o enforcamento de seus dois amigos em praça pública, Nahum Cohn e seu filho Pfefer Cohn. Isso, a princípio, teria servido como exemplo do que aconteceria a outros judeus que tentassem exercer o comércio ilegal. Vladek temia que isso pudesse acontecer com ele e sua família, que também trabalhavam nessa situação. Mas, não sabemos se o motivo da morte dos amigos realmente foi este, talvez eles soubessem demais sobre coisas que sequer deveriam ter acesso. Dessa forma, temos um caso de dúvida sobre a validade do testemunho, mas não por parte do sujeito, e sim do discurso dominante, do poder instaurado. São, portanto, várias as formas de evasão que recaem sobre a natureza dos fatos que ocorreram na história. 5. Conceitos psicanalíticos De acordo com Sigmund Freud (1856-1939), a percepção de um acontecimento, do mundo externo ou do mundo interno, pode ser algo muito constrangedor, doloroso, desorganizador. Para evitar este desprazer, a pessoa “deforma” ou suprime a realidade – deixa de registrar percepções externas, afasta determinados conteúdos psíquicos, interfere no pensamen- 11 Freud (1999 apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, p.72). 13 to. Ele afirma ainda que este processo é realizado pelo ego e é inconsciente, isto é, ocorre independentemente da vontade do indivíduo.12 Em Maus, podem ser apontados dois mecanismos de defesa. O primeiro é a regressão, na qual o indivíduo retoma a etapas anteriores de seu desenvolvimento; é uma passagem para modos de expressão mais primitivos.13 Como exemplo deste primeiro mecanismo, temos o caso de Vladek, que afronta o filho que deixou cinzas do cigarro que fumava caírem no carpete da sala. Esta característica está voltada ao tempo em que o pai era prisioneiro de guerra e teve que realizar muito trabalho duro para os alemães, como limpar um estábulo com mais outras quatro ou cinco pessoas em apenas uma hora, o que seria impossível, de acordo com o tamanho do recinto e a sujeira que nele se encontrava. Vladek chega a usar esta situação ao tratar com o filho: “_ Está jogando cinzas no carpete. Quer que isso fique parecendo um estábulo, Artie?”. O que Vladek vê não é só a sujeira, mas toda uma lembrança traumática do que viveu. Por isso, sempre que ver algo sujo vai ter esse sentimento. O segundo exemplo do mecanismo de defesa regressão está inserido na mania que o personagem principal tem de guardar tudo o que vê pela frente e que, de certa maneira, seria desnecessário. Este fato é recorrente ao tempo em que os judeus haviam perdido tudo o que tinham, desde suas casas até sua dignidade. Precisavam refugiar-se em esconderijos chamados Bunkers14 para não serem pegos pelos nazistas e enviados para as câmaras de gás. Nesse momento passavam fome, frio e muitas outras necessidades. Então, tudo o que tinham era muito valorizado, pois sempre encontravam alguma utilidade para tal. Portanto, instaurou-se uma regressão no personagem, que o faz ter essa necessidade de não deixar nada se perder. O segundo mecanismo de defesa encontrado na obra é a projeção. Esta é caracterizada por confluir distorções do mundo externo e interno. O indivíduo localiza (projeta) algo de si sobre o mundo externo e não percebe aquilo que foi projetado como algo seu que considera indesejável. É um mecanismo de uso frequente e observável na vida cotidiana. 15 Na obra de Spiegelman, isso aparece quando Vladek reclama que sua mulher gasta muito dinheiro com coisas que, segundo seu ponto de vista, seriam desnecessárias. O que ocorre, na verdade, é uma projeção sobre a esposa de um desejo seu. Como destacado anteriormente, o personagem guarda ainda hoje tudo o que encontra pela frente, mas ele não faz isso por que quer, e sim porque existe certa necessidade de realizar essa tarefa instaurada em seu consciente. É claro que ele gostaria de comprar coisas novas e não ficar entulhando sua garagem com supérfluos, 12 13 14 15 Ibid., p.78. Ibid., p. 79. Esconderijos judeus. Freud (1999 apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, p.79). 14 porém essa necessidade, provinda da repressão, ainda o persegue e, consequentemente, faz projetar seu desejo no mundo exterior. 6. Estética Escrita na forma de história em quadrinhos, que utiliza a multimodalidade da linguagem, a obra recebeu o Prêmio Pulitzer de Literatura de 1992. Art Spiegelman foi realmente corajoso ao utilizar este gênero textual para retratar um fato tão sério de nossa história, sendo que os “gibis”, convencionalmente, são usados para produzir histórias infantis ou de teor prioritariamente humorístico. Os personagens são representados de forma antropomórfica, onde judeus são ratos, nazistas gatos e poloneses não-judeus porcos. Naturalmente, gatos perseguem ratos, sem dó nem piedade, para manterem sua sobrevivência. Spiegelman utiliza essa concepção ao representar os diferentes grupos étnicos que participam do enredo, onde os nazistas se consideravam uma “raça” superior (gatos) e tinham o direito natural de extinguir os judeus (ratos). Existiam ainda os poloneses aliados às ideologias nazistas, que, apesar de negarem sua natureza para salvarem suas vidas, eram representados por porcos, animais sujos e imundos que só se “desenvolveram”, mais que os ratos, por terem sido “domesticados” por uma “raça superior”. Outro aspecto relevante da estrutura da obra é a ausência de cores nos desenhos, o que dá um tom mórbido à história, aumentando ainda mais o seu contexto negativo e nebuloso. 7. Conclusão Com o fim de estabelecer uma literatura comparada, o trabalho apontou as mais variadas análises que podem ser feitas sobre a obra. Foram usados conceitos de subjetividade, bem como assuntos acerca da repressão, da psicanálise, da memória, da história e do testemunho, além de algumas questões estéticas e estruturais do texto, que não deixam de ser influenciadas pelo contexto da narrativa. Enfim, toda essa relação foi proposta para que o leitor se interessasse em buscar, ainda mais, fontes que esclareçam como fatos históricos, influenciados por tantos fatores humanos e individuais, foram e ainda são tratados pela literatura. 15 Referências BOCK, Ana Mercedes Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Ed. Saraiva 1999. SPIEGELMAN, Art. Maus – a história de um sobrevivente. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. UMBACH, Rosani Ketzer (org). Memórias da repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL– Editores, 2008. 16 TRAUMA, MEMÓRIA E NARRATIVA EM THE PAWNBROKER E QUERO VIVER... MEMÓRIAS DE UM EX-MORTO: INTERSECÇÕES E COMPARAÇÕES Vanderléia de Andrade Haiski16 Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari17 Resumo: O presente projeto tem como objetivo investigar como o evento do Holocausto é representado na literatura norte-americana e brasileira, através das obras The Pawnbroker (1961), romance escrito pelo judeu-americano Edward Lewis Wallant, o qual foi testemunha ocular das barbáries ocorridas naquela época e, Quero viver... memórias de um ex-morto (1976), relato de testemunho de autoria do judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que narra suas memórias como vítima do Holocausto. Através destas obras, é possível perceber como questões como trauma e memória são abordados por intermédio da narrativa e, também, as relações entre a história e a ficção. Para tanto, tomar-se-ão como pressupostos teóricos textos da teoria literária bem como de outras áreas de conhecimento, que auxiliarão no entendimento do trauma sofrido pelas vítimas e testemunhas do Holocausto. Palavras-chave: Trauma. Memória. Narrativa. Holocausto. A arte literária como representação do mundo como catástrofe é o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa18. Em um período como o século XX, marcado por catástrofes e atrocidades, surge a necessidade de representação de tais situações. Este trabalho volta a sua atenção para o trauma e memórias do Holocausto e a sua representação. As questões acerca do Holocausto e sua representação colocam em evidência um tópico perturbador de ordem social: a luta em torno de questões de ordem moral. É intrigante pensar como indivíduos considerados normais em seu meio social se tornaram assassinos frios ou participantes conscientes do Holocausto, expondo uma cegueira moral estarrecedora. Mas, além disso, é mais instigante ainda pensar como milhares de vítimas tiveram sua humanidade anulada e foram conduzidas silenciadas ao extermínio. Assim, dentre os caminhos possíveis para averiguar tal representação, foram escolhidas duas obras distintas escritas no século XX: The Pawnbroker (1961), um romance de autoria do judeu-americano Edward Lewis Wallant, e Quero viver... memórias de um ex-morto (1976), relato de testemunho escrito pelo judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que narra suas memórias como vítima do holocausto. Por intermédio dessas obras é possível analisar as relações entre história e ficção nas diferentes narrativas, bem como verificar, através das teorias 16 Mestranda em Letras: Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI/ Campus Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] 17 Orientador 18 Este texto é uma síntese do projeto de dissertação intitulado: Trauma, memória e narrativa em The Pawnbroker e Quero viver... memórias de um ex-morto: intersecções e comparações, apresentado no I Seminário Interinstitucional de Pesquisa – URI/ FW. 17 do trauma, memória e narrativa, como se dá a representação do evento do Holocausto na literatura norte-americana e brasileira. Assim, o projeto de dissertação intitulado: Trauma, memória e narrativa em The Pawnbroker, de Edward Lewis Wallant e Quero viver... memórias de um ex-morto, de Joseph Nichthauser: intersecções e comparações; visa contribuir para os estudos sobre a representação do trauma e da memória tanto em narrativas de testemunho quanto ficcionais. Nessa perspectiva, o presente estudo está relacionado com a linha de pesquisa Literatura, História e Memória, visto que se realizará a comparação entre obras literárias, considerando suas particularidades com relação aos aspectos estéticos e éticos, bem como os aspectos históricos e sociais pertinentes a cada obra. Estudos mais aprofundados acerca das relações entre trauma, memória, literatura e história podem ser considerados recentes, visto que grande parte dos eventos desencadeadores dessa discussão ocorreram ao longo do século XX. Dentre esses eventos, é plausível citar a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, as guerras de descolonização e, em especial, o Holocausto, pois este foi o principal desencadeador em torno da discussão sobre a literatura de testemunho e, consequentemente, a discussão acerca dos limites entre a história e a literatura, bem como ficção e realidade. Além disso, as catástrofes ocorridas no século XX não se deram em lugares isolados. Ao contrário, afetaram diferentes povos, países e culturas, como o próprio Holocausto, que dispersou suas vítimas por diferentes países ao redor do mundo em busca de refúgio. Essas situações sócio-históricas são incessantemente representadas através da arte. O esforço de compreensão e rememoração de fatos históricos hediondos nunca se esgota, pois através da rememoração dá-se também a tentativa de evitar que tais catástrofes voltem a ocorrer novamente. Com base nisso, a pesquisa é pertinente na medida em que possibilita a compreensão do compromisso ético do não-esquecimento através do testemunho e da literatura de testemunho das catástrofes. Além do mais, amplia o entendimento sobre a dimensão ética e estética das narrativas de testemunho, quando a memória sobre os fatos históricos ameaça dissipar-se na cultura da modernidade contemporânea. O século XX pode ser pensado como um período marcado por massacres e guerras, verdadeiras catástrofes que, na maioria dos casos, continuam vivas na memória coletiva da humanidade. Entre os diversos massacres ocorridos, é plausível considerar a sociedade do século XX como a sociedade da “pós-Primeira Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Shoah, pós-guerras de descolonização, pós-massacres no Cambodja [...]. Mas esse prefixo ‘pós’ não deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo próximo do conceito de ‘superação’, ou 18 ‘de passado que passou’”19. Essas experiências traumáticas conservam-se na memória e no cotidiano de muitas sociedades. Esses eventos, capazes de massacrar toda uma sociedade, através dos variados meios de comunicação repercutem no mundo inteiro, afetando direta e indiretamente toda humanidade. Dessa forma, a mídia, ao mesmo tempo em que reproduz essas catástrofes, muitas vezes apenas com o intuito de informar, também é uma multiplicadora do trauma20. Nessa perspectiva, Seligmann-Silva destaca que o “elemento traumático do movimento histórico penetra nosso presente tanto quanto serve de cimento para nosso passado, e essas categorias temporais não existem sem a questão da sua representação” 21. E a representação dessas categorias acontece através do jornal, cinema, artes, televisão, e até mesmo na fala cotidiana e em gestos, sonhos e silêncios, chegando, enfim, na literatura22. Entretanto, neste momento, não será discorrido sobre o conceito de literatura, visto que a literatura não cabe em um único conceito, pois defini-la depende de vários aspectos como o lugar, a cultura, o cânone literário, entre outros. Os eventos traumáticos, como o Holocausto, foram expressos tanto em relatos de testemunho como narrativas ficcionais. A linha que separa a ficção da história é tênue e, através do corpus deste trabalho, é possível perceber como questões como trauma e memória são abordados por intermédio da narrativa. De acordo com Hayden White, “o modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular”23. Desse modo, conforme a autora, ocupa-se fundamentalmente de uma “operação literária”, ou seja, “criadora de ficção”24, reafirmando assim a relação de proximidade entre a história e a literatura. Segundo Northrop Frye, uma obra literária não pode ser caracterizada como verdadeira ou falsa, pois não é essa a sua pretensão 25, assim como na história ou na narrativa de um acontecimento, não se pode afirmar que tal versão seja verdadeira ou falsa, pois cada pessoa tem uma percepção própria dos acontecimentos que o cercam. A questão do holocausto na Alemanha foi desencadeadora da discussão a respeito dos limites entre ficção, história e memória. Relacionando a questão de testemunho e memória, Seligmann-Silva cita a célebre frase de Theodor W. Adorno, que alega que “escrever um po19 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 63. 20 Idem. Ibidem. p. 64. 21 Idem. Ibidem. p. 64. 22 Idem. Ibidem. p. 64. 23 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 1994. p. 102. 24 Idem. Ibidem. p. 102. 25 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. 1957. p. 78. 19 ema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de que porque hoje se tornou possível escrever poemas”26. Por esse viés, nota-se como a questão do testemunho começou a ser discutida na Alemanha, pois o evento da Shoah é o eixo central da teoria que envolve testemunho e trauma. Assim, a questão da representação da Shoah levou não apenas a teoria literária a se aproximar da historiografia, mas também a historiografia a se aproximar de uma abordagem mais qualitativa e a tentar englobar conceitos derivados da psicanálise, da teoria do conhecimento, da ética e da estética para tentar dar conta dessa representação que 27 ocorre sob o signo de uma aporia . Tratando-se sobre o relato de testemunho, este está intimamente relacionado com um determinado período sócio-histórico, do qual vítimas e testemunhas de catástrofes sentem a necessidade de narrar suas experiências. É válido afirmar que a literatura de testemunho é “um modo literário de reagir à brutalidade de nossa história”28. Pode-se dizer que Auschwitz foi o marco central da literatura de testemunho e que, desde então, questões como o trauma e a memória de eventos como o Holocausto adquiriram uma dimensão difícil de narrar, pois tais atrocidades por vezes não encontram nas palavras suporte necessário para expressar os sentimentos envolvidos nas experiências vividas. E quando se fala em narrar tais experiências sob a ótica literária, é imprescindível refletir entre a linguagem, a ficção e o real. O relato de testemunho promove o cruzamento entre a necessidade de narrar e a impossibilidade dessa narrativa expressar de forma satisfatória os eventos sofridos pela testemunha. Com relação ao trauma, Sigmund Freud pondera que quando um indivíduo fixa-se em determinada parte de seu passado, ele tende a permanecer ali enclausurado, na tentativa de suportar a carga de sua vida e, assim, aliena-se do presente e do futuro. Esse comportamento apresenta-se de forma análoga no que é descrito por Freud como neuroses traumáticas, as quais ocorrem especialmente por intermédio de episódios de guerra 29. O trauma é capaz vincular um indivíduo ao passado e deter sua vida de tal forma que ele pode ignorar totalmente o presente e o futuro. 26 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 82. 27 Idem. Ibidem. p. 84. 28 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. 2003. p. 360. 29 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: conferências introdutórias sobre psicanálise (Parte III). 1996. p. 281-282. 20 O trauma e a memória mantêm, portanto, uma íntima relação. Para Maurice Halbwa30 chs , as lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros, mesmo tratando-se de eventos e objetos em que apenas um indivíduo esteve envolvido, pois jamais se pode estar só. Isso se explica pelo fato de cada indivíduo levar consigo e em si certa quantidade de pessoas que não se confundem, mesmo não estando presentes. Contudo, o autor argumenta que, para a memória individual tirar proveito da memória coletiva, é necessário que haja uma concordância com essa memória coletiva e que existam muitos pontos de contato entre ambas para que as lembranças sejam reconstruídas sobre uma base comum. O romance The Pawnbroker (1961) traz no desenrolar de sua trama, por intermédio das memórias seu personagem principal, reflexos da sociedade marcada pelo evento do Holocausto. O autor, Edward Lewis Wallant, serviu na 2ª Guerra Mundial e foi testemunha ocular de algumas das barbáries ocorridas naquele período. Durante sua trajetória, Wallant escreveu quatro romances: The Human Season (1960), The Pawnbroker (1961) e, publicados postumamente, The tenants of Moonbloom (1963) e The children at the gate (1964). Sua primeira publicação ganhou o prêmio, até então conhecido como Daroff Memorial Fiction Award, um respeitado prêmio concedido a ficção judaica, e que, desde então, foi renomeado como Edward Lewis Wallant Award31. Segundo a crítica, apesar de ter escrito apenas quatro romances, com a sua morte aos 36 anos, Wallant levou consigo um vasto potencial como escritor32. O romance The Pawnbroker (1961) foi recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público e, em 1994, teve estréia a versão cinematográfica da obra, pela Cult Classic Films e com direção de Sidney Lumet. Em The Pawnbroker (1961), o personagem central, Sol Nazerman, relembra o assassinato de sua esposa e seus filhos em um campo de concentração e, emocionalmente morto, percorre uma longa trajetória até reafirmar sua humanidade. The Pawnbroker (1961) aborda a questão do trauma causado pelo Holocausto de forma contundente e emocionante através da trajetória e memórias de Sol Nazerman, um penhorista que mora no Harlem, em Nova Iorque, e que, após as situações de violência extrema por ele vivenciadas, torna-se claramente um homem solitário, isolado do mundo e que não consegue desvincular-se de seu passado atroz. Já no relato de testemunho de Joseph Nichthauser, o autor começa o prólogo de sua obra, Quero viver... memórias de um ex-morto (1976), declarando que não é seu anseio “mostrar ao mundo algo novo, ou tentar justificar quem quer que fosse, pois já se escreveu muito 30 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2006. LAMBERT, Josh. American Jewish Fiction. 2009. p. 77. 32 ZAITCHIK, Mark; JUCKNATH, Lisa. Edward Lewis Wallant. In: SHATZKY, Joel; TAUB, Michael. Contemporary Jewish-American novelists: a bio-critical sourcebook. 1997. p. 454. 31 21 sobre esse tema”33. Tampouco sua ambição é produzir uma obra literária, pois em seguida afirma que “existem livros que descrevem de maneira muito literária o heroísmo dos soldados aliados, dos sacrifícios inúteis dos soldados inimigos e das atrocidades cometidas nos campos de concentração”34. Sua pretensão é apenas descrever os vários aspectos de sua história como sobrevivente do Holocausto. Nichthauser, aos 11 anos incompletos, assistiu a invasão da Polônia, sua terra natal, pelos exércitos alemães, em 31 de agosto de 1939. A partir daí, Nichthauser passou por vários campos de concentração, como os de Auschwitz, Gross-Rosen e Buchenwald, de onde foi liberto pelo exército americano. Durante sua trajetória pelos campos de concentração, viu sua família ser exterminada, ao passo que, apenas ele, em suas próprias palavras, “milagrosamente” conseguiu sobreviver, ganhando a liberdade aos dezesseis anos e meio. Benjamin argumenta, no texto “Experiência e pobreza”, sobre a dificuldade de encontrar pessoas que saibam narrar as histórias como elas devem ser narradas 35. Ao observar combatentes que voltavam das terríveis experiências de guerra, notou-se que, embora tivessem vivenciado muitos eventos, eles voltavam mais pobres em experiências comunicáveis. Assim, os livros que abasteceram o mercado durante a década seguinte a 1918, não possui experiências passiveis de serem transmitidas de boca em boca, pois a experiência da guerra é extremamente desmoralizadora36. Assim, percebe-se a dificuldade em narrar eventos violentos, traumáticos e que, expõe a degradação humana. Nas obras de ficção sobre o Holocausto, de maneira universal, há um consenso no reconhecimento deste evento como um período de terror, violência e extremamente desumanizador. Quanto à literatura de testemunho, cabe questionar qual posição ela ocupa. Segundo Regina Igel, o tema do Holocausto, desenvolvido literariamente por sobreviventes aqui refugiados, “poderia inserir-se na literatura brasileira ao lado de categorias já formalizadas, como o romance e o conto”37. Contudo, existem várias questões, como as de ordem éticas e estéticas, que merecem ser averiguadas para entender a questão de localização das diversas narrativas sobre o Holocausto. 33 NICHTHAUSER, Joseph. Quero viver... memórias de um ex-morto. 1976. p. 11. Idem. Ibidem. p. 11. 35 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. 1985. p. 115. 36 Idem. Ibidem. p. 115. 37 IGEL, Regina. Imigrantes judeus/ Escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira. 1997. p. 238-239. 34 22 Referências BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 114-119. FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: conferências introdutórias sobre psicanálise (Parte III). Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: 1996. Vol. XVI. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1957. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. IGEL, Regina. Imigrantes judeus/ Escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira. São Paulo: Perspectiva; Associação Universitária de Cultura Judaica; Banco Safra, 1997. LAMBERT, Josh. American Jewish Fiction. Philadelphia: The Jewish Publication Society, 2009. NICHTHAUSER, Joseph. Quero viver... memórias de um ex-morto. São Paulo: Ricla, 1976. SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005. WALLANT, Edward Lewis. The Pawnbroker. Estados Unidos da América: HBJ, 1961. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 1994. ZAITCHIK, Mark; JUCKNATH, Lisa. Edward Lewis Wallant (1926-192). In: SHATZKY, Joel; TAUB, Michael. Contemporary Jewish-American novelists: a bio-critical sourcebook. USA: Greenwood, 1997. 23 O MENINO DO PIJAMA LISTRADO E O “MAL” NA CONTEMPORANEIDADE Paula Klein38 Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach39 Resumo: O presente trabalho busca relacionar a ficção de John Boyne, O menino do pijama listrado: uma fábula (2007), com os pressupostos teóricos de Hannah Arendt, enfatizando em suas obras Eichmann em Jerusalém (2008), A condição humana (2007) e Da Violência (1985). Evidenciando os estudos sob regimes de opressão e totalitarismo, nota-se que a autora não se limitou a examinar somente o lado dos que foram objetos da opressão, mas também o dos que foram agentes da mesma. Para tanto, estuda-se principalmente a conceituação de “banalidade do mal”: a união de diversos fatores desumanizantes, tais como o totalitarismo, a criminalidade como norma estatal, bem como a burocracia, num processo de normalização dessa “desumanidade”. Da mesma forma, o livro O menino do Pijama Listrado enfatiza a dor e a condição humana daqueles que eram considerados os opressores: os próprios nazistas, enquanto seres humanos, provedores de família e que também sofreram com a Guerra, na figura da personagem do pai de Bruno (garoto de nove anos, personagem principal da obra). Nesse sentido, busca-se analisar como a “banalidade do mal”, retratada no período da Segunda Guerra, é vista nos dias de hoje, principalmente através de fábulas como O menino do pijama listrado. Palavras-chave: Literatura contemporânea. Holocausto. Banalização do mal. Condição humana. 1. O Caso Eichmann e a banalidade do mal. Johannah Arendt, na época jornalista da revista americana The New Yorker (país no qual se encontrava exilada no período da Segunda Guerra e o qual ela adotou como pátria), acompanhou o julgamento do nazista Adolf Otto Eichmann, realizado nos anos de 1961/62 em Jerusalém. Hannah traçou o perfil desse homem que tentava provar sua inocência, uma vez que, por assumir somente funções burocráticas, ele se sentia isento de sua parte da culpa no Holocausto. Ainda que participante da Solução Final, com uma grande parcela dos judeus cativos passando por suas mãos e então sendo enviados aos campos de concentração, Eichmann tentava se justificar: “Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu. Nunca matei um ser humano, nunca dei ordem para matar, fosse um judeu fosse um não judeu; simplesmente não fiz isso” (ARENDT, 2008:33). 38 Graduanda de Letras – Espanhol e Literatura Espanhola da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq através do Projeto Memórias Autobiográficas, Ficção e História. 39 Orientadora 24 Frente a essa posição de defesa, Hannah Arendt menciona que ele realmente parecia acreditar que, atrás da escrivaninha, suas mãos estariam limpas. Por meio dessa atitude de Eichmann, surgem os questionamentos de Arendt frente a esses dois agentes da relação opressiva: será que Eichmann foi realmente um criminoso ou ele era um simples homem impulsionado pela “massa”, pela “onda” totalitarista? Segundo Cornelsen (2010), Hannah Arendt definia o fenômeno totalitário como uma forma de dominação própria da modernidade, baseada na organização burocrática das massas, na ideologia, incitando principalmente a propaganda e o terror. Eichmann, no contexto do totalitarismo, relata que apenas cumprira ordens de seus superiores e que estes haviam feito mal uso de sua “obediência”. Sua normalização frente ao mal feito era tanta que alegava “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau governo é azarado. Eu não tive sorte" (EICHMANN, in: ARENDT, 2008:193-194). Deste modo, Eichmann relativiza todo o mal e toda a violência imposta como um simples fator de ganhar ou perder a Guerra, ou seja, ele não agiu de modo errado, mas ele foi “azarado”. Segundo Hannah Arendt (2008): Eichmann não era um monstro, embora seus atos fossem monstruosos. Sua personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade. Por mais extraordinários que fossem os atos, neste caso, o agente não era nem monstruoso, nem demoníaco; a única característica específica que se podia detectar em seu passado, bem como em seu comportamento, durante o julgamento e o inquérito policial que o precedeu, afigurava-se como algo totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar. (ARENDT, 2008:49). Foi por meio dessa autêntica incapacidade para pensar que Hannah Arendt propôs o conceito de Banalidade do Mal, ou seja, dessa incapacidade de notar a eliminação dos outros sem causa alguma aparente. Todos os malefícios causados por Eichmann aos judeus eram retratados como se este não houvesse feito nada significativo. Ele somente se inclinava para o que a maioria propunha, incapaz de pensar por conta própria, como aquele que já não consegue distinguir entre o bem e o mal. Neste caso, segundo Arendt, a Banalização do Mal se daria em uma conjugação de fatores desumanizantes que eram normalizados, tais como o totalitarismo, a criminalidade como norma estatal, a burocracia e também a reação apática das vítimas. Desse modo, o “desumano” se esconderia em cada um de nós. Continuar a pensar e interrogar a si próprio, os atos, as normas, seria a única condição para não ser “tragado” por esse mal. 25 2. O menino do pijama listrado Na obra O Menino do Pijama Listrado: uma fábula (2007) buscou-se perfilar alguns termos que se assemelhassem ao gênero fábula. Normalmente reconhecido como uma “narrativa figurada cujas personagens são, em regra, animais que possuem características humanas, e que encerra uma lição moral” (Ferreira, 2004:315), nota-se que a presente ficção traz personagens humanos. Nossa hipótese é que, talvez, estes não necessitem mais ser animalizados. Principalmente, se considerarmos a animalização dada pelos nazistas aos judeus e, em contrapartida, os nazistas, por todo mal realizado, não poderem ser definidos como “humanos” e sim “desumanos”. Essa desumanização considerada uma “corrida de gato e rato” já foi também retratada por Art Spiegelman em Mauss (1986). As principais personagens da obra são o Bruno e seu pai. A história se passa através da visão de Bruno, ainda que haja um narrador onisciente, este demonstra a história na visão do garoto, suas aflições e problemas com o período da Guerra e sua adaptação a um novo lar, imposto pelo trabalho do pai. Nota-se que a realidade é diferente de uma casa tradicional, e sim que o pai passa a trabalhar em casa: “Sempre havia na casa muitos visitantes – homens em uniformes fantásticos, mulheres com máquinas de escrever das quais ele deveria manter longe as mãos sujas -, e eram todos sempre muito educados com o pai e diziam que ele era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele” (BOYNE, 2007:11). Aqui notamos a presença desta personagem Bruno, que deve manter-se afastado das máquinas de escrever e da ocupação pai. Também se deve destacar o sentido com o qual a criança interpretou o nome Führer como Fúria, um trocadilho um tanto irônico para essa figura que representou Hitler. Quanto a visão de Bruno de seu pai, nota-se que ele também assimilou que o chefe tem grandes planos para o pai. Martin dissera que seu pai era chefe de cozinha, o que Bruno sabia ser verdade, porque, nas vezes em que o homem vinha buscar Martin na escola, sempre vestia bata branca e avental xadrez, como se tivesse acabado de deixar a cozinha. Mas, quando perguntaram a Bruno o que seu pai fazia, ele abriu a boca para dizer-lhes e então percebeu que ele próprio não sabia. Só era capaz de dizer que seu pai era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele. Ah, e que ele também tinha um uniforme fantástico.” (BOYNE, 2007:12) No excerto acima, nota-se outra ironia, pois não se sabe realmente qual é a função desempenhada pelo Pai. Relacionando essa situação a reflexão de Hannah Arendt, nota-se que o homem no regime totalitário/ tirano não age por si próprio e nem tem função isoladamente. É no conjunto que se encontra a força, pois, “até mesmo o tirano, aquele que governa contra 26 todos, necessita de quem o ajude a perpetrar a violência, ainda que sejam estas pessoas pouco numerosas. Entretanto, a força da opinião pública, isto é, o poder do governo, depende de números” (ARENDT, 1985:17). Hannah Arendt considerava que o poder correspondia a habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. Neste caso, o poder jamais seria propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e existe somente enquanto esse grupo se mantiver unido. “Quando dizemos que alguém está no poder estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder” (ARENDT, 1985:17). Ao mesmo tempo, pode-se pensar na questão de não ser um cargo que exige reflexão, ou seja, o pai pensa pouco por si próprio, pois só obedece as ordens do Fúria/Führer e, assim, todos podem agir como Eichmann: culpando o sistema e a burocracia por seus atos desumanos. Hoje devemos acrescentar a mais nova e talvez a mais formidável forma desse domínio: a burocracia ou o domínio de um intrincado sistema de órgãos no qual homem algum pode ser tido como responsável, e que poderia ser chamado com muita propriedade o domínio de Ninguém. Se, de acordo com o pensamento político, identificarmos a tirania como um tipo de governo que não responde por seus próprios atos, o domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, uma vez que não existe alguém a quem se possa solicitar que preste conta por aquilo que está sendo feito. (ARENDT, 1985: 16) Ao discutir questões como poder e tirania, também pode-se pensar no conceito de Hannah Arendt a respeito da Autoridade, ou seja, a toda relação entre pessoas em que existe uma autoridade pessoal, como, “por exemplo, na relação entre pai e filho, entre professor e aluno – ou pode ser aplicado a cargos, como por exemplo, ao senado romano ou nos cargos hierárquicos da Igreja (pode um sacerdote conceder a absolvição válida ainda que esteja bêbado). A sua característica é o reconhecimento sem discussões por aqueles que são solicitados a obedecer; nem a coerção e nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1985:19). Nesse aspecto, o pai e filho estão sempre em conflito, pois o menino quer brincar, discutir o porquê das coisas com o pai e o pai sempre impõe a realidade que ele se encontra na vida profissional e adulta. O pai tenta impor a rigidez do sistema nazista em sua casa e normalmente pai e filho não se entendem: “Acha que eu teria sido tão bem-sucedido na vida se não tivesse aprendido quando é hora de discutir e quando é hora de ficar com a boca fechada e seguir ordens?” (BOYNE, 2007:49). Nesse nível de incompatibilidade que se encontra entre eles, o pai, como autoridade, simplesmente desconsidera as opiniões do filho e o trata como um “adulto pequeno”, hábito comum na época, pois ainda não haviam direitos reconhecidos da criança e do adolescente. O pai então comenta em muitas passagens coisas como: “‘Bruno, às vezes há coisas na vida que 27 temos de fazer e não temos escolha a respeito delas’, disse o pai, e Bruno percebeu que ele estava se cansando daquela conversa. ‘E eu temo que esta seja uma dessas coisas. Este é o meu trabalho, um trabalho importante. Importante para o nosso país. Importante para o Fúria. Algum dia você entenderá.’” (BOYNE, 2007:48). Novamente, esse cumprimento das leis sem um pensamento crítico acaba por desumanizar os judeus e faz com que a Banalização do mal se justifique nessa fábula. “Quero saber daquelas pessoas que eu vejo da minha janela. As que moram nas cabanas, lá longe. Estão todas com as mesmas roupas.” “Ah, aquelas pessoas”, disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. “Aquelas pessoas... Bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno.” Bruno franziu o cenho. “Não são?”, perguntou ele, sem saber o que o pai queria dizer com aquilo. “Bem, não são pessoas no sentido em que entendemos o termo”, prosseguiu o pai. “Mas você não deve se preocupar com elas agora. Elas não tem nada a ver com você. Não há nada em comum entre você e elas. Apenas adapte-se à nova casa e comporte-se bem.” (BOYNE, 2007: 52) 3. Considerações finais Normalmente, a ficção não apresenta grande preocupação com a veracidade dos fatos, mas sim com a verossimilhança. Por sua vez, a fábula, por ser exposta também oralmente, normalmente apresenta diferentes versões de uma mesma história. Ao ler, em nossa época, uma narrativa sobre a Segunda Guerra, é possível perceber a intertextualidade de todas as outras obras, livros, filmes ou relatos que já tivemos contato sobre esse período. Em nossa visão, evidencia-se que Eichmann representa a figura de todos aqueles que não pensam. O pensamento, ao ser despertado, possibilita que o processo de massificação e hegemonização não se generalizem numa dada sociedade. Por outro lado, é fato que a sociedade continuará recheada de indivíduos que, como Eichmann e o pai de Bruno, creem que o simples seguimento dos parâmetros impostos em nossa convivência social, pode ser capaz de fazê-los cidadãos de destaque e prestígio na sociedade. Quanto à lição moral de uma fábula, a obra termina com o acidente da morte do menino Bruno em uma câmara de gás nos fundos da sua nova casa (na verdade um campo de concentração ao qual o pai foi incumbido de cuidar): “E assim termina a história de Bruno e sua família. Claro que isso aconteceu há muito tempo e nada parecido poderia acontecer de novo. Não na nossa época” (BOYNE, 2007:186). Será mesmo? Além do aspecto de passar uma moral, estabelece-se uma visão assustadora e chocante, mas um tanto verossímil, notando que as atitudes do pai indiretamente levaram à morte do filho. Ainda que não fosse real, a ficção nos possibilita pensar sobre o homem, sobre a vida e sobre nossas atitudes. Acima de tudo, a fábu- 28 la nos permite pensar, refletir, para que não esqueçamos as atitudes impensadas de pessoas como Eichmann e o pai de Bruno. Referências ARENDT, Johannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ____. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10.ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007. ____. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ____. Da Violência. Tradução de Maria Cláudia Drummond Trindade. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1985. BOYNE, John. O menino do pijama listrado: uma fábula. Tradução de Augusto Pacheco Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CORNELSEN, Elcio. Totalitarismo. In: Revista Literatura e Autoritarismo, nº14.JulhoDezembro de 2009. Disponível em: <<http://w3.ufsm.br/grpesqla/ revista/num14/art_10.php>> Acessado em: 5 de maio de 2010, 9h45min. FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Coord. de edição Margarida dos Anjos, Marina Baird Ferreira; equipe de lexicografia Margarida dos Anjos [et al.] 6.ed.rev.amp. Curitiba: Posigraf, 2004. 