Anais do Congresso Rosa - Faculdade de Letras

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Anais do Congresso Rosa - Faculdade de Letras
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ISBN: 85-87043-65-X
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No ano de 2006 comemora-se o cinqüentenário da publicação de Grande sertão: veredas, considerado
pela crítica literária um dos romances mais representativos da literatura brasileira do século XX, e de Corpo de
Baile. Mesmo depois da morte de João Guimarães Rosa, sua obra continua sendo reeditada em inúmeros
países, traduções inéditas foram lançadas e, sobretudo, não pára de crescer o interesse crítico em torno de sua
produção. Além de inumeráveis estudos publicados em livros, teses e dissertações são defendidas nos cursos
de pós-graduação, não só de Literatura Brasileira, mas de Poética, Literatura Comparada, Teoria da Literatura
e mesmo na área de Lingüística. Artigos são publicados em jornais e revistas especializadas, sites na Internet
oferecem aos pesquisadores do Brasil e do exterior material cada vez mais rico sobre o nosso “escritor do
sertão”, epíteto que expressa a reputação do autor. Mesmo na falta de estatísticas confiáveis, não é exagero
dizer que João Guimarães Rosa é um dos romancistas de maior fortuna crítica no Brasil.
Com o objetivo de celebrar a publicação dessas duas obras, a Faculdade de Letras da UFRJ, enquanto
instituição de excelência, não poderia se ausentar da tarefa de comemorar o cinquentenário do romance e da
novela que até hoje mais se destacam como objeto de estudo da crítica literária nacional e internacional. A
Comissão Organizadora, com o apoio institucional da Direção da Faculdade de Letras, dos Programas de PósGraduação em Letras Vernáculas e Ciência da Literatura, do corpo discente da pós-graduação e de outras
instâncias acadêmico-administrativas da UFRJ, organizou nos dias 25 a 27 de setembro de 2006 o Congresso
Nacional do Cinqüentenário de Grande sertão: veredas e Corpo de Baile, realizado na Faculdade de
Letras da UFRJ, no Rio de Janeiro. O evento reuniu especialistas de todo o Brasil, entre eles críticos literários
renomados como José Miguel Wisnik, Kathrin Rosenfield, Lélia Parreira Duarte, Maria Célia Leonel, Susana
Kampff Lages, e os professores da casa Eduardo Coutinho, Ronaldes de Melo e Souza, Manuel Antônio de
Anais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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Castro, José Maurício Gomes de Almeida, Maria Lúcia Guimarães, bem como os escritores Luiz Ruffato e
Alexei Bueno. O resultado desse encontro foi a reavaliação crítica da importância de Guimarães Rosa na
literatura brasileira contemporânea.
O Congresso contou ainda com a participação dos alunos de pós-graduação por meio de comunicações
apresentadas e de uma mesa-redonda de teses e dissertações defendidas em 2005 e 2006. Dessa forma, acreditase que o Congresso foi uma maneira de proporcionar ao aos professores e alunos dos cursos de graduação e
pós-graduação em Letras e em áreas correlatas, escritores, jornalistas, bem como ao público em geral, o contato
com a diversidade de enfoques que a obra de João Guimarães Rosa permite; a atualização de sua fortuna
crítica, mediante a permuta de estudos e a fixação da memória cultural brasileira sobre João Guimarães Rosa.
Além das conferências, a Direção da Biblioteca da Faculdade de Letras, junto à Comissão Organizadora,
elaborou uma exposição das obras raras do autor e de parte de sua fortuna crítica reunida em artigos de jornal
da época, encontrados no Acervo Bibliográfico Afrânio Coutinho, pertencente a esta Faculdade, além de uma
catalogação de todos os títulos de e sobre Guimarães Rosa encontrados na Biblioteca, bem como todas as teses
e dissertações sobre o autor defendidas até 2006. Todo esse material encontra-se digitalizado e disponibilizado
em CD. Com esse trabalho dá-se início a um projeto de maior porte que envolve a digitalização do Acervo
Bibliográfico Afrânio Coutinho, a ser realizado pela Biblioteca da Faculdade de Letras.
Mayara Ribeiro Guimarães
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PROGRAMAÇÃO
DIA 25/09
Sessão de Abertura (9:30 às 11:00): “... e Guimarães Rosa não deixou seguidores.” - Luiz Ruffato
(Auditório G2)
Lançamento de livros e Lanche (11:00 às 11:30): Corredor do G2
Mesa-redonda 1 (11:30 às 13:30): O Sertão de Guimarães Rosa (Auditório G2)
José Maurício G. de Almeida (UFRJ) - “Da visão realista à visão mito-poética: o sertão como microcosmo.”