29 O RETRATO DA EXCLUSÃO BUCÓLICA EM VIDAS SECAS E ENQUANTO AGONIZO Angiuli Copetti de Aguiar40 Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach41 1. Introdução O século XX foi marcado pela ascensão e consolidação da sociedade moderna, principalmente pela transição majoritária da população mundial do campo para as cidades. As transformações sociais aceleradas deste período, juntamente com o distanciamento cada vez maior entre cidade e campo, são retratados na alienação social da população bucólica e na alienação psicológica dos próprios personagens de romances e novelas como Enquanto Agonizo (As I Lay Dying), do escritor sulista norte-americano, William Faulkner, e Vidas Secas, do escritor nordestino, igualmente regionalista, brasileiro, Graciliano Ramos. 2. A alienação do homem do campo Duas famílias miseráveis, cada qual em uma viagem (quase paródica aos romances de viagem do século XIX), impulsionadas pela morte (uma devido a ela, outra, fugindo dela), se arrastam por dois mundos contrastantes: o campo e a cidade. Essas “odisséias” bucólicas descrevem explicitamente e implicitamente as diferenças gritantes entre esses dois lugares. O campo (o nordeste brasileiro e o sul estadunidense) é representado como um lugar sem vida e sem perspectiva para os que moram lá, onde urubus, animal muito significativo em ambas as obras (os animais, em geral, são um motivo fortíssimo durante as estórias), são uma presença (simbólica) constante. A alienação do mundo sertanejo é muito bem resumido nas palavras de Fabiano, protagonista de Vidas Secas: “o mundo é grande [mas] para eles era bem pequeno.” (p. 121) Essa concepção limitada do mundo se reflete na idéia que o ‘filho mais velho’ de Fabiano tem do inferno, como um lugar “cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca” (p. 61); toda sua concepção de idéias abstratas advém de sua própria visão limitada dos males do mundo. Dewey Dell, filha dos Bundren, família em torno da qual centra-se a novela de Faulkner, também expressa, de forma simples e marcante a dicotomia presente entre esses 40 41 Graduando em Letras – Inglês e Literatura Inglesa da UFSM. Orientadora 30 dois mundos, em falas como “mas essas mulheres ricas da cidade podem mudar de idéia. Os pobres, não” (p. 12) e “somos gente do campo, não tão boa quanto os da cidade” (p. 54). Quando esses dois mundos se cruzam, ambas as obras retratam o encontro da mesma maneira: há uma imediata repulsa de um pelo outro, o homem do campo rejeita e teme o que a civilização lhe oferece ao mesmo tempo que a mesma repele esse ser que recusa a ajustar-se à sociedade urbana moderna. E assim como as duas obras encaram esse fato igualmente, elas também exploram-no de modo semelhante: em Vidas Secas, Fabiano, ao visitar a cidade para comprar mantimentos, é levado, ingenuamente, por temor ao ‘soldado amarelo’, a personificação da autoridade do estado, a participar de um jogo de cartas, no qual perde todo seu dinheiro e acaba por ser preso ao desacatar o oficial, solução que a sociedade urbana acha para aquele ser deslocado; Fabiano acaba por se convencer “de que todos os habitantes da cidade eram ruins” (p. 76). Da mesma maneira, Dewey Dell, ao procurar auxílio médico para realizar um aborto, é enganada por um atendente em uma farmácia que, apesar de permanecer incerto a ocorrência do fato, aproveitando-se de sua ingenuidade, tenta assediá-la, mandando-a voltar à farmácia à noite e descer até o porão. O resultado dessa visão da sociedade moderna sobre o homem do campo se dá na relação e alegoria dos personagens de Faulkner e Ramos com animais, um motivo muito forte e recorrente nos dois livros. Se por um lado os habitantes da cidade veem os do campo como animais selvagens, os do campo se veem como ‘bons selvagens’, livres da sujeira e da corrupção dos centros urbanos. Além de inúmeras comparações aparentemente simples, usadas apenas como recurso literário, que aludem ao raciocínio ligado ao seu meio rural dos personagens em Ramos (“jeito de bicho lerdo (p. 68); “como um cachorro” (p. 96); “fugindo no mato como bichos” (p. 121)) e Faulkner (“o cabelo arrepiado, como galo molhado” (p. 41); “agora estamos todos lá sentados, como corvos” (p. 17)), os autores utilizam dessas analogias para explorar mais profundamente a miséria e a alienação (tanto física quanto psicológica) de seus personagens. Por todo o capítulo “Fabiano”, em Vidas Secas, há um jogo entre Fabiano considerarse um homem (“- Fabiano, você é um homem” (p. 18)) ou um animal (“- Você é um animal, Fabiano” (p. 18)), o que exprime a reflexão existencialista em busca de definir seu lugar no mundo e sua natureza, presa entre o ideal moderno do homem urbano e o excluído campesino, que as radicais mudanças sociais do início do século XX provocam. Ramos ainda trabalha de maneira subjetiva o assunto ao descrever Fabiano pensando-se como “um cabra” (também apresentado de forma alegórica nas características físicas de Fabiano, que possui um “queixo cabeludo” (p. 24) assim como uma cabra), substantivo que permite o jogo de palavras entre a 31 linguagem popular nordestina, onde a palavra se refere a um homem qualquer, ou o animal em si, reforçando a dicotomia presente no capítulo. Fabiano termina por aceitar sua condição de animal governado pelo homem urbano: “não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.” (p. 24) (o trecho final é ainda uma metáfora à posição deslocada do sertanejo em relação ao resto do mundo, “uma rês na fazenda alheia”). A condição de “animais” é explorada em sua forma mais profunda na representação da linguagem dos personagens, desprovidos de sua característica mais humana: a habilidade de falar. Os personagens de Vidas Secas são comparados literalmente a animais quando necessitam se expressar: Sinhá Vitória “latia como baleia” (p. 43) e ‘o menino mais velho’, que “tinha um vocabulário tão quase minguado quanto o do papagaio que morrera no tempo de seca” e “valia-se, pois, de exclamações e de gestos” (p. 55, 56). Essa conversa, que “não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências” (p. 63), na qual “bastavam gestos.” (p. 97), geram uma dos principais e mais presentes temas de ambas as obras: o silêncio. Tanto na forma de narrativa, que se dá através do uso majoritário do fluxo de consciência, onde os personagens fecham-se em si mesmos, quanto na própria descrição do ambiente, estático e silencioso, e nos diálogos, que quando presentes quebram a narrativa interna como se quebrassem o silêncio, o silêncio envolve os personagens de Vidas Secas e Enquanto Agonizo de forma sufocante. Em Ramos, estas características são apresentadas de forma mais direta, na solidão da família viajando, no “silêncio grande” (p. 10) que envolve a viagem, no fato de que “viviam todos calados (p. 11)” e “raramente soltavam palavras curtas (p. 11)”, e simbólica, pelo fato de que o papagaio da família, um animal notável por ser capaz de falar, é mudo. O “silêncio” representaria a falta de voz, a impotência, que os grupos campesinos excluídos da população, o sertanejo, no caso de Ramos, e o sulista, em Faulkner, sofrem frente à modernização acelerada do século XX. Essa relação entre o silêncio e a impotência pode ser observado em Vernon, personagem de Enquanto Agonizo, que perde suas ferramentas (sua força, sua identidade) e ao mesmo tempo perde a habilidade de falar, a qual apenas é restabelecida quando este recupera suas ferramentas. Outra personagem em Faulkner que incorpora essa noção é Addie Bundren, a matriarca da família, que, após passar vários capítulos agonizando em sua cama, apenas se comunicando por frases curtas e murmúrios, é protagonista de capítulo inteiro mesmo após sua morte. A personagem que se encontra na mesma posição de Addie em Ramos é a Sinhá Vitória, 32 que “aboiava arremendando Fabiano” (p. 43), e que em sua posição duplamente rebaixada de acordo concepções elitistas do início do século XX, como mulher e como sertaneja, atesta que precisava falar. Se ficasse calada seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada. (p. 119) Para os personagens de ambos os autores, o silêncio (a alienação do mundo) são equivalentes à morte e só através da expressão pessoal é que poderiam viver verdadeiramente, o que se transforma em um jogo metalingüístico entre o escritor e seus personagens, já que é papel do escritor dar voz a esses excluídos. Como resultado dessa reclusão e alienação, os personagens se veem divididos entre o ideal urbano e a realidade da pobreza do campo, entre um passado seguro e próspero e um presente de miséria e sem perspectiva futura (“Se ao menos pudesse recordar-se de fatos agradáveis, a vida não seria inteiramente má.” (p. 98)), como Sinhá Vitória, que ante sua condição de retirante “pensava em acontecimento antigos, que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão” (p. 11), e isolados, como Jewel, que se sente deslocado da família por ser ilegítimo, se referindo à sua família como “vocês ou sua gente” (p. 20). Por não poder fugir de sua condição, o campesino vê-se preso em uma existência cíclica, sem um futuro e sempre tentado retornar à segurança do passado. Assim ambas as obras terminam no ponto onde começam: Anse Bundren, em Enquanto Agonizo, apresenta à sua família a nova “Mrs. Bundren” e a família de Vidas Secas é forçada a retomar à sua peregrinação pelo sertão em busca de uma nova terra; e, de maneira mais subjetiva, esse ciclo também se apresenta no fato de Vernon, em Enquanto Agonizo, casar-se com uma professora, assim como seu pai, e no desejo do ‘filho mais novo’, em Vidas Secas, de ser igual ao seu pai. 3. Resultados e Conclusões Podemos observar nas obras de ambos os autores a situação deplorável em que se encontram as populações campesinas no início do século XX, seu total estado de alienação e exclusão frente à emergente sociedade urbana moderna. Fato marcante é que tanto Faulkner quanto Ramos dão extrema importância para a comunicação e seu papel na superação do excluído de sua realidade e sua inclusão no meio urbano, e ambos se utilizam de uma linguagem e simbolismos comuns ao homem do campo, independente do local onde vive. 33 Os personagens de Vidas Secas e de Enquanto Agonizo se tornam mais que simples instrumentos da estória, se tornam símbolos de um modo de vida em decadência e lentamente reprimido e suas lutas, um reflexo real de sua realidade, universal em sua condição, como bem podemos observar pela igualdade de representação entre autores tão distantes. Em resumo, esta é a dura condição do campesino perante a urbanização do século XX como é apresentada nas obras Vidas Secas e Enquanto Agonizo: um animal mudo e impotente sem perspectiva de vida que é forçado a buscar um ideal externo à sua realidade para se tornar parte do mundo. Referências RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. FAULKNER, William. Enquanto Agonizo. Tradução de Wladmir Dupont. Porto Alegre: L&PM, 2010 34 ENTRE A INVENÇÃO E A REALIDADE: FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NO ESPAÇO FÍSICO E SOCIAL MOÇAMBICANO EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO , DE MIA C OUTO Vanessa Fritzen42 Profª. Drª. Nelci Müller43 Resumo: Mia Couto, autor moçambicano, consolida-se como um dos maiores escritores de expressão portuguesa na contemporaneidade pela temática e originalidade de suas obras. Este estudo tem por objetivo analisar O último voo do flamingo (2000), obra que aborda os anos de luta contra a dominação portuguesa e o período pós-guerra de Independência, quando a ONU ocupa Moçambique a fim de evitar os conflitos civis constantes. Esse romance, que se constrói a partir de um entrecruzamento de vozes, será examinado sob a perspectiva das relações entre literatura, história e memória. Para apreensão dos sentidos da obra, busca-se respaldo nas teorias da narrativa contemporânea, dos pressupostos da Nova História, e dos conceitos de memória. Palavras-chave: Mia Couto. Ficção e História moçambicanas. Memória. O presente estudo tem a pretensão de fornecer contribuições aos estudos de literatura africana em português, em especial, sobre o romance moçambicano pós-colonial, que se mostra envolto por elementos que deixam transparecer a vida de um povo que teve seu território, em partes, modificado, mas que busca resgatar as suas origens. Dessa forma, pretende-se estudar referenciais teóricos acerca da Literatura Moçambicana, das relações entre literatura e História, e dos conceitos de memória. A execução da presente pesquisa será realizada tendo como corpus de análise o livro O último voo do flamingo, de Mia Couto, que foi publicado pela primeira vez em 2000. Este livro, além de ser reconhecido pela crítica, também é ganhador do prêmio “Mário António” (2001). O autor da obra é considerado pela crítica literária, um dos escritores mais importantes de Moçambique, sendo que suas obras são as mais traduzidas do país. Para a escritura d’O último voo do flamingo, ao mesmo tempo em que Mia Couto utilizou-se de uma rica linguagem, com elementos sobrenaturais, fantásticos, misticismo, saberes ancestrais africanos, entre outros, também intercalou o discurso histórico, de forma a sugerir aspectos reais sobre o cotidiano dos moçambicanos, bem como sobre a sua reestruturação política e social, no período pós-colonial. 42 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Campus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] 43 Orientadora 35 A obra O último voo do flamingo tem sua estrutura marcada por um entrecruzamento de vozes, que se dá a partir da mescla do resgate da memória do narrador com a das personagens. Nesse contexto, a memória que transborda pelo romance, reflete um momento de reorganização social e política numa cidade imaginária, mas que num plano maior, é a própria história do povo moçambicano, que lutou contra a dominação portuguesa até o ano de 1975. Assim, pretende-se realizar uma análise minuciosa deste romance contemporâneo, que apesar de seu discurso literário (elementos sobrenaturais, fantásticos, mágicos), também deixa transparecer um discurso histórico, no qual os personagens avivam através da memória, lembranças sobre as lutas pela Independência, e também sugerem como a sociedade moçambicana está se reestruturando, nos âmbitos político, social e cultural, neste recente período póscolonial. Para o desenvolvimento dessa narrativa, o autor utilizou-se das memórias do narrador, “elemento estruturador da história”44, que ora revela suas lembranças, ora passa a palavra para as outras personagens que, uma a uma, contam as suas percepções sobres diversos assuntos, sendo que, um mesmo assunto, por vezes, é contado de forma diferente por cada personagem. A obra O último voo do flamingo, foi escrita em um período em que já se passavam quase três décadas da Independência (1975) de Moçambique, e quase uma década do fim das guerras civis. Durante o colonialismo, apesar de alguns escritores demonstrarem certo ânimo no Moçambique a ser escrito em páginas, prevaleciam as críticas, as denúncias, as dores e os sofrimentos do povo, em decorrência das incansáveis lutas. Nesse período, a poesia foi o gênero literário mais comum em Moçambique. Isso porque somada a reduzida elite intelectual, a poesia era mais fácil de ser publicada, além de ser uma maneira mais insidiosa de iludir a censura. Na produção literária pós-colonial moçambicana, os escritores têm dentro de si o compromisso de usar a palavra como forma de criticar os problemas ainda existentes e não deixar se perder os valores mais remotos de um povo que ainda tem muito para ensinar. Para tanto, nas obras são rememoradas as origens, os valores culturais e tudo mais o que foi representativo no passado moçambicano, além de também representar fatos do presente. A temática que envolve assuntos contemporâneos é muito utilizada pelo escritor Mia Couto, por exemplo, que busca através de sua arte, denunciar as violações que ocorrem em âmbito político (uso indiscriminado do poder), econômico (corrupção), e pessoal (identidade instável). Em seus estudos sobre literatura africana, Ana Mafalda Leite menciona que 44 GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 1993. p. 26. 36 [a]s relações entre homem e mulher, os mais velhos e os mais novos, é um assunto que merece especial atenção, tendo em conta os valores ancestrais e os códigos antigos reguladores da sociedade camponesa, agora por vezes postos em causa por novas ideias e comportamentos menos conservadores. Um dos grandes temas é, sem dúvida, a guerra civil, a miséria e a fome, provocadas pelos muitos anos de sofrimento [...], a destruição dos laços clânicos pela necessidade de fugirem e se refugiarem em outras zonas. Em simultâneo, o avivar das crenças e dos valores animistas, como último recurso para a esperança45. Dessa forma, foi pensando no crescente empenho moral por parte dos escritores contemporâneos, em avivar crenças e valores, que Mia Couto escreveu, entre outras obras, O último voo do flamingo. O romance, que é dividido em 21 capítulos, é narrado em primeira pessoa por um tradutor, sendo que, surgem novas vozes no decorrer da trama. Em síntese, a obra trata de estranhos fatos que ocorrem com soldados da ONU: eles “explodem” e a única coisa que resta é o seu órgão genital. Então, para tentar solucionar o mistério, chega à vila de Tizangara (local onde ocorrem os fatos), o inspetor Massimo Risi. Massimo, que é italiano, se mostra perplexo ao adentrar nessa vila e se deparar com acontecimentos insólitos. No desfecho, o mistério é solucionado, mas isso nem tem tanta importância se considerada a grandeza dos saberes e da cultura africana que é perpassada através do romance. Mas, voltando às vozes que surgem no decorrer da trama, essas são guiadas pela memória. Entretanto, cada personagem manifesta as suas lembranças – referentes às mesmas estórias – de modo diferente. Maurice Halbwachs define a lembrança como “uma imagem engajada de outras imagens”46. E é isso o que ocorre na narrativa, na qual as personagens reconstroem o passado influenciado pelo presente, pelo que lhes convém. A personagem redimensionará o seu olhar a partir do lugar que se encontra no grupo e também na situação em que se encontra, pensando em perdas e ganhos. Nessa linha de pensamento, Halbwachs define a memória individual como “um ponto de vista sobre a memória coletiva”47. Essa questão da memória pode ser mais bem exemplificada com um trecho d’O último voo do flamingo. Fato é que no desenvolvimento da narrativa, as vozes se manifestavam, entre outras coisas, para fornecer esclarecimentos sobre os órgãos genitais masculinos decepados; mas cada um contava uma estória diferente, apontava um culpado diferente. Até que numa discussão, o administrador Estêvão, que até então não apontava indícios de ser o culpado, foi desmascarado, não tendo mais como negar. Contudo, a voz de Ana Deusqueira se sobrepôs: 45 LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 2003. p. 30. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2006. p. 77. 47 Idem. Ibidem p. 55. 46 37 - És tu que estás a matar pessoas. És tu, Estêvão Jonas. - Cala-te! - Tu é que mandas colocar as minas! Tu é que matas os nossos irmãos. - Não escute, ela é doida - disse ele para mim. - Eu vi-te a semear as minas, eu vi...48 Essa rememoração tratada na obra, seja de acontecimentos, seja de saberes ancestrais, funde o realismo social ao um realismo animista. Este último é uma das características não só d’O último voo do flamingo, como de boa parte das narrativas africanas. Elisângela da Silva Tarouco menciona as ideias de Harry Garuba, criador do termo e que “acredita que a realidade africana possa ser mais compreendida através do viés animista, pois nada mais é do que a convivência harmoniosa do mundo dos seres vivos com o mundo dos mortos e dos tempos passado, presente e futuro”49. Analisar a obra O último voo do flamingo, vai além de estudar as suas particularidades literárias, de observar como os vários tipos de memória estruturam a narrativa, de verificar até que ponto a história se faz presente na estória. De fato, durante períodos do século XIX, para a compreensão de uma obra literária era necessário verificar que circunstâncias históricas, sociais, morais, ideológicas, etc, ocorriam no momento em que ela havia sido escrita. Porém, depois de algum tempo essa visão passou a ser revogada, “procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em jogo [...] que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social” 50 . Na atualidade, estas concepções não devem estar separadas, uma vez que para o en- tendimento do conjunto da obra é necessário a junção de texto com contexto, onde tanto a antiga visão que se fazia entender pelos fatores externos, como a outra, conhecida como tendo a estrutura independente, se harmonizam, pois ambas são imprescindíveis na questão do processo interpretativo. Dessa forma, ao adentrar na obra de Mia Couto, um novo universo passa a ser conhecido e, através do real e do imaginário ou sobrenatural, emergem a cultura e os saberes de um povo, que já viveu tantos anos em meio a lutas, mas que agora, espera que o flamingo51 volte a sobrevoar novamente. Fato é que na medida em que passou a euforia pela independência conquistada, pelo 48 COUTO, Mia. O último voo do flamingo. 2005. p. 194. TAROUCO, Elisângela da Silva. O realismo animista e a literatura africana. Anais... 2010. p. 02. 50 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 2008. p. 13. 51 O flamingo, grande pássaro rosado, é aquele que conhece a luz; ele é o iniciador à luz; surge como um dos símbolos da alma migrante das trevas à luz, de acordo com o Dicionário de símbolos (p. 434), de Jean Chevalier. 49 38 orgulho pátrio, emergiram as dificuldades e problemas estabelecidos pela colonização 52. Dessa forma, a produção literária moçambicana contemporânea prima pela busca e pela valorização da identidade cultural que outrora foi reprimida, destruída. Essa literatura também denuncia os abusos de poder e reivindica por mudanças. É no confronto do passado com o presente que a consciência nacional vai se clarificando e se consolidando nesse país que viveu anos de incessantes lutas. Referências CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1993. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. KNOPFLI, Rui. Princípio do dia. Poesia africana. Maio de 2011. Disponível em: <http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/mocambique/rui_kinopfli.html>. Acesso em: 19 nov. 2011. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 4. ed. Lisboa: Edições Colibri, 2003. SANT’ANA, Glória de. Poemas do tempo agreste. Beira, 1964. TAROUCO, Elisângela da Silva. O realismo animista e a literatura africana. In: Seminário Internacional Linguagem, Interação e Aprendizagem e VII Seminário Nacional Linguagem, Discurso e Ensino, 2010, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: 2010, UniRitter, Curso de Letras/PPGLetras. Disponível em: <http://www.uniritter.edu.br/eventos/sepesq/vi_sepesq/arquivosPDF/27154/1938/com_identif icacao/Artigo%20Sepesq%20Animismo.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2011. 52 A destruição da identidade nacional e, até mesmo, individual. 39 BUDAPESTE E A PÓS-MODERNIDADE: NO MUNDO DAS PERGUNTAS SEM RESPOSTAS Samantha Borges53 Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach54 Resumo: O artigo tem como objetivo analisar o livro Budapeste, de Chico Buarque, sob a perspectiva de teorias contemporâneas que colocam em debate novos paradigmas socioculturais e literários, através dos quais se destaca a problemática da pós-modernidade. Através de autores como Gianni Vattimo e Stuart Hall, discutem-se características como deslocamento espacial, tempo apresentado na forma de aconteceres e não demarcado por datas específicas, multiplicidade identitária, relações problemáticas de alteridade e falta de profundidade do sujeito. Buarque apresenta literariamente uma personagem que reflete em si o mundo de incertezas, de múltiplos e de oscilações que se colocam diante do homem contemporâneo, aspectos que são dispostos, porém, em um enredo que permanece na superficialidade em relação aos temas tratados. Dessa forma, o romance acaba por desvelar características do mundo atual sem, no entanto, apresentar alguma proposta elaborada de crítica social. Diante desse contexto, o artigo não tem como objetivo enquadrar a obra como pós-moderna, mas detectar na narrativa traços tidos como pós-modernos, buscando a reflexão sobre os mesmos através muito mais de questionamentos do que de respostas. Palavras-chave: Teorias contemporâneas. Pós-modernidade. Budapeste. 1. Introdução A discussão sobre a existência ou não da pós-modernidade parece ainda não oferecer respostas fechadas. Talvez nem mesmo respostas. Mas, há que se reconhecer que alguns paradigmas se modificaram durante o século XX, segundo perspectivas sócio-culturais, políticas e econômicas e que tais mudanças interferiram na visão de mundo do homem, em como ele se relaciona com esse mundo e com as pessoas ao seu redor, bem como na forma como ele se exprime através de diferentes manifestações culturais, entre elas a arte e, logo, a literatura. Para exercitar uma análise crítica iremos, neste artigo, tentar fazer uma leitura sobre alguns aspectos da obra literária Budapeste, de Chico Buarque, buscando não enquadrá-la como moderna ou pós-moderna, mas encontrar em sua narrativa traços identificados como pósmodernos. 53 Graduada em Comunicação Social – Hab. Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, na mesma instituição. 54 Orientadora 40 2. As infindas chegadas e partidas de Budapeste A primeira característica – envolvente - do romance Budapeste (2003) de Chico Buarque é apresentar, logo nas primeiras páginas, uma narrativa de ritmo sem muitas pausas, porque a sucessão de acontecimentos é a base formadora da identidade – ou das identidades - da personagem principal, José Costa, e da história contada por ele enquanto narrador da obra. Percebe-se que o protagonista é um resultado de aconteceres, o que transmite essa sensação de movimento e transitoriedade de tudo. A obra inicia-se com a narração de um acontecimento, logo, de uma ação: o protagonista conta sobre um dia em que desceu do metrô e ligou para Kriska, para avisar que estava “chegando, quase” (BUARQUE, 2003, p.1). É somente depois de narrar uma sequência de ação, na qual a personagem se encontra em “trânsito” – assim como parece seguir durante toda a narrativa - que o protagonista começa a explicar que o fato acontecera em Budapeste, na Hungria, e aos poucos vamos percebendo também que o fato que mudou sua vida – o contato com a capital húngara - ocorreu por acaso, não por escolha ou decisão da personagem, que também demonstra sua passividade diante dos acontecimentos: “Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio” (Ibid, p. 5), diz José Costa. A sucessão de aconteceres não segue uma linearidade marcada de tempo e espaço, ao contrário, há a presença de uma oscilação espaço-temporal, que pode ser percebida também logo no início da narrativa, pois o narrador começa contando sobre seu telefonema e imediatamente dá um salto temporal para o passado – sem avisar ou introduzir essa mudança ao leitor, para contar sobre seu primeiro contato com a língua húngara: “Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai. Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio” (BUARQUE, 2003, p.5). Essa personagem que se mostra em constante movimento, seguindo o ritmo dos aconteceres de sua vida e vivenciando as impressões desses acontecimentos sem necessariamente transmitir algum aspecto mais profundamente reflexivo ou existencial, leva a crer que mais do que “ser” alguém no mundo, ela corresponde a um “estar” no mundo, o que é um dos reflexos de uma sociedade que segue o embalo de um tempo gerido pela aceleração do ritmo de vida, pela superficialidade no relacionamento interpessoal, pela perda de fronteiras espaciais – ca- 41 racterísticas que “montam” seres mutáveis e flexíveis, em metamorfoses constantes, e aos quais filósofos do início do século XX já tentavam interpretar, compreender, questionar: Filósofos niilistas como Nitzsche e Heidegger (mas também pragmatistas como Dewey e Wittgeinstein), ao mostrar-nos que o ser não coincide necessariamente com o que é estável, fixo, permanente, mas tem a ver com o acontecimento, o consenso, o diálogo, a interpretação, esforçam-se por nos tornarem capazes de captar esta experiência de oscilação do mundo pós-moderno como chance de um novo modo de sermos (talvez finalmente) humanos (VATTIMO, 1989, p.19). E se a personagem principal se mostra como uma sucessão de aconteceres, essa inconstância também se reflete no espaço da narrativa, que não é unificada, pois se divide em dois eixos principais: o Rio de Janeiro, no Brasil, e Budapeste, na Hungria. Essa dualidade espacial representa uma forma de “oscilação contínua de pertença e desenraízamento” da personagem. Para Vattimo (1989, p.18), essa sensação de acessibilidade possível a diferentes mundos e culturas é promovida, na sociedade contemporânea – em especial - pelos meios de comunicação. A obra traz uma alusão a essa sensação ora de pertença, ora de desenraízamento, mostrando as diferentes facetas de José Costa, entrelaçadas aos dois espaços retratados: no Brasil, ele é um bem sucedido Ghost-Writer (um escritor-fantasma, que escreve os mais variados textos e discursos para a locução de outras pessoas) e seu talento é o completo domínio da língua portuguesa na construção de seus trabalhos, destacando assim um estado de total pertença e encaixe ao ambiente brasileiro, representado na obra fundamentalmente pela língua nacional. Já em Budapeste, o contraste ao sentimento de pertença à língua materna é desconstruído: a personagem encontra-se completamente desenraizada, pois não compreende uma só palavra húngara. É esse total apagamento da principal característica que constituía José Costa enquanto sujeito, que lhe transforma como que em uma criança a querer absorver um novo mundo: as palavras húngaras adquirem para ele um encantamento tal, que a personagem é impulsionada a aprender a língua, em um movimento que se transforma em um processo de construção de um novo sujeito, que irá morar por tempo indeterminado na Hungria, assumirá novas relações sociais, experimentará uma outra vida, e assim a constituição de um novo sentimento de pertença, apresentando assim o começo de um ciclo pertença-desenraizamentopertença, que acaba por percorrer a obra do início ao fim, pois a personagem transita na trama em um vai-e-vem entre as duas cidades, assumindo então em cada qual uma identidade. 42 3. José Costa, Zsoze Kósta, entre outros... Além de enfocar os não-lugares, a obra de Buarque ao apresentar uma dualidade espacial – Rio/Budapeste - não restringe à dualidade a faceta identitária de José Costa. Ao contrário, o protagonista apresenta uma “multiplicidade” identitária. Porque se ele assume uma identidade em cada local em que se passa a narrativa, através de sua profissão, José Costa fala por diferentes personagens e seu prazer está em dominar a língua escrita, através da qual ele dá voz a políticos, empresários e toda a sorte de figuras sociais influentes. Para o protagonista bastava saber que tinha o poder de construir discursos perfeitos, chegando ao ponto até mesmo de fugir da exposição, pois era no anonimato que conseguia mergulhar nas identidades de seus locutores, sentir-se até parte deles, ou em muitos momentos, sentir-se propriamente o “outro”. Ao longo da história percebemos que essa relação de alteridade é uma das marcas mais emblemáticas da personagem. José Costa preza por se constituir enquanto sujeito, no momento em que se faz passar pelo outro. Faz questão de se esconder na voz de outro indivíduo, de não ser reconhecido – a menos que por si próprio. Essa negação de si mesmo é o que para ele faz algum sentido, o que o diferencia perante a sociedade, já que enquanto José Costa ele se julga como apenas mais um: “É que comigo as pessoas sempre puxam assunto, julgando conhecer de algum lugar este meu rosto corriqueiro, tão impessoal como o nome José Costa, numa lista telefônica com fotos, haveria mais rostos iguais ao meu do que assinantes Costa José” (BUARQUE, 2003 p.101). A negação de si mesmo é tão forte, que quando Costa vê a si no outro, sua reação mais do que negação, se torna uma fuga: Quando me vi cercado de sete redatores, todos de camisas listradas como as minhas, com óculos de leitura iguais aos meus, todos com meu penteado, meus cigarros e minha tosse, me mudei para um quartinho que estava servindo de depósito, atrás da sala de recepção (Ibid, p.24). Fuga que no trecho é materializada como a busca por um espaço escondido e distante das figuras que tanto se assemelham ao narrador-personagem, mas que se transforma ainda em uma mudança de rumo em seu próprio trabalho, na tentativa de continuar sendo capaz de se diferenciar. É a partir daí que Costa passa a escrever autobiografias. Nesse contexto conhece um de seus mais importantes clientes, Kaspar Krabe, um empresário alemão radicado no Brasil, que o contrata para escrever uma autobiografia. O livro O Ginógrafo, obra que José Costa escreve em nome do alemão, termina por fundir-se ao texto do próprio Budapeste, da 43 mesma maneira que Costa encarnava seus “fregueses”, nos textos anteriores, como máscaras a lhe estimular o prazer e o poder de seu ofício. Prova disso é que a frase final da autobiografia torna-se a frase final do livro de Buarque “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa”(BUARQUE, 2003, p.39/174). Esse jogo de identidades vai ao encontro da concepção de sujeito fragmentado, que por sua vez, situa-se em um processo histórico, social e cultural de identificação que deixou de ser estável, fixo e unificado – características do mundo moderno, e passou a se constituir de maneira flexível, variável (HALL, 2004). De acordo com Stuart Hall, é nesse processo que surgem as problemáticas de um “eu” que assume diferentes identidades, que se constroem de acordo com determinada vivência ou ambiente: Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Ibid, 2004, p.13). Assim, múltiplas são as identidades e múltiplas as possibilidades de identidade, que parecem conseguir se acomodar apenas em um mundo guiado por “momentos”, em que o próprio termo identidade se torna problemático, situação em que o termo identificação parece soar mais adequado, enquanto ressonância de um processo que não está acabado, mas em um eterno andamento (HALL, 2004). 4. Considerações finais Buarque apresenta literariamente um José Costa que reflete em si o mundo de incertezas, de múltiplos e de oscilações que se coloca diante do homem contemporâneo. É, entretanto, difícil dizer que a obra ofereça algum tipo de reflexão mais aprofundada sobre isso, algum tipo de crítica social elaborada, já que não apresenta nem mesmo um “fim da história”. O enredo não mostra respostas, não aponta justificativas. José Costa é o que é. José Costa é o que não é. E nesse jogo pode ser qualquer coisa. A interpretação se coloca de forma aberta, assim como o final da obra. A superficialidade – provavelmente proposital - com que a história se apresenta se une por fim ao conjunto de características apresentadas na obra que correspondem a traços representativos do mundo contemporâneo, em que o homem “deve habituar-se a viver numa situação na qual não há mais nenhuma garantia, tampouco alguma certeza funda- 44 mental” (TEIXEIRA, 2006, p.209). E assim como as teorias pós-modernas, também suas expressões estéticas parecem suscitar em nós nada mais que questionamentos, em um caminho que aparenta tão distante quanto ilusório, até que se encontre alguma resposta. Referências AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BUARQUE, Chico. Budapeste. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. TEIXEIRA, Evilázio. Pós-modernidade e niilismo - um diálogo com Gianni Vattimo. ALCEU - v.7, n.13 - p. 209 a 224, jul./dez. 2006. VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989. 45 O DUPLO NARCISO: O HERÓI DA MODERNIDADE EM O RETRATO DE DORIAN GRAY, DE OSCAR WILDE E ESPHINGE, DE COELHO NETO Gustavo Menegusso55 Prof. Dr. Ricardo A. F. Martins56 Resumo: O estudo sobre a representação do herói da modernidade suscita abordagens variadas devido à complexidade temática. Nesse trabalho, priorizar-se-á um diálogo possível entre os referenciais teóricos da literatura fantástica e da teoria do duplo a fim de compreender, dialeticamente, como se constrói a caracterização da figura desse herói. Como objetos de análise, elegeram-se os romances O retrato de Dorian Gray (1891), do escritor irlandês Oscar Wilde e Esphinge (1908), do brasileiro Coelho Neto. A escolha deste corpus deve-se não somente ao enquadramento de ambas as obras a um mesmo gênero, ou seja, à literatura fantástica, mas, sobretudo às várias semelhanças narrativas e intertextuais entre os dois textos, principalmente no que se refere às características físicas e psicológicas dos personagens principais. Para o embasamento dessa proposta, busca-se respaldo em obras de autores como Tzevetan Todorov e Sigmund Freud. Palavras-chave: Duplo. Herói da Modernidade. Literatura fantástica. O duplo é uma temática que perpassa séculos na história da produção literária. Durante a Antiguidade até o final do século XVI, esse mito simbolizava o homogêneo, o idêntico. A figura de um outro, nesse caso, era um gêmeo ou sósia usado para usurpar/substituir ou, ainda, simplesmente confundir a identidade do verdadeiro herói. No entanto, a partir desse período, “o duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à quebra da unidade (século XIX) e permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século XX)” 57. Na problemática do heterogêneo, a questão da duplicidade passa a abarcar o espaço interior do ser. Aquele que se desdobrou (duplicou) “cria para si a ilusão de agir sobre o exterior, quando na verdade não faz mais que objetivar seu drama interior” 58. Esse drama pode ser perceptível em inúmeras obras literárias do século XIX, período em que o tema aparece de forma corrente em romances e contos de literatura fantástica e/ou de terror. São exemplos: Frankenstein (1818), de Mary Shelley, William Wilson (1839), de Edgar Allan Poe, O médico e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, e O retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde. 55 Mestrando em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Bolsista Prosup/Capes. E-mail: [email protected]. 56 Orientador 57 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2005. p. 264265. 58 Idem. p. 267. 46 Além dessas obras, no século XX, vários outros autores também tematizam a questão do duplo. Na literatura brasileira podem ser citados os romances Esphinge (1908), de Coelho Neto, Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, A paixão segundo G.H (1964), de Clarice Lispector e os contos de Murilo Rubião. Na literatura dita contemporânea, encontrase O homem duplicado (2002), do português José Saramago e Budapeste (2003), do brasileiro Chico Buarque, apenas para mencionar alguns dos exemplos. E ainda, é claro, cabe destacar a presença do duplo também no cinema, como no caso do filme Cisne Negro (2010), dirigido por Darren Aronofsky, onde acontece o desdobramento de personalidade da personagem Nina, uma bailarina que precisa passar por um processo de metamorfose para poder interpretar o papel de Odile, o cisne negro. Assim, é nesse contexto do duplo em obras de literatura fantástica que surge a proposta deste trabalho: analisar nos romances O retrato de Dorian Gray e Esphinge como acontece a manifestação da duplicidade dos personagens principais Dorian Gray e James Marian, respectivamente. Segundo Tzvetan Todorov (2010) o gênero fantástico pode ser definido a partir do critério da hesitação. Assim: Num mundo que é exatamente o nosso, [...] produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. [...] ou se trata de uma ilusão, [...] ou então o acontecimento realmente ocorreu [...]. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural59. Nesse sentido, o fantástico reside na hesitação provocada no leitor diante à natureza de um acontecimento ficcional. Enquanto houver a incerteza manifesta-se o fantástico, contudo ao tomar-se uma decisão, ou seja, tentar explicar se o acontecimento é de natureza sobrenatural ou é uma ilusão da personagem, entra-se no terreno do estranho e/ou do maravilhoso. É o que acontece em O retrato de Dorian Gray: poderia um retrato ganhar vida e se transformar? Oscar Wilde provoca no leitor a incerteza, se o que acontece é algo real ou sobrenatural. Não havendo respostas para tais fenômenos se mantém a esfera do fantástico. Seria tudo aquilo verdade? Teria o retrato mudado realmente? Ou era simplesmente efeito de sua própria imaginação, que lhe fizera ver uma expressão de maldade onde havia uma expressão de alegria? É evidente que uma tela não pode modificar-se. A 59 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2010. p. 30-31. 47 ideia era absurda. Seria um bom caso pra contar algum dia a Basílio. Ele havia de rir60. Aqui temos o momento em que Dorian Gray, após ter recebido a notícia da morte de Sybil Vane, a mulher com quem iria se casar, desconfia que seu pacto faustiano poderia ter se realizado. Existe a dúvida que cerca tanto o personagem quanto o leitor. Além disso, não há um esclarecimento racional para o acontecido. Tanto o suposto pacto com o diabo quanto a transformação do retrato são possíveis de acontecer e é nesse jogo de possibilidades sem explicações lógicas que, segundo Todorov, manifesta-se o fantástico. Louis Vax, em A arte e a literatura fantásticas, revela que “a narrativa fantástica [...] gosta de nos apresentar, habitando o mundo real onde nos encontramos, homens como nós, postos de súbito em presença inexplicável”61. Assim, por mais que trabalhe com a imaginação, o fantástico estaria nutrido, como acrescenta o autor, “dos conflitos do real e do possível”62. Nesse aspecto, a figura do andróide em Coelho Neto pode ser compreendida como um elemento desse gênero: Mas o que logo surpreendia, pelo contraste, nesse atleta magnífico, era o rosto de uma beleza feminina e suave. A fronte límpida, serena e como florida de ouro pelos anéis dos cabelos que por ela rolavam graciosamente, os olhos largos, de um azul fino e triste, o nariz direito, a boca pequena, vermelha e um pescoço roliço e alvo como um cipó sustentando a beleza perfeita da fisionomia de Vênus sobre a força viril e enérgica de Marte63. Nessa passagem, temos uma das descrições que Coelho Neto faz ao seu personagem principal James Marian, um excêntrico e recluso inglês, que ao chegar à pensão de Miss Barkley, no Rio de Janeiro, altera toda a rotina dos hóspedes que ali viviam. James é dotado de uma peculiaridade física: apresenta em sua natureza um rosto de uma beleza feminina (semelhante a Vênus, a deusa romana da beleza), sustentado num corpo de um atleta masculino (similar a Marte, o deus romano da guerra). Assim, é devido a essa característica física que se manifesta o fantástico na obra Esphinge. Não há um esclarecimento para a dualidade de James Marian. Tanto para os demais personagens quanto aos leitores fica apenas a hesitação frente ao acontecimento. 60 WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. 1972. p. 118. VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. 1972. p. 8. 62 Idem. p. 8. 63 COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1908. 13-14. 61 48 De acordo com o Dicionário de mitos literários64, o termo “duplo”, consagrado durante o período do romantismo, apresenta os seguintes significados: “segundo eu”, “aquele que caminha do lado”, “as pessoas que se veem a si mesmas”, “eu é um outro”. Nessa perspectiva, o filósofo Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, define o duplo relacionando-o à ilusão, pois: a técnica geral da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas, exatamente como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de deslocamento e de duplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece 65. A noção do duplo implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo tempo ela própria 66 e outra . Além disso, o jogo de antagonismos é uma de suas principais marcas: belo/horrível, bem/mal, racional/selvagem, equilibrado/louco são algumas de suas formas de representação. Em O retrato de Dorian Gray há a dualidade belo/horrível: Dorian representa ao belo e o seu duplo (o retrato) representa o contraste, o horrível. Por sua vez, em Esphinge, o antagonismo é entre homem/mulher. James Marian vive o drama de não conhecer a sua própria sexualidade: Se em ti predominar o feminino que transluz na belleza do teu rosto, o rosto de tua irman, serás um monstro; se vencer o espirito do homem, como faz acreditar o vigor dos teus musculos, serás como um iman de lascívia; mas infeliz serás como ainda não houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lograram insinuar-se nella67. Otto Rank também observa em seus estudos sobre o tema do duplo esse jogo de ambiguidades. Segundo o autor, o duplo está relacionado com a morte, “a origem de todos os tabús parece ser o temor de provocar o espírito mau da morte, em outras palavras, a própria morte. A crença na alma originou-se do desejo de vencer este medo, e daí sobreveio a divisão da Personalidade em duas partes – uma mortal e outra imortal”68. Em O retrato de Dorian Gray essa divisão da alma aparece pode ser entendida em dois momentos. Num primeiro instante, Dorian representaria a alma imortal, pois ele nunca envelhecera enquanto o retrato seria o seu lado mortal, já que era ele quem sofria os “pecados” do tempo; Por sua vez, um segundo mo64 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2005. p. 261. ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. 1988. p. 18. 66 Idem. p. 19. 67 COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1908. p. 208. 68 RANK, Otto. O duplo. 1939. p. 100. 65 49 mento seria o desfecho da narrativa, onde os papéis se invertem: o retrato torna-se a alma imortal e Dorian volta a ser mortal. Nessa perspectiva, Sigmund Freud acrescenta outros aspectos referentes à revelação do duplo: Todos esses temas dizem respeito ao fenômeno do ‘duplo’, que aparece em todas as formas e em todos os graus de desenvolvimento. Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens pelo que chamaríamos telepatia -, de modo que um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self). E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa - a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem69. Assim, a manifestação do duplo apresenta-se em Freud estruturada em três níveis: a duplicação, a divisão e a troca. Tal fenômeno está relacionado à fragmentação e à identidade do sujeito, ou melhor, à busca dessa identidade. É o que podemos perceber a partir dos trechos analisados. Ao ver a si mesmo através do duplo, Dorian Gray inicia incessantemente a busca de sua identidade, saber quem ele é, o que se revelará no decorrer da narrativa, na medida em que o retrato ganhar vida e registrar de forma horripilante todas as suas maldades. Já, James Marian carrega desde o nascimento o seu duplo. Ao ter um corpo de homem com cabeça de mulher, o personagem não tem uma definição própria, é uma esfinge, como diz o próprio nome da obra de Coelho Neto. Assim, James anda sempre por diferentes lugares tentando se conhecer a si mesmo e ao mesmo tempo fugindo dos que o cercam, com medo de revelar a sua verdadeira identidade. Referências BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 261-288. COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1. ed. Porto: Chardron, 1908. 282 p. FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: ____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-269. (Edição Standard Brasileira, vol. 17). RANK, Otto. O duplo. Trad. Mary B. Lee. 2. ed. Rio de Janeiro: Alba, 1939. 152 p. 69 FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: ____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. 1996. p. 252. (Edição Standard Brasileira, vol. 17). 50 ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1988. 88 p. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 192 p. VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Trad. João Costa. Lisboa: Arcádia, 1972. 187 p. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1972. 270 p. (Os Imortais da Literatura Universal). 51 QUEM FOI OLGA BENARIO? A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM POR FERNANDO MORAIS NA OBRA OLGA Giovana Oliveira Mendes70 Resumo: O presente trabalho tem a finalidade de realizar uma análise de personagem da obra Olga, a qual expõe fatos ocorridos em um momento histórico de repercussão mundial: o nazismo de Hitler na Alemanha e a Ditadura de Vargas no Brasil (1923 a 1945), e as terríveis consequências físicas, morais e psicológicas que teve para milhares de pessoas, mas, principalmente, para judeus e comunistas. A biografia de Olga Benário, escrita por Fernando Morais, pode servir como um “retrato” do que foi esse período, inclusive porque a protagonista desta história, além de judia, era comunista e revolucionária, ou seja, possuía os atributos mais rechaçados pelos governos autoritários da época. E, ao registrar esse período histórico, o autor tem a preocupação de construir o retrato de Olga da maneira mais fiel possível, já que se trata de uma biografia histórica, na qual os fatos devem ser verídicos. No entanto, ao conhecermos a extraordinária personalidade da protagonista, a ousadia que a leva a atos heroicos e seu profundo sentimento de solidariedade, percebemos, como leitores, que a história real também poderia ser lida como ficção. Palavras-chave: Olga Benário. Nazismo. Ditadura. Biografia histórica. 1. Introdução. O escritor, jornalista e pesquisador Fernando Morais iniciou sua investigação sobre Olga Benario em 1982 e, logo de início percebeu que não seria fácil, já que no Brasil havia pouquíssimas informações a respeito de uma das maiores personalidades femininas da História. Vista apenas como “a mulher de Luís Carlos Prestes” na historiografia oficial do movimento operário brasileiro e “ a judia comunista que foi entregue a Hitler no governo de Getúlio Vargas”, era como se a essa grande heroína fosse negado o verdadeiro reconhecimento pelo que significou em uma época de repressão e barbárie, em que a liberdade de expressão não existia, ou seja, qualquer cidadão que fosse comunista, social-democrata, ou que se opusesse à ditadura de Vargas, sofreria as conseqüências, as mais drásticas possíveis, desde a prisão, tortura e, em muitos casos, a morte ou extradição (no caso dos estrangeiros). Olga Benario, mais conhecida no Brasil como Maria Prestes, participou ativamente, junto de seu companheiro, Luís Carlos Prestes, de um dos maiores movimentos revolucionários comunistas: A chamada Intentona Comunista, em 27 de novembro de 1935. Além disso, foi militante comunista em Berlim e membro do quinto congresso da juventude comunista internacional, o mais alto grau na hierarquia de uma organização comunista. 70 Mestranda em Estudos Literários da Universidade Federal de Santa Maria/RS 52 Em nome de seu ideal, Olga sacrificou a própria vida. Entregue a Hitler por Filinto Müller, oficial do governo de Vargas, passou os piores momentos de sua vida em campos de concentração nazistas da Alemanha. Olga Benario Prestes morreu em uma câmara de gás em Bernburg, em fevereiro de 1942. 2. Reflexões iniciais sobre fato histórico e recriação. Esta obra, além de colaborar no sentido de contar fatos importantes que ocorreram em determinado período e que foram responsáveis por uma transformação social e ideológica, representa o pensamento de uma geração, a qual compartilhava ideias socialistas, porém, mais que isso, compartilhava um sentimento comum, tão escasso hoje em dia: o sentimento de solidariedade. Em vários trechos de Olga, este sentimento está explícito, principalmente nos momentos em que Olga está presa. Nesses espaços inóspitos, a solidariedade humana se sobressai. A personagem Olga, funcionaria aqui como a propulsora desse sentimento, pois, esteja onde estiver, coloca a causa social acima de qualquer coisa. Em um primeiro momento, poderemos classificar a obra em questão como Biografia, pois narra fatos verídicos sobre a vida de uma personalidade, neste caso, uma personalidade histórica. E também é importante termos em mente que uma biografia, como se refere VILAS BOAS (2002, p. 11) é “o biografado segundo o biógrafo”, ou seja, é um trabalho autoral. Em um segundo momento, temos a possibilidade de ler a mesma obra como um Romance biográfico, pela riqueza da trama que envolve os personagens e a expectativa que cria no leitor diante de cada acontecimento, mesmo que já se conheça a história sobre a vida de Olga Benario. Sabemos de antemão que textos biográficos tratam de acontecimentos reais, devidamente comprovados pelo autor, porém, só o fato de terem sido selecionados determinados episódios já se constitui em um recorte da realidade, sendo, por isso, uma realidade parcial. BARTHES (s/d, p.128) esclarece essa questão do discurso histórico afirmando que “o historiador é aquele que recolhe, não tanto fatos, mas antes, significantes, e os relata, isto é, os organiza com o fim de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da pura série.” E acrescenta que “o discurso histórico é essencialmente elaboração ideológica, ou, para sermos mais precisos, imaginária.” O fato, na verdade, já existe por si só. A tarefa do historiador é selecionar e organizar as “peças do quebra-cabeça” e a partir disso – como escritor – tem o papel de elaborar o enre- 53 do, recriando aquilo que acredita ser a versão real dos episódios. Porém, acredita-se que neste processo de recriação haja uma interferência (necessária) da subjetividade do autor, o qual narrará os acontecimentos sempre a partir de sua perspectiva, de seu olhar e, inconscientemente ou não, irá defender uma determinada ideia. Um aspecto interessante de análise são as cartas que estão incluídas na narrativa. São documentos verdadeiros, que “quebram” a ilusão que se possa ter de que se está lendo um romance. E nessas cartas, Olga se mostra como uma mulher bastante sensível, até mesmo poética. Percebe-se que esses são os únicos momentos em que a protagonista tem uma “voz” dentro da narrativa, pois todos os fatos são narrados em terceira pessoa. Em certos trechos, em que a oralidade se apresenta, supõe-se que tais falas foram atribuídas a Olga, adaptando-as às situações narradas. Além das cartas, há imagens e documentos anexados, os quais contribuem para a veracidade dos fatos. Conscientes dos dois conceitos anteriormente abordados, podemos supor que uma biografia, como define CALDEIRA (apud BENCHIMOL, 1995, p. 96) poderia ser classificada como “um híbrido (...), que exige tanto fontes documentais como interpretação e ficção.” 3. O retrato de Olga. O autor desta obra, como podemos ver em algumas passagens, constrói o retrato da protagonista conferindo-lhe atributos de uma heroína acima de tudo; uma mulher à frente de sua época, empenhada em defender uma causa nobre, buscando desde a adolescência, uma solução para que o povo trabalhador pudesse viver com mais dignidade, paz e justiça social. Um exemplo disso, encontramos na página 16: “(Olga) chegava a dizer que havia se transformado numa comunista não pela leitura da teoria marxista, mas folheando os processos em que o pai defendia os trabalhadores de Munique. ‘Ali vi de perto a miséria e a injustiça, que só conhecia superficialmente, nos livros.’” (MORAIS, 1985, p. 16). Em seguida, em outra passagem: “A observação da clientela que freqüentava a elegante residência da Karlplatz, no centro da cidade, levava a jovem a interessar-se cada vez mais pela sorte daquela gente.” (MORAIS, 1985, p. 17). Os meios podem ter sido, de certa forma, radicais, mas sua luta constante por um mundo melhor serviu de exemplo para as gerações seguintes. A protagonista Olga ensinou que diante das adversidades é preciso ousar, às vezes, pois a História é feita pelos “grandes homens”, segundo o filósofo Hegel. 54 De acordo com esse autor, “eram eles, (os grandes homens) que sabiam melhor e era deles que os outros aprendiam e com quem concordavam, ou, pelo menos, a quem obedeciam. ”E continua: “Entretanto, como indivíduos claramente distintos de seu objetivo essencial, não eram o que chamamos normalmente felizes, nem pretendiam sê-lo. Eles desejavam realizar o seu objetivo e realizavam-no através de seu trabalho árduo. Conseguiam encontrar a satisfação ao ocasionar a realização desse objetivo, o objetivo universal. Com objetivo tão grandioso, tinham a coragem para desafiar todas as opiniões dos homens” (HEGEL, 2001, p.80) Na página 206 da narrativa, há um exemplo que ilustra bem essa consciência própria dos “grandes homens” (neste caso, de “uma grande mulher”). É um pequeno trecho de uma carta escrita por Olga a seu companheiro Luís Carlos Prestes, pouco tempo depois de ter sido separada de sua filha, Anita. Ela assim se expressa: “(...) Ajuda-me bastante o fato de que sou capaz de distinguir entre a insignificância das questões pessoais e os acontecimentos históricos do nosso tempo.” (p.206). A partir da narrativa, nós, como leitores, já temos uma imagem de quem foi Olga Benario, ou, pelo menos, conhecemos alguns traços de sua personalidade: Olga é uma mulher idealista, ousada, altruísta. Características típicas de uma verdadeira heroína dos romances históricos. Outra característica marcante da protagonista é a força de vontade, levando-a a não desistir de seus objetivos, mesmo diante das maiores adversidades. A passagem em que ela está no campo de concentração de Ravensbrück demonstra muito bem esse traço. Além de convencer as outras prisioneiras a fazer ginástica todas as manhãs, na esperança de que sairão daquele lugar um dia, ela desenha um mapa para que todas fiquem a par dos territórios que estão sendo tomados por Hitler, e esse mapa é feito com todos os detalhes e atualizado periodicamente. Todos esses atributos da personagem Olga, são confirmados em cada episódio, pois é uma personagem plana, que não sofre alterações significativas em toda a narrativa. Essa imagem que o autor constrói da personagem, deixa no leitor a sensação de que a pessoa Olga era realmente essa mulher íntegra e totalmente fiel a seus princípios. É uma personagem/pessoa que não se corrompe ao sistema vigente, se comparada a outros companheiros seus, também militantes comunistas, que, ao serem interrogados pelos policiais, acabam por entregar os planos comunistas por medo de perderem a vida ou de serem torturados. Diferente de muitas mulheres de seu tempo, Olga Benario era contra qualquer tipo de submissão da mulher em relação ao homem e, por isso, o casamento oficial era inconcebível, 55 já que acreditava que ao casar-se nesses termos, a mulher se tornaria uma propriedade do homem. “Associava a ideia do casamento ao que considerava a pior deformação burguesa: a dependência econômica da mulher, o sexo obrigatório, a convivência forçada.” (MORAIS, 1985, p.36) Apesar disso, Olga viveu um grande amor, o qual foi retratado nessa história. Olga e Prestes possuíam muitas afinidades, principalmente o fato de serem defensores da mesma causa. Viveram juntos momentos cruciais, tanto no âmbito histórico (por exemplo, a revolta de 1935 no Brasil), como na esfera pessoal (a prisão dos dois, a separação, que acabou sendo definitiva após a extradição de Olga e o nascimento da filha, Anita, na prisão nazista). Uma história de amor e intolerância, com um final trágico e injusto. 4. Considerações finais. Independentemente de ler Olga como uma história real ou como ficção, não se pode desprezar o autêntico valor histórico dessa obra, a qual, além de servir como denúncia das barbáries cometidas pelos nazistas nos anos de 1933 a 1945 e da repressão ditatorial no Brasil durante o governo de Vargas, instiga o leitor a pensar em questões humanas, acima de tudo, e no relevante papel que desempenham na sociedade, os chamados “grandes homens”, os quais colocam os bens universais acima dos bens particulares. Olga representa a versão feminina do herói, deixando claro que o heroísmo, a garra e a persistência independem de questões de gênero. Também se torna relevante esta obra, porque expõe o compromisso político da protagonista diante das causas sociais, fato que atualmente está um pouco esquecido, além de ressaltar a solidariedade e fazer uma denúncia contra o desrespeito pelas demais culturas. O individualismo do presente faz com que as relações humanas sejam deixadas de lado, pois as pessoas, em geral, buscam apenas os seus interesses, esquecendo dos demais, como se fossem auto-suficientes. Olga, de Fernando Morais, também deixa algumas reflexões a respeito de questões bem atuais, como a da não-aceitação da cultura do outro, o racismo, o preconceito e a intolerância religiosa e cultural. E, neste caso, a Literatura vai além da imagem do real. Ela se torna a própria realidade, e, mais que isso, a denuncia. 56 Referências BARTHES, Roland. O discurso da história. In: - O Rumor da língua. Lisboa: Edições 70, s.d. BENCHIMOL, Jaime. (org.). Narrativa documental e literária nas biografias. Manguinhos: história, ciências, saúde. Rio de Janeiro, vol. 2, jul-out, 1995, p. 93-113. HEGEL, G.W. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2001. MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Cia das Letras, 17ª ed., 1994. VILLAS BOAS, Sérgio. Biografias & biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002. WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 2001. 57 A AMÉRICA DOS AMERICANOS: A MIMESE AFRO-AMERICANA EM JAZZ, DE TONI MORRISON Ívens Matozo Silva71 Rosani Ketzer Umbach72 1. Introdução. Apontado como um dos maiores problemas referentes às questões dos direitos humanos, a discriminação racial tem sido um problema que freqüentemente tem passado despercebido ou conveniente ignorado por grande parte da sociedade. Tal prática discriminatória chegou a contagiar a ciência, que se utilizando das chamadas ideologias racistas, como o darwinismo social e a eugenia, tentou assegurar a superioridade do homem europeu (branco) diante do negro. Segundo Fonseca (2011) tais ideologias contribuíram para espalhar o racismo pela Europa e pela America, unindo este modo primitivo de pensar com uma justificativa dita “científica”. Não se restringindo apenas à ciência, o racismo também teve força de deixar suas marcas na História de alguns países. Nesta acepção, podemos inferir que nem mesmo o país visto como o mais desenvolvido da América, os Estados Unidos, deixou de sofrer com os problemas relacionados ao racismo, resultado da herança de um conflito interno durante a segunda metade do século XIX, a chamada Guerra de Secessão (1861-1865). Com o fim deste conflito, no qual houve a abolição da escravidão, para muitos negros viria a ser o fim de séculos de submissão perante o homem branco, assim como uma expectativa de melhores condições de vida. No entanto, os estados do Sul, marcados por uma cultura altamente racista, não aceitando a inclusão dos ex-escravos como cidadãos, voltaram-se contra os negros, agora, perante um novo regime marcado pela submissão e pelo terror. Com o passar dos anos, foram aprovadas diversas leis que asseguravam o cumprimento da chamada política de segregação racial, as chamadas Leis Jim Crow. Além disso, surgiram grupos racistas, como a Ku Klux Klan, com o objetivo de impedir a integração dos negros na sociedade, além de tornarem a prática de linchamentos e enforcamentos de pessoas de cor comuns em território americano. Neste contexto, o racismo tem sido um tema que vem gerando muitas discussões e opiniões, tanto por ser um assunto muitas vezes deixado de lado pela maioria da nossa sociedade, quanto pela falsa ideologia que vivemos em uma “democracia racial”. Entretanto, o tema 71 72 Graduando em Letras pela UFSM Orientadora 58 possui uma carência em sua bibliografia (ROSEMBERG, 2003, p. 27) o que vem a dificultar o seu estudo e o entendimento da história afro-americana (SILVA, 2011, p.14). Utilizando a Literatura como uma forma de representação da realidade, a escritora norte-americana Toni Morrison destaca-se por possuir uma ficção elaborada, relatando em suas obras o quão complexo é ser identificado como negro em uma sociedade tão preconceituosa, além de expor as marcas de um passado que insiste em permanecer no presente. Assim, este trabalho tem por objetivos analisar a condição dos negros nos Estados Unidos na primeira metade do século XX através da obra Jazz (1992) de Toni Morrison, como também identificar e discutir os problemas raciais abordados. 2. Metodologia Para a realização da presente pesquisa, foram selecionados fragmentos da obra que tiveram como critérios de seleção o modo de vida e os preconceitos enfrentados pelo negro americano. Para isso, foram realizadas, primeiramente, leituras de textos fundamentais para a compreensão dos assuntos abordados no romance. Para a temática do reconhecimento racial foi utilizado o livro Negritude e Literatura na América Latina, de Zilá Bernd, já para a questão relacionada à superioridade de raças, o livro Two Nations: Black and White, separated, hostile, unequal, de Andrew Hacker. Além destes, leituras adicionais em artigos acadêmicos e em websites foram necessárias para a abordagem dos temas referentes à great migration, plantation e as Leis Jim Crow. Por fim, buscou-se identificar o papel que a Literatura viria a ter enquanto uma forma de crítica social. 3. Resultados e Discussões O período denominado de Great Migration, que de acordo com o Scomburg Center for Research in Black Culture cerca de “1,5 milhões de pessoas deslocaram-se para o Norte quando a indústria bélica oferecia trabalho para os Afro-americanos” 73 foi constatada na fic- ção. A seguinte passagem exemplifica o período em destaque: Violet e Joe tinham deixado Tyrell, uma parada rodoviária em Vesper Country, em 1906, e embarcaram no vagão [...] a onda de negros que fugiam da penúria e da violência atingiu o auge nos anos 1870, nos anos 80 e nos 90, mas era um fluxo uniforme em 1906 (MORRISON, 2009, p. 43). 73 Tradução do Autor 59 Uma característica presente nas obras de Morrison refere-se ao fato de que suas produções literárias estão ligadas a um contexto-histórico e que através dele, possibilita ao leitor compreender e ao mesmo modo refletir sobre as ações tomadas pelos personagens. Assim, Morrison apresenta dois olhares sobre a migração, o de quem é prejudicado: “brancos aterrorizados com a onda de negros do Sul invadindo as cidades, em busca de trabalho e de lugar para morar” (MORRISON, 2009, p.64), e os que veem nela uma chance para mudar a sua realidade: “como os outros, eles eram gente do campo, quando chegaram, carregando todos os seus pertences em uma mala, os dois perceberam de imediato que perfeita não era a palavra. A cidade era mais que isso” (MORRISON, 2009, p.109). Através dos trechos acima, podemos perceber o quanto os negros do sul foram vítimas de uma intensa discriminação racial, a ponto de largarem o pouco que tinham e aventuraremse a própria sorte em um lugar desconhecido. Como Silva (2011) argumenta, a emigração possuía como único objetivo a busca por para uma vida digna em outro lugar. O período do plantation nas regiões sulinas americanas também foi descrito pela escritora nos seguintes trechos: “ela trabalhava no campo como todo mundo, e ficara até depois do tempo da colheita” (MORRISON, 2009, p. 40), “Palestine estava branca com o algodão mais limpo que já tinham visto [...] todo mundo que tinha dedos num raio de trinta quilômetros apareceu e foi contratado na hora (MORRISON, 2009, p.105). Embora o trabalho no campo fosse uma fonte de renda, havia ali uma certa desigualdade quanto aos salários dos empregados: “nove dólares o fardo, diziam alguns, se você plantava seu próprio; onze dólares para quem tinha um amigo branco” (MORRISON, 2009, p.105). Ao abordar sobre as chamadas Leis Jim Crow, o que poderia ser considerado um Apartheid ao modo americano, segundo Silva (2011), tais leis consistiam em um conjunto de regras segregacionistas surgidas entre 1876 e que perduraram até 1965. Como exemplos, tais leis criavam instalações separadas para brancos e negros, além de restringir a liberdade destes aos direitos civis. O cumprimento destas leis foi verificado nas seguintes passagens: “Eles mudaram a gente cinco vezes para quatro vagões diferentes para cumprir a lei Jim Crow (MORRISON, 2009, p. 125). Um fato interessante a ser analisado é que mesmo nas escolas, brancos e negros não podiam permanecer no mesmo local, o que vem a ser exemplificado em: “não havia escolas de ensino médio para moças de cor em seu distrito (MORRISON, 2009, p. 19). 60 Quanto à problematização da superioridade do homem branco, este, vem a ser descrito várias vezes ao decorrer do romance. Esta ideia de superioridade racial, além de ser uma herança da Guerra de Secessão, era sustentada pela ciência pela teoria do Darwinismo Social. Tal teoria, de acordo com Fonseca (2011) tomava como verdadeira a suposição de que entre os humanos haveria seres superiores e inferiores, No romance, podemos notar esta ideologia no seguinte fragmento: Um desses brancos tinha bom coração e não deixou os outros acabarem comigo ali mesmo [...] mandaram convites para brancos irem ver um homem de cor ser queimado vivo. Gistan disse que milhares de brancos apareceram (MORRISON, 2009, p. 127). Quanto a esta questão, Hacker (1995, apud LOPES, 2009, p.26) afirma que a noção de que ser branco pressupõe uma origem européia, já a noção de negritude, uma origem africana e escrava. Tais descrições vão ao encontro do que ele descreve no seu conceito de civilização superior, que se baseia em uma origem superior, a origem caucasiana sendo superior as demais raças. Com esse modo de analisar as diferenças étnico-raciais da população americana, impõe-se ao negro um duplo estigma de rebaixamento, a cor da sua pele e a impossibilidade de ser livre, tanto do preconceito quanto do seu passado. Verificou-se também, como o romance aborda as reações contra o preconceito, em especial, a das mulheres afro-americanas nos seguintes passagens: “por todo o país, mulheres negras andavam armadas” (MORRISON, 2009, p. 81), assim como em: Uma negra’ [...] ‘Ela me cortou até os dentes [...] mulheres negras andavam armadas; mulheres negras eram perigosas, e quanto menos dinheiro tinham, mais mortal a arma que escolhiam (MORRISON, p. 83). Ao analisarmos a questão do reconhecimento racial, de acordo com Bernd (1987) que utiliza o conceito da negritude como uma forma de consciência de ser negro e recusa que o mesmo tinha vergonha de si – próprio, é descrita nas seguintes passagens do livro: “Numa emergência ninguém quer estar no Hospital Harlem, mas se um cirurgião negro estiver de plantão, o orgulho diminui a dor” (MORRISON, 2009, p.21). Utilizando o que Tom (1946) argumenta em seu livro, que a História e a Literatura estão intimamente interligadas, podemos inferir que tal afirmação está bem demonstrada nesta obra. Pode-se dizer que a escritora utiliza da Literatura para informar ao seu leitor o quanto os 61 afro-americanos lutaram contra a opressão sofrida pelos homens brancos, provando tais fatos com uma provável tentativa de fusão entre a ficção com a realidade. Tal obra vem a buscar além da conscientização da população, dar voz as minorias e revelar o quanto uma falsa construção ideológica oprime e colocam à margem todos aqueles que não se enquadram ao modelo dominante. 4. Conclusão Com a realização deste trabalho, é possível afirmar que a obra Jazz (1992) não se distancia quanto ao seu conteúdo central de outras produções literárias de Toni Morrison. Produções estas, que se destacam por possuírem por principais objetivos, o de revelar ao leitor as dificuldades de ser negro em uma sociedade que não respeita o direito à diferença, como também a retomada das injustiças cometidas contra eles em um passado não muito distante. Durante a análise dos dados, foi possível identificar os momentos dicotômicos da economia Americana, o período da emigração dos negros do Sul em direção ao Norte e as leis segregacionistas. Podemos concluir que ao produzir tais obras com o intuito de fazer com que seu leitor reflita sobre o seu passado ou até mesmo suas atitudes, Morrison utiliza a Literatura como uma provável forma de descrever a história negra, como também nos apresentar um olhar crítico sobre a sociedade norte-americana. Através desta pesquisa, que se caracterizou por um resgate de informações referentes aos afros descendentes, podemos concluir que a América do Norte ainda está distante de ser um país exemplo e que seus habitantes, na sua grande maioria, possuem grande dificuldade em aceitar e conviver com as diferenças raciais. Referências BERND, Zilá. Negritude e Literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. FONSECA, Fábio David. Ideologias Racistas: Darwinismo Social e Eugenia. Revista Raça & Classe, São Paulo, p. 48,51 fev.2011 LOPES, Mirna Leisi Coelho. À Margem em The Bluest Eye, de Toni Morrison: Negritude, Identidade e Crítica Social. 2009. 113f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2009. 62 MORRISON, Toni. Jazz. (tradução de José Rubens Siqueira). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ROSEMBERG, Fúlvia; BAZILLI, C; SILVA, P.V.B. Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. In: Educação e Pesquisa – Revista da Faculdade de Educação da USP. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a10v29n1.pdf>. Acessado em 09 Ago.2011. SCOMBURG CENTER FOR RESEARCH IN BLACK CULTURE. The Great Migration. Digital Library Program - The New York Public Library. New York. Disponível em: < http://www.inmotionaame.org/migrations/index.cfm>. Acessado em: 15 Ago. 2011. SILVA, L. H. O. Diásporas de Afrodescendentes: um estudo dentro e fora do Brasil. In: V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. 2011. Porto Alegre. Disponível em: < http://www.labhstc.ufsc.br/vencontro/pdf/SILVA,%20Lucia%20Helena%20Oliveira.pdf>. Acessado em: 10 Ago. 2011. 63 INTERDISCIPLINARIDADE, CRÍTICA AO AUTORITARISMO, REGIONALIDADE E ORALIDADE João Luis Pereira Ourique74 1. Introdução O grupo de pesquisa Ícaro tem por objetivo principal refletir sobre a Formação Cultural a partir das experiências regionais e de sua relação com outras culturas e das aproximações/afastamentos existentes no pensar questões como identidade-identificação, igualdade e diferença. As questões principais a serem desenvolvidas através de atividades de pesquisa e extensão podem ser percebidas por meio das iniciais das palavras que compõem o nome do grupo: Interdisciplinaridade (perspectiva fundamental de trabalho em Literatura Comparada), Crítica ao Autoritarismo (evidenciada pela abordagem da Teoria Crítica da Sociedade), Regionalidade e Oralidade (conceitos relevantes para reflexão acerca do sentido expressivo da Bildung). As repercussões dessas atividades poderão ser percebidas através da implantação de projetos voltados para a necessidade crescente de pesquisa na área dos estudos literários, com ênfase nas questões regionais. As atividades do grupo englobam a atuação de pesquisadores de outras instituições de ensino que se identificam com as propostas discutidas, caracterizando-se, assim, como um grupo interinstitucional. Inicialmente, o Grupo de Pesquisa Ícaro esteve credenciado junto a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS/CPTL) no período de 2007 (ano de sua criação) até o ano de 2010 (quando foi vinculado a Universidade Federal de Pelotas – UFPel). Organizado em três linhas de pesquisa75, o Grupo de Pesquisa Ícaro também une esforços com outros grupos de pesquisa (GRPesq Literatura e Autoritarismo – UFSM - e GR74 Prof. Adjunto do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas e líder do GrPesq CNPq ÍCARO. 