Maria Célia Leonel (UNESP – Araraquara) - “A criação do sertão em Guimarães Rosa”
Almoço (13:30 às 14:30)
Mesa-redonda 2 (14:30 às 16:30): A poiésis em Guimarães Rosa (Auditório G2)
Manuel Antônio de Castro (UFRJ) - “O Grande Ser-tão: a arte e o sagrado”
Maria Lúcia Guimarães (UFRJ) - “O mito do homem novo nas estorias rosianas”
DIA 26/09
Mesa-redonda 3 (9:00 às 11:00): A revitalização da linguagem em Guimarães Rosa (Auditório G2)
Lélia Parreira Duarte (PUC-MG): “A linguagem em Guimarães Rosa”
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Eduardo Coutinho (UFRJ): “A revitalização da linguagem em Guimarães Rosa”
Mesa-redonda 4 (11:00 às 13:00): Guimarães Rosa e a tradição literária ocidental (Auditório G2)
Kathrin Rosenfield (UFRGS): “Bebendo água de todos os rios”
Ronaldes de Melo e Souza (UFRJ): “A saga do sertão em Corpo de Baile”
Almoço (13:00 às 14:00)
Mesa-redonda 5 (14:00 às 16:00): Rosa e a literatura portuguesa (Auditório G2)
Susana Lages (UFF): “A Europa de Guimarães Rosa e de Eduardo Lourenço – Portugal, Europa e os não-lugares da
saudade”
Alexei Bueno: “Grande Sertão: Veredas”
DIA 27/09
Conferência (9:30 às 11:00): A violência cordial em “O Famigerado” - José Miguel Wisnik (USP) (Auditório
Mattoso Câmara - F-329)
Mesa-redonda 6 (11:00 às 12:30): Recepção Crítica de Rosa: Teses e Dissertações (Auditório Mattoso
Câmara - F-329)
Prof. Dra. Danielle Corpas: “O jagunço arrivista e o leitor de Grande sertão: veredas - notas sobre um ensaio de José
Hildebrando Dacanal”
Tereza Paula A. Calzolari (Doutoranda UFRJ): “O amor como desvio de rota”
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André V. Pessôa (Doutorando UFRJ): “A Musicalidade na Obra de Guimarães Rosa”
Lenise M. S. Lucchese (Doutoranda UFRJ): “Buriti” - A vida como “matéria ávida”
Mesa 1 de comunicações (11:00 às 12:30): Memória e infância em Guimarães (Auditório Guimarães
Rosa)
Ana M. Albernaz (Doutoranda UFRJ): “A memória demudante em Grande Sertão: Veredas”
André L. B. da Silva (Doutorando UERJ): “Infância e epifania: a intuição em “As margens da alegria” e “Os cimos””
Patrícia da S. Carmello (Doutoranda UFRJ): ” Do contador de estórias à ficção de um país: notas sobre a memória no
Grande Sertão: veredas”
Mesa 2 de comunicações (11:00 às 12:30): Linguagem e semiótica (Sala F-206)
Lisa C. Vasconcellos (Doutoranda USP): “Figurações de um leitor em Grande sertão: veredas”
Leonor da C. Santos (Doutoranda UFRJ): “O Pedrês de cada dia, no Duelo de hoje, nos dai!”
Ana Paula M. Lobo (Mestranda UERJ): “Guimarães Rosa e a trapaça que ultrapassa a própria língua”
Almoço (12:30 às 13:30)
Mesa 3 de comunicações (13:30 às 14:30): As estrategias do narrar (Auditório Guimarães Rosa)
Prof. Dr. Wellington de A. Santos (UFRJ): “Artimanhas do contar”
Mayara Ribeiro Guimaraes (Dout. UFRJ): “O homem hierofânico em Grande sertão: veredas”
Tatiana A. S. Caldas (UNESA – UniverCidade): “O cego e a criança no meio do redemoinho”
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Mesa 4 de comunicações (13:30 às 14:30): A oralidade no discurso rosiano (F- 206)
Profa. Dra. Rita de Cássia M. Elias: “A função da cantiga e da festa em “Uma estória de amor””
Wanessa Zanon de Souza (Graduacao UFRJ): “O contador de estórias Miguilim”
Carmen Elena das Chagas (Mest. UFF): “Oralidade na literatura: As Primeiras Estórias de Guimarães Rosa”
Mesa 5 de comunicações (13:30 às 14:30): Rosa e a filosofia (F- 208)
Camillo B. O. Cavalcanti (Dout. UFRJ): “Posições e transições em “A terceira margem do rio””
José Maurício da Silva (Mest. UFRJ): “Da visão realista à visão mitopoética: o sertão como microcosmo”
Priscila Guedes Buares (Graduacao UFRJ): “Rosa/Heidegger: Questões/Aproximações”
Mesa 6 de comunicações (13:30 às 14:30): A experiência e o processo narrativo no texto rosiano (F –
210)
Cristiane Sampaio (Dout. UFRJ): “O tempo da poesia e do pensamento em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa”
Márcia de O. R. Brandão (Dout. UFF): “A escritura do silêncio”
Leonardo V. de Almeida (Dout. UERJ): “Natureza e artifício: a voz peregrina em “O recado do morro””
Mesa 7 de comunicações (14:30 às 15:30): Intertextualidades em Rosa (Auditório Guimarães Rosa)
Profa. Dra. Carmen Lucia T. R. Secco (UFRJ): “Presença de Guimarães Rosa em Luandino Vieira e Mia Couto: As
margens do inefável”
Prof. Dr. Aurélio G. de Lacerda (UFBA): “D’Os Sertões ao Grande Sertão: veredas discursivas”
Guilherme A. de L. Nicesio (Mest. Unicamp): “O Lastro da Imortalidade: Tempo e Religiosidade em Grande Sertão:
Veredas”
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Mesa 8 de comunicações (14:30 às 15:30): Tragicidade e mistura de gêneros no texto rosiano (F- 206)