75 Literatura e Crítica Social: Estudo da obra literária através de sua relação com outras obras, sistemas literários e espaços geográfico-culturais. A base teórica dessa linha evidencia o aspecto da Teoria Crítica da Sociedade e também sua relação com outras teorias preocupadas em discutir temas como preconceito e discriminação, relacionando a crítica literária com elementos que denotam aspectos vinculados aos direitos humanos e cidadania. Literatura e Estudos Regionais, Culturais e Interculturais: Partindo de uma discussão sobre o conceito de regionalidade (em complementação à noção de regionalismo literário), pretende-se evidenciar outras possibilidades interpretativas – abordando as mais variadas noções do que se entende por cultura – das possíveis contradições sobre temas relacionados com a identidade e com as condições sócio-históricas de produção de textos literários. Formação cultural e ensino de literatura: Esta linha de pesquisa se pauta na reflexão sobre condições de interpretação, dentro de perspectivas ligadas à Hermenêutica e à Filosofia da Educação, e em reflexões relacionadas com as condições de recepção de textos literários. Dessa forma, o conceito de formação (Bildung), tomado desde a conceituação de Hegel, e investigado em suas formulações no pensamento do século XX, torna-se base para estas discussões. 64 Pesq Formação Cultural, Hermenêutica e Educação - UFSM) visando qualificar os trabalhos desenvolvidos e colaborar com a produção da pesquisa no âmbito dos Estudos Literários. 2. Fundamentação A alegoria apresentada, construída por meio da palavra formada das iniciais do nome do Grupo de Pesquisa e da imagem elaborada a partir do desenho de Leonardo da Vinci do homem vitruviano76 dotando-o de asas, procura discutir questões relacionadas à formação histórica e cultural com base nas manifestações literárias. Assim, a menção à personagem mitológica de Ícaro ganha mais um componente: se o alerta dado por Dédalos a Ícaro quando do seu vôo para fugir do labirinto do Minotauro pode ser interpretado como um ensinamento sobre os limites humanos e da necessidade de reprimir seus desejos em prol da autoconservação, a presença do desenho de da Vinci – inserido em um contexto de resgate da cultura helenística grega e de exaltação do potencial humano – procura alertar também para os limites da ciência. A não observação desse alerta, de acordo com Adorno e Horkheimer77, pode também se constituir em um mito, em um dogmatismo que descamba para uma racionalidade instrumental. Essa articulação entre literatura, história, sociedade, cultura e ideologia é fundamentada por meio de uma reflexão interdisciplinar. Salienta-se, dessa forma, que a Interdisciplinaridade é a principal proposta da literatura comparada na atualidade, visto que os estudos comparatistas se constituem em “uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o seu objeto, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, um procedimen- 76 O homem vitruviano (ou homem de Vitrúvio) é um conceito apresentado na obra Os dez livros da Arquitetura, escrita pelo arquiteto romano Marco Vitrúvio Polião. Tal conceito é considerado um cânone das proporções do corpo humano, segundo um determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na divina proporção. Desta forma, o homem descrito por Vitrúvio apresenta-se como um modelo ideal para o ser humano, cujas proporções são perfeitas, segundo o ideal clássico de beleza. Originalmente, Vitrúvio apresentou o cânone tanto de forma textual (descrevendo cada proporção e suas relações) quanto através de desenhos. Porém, à medida que os documentos originais perdiam-se e a obra passava a ser copiada durante a Idade Média, a descrição gráfica se perdeu. Desta forma, com a redescoberta dos textos clássicos durante o Renascimento, uma série de artistas, arquitetos e tratadistas dispuseram-se a interpretar os textos vitruvianos a fim de produzir novas representações gráficas. Dentre elas, a mais famosa e (hoje) difundida é a de Leonardo da Vinci. 77 Na Dialética do Esclarecimento (3. ed. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1991), Adorno e Horkheimer discutem o conceito de esclarecimento e a sua aplicação por parte de uma visão científica que se caracteriza como uma ilusão que mascara a própria realidade em nome de um ideal de dominação. “O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e os homens. Nada mais importa. (...) O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz. (...) Nenhuma distinção deve haver entre o animal e o totêmico, os sonhos do visionário e a Idéia absoluta. No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.” (p. 20-21). 65 to, uma maneira específica de interrogar os textos literários não como sistemas fechados em si mesmos, mas em sua interação com outros textos, literários ou não”78. Tal processo de interação também se sustenta nos pressupostos bakhtinianos de que os pontos de vista criadores só são necessários e indispensáveis quando se relacionam com outros, pois fora da sua participação na unidade da cultura, determinado ponto de vista criador pode ser caracterizado como arbitrário, visto que todo “o ato cultural vive por essência sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre”79. Essa perspectiva encontra sustentação no conceito de Alegoria proposto por Walter Benjamin, na terceira parte da Origem do drama barroco alemão80, que visa a exatamente romper com um conceito de símbolo que erroneamente aponta para a dissociabilidade entre forma e conteúdo e “passa a funcionar como uma legitimação filosófica da impotência crítica, que por falta de rigor dialético perde de vista o conteúdo, na análise formal, e a forma, na estética do conteúdo.”81 Apresentando a apoteose barroca como dialética, o autor enfatiza que o conceito de alegoria foi desenvolvido no classicismo em contrapartida ao conceito profano de símbolo, pois o “pensamento alegórico do século XVIII era tão alheio à expressão alegórica original, que as poucas tentativas isoladas de tratar teoricamente o tema são desprovidas de qualquer valor para a investigação, e por isso mesmo são ilustrativas da profundidade do antagonismo.”82 Tentando realizar uma abordagem esquemática para a relação entre o símbolo e a alegoria, Benjamin recorre à noção de tempo, na face da história que se apresenta como uma caveira, o sentido da morte, do sofrimento, não havendo nenhuma liberdade simbólica de expressão, nada de humano, afirmando que é através disso que a história “exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo.”83 Reside nisso, então, o fundamento básico da visão alegórica: a significação e a sua relação com a sujeição à morte, destacando que a natu- 78 CARVALHAL, Tânia Franco. O Próprio e o Alheio. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 48. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993. p. 29-31. 80 BENJAMIN Walter, Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1984. 81 Ibidem. p. 182. 82 Ibidem. p. 183. 83 Ibidem. p. 188. 79 66 reza sempre esteve sujeita à morte e, portanto, sempre foi alegórica, pois a “significação e a morte amadureceram juntas no curso do desenvolvimento histórico”84. Uma abordagem filosófica sobre a mortificação das obras não como “um despertar da consciência nas que estão vivas, mas uma instalação do saber nas que estão mortas”, abre caminho para a afirmação de que a “beleza que dura é um objeto do saber”85. Fazendo uma relação entre a filosofia e a ciência, Benjamin diz que a “filosofia não deve duvidar do seu poder de despertar a beleza adormecida na obra. (...) O objeto da crítica filosófica é mostrar que a função da forma artística é converter em conteúdos de verdade, de caráter filosófico, os conteúdos factuais, de caráter histórico, que estão na raiz de todas as obras significativas.” 86 Sendo a alegoria o único divertimento a que o melancólico se permite, a fragmentação é um elemento presente nessa leitura, nessa abordagem invasiva e sádica sobre o objeto, tendo em vista que é através da estrutura alegórica que os fragmentos são percebidos. E essa estrutura alegórica se alinha com a percepção de que a história é, antes de tudo, uma construção, uma elaboração do passado através de uma reminiscência, da constatação da temporalidade, da finitude, da morte dando sentido à vida, visto que o “dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”87 A necessidade de perceber o inimigo e combatê-lo não com suas armas, mas sim, derrotá-lo ao negar o seu emprego é o desafio da Crítica ao Autoritarismo presente nesta proposta. Dessa forma, a censura, segundo Candido, surge no campo da linguagem como um elemento autoritário que sustenta outras formas de opressão: Há certas expressões significativas: “O fato é homem e a palavra é mulher; um homem vale vinte mulheres”; ou: “Contra fato não há argumento”. Elas querem dizer que, diante da evidência do real, não cabem as argumentações abstratas em contrário, o que em princípio parece estar certo. Mas, na verdade, significam também coisas como “o que vale é a força” ou “idéia não resolve”. Assim, pregam o reconhecimento do fato consumado, a capitulação diante do que se impôs no terreno “prático”, negando o direito de discutir, de argumentar para mudar a realidade.88 84 Ibidem. p. 188. Ibidem. p. 204. 86 Ibidem. p. 204. 87 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2. ed. Tradução: Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 224-225. 88 CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p .205206. 85 67 A preocupação de Theodor Adorno de que a barbárie dos campos de concentração nazistas esteja calcada no próprio princípio da civilização, ao contrário de apontar soluções imediatas, traz algo de desesperador. A plenitude de um processo educacional deveria caminhar no sentido de dissuadir os homens de atacarem uns aos outros, de buscarem alternativas para a coexistência, rejeitando as “tendências desagregadoras” 89 presentes em uma ilusão de consciência coletiva e alienante. Assim, “omitir-se da confrontação com o horror (...) é mais uma fonte de risco de uma repetição do já houve”90. Da censura ao campo de concentração não existe uma distância tão grande assim, visto que o processo de apagamento do sujeito na coletividade é sustentado pelas impossibilidades de expressão humanizadoras em uma realidade autoritária em sua estrutura. Os aspectos ideológicos são sustentados pelo signo lingüístico, mas, ainda conforme Bakhtin, tal entendimento não deve ser tratado sob uma perspectiva reducionista visto que cada signo ideológico “é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade”91. Adorno preocupa-se, então, com os “jargões” ou “clichês” que permeiam a linguagem apenas para comprometerem suas bases em prol de conceitos precários/comuns que são apropriados por pessoas que conhecem superficialmente determinado assunto ou ramo do conhecimento. Tal elaboração visa apenas proteger aquele que os utiliza de emitir opiniões e pareceres sobre o que não conhece, através de relações simples e objetivas, exercendo uma força coercitiva na sociedade. O jargão da autenticidade procura legitimar o absurdo da opressão através de conceitos como missão, constituindo uma fala apelativa sem interpelação racional. “En el mundo universalmente mediado, toda experiencia primaria está culturalmente preformada”92, essa afirmação de Adorno expõe toda uma preocupação com a impossibilidade de debater conceitos essenciais como liberdade, autonomia, democracia, entre outros. O cuidado para que a literatura, como obra de arte, não recorra a esses clichês totalizantes, visto que “Arte não significa aguçar alternativa, e sim, através simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens” 93, é o desafio proposto a partir das reflexões produzidas pelas pesquisas associadas a esse projeto. Dessa forma, ao pensar Regionalidade ao invés de regionalismo, há o interesse em articular uma reflexão não restrita a uma busca identitária que, segundo Zilá Bernd, pode se 89 ADORNO, Theodor, Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. p .35. Ibidem. p . 37. 91 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 33. 92 ADORNO, Theodor. La ideología como lenguaje. Versión castellana: Justo Pérez Corral. 2. ed. Madrid: Taurus, 1982. p. 77. 93 ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991. p. 55 90 68 caracterizar em etnocentrismo, visto se tratar “de um conceito traiçoeiro na medida em que ele pode transformar-se em um conceito de circunscrição da realidade a um único quadro de referências”94. Essas considerações não procuram romper com o conceito de identidade ou com o reconhecimento do valor do regionalismo como responsável por “resguardar um importante conjunto de valores literários e de tradições locais”95. Todavia, isso não pode ser empecilho para a reflexão crítica, e questões como identidade regional, valores culturais e tradição necessitam serem tratadas à luz de suas contradições. Segundo Rama, o confronto da tradição com o novo, do regional com o universal: gera em primeiro lugar uma retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da cultura regional e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mas também com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condições peculiares, as forças de que dispõe, a viabilidade dos valores aceitos sem análise, a autenticidade de seus recursos expressivos.96 Analisar esse recuo, observar como essa retirada de fato questiona seus valores é o desafio da leitura de textos que dialogam a partir do referencial de uma identidade em transformação, mas que procura uma estabilidade consoladora do espírito. O paradoxo que pode emergir é o da não percepção das inviabilidades que estão presentes em qualquer manifestação literária, estruturando-se, assim, em uma retirada estratégica com o fim único de fortalecer as ideologias. O clima de tensão deve ser mantido para que a reflexão aconteça em nome de ideologias mais humanitárias, evitando, assim, as visões totalitárias e os modelos literários que atuam – não raras vezes - como elementos reducionistas das diversas culturas que permeiam a sociedade. Nas Passagens, Benjamin aponta para uma “pequena proposta metodológica para a dialética da história cultural” na qual estabelece uma relação muito próxima da dialética negativa97 de Adorno de que é necessário ver de uma forma dialeticamente negativa para que as contradições surjam. Segundo Adorno, as contradições não existem simplesmente na sociedade, elas surgem do processo de observação, dos enfrentamentos com valores não questionados até o momento. 94 BERND, Zilá. Identidade. In: ____. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992. p. 16. RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana. In: VASCONCELOS, Sandra Guardini T.; AGUIAR, Flávio Wolf de. ÁNGEL RAMA: Literatura e Cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001. p. 210-211. 96 Ibidem. p. 214. 97 ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1983. 95 69 É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de um modo a ter, de um lado, a parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, até 98 que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase histórica. E é assim que a literatura regional necessita ser percebida: do confronto dos seus valores com o processo de construção de novas identidades e projetos sócio-culturais até o devido reconhecimento de que qualquer produção literária compõe a história cultural. Dessa forma, a tensão que o regionalismo estabelece entre tema e linguagem, segundo Candido, deve ser entendida e percebida de maneira clara dentro do contexto de expressão e representação cultural, porque “se torna um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação e autoconsciência do país; mas pode ser também fator de artificialidade na língua e de alienação no plano de conhecimento do país” 99. A Oralidade, último elemento a compor a alegoria que embasa este projeto, se relaciona com dois fatores: o primeiro decorre diretamente da relação com a regionalidade literária, dos elementos oriundos de culturas predominantemente orais em um processo de formação identitária com base na tradição e nos valores locais e das relações com outras regionalidades. O segundo se ampara na presença de sujeitos migrantes que se relacionam (levando-se sempre em consideração as relações de poder e a tentativa de anulação dialética decorrente desse processo) entre si em uma nova realidade na qual introduzem e mantém suas tradições e costumes. É necessário também não perder de vista as relações com outros grupos locais que tentam manter elementos de sua cultura em um clima de assimilação/enfrentamento. As etnias subjugadas – em especial a escravidão indígena e negra nas Américas – também sofreram com a tentativa de apagamento de sua cultura, que sobreviveu graças à tradição oral. Cornejo Polar comenta a respeito da situação do indigenismo da seguinte maneira: É indispensável destacar, num primeiro momento, a fratura entre o universo indígena e sua representação indigenista. (...) esta cisão indica a existência de um novo caso de literatura heterogênea, em que as instâncias de produção, realização textual e consumo pertencem a um universo sociocultural, e o referente, a outro diverso. Esta 98 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 501. 99 CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: ____. Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas: Vinícius Dantas. São Paulo: duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 87. 70 heterogeneidade ganha relevo no indigenismo, na medida em que ambos os universos não aparecem justapostos, mas em contenda, e enquanto o segundo, o universo indígena, costuma mostrar-se, precisamente, em função de suas peculiaridades distintivas.100 A existência de, no mínimo, dois lados pode ser percebida nas relações sócioculturais que apontam também para uma situação de resistência a um modelo colonizador e opressor ao longo da história. Edward Said fala sobre resistência e oposição no contexto de várias identidades nacionais e de como três grandes temas surgem na resistência cultural descolonizante: Um, é claro, é a insistência sobre o direito de ver a história da humanidade como um todo coerente e integral. Devolver a nação aprisionada a si mesma. (...) O conceito de língua nacional é fundamental, mas, sem a prática de uma cultura nacional – das palavras de ordem aos panfletos e jornais, dos contos folclóricos aos heróis e à poesia épica, aos romances e ao teatro – a língua é inerte. (...) em segundo lugar está a idéia de que a resistência, longe de ser uma simples reação ao imperialismo, é um modo alternativo de conceber a história humana. Particularmente importante é ver em que medida essa reconcepção alternativa está baseada em uma ruptura das barreiras entre culturas. (...) em terceiro lugar, há um visível afastamento do nacionalismo separatista em direção a uma visão mais integrativa da comunidade humana e 101 da libertação humana. Partindo dessa visão diacrônica entre cor local e discurso de resistência e oposição, procura-se reconhecer que a oralidade não se restringe à mera vocalização do discurso verbal. Esta, segundo Lienhard102 se traduz em mais de um elemento, envolvendo vários fatores que remetem à expressão, envolvendo os demais sentidos na tentativa de captar toda a dinâmica expressiva, pois a “alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática.”103. Mesmo reconhecendo que a Oralidade se aproxima das práticas letradas, essa possui características que necessita de abordagens específicas para que ela não seja reduzida unicamente ao paradigma da escrita formal. É preciso interpretar suas manifestações como sendo uma “tradição viva”, pois não há uma limitação a contos e lendas – a tradição oral é um conhecimento de toda a cultura e sua identidade. Na África, quando um velho morre é uma biblioteca que queima... o respeito à tradição e ao conhecimento acumulado durante a vida 100 POLAR, Cornejo. O indigenismo e as literaturas heterogêneas: seu duplo estatuto social. In: ____. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Organização: Mario Valdés. Tradução: Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 169. 101 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 273-274. 102 LIENHARD, Martín. Oralidad. In: Revista de Crítica Literaria Latinoamericana – Documentos de Trabajo: Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Lima-Berkeley, 2º semestre de 1994, p. 371-374. 103 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 220. 71 evidencia uma outra forma de comunidade. Assim, viver é participar, enquanto que transmitir uma cultura, um saber, é questão de sobrevivência. No caso do Brasil, no período da escravidão, quase não havia velhos, não sendo aplicável – no seu sentido original – essa tradição na realidade brasileira. Enquanto que na África a oralidade estava atrelada a sobrevivência de uma comunidade, no Brasil – e na América – se tratava de uma questão de sobrevivência individual. O horror da escravidão só pode ser entendido – nunca compreendido – a partir dos testemunhos culturais trazidos pela tradição da cultura oral dos diversos povos explorados e subjugados. E essa proposta evidencia o reconhecimento desse jugo e dessa opressão na formação das nacionalidades americanas e nas práticas racistas que permanecem ainda na atualidade. A elaboração de uma crítica que tenta aceitar a “derrota”104, discutir suas limitações e partilhar experiências que possam contribuir com o próprio processo crítico – através dos insights advindos da Teoria Crítica da Sociedade – se evidencia como o principal embasamento. Assim, os Procedimentos Metodológicos, visando a articulação com os pressupostos teórico-críticos apresentados, vislumbram não apenas objetos de pesquisa, mas sujeitos visto que a literatura – seja escrita ou oral – se constitui em um espaço onde as identidades transitam em nome de determinada cultura ou ideologia. Quando, então, se estabelece essa forma de pensar as manifestações literárias, também se atrela a percepção do local de origem e de destino no qual esses sujeitos migrantes estão em um permanente processo de identificação. Pode-se pensar, nessa perspectiva, que o texto literário, pelo fato de a palavra que o compõe ser polissêmica, adquire essa contestação identitária mesmo dentro de aspectos de exaltação e valorização de determinada cultura. Referências ADORNO, Theodor. La ideología como lenguaje. Versión castellana: Justo Pérez Corral. 2. ed. Madrid: Taurus, 1982. ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1983. 104 A “derrota” aqui apresentada faz referência ao texto de Idelber Avelar. “Pois, se a literatura já não pode ser a redenção substitutiva em que a ontologia otimista e positiva do boom quis convertê-la, também pode ser, por outro lado, demasiado cedo para render-se ao discurso apocalíptico, pronunciar sentenças de morte sobre o literário e começar a buscar objetos substitutórios sobre os quais aplicar o mesmo otimismo positivo. Pois esses continuariam sendo, apesar de toda a euforia, objetos de uma substituição compulsiva, isto é, de uma neurose ainda ignorante de si mesma. Só instrumentalizariam, uma vez mais, a vontade de eludir a derrota, a renúncia a aceitála e pensar a partir dela que constituía, para Benjamin, o crime mais hediondo que se podia cometer contra a memória dos mortos”. (AVELAR, Idelber. Alegoria e pós-ditadura. In: ____. Alegorias da Derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 33). 72 ADORNO, Theodor, Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. 3. ed. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1991 AVELAR, Idelber. Alegoria e pós-ditadura. In: ____. Alegorias da Derrota: a ficção pósditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. BENJAMIN Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1984. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2. ed. Tradução: Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BERND, Zilá. Identidade. In: ____. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992. CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: ____. Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas: Vinícius Dantas. São Paulo: duas Cidades; Ed. 34, 2002. CARVALHAL, Tânia Franco. O Próprio e o Alheio. São Leopoldo: Unisinos, 2003. LIENHARD, Martín. Oralidad. In: Revista de Crítica Literaria Latinoamericana – Documentos de Trabajo: Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Lima-Berkeley, 2º semestre de 1994, p. 371-374. POLAR, Cornejo. O indigenismo e as literaturas heterogêneas: seu duplo estatuto social. In: ____. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Organização: Mario Valdés. Tradução: Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana. In: VASCONCELOS, Sandra Guardini T.; AGUIAR, Flávio Wolf de. ÁNGEL RAMA: Literatura e Cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 73 ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS E O DRAMA SOCIAL FILTRADO PELO DRAMA DO INDIVÍDUO Francieli Daiane Borges105 Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique106 Resumo: Graciliano Ramos criou modos literários nos quais descreve complexos e variados lados na natureza humana, as suas paixões, desgostos e motivos de seus impulsos. Nesse sentido, a vaidade e o orgulho rompem, mediante a expressão trágica, com os traços de polidez impostos pelos costumes e hábitos. O romancista descreve a sordidez dos ambientes e a pretensa conduta dos personagens, evidenciando os pontos em comum com situações reais. Nos escritos do autor nordestino, algumas características são fortemente marcadas. Por vezes são o equilíbrio e quase excesso de lucidez, ou impulsos desordenados e desvairados, que vem do âmago de suas personagens. A problemática da virtude e as relações permeadas por impulsos vis aparecem como uma realidade onde todos nos inserimos. Este trabalho se fundamenta a partir da pesquisa bibliográfica, visando a uma reflexão de cunho interpretativo-hermenêutico do texto de Graciliano Ramos, tendo por fundamentação teórica a sociologia literária e a Teoria Crítica da Sociedade (Escola de Frankfurt). Palavras-chave: Teoria Crítica. Regionalidade. Cultura. 1. Introdução Este trabalho integra o projeto de pesquisa Regionalismo e Regionalidade em Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos: diálogos sobre formação cultural, coordenado pelo professor João Luis Pereira Ourique, no âmbito das investigações do grupo de pesquisa Ícaro – Interdisciplinaridade, Crítica ao Autoritarismo, Regionalidade e Oralidade. O objeto de estudo é o livro Angústia (1936), que trata em seu universo romanesco a insularidade, a insensibilidade e a frustração do ser humano. Em seu fluxo narrativo, há a organização de um duplo processo de rememoração aonde o narrador/personagem, envolto por pressentimentos ruins, necessita compartilhar a experiência triste e solitária. Para que o texto pudesse ser contextualizado quanto a seu período histórico, hábitos e visões de uma geração que viveu na década que iniciou com a Grande Depressão e terminou com a Segunda Guerra Mundial, foi feita a fundamentação a partir de teóricos que compreendem a literatura como um meio de refletir acerca das manifestações sociais, tais como Antonio Candido, Theodor Adorno, Erich Auerbach, além de pesquisas em outras obras do próprio Graciliano Ramos e em textos do grupo de pesquisa Ícaro. 105 Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Pelotas e bolsista PROBIC/FAPERGS. 106 Orientador 74 2. Fundamentação Os estudos da Escola de Frankfurt direcionados aos problemas formais da literatura (Theodor Adorno e Walter Benjamin, principalmente), demonstraram a profunda conexão com a desumanização do capitalismo industrial e as repercussões negativas das experiências de violência extrema do século XX. A fragmentação das obras expressa a impossibilidade de comunicação plena do que vivemos, em razão da complexidade e do caráter perturbador da experiência a ser representada. Caso de Angústia, um livro permeado por descontinuidade e incertezas. A obra de Graciliano Ramos com a qual trabalhamos, intitulada por Antonio Candido107 de “romance excessivo”, é contrastada com “a descrição e despojamento dos outros romances”. O crítico acentua que nele há “partes gordurosas e corruptíveis”. Reconhece, no entanto, que “talvez por isso mesmo seja mais apreciado”. A composição do texto não é a que se encontra nos padrões clássicos, já que trabalha com a inversão da ordem cronológica, além da presença de micronarrativas autobiográficas repletas de comentários irônicos. A criticidade fica em evidência, muitas vezes, na repetição impulsionada pela narração do paranoico obsessivo. De acordo com Antonio Candido108, em meados de 1930 a literatura e o pensamento sofriam uma grande mudança: A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolvia no romance e no conto, que viviam em uma das suas quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural e formação do proletariado; poesia e luta do trabalhador; êxodo rural e cangaço; vida difícil das cidades em rápida transformação. Nesse tipo de romance, o mais característico do período e frequentemente de tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. Em Graciliano Ramos, a humanidade singular dos protagonistas domina os fatores de enredo: meio social, paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina o importantíssimo caráter do romance, nessa fase, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros 109 de radicalismo da nossa história. O próprio Graciliano Ramos evidencia, anos mais tarde, em Memórias do Cárcere, a escassez de continuidade em Angústia, diz que “o diabo era que o livro abundava desconexões, talvez irremediáveis”.110 107 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 32. 108 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000. 109 Ibidem. p. 114. 110 RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. 2ª ed. São Paulo: Record, 1954. p. 42. 75 Luís da Silva – tido como uma das personagens mais dramáticas da moderna ficção brasileira – é narrador e personagem do romance. Sua percepção tem tendência a sentir em demasia as brutalidades das situações banais do dia-a-dia. Funcionário público e, nas horas vagas e noturnas, jornalista e escritor, se aproxima muito da realidade cultural de Graciliano Ramos. De acordo com o autor “o meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda parte.”111 O narrador/personagem possui outra peculiaridade, que é a frequência com que lava as mãos. Essa atitude é entendida como um indicativo de que se sente sujo por fora assim como se sente sujo por dentro: Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão de quem não sei por onde andou... Preciso muita água e muito sabão. (...) Se me dessem água para lavar as mãos, acomodar-me-ai lá. Se me dessem água para lavar as mãos, estaria tudo bem.112 Luis da Silva tem um desejo patológico pela intimidade alheia. Visões eróticas povoam seus pensamentos e isso fica evidenciado logo nas páginas iniciais, quando ainda está descrevendo Marina. No decorrer do romance, porém, essa tendência se torna assustadoramente excessiva: Mas quando se calavam, vinham-me suposições que me davam tremuras. Provavelmente dona Adélia tinha ido à cozinha preparar o café. E os dois aproveitavam o tempo. Sem dúvida. Imaginava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida. (...) Pare113 cia-me que meu quarto se enchia de órgãos sexuais soltos, voando. Sobre a evidente obsessão da personagem, nesse aspecto, Antonio Candido diz que: A violenta fixação fálica está diretamente ligada ao tom de sexo recalcado, ao abafamento psicológico do livro. O menino que viveu sozinho, o adolescente sem amor, insatisfeito, que se expande num falismo violento; este, entrando em conflito com a consciência de recalcado, o interioriza , o inabilita para relações normais, e o leva, num assomo de desespero, a matar Julião. Matá-lo com a corda, imagem que liberta, 114 por transferência, a energia frustrada de sua virilidade.” O Brasil descrito pelas micronarrativas é o da República Velha (1989-1930). Ali estão as raízes sentimentais do personagem principal, um representante típico da juventude tenentista. Nas comunidades rurais alagoanas, o relacionamento entre as pessoas é áspero e ru111 Idem. RAMOS, Graciliano. Angústia. 63ª ed. São Paulo: Record, 2008. p. 125. 113 Idem. 114 CANDIDO, Antonio. Ficção... p. 38. 112 76 de. São sobreviventes de um mundo que está ruindo. Assim, Luís da Silva se desliga da vida familiar e rural, entusiasmado pela transformação revolucionária da cidade. As viagens dele complementam o relato da experiência infantil e juvenil no campo. A evocação do passado subverte os acontecimentos do presente, em uma repetição constante. Um importante aspecto analisado no texto do autor nordestino é o culto à violência – empregada em forma de humilhação a espancamento – que torna possível observar a crítica a uma sociedade insensível, que vê os atos violentos como forma respeitável de punição, que obedecem inclusive a níveis hierárquicos: Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e 115 o que é ruim, tão embotados vivemos. Isso se explica, segundo Rosenfeld e Auerbach, pela profunda mudança social e, portanto, na forma de pensar das pessoas. Essas transformações levariam à necessidade de representação de uma consciência multiforme e aberta a contradições, que se expressaria na instabilidade de conduta de narradores, na construção de personagens marcadas por paradoxos e vazios, na inutilidade ou impenetrabilidade de ações: Entro no quarto, procuro um refúgio do passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me i116 nocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. É possível abordar na narrativa a frustração, em diversas passagens. Ou está presente uma indiferença brutal, que talvez disfarce uma escassez de auto-estima, ou o sentimento gritante de fúria e aversão das pessoas e coisas. O clima opressivo absorve o leitor, porque a vida é compreendida com um negativismo tão forte, que se torna difícil distinguir o real do imaginário. Há, no romance, excesso de negação e amargura por parte das personagens. É como se assistissem resignadas a suas próprias vidas, sem perspectiva ou, como diria o próprio autor, “movendo-se como peças de um relógio cansado”117: O guarda-civil do relógio oficial veio para a cidade e arranjou emprego. É um sujeito magro como eu, civilizado como eu. Se houver barulho na rua, ele apita. Se houver greve nas fábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas, atira tremendo. As greves acabam. E ele voltará para a chateação do ponto, magro, triste. É pouco mais ou 118 menos como eu. 115 RAMOS, Graciliano. Angústia. p. 194. Ibidem. p. 24. 117 Ibidem. p. 195. 118 Ibidem. p. 196. 116 77 O drama envolve a todos, porque além de Luis da Silva ser espectador dos seus problemas individuais, observa também os indivíduos ao seu redor, ou seja, as pessoas que a vida puniu sem motivo aparente. Esse é o caso do sertanejo de suas memórias – que os vizinhos julgaram estuprador -, condenado pelo júri, mesmo inocente: Tratando a doença da filha com remédios brutos da medicina sertaneja, o homem ti119 nha sido preso, espancado, julgado e condenado. O relato das personagens evidencia a inércia na qual estão. Luis da Silva é os vê com desespero, já que a visão que tem deles é uma projeção de si mesmo. O mundo que os envolve é duro, sem anseios, com infinitas misérias sem porquês e sem saída. A velha Germana, por exemplo, acostumada desde sempre com tão pouco que já nem tem desejos, mesmo os mais simples. Situação muito próxima a de Quitéria, que de tão bruta, é insensível. Ou Vitória, meio surda, que usa os sapatos velhos do patrão e um xale preto, amarelado, que segundo o narrador, deve ter uns dez anos. A seca - questão constantemente abordada por Graciliano Ramos - está presente em Angústia, embora seja apresentada com um tanto de insensibilidade, por parte do personagem principal: O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção. De resto, a dor dos flagelados naquele tempo 120 não me fazia mossa. A narrativa discorre lenta, até o clímax. A ideia do assassinato surge vaga, com insônias constantes, lembranças de morte – ainda que sem nitidez, até que aparece incisiva, na página 30, “enfim, desejava matar o homem que me roubava o sono”. Julião Tavares aparece, então, como a personificação da imundice. É uma caricatura de tudo o que Luis da Silva tem asco. Fisicamente sujo (narrado constantemente como “suado”) como moralmente, já que esse “patriota e versejador” tantas vezes explicita um caráter reprovável e intimidador. É possível notar a referência naturalista em inúmeras passagens, nas quais o autor compara seus personagens com animais. Julião Tavares, por exemplo, é comparado com pa- 119 120 Ibidem. p. 81. Ibidem. p. 33. 78 vão e com rato. Luís da Silva se compara diversas vezes com um rato. Marina é descrita, no início da ficção, como “uma gata que se enrola e mia”121 Ainda de acordo com Antonio Candido: tecnicamente, Angústia é o livro mais complexo de Graciliano Ramos. Senhor dos recursos de descrição, diálogo e análise, emprega-os aqui num plano que transcende completamente o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são uma espécie de realidade fantasmal, colorida pela disposição mórbida do narrador. A narrativa não flui, como nos romances anteriores. Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade e o presente, descrita com saliência naturalista, constan122 te evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação expressionista. O texto de Graciliano Ramos culmina em um processo não linear, fragmentário. Em Angústia aparece, na verdade, outra forma de escrever romance, talvez mais adequada à matéria ali narrada. As questões sociais são constantemente abordadas. Há a negação gritante de uma sociedade que aceita todo tipo de absurdo e Julião Tavares aparece, muitas vezes, como símbolo de valores burgueses decadentes. O fluxo narrativo de Angústia, no futuro do pretérito, parece nunca se realizar no plano real. O personagem principal diz: “Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas as minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino.” 123 A obra toda é permeada por lampejos de esperança e sofrimento, pela vontade e pela fraqueza, e as boas intenções comumente se chocam com a brutalidade do real em seu universo romanesco. Esse texto, na direção da subjetividade, retrata questões ainda hoje vivenciadas, sendo possível a identificação com o leitor. Referências AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo. Perspectiva, 1976. ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: VÁRIOS. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 2ª ed. (Os Pensadores). CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000. 121 Ibidem. p. 110. CANDIDO, Antonio. Ficção... p. 80. 123 RAMOS, Graciliano. Angústia. p. 197. 122 79 ____. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. RAMOS, Graciliano. Angústia. 63ª ed. São Paulo: Record, 2008. ____. Memórias do Cárcere. 2ª ed. São Paulo: Record, 1954. 80 AS LINGUAGENS DO AUTORITARISMO EM SARGENTO GETÚLIO, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO E O CORONEL LOBISOMEM, DE JOSÉ CÃNDIDO DE CARVALHO Paulo Fernando da Silva Furtado124 Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique125 Resumo: A leitura de O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho, relacionada a Sargento Getúlio, obra de autoria de João Ubaldo Ribeiro, permite compor um panorama estético e social das formas de repressão, desde as mais sutis até as mais brutais. O autoritarismo é representado pelo Coronel - cuja liderança restrita e regional depende da posse da terra - e pelo policial que executa cegamente as ordens a ele atribuídas. Em ambos os casos, os narradores relacionam-se com políticos que determinam mudanças nas suas posições sociais e econômicas. As linguagens presentes nas obras se caracterizam por serem particularmente funcionais para os meio onde as personagens circulavam, seja pela falácia ou simples imposição, seja pelos gritos, expressão corporal ou violência física. Em ambos os casos, as narrativas autobiográficas constroem as personagens, mas a compreensão do contexto só é possível se confrontadas sob múltiplos enfoques, incluindo as “vozes” das outras personagens que são abafadas ou aparecem sob o discurso dissimulado. A partir da abordagem bakhtiniana, procurar-se-á discutir várias modalidades de coerção presentes em ambos os livros, que podem ser analisadas sob a perspectiva da sociologia literária. A presença do sério-cômico pautará a discussão em prol do questionamento das estratégias de manutenção de estruturas políticas e sistemas de privilégios das classes dominantes. Palavras-chave: Autoritarismo. Contexto sócio-econômico-político. Linguagem. O princípio de aproximação entre as obras O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho e Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, presente nesta pesquisa, pretende transcender questões meramente estéticas e temáticas a partir da análise das personagens-narradores. Essa reflexão tem por base a relação dos recursos narrativos com o panorama histórico-social, evidenciando as formas de repressão ali presentes, desde as mais sutis até as mais brutais. Estes narradores são agentes básicos dos sistemas sociais autoritários presentes nas narrativas: o proprietário de terras e o policial, problematizados em suas concepções de direito e Estado. Uma leitura profunda requer a busca daquilo que está por trás do discurso e exige que o leitor reconheça subentendidos e pressupostos, a partir das diferenças entre o que os personagens pretendem contar, as impressões que desejam causar e o que é realmente revelado. O Coronel, cujo testemunho está permeado por ilusões, mas que sem querer revela a realidade. O Sargento, cuja perda do “posto” faz com que ele demonstre um caráter complexo, 124 125 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas Orientador 81 revela fatos implícitos, muitos dos quais nem ele próprio tem consciência. Ainda muitas relações podem ser estabelecidas entre esses os narradores. Ambos relacionam-se com políticos que determinam mudanças nas suas posições sociais e econômicas. As formas de expressão e de comunicação dessas personagens são particularmente funcionais para os meio onde circulavam, impondo as suas vontades, seja pela falácia ou simples imposição, seja pelos gritos, expressão corporal ou violência física. Embora ambas as narrativas sejam puramente ficcionais, elas podem apresentar a possibilidade de uma leitura a partir do elemento autobiográfico. Os testemunhos geralmente podem ser questionáveis, pois segundo Beatriz Sarlo126 estão subordinados a fatores como a própria memória. Além de outros elementos que tornam o caráter de qualquer testemunho incompleto, como nestes livros, nos quais há lacunas na narração e os narradores não são confiáveis. Ainda ambos os narradores sofrem mudanças de estados psicológicos, que fazem com que se questione a lucidez deles à medida que se aproxima o desfecho. Em muitos casos, por tratarem-se de mentiras, lorotas e falsos argumentos firmados mais pela força do que pela lógica, mais pela opinião do que pela razão. Esses fatos implícitos, por trás dos depoimentos dos narradores, permitem compõe planos mais profundos de significação, de forma que esses significados deduzidos através do contexto tornem-se tão ou mais relevantes do que o enredo “visível”. Assim esta investigação seguirá expandindo também relações intertextuais, estabelecendo associações com outras formas de representação que se tornem relevantes para o aprofundamento da leitura. À medida que a estrutura dos dois livros sugere a desconfiança para com narrações unitárias, mais aumenta o caráter de incompletude e de suspeição acerca dos protagonistas e do próprio enredo. Dessa forma questionam-se também os processos de escrita da história, tanto na ficção, quanto na realidade, já que ambos os narradores são representantes de como a ideologia dominante se manteve, por um período, no qual justamente as convenções da sociedade estavam transitando entre a afirmação e o questionamento das mesmas. Em ambos os casos, as personagens são construídas pelas narrativas autobiográficas e a compreensão do contexto, só é possível se confrontadas sob múltiplos enfoques, incluindo as “vozes” das outras personagens que são abafadas ou aparecem sob o discurso dissimulado, logo, buscam-se elementos de polifonia no discurso. Nas reações das outras personagens diante do “narrador suspeito”. A partir da perspectiva dialética-lógica de Bakhtin, foram estabelecidas relações entre a identidades sociais assumidas pelos narradores. Também recorremos aos conceitos de 126 SARLO, Beatriz. Tempo passado; cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. [Cap 1: pp. 9-22; Cap 2: pp. 23-44]. 82 polifonia, para explorar nas “vozes do outros” as respostas para o não-contado, considerando que “Desta forma, aqui é introduzida a fala de outrem no discurso do autor (narração) sob uma forma dissimulada”127. Já que, nestes casos, os narradores autodiegéticos limitam a um ponto de vista, precisa-se observar as falas das outras personagens que nos chega de forma indireta, exclusivamente pelos narradores.: “Aquilo que é inacessível ao olhar de uma pessoa é o que preenche o olhar da outra. Logo, na esfera das relações humanas e da comunicação o excedente da visão é tão importante quanto aquilo que se oferece explicitamente ao olhar .”128 Principalmente nas vozes que se opõem as eles, pois esses confrontos, é que permitem a formulação de hipóteses, a partir da reação das outras personagens, é que se chega ao enredo implícito. A língua coloquial estilizada permite o questionamento de estruturas sociais conservadoras, também presentes nos seus aspectos lingüísticos, que entram em choque com novos sistemas sociais. Há de se considerar que eles representam pressupostos sociais e convenções, que legitimavam a violência inclusive na atuação política e policial. O autoritarismo inserido numa lógica, baseada na tradição, que lhe sustenta, pois transcorre naturalmente, como se fosse indispensável à ordem social. Porém, em contraste com os hábitos urbanos, entram em choque com essas noções regionalizadas dos narradores-personagens. Nestes contextos, permitem o cruzamento de conflitos entre os interesses particulares e serviço prestado ao Estado. Nos dois livros, estes agentes da dominação local seguem regras próprias, que entram em choque com a própria idéia de “unidade nacional”, cujo um dos princípios é a língua. Este é o primeiro elemento simbólico que as personagens desestruturam. A própria noção de Estado não foi ainda absorvida, como se eles vivessem à margem do processo de civilização da sociedade. Os conceitos regionalizados de nação, Estado e Direito não se baseia nos interesses do povo, mas em concepções conservadas pela tradição para a garantia de poder para as elites, associam-se a problemas não resolvidos até a atualidade. Os traços típicos de sujeitos rurais que O Coronel condensa são de proprietários oriundos de uma época meio “imprecisa”, mas que mostram que o sistema teve um período prolongado e foi mudando para se manter. Assim, analisaremos as estruturas do coronelismo, segundo Barbosa Lima Sobrinho (1978), em seus três pontos fundamentais: terra, família e agregados. Já em Sargento Getúlio parte-se de marcadores temporais mais específicos: Coluna Prestes, Getúlio Vargas e Cristiano Machado, mas que também sugere uma presença contí127 BAKHTIN, Mikhail. O Plurilinguismo no Romance. In: Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP; Ed. Hucites, 1990. 128 BAKHTIN, Mikhail. M. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de Dostoiévski. In: Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. (p.87-155). 83 nua dos sistemas repressivos, pois a publicação de Sargento Getúlio, em 1971, com a temática do “preso político”, trás o questionamento de visões totalitárias, e a sua manutenção em diferentes momentos históricos. As formas de opressão, analisadas de acordo com Antônio Cândido129, nos permitem identificar ações violentas, muitas vezes, que contaram com o aparato do próprio Estado, em nome de um suposto bem-comum. O autoritarismo pode ter na linguagem o elemento básico, mas que se sustenta em outras formas de repressão, conforme se percebe nas ações do Coronel. Neste caso, a idéia de superioridade sobre os demais, em que as palavras do Coronel jamais eram questionadas no meio rural. Já em Sargento Getúlio são questionadas as ações dos policiais e daqueles que o dirigem. Nos dois casos as personagens se autodenominam detentoras da verdade. Na busca de indícios de manutenção dos sistemas repressivos, nos basearemos em Antônio Cândido130, que declarou que em bases de discursos se sustentam falsas “verdades”. Isso inclusive nas ações do cotidiano, em que se exerce a autoridade através da coerção verbal. As convenções elitistas são estabelecidas na ostentação e nas aparências. Em ambos, questionam-se identidades regionais, seus valores culturais e tradições em oposição aos hábitos urbanos mais modernizados. Nos dois livros, podemos estabelecer o confronto dos valores, processos de construção de identidades, novos processos sócio-culturais, de trabalho, política, profissão e família. As incoerências nas concepções de Estado serão consideradas a análise de José H. Dacanal 131 , cujo texto está no prefácio de Sargento Getúlio. Estas serão analisadas segundo nas ações de vários setores: elementos do Estado, da polícia e da política. Este crítico classificou estes livros como pertencente ao ciclo da Nova Narrativa Épica Brasileira. Essa classificação é questionável, pois as obra não se encaixam no sentido épico convencional. Principalmente Sargento Getúlio que enfoque individualizado, que decorre em poucos dias. Assim, contraria as noções tempo e a distribuição dos fatos das formas típicas dos romances épicos tradicionais. Além disso, nestas narrativas há de se problematizar as formas particulares como lidam com elementos fantásticos. Portanto, essa classificação no gênero épico é problemática, pois para isso só seria possível se considerarmos os livros como representantes de processos contínuos de repressão, nos quais sistemas semelhantes que vem se renovando há várias décadas. 129 CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993 Idem. 131 DACANAL, José Hildebrando. Nova Narrativa épica no Brasil : uma interpretação de Grande Sertão : Veredas, O coronel e o lobisomem, Sargento Getúlio e os Guaianãs. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1988. 130 84 As noções de realidade são problematizadas pela própria natureza dos focos narrativos adotados e o caráter de cada narrador. Diferentemente do texto histórico e realista tradicionais que segundo Tiphaine Samoyault “estavam ali para conotar o realismo, para suscitar um efeito de real e produzir no leitor a ilusão realista ou referencial.” 132 Isso permite concluir que nestes livros: elas não se esforçam para provocar esse efeito, mas ocorre o contrário. Portanto o início da investigação sobre processos sociais de identificação dos narradores com estruturas sociais autoritárias, pretende relacionar literatura, sociedade e fatos históricos baseado nesta autora, que considera que num livro pode haver tanto a retomada de textos literários, como também a recuperação de “materiais emprestados da realidade”133. Assim permite reflexões críticas a partir de ações do cotidiano, das relações indivíduo e Estado, Justiça e política, campo e cidade, província e nação. Também será considerado o pensamento de Hannah Arendt, que desenvolve uma leitura crítica sobre a “reconstituição do Estado (após o feudalismo), que, porém, não resolve o problema fundamental: a origem da legalidade do poder do Estado.”134 Neste caso, as bases autoritárias e imperialistas servem para construir um sentido de “nação” com tendências repressoras e expansionistas. Isso porque que, muitas vezes, ele pode estar assentado em bases autoritárias e imperialistas. Ambos os livros abordam várias modalidades de coerção, que podem ser analisadas sob a perspectiva da sociologia literária. Nessas representações, com a presença do sériocômico, como elementos da sátira clássica, inclusive a carnavalização do próprio discurso, para o questionamento das estratégias de manutenção de estruturas políticas e sistemas de privilégios na sociedade pelas classes dominantes. Então, a análise das obras, segundo as teorias de Bakhtin135, busca identificar também nos traços de carnavalização, as formas como o gênero se renova, para exercer sátira sobre o sistema político-social. Dessa forma, identificar nas “situações extraordinárias”, o fim filosófico e ideológico. As duas narrativas proporcionam leituras baseadas na concepção da natureza dialógica do pensamento humano, que se opõe ao “monologismo oficial que se pretenda dono de uma verdade acabada.”136 A imagem do narrador, na sua fluente narrativa, em que a linguagem é um instrumento de poder, em um contexto regional, cujo autoritarismo possui bases que lhe sustenta e transcorre naturalmente. Entretanto, essa identidade autoritária, embora possa ser bem mais “polida”, desenvolve sé132 SAMAYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. Tradução: Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 109. 133 Ibidem. p. 104. 134 ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Hirizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 235. 135 BAKHTIN, Mikhail. Particularidades... 136 Ibidem. p. 94. 85 rios conflitos, no espaço urbano, que não são percebidos pelo narrador-personagem da história. A publicação de 1964 sugere uma manifestação posterior do regionalismo modernista, ao qual se associa por questões relacionadas à posse da terra, a inclusão social e outras questões não resolvidas até a atualidade. Referências ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Hirizonte: Ed. UFMG, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de Dostoiévski. In: Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. (p.87-155). ____. O Plurilinguismo no Romance. In: Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Unesp; Ed. Hucites, 1990. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilienses, 1985. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1985, 7ª ed. ____. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993 CARVALHO, José Cândido de. O Coronel e o Lobisomem. 34ª ed. Rio de Janeiro, , José Olímpio, 1985. DACANAL, José Hildebrando. Nova Narrativa épica no Brasil : uma interpretação de Grande Sertão : Veredas, O coronel e o lobisomem, Sargento Getúlio e os Guaianãs. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1988. FAORO, Raymundo. 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[Cap 1: pp. 9-22; Cap 2: pp. 23-44]. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988. TODOROV, Tzetan. Introdução à Literatura Fantástica. Premia editora de Livros S. A. México, 1980. 87 O CONTEXTO DE REPRESSÃO E AS NARRATIVAS FICCIONAIS NAS OBRAS DE AUGUSTO ROA BASTOS E MARIO VARGAS LLOSA Juliana Terra Morosino137 Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique138 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação com enfoque na Literatura e a Crítica social através do comparatismo de duas obras de gêneros distintos do autor paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005) e um romance do peruano Mario Vargas Llosa obras pertencentes ao mesmo período sócio histórico. O aporte teórico norteador desta análise se evidencia na Teoria Crítica da Sociedade, as reflexões de Walter Benjamin darão subsídios para uma melhor compreensão da narrativa de Roa Bastos, produzida em meio à ditaduras militares, a decorrente Guerra do Chaco e o exílio. Propõe-se um diálogo entre as teorias da Crítica Social e a Crítica Latino-Americana Contemporânea, que irá discutir este sujeito produtor e leitor de narrativas. Desta forma, comparar espaços discursivo-teóricos em períodos temporais distintos refletindo acerca de aspectos sociais em regimes militares, a literatura de trauma e testemunhal nas obras ficcionais. Palavras-Chave: Literatura Latino-Americana. Autoritarismo. Augusto Roa Bastos. Mario Vargas Llosa. 1. Introdução Os estudos de Benjamin, ainda que não estejam direcionados especificamente para a natureza da Literatura – embora tenha produzido importantes ensaios sobre obras literárias de renomados autores como Kafka –, dão conta de observar uma nova compreensão da história humana, [para ele] “os escritos sobre a arte ou literatura só podem ser compreendidos em relação a essa visão de conjunto a iluminá-los de seu interior”139. A forma literária, por exemplo, passa a ser a linguagem que supõe a expressão de si mesma, como a revelação de um instante, aquilo que por imagens utiliza a linguagem para torna-se unidade. A imagem é uma das principais categorias dos estudos benjaminianos140 para ele será um elemento capaz de estabelecer vínculos entre o real e o imaginário, é também uma fonte especulativa do discurso histórico e forma do conhecimento. Assim como assevera Willi Bolle: A “imagem” é a categoria central da teoria benjaminiana da cultura: “alegoria”, “imagem arcaica”, “imagem de desejo”, “fantasmagoria”, “imagem onírica”, “imagem 137 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas. Orientador 139 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso do incêndio. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 14. 140 Cf MAIO, Sandro. Imagens em Walter Benjamin: universo ficcional e Literatura. Revista Fronteiraz, revista digital do grupo de pesquisa “O narrador e as fronteiras do relato.” PUC-SP Vol.2. n.2. p. 1 – 10, dezembro. 2008. 138 88 de pensamento”, “imagem dialética” (...) A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre esteve ligada, em virtude de sua qualidade mágica e mítica. Por meio de imagens – no limiar entre a consciência e o inconsciente – é possível ler a mentalidade de uma época.141 Benjamin assim caracteriza a literatura como uma forma em potencial de conhecimento e a imagem como um meio de atingir ou resgatar um saber que ficou no passado. 2. Obras e contexto histórico-social Pensando no passado histórico como um mecanismo para tirar os sujeitos do conformismo, passamos a compreender melhor as obras de Roa Bastos, uma vez que se percebe em sua narrativa a dialética entre o discurso oficial, o discurso testemunhal e ficcional e a reescrita desta história. Suas obras revelam narrativas silenciadas, que suplementarão o ontem, reconstruindo o hoje e o amanhã daquela nação. Deste modo, o recorte deste trabalho consiste na análise do romance Contravida (1994) de Roa Bastos relacionando-o com o conto La excavación pertencente ao primeiro livro do autor El trueno entre las hojas (1968) em análise comparativa com o romance La ciudad y los Perros (1963) do peruano Mario Vargas Llosa. Tais obras refletem momentos sócio-políticos conturbados, autoritarismo e repressão militar. Desta forma, o cerne de nossa investigação é o comparatismo da representação do autoritarismo e a memória coletiva em ambas as obras e suas configurações na reescrita de uma verdade histórica documental (oficial) através da narrativa ficcional dos referidos escritores. Exilado político, guerrilheiro em luta pela liberdade de seu povo, Augusto Roa Bastos é considerado um dos grandes nomes da literatura de seu país e um dos principais defensores dessa nação. Desde jovem acompanhou as “revoluções” e ditaduras pelas quais passava o Paraguai e como voluntário alistou-se a fim lutar pelo progresso de seu povo. Desta forma, aos quinze anos, participou da guerra do Chaco como enfermeiro, ainda que seu objetivo primeiro fosse a frente armada e poder ser testemunha daquele desumano confronto. A obra roaniana é posta como parte do Cânone do século XX por Carlos Fuentes, em artigo publicado no periódico El País (2011),142 apresenta uma linha do tempo literária de grandes obras que marcaram a história da literatura latino-americana. Roa é visto por Fuentes como um dos mais impor141 BOLLE, Willi. Fisignomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin. 2 ed. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. 2000. p. 42. 142 FUENTES, Carlos. 27/08/2011. Estirpe de novelistas. TRIBUNA: EN PORTADA - OPINIÓN CARLOS FUENTES. El País/Espanha. 89 tantes escritores do século passado, juntamente com grandes nomes de nossa literatura como Alejo Carpentier, García Márquez, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, entre outros. Suas grandes narrações se baseiam sobre os nós mais importantes da história paraguaia: as missões jesuíticas do séc. XVIII, a Guerra da Tríplice Aliança (séc. XIX), a Guerra do Chaco e a ditadura do séc. XX. Nestas obras soube mesclar com equilíbrio o documental e o ficcional, até construir um modelo muito pessoal do romance histórico. Nos anos 90 do séc. XX Roa Bastos escreve o romance Contravida, quando o escritor estava exilado, feito que perdurou por aproximadamente 40 anos, período da ditadura de Strossner, pois segundo o déspota Bastos era visto como um comunista, uma vez que sempre atento as acontecimentos em sua terra insistia em abordar temas de fundo crítico-social e contestar versões oficiais da história paraguaia. Contravida é a penúltima obra de Roa Bastos, romance que apresenta uma trama entre dois tempos e espaços, o externo onde um “subversivo” sobrevivente da guerra civil paraguaia faz uma viagem de trem de Assunção até Encarnação, onde supõe estar sendo seguido por policiais a paisana, sua trajetória neste caminho se mescla com uma viagem interna, através de suas lembranças da cidade onde nasceu e cresceu e da tentativa de reconstruir sua história através da rememoração. Ao retornar à esta cidade (imaginária) realidade e fantasia se confundem, a idealização ou mesmo utopia na reconstrução imaginativa de seu “porto seguro” tornam o trem um ambiente de transição entre presente e passado, como um túnel que liga dois tempos em um fluxo totalmente permeável. A narrativa termina com o assassinato do protagonista pelos policiais que o seguiam. Em La excavación, Roa Bastos nos apresenta um conto de guerra e de fracasso de um preso político. A história de Perucho Rodi, um ex-combatente paraguaio e sobrevivente da Guerra do Chaco: preso na guerra civil em seu país, que havia acabado há seis meses, a personagem tenta construir um túnel (real) juntamente com seus companheiros de cela a fim de alcançar a margem de um rio que os levaria à tão almejada liberdade. Ao final da narrativa todos os presos são chacinados pelos policiais e o protagonista é soterrado no túnel. Há um forte elo entre ambas as obras, o conto supracitado foi escrito em 1968 e apresenta um trágico “relato” do que possivelmente ocorria/ocorreu durante a guerra civil paraguaia, como resultado, na narrativa fica explícito que não houve sobreviventes dentre os presos da cela na qual se construía o túnel. Entretanto, quando escreve Contravida em 96, mais de 20 anos depois de La excavación, Roa reinscreve na memória de seus leitores o referido conto, apresentando como protagonista de Contravida um sobrevivente da chacina de La excavación. Essa intertextualidade provoca um diálogo constante entre as obras, não somente no 90 que tange a aspectos estéticos e de estrutura narrativa, mas principalmente permite que se circule por períodos temporais e espaciais (internos e externos) comuns, proporcionando a reflexão da real dimensão da memória histórica e ficcional deliberadamente manipulada pelo narrador das mais diversas formas. Quanto a Teoria Crítica Social, e a concepção benjaminiana de passado, em se tratando de produções literárias que retratam um período histórico experienciado pelo autor a memória individual passa a ser a representação de uma memória coletiva e a obra literária, enquanto produção humana é parte integrante de um contexto históricosocial específico. Desta forma, entende-se que as narrativas de Roa Bastos por estarem imersas em experiências pessoais e testemunhais incidem na solidificação de uma memória coletiva paraguaia. Nos intriga saber de que forma essa memória se constitui. O maior nome da Literatura peruana, Mario Vargas Llosa em 1961 publica o romance que lhe resultaria no Nobel de Literatura do ano de 2010, La ciudad y los perros. O argumento da narrativa está centrado nas questões de autoritarismo militar e educação, pois tratase de um colégio militar (Leoncio Prado), onde adolescentes recebem uma educação escolar equivalente ao ensino médio – baixo à duras disciplinas militares, a narrativa apresenta diferentes histórias de alunos que são obrigados a conviver em uma forma de vida alienante que não permite os seus desenvolvimentos como seres humanos, onde são constantemente submetidos a humilhações e castigos. Assim como a crítica de Llosa relata, as obras deste autor, busca tratar de questões polêmicas, em La ciudad y los perros não seria diferente. Vargas Llosa critica a forma de vida e culturas onde se valorizam determinadas condutas, como a violência, a valentia, a sexualidade, a hombridade, o machismo, etc. que acabam bloqueando o desenvolvimento destes jovens neste internato. Em suma nos debruçaremos neste estudo para compreender a reconstrução da memória como resgate do silenciamento de vozes provocado pela repressão militar e os conflitos decorrentes dela, investigando a hipótese de que através da narrativa ficcional as obras supracitadas possam estar reinventando/reinscrevendo a “outra” verdade histórica. Pretende-se ao longo da análise posterior a ser feita a partir deste artigo, traçar um panorama temporal sobre os conceitos de história e memória, que dialogam entre si em um vínculo coerente entre a visão crítica da teoria Benjaminiana séc.XX e a crítica contemporânea séc.XXI. Frente a estes comparativos, focalizaremos nos objetos artísticos aqui apresentados, a fim de que se alcance respostas às indagações constitutivas dos objetivos que se apresentam a seguir: Analisar de que forma Roa Bastos reescreve importantes períodos da história para- 91 guaia. Apontar a relevância dos textos de Roa Bastos e Vargas Llosa enquanto desencadeadores de reflexões sobre os contextos socioculturais de seus países e da América Latina. Comparar La excavación, Contravida de Roa Bastos e La ciudad y los perros de Vargas Llosa, a fim de compreender relação de autoritarismo entre as obras e seu reflexo na reconstrução de uma memória histórica. Observar como as narrativas recuperam um passado existente, porém não “autorizado” pela historiografia. Compreender a representação ficcional do autoritarismo através de espaços imaginários presentes nas obras. Nos intriga compreender a memória como narrativa do eu e da coletividade, na busca de um passado existente e não “autorizado” pela história. Almejamos ver como a narrativa ficcional de Roa Bastos (em especial) e de Vargas Llosa recupera este passado, compreender as ditaduras latino-americanas e o autoritarismo em seus espaços imaginários (Guerra do Chaco, Túnel de Gondra, Viagem em Trem (interna e externa) cidade imaginária e Colégio Militar Leoncio Prado) através do diálogo entre estes escritores contemporâneos. O foco principal porém, dar-se-á entre os romances Contravida em análise comparativa à La ciudad y los perros, onde observaremos os espaços de repressão e culturas condenadas na latino-américa. 3. Fundamentação A fim de que possamos analisar a luz dos aspectos sócios históricos nas obras supracitadas, julgamos relevante que nossa análise inicial recaia sobre o os conceitos de história e o entorno político social paraguaio e latino-americano. Uma vez que questões de memória, lembrança e esquecimento permeiam a obra de Roa Bastos, estas temáticas serão analisadas frente à latente problemática presente nas obras, a realidade político-social do Paraguai, país assolado por recorrentes ditaduras e guerras. Entende-se passado como um elemento temporal, que remete a tudo que ocorre anteriormente ao presente, independente de seu lapso temporal, uma vez que tenha sucedido antes do agora/hoje pode ser considerado passado. É aí que age a memória, resgatar elementos que passaram ou evitar o apagamento destes feitos, neste caso relevantes ao indivíduo. O reverso também é elemento de nossas indagações, pois como veremos posteriormente, para alguns o esquecimento é tão ou mais importante que o lembrar, pois este pode evitar males e dores que a lembrança trás à tona, ainda que involuntariamente. Em Sobre o conceito da história (1940) Walter Benjamin assevera que o passado não pode ser apreendido tal como ele foi, ele é apreendido do ponto de vista do presente, “o pas- 92 sado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecida”143, a história é uma releitura do passado a partir do presente. Benjamim aponta esta como mais uma diferença entre o materialismo histórico e o historicismo que enxerga o passado como uma sucessão de acontecimentos, um decorrente do outro. Já o materialismo histórico entende o passado como algo que só pode ser compreendido se levar em consideração o que veio depois. O passado trazido à memória é um complexo de imagens dispersas em que para resgatar os fatos ocorridos é preciso interligá-las. Porém essa junção impossibilita recuperar o passado em sua magnitude, pois estas “imagens” muitas vezes são insuficientes ou incompletas. Esta pode ser considerada uma das razões pelas quais a humanidade buscou através de desenhos, diários, pinturas, cartas, fotografias, narrativas em geral, “guardar” feitos passados. De acordo com Pacheco, para Walter Banjamin “o passado é apenas uma imagem reconstruída a partir de fragmentos dispersos da verdadeira experiência humana com a temporalidade.”144 Evidenciando que, na análise da história segundo Benjamin “O cronista [...] narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” 145, a história é vista do ponto de vista dos vencidos e somente redimida da sua exploração e opressão a humanidade poderá apropriar-se totalmente de seu passado. Tentar compreender o passado é sempre conflituoso, Sarlo entende que este conflito se salienta na “disputa” entre memória e história, pois segundo a autora nem sempre uma está em acordo com a outra no que tange a reconstituição da lembrança e acredita que um “entendimento entre ambas é um lugar comum.” Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato de vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente.146 (SARLO. 2003 p. 9.) 143 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In ____. Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e História da cultura. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p 224. 144 Apud PACHECO, Elizabete. Augusto Roa Bastos: o fazer literário como interpelação da história paraguaia. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2006. 145 BENJAMIN, Walter. Sobre... p. 223. 146 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 9. 93 Segundo Weinrich147, a junção de acontecimentos vistos como imagens isoladas, dá forma à “força da imaginação” e tudo o que deve ser lembrado tem o seu lugar determinado na construção desta paisagem que é a memória. Roa Bastos reconstrói em suas narrativas parte da história dos conflitos bélicos os quais passou seu país e alguns dos quais foi testemunha, esta “força da imaginação” citada por Weinrich refaz uma história do ontem a partir das concepções do hoje, o passado deixa de ser passado para se tornar presente e assim como Derrida defende, não mais existe passado, pois este quando trazido à memória é o presente transformado pelas circunstâncias do agora. Desta forma os relatos históricos presentes na narrativa de Bastos são inverossímeis? Dentre outras, é uma de nossas indagações. 4. A grande narrativa de Roa Bastos - desobediência ao discurso oficial Para Krysinski148, Roa Bastos foi um homem que acima de tudo lutou pela liberdade de expressão de seus conterrâneos com muita valentia e que com suas palavras “soube traduzir através da literatura a crueldade da história e da condição humana em uma forma que revolucionou o romance histórico e que colocou sua obra no topo da arte da narração”. Testemunha das atrocidades ocorridas nos períodos de repressão política no Paraguai, Bastos esteve sempre envolvido com questões políticas as quais objetivasse a liberdade de seu povo, participou de confrontos civis durante a ditadura de Stroessner e através da literatura fez uso de sua grande arma contra as imposições do governo déspota controlou o país por mais de 30 anos, a narrativa ficcional. Este instrumento quase que “denunciativo” é capaz de através da arte literária, apresentar uma reconstrução histórica que por muitas vezes tende a cobrir fissuras deixadas pelos documentos oficiais. Em se tratando de ditaduras militares na latino-américa, segundo Beatriz Sarlo, a memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria dos países da América Latina. Ao citar o período de ditadura na Argentina, Sarlo apresenta uma análise da memória como elemento fundamental nos períodos pós-repressão, onde antes não havia discussão aberta dos fatos ocorridos devido à censura. 147 WEINRICH, Harald. LETE Arte e crítica do esquecimento. Ed. Civilização Brasileira. 2001. KRYSINSKI, Wladimir. Augusto Roa Bastos: retrato em perspectivas. 2005. Revista USP. n. 67. p. 310 – 316. Setembro/novembro. 2005. 148 94 O testemunho possibilitou a condenação do terrorismo do Estado; a ideia do “nunca mais” se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita.149 Através deste viés, Bastos escreve suas obras, testemunha de alguns fatos “históricos" ocorridos em seu país, “reconstrói” a história através de suas narrativas, provocando a história oficial e reavivando na memória de seu povo a trajetória histórica paraguaia e a alma latino-americana. En la obra de ficción los hechos históricos, el escenario mismo de la historia, constituyen el marco de una nueva realidad; la realidad imaginaria. Y esta realidad cristaliza, o mejor dicho, se dinamiza y vivifica en símbolos y en mitos que reflejan otra historia no necesariamente igual o parecida a la que nos repite la historiografía documental.150 ROA BASTOS, 1974. O Paraguai como um país bastante “desfavorecido” da América Latina nos períodos que sucederam a Grande Guerra ou Guerra do Paraguai tem marcado em sua história uma trajetória de exploração, sofrimento, conflitos bélicos e repressão. O contexto em que nasce e cresce Roa Bastos é cenário para o desenvolvimento de seu raciocínio crítico acerca de seu entorno, de suas indagações acerca da liberdade de seu povo e do regime totalitário que permeia durante décadas este país. Em se tratando de questões relacionadas à violência nas obras literárias, Ginzburg151 apresenta em seu artigo um estudo acerca das concepções e teorias de Hegel em comparativo com as teorias de Theodor Adorno sobre a relevância e presença da violência na narrativa literária, o enfoque neste trabalho é no gênero épico, entretanto compreende-se que estas teorias podem embasar reflexões acerca da constante presença da violência nas obras de Bastos e Llosa que se pretende analisar na dissertação. Hegel defende uma posição nacionalista favorável à violência, esta visão justificada pelo “principio da necessidade” a qual compreende que as ações violentas seriam inevitáveis, parte do pressuposto que tudo que acontece é porque tem que acontecer; esse princípio é fundamental para assegurar a unidade da forma. Ginzburg cita Hegel: Os acontecimentos que se realizam parecem depender absolutamente do seu caráter e dos fins pretendidos, e o que nos interessa antes de tudo, é a legitimidade ou ilegitimidade da ação no quadro das situações dadas e dos conflitos que delas resultam. 149 SARLO, Beatriz. Tempo... p. 20. CHAVES, Raquel. Entrevista com Roa Bastos. Diálogo, Asunción, 5 maio 1974. p. 33-7. 151 GINZBURG, Jaime. Violência e forma em Hegel e Adorno. Revista Brasileira de Literatura Comparada. n.16. p.175 – 193. 2010. 