Adelaide C. Cezar (Univ. Est. Londrina): “A representação do pacto com o diabo em Grande Sertão: Veredas”
Fernanda de A. Machado (Mest. UFMG): “Diadorim: corpo neblim”
Renata A. A. Silva (Graduacao UFRJ): “Sedução e fascínio em “Uma estória de amor” “
Mesa 9 de comunicações (14:30 às 15:30): O processo de criação literária no texto rosiano (F- 208)
Prof. Dr. Miguel Barbosa do Rosário (UNESA): “O percurso etimológico em “O famigerado””
Alexandra V. de Almeida (Dout. UERJ): “Os processos literários na construção do prefácio “Aletria e Hermenêutica””
Amadeu da S. Guedes (UFF): “Fios da vida em “Fita verde no cabelo”, de Guimarães Rosa”
Mesa 10 de comunicações (14:30 às 15:30): Metafisica e religiosidade em Guimarães Rosa (F – 210)
Cláudia Andréa P. Ferreira (UFRJ): “Riobaldo, narrador-personagem, realiza a procura do sentido da sua existência
emaranhando-se pelas veredas narrativas.”
Cleide Maria de Oliveira (Dout. UFRJ): “Fora do Éden, viver é perigoso.”
Erico C. de Melo (Mest. USP): “Ciranda multívoca: a unidade reconstelada de Corpo de Baile”
Josias da Costa Júnior (Dout. PUC-RIO): “O problema do mal a partir da obra Grande sertão: veredas. Um diálogo
entre literatura e religião.”
Mesa 11 de comunicações (15:30 às 16:30): A mitopoiesis na literatura rosiana (Auditório Guimarães
Rosa)
Diego de F. B. Pereira (Mest. UFRJ): “Sentido e paideuma na mitopoeisis roseana em São Marcos”
Gisele P. Martins (PG – PUC – SP): “Uma leitura mítica de “Meu tio o Iauaretê””
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Verônica de A. Costa (Graduação UFRJ): “O Pensamento Mitopoético na saga do sagen em Recado do Morro, de
Guimarães Rosa”
Mesa 12 de comunicações (15:30 às 16:30): Rosa - Estudos Comparativos I (F – 206)
Ricardo Alexandre Rodrigues (Mestre UFRJ): “A terceira margem da palavra”
Igor T. S. Fagundes (Mest. UFRJ): “O que existe é rio humano: João Cabral na terceira margem de Rosa”
Francesco J. R. de Lima (Mest. UFRJ): “Rios Entrecruzados: Magma, de Guimarães Rosa e Livro sobre nada, de
Manoel de Barros”
Mesa 13 de comunicações (15:30 às 16:30): Rosa - Estudos comparativos II (F – 208)
Berilo Luigi D. Nosella (Mest. PUC – SP): “Candido, Rosa e o “Nosso” Modernismo”
Maria Luiza de C. da Silva (UNESA): “Idéias cinematográficas em “Buriti””
Tatiana A. Fantinatti (Dout. UFRJ): “A tarefa do tradutor segundo Guimarães Rosa e Edoardo Bizzarri”
Mesa 14 de comunicações (15:30 às 16:30): Grande sertão e Primeiras Estórias – Estudos Exegéticos
(F – 210)
Maria Patricia da S. Moreira (Mestr. UFRJ): “A terceira margem do Grande Sertão”
Marta Rodrigues (Mestr. UFRJ): “Viajando com o “Audaz navegante”“
Monica Gama (Mestr. USP): “A ficção de leitor em Grande Sertão: Veredas”
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Reitor: Aloísio Teixeira
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Decano: Carlos Antonio Kalil Tannus
FACULDADE DE LETRAS
Diretor: Ronaldo Lima Lins
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
Coordenadores: Célia Regina Lopes - Afrânio Gonçalves Barbosa
Secretária da Pós-Graduação: Urânia Maria
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Literatura
Coordenador: Alberto Pucheu - João Camillo Penna
Organizadores dos Anais
Mayara Ribeiro Guimarães
Fábio Frohwein
Comissão Organizadora
Ana Maria Albernaz
Eduardo Coelho
Fábio Frohwein
Mayara Ribeiro Guimarães
Tereza Paula Alves Calzolari
Capa e projeto gráfico: André Marinho
Editoração Eletrônica: Fábio Frohwein
Apoio
Editora: Faculdade de Letras da UFRJ
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Adelaide Caramuru Cezar
A representação do pacto com o diabo em Grande Sertão: Veredas
Alexandra Vieira de Almeida
Os processos literários na construção do prefácio “Aletria e Hermenêutica”
Alexei Bueno
Grande sertão: veredas
Amadeu da Silva Guedes
Fios da vida em “Fita verde no cabelo”, de Guimarães Rosa
Ana Maria Albernaz
A memória demudante em Grande Sertão: Veredas
Ana Paula Morse Lobo
Guimarães Rosa e a trapaça que ultrapassa a própria língua
André Luiz Barros da Silva
Infância e epifania: a intuição em “As margens da alegria” e “Os cimos”
André Vinícius Pessôa
A Musicalidade na Obra de Guimarães Rosa
Berilo Luigi Deiró Nosella
Candido, Rosa e o “Nosso” Modernismo
Camillo Baptista Oliveira Cavalcanti
Posições e transições em “A terceira margem do rio”
Carmen Elena das Chagas
Oralidade na literatura: As Primeiras Estórias de Guimarães Rosa
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Presença de Guimarães Rosa em Luandino Vieira e Mia Couto: As margens do inefável
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Cláudia Andréa Prata Ferreira
Riobaldo, narrador-personagem, realiza a procura do sentido da sua existência emaranhando-se pelas veredas narrativas.
Cleide Maria de Oliveira
Fora do Éden, viver é perigoso.
Cristiane Sampaio
O tempo da poesia e do pensamento em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa
Danielle Corpas
O jagunço arrivista e o leitor de Grande sertão: veredas - notas sobre um ensaio de José Hildebrando Dacanal
Diego de Figueiredo Braga Pereira
Sentido e paideuma na mitopoeisis roseana em São Marcos
Érico Coelho de Melo
Ciranda multívoca: a unidade reconstelada de Corpo de Baile
Francesco Jordani Rodrigues de Lima
Rios Entrecruzados: Magma, de Guimarães Rosa e Livro sobre nada, de Manoel de Barros
Igor Teixeira Silva Fagundes
O que existe é rio humano: João Cabral na terceira margem de Rosa
José Mauricio da Silva
“Augusto Matraga - um ser-para-a-morte”
José Maurício Gomes de Almeida
Da visão realista à visão mitopoética: o sertão como microcosmo
Josias da Costa Júnior
O problema do mal a partir da obra Grande sertão: veredas. Um diálogo entre literatura e religião.
Lélia Parreira Duarte
A revitalização da linguagem em Guimarães Rosa em “Cara-de-bronze”
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Leonardo Vieira de Almeida
Natureza e artifício: a voz peregrina em “O recado do morro”
Leonor da Costa Santos
O Pedrês de cada dia, no Duelo de hoje, nos dai!
Luiz Ruffato
... e Guimarães Rosa não deixou seguidores...
Manuel Antonio de Castro
Grande Ser-tão: a travessia
Márcia de Oliveira Reis Brandão
A escritura do silêncio
Maria Célia Leonel
A criação do sertão em Guimarães Rosa
Maria Lúcia Guimarães
O mito do homem novo nas estórias rosianas
Maria Patrícia da Costa Moreira
A terceira margem do Grande Sertão
Marta Rodrigues
Viajando com o “Audaz navegante”
Mayara Ribeiro Guimarães
O homem hierofânico em Grande sertão: veredas
Mônica Gama
A ficção de leitor em Grande Sertão: Veredas
Patrícia da Silva Carmello
Do contador de estórias à ficção de um país: notas sobre a memória no Grande Sertão: veredas
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Renata Aniger Andrade Silva
Sedução e fascínio em “Uma estória de amor”
Susana Kampff Lages
Brasil, Portugal, Europa e os não-lugares da saudade
Tatiana Alves Soares Caldas
O cego e a criança no meio do redemoinho
Tatiana Arze Fantinatti
A tarefa do tradutor segundo Guimarães Rosa e Edoardo Bizzarri
Tereza Paula Alves Calzolari
O amor como desvio de rota em “Festa de Manuelzão”
Verônica de Araújo Costa
O Pensamento Mitopoético na saga do sagen em Recado do Morro, de Guimarães Rosa
Wanessa Zanon de Souza
O contador de estórias Miguilim
Wellington de Almeida Santos
Artimanhas do contar
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ADELAIDE CARAMURU CÉZAR (UEL)
RESUMO:
O pacto com o diabo é representado em Grande Sertão: Veredas em apenas quatro páginas. Nelas o protagonista
manifesta-se como sujeito dominado pela hybris, ou seja, como ser que ultrapassa a medida, revelando-se insolente.
Coloca-se em pé de igualdade com o ente maligno por ele solicitado. Sua determinação pela busca do estabelecimento
do pacto com o diabo é decorrente de sua necessidade de equiparar-se ao Hermógenes, a quem, não por vontade
própria, mas por necessidade de Diadorim, precisa vencer. O demônio não se faz presente. Existe apenas na mente
de Riobaldo que, nestas quatro páginas, estabelece uma parada no tempo, marcando, desta forma, seu desejo de
estabelecimento de um norte para sua vida. O momento do pacto é o momento da escolha do personagem de seu
destino, escolha esta que virá, como ocorre nas tragédias gregas, acompanhada de harmatia. Sabe-se que o pacto se
efetivou apenas por conta das modificações ocorridas no comportamento posterior do personagem que passa a
sentir frio, sede, fome, torna-se excessivamente falante, arrogante e deixa, segundo suas afirmações, de sonhar.