150 95 Para Hegel não há na violência em si mesma um problema moral, o que se avalia aí é a legitimidade desta ação. Adorno se opõe a esse principio uma vez que é um crítico indignado da violência, principalmente no contexto pós-guerra, que ao situarmos com as obras que se pretende analisar correspondem a esse contexto, desta forma entende que a arte só pode ser compreendida através de seu contexto histórico, impedindo que haja um conceito minimalista e afastando-a de um resumo generalizador. Estas reflexões caminham para um lugar diferente do que Hegel e suas fundamentações são evidentemente marxistas e uma filosofia da historia contrária a positivista. Adorno, portanto defende que para apontar problemas e contradições existentes na sociedade é preciso viver a sociedade ou na sociedade, desta forma com um pensamento muito afinado com o de Walter Benjamin vê a obra literária como uma elaboração do todo através de partes que se relacionam entre si e com o todo; esta relação é limitada, pois no momento em que se constitui um significado se perde outro, essa dialética é chamada de melancolia, ou seja a inconclusão da obra como um todo fragmentado e que depende se seu contexto para justificar suas ações. Para Ginzburg “na contemporaneidade tem surgido algumas linhas de pesquisa voltadas para as relações entre a cultura e a violência, e um componente de perplexidade se integra ao processo de avaliação estética das obras”152 nos questionamos neste caso se as narrativas selecionadas de Llosa e Bastos exemplificariam ou não a teoria de Adorno, ou seja, se são melancólicas e fragmentadas. Para tentar alcançar uma resposta acerca destas suposições, conhecer um pouco mais da crítica de Roa Bastos se torna indispensável, desta forma compreende-se melhor seu entorno e as peculiaridades de suas obras, uma vez que a narrativa deste autor é o foco principal desta proposta de trabalho. Segundo Saguier, compreender a literatura de Roa Bastos e a importância desta literatura em seu país é compreender a “trajetória de uma literatura profundamente marcada pelo dramático signo da história”153. Esta “pequeña isla rodeada de tierra” como chamava Roa Bastos que desde a colônia sofre pela escassa densidade demográfica e ausência de metais preciosos, ficou de fora das rotas principais da conquistas, principalmente quando os europeus perceberam que não era possível chegar às ricas terras de ouro e prata devido ao temível e inabitável Chaco Boreal. Neste período a pobreza e o quase extermínio da população devido 152 Idem. SAGUIER, Ruben. Augusto Roa Bastos e a Narrativa Paraguaia Atual. Revista Letras. v. 25. p. 335 – 346, julho. 1976. 153 96 ao fracasso na Guerra do Paraguai foi um dos principais fatores que tornou tardio o despertar da literatura neste país em comparação com o resto do continente. Ademais dos problemas sócio histórico que enfrentava a população, sendo estes a falta de liberdade e a injustiça social causaram um “esmagador sentimento de frustração coletiva” como caracteriza Saguier, pois segundo ele, frente a estes problemas a maior parte da literatura paraguaia foi escrita no exílio e a que é escrita no país traz consigo “elementos impostos pelo temor”. Apresenta-se aí, um dos fatores que nos permite analisar sua obra sob o viés da literatura de trauma. Saguier em sua feliz colocação diz que principalmente quando se trata de literatura paraguaia “Uma obra representa não somente o que diz, mas também o que deixa de dizer”. Segundo o autor, ler a primeira obra de Roa Bastos, El trueno entre las hojas, é apreciar até que ponto o poeta segue vivendo no contista, a poesia submerge na prosa em um vínculo naturalmente dependente. Há paginas inteiras em que se descobre uma cadência, uma cadência rítmica introduzida na prosa. Do ponto de vista expressivo, Roa Bastos apela neste livro ao uso de um expressionismo potente, conseguindo mediante profundas incisões, fortes traços e chocantes oposições sobre uma realidade cujos matizes oscilam entre o branco da inocência e o vermelho sangrento da violência. 154 Em Roa Bastos existe uma vontade de transformar seu entorno, sua visão de mundo pede uma mudança na base e converge com ela, tem uma visão conflitiva frente às falhas de sua coletividade, desta forma trata-se de uma busca contra a podridão do meio e assim como narra Saguier, “longe de cair numa caricatura limitativa, consegue um enfoque múltiplo e totalizador da realidade paraguaia.” Referências BENJAMIN, Walter. Horkheimer, Max. Adorno, Theodor W. Habermas, Jurgen: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural,1975. ____. Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e História da cultura. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. BOLLE, Willi. 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A escolha deste corpus deve-se às convergências narrativas e intertextuais entre os dois textos, no que se refere ao contexto histórico, de conflitos de gênero e de luta pela emancipação feminina e social. O referencial teórico fundamental são os estudos de Daniel-Henri Pageaux, Pierre Bourdieu, Gerda Lerner, Michel Foucault e Antônio Candido. Palavras-chave: Subjetividade. Consciência. Poder. Corpo. Escrita feminina. O interesse por questões relativas à literatura, especialmente à literatura de autoria feminina, é o ponto de partida para a execução deste trabalho. Parte-se do princípio de que o texto literário é de central importância para o desenvolvimento da sociedade e para o crescimento intelectual dos indivíduos. Nesses termos, é significante ressaltar que o social desempenha papel fundamental na construção de uma obra. Do ponto de vista teórico, a literatura, em termos gerais, tem tido espaço na sociedade. No que diz respeito à literatura feminina, ela precisa ampliar seu espaço próprio no contexto da literatura, especialmente por tudo o que ela representa. Assim, este trabalho apresenta como objetivo geral a avaliação das representações literárias do poder, do corpo e da sexualidade, no plano das vozes poéticas femininas, em particular no que se refere àquelas cuja escrituração coincidiu com os acontecimentos históricos arrolados no século XX no Brasil e na Venezuela. Os fatos são enunciados por meio da memória e de uma concepção representacional da literatura, em que ao texto é dado o papel de expressar de forma realista o conteúdo das situações de vida. Partindo destes pressupostos, o centro de interesse é o texto literário em prosa cujas autoras criam uma produção relacionada ao contexto histórico, político e social daquele período. Dessa forma, explica-se o interesse pelos escritos de Nélida Piñon e Isabel Allende. Mu155 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Frederico Westphalen. 156 Orientador 99 lher escritora e suas personagens costumam representar, no espelho polido da literatura, vivências empíricas resultantes de reclusão, conflitos ou repressão. Tais vozes podem contribuir para que se construa e reconstrua o papel das mulheres na história. A partir disso, realizaremos estudos dos elementos condizentes à temática da mulher: sexualidade, corpo, poder e contra-poder, observando esses temas nas principais personagens das obras. As duas obras em estudo foram publicadas em 1987; mas A doce canção de Caetana se relaciona ao período da ditadura no Brasil no período de governo do General Médice, especialmente, nos anos 70, período em que, no Chile, o primo-irmão do pai de Isabel Allende assume o governo do país, mas que três anos mais tarde é morto e quem assume o país é o general August Pinochet. Isabel acaba se exilando na Venezuela, país onde a ditadura já havia acabado. Entretanto, a obra Eva Luna, mesmo que de forma implícita, refere-se à ditadura Venezuelana ocorrida entre os anos 30 e o final dos anos 60. As autoras são situadas pela historiografia literária como dos principais nomes da literatura latino-americana. Nélida Piñon se estabeleceu pela dimensão, criatividade e significância de sua obra. Em A Doce Canção de Caetana (1987), com um toque de humor e ironia, ela cria personagens que ridicularizam e enlevam pela capacidade de revelar os mais intrincados desejos humanos. O trabalho com o jornalismo ensinou Isabel Allende a usar a linguagem de forma eficaz e a fez adquirir a facilidade para a comunicação, o que transparece em Eva Luna (1987). As mencionadas obras se caracterizam pela utilização de uma linguagem e de um conteúdo de tal maneira significante que passam a representar momentos, ações, comportamentos e críticas a determinados padrões da sociedade. São histórias particulares do texto ficcional que acabam entrelaçando-se na história coletiva. Assim, torna-se possível degustar o fato literário, pois a literatura representa ambiguidade, mistério. E é através dos estudos de Literatura Comparada, conforme afirma DanielHenri Pageux (2011), que podemos aproximar os fatos e textos literários para que sejam passíveis de uma melhor compreensão e conhecimento. O que necessita muitas vezes ser esclarecido é que realizar um estudo de literatura comparada não é única e exclusivamente encontrar aspectos semelhantes entre os textos; mas ele também se serve da busca das diferenças entre eles. Nas palavras de Pageux (2011), “o comparatista estabelece relações, estuda permutas, reflete sobre os diálogos entre literaturas e entre culturas. Ora, na base dessas práticas, destaca-se um elemento essencial: a diferença – ou, com mais propriedade, o fator diferenciador (PAGEUX, 2011, p. 19). 100 Nessa perspectiva, as duas obras apresentam os muitos eventos arrolados durante os períodos ditatoriais nos países diretamente envolvidos nas narrativas, Brasil e Venezuela, neste de forma não explícita. “- Dizem que há tortura no Brasil. Dão choque nos testículos e enfiam garrafas inteiras no rabo” (PIÑON, 1987, p. 253). “Después de un breve período de libertades republicanas, teníamos otra vez un dictador. Se trataba de un militar de aspecto tan inocuo, que nadie imaginó el alcance de su codicia” (ALLENDE, 1987, p. 70). Contudo, a essência dos textos é a condição da mulher na sociedade ditatorial e patriarcal. Nélida e Isabel nos apresentam um universo cuja dominação é exercida pela mão masculina. A Doce Canção de Caetana (1987) representa a fantasiosa força masculina relacionada à potência sexual e na posse do corpo feminino. Eva Luna (1987) registra ditaduras e ditadores, manifestações de estudantes e operários. É o poder ditatorial e patriarcal exercendo o poder enquanto que à mulher restaria aceitar a condição de corpo subalterno. Entretanto, tanto Caetana, a protagonista de Nélida, quanto Eva, personagem central de Isabel, são mulheres que não aceitam a condição de seres subordinados e lutam pela condição de corpo liberado. Neste momento, pode-se afirmar, é que começam a apontar algumas diferenças entre as obras. Caetana é uma atriz que, depois de vinte anos, retorna à cidade, resgatando sentimentos de seu amante Polidoro, personagem que se constitui a partir da visão patriarcal e do poder político e econômico. Há também as prostitutas, batizadas Três Graças e a cafetina Gioconda, que exercem o papel oposto de Caetana no que se refere à condição de dominação, pois Caetana não aceita certos padrões impostos e luta pela realização de seus sonhos. Já as Três Graças e a cafetina Gioconda admitem a situação de subordinação, são vítimas da opressão do tempo, do sexo e dos homens. - Polidoro merece ser contrariado. Ele é um ditador, disse Diana, distraída em pintar as unhas. - E não são os homens todos uns ditadores? Sebastiana recorreu à história do Brasil, dizendo: - Sempre foi assim desde o início da descoberta do Brasil. Começando pelos três imperadores que viviam lá em Petrópolis (PIÑON, 1987, p. 82). Eva Luna (1987) nos apresenta uma garota resultado do subdesenvolvimento, do analfabetismo, da pobreza, do poder ditatorial e patriarcal e de uma história muito conturbada; mas ela não é só mais uma mulher, constrói um mundo com a memória e o resgata pela palavra, tornando-se, quando adulta, escritora. É a própria Eva Luna personagem que passa, através do poder da escrita, a reverter sua condição de ser uma mulher pobre, humilhada e sub- 101 missa. Neste sentido, ela vai desembaraçando sua jornada de vida com as linhas da própria memória e passa a revelar a força que tem para chegar ao estado de libertação. Eva é apresentada como uma mulher que não se deixa abater pelas dificuldades que surgem, especialmente pelos problemas que enfrenta pela sua condição de ser mulher. Sua relação com Humberto Naranjo, comandante guerrilheiro, mostra claramente essa situação. [...] él se consideraba un macho bien plantado, capaz de dirigir su destino, en cambio sostenía que yo estaba en desventaja por haber nacido mujer y debía aceptar diversas tutelas y limitaciones. [...] Para Naranjo y otros como él, el pueblo parecía compuesto sólo de hombres; nosotras debíamos contribuir a la lucha, pero estábamos excluidas de las decisiones y del poder (ALLENDE, 1997, p. 218). Isabel Allende aborda a mesma temática que Nélida, como as questões relacionadas ao poder patriarcal, ao corpo feminino e à sexualidade. No entanto, um aspecto diverso e preponderante em Eva Luna é a importância da memória para a constituição da personagem escritora de contos; uma vez que Eva se sustenta nos momentos vividos ou nas histórias que a ela foram contadas para a construção de uma narrativa de forma intensa e natural. Em ambos os livros, as questões da opressão da mulher podem ser compreendidas através dos conceitos de Bourdieu (1999), pois para ele, a diferença biológica entre o corpo masculino e o corpo feminino é a responsável pelas diferenças de gênero socialmente construídas. Vale ressaltar que as personagens protagonistas das duas obras passam por transformações, são resultado de um regime patriarcal e autoritário, mas a condição sexual não é pretexto para a manutenção de uma vida estática, de conformismo com a situação. Seus corpos representam a liberação e a libertação, são vozes que, através da literatura, podem transformar a situação histórica e social. Esse tipo de literatura está impregnado de acepções políticas e sociológicas e, ao procederem desta forma, Nélida Piñon e Isabel Allende contribuem para a produção literária feminina, especialmente ao inscrever seus textos na história de forma que possam contribuir para a correção do presente e para a construção de um futuro melhor, os quais estão direta ou indiretamente relacionados com o passado. Essas manifestações artísticas que contribuem para a reflexão acerca da situação passada e do presente são e devem ser reconhecidas devido a sua importância como textos refletores da dimensão estética, mas acima de tudo social. Assim como assegura Antonio Candido (2000), o importante é perceber a relação de dependência e de transformação que a obra de 102 arte exerce sobre a realidade, mesmo quando sua intenção seja retratá-la tal como ela é, pois ao fazer isto, o artista está usando a mimese: a literatura como representação da realidade. Dessa forma, ao se valerem de subsídios que revelam momentos e ocorrências da sociedade, as escritoras estariam cooperando para que o senso crítico social fosse despertado. Nas palavras de Antonio Candido (2000), o escritor, através da arte, “produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e a sua concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais (CANDIDO, 2000, p. 19). Com base nisso, é fácil inferir que os romances A Doce Canção de Caetana, de Nélida Piñon e Eva Luna, de Isabel Allende são obras de autoras conscientes de seu papel social. São textos estéticos que provocam prazer, mas acima de tudo, conhecimento por seu conteúdo; sendo capazes de exprimir anseios individuais e coletivos. As personagens protagonistas são resultado de um regime patriarcal e autoritário; entretanto, não representam vozes femininas oprimidas e vitimadas, pelo contrário, simbolizam força libertária e libertadora. Referências ALLENDE, Isabel. Eva Luna. 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Maringá: Eduem, 2009. 104 LITERATURA E PSICANÁLISE EM AMAR, VERBO INTRANSITIVO Neides Marsane John Bolzan157 Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves158 Resumo: Este trabalho tem por objetivo revisar a fortuna crítica de Mário de Andrade, relacionando-a ao seu idílio: Amar, verbo intransitivo, a fim de compreender o contexto no qual foi escrita a obra; evidenciando por que amar passa a ser um verbo intransitivo; qual a razão da narrativa ser denominada de idílio, em vez de romance; qual a relação que há entre Mário de Andrade e Freud; bem como realizar uma reflexão sobre a teoria dos afetos. Palavras-chave: Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. Afetos. Freud. O romance psicológico brasileiro representa um marco dentro da história da literatura, uma vez que reflete e insere em seu contexto o resultado de descobertas científicas e, ao mesmo tempo, desconstrói tudo o que até então havia de referência. O Modernismo é o marco, e um dos principais nomes dos pensadores que se preocupou em organizar esteticamente esse período foi Mário de Andrade, que em Amar, verbo intransitivo: idílio retrata esse contexto de mudança, mas que foi pouco compreendido. O escritor modernista consegue projetar suas ideias em favor da concretização de um projeto estético, o qual visava discutir a linguagem e a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia com a arte, assim como formar uma literatura nacional, que redescobrisse o país, renovando os procedimentos literários. Luciana Afonso Gonçalves, retomando Lafetá, afirma que é esse conjunto de qualidades que coloca Mário de Andrade “tão à frente dos homens de sua época”. 159 O autor de Amar, verbo intransitivo constrói a narrativa sob a perspectiva da reflexão sobre o ato criador da obra literária, o qual principia na psique e é influenciado pela cultura a que o artista tem contato ou que ele internaliza. O primeiro aspecto a que ele se inclina é sobre os elementos que são empregados na criação da narrativa. No caso de Amar, verbo intransitivo os elementos são representações metafóricas, semelhantes à representação do sonho, já que “o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)”, 160 segundo Freud. A personagem principal Fräulein não é escolhida por acaso, não é em vão que ela é imigrante tem157 Neides Marsane John Bolzan é mestranda em Literatura Comparada na URI/FW. E-mail [email protected] 158 Orientador 159 GONÇALVES, Luciana Afonso. Tese: Um grito chamado desejo: a voz na criação polifônica de Mário de Andrade. 2006, p. 20. 160 FREUD, 1996, p. 224. 105 porária alemã, professora de piano, de língua estrangeira alemã, e principalmente professora de iniciação sexual, porque ela está encarregada da condução do rumo narrativo, juntamente com o narrador. Em vista disso, Fräulein é professora de linguagens, nesse romance/idílio. O trajeto percorrido pela personagem alemã deve ser decifrado, como o mundo simbólico do sonho, para encontrar o sentido. Por apresentar o envolvimento amoroso entre a professora e o adolescente Carlos, a crítica de 1927, época em que o romance foi publicado, considerou Amar, verbo intransitivo “como uma ficção que meramente se destinava a difundir as escandalosas descobertas de Freud a respeito da sexualidade”.161No entanto, Mário de Andrade não se limitou apenas aos estudos relacionados à sexualidade, mas também a todas as descobertas sobre o inconsciente, a começar pela estruturação do romance, que sendo uma expressão linguística, já estava projetada nos novos moldes. Mário de Andrade acredita em que se o homem pode dizer o que pensa é porque há uma estrutura chamada linguagem, a qual tem sua origem na mente e sofre influência externa. De forma análoga, a estrutura narrativa é criada na mente, sofrendo influência das relações familiares, políticas, econômicas e sociais, além de representar um documento enigmático, o qual pode ser desvendado por diferentes pessoas em diferentes épocas. Em vista disso, as personagens e o ambiente escolhido para fazerem parte de Amar, verbo intransitivo não foram escolhidos aleatoriamente: a estrutura que existe no mundo real foi reaproveitada e transposta para atuar no ficcional, porque no romance psicológico os dois mundos se entrelaçam, e passam a dar a impressão ao leitor de que a obra não é imitação, mas realidade. Esse processo de construção é explicado por Freud, por meio da estrutura dos processos psíquicos. Na visão psicanalítica, de Freud, a relação entre linguagem e expressão ocorre por meio de um processo inconsciente, o qual se articula “de forma específica, estranha à linguagem que falamos”,162 porque se estrutura a partir de símbolos, e se manifesta em sintomas: os chistes, os atos falhos, as obras de arte e os sonhos. Da mesma forma que os sintomas caracterizam o indivíduo, assim também, na obra de arte eles revelam a personagem, ou seja, os seres reais ou fictícios se personificam para os outros pela repetição de pulsões: os sintomas. Devido ao processo psíquico de construção do indivíduo/personagem ser o mesmo, é que a narrativa parece ser realidade. 161 GONÇALVES, Luciana Afonso. Tese: Um grito chamado desejo: a voz na criação polifônica na produção de Mário de Andrade. 2006, p. 117. 162 BIRMAN apud BARTUCCI, 2009, p. 190. 106 O ser humano se constrói sob o comando do aparelho mental, o qual trabalha sob o “princípio da constância”, isto é, atua “no sentido de manter baixa a quantidade de excitação”,163 o que produz sensação de prazer, enquanto que estímulos externos e internos produzem ao cérebro sensação de desprazer. Assim, quanto mais equilibrado estiver o nível de excitação mental, mais acomodado será o indivíduo, uma vez que o que o impulsiona à ação é a vontade de satisfazer desejos. Como os níveis de excitação oscilam, surge uma “diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, [o] que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições alcançadas, mas [...] pressiona sempre para frente, indomado”,164 é a pulsão de vida, conduzida pelo desejo à pulsão de morte, que é a realização do desejo. Em meio a esse processo de pulsão, está a pessoa ou a personagem, que se configura mediante a manifestação de sintomas e revela sua linguagem nos afetos e no resultado do trabalho desenvolvido pela consciência. Porque a consciência trabalha com o inconsciente, é preciso que a mente torne o material inconsciente conhecido, “tornando-o consciente”.165 No entanto, há sempre “algum material que permanece desconhecido”,166 enquanto que as ideias do pré-consciente são “colocada[s] em vinculação com representações verbais”.167 A partir dessa explicação de Freud, compreende-se que a divisa entre o inconsciente e o pré-consciente é a linguagem verbal. Enquanto o pré-consciente trabalha duplamente transformando a linguagem em palavras, ou codificando-a em símbolos, os sentimentos passam livremente do exterior para o interior e viceversa, sem passar pela censura. Quando em uma situação ocorre um lapso de linguagem, é porque o sentimento falou mais alto ou mais rápido do que a censura, que deveria ter se manifestado. A caracterização do texto em idílio pode ser compreendida, no processo criativo semelhante a um lapso de linguagem: o termo “idílio” não passou pelo filtro da censura do movimento modernista, porque ele foi mal interpretado pelos modernistas. No entanto, a intenção poderia ser buscar algo esquecido ao mundo daquele momento, que provocasse um efeito semelhante ao ato falho, quando ele ocorre: a surpresa. Dessa forma, Mário de Andrade remontando o princípio das construções narrativas, associa literatura e psicanálise no entrelaçamento da estrutura psíquica do ato de narrar com o modelo de idílio que há muito havia sido criado. A manifestação de um pensamento que prende pela forma de construção, revelando os 163 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Além do princípio de prazer. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 19. 164 Ibidem, p. 52-53. 165 Idem, Ibidem, p. 33. 166 Idem, Ibidem, p. 34. 167 Idem, Ibidem, p. 34. 107 aspectos afetivos valorizados na época é posto em evidência. A classificação em idílio e não romance provocou reflexão sobre o curso que estava tomando a literatura brasileira, sugerindo uma volta ao passado, um retorno ao inconsciente “despoluído” de influências estrangeiras, com poder de criação, próprio do ser humano, o que traria uma criação influente, apesar de genuinamente brasileira. Telê Porto Ancona Lopez168 escreve, em notas da 16ª edição, sobre o primeiro “romance” de Mário de Andrade: Amar, verbo intransitivo – idílio. Esclarece sobre o que há por trás desse enredo, ao qual o próprio Mário não quis nomear de romance, mas de idílio; informa a relação metafórica entre as palavras que compõem o título, o que também provoca sentidos diferenciados e relevantes para uma análise de abordagem psicológica. Na visão de Lopez, Amar, verbo intransitivo foi classificado como “idílio”, não apenas devido ao tema que desenvolve, por revelar experimentação e autoproblematização, mas porque em uma história de amor, tematiza a descoberta do amor e não o seu desenrolar de maneira sensível. A intransitividade do verbo amar também foi problematizada na estrutura da narrativa e também ao opor-se ao que a gramática orienta: amar é um verbo transitivo. Mário de Andrade, ao classificar amar como verbo intransitivo, faz referência ao processo inicial de amor que se dá no ser humano: o narcisismo. O narcisismo é uma forma primitiva de amor, porque é caracterizado pela “indistinção inicial entre sujeito e seu objeto de amor e de apoio”.169 O narcisismo primário implica um estágio de desenvolvimento no qual o ego seja investido, processo ao qual Freud denomina de “autoerotismo”, isto é, momento em que o ego precisa de “uma nova ação psíquica”, a fim de provocar o narcisismo, explica Paulo de Tarso Ubinha.170 Essa fase de construção do ego, “que representa o que pode ser chamado de razão e senso comum” 171 vem a ser fundamental na construção do sujeito, porque é a primeira for- ma de amor que se manifesta no ser humano. Mário de Andrade com esse processo tenciona provocar uma pulsão nos escritores brasileiros, sem objeto externo definido, mas que o objeto fosse o despertar de um amor próprio, oriundo da visão de sua imagem como obra resultante dos processos mentais também individuais. Em Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade expressa esse processo narcísico com a personagem alemã Fräulein, cujo ego reflete a marginalidade em que a alma feminina 168 Cf. LOPEZ, Telê Porto Ancona.In: ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo – idílio. 1995, p. 5. UBINHA, Paulo de Tarso; Rooservet Moíses Smeke Cassorla. Estudo: Narciso: polimorfismo das versões e interpretações psicanalíticas do mito. 2003. 170 Ibidem. 171 FREUD, 1996, vol. XIX, p. 38. 169 108 dela vive, por ser dominada pelo poder masculino e encontrar-se num mundo fantasiado, que não existe porque é produto da mente conduzida. Dessa forma, na obra está a sugestão de mudança de re-estruturação mental, objetivando que o escritor trabalhe com o que é de caráter brasileiro, a fim de que o indivíduo seja o espelho do que se passa em seu interior, identificando-se com essa imagem. Mário de Andrade em Amar, verbo intransitivo ainda emprega o recurso de aproximar a narrativa da fala, a fim de mostrar que a língua se torna instrumento de comunicação no momento em que serve de veículo ideológico/cultural/afetivo dos falantes. Na perspectiva de Mário de Andrade, parece que a língua deve estar a serviço da expressão das ideias, e principalmente do sentimento que permeia as ações do povo brasileiro. A língua tornar-se, assim, um signo vivo, capaz de transmitir ao longo do tempo a época vivida da maneira como se as pessoas a estivessem presenciando, ou assistindo a ela, como se fosse um filme. O autor aproveita a musicalidade presente nas palavras para mostrar que a língua portuguesa é muito rica na sonoridade, que a fala brasileira contém uma musicalidade característica. Como exemplo disso há o nome da personagem principal Elza/ Fräulein. O som da palavra Fräulein sensibiliza muito mais do que Elza. Elza é dura, fria, enquanto Fräulein sugere aproximação, sedução. Em vista desse efeito, Elza às vezes é chamada de Fräulein e em outras não. Outro aspecto abordado pelo autor, que mexe com as inquietações da existência humana é aquele relacionado ao desejo. Da mesma forma que Mário de Andrade, como escritor, apresenta o desejo de tornar real um desejo, ou tornar um sonho realidade, exemplificando um modelo ético e estético para a criação literária brasileira, na obra por ele escrita pode-se perceber situações que ilustram desejos. A situação “vivida” por Fräulein é um exemplo: ela vem ao Brasil para juntar dinheiro suficiente para retornar à Alemanha, local onde pretende constituir um lar feliz. O desejo de Fräulein produz a pulsão que a faz vir ao Brasil e a faz suportar a dor de submeter-se a uma profissão desonrada, mas que ela insiste em dizer que é igual a qualquer outra. Ela é prostituta, mas diz que é professora de língua alemã e de piano; ensina também a linguagem do amor “o amor como deve ser. [...] O amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras” 172 Essa situação, marcada pelo desejo faz parte da trama que Mário de Andrade demonstra no processo de construção da obra Amar, verbo intransitivo. O autor cria uma narrativa psicológica que pode evidenciar o processo psíquico inconsciente, comprovando o que Freud 172 ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 56. 109 explica a partir de estudos: a linguagem é a chave para a compreensão de cada um e do universo, que se manifesta por meio dos afetos. Na estrutura do livro: sem capítulos definidos, sem numeração de seqüências ou títulos também se vê uma construção que emprega cenas que se apresentam como "flashes", resgatando o passado, ou sendo apresentadas pelo narrador, explica ainda Lopez173. A separação dos episódios, a mudança do cenário e de espaço, e a passagem do tempo fornecem a ideia de sequência solta e a divisão da narrativa em flagrantes. Esse recurso é empregado para colocar as cenas como numa atmosfera de cinema: interrompidas com digressões, às vezes ambivalentes, que desenham metáforas, com as quais representa cenas construídas pela imaginação. O narrar cinematográfico de romance moderno, combinado com a reflexão literária põe em diálogo várias vozes, o que torna o romance polifônico. Além disso, a atmosfera de cinema e a polifonia relacionam-se mais uma vez com a estrutura do inconsciente, ponto chave dessa obra de Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo é considerado, segundo Shirley de Souza Gomes Carreira, uma metanarrativa, porque é uma forma textual de autoconsciência do processo do narrar que revela a ficção como artefato, como um construto do autor. [...] Por ter trânsito livre entre o real e o imaginário, ela invade o mundo aparentemente autônomo da estória, estabelecendo relações dialógicas constantes, que conduzem o leitor a perceber a obra não como produto mimético, mas como o resultado da interpretação dos discursos do real. 174 Em vista de apresentar essa complexidade, Amar, verbo intransitivo foi uma obra aceita na década de 20 pela crítica modernista, mas atacado pelos passadistas. E apenas na década de 40 seu valor foi reconhecido pela geração de escritores da época. Em vista desse reconhecimento, foi traduzido para o inglês, foi inspiração para o filme de Eduardo Escorel, Lição de Amor e atualmente vem sendo objeto de estudos universitários. Essa obra foi e continua atual e até mesmo revolucionário, é um grande romance, conforme avaliação de Lopez, 175 mas, infelizmente muito pouco lido e estudado, mas que pode ter como foco de análise muitos temas como: a ideologia dos expressionistas e seus precursores, os deserdados da sorte, os párias, os loucos, a mulher, o estrangeiro marginalizado, a denúncia da burguesia, a valorização da sexualidade humana liberta da idéia de pecado, os afetos e outros mais. 173 Cf. LOPEZ, 1995, p. 9 CARREIRA, Shirley de Souza Gomes. Artigo: Amar, verbo intransitivo: a dialética dos olhares. 2002, s/p. 175 Cf. LOPEZ, Telê Porto Ancona. In: ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo – idílio. 1995, p. 2. 174 110 Essa ampla possibilidade de leitura torna a literatura, na visão de Roland Barthes, “uma mensagem da significação das coisas e não o significado das coisas”. 176 Ou ainda, consoante o mesmo autor, “toda escrita é uma impostura que ele [o escritor] tenta transformá-la em jogo”;177 um jogo de significados, cabendo a cada leitor dar o sentido que melhor cabe, a partir da situação em que se encontra e das condições de que dispõe. Bonicci também afirma que “a literatura é um lugar no qual a relação com a própria identidade é fundamental para se compreender o sentido de um texto”. 178 Isso significa que o leitor dialoga inteiramente e durante todo o tempo com o texto, sendo fundamental nessa relação o que cada um tem internalizado. Assim, conhecendo-se o processo de organização do pensamento, compreende-se o de narrar, uma vez que a linguagem verbal, carregada de afetos é comum aos dois. Apesar de se saber que os afetos são capazes de comandar o pensamento, o pensamento não tem poder de controlar os afetos, a não ser que o pensamento tenha se transformado em linguagem verbal, adquirindo assim força capaz de provocar sentimentos por meio da leitura dessa manifestação verbal. Por isso, em Amar, verbo intransitivo, a leitura que pode ser feita do texto, carrega e provoca afetos, principalmente por se aproximar da maneira como se estrutura a fala. O dito e o sugerido é o que organiza a estrutura desse romance/idílio do narrador, que é o processo afetivo que produz o encadeamento da narrativa e o texto, como realização do desejo de Mário de Andrade. Referências ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo: idílio. Rio de Janeiro: Agir: 2008. BIRMAN, Joel. A escrita em Psicanálise. In: BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, literatura e estética da subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. BONICCI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem UEM, 2009. CARREIRA, Shirley de Souza Gomes. Artigo: Amar, verbo intransitivo: a dialética dos olhares, 2002. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Além do princípio de prazer. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 176 Cf. BARTHES, apud BONICCI, 2009, p. 148. Cf. BARTHES, apud BONICCI, 2009, p. 148. 178 BONICCI, 2009, p. 204. 177 111 ____ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: O ego e o id e outros trabalhos. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ____ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: A interpretação dos sonhos (primeira parte). Vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GONÇALVES, Luciana Afonso. Tese: Um grito chamado desejo: a voz na criação polifônica de Mário de Andrade. Março de 2006. Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.pucrio.br/9067/9067_1.PDF. Acesso em 30.04.2012, às 14h. LOPEZ, Telê Porto Ancona. Um romance que resiste. In: ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo – idílio. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, 1995. Disponível em: http://www.cyvjosealencar.seed.pr.gov.br. Acesso em 28.04.2012, às 14h. UBINHA, Paulo de Tarso; Rooservet Moíses Smeke Cassorla. Estudo: Narciso: polimorfismo das versões e interpretações psicanalíticas do mito. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-166X2003000300006. Acesso em 30.04.2012, às 8h. 112 IMPASSES E CONTRAPONTOS NA FORMAÇÃO DO SUJEITO-LEITOR: UM DIÁLOGO ENTRE THEODOR W. ADORNO E PAULO FREIRE Priscila Monteiro Chaves179 Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique180 Resumo: O processo de formação de sujeitos leitores, ainda que constitua-se em uma problemática já conhecida, ainda sofre com determinados impasses. Percebe-se que o mesmo tem sido bastante discutido no campo da linguística bem como no da literatura, porém, ainda é notória uma preocupação com o desenvolvimento de uma técnica em um primeiro momento para que após tal aquisição se dê início à formação. Carência bastante corrente também vem sendo a leitura alienada de posicionamento crítica do leitor, fazendo desta habilidade um ato descompromissado, à mercê de qualquer espécie de manipulação de controle social e desta forma não emancipador. Em virtude de tais precariedades é que nestes e em outros aspectos é possível contar com as reflexões de Theodor Adorno e Paulo Freire, as quais contrapõem as práticas pedagógicas calcadas no fetiche pela técnica com fim em si mesma, negando a pedagogia reducionista de trabalho com um método existente por si só, visando assim a uma formação de leitores de fato, autônomos que não pratiquem tal habilidade somente no contexto escolar, sendo estes sujeitos do processo de leitura. Palavras-chave: Alfabetização. Técnica. Teoria adorniana. Desde algum tempo a escola tem sido a maior responsável pelo desenvolvimento da prática de ler e escrever, responsabilidade que começa desde os anos iniciais, em que, erroneamente, ainda há a expectativa de um processo delimitado, como se ao término desse(s) houvesse um ponto final no processo de alfabetização. Esses falsos pressupostos linguísticos e sócio-culturais ainda permeiam a área do processo de alfabetização, caracterizando-a como uma aprendizagem desprovida de caráter político, assim, aprender a ler e escrever é visto como uma aquisição de um instrumento para um longínquo acesso ao conhecimento, descartando a alfabetização como processo formador de pensamento. Tal situação evidencia que a leitura e a escrita são tratadas como um estado, ignorando assim o conhecimento empírico que o discente já trás consigo antes desse momento. A partir de estudos acerca da aquisição da escrita impulsionados por Emília Ferreiro bem como das discussões em alta acerca do termo letramento, principalmente contidas nos escritos de Soares, Tfouni, Teberosky, Lener e a própria Ferreiro, é possível pensar a escrita como um conjunto de práticas sociais, que revestem-se de significação política. Da mesma forma, que no contexto social, alfabetizar é também dar voz ao sujeito, e principalmente favo179 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Filosofia da Educação pela Universidade Federal de Pelotas e bolsista CAPES. 180 Orientador 113 recer meios críticos de participação na sociedade em que vive. Em contrapartida, a aquisição de uma técnica no contexto escolar ainda configura uma conquista indispensável ao educando e sua dimensão instrumental continua sendo quesito obrigatório nas avaliações, atribuindo à competência de codificação a condição de legítimo conhecimento. Nesse mesmo sentido, a pesquisadora e coordenadora do GEAL, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento da USP, Silvia Gasparian Colello manifesta-se de maneira introdutória ao problema: Parece indiscutível que as crianças de nossa sociedade devem aprender a ler e a escrever. No entanto, se perguntarmos aos pais e educadores por que e para que alfabetizar, encontraremos, com certeza, respostas vagas, por vezes incompletas e até 181 paradoxais. Fator que faz com que a lectoescrita se coloque a serviço dos mesmos preceitos que limitam a compreensão da complexidade social, fazendo do educando mais um mecanismo de negação da autonomia do sujeito, que nesta sociedade prenhe de ambiguidades, passa a ser guiado pela lógica calcada na produtividade/reprodução, em concordância com os moldes já estipulados pelo sistema dominante. É bastante provável que alguns dos fatores que revigoram esse quadro sejam os que seguem na argumentação de Colello, quando prolonga-se: as expectativas de ensino da língua escrita são tão imprecisas quanto a própria compreensão do alfabetizar. A despeito de boas intenções, as práticas pedagógicas patinam em concepções restritivas, por vezes equivocadas, modismos mal assimilados e 182 métodos inadequados . Esta inquietação da autora vem sendo legitimada em virtude da maneira como são impostas novas teorias e métodos de alfabetização, potencializados com o advento do letramento, quando um cânone que é cobrado às escolas sem preparação alguma, sem que estes mesmos órgãos governamentais que o impuseram dessem ferramentas concretas para o professor adotar um conjunto de práticas, e fundamentos, inerentes a tal conceito. Sem que este seja capaz de assumir como seus os projetos propostos pela escola (ou pelo governo). Assim sendo, a periculosidade aqui parece ser ainda maior, uma vez que Moraes183 alerta à ilusão de mudança de paradigma educacional apenas pela utilização de outras roupagens nas velhas teorias, visto que o aluno permanece na posição de mero espectador do pro181 COLELLO, Silvia M, Gasparin. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo, Paz e Terra, 2007. p. 27. Idem. 183 MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas, SP: Papirus ,1997. 182 114 cesso de formação, o plano é enganador, principalmente com o avassalador avanço das tecnologias, em que a maioria pouco fazem para propiciar ao aluno que seja sujeito da atividade de leitura. “A realidade produz a ilusão de desenvolver-se para cima e, no fundo, permanece sendo o que era”.184 De maneira global, a concepção que se tem a respeito da aquisição da lectoescrita relaciona-se a um molde “linear e positivo de desenvolvimento, segundo o qual a criança aprende a usar e decodificar símbolos gráficos que representam os sons da fala, saindo de um ponto x e chegando a um ponto y”.185 Se a hipótese da linguista é verossímil, é justificável dizer que o processo de formação do leitor também sofre com os falsos pressupostos pedagógicos responsáveis pela inversão de precedência, ou primazia, dos princípios saber como e saber que, emersos de uma “sabedoria tradicional da prática educativa atual que enfatiza que onde quer que o saber como seja de importância crucial, o saber que é uma perda de tempo”186. Dessa forma, a maneira tradicional que se lança mão “para a aquisição de habilidades para ler e escrever, é a atividade motora”187. Tomando o ensino como intervenção e o aparato teórico como imposição autoritária, trazendo como consequência a perda da experiência possível por parte do sujeito. Adorno escreve em meio a uma sociedade capitalista de industrialização avançada e sua persistência na ameaça do fascismo contida em sociedades aparentemente democráticas, seu enfoque no impacto filosófico devastador do Holocausto e seu constante ceticismo no que concerne ao provável aprimoramento dos homens por meio do desenvolvimento técnico são claramente impulsionados pela interpretação do empirismo cético de Donde Hume, além de persuadidos pela aversão aos céticos da teoria kantiana - uma linhagem de nômades que recusa qualquer fixação sólida ao chão188 – pois o filósofo duvida do desprezo a um gênero de pesquisa que não pode ser tratado com indiferença pela espécie humana, bem como do caminho seguro da ciência, tornando incertas as posições do racionalismo dogmático. Alguns comentadores, como Oswaldo Giacoia Junior189, apontam em seus estudos a uma boa leitura de Martin Heidegger, (ainda que entre eles houvesse alguns pontos de divergência), assumida em 184 ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis, Vozes, 1995b. p. 56. 185 TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 9. Ed. São Paulo, Cortez, 2010. p. 21. 186 BERTHOFF, Ann E. Prefácio In: FREIRE, Paulo e MACEDO, Donaldo - Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990. p. XVI. 187 Idem. 188 KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul- benkian, 1994. 189 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética, Técnica e Educação. In: PUCCI, Bruno; GOERGEN, Pedro; FRANCO, Renato. (Orgs.) Dialética negativa, estética e educação. Campinhas SP, Alínea, 2007. 115 seus escritos pelo próprio Adorno, no que concerne ao uso desmesurado da técnica. Uma vez que o influente filósofo alemão entendia que esta teria sua razão de ser somente no domínio do desocultamento, isto é, da verdade. Incutido por essas revoluções na teoria do conhecimento humano, Theodor W. Adorno questiona-se quanto ao uso desmedido da técnica, que toma o sujeito como mero objeto de dominação, impondo-lhe uma adaptação ao sistema positivo. Plausivelmente alegando “contra isso que, nas esferas espirituais, como na arte e, principalmente, no direito, na política e na antropologia, não se avança com o mesmo vigor que nas forças materiais”190, e recorrendo a Auschwitz a fim de compreender as causas que levaram uma nação civilizada a tal barbárie e questionar o acalentamento perante o acontecimento. Contudo, vale lembrar que ele apreende os perigos dessa reificação tecnológica das relações humanas como persistentes muito para além do fracasso da experiência nazista. O raciocínio filosófico faz com que Adorno construa pressupostos que desconfiem da relação que se tem entre a visão científica do mundo e os homens, provocando com seu potencial discursivo outros perguntas igualmente inquietantes. Em um primeiro momento: Técnica --- para quê? 191 Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema favorito para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com essas vítimas em Auschwitz. 192 O termo fetichização, expressa a alienação do trabalhador, em que sua força de trabalho é convertida em mercadoria, em valor de troca. O fetiche, por sua vez, consiste em um plano enganador, o qual quer transformar o que não é natural em natural. Assim, a força do trabalho humano não se originou como mercadoria, converteu-se em tal através das transformações sócio-históricas. Ainda que a citação seja de um dos mais recentes texto, esse conceito é melhor focado por Adorno nos seus estudos sobre a música e a regressão da audição, nos quais ele analisa a técnica em seu conjunto social, dessa forma, o fetiche pensado por Adorno ocorre quando, em primazia a uma simples reação, a técnica perfeitamente acabada substitui a perfeição da sociedade (1999). 190 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 55. Estrutura da questão construída em alusão a um dos capítulos da obra póstuma de Adorno Educação e Emancipação: Educação --- para quê? (1995). 192 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995a. p. 133. 191 116 Neste caso, a razão mais plausível de questionar a capacidade de juízo político desses estudiosos enquanto estudiosos, que trabalharam em prol de Auschwitz, não é a formação moral, (pela hipotética possibilidade de absterem-se da criação de tais armamentos), nem mesmo sua inocência (pela ignorância quanto a sua aprovação ou não de tal utilização), e sim por habitarem em e contribuírem com um mundo onde as coisas não são discutidas, e a capacidade de pensar perdeu sua importância primeira. Principalmente quando Hannah Arendt sustenta que tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só têm significado, só têm sentido, a partir do momento em que podem ser discutidos (1997), isto é, na medida em que se tornam atos políticos. Essas questões postas pelo próprio Adorno, ou inferidas através de seu discurso, são sugestivas de algumas outras ainda: Como pode o homem, desde sua iniciação escolar, ser capaz de não pensar, não questionar e não compreender aquilo que, no entanto, é capaz de executar? Se “durante muito tempo, esses seres, que estavam se fazendo, escreveram o mundo mais do que falaram o mundo. Tocavam diretamente o mundo e agiam diretamente sobre ele, antes de falarem a seu respeito”193, é possível deduzir um suposto desacordo entre aquilo que se faz e aquilo que se pensa? A reflexão acerca dessas demandas se dá no mesmo sentido proposto por Ann E. Berthoff, quando, apoiando-se no que traz a teoria freiriana, faz a distinção entre saber que e saber como, este que a atual sociedade tanto estima, conhecido como know-how. Se de fato há esse desacordo entre esse saber técnico (saber como, saber fazer, e essa instrução reitera-se neste momento com o know-how) e o pensamento das criaturas humanas, todas elas serão servas desse saber como? Dominados por qualquer espécie de técnica que seja capaz de emitir juízos a todos comunicáveis, por todos verificáveis (ou compartilháveis)? Categórico como de costume, Adorno argumenta: na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao ‘véu tecnológico’. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que 194 ela é a extensão do braço dos homens. Analogamente às questões adornianas, e lembrando do que foi introduzido por Silvia Collelo no que compete à alienação da comunidade escolar acerca da finalidade da alfabetiza- 193 FREIRE, Paulo. MACEDO, Donaldo. Alfabetização: Leitura da Palavra Leitura do Mundo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. p. 32. 194 ADORNO, Theodor. Educação... p. 132. 117 ção, emerge a demanda de mais algumas: Lectoescrita --- para quê? Para quê se formam leitores? Segundo Lerner195, na escola brasileira, não raro a aquisição da lectoescrita aparece sempre de maneira atrelada ao tempo que o estudante está na escola, à vida estudantil. Ler para aprender, ler em voz alta e escrever para legitimar o aprendizado do ciclo, com interrogações heteróclitas (e ao mesmo tempo correntes) advindas da comunidade escolar do tipo: Professora, que dia será o teste de leitura que aprovará o Joãozinho para o ano seguinte? tornando essa capacidade bastante artificial e, na maioria das vezes, desprovida de significado, fazendo da técnica “a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital.”196 Se considerado for o que até aqui discorreu-se, esta prática de aquisição estaria levando os sujeitos a barbárie semelhante a Auschwits, uma vez que “pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa”.197 Esses sujeitos são formados de tal maneira que eles mesmos se igualam a coisas, motivo pelo qual, quando possível se torna, fazem o mesmo com o próximo. “Essa forma de ser, Adorno ilustra com a intraduzível expressão fertigmachen (concluir/liquidar); essa expressão define os homens como coisa preparada, manipulada, e coisa danificada”.198 A partir do que foi considerado acerca do conceito de política, o leitor somente poderá se formar perante um ato político, só estará preparado para o convívio na polis dessa maneira. Entendido que o sentido no contexto de cada leitura é valorizado, tem seu perfazimento, perante os outros objetos do mundo, perante outros leitores, perante tudo quanto o leitor tenha conexão. Esta construção um tanto quanto imperativa e o abismo que pode ser percebido na distinção entre duas categorias arendtianas neste momento contribuem na compreensão da desunião entre a técnica da lectoescrita adquirida por si só, com fim em si mesma, e a leitura como ato social e político, são elas trabalho e ação. Segundo a autora, esta última consiste em “la seule activité qui exige la pluralité” 199. Pela ação “l’être humain se révèle, se distingue, et 195 LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002. 196 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. p. 18. 197 ADORNO, Theodor. Educação... p. 129. 198 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética... p. 131. 199 Tradução livre: “a única atividade que exige a pluralidade”. 118 s’exposant aux autres, à ses compagnons, montre qui il est, son unicité” 200201. Dessa forma, o leitor da ação é o leitor da pluralidade, partindo de um dos eixos fundamentais da Condição Humana arendtiana de que homens vivem na Terra e habitam o mundo, e não Homem.202 Toda leitura irá pressupor uma interação com uma determinada cultura, agindo constantemente nos moldes do imaginário coletivo que esta possui, isto é, ainda que o sentido ocorra no plano imaginário individual de cada leitor, fatalmente pela função formadora que este ato traz consigo, partilha sentidos com membros de sua sociedade também. Assim sendo, o sentido que se extrai da leitura, irá “immédiatement prendre place dans le contexte culturel où évolue chaque lecteur.” 203204 Diferentemente do leitor do trabalho que, ainda de acordo com a mesma teoria em questão, seria aquele que produz um mundo artificial de coisas, vive do outro lado de uma fronteira individualmente e necessita de uma produção, criativa ou não, para justificar sua existência humana e possuindo a mundaneidade como sua condição humana. O que é insuficiente para uma vida humana digna de fato, com a participação política de cada um, como vislumbra as reflexões arendtianas. Percebe-se nesta espécie de leitor a carência de posicionamento crítico, em virtude de seu caráter alienado de participar, ou não participar, da vida activa, uma vez que sua participação social se da “de façon cyclique, répétitive e anonyme” 205206 . Apoiando-se em ambas categorias e principalmente na teoria adorniana, é possível dizer que a leitura é apreendida como uma natureza, como um ser-assim, como um dado estipulado e imutável. Convertendo a relação humana que há na leitura em coisa e privando o sujeito de uma experiência heterônoma, autêntica e formativa. Em seus escritos, o pensador frankfurtiano menciona o conceito de consciência coisificada, ou coisificação, “uma consciência que se defende de qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo”207. Um dado inalterável, e não como algo que veio a ser. Uma relação cega com a competência leitora, uma vez que não é questionado o como-ficou-assim: 200 Tradução livre: “o ser humano se revela, se distingue, e se expõem aos outros, a seus companheiros, mostra quem ele é, sua unicidade”. 201 AMIEL, Anne. Le vocabulaire de Hannah Arendt. Ellipses, Paris, 2007. p. 7. 202 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997. 203 Tradução livre: “imediatamente tomar espaço no contexto cultural, onde evolui cada leitor”. 204 JOUVE, Vincent. La lecture. Hachette Livre, Paris, 1993. pp. 12-3. 205 Tradução livre: “de forma cíclica, repetitiva e anônima”. 206 AMIEL, Anne. Le vocabulaire de Hannah Arendt. Ellipses, Paris, 2007. p. 85. Grifos meus. 207 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 132. 119 A consciência coisificada, que entende mal a si mesma como se fosse natureza, é ingênua: toma a si mesma – algo que veio a ser e que é completamente mediado em si – como se fosse, conforme expressão de Husserl, a esfera do ser das origens absolu208 tas, e aquilo que ela arma diante dela como sendo a coisa tão ansiada. Seguido dessas palavras, Adorno se utiliza da expressão latina caput mortuum para alegar que, com esse anseio à objetividade [Salchlichkeit], o sujeito retém a cabeça sem vida do conhecimento e nada mais. E o mais contraditório é que ao mesmo tempo que essa espécie de louvor, de culto que se presta a uma técnica que não tem como objetivo primeiro formar participantes autônomos da cultura escrita, ela possui uma valorização pública dada àqueles que desta comunidade partilha as habilidades demandantes, uma relação estreita entre o sucesso escolar e aquilo que é material. Uma espécie de veneração do que é autofabricado, o qual, em virtude do seu valor de troca, se aliena do homem. Isso é o que conta para a prosaica objetividade do pensar orientado pelo lucro: tudo menos a coisa mesma. “Esta se perde naquilo que ela rende para alguém”209(p.193). Se agora equacionada for a conexão entre o estudo da consciência coisificada e uma análise da atual relação com a técnica da lectoescrita, extrai-se como consequência que essa espécie de caráter manipulatório que se mantém constitui “exatamente o tipo de energia psíquica requisitado pela civilização predominantemente tecnológica, isto é, o homem tecnológico, ou tecno(buro)crata”.210 Adorno se utiliza das ideias marxistas para criticar o caráter fetichista da mercadoria, defendendo que ela devolve aos homens, como um espelho, os caracteres sociais do seu próprio trabalho como propriedades naturais e sociais dessas coisas. Para o autor, a situação agrava-se quando o homem não é capaz de se reconhecer naquilo que ele mesmo foi e é capaz de coisificar211. Uma forma de relação social com o próprio trabalho, porém externa. Dentro de uma maneira coisificada de se apoderar de uma técnica, bem como de reproduzi-la, seria viável um espaço suficiente dentro de uma alfabetização emancipadora que possibilitasse que os educandos tomassem parte de seus próprios discursos e, simultaneamente, avançassem para além deles, de modo a desenvolver competência e desenvoltura para lidar com os demais discursos, inclusive este que lhe é externo (FREIRE, 1990)? 208 Ibidem. pp. 192-3. Ibidem. p. 137. 210 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética... p. 133. 211 ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a Regressão da Audição. In: Textos Escolhidos. SP: Abril Cultural, 1999. Coleção: Os pensadores. pp. 77-8. 209 120 A réplica é negativa, uma vez que a imediatidade com que o sujeito concebe e reproduz o que recebe, sem o crivo da reflexão, reverte-se num cotidiano de universo tão limitado que inviabiliza assim qualquer dimensão utópica em contraposição às condições sociais de exploração a que está submetido.212 A imutabilidade [Immergleichheit] do todo, a dependência das pessoas em relação às necessidades vitais, das condições materiais de sua autoconservação, como que se esconde por traz da própria dinâmica, do incremento da presumida riqueza social; is213 to favorece a ideologia. Nesse sentido que a aquisição de uma escrita não deveria ser diferente de uma proposta de alfabetização em que “o conhecimento, no entanto, deveria ser guiado pelo que não é mutilado pelas trocas ou – pois não há nada mais que não esteja mutilado – pelo que se oculta por trás das operações de troca”.214 Uma concepção de alfabetização mediada pela relação de comprometimento com a utilização de uma técnica, que somente começasse a ser pensada e compreendida na medida que possuísse um significado no mundo imediato de cada um, partindo de suas necessidades. Esse princípio de formação institucionalizada do leitor seria, então, essencialmente ética na medida que originaria um novo espírito e posicionamento perante a técnica e nos tempos atuais perante a voracidade tecnológica. Uma maneira de aquisição da lectoescrita que não dicotomizasse o produzir e o conhecer, não permitindo que a escola se constituísse como mais um espaço correspondente à ideologia capitalista.215 Contrariando “os programas de alfabetização em geral (que) oferecem ao povo o acesso a um discurso predeterminado e preestabelecido, enquanto silenciam sua própria voz, a qual deve ser amplificada”.216 A partir de tais caminhos é possível pensar-se em uma formação do leitor à luz da teoria freiriana. Não tomando o termo teoria em seu sentido acadêmico - como um conjunto de proposições logicamente encadeadas, querendo ser abrangentes e amplas, com a pretensão de unificar as mais diversas visões de mundo bem como maneiras de operar nele -, mas a formação do leitor sugerida por uma teorização freiriana, como prevenção de uma espécie de con- 212 FABIANO, Luiz Hermenegildo. Bufonices culturais e degradação da ética: Adorno na contramão da alegria. In: OLIVEIRA, Newton Ramos de; ZUIN, Antônio Álvaro Soares; PUCCI, Bruno. (Orgs.). Teoria critica, estética e educação. Campinas SP, Editora UNIMEP, 2001. p. 137. 213 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 56. 214 Ibidem. p. 193. 215 FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia. O Cotidiano do Professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 19. 216 FREIRE, Paulo. MACEDO, Donaldo. Alfabetização... p. 37. 121 duta que tem sido corrente no contexto acadêmico educacional. Teorização, por falar de um autor que não pensou métodos, nem ideias, e sim existências. Freire acredita que as pessoas ditas comuns, quando interpretam suas próprias experiências manifestam a complexidade que vão compreendendo, através de figuras de linguagem que atrelam seus pensamentos a situações concretas. Por isso, aponta que “a forma crítica de compreender e de realizar a leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma da duas formas de linguagem ou de sintaxe” (FREIRE). Os dominantes de ambas sintaxes poderão se sentir desafiados pelas mesmas inquietações. Logo, torna-se de extrema relevância refletir como “as pessoas comuns, através de suas formas de expressão peculiares e profundamente éticas, são capazes de tornar explícitos os problemas do mundo”.217 Essa ponderação é capacitada também pela maneira como Freire pensa a relação entre significante e significado - ainda que ele não utilize tal nomenclatura, em virtude de sua linguagem acessível, no entanto as influências do estruturalista suíço são notórias - proposta na dicotomia saussiriana: compreendida como ferramenta para o desenvolvimento da consciência crítica do sujeito, pensando esta como ato fundamental da mente, ou oportunidade de recognição nos Círculos de Cultura, fazendo com que os participantes alcançassem uma distância em relação ao próprio mundo, estranhando-o, e consequentemente, reconhecendo-o. Uma vez que suas reflexões constituem-se em uma concepção de alfabetização que transforma o material e o objetivo com que se alfabetiza, as relações sociais em que se alfabetiza, é uma concepção que põe o método 218 a serviço de uma certa política e filosofia da educação. No entanto, não se quer dizer com estas palavras que o educando não deve apropriarse dos códigos e culturas das esferas dominantes, de maneira que não seja capaz de transcender a seu meio ambiente. Admite-se que há uma mecanicidade necessária à utilização da língua escrita, neste contexto entendida como a técnica da capacidade leitora, no entanto, ela não deve se constituir em uma razão de ser. Ambas teorias em evidência não negam o nem social, que neste instante quer-se que seja compreendido como objeto de conhecimento comum; nem a acentuação apenas do desenvolvimento da consciência individual. “Daí a importância da subjetividade. Mas não posso separar minha subjetividade da objetividade em que se gera” 219. Admite-se que até mesmo a ideia de alfabetização emancipadora considera as duas dimensões da alfabetização, quando por um lado os alunos devem alfabetizar-se quanto às próprias histórias e necessidades, a experiências e à cultura de seu mundo imediato; e por ou217 FREIRE, Paulo. Medo... p. 180. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008. p. 119. 219 Ibidem, p. 29. 218 122 tro devem partilhar um código social comum a todos sem sufocar nenhuma das duas dimensões. Logo, não tem-se a pretensão de defender que a técnica não deve ser adquirida e tão pouco menorizada. Uma formação do leitor após Auschwitz deve certamente estar receptiva à relevância essencial da técnica no mundo contemporâneo. No entanto, não é o sujeito que está a serviço dela e sim a relação contrária. O que somente poderá ser compreendido, como sugere ambos autores em questão, através da auto-reflexão crítica, que poderá fazer com que o sujeito leitor apreenda a técnica como mais uma dimensão do agir humano. Como potente braço prolongado do operari humano, pensada como acontecimento paradigmático na história do ser220. Dessa forma, uma das preocupações é que a escola tome-a como ferramenta e não como dominante no processo de formação do leitor, e que pense as possibilidades de ingresso em uma relação humana e saudável com técnica. O que é possível, uma vez que “as instituições esclerosadas, as relações de produção não são pura e simplesmente um ser, mas sim, embora como onipotentes, algo feito por pessoas, revogável.” 221 A fim de que seja compreendido que ela (a técnica) é somente um meio para o fim, que é uma vida humana digna222. Referências ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995a. ____. O fetichismo na música e a Regressão da Audição. In: Textos Escolhidos. SP: Abril Cultural, 1999. Coleção: Os pensadores. ____. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis, Vozes, 1995b. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. p. 18. AMIEL, Anne. Le vocabulaire de Hannah Arendt. Ellipses, Paris, 2007. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Método Paulo Freire. In: Dicionário Paulo Freire / Danilo R. Streck; Euclides Redin; Jaime José Zitkoiske (orgs.) – 2. Ed. rev. amp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 220 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética... ADORNO, Theodor. Palavras... p. 55. 222 Idem. 221 123 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa oficial do estado de São Paulo, 2009. BERTHOFF, Ann E. Prefácio In: FREIRE, Paulo e MACEDO, Donaldo - Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990. COLELLO, Silvia M, Gasparin. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo, Paz e Terra, 2007. FABIANO, Luiz Hermenegildo. Bufonices culturais e degradação da ética: Adorno na contramão da alegria. In: OLIVEIRA, Newton Ramos de; ZUIN, Antônio Álvaro Soares; PUCCI, Bruno. (Orgs.) Teoria critica, estética e educação. Campinas SP, Editora UNIMEP, 2001. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez, 2011. ____. Educação como prática da liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008. ____. Medo e Ousadia. O Cotidiano do Professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. ____. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005. FREIRE, Paulo. MACEDO, Donaldo. Alfabetização: Leitura da Palavra Leitura do Mundo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. JOUVE, Vincent. La lecture. Hachette Livre, Paris, 1993. JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética, Técnica e Educação. In: PUCCI, Bruno; GOERGEN, Pedro; FRANCO, Renato. (Orgs.) Dialética negativa, estética e educação. Campinhas SP, Alínea, 2007. KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul- benkian, 1994. LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002. MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas, SP: Papirus,1997. SOARES, M. Alfabetização e Letramento. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2008. TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 9. Ed. São Paulo, Cortez, 2010. 124 OBRA ABERTA, MAS NEM TANTO: LIMITES INTERPRETATIVOS COMO COLABORADORES NA FORMAÇÃO DO SUJEITO-LEITOR Patrícia Cristine Hoff223 Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique224 Resumo: No âmbito do ensino da literatura, com o advento de teorias literárias ligadas à Hermenêutica e à Estética da recepção, percebe-se uma valorização do leitor em um quase detrimento da autoria, o que vai de encontro à tradição do ensino de literatura, pautada por abordagens histórico-biográficas. A leitura literária passa a ser vista, então, como um processo interpretativo, no qual o leitor é quem decodifica a mensagem estética, como refere Umberto Eco. Levar o leitor em formação a reconhecer e, depois, saber lidar com a linguagem literária é, pois, um dos maiores desafios do professor de literatura, uma vez que essa linguagem carrega marcas de ambiguidade e plurissignificação presentes em toda e qualquer obra artística escrita. A abertura do texto literário – dada a sua linguagem de sentidos múltiplos – não remete, no entanto, ao pensamento de que seu efeito é arbitrário e aleatório, mas que o leitor habilidoso é capaz de extrair um ou mais sentidos de uma mesma obra. A fim de identificar possíveis limites de interpretação do texto literário, esse trabalho preocupa-se em tecer considerações sobre como tais aspectos levantados pela teoria podem contribuir para a formação de sujeitos-leitores. Palavras-chave: Ensino de literatura. Estética da Recepção. Obra aberta. Sujeitos-leitores. 1. Introdução Na década de 60, Hans Robert Jauss, considerado um dos precursores da teoria da recepção, proferiu em conferência225, posteriormente intitulada A história da literatura como provocação à teoria literária, postulações que tiveram repercussão significativa na alteração do quadro tradicional da história da literatura. Jauss rompe com o pensamento vigente até então, o qual utiliza como parâmetros de leitura contextos biográficos e históricos da obra literária, quando afirma que [a] qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios 226 estes de mais difícil apreensão. 223 Acadêmica do curso de Letras – Português e Inglês e respectivas literaturas pela Universidade Federal de Pelotas e bolsista PIBIC/CNPq. 224 Orientador 225 Conferência ministrada na Universidade de Constança em 13 de abril de 1967, sob o título O que é e com que fim se estuda história da literatura?, depois modificado. 226 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. pp. 8-9. 125 Tem-se, portanto, que a noção de efeito é central dentro dessa nova estética, pois recai na formulação dialógica principal, a priori, a relação entre obra e leitor. Essa relação vem sendo estudada sob diversos vieses desde a sua primeira aparição significativa, no final da década de 60.227 Ainda no calor dos debates das teorias da recepção, Roland Barthes, em ensaio de 1968228, causou certa polêmica ao declarar a morte do autor, retirando-o de sua posição sacra de “Autor-Deus”229 quando destitui da autoria a detenção da palavra, ao ter que “[a] escritura é a destruição de toda voz, de toda origem.” 230 Ao atribuir à escritura – ou seja, à linguagem (literária) – a responsabilidade pela existência da obra, Barthes vê no leitor o lugar onde a texto adquire sentidos – o que é possível apenas em detrimento à figura histórico-psicológica do autor. Assim, ao pôr em crise a até então predominância dos estudos da intencionalidade autoral, Barthes desconstrói o mito do autor, ao mesmo tempo em que propõe a criação de um outro mito, o do leitor: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.231 Mesmo sendo esse leitor um modelo idealizado (“sem história, sem biografia, sem psicologia”), da mesma forma que o era o autor, agora afastado, mostra-se importante salientar a contribuição dos pensamentos tanto de Barthes quando de Jauss, dentre outros, para os estudos da estética da recepção, quando o leitor assume posição privilegiada em certos campos da teoria literária. 2. Problemática da obra aberta Tendo em mente o texto literário, de uma linguagem que transforma incessantemente não só as relações que as palavras têm entre si, “mas estabelece com cada leitor relações sub227 Regina Zilberman aponta que das tendências críticas que lidam com o leitor/destinatário enquanto peça importante da teoria pode-se aludir “à retórica, à semiologia e ao estruturalismo, na medida em que se preocupam com o processo de decodificação do texto pelos destinatários; à psicanálise e à hermenêutica, por lidarem com a questão da interpretação; e à sociologia da literatura que [...] analisa a interação da obra com o público.” (ZILBERMAN, 2009, p. 15) 228 “La mort de l’auteur” (1968). Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. 229 BARTHES, Roland. A morte do autor. In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 68. 230 Ibidem. p. 65. 231 Ibidem. p. 69. 126 jetivas que o tornam um texto móvel (modificante e modificável)” 232, tem-se que sua leitura, portanto, não se dá de maneira pacífica e transparente, o que exige um bom treinamento por parte do receptor da obra. É com base na observância do caráter ambíguo e polissêmico da linguagem estética que Umberto Eco (1962) formula seu conceito de obra aberta, cabível à obra artística como um todo e, portanto, também à literatura. Tal conceito, todavia, não pode ser visto como uma categoria crítica, mas como um modelo hipotético, uma abstração, “uma categoria explicativa, elaborada para exemplificar uma tendência das várias poéticas.”233 De acordo com Eco, A poética da obra “aberta” tende [...] a promover no intérprete “atos de liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva 234 os modos definitivos de organização da obra fruída. Ao defender o papel ativo do intérprete – o qual atua como decodificador – na leitura dos textos de valor estético (não apenas literários), abertos por excelência, Eco sofreu críticas235 as quais viam a abertura do texto como espécie de terra sem lei, onde toda e qualquer interpretação seria válida e aceita. Por conseguinte, a fim de encontrar possíveis limites da interpretação, Eco amparou-se num profundo estudo semiótico, pensando a leitura a partir do viés da sua construção enquanto cadeia de signos. Não compete à teoria de Eco analisar, por exemplo, os aspectos sociológicos da leitura, mas tomar o texto literário a partir de um viés estrutural, debruçando-se sobre o signo linguístico, visto não como “alguma coisa que está no lugar de alguma outra coisa”, mas considerado “indissoluvelmente ligado ao processo de interpretação.”236 Para isso, Eco ampara-se em Pierce na defesa da natureza interpretativa do signo. Tem-se então que Por interpretação (ou critério de interpretância) deve-se entender o que entendia Peirce ao reconhecer que cada interpretante (signo, ou seja, expressão ou sequência de expressões que traduz uma expressão anterior) não só retraduz o “objeto imediato” ou conteúdo do signo, mas amplia sua compreensão. O critério de interpretância permite partir de um signo para percorrer, etapa por etapa, toda a esfera da semiose. Peirce dizia que um termo é uma proposição rudimentar e que uma proposição é uma argumentação rudimentar.237 232 D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2006. p. 14. ECO, Umberto. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 26. 234 Ibidem. p. 41. 235 Tais críticas levaram Eco a escrever a Introdução à segunda edição do livro Obra aberta. 236 ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. Tradução de Mariarosaria Fabris e José Luíz Fiorin. São Paulo: Ática, 1991, Série Fundamentos. p. 3. 237 Ibidem. p. 60. 233 127 O caráter rudimentar que circunda signo e significante leva, pela necessidade da construção mais aperfeiçoada dos sentidos, à formulação da semiose ilimitada, apontada por Peirce e utilizada e por Eco. Esse processo é, de forma simples, explicado por Eco no sentido de que para estabelecer o significado de um significante (...) é necessário nomear o primeiro significante por meio de outro significante que pode ser interpretado por outro significante, e assim sucessivamente. Temos, destarte, um processo de SEMIOSE ILIMITADA.238 No livro Os limites da interpretação (1990), ciente da visão generalizante dessa definição, Eco admite que a semiose ilimitada não é um modelo teórico unificado, ou “científico”, mas uma prática social, com o estatuto de um discurso filosófico 239. Assim, Eco procura ser fiel ao modelo também hipotético da obra aberta, afirmando que Uma vez que o texto tenha sido privado da intenção subjetiva que estaria por trás dele, seus leitores não mais têm o dever, ou a possibilidade, de permanecerem fiéis a essa intenção ausente. É, destarte, possível concluir que a linguagem está presa num jogo de significantes múltiplos, que um texto não pode incorporar nenhum significado unívoco e absoluto, que não existe um significado transcendental, que o significante jamais pode estar em relação de co-presença com um significado continuamente diferido e adiado, e que todo significante se correlaciona com outro significante de modo tal que nada fique fora da cadeia significante que prossegue ad infini240 tum. Diante da cadeia infinita de possibilidades semióticas, torna-se unicamente possível (mais do que meramente confortável) assumir a posição de que não existem interpretações certas ou erradas, e que em nenhum momento uma única leitura finaliza todas as possibilidades de um texto. Não sendo razoável apontar para a boa interpretação, Eco afirma que, “mais fácil, ao contrário, é reconhecermos as más.”241. Sobre as más interpretações Eco trata em Interpretação e superinterpretação (1993), em que tenta manter um elo dialético entre a intentio operis e a intentio lectoris, utilizando sempre o texto como fornecedor e ao mesmo tempo contestador ou afirmador de uma dada interpretação. Essas duas intenções são codependentes, mas a segunda se coloca à frente, uma vez que A intenção do texto não é revelada pela superfície textual. [...] É preciso querer “vêla”. Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitu- 238 ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. 4ª ed. Perspectiva, 2003. p. 58. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 103. 240 Ibidem. p. 283. 241 Ibidem. p. 291. 239 128 ra por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma con242 jetura sobre a intenção do texto. Daí surge a noção de que o texto é um dispositivo concebido para produzir um leitormodelo. O texto faz-se como uma espécie de artefato que potencializa algumas leituras em detrimento de outras. Tais leituras são levadas a cabo pelo receptor, que se torna modelo por ter que conjecturar sobre as intenções do autor-modelo, as quais se confundem com as intenções do texto. Trata-se, portanto, de um círculo hermenêutico, no qual mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular 243 de validar-se com base no que acaba sendo o seu resultado. Para Eco, reconhecer a intenção da obra é reconhecer uma estratégia semiótica, e a única forma de provar as hipóteses resultantes da intenção do leitor-modelo é checá-las com o texto enquanto um todo coerente.244 Por consequência, superinterpretar um texto é atribuir-lhe conjecturas textualmente passíveis de serem rejeitadas pela coerência interna do texto. Esta, por seu turno, domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis. 3. Contribuições para o ensino de literatura Afirma-se de diversas formas que os professores devem contribuir para a formação crítica dos alunos. Paulo Freire245 entende que o aluno crítico é aquele que superou a sua ingenuidade, no momento em que a curiosidade ingênua passa a ser uma curiosidade crítica, sobrepujando o senso comum. Para Adorno, em Educação e emancipação (1969), a educação deve projetar-se tão somente para a emancipação (ou autonomia) do sujeito, a qual é prejudicada não pela “falta de entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir-se do entendimento sem a orientação de outrem”.246 Com efeito, o presente trabalho vê o sujeitoleitor como aquele que exerce a leitura com “liberdade consciente”, para citar Eco, com habilidades e capacidade crítica para preocupar-se tanto com a potencialidade da linguagem quando com a coerência dos sentidos produzidos. Destacado isso, salienta-se que os aspectos teóricos econianos aqui brevemente apresentados têm por intuito menos pôr em crise os complexos critérios interpretativos que propor 242 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 75. 243 Ibidem. pp. 75-6. 244 Ibidem. p. 76. 245 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 38. 246 ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 169. 129 hipóteses conceituais a serviço do ensino de literatura e da problematização dos contrapontos que o circundam. Assim, esse trabalho quer assegurar que muito dos estudos de Eco podem ser empregados em benefício da formação de sujeitos-leitores autônomos e competentes. Destarte, o modelo hipotético da obra aberta, tão caro a Eco, além de apontar para a objetividade provocadora da obra de arte, vai de encontro ao empobrecimento das relações entre arte e visão do mundo de intérprete causado pela cultura de massa 247. Em Obra aberta (1962), livro preocupado com as formas de indeterminação das poéticas contemporâneas, Eco apresenta a dicotomia entre obra de massa e obra de vanguarda: As mensagens de massa são mensagens inspiradas numa ampla redundância: repetem para o público aquilo que deseja saber. Mesmo quando utiliza soluções estilísticas difundidas pela vanguarda, a cultura de massa o faz quando estes modos comunicativos já foram assimilados pelo grande público. Daí que ela difunde, por assim dizer, sobre o universo uma confortável cortina de obviedade. A tarefa da literatura de vanguarda é precisamente a de romper essa barreira de obviedade. Diante do já conhecido (“noto”) a vanguarda propõe o desconhecido (“l’ignoto”). Neste sentido se enquadra no discurso informativo e aberto. Já se disse que a tarefa da literatura é a de manter eficiente a linguagem. Se por “manter eficiente a linguagem” se entende “renovar continuamente as modalidades de uso do código lingüístico comum”, esse é exatamente o objetivo da vanguarda. Com uma particularidade: desde que um modo de falar reflete um modo de ver a realidade e de afrontar o mundo, renovar a lin248 guagem significa renovar nossa relação com o mundo. Britto Jr. aponta para o paradigma do termo vanguarda que, em Eco, perde a definição tradicional e passa a ser uma postura que visa a ambiguidade como finalidade última do processo criativo. De grosso modo, a vanguarda tradicional configura-se num conceito aplicável a um grupo de pessoas orientadas artística e politicamente por um programa préestabelecido de produção. Para Eco, no entanto, as obras consideradas vanguardistas são aquelas feitas plurissignificativas, revitalizando no intérprete efeitos de estranhamento que produzem, por um lado, uma fruição menos complacente e mais intelectualmente ativa e, por outro lado, um questionamento das possibilidades interpretativas que, por sua vez, redundam numa nova concepção do código que serve de base à comunicação artística e, mais importante, às nossas concep249 ções de mundo. Fica claro que, para Eco, as obras reducionistas em sentido, apontando para as que se encaixam nos moldes da cultura de massas (ou seja, as que trazem mensagens redundantes e óbvias e petrificam a percepção), não têm o mesmo valor estético das obras de vanguarda. O valor, portanto, ficaria condicionado à linguagem empregada, muito antes de levar-se em con247 Cf BRITTO JR. Antonio Barros de. A abertura e a indeterminação dos sentidos da obra literária como possibilidades de revolução nas concepções de mundo do leitor. In XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. USP - São Paulo, 2008. p. 6. 248 ECO, Umberto. Obra... pp. 282-3. apud BRITTO JR. A abertura... p. 8. 249 BRITO JR. A abertura... p. 8. 130 sideração qualquer informação extratextual. Isso não significa que o leitor atribui valor ao texto, mas, retomando a ideia de leitor-modelo, a qualidade da leitura é “imposta” pelas próprias intenções textuais, projetadas no leitor-modelo e refletidas na (e pela) leitura do mesmo. Logo, o aspecto criativo da obra de vanguarda não é atribuído apenas ao texto. O texto vanguardista se atualiza no leitor, no momento em que cabe a ele produzir inferências múltiplas num processo infinito de manutenção da consciência produtiva. Dado o caráter provocativo da literatura, comentado anteriormente, sendo uma condição da obra aberta, é trabalho do sujeito-leitor (aqui uma visão ampliada do leitor-modelo, a qual quer atentar ainda para a capacidade crítica do receptor) atuar na decodificação dos textos artísticos. É o que também aponta Regina Zilberman: o signo estético [em oposição ao signo empregado na linguagem prática do cotidiano] assim se revela, se o espectador o perceber enquanto objeto estético, o que determina, agora por outra via de raciocínio, o reconhecimento da importância de sua atividade perceptiva. É o recebedor que transforma a obra, até então mero artefato, em objeto estético, ao decodificar os significados transmitidos por ela. Em outras palavras, a obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental de sua natureza, mas ela só se concretiza quando percebida por uma consciência, a do 250 sujeito estético. É evidente que, a essa altura, não se pode falar em formação de sujeitos-leitores senão a partir da leitura do texto literário – o que, infelizmente, não é um processo óbvio se for levado em consideração o quadro em que se encontra o ensino de literatura atualmente, ainda fortemente apoiado em contextualizações sócio-históricas das obras e seus autores. Resulta daí uma visão totalmente extrínseca da literatura, sendo o tratamento do texto literário um mero pretexto para conteúdos outros que não a(s) leitura(s) do texto em si. Marisa Lajolo, em O texto não é pretexto251, aponta para a gravidade de se trabalhar o texto literário dessa forma, quando maus leitores podem transformar bons textos em maus textos na medida em que propuserem exercícios “que reduzem ou anulem a carga de ambigui- dade e plurissignificação do texto poético.”252 Tal noção de “gerar maus textos” retoma a ideia de superinterpretação de Eco, quando a interpretação gerada não se sustenta textualmente, indo em direção à má leitura. Por fim, ainda que toda teoria apresente impasses e limitações, as poucas proposições de Eco discorridas nesse texto procuram dar conta de aspectos que possam ser de alguma forma relevantes ao se pensar o ensino de literatura de forma crítica e analítica. De um modo geral, pontua-se que ao lidar com o texto enquanto construção linguística e ao debruçando-se sobre os signos o sujeito-leitor desenvolverá a “alfabetização literária”, apoderando-se da lin250 ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009. p. 21. LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. pp. 51-62. 252 Ibidem. pp. 56-6. 251 131 guagem artística, tornando-se um usuário competente, “mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos.”253 Referências ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. BARTHES, Roland. A morte do autor. In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004 BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. BRITTO JR. Antonio Barros de. A abertura e a indeterminação dos sentidos da obra literária como possibilidades de revolução nas concepções de mundo do leitor. In XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. USP - São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/043/ANTONIO_JUNI OR.pdf. Acessado em: 15 de setembro de 2011. ____. Nem tudo vale: teoria da cooperação interpretativa e dos limites da interpretação segundo Umberto Eco. 2010. Tese de doutorado. Campinas, Instituto da Linguagem, Unicamp. Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=000475835. Acessado em: 6 de setembro de 2011. D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2006. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2010. ____. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ____. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2007. ____. Semiótica e filosofia da linguagem. Tradução de Mariarosaria Fabris e José Luíz Fiorin. São Paulo: Ática, 1991, Série Fundamentos. ____. Tratado geral da semiótica. 4ª ed. Perspectiva, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 253 LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. p. 106. 132 LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. ____. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. pp. 51-62. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009. 133 MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE EM PEDRO PÁRAMO – UM ESTUDO DAS (DES)EQUIVALÊNCIAS DISCURSIVAS ENTRE O ORIGINAL E A TRADUÇÃO AO PORTUGUÊS Camila De Carli254 Profª. Drª. Maria Thereza Veloso255 Resumo: Esta pesquisa tenta estabelecer um possível diálogo entre o discurso literário e o discurso linguístico, considerando, em ambos, os conceitos de língua, sujeito e sentido sob a ótica discursiva provinda da Análise do Discurso de filiação francesa. Integrando-se à linha de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais e tendo por Corpus a novela Pedro Páramo, de Juan Rulfo, no idioma original e em sua tradução para o Português, a proposta é a de comparar os conceitos de Memória e de Subjetividade, considerados desde os pontos de vista discursivo-linguístico e discursivo-literário. Palavras-chave: Análise do Discurso. Memória. Subjetividade. Tradução. Pedro Páramo. 1. Introdução Com o tema Memória e Subjetividade em Pedro Páramo – Um estudo das (des)equivalências discursivas entre o original e a tradução ao Português, busca-se possibilitar relações entre o discurso literário e o discurso linguístico, princípio norteador deste estudo. A pesquisa se insere na linha de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais, suporte necessário à fundamentação das investigações que serão propostas. O objetivo geral deste trabalho, ao confrontar esses dois discursos, é o de comparar, em um e outro, como os conceitos de memória e de subjetividade são expressos e como foram (re)significados na obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo, na língua original e na sua tradução ao português. A escolha do romance Pedro Páramo como corpus para esta investigação se deve ao interesse da pesquisadora pela língua espanhola e a literatura hispano-americana, e muito especialmente pela obra de Juan Rulfo, por conter, em suas páginas, a expressão artística como uma forma de libertação das angústias vividas pelo escritor. Apesar de a obra ter sido escrita na metade do século XX, seu texto ajusta-se perfeitamente a aspectos da realidade presente. Rulfo retrata questões sociais, comprova como os mais fracos da sociedade se veem submetidos a injustiças seculares. 254 255 Aluna do Mestrado em Letras/Literatura Comparada da URI - Campus de Frederico Westphalen. Orientadora 134 É nesse âmbito que a obra Pedro Páramo torna-se interessante para o estudo pretendido, pois contém, nos registros de memória do sujeito discursivo, histórias vividas, recordações e buscas significativas, itens que se configuram como de suma importância para o objetivo proposto nesta pesquisa. Outro motivo relevante para a escolha do corpus é a linguagem utilizada pelo escritor, que se manifesta através de falas populares, poéticas, sugerindo os aspectos formais e semânticos relativos à tradução como outro viés possível nesta análise, comparando-se em que medida a obra traduzida, corresponde, em sua essência narrativa, à obra original. Juan Rulfo, escritor mexicano, iniciou sua vida literária nos primeiros anos da década de 40, escrevendo secretamente após suas atividades profissionais. Pedro Páramo foi escrito entre os anos 1953-1954, período considerado como o mais criativo de sua atividade literária. Nessa época, destacavam-se a originalidade de seu estilo e a força narrativa em textos que, pelos temas que abordavam, continuavam aparentemente na moda regionalista se consideradas as mudanças sócio-históricas que se operavam na época. Quanto às mudanças sócio-históricas do México, vários fatores as desencadearam, como a busca pelos direitos usurpados da população mexicana e a exclusão dos indígenas como cidadãos. A questão da terra também estava presente nos conflitos sociais no México, pois, na metade do século XIX, a maior parte dos indígenas já havia sido expulsa de suas terras e, também, a grande propriedade agrária foi reforçada e os camponeses despojados de suas terras, eliminando-se a pequena propriedade. Entre os líderes da Revolução está Emiliano Zapata. A obra de Rulfo está vinculada a sua vida, pois remete, através da arte literária, a alguns dos acontecimentos de sua infância e adolescência, entre eles, a morte violenta do pai, e, posteriormente, a morte da mãe, que o vai deixando submerso numa espécie de solidão existencial. Para investigar como foram trabalhados por Juan Rulfo, e na sua língua original – a espanhola -, os conceitos de memória e subjetividade e como foram eles (re)significados na tradução para a Língua Portuguesa, a teoria utilizada será a Análise do Discurso de linha francesa. A escolha por essa teoria justifica-se pelas possibilidades analíticas que proporciona, entre elas, tanto a problematização das maneiras de ler, quanto de levar o sujeito discursivo ou o leitor a propor questões sobre o que produz e o que ouve nas diferentes situações discursivas em que eventualmente se encontre. Por outro lado, a AD permite perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, a sua opacidade. Igualmente nos conduz à compreensão de que não há 135 neutralidade no uso da linguagem, nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos, pois, como garante Orlandi, “a Análise do Discurso nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem” (1999, p 9). Nesse sentido, o que se objetiva é compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho com a linguagem, constitutivo do homem e da sua história. A partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso, visando a estabelecer um possível diálogo comparativo entre o discurso literário e o discurso linguístico, esta pesquisa fará uso de estratégias analíticas que irão se delineando ao longo do processo do trabalho. A partir de recortes discursivos (RD), tomados do corpus sob a ótica teórica da Análise do Discurso, serão analisados os conceitos delimitados, respectivamente, a memória e a subjetividade, enfatizando-se a questão principal da análise, que é encontrar as equivalências e desequivalências observáveis nessas duas obras, quanto aos aspectos mencionados. 2. Referencial Teórico Para a realização dos objetivos propostos, toma-se como suporte teórico a Análise do Discurso de linha francesa, com autores como Michel Pêcheux, fundador da teoria, Eni Orlandi, Maria Cristina Leandro Ferreira, Francine Mazière e Denise Maldidier. Entre os elementos constitutivos da AD, a ideologia será estudada através da ótica marxista, segundo abordagem de Louis Althusser. Assim, na relação estabelecida neste trabalho entre a literatura e a linguagem, os caminhos de ambas convergem. A literatura representa as emoções, a arte em suas mais variadas formas de expressão. Entre essas formas, está a linguagem que, através das palavras, dá a estrutura necessária para determinadas expressões artísticas, tornando-se assim componente indispensável da literatura. Com referência à estrutura citada acima, Dominique Maingueneau (2001) apresenta em sua obra Elementos de Línguística para o texto literário vários aspectos úteis, linguisticamente, à análise de um texto literário. Essas contribuições constituem, então, o possível diálogo entre a literatura e a linguística que se pretende evidenciar neste trabalho. Nesse sentido, salienta-se que a linguagem não serve apenas para designar uma realidade preexistente. Ela faz muito mais: organiza (constitui) diante de nós o mundo em que vivemos (ORLANDI, 2009, p. 51). Assim, a linguagem é o que contribui para a formação do sentido, une as pessoas, estabelece a comunicação entre elas. 136 Pêcheux (1997) salienta que a linguística se constituiu como ciência no interior de um constante debate sobre a questão do sentido, ou seja, sobre a melhor forma de banir de suas fronteiras a questão do sentido: Se a linguística é solicitada a respeito desses ou daqueles pontos exteriores a seu domínio, é porque, no próprio interior de seu domínio, ela encontra, de certo modo, essas questões que lhe dizem respeito. A linguística não seria afetada por exigências em direção à “Semântica” se ela não tivesse se encontrado, de algum modo, com essas questões no seu interior (PÊCHEUX, 1997, p. 88). Já as relações aproximando linguagem e literatura são pertinentes através da Literatura Comparada, área da literatura que permite estudar e estabelecer comparações entre os polissistemas256 literários, as traduções, a intertextualidade, entre outros aspectos, neste sentido, presentes na área literária. Análise do Discurso A Análise do Discurso (AD) será o embasamento teórico utilizado para desenvolver os objetivos aqui propostos. Surgida no final dos anos 60, na França, esta disciplina pode associar-se numa dupla fundação, incluindo Jean Dubois, importante linguista, e o filósofo Michel Pêcheux, considerado, então, o pai da Análise do Discurso de linha francesa. Essa dupla fundação coloca em questão as condições de possibilidade de um campo novo, dentro da conjuntura política e teórica do fim da década de 60 do século XX. Michel Pêcheux sempre esteve envolvido em debates teóricos sobre marxismo, psicanálise, epistemologia, situando-se, inicialmente, no terreno da história das ciências. Sua reflexão estava voltada às questões da época sobre as ciências humanas. O projeto de Análise do Discurso, segundo Maldidier (in ORLANDI, 1997, p. 17), nasce em um contexto em que a linguística estruturalista vive em seu momento feliz e está em plena expansão. Outro fator importante é o marxismo, que, juntamente com a linguística, apresenta com a Análise do Discurso, “uma arma científica da linguística para oferecer meios novos de abordar a política” (IDEM, op. cit., p. 18). 256 A teoria do polissistema trabalha com complexos mais amplos que literatura, sem, no entanto, desconsiderála. Assim, ela é concebida não como uma atividade isolada da sociedade, regulada por leis inteiramente diferentes daquelas que regem o resto das atividades humanas, mas como um fator integrante, muitas vezes exercendo a função dominante entre os outros. Segundo Even Zohar, da Universidade de Tel Aviv, em sua introdução à “Polysystems Theory”, tudo isso deve-se ao fato de que, dentro do Formalismo Russo, a concepção de literatura sofreu uma série de modificações, passando a integrar-se num arcabouço mais amplo de cultura (NITRINI, 2010, p. 104-105). 137 A primeira obra, Análise Automática do Discurso, apresenta um objeto novo para estudo: o discurso. Este livro lançou questões fundamentais sobre textos, leitura e sentido. O discurso para Pêcheux atuará, a partir de então, no campo da ideologia e do sujeito. O sentido não dependerá apenas da posição em que o sujeito do enunciado está, mas surgirá pelas significações que são concretizadas durante um ato de comunicação. Gregolin (2001, p. 02) argumenta que o discurso, para Pêcheux, é diferente de enunciado, que é diferente de texto, que coloca o linguístico em articulação com a História. Desde a sua fundação, o discurso é entendido como um conceito que não se confunde com o discurso empírico de um sujeito (parole na teoria de Saussure), nem com o texto (o discurso não está na manifestação de seus encaixamentos e, por ser um processo, é preciso desconstruir a discursividade para enxergá-lo), nem com a função comunicacional. A análise visa a considerar o discurso como processo, indagando sobre as condições de sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui. Orlandi (2009, p. 58) realça que a Análise de Discurso tem como proposta básica considerar primordial a relação da linguagem com a exterioridade. Entendam-se como exterioridade as chamadas condições de produção do discurso: o falante, o ouvinte, o contexto da comunicação e o contexto histórico-social (ideológico). Essas condições estão representadas por formações imaginárias, como, por exemplo, a imagem que o falante tem de si, a que tem do seu ouvinte, dentre outras. A Análise de Discurso introduz, por meio da noção de sujeito, a de ideologia e a de situação social e histórica. Ao introduzir a noção de História, trará para a reflexão as questões de poder e das relações sociais. O discurso é definido não como transmissor de informação, mas como efeito de sentido entre locutores. Assim, considera-se que o dito não resulta só da intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da relação de sentidos estabelecida por eles num contexto social e histórico (ORLANDI, 2009, p. 60). A propósito, na obra O Discurso, Estrutura ou Acontecimento, Michel Pêcheux propõe uma reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se encaixar nas evidências e no lugar já-feito. Conforme Orlandi (1997), Pêcheux exerceu com sofisticação a arte de refletir nos entremeios. O ponto principal da AD constitui-se na tríplice relação com o sujeito assujeitado, falado por seu discurso, provindo do discurso do “estruturalismo” de Foucault, Althusser e Lacan, com a historicidade de todo enunciado singular, e com a materialidade da língua, com os linguistas Saussure, Harris e Chomsky (MAZIÈRE, 2007). 138 A partir da perspectiva em que neste trabalho serão analisadas as obras – original e traduzida – é que serão expostas as teorias que contribuirão para a pesquisa, entre elas o sujeito, o discurso, a formação discursiva e os intra e interdiscurso. Há que se considerar, também, que será na medida em que a pesquisa irá sendo realizada que se delinearão os procedimentos metodológico-investigativos e analíticos, visto que a Análise do Discurso permite modificações e retomadas ao longo do trabalho de interpretação. Em relação ao sujeito, é necessário considerar o que Ferreira (2005, p. 21) conceitua como sujeito. Ele é o resultado entre a relação com a linguagem e a história: não está totalmente livre, nem totalmente determinado por mecanismos exteriores. “O sujeito é constituído a partir da relação com o outro, nunca sendo única fonte de sentido, tampouco elemento onde se origina o discurso”. Considera-se, ainda, que o sujeito estabelece a relação no interior de uma formação discursiva, já que, como afirma Pêcheux, “os indivíduos são interpelados em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (1997, p. 161). Já o conceito de formação discursiva é básico na Análise do Discurso, pois é através dele que serão produzidos os sentidos, que se irão relacionar com a ideologia e, também, que o analista irá estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. Orlandi lembra ser a formação discursiva “aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 1999, p. 43). Relevantes, também, neste estudo, são os conceitos de inter e intradiscurso. O conceito de Interdiscurso, na Análise do Discurso, é tratado como a memória discursiva, como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. É o saber discursivo que retorna na forma de pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra (IDEM, 1999, p. 31). A partir do fragmento seguinte, retirado da obra que será analisada neste trabalho, o Intradiscurso, como fio do discurso e o Interdiscurso, como o já-dito, são expressos de forma clara. Entende-se, ainda, que a questão da memória é de grande relevância na obra trabalhada, uma vez que esse aspecto – o da memória – está presente a todo momento, devido às circunstâncias em que se passa a narrativa, instigando assim a pesquisa a partir da memória e, por conseguinte, a subjetividade. Volvió a darme las buenas noches. Y aunque no había niños jugando, ni palomas, ni tejados azules, sentí que el Pueblo vivía. Y que si yo escuchaba solamente el silencio, era por que aún no estaba acostumbrado al silencio; tal vez porque mi cabeza 139 venía llena de ruidos y de voces. De voces sí. Y aquí, donde el aire era escaso, se oían mejor. Se quedaban dentro de uno, pesadas4 (RULFO, 2008, p. 70). Nesse fragmento, há que destacar, inicialmente, o já-dito, o Interdiscurso presente. Na primeira frase - “tal vez porque mi cabeza venía llena de ruidos y de voces” - empregam-se palavras que exemplificam a condição do Interdiscurso. Na menção à cabeça, repleta de ruídos e de vozes, tem-se a presença de uma memória discursiva, relembrando fatos que ocorreram e que estão, sim, presentes na obra na condição de um já-dito. Há, portanto, que salientar a importância do Intradiscurso e do Interdiscurso na pesquisa que será realizada, determinando-se, a partir daquele, o discurso de um sujeito, e a partir deste, a matéria linguística, ideologia do já-dito, reconhecido pelo sujeito nas diferentes formações discursivas. Por fim, em relação aos demais temas analisáveis, como a tradução, autores como Walter Benjamin, Jacques Derrida, Rosemary Arrojo, Ana Helena Souza e Solange Mittmann serão os estudados. Para compreender a subjetividade, a memória e a psicanálise, estão elencados os autores Michel Pêcheux, Jacques Lacan e Joël Dor. Os temas supracitados serão desenvolvidos no primeiro e segundo capítulos da dissertação. A análise da obra, integrada a todos esses aspectos, será realizada no terceiro capítulo, em que será possível estabelecer a comparação entre a obra original e a sua tradução ao português, objetivo deste trabalho. Referências CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. FERREIRA, Maria Cristina. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: UFRGS. 2005. GREGOLIN, Maria do Rosário; BARONAS, Roberto (Orgs.). Análise do Discurso: a materialidade do sentido. São Carlos: Claraluz. 2001. ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. ____. O que é linguística? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009. MALDIDIER, Denise. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In: ORLANDI, Eni P. (Org). [et al]. Gestos de Leitura: da História no Discurso. Campinas: UNICAMP, 1997. MAZIÈRE, Francine. 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Pedro Páramo. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2008. SANTOS, Emanuelle; FERREIRA, Juliana; JUVENAL, Valmira. A Revolução Mexicana: reforma agrária e luta pelo direito de retornar a um passado usurpado. NEC- Núcleo de Estudos Contemporâneos. 2009. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandesprocessos/revolu%C3%A7%C3%A3o-mexicana-reforma-agr%C3%A1ria-e-luta-pelo-direitode-retornar-um-pass. Acesso em: 21 abril 2012. 141 O DISCURSO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA E NO CINEMA: REFLEXÕES A PARTIR DE ELITE DA TROPA 2 E TROPA DE ELITE 2. Francieli Casagranda Metz257 Profª. Drª. Maria Thereza Veloso258 Resumo: Tendo como fundamento teórico a Análise do Discurso de linha francesa, a presente pesquisa se justifica como uma possível contribuição aos estudos que vêm sendo feitos para analisar o discurso da violência em expressões ficcionais, tanto pertencentes ao universo literário, quanto ao universo fílmico. Sob este enfoque, e com o objetivo de compreender a violência como um dos fios constitutivos do tecido social, analisar-se-á o discurso da violência como constituinte de uma Formação Discursiva específica, a policial, em uma perspectiva histórica e sob duas óticas distintas – a dos policiais atentos ao regulamento disciplinar de sua corporação, e a dos milicianos, considerados estes, para os objetivos desta pesquisa, como aqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação Discursiva policial. Palavras-chave: Narrativa literária e fílmica. Análise do discurso. Formação discursiva policial. Violência. O presente estudo tem como tema O discurso da violência na literatura e no cinema: reflexões a partir de Elite da Tropa 2 e Tropa de Elite 2. Para tal pesquisa, usufrui-se como fundamento teórico a Análise do Discurso (AD) de linha francesa, especificamente do filósofo francês Michel Pêcheux. A Análise do Discurso é herdeira das Três regiões de conhecimento – Psicanálise, Linguística, Marxismo. Dentro da tradição marxista, a grande novidade que as teorias de Pêcheux trouxeram foi a de romper com uma concepção de ideologia como simples reflexo da instância econômica e com uma concepção de linguagem como instrumento de comunicação e língua enquanto sistema anquilosado a uma sintaxe suturada. Essa teoria se distingue da perspectiva do materialismo histórico, por se ocupar de uma realidade peculiar, dotada de uma regularidade e um modo de funcionamento irredutível. Dessa forma o objeto de estudo da AD se diferencia a suas pesquisas ganham autonomia em relação a outros campos como o das formações econômicas e sociais. Assim as descrições e as interpretações de discursos têm como uma de suas bases as Ciências da Linguagem e a Linguística Estruturada que propõem uma concepção de língua como opaca, equívoca e com uma regularidade interna própria, conforme sustentava Saussure. 257 258 Mestranda em Letras pela URI, campus de Frederico Westphalen Orientadora 142 A Análise do Discurso permite uma abordagem alternativa para a compreensão de fenômenos de ordem semântica. A abordagem materialista proposta por Pêcheux na década de 1960 desencadeou uma trajetória acidentada, com ratificações e retificações, ajustes, desvios e retomadas. Tal percurso configurou uma obra basilar da AD francesa que tem seu expoente, em um primeiro momento no Brasil, com a pesquisadora Eni Orlandi. Essa teórica faz uma interpretação que ressignifica os conceitos pecheutianos, de modo a torná-los possíveis de serem mobilizados teórico-analiticamente em discursos constituídos, formulados e em circulação no contexto brasileiro. Dito de outro modo, a relação entretida é de interpretação da obra e não de recepção de conceitos além-mar. Nessa perspectiva, a presente pesquisa se justifica como uma possível contribuição aos estudos que vêm sendo feitos para analisar a presença do discurso histórico em expressões ficcionais, tanto pertencentes ao universo literário, quanto ao universo fílmico. É indispensável enfatizar, nos estudos e discussões literárias, a importância da História como um dos componentes do discurso. Neste estudo, particularmente, interessa vê-la como um testemunho discursivo do caráter autoritário a que sociedade brasileira está submetida desde sua formação inicial. Sob este enfoque, e com o intuito de compreender a violência como um dos fios constitutivos do tecido social, escolhi analisar o discurso policial em uma perspectiva histórica e sob dois ângulos distintos, o dos policiais atentos à disciplina e à honestidade no desempenho de suas obrigações funcionais, e o dos milicianos, para os objetivos desta pesquisa entendidos como aqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação Discursiva policial. Para tanto, tomei como Corpus o livro Elite da Tropa 2 e o filme Tropa de Elite 2, entendendo que ambos apontam para a existência de um estado permanente de execução da violência tanto no meio social em seu sentido amplo, como naquele partilhado pelos policiais no exercício profissional. Acrescento que a opção pelo Corpus foi determinada por três fatores. Primeiro, por permitir abordar a temática da violência brasileira nascida – possivelmente e em alguns casos – do desconforto e da pobreza, analisando a realidade, em toda sua crueza, através da visão policial, tanto das milícias, quanto do grupo de policiais que lutam contra a criminalidade (o BOPE). Um segundo fator foi a possibilidade de analisar os discursos dos sujeitos mediante o referencial teórico da Análise do Discurso, de linha francesa, considerando a importância de seus três elementos constitutivos – a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise –, ou seja, pela contribuição possível dessas três áreas para a compreensão das condições de produ- 143 ção discursiva nos ambientes e situações sob análise; e, um terceiro fator, a possibilidade de avaliar com que teor de fidelidade ocorreu a transposição do discurso da violência da linguagem literária para a linguagem fílmica, mediante a criação, nesta, de situações simuladoras de contextos discursivos reais. Para efeitos da análise, considero, ainda, que o problema a ser discutido diz respeito à possibilidade de compreender a violência como uma forma de ação política, capaz de afetar o meio social em sentido amplo. Visando a atender aos objetivos desta pesquisa, um primeiro olhar sobre o Corpus sugere a existência de uma tensão, mediada pela violência e pela política partidária, entre sociedade, milícias e polícia, ou seja, entre os componentes das formações discursivas (FD) sob análise. Entende-se pertinente o tema da presente pesquisa na medida em que visa a associar a ficção com a realidade cotidiana, procurando evidenciar pistas discursivas que justifiquem a crítica social presente em obras como as que constituem o Corpus deste trabalho. Por meio de expressões artísticas como a literatura e o cinema, ainda que muitas vezes a alusão a fatos, personagens e circunstâncias ali esteja de forma subentendida ou implícita, é possível resgatar ou evidenciar, sob diferentes pontos de vista, a importância de determinados momentos históricos vividos pela sociedade. A proposta é também relevante pela possibilidade de desnudar, pela análise de elementos linguísticos e imagéticos presentes respectivamente no discurso literário e no discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que perpassam o tecido social, oriundas de formações discursivas específicas, como, no caso do Corpus sob a análise, a formação discursiva policial (FDP). Para viabilizar a pesquisa, o pressuposto inicial é a necessidade de compreender e, ao mesmo tempo, qualificar, ou seja, categorizar e contextualizar a violência urbana. Com este objetivo, escolheram-se as obras já mencionadas, uma literária e outra cinematográfica, por retratarem e, ao mesmo tempo, terem sido ambientadas em um espaço de violência e de carência, um ambiente abandonado pelo Estado e dominado pelo tráfico, bandidos e milícias. Para o desenvolvimento desta pesquisa, serão levadas em conta abordagens que, baseadas na Análise do Discurso, na teoria literária e na linguagem fílmica, poderão contribuir para a análise e interpretação de elementos relacionados à violência tal como se apresentam na visão policial presente no livro Elite da tropa 2 e no filme Tropa de Elite 2. Assim a pesquisa proposta será feita com base nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso, segundo a qual é ao longo do processo analítico que se delineiam e conformam as estratégias a serem empregadas. 144 Lembramos que a violência entre as milícias e as polícias é um fator preocupante e capaz de desestabilizar a sociedade e se transforma em eficiente instrumento de persuasão social em seu próprio favor, levando esses grupos ao reconhecimento, pelas comunidades, como talvez os únicos em eficiência para o controle e diminuição de uma outra espécie de violência, originada em comportamentos antissociais, nascidos das camadas marginais da sociedade. Tendo como corpora de análise o livro Elite da Tropa 2 e o filme Tropa de Elite 2, o objetivo geral desta proposta de pesquisa é identificar, na literatura e no cinema, pistas do discurso da violência enquanto força política capaz de desestabilizar parcelas significativas da sociedade civil organizada. Por outro lado, pretendo estudar referenciais discursivos acerca das causas, características e níveis de violência urbana predominantes no País, avaliar o modo (se crítico ou não) como os personagens dos corpora em análise concebem a violência a sua volta, revisar aspectos fundamentais da Análise do Discurso de linha pecheutiana que tenham a ver com os objetivos da pesquisa. Por fim, justificar, à luz da teoria da Análise do Discurso, os níveis de discurso utilizados pelos personagens na obra literária original e na sua transposição para o discurso fílmico. É oportuno considerar que o problema proposto à abordagem nesta pesquisa necessita de uma avaliação que ultrapasse pressupostos de ordem literária. A justificativa mais plausível e que melhor satisfaz essa consideração apóia-se na possibilidade de associação entre Literatura e contexto social, já que, “a análise estética precede considerações de outra ordem” (CANDIDO, 2000, p. 3). A partir dessa base, e tomando-se como sequências discursivas de referência (SDR) recortes discursivos (RD) tomados dos corpora, será feita uma análise interpretativa de forma a examinar o modo como as obras sob análise refletem, ou não, uma denúncia ao meio social sobre a violência que permeia alguns órgãos encarregados de manter a ordem e a segurança nas comunidades. O foco da análise estará na estruturação sintático-lexical das SDs, de forma a identificar, qualitativa e não quantitativamente, como se dá a articulação entre o lingüístico e o ideológico e se os resultados dessa articulação alcançam o locus para além dos limites das SDs. É importante ressaltar que por mais que o curso de especialização seja voltado a literatura comparada, a Análise do Discurso permite melhor compreensão das produções do sentido e de suas determinações histórico-sociais. Isso permite que além do comparatismo possamos compreender a “historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de um sentido literal, já posto, e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é regida por condições de produção” (FERREIRA, 2001, p. 11). 145 Para a análise das temáticas selecionadas nos RD, buscar-se-á respaldo em referências a experiências e fatos sociais, considerando-se autores como Metz, Pêcheux, Saussure, Lacan, Freud, Foucault, Bernadet, Candido, Veloso, Henry, Martin, Mongin, Mourão, Nunes, Orlandi, Ramos, Teixeira, Vanoye e Xavier, entre outros, inserindo-se o presente estudo na Linha de Pesquisa Comparatismo e Processos Culturais do PPGLC.