Este trabalho propõe-se como análise destas quatro páginas de manifestação plena da hybris do personagem.
Espera-se demonstrar que, caracterizando-se Grande Sertão: Veredas como um romance no qual há mistura de
formas, mistura de gêneros, a passagem que agora se propõe a analisar manifesta-se como um episódio de natureza
trágica, ou seja, que remete à especificidade da tragédia ática.
A ENCRUZILHADA DA DECISÃO: O PACTO COM O DIABO
EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para as más ações
estranhas... (Guimarães Rosa, 2001, p. 116)1.
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Ao narrar sua história de vida ao interlocutor urbano, Riobaldo apresenta-se como ser conduzido pelo
destino, pela fatalidade. Através de seu relato, o interlocutor fica sabendo que foi criança pobre criada apenas
pela mãe, Bigri, e, por conta disto, por muito tempo, dominado por valores femininos. Acontece que, segundo
relata, aos quatorze anos, depara-se com um menino cuja estória de vida é completamente divergente da sua,
uma vez que provém de universo de fartura, foi criado pelo pai e, dado tal fato, conduz-se pelos valores
masculinos. Logo depois de relatar a seu interlocutor este encontro decisivo, que se deu na confluência do riode-Janeiro com o rio São Francisco, no qual toma conhecimento de maneira de ser diferente daquela antes por
ele tida como única, Riobaldo coloca ao homem da cidade que o escuta a seguinte questão:
Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? (...) Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor
não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O
senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o
Menino? (Rosa, 2001, p. 125-126).
Os acasos a ditarem a rota do personagem continuam sendo mostrados pelo narrador a seu interlocutor.
O próximo passo é o falecimento da mãe e a assunção do término de sua criação pelo padrinho-pai Selorico
Mendes. É o narrador num tempo a posteriori quem registra o fato: “Ela morreu, como a minha vida mudou
para uma segunda parte” (p. 127). Os objetos femininos e humildes que trouxe do universo materno, “minha
rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um
cobertor de baeta e minha muda de roupa” (p. 127) são acrescidos de armas e de cadernos dados por Selorico
Mendes, preparando, desta forma, sua sorte de jagunço letrado.
Não falta a este universo conduzido por uma força oculta o oráculo a profetizar a sina a ser cumprida.
Numa noite de muita movimentação na fazenda São Gregório, Riobaldo, ainda adolescente, a mando de
Selorico Mendes, conduz os homens de Joca Ramiro ao “pôço do Cambaùbal” (p. 133). De repente, “um falou
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mais alto, aquilo era bonito e sem tino: - ‘Siruiz, cadê a moça virgem?’” (p. 135). A canção que vem após esta
pergunta fala da vida de jagunçagem. Segundo conta a seu interlocutor, sempre que se referia a esta canção
nenhum de seus companheiros, nem mesmo Diadorim, dava-lhe a mesma importância que para ele esta canção
tinha. Ela prenuncia o futuro de Riobaldo: jagunço a apaixonar-se por uma “moça virgem”. Só a ele a canção
dizia respeito. Para compreendê-la cumpria, no entanto, experienciá-la. É ao interlocutor urbano que dirige o
questionamento a respeito da importância desta canção: “O que eu guardo no giro da memória é aquela
madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho,
a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?”
(p. 138).
Os acasos continuam. Riobaldo entra em contato com Zé Bebelo, na época representante do governo
dando batalha contra jagunços. Registra, enquanto secretário de Zé Bebelo, a batalha contra Hermógenes.
Presencia a batalha contra Ricardão. Descontente, foge. Sem saber que rumo tomar, dorme com uma mulher,
filha do Malinácio. Dá-se então um novo encontro com o grupo de Joca Ramiro e com o menino do porto do
de-Janeiro, graças ao dia a mais que permaneceu no lugar. Novamente dirige a seu interlocutor urbano pergunta
sobre o papel do destino em sua vida:
Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca
mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? – era o que eu pensava. Veja o senhor: eu puxava essa idéia; e com
ela em vez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu. Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe (p. 158).
A partir deste encontro, a vida sem ermo ganha norte e agora Riobaldo passa a seguir Diadorim,
fazendo valer a lei do sertão contra a lei do governo. Batalha vai, batalha vem até que a luta empreendida se dá
contra Zé Bebelo, representante do governo. Este, por ação de Riobaldo, não é morto, cabendo-lhe julgamento
do qual sai com vida. Logo a seguir é a vez de contar sua permanência, juntamente com vinte e três companheiros,
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sob a chefia de Titão Passos, no Guararavacã do Guaicuí. Aí, segundo o narrador, acontecem dois fatos de
maior importância: “Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto
em amizade” (p. 305); depois, que “Mataram Joca Ramiro” (p. 311). Revela ainda, de forma categórica, que
“foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados” (p. 305).
Consciente de seu amor por Diadorim e da determinação deste em vingar a morte do pai, Riobaldo
acaba por estabelecer seu rumo: o assassinato de Hermógenes e Ricardão. Esta é, no entanto, uma tarefa que
vai além de sua competência. Como enfrentar pactários? Relutante no que diz respeito a sua identidade,
“quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?” (p. 327), o narrador envelhecido conta que o protagonista
sabia da competência do Tinhoso, uma vez que já se tinha dado conta de que:
Quando protege, vem, protege com sua pessoa. Montado, mole, nas costas do Hermógenes, indicando todo
rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim, dentro do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no
lume dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. (p. 318).
Sabe e gradativamente mais vai sabendo da fragilidade de ser jagunço. Já se deu conta de que poderia
ter sido traído por Zé Bebelo na Fazenda dos Tucanos. Mais adiante, percebe que, por um acaso, pode ser
reduzido a escravo de qualquer Seo Habão. Infeliz, está sempre a pensar “e, que é que eu era? Um raso
jagunço, cachorrando por este sertão” (p. 420). Em oposição, busca pela especificidade de Hermógenes. Como
que invejoso da inteireza deste chefe, define-o como “arrenegado, senhoraço, destemido. Ruím, mas inteirado,
legítimo, para toda certeza, a maldade pura” (p.425). Oscilando ainda entre fazer e não fazer o pacto, deparase com Seo Habão e com clareza dá-se conta de que “fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas (que)
jagunço não passa de ser homem muito provisório” (p. 429). Dentre as duas alternativas possíveis, fazer ou
não fazer o pacto, apenas a primeira lhe permite a saída de seu universo comezinho, que tanto o incomoda,
universo este que faz dele um ser tão desprotegido, tão à mercê do acaso. Assim sendo, sua escolha, em
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verdade, não é autônoma, mas antes inelutável, contingente, se objetiva assumir o rumo de sua vida, se
objetiva transmutar-se em “sujeito responsável e autônomo que se manifesta em atos e por atos que lhe são
imputáveis” (Vernant, Vidal-Naquet, 1977, p. 36).
Riobaldo sabe que a ação a que está por propor-se é perigosa. Isto porque, ainda que deliberando
consigo mesmo, pesando os prós e os contras, prevendo os acontecimentos que estão por vir, na verdade
conta apenas com o desconhecido e para ele, que ainda não o experienciou, incompreensível, aventurando-se
num jogo de forças sobrenaturais sobre as quais pouco sabe. Sem ser coagido, porém desejoso de tornar-se
senhor de seu próprio destino, Riobaldo acaba deliberadamente decidindo pelo pacto. Transforma-se, assim,
em agente de seu próprio destino, ou seja, adquire competência para o “ficar sendo” para ele de primordial
importância: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só
tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!” (p. 436).
No momento em que decide o pacto, afirma: “Um tinha que estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro,
o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele...” (p. 434). Tira forças das entranhas e, afastado de
todos, dirige-se ao espaço no qual a ação pretendida deve efetivar-se. A tensão Deus / Diabo, Bem / Mal que
perpassa todo romance é registrada já antes do adentramento nas Veredas-Mortas para o pacto com o diabo,
quando revela a seu interlocutor que “Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, como fui” (p. 434).
Está-se, pois, diante do livre arbítrio de uma ação, no entanto, necessária. A tensão que prenuncia o ato
imputável também se fará presente no tempo em que se encontra nas Veredas Mortas, uma vez que não é
capaz de precisar se o pacto é feito com Deus ou com o Demo, conforme se pode deduzir das três afirmações
sucessivas que se fazem presentes em um único parágrafo: “Deus ou o Demo?”; “Deus e o Demo”; “Deus ou
o Demo – para o jagunço Riobaldo!” (p. 437). De uma interrogação a marcar a dúvida do protagonista frente
ao transcendente com o qual quer vincular-se, passa-se a uma afirmação na qual um elemento não exclui o
outro, antes se somam, para alcançar, finalmente, a exclamação a registrar que, para o ser dominado pela
hybris, tanto faz a presença de Deus ou do Demônio, uma vez que, seja um, seja outro, dará conta do confronto
necessário, posto crer-se um ser diferenciado.
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Chega, finalmente, o momento da subida e do adentramento nas Veredas Mortas em busca do lugar
adequado no momento exato para a efetivação do pacto com o diabo. Os verbos no pretérito perfeito pontuam
a narrativa: “Eu caminhei para as Veredas Mortas. Varei a quissassa” (p. 435), “Cheguei lá” (p. 435).
Conhecimento prévio do lugar e da hora em que o pacto deve efetivar-se conduz o personagem. Assim, ele
procura por uma encruzilhada, “Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos” (p. 435), por uma árvore,
preferencialmente a capa-rosa, na falta desta, o pau-cardoso. Não encontrando nenhuma destas árvores, bastalhe “uma árvore mal vestida” (p. 436). Riobaldo, através de informações anteriormente recebidas no sertão
em que sempre viveu, já sabia como o pacto se efetivava, pois, lá no início da narrativa, o expôs de forma clara
ao senhor da cidade:
Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de
que vem um pé de vento, sem razão, e arre, se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha
puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remendante, sem completação... O crespo – a gente se retém – então
dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Côxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se
assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois (p. 64).
A obra de Guimarães Rosa abebera-se em diferentes fontes. O pacto com o diabo revela tal fato. As
expectativas de Riobaldo vinculam o trato com o demônio ao universo popular, conforme evidencia a última
citação na qual há a presença de “porca com ninhada de pintos”, “galinha puxando barrigada de leitões”,
“cheiro de breu queimado”, assinatura com sangue... Em contrapartida, a especificidade do protagonista nesta
noite de imersão no transcendente revela vínculo da obra rosiana com o universo erudito de Goethe, de
Thomas Mann. Assim como os Faustos dos referidos autores, Riobaldo mostra-se, nas quatro páginas dedicadas
ao pacto e nas que lhe são subseqüentes, um ser cuja essência reside na ambição desmedida de ultrapassagem
dos limites humanos, transmutando-se, desta forma, em ente que, objetivando realizações além das
possibilidades, recorre, sem medo da morte ou da danação, a ações descabidas.
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A grande divergência entre a maneira como Riobaldo anteriormente descreve o estabelecimento do
pacto com o demo ao senhor da cidade e a maneira como ele efetivamente ocorreu nas Veredas Mortas acaba
resultando na dúvida do narrador se ele, o pacto, verdadeiramente se efetivou ou não. Riobaldo comporta-se,
no momento do encontro, conforme as normas que lhe foram transmitidas pelo universo popular. Assim
sendo, dirige-se à encruzilhada, à meia noite, e chama seis vezes pelo demônio: “- ‘Lúcifer! Lúcifer!...’”, “‘Lúcifer! Satanaz!...’”, “- ‘Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!’” (p. 438). A resposta não vem. O protagonista,
no entanto, sente-se, ao descer das Veredas Mortas e ao encaminhar-se ao encontro de seus companheiros,
modificado: “Eu tinha tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede” (p. 439). Ainda afirma que “de
lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais” (p. 440). Sua inteligência se aguça: “Tudo agora reluzia com
clareza, ocupando minhas idéias” (p. 440). Os amigos dão-se conta da transformação, “ - ‘Uai, tão falante,
Tatarana? Quem te veja...’ – me perguntaram; o Alaripe perguntou” (p. 441). Diadorim também se dá conta da
mudança no comportamento de Riobaldo: “Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos” (p. 443). Afinal,
o que aconteceu nas Veredas Mortas?
Normalmente pacato e obediente, Riobaldo, quando nas Veredas Mortas, parece chamar por um daimõn,
um gênio do mal, a fim de que este lhe modifique a personalidade normalmente passiva e cordial. Esta buscada
modificação de caráter faz-se necessária para que o protagonista possa bem desempenhar a ação proposta. De
homem comum, deve transmutar-se em herói a fim de que possa viver de forma plena o mito do homem que
busca efetivação de tarefa além de sua competência humana, mito este que, enquanto jagunço, ainda que
letrado, não conhece como tal. Riobaldo precisa despertar em si o Fausto dormente, aquele que não conhece
barreiras, que se caracteriza pela inquietude e rebeldia, que quer ir além de suas forças humanas, recorrendo,
para tanto, ao transcendente.
O exercício a que o protagonista se submete é revelado de maneira gradativa. Seu medo deve ser
transmutado em força: “eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em
folha. Eu não queria escutar meus dentes. Desengasguei outras perguntas” (p. 435). A visão do demônio deve
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ser por ele subestimada. As especificidades do demo, ditadas pelo universo popular do qual provém seu
conhecimento do mesmo, devem ser menosprezadas: “Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da
Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue derramável” (p. 435). Neste processo
auto-sugestivo que Riobaldo impõe a si mesmo, acaba resultando aquilo que procurava: um ser dominado pela
hybris, crendo-se igual ou até mesmo superior ao ente transcendente que lhe foi transmitido pela cultura popular:
O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! (...) Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato?
Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem (...) Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali,
querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado (p. 435).
O pacto com o demônio perfaz quatro páginas de Grande sertão: veredas. Inicia-se em “Eu caminhei para
as Veredas Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira” (p. 435). Termina em “A peta, eu
querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho
da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas! (p. 438). A duração cronológica da passagem é uma noite,
iniciando-se pouco antes da meia noite e terminando pouco antes do amanhecer. Não há acontecimentos, mas
dramatização de estado de espírito. Riobaldo, na mais absoluta solidão, gradativamente energiza-se a ponto de
menosprezar a figura de Hermógenes que, no entanto, foi quem o conduziu à deliberada procura da
transcendência. No auge de sua presunção, de sua jactância, de sua hybris, segundo conta posteriormente a seu
interlocutor urbano, afirma: “Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava – feito ele fosse para
mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente
– entre o pé e o pisado” (p. 437). Assiste-se a um homem sozinho objetivando o contato com o sagrado que
não vem enquanto realidade externa, mas se faz enquanto vontade extrema do sujeito, pois, ao final, afirma:
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E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha
me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas
palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adêjo, um gozo de agarro, daí umas
tranqüilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do
poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? (p. 438).
Se no universo romanesco o pacto aconteceu ou não, impossível saber. Isto porque quem conta a
estória é um narrador envelhecido cuja história de vida é concomitantemente a de um jagunço e a de um
letrado. O primeiro pauta a vida pela visão mítica da existência, acreditando, desta forma, na ocorrência do
pacto. O segundo, por sua vez, pauta a vida por valores racionais, achando, portanto, absurda a idéia de
efetivação de pacto com o demo. O que resulta ao leitor diante do impasse é a ambigüidade já registrada por
Walnice Nogueira Galvão em As formas do falso e reiterada por Eduardo Coutinho em “O logos e o mythos no
universo narrativo de Grande sertão: veredas”, onde afirma: “(...) o mythos e o logos, longe de excludentes, convivem
o tempo todo no romance em conflito incessante e insolúvel” (COUTINHO, 2002, p. 117). Assim sendo, o
pacto com o demo em Grande sertão: veredas pode ter ocorrido e pode não ter ocorrido. O paradoxo, tão querido
de Guimarães Rosa, está, pois, mais uma vez instaurado.
BIBLIOGRAFIA
ARAÚJO, Heloísa Vilhena. O roteiro de Deus. São Paulo: Mandarim, 1996.
COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
COUTINHO, Eduardo F. O logos e o mythos no universo narrativo de Grande sertão: veredas. Scripta, São Paulo,
v. 5, n. 10, p. 112-121, 1º sem. 2002.
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FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Aporia e passagem: a sobrevivência do trágico em Guimarães Rosa. Scripta. Belo
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GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.
PAIVA, Jair Miranda de. Kairós, o tempo do pacto. In: DUARTE, Lélia Parreira et al. (Org.). Veredas de Rosa II.
Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2003, p. 327-332.
REINALDO, Gabriela Frota. A mitopoiesis na canção de Siruiz, de Grande sertão: veredas. In: DUARTE, Lélia
Parreira et al. (Org.). Veredas de Rosa I. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2000, p. 257-261.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SCHWARZ, Roberto. Grande sertão e Dr. Faustus. In: ______. A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização
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STERZI, Eduardo. Formas residuais do trágico. Alguns apontamentos. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e VECCHI;
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VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Esboços da vontade na tragédia grega. In: ____________.
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____________. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado. Maria Conceição
Cavalcante e Filomena Yoshie Hirata Garcia. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 17-34.
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NOTAS
1
Todas as citações de Grande sertão: veredas foram retiradas da edição de 2001 e, de agora em diante, terão somente as páginas indicadas (Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001).
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ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA (DOUTORANDA - UERJ)
Resumo:
Terei como objetivo nesta comunicação analisar os processos literários na construção do prefácio “Aletria e
hermenêutica”, de Guimarães Rosa. Este prefácio, na verdade, se caracteriza como atípico, pois é também um
conto, pois é um texto que sintetiza seu estilo a partir das técnicas literárias como o processo de inclusão e
exclusão, ausência e presença, os paradoxos, a utilização de neologismos e construções inusitadas, assim como
aproveitamento de palavras em outras palavras. Através da comparação entre anedota e literatura, percebemos
também outras formas de construção do literário a partir do riso, do ineditismo e da inversão dos valores. Dessa
forma, pretenderei perceber essas características que fazem deste prefácio ser uma construção puramente estética.
OS PROCESSOS LITERÁRIOS NA CONSTRUÇÃO
DO PREFÁCIO “ALETRIA E HERMENÊUTICA”
Tenho como objetivo nesta comunicação perceber os processos literários na construção do prefácio
“Aletria e Hermenêutica”1, de João Guimarães Rosa. Primeiramente, podemos ver neste texto a subversão da
definição de prefácio, pois o autor ultrapassa o aspecto teórico deste ao aplicar a teoria na prática, ou seja, este
prefácio já se caracteriza em si como um conto em que temos já aplicados os artifícios poéticos utilizados pelo
escritor, constitutivos de sua obra como um todo. Além disso, o autor transgride a função meramente referencial
do prefácio através da poeticidade. Neste sentido, o prefácio em questão serve para introduzir o processo de
“miniaturização” presente nesta sua obra em particular, que articula em um pequeno espaço o máximo da
expressão poética. Por isso, encontramos em Tutaméia um tamanho reduzido dos contos, com a excessiva
concentração. Neste prefácio, temos ao mesmo tempo o jogo entre ensaio e pequenas narrativas fragmentadas,
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constituindo vários minicontos num texto só. Todos os minicontos, ou o que o autor chama de “anedotas de
abstração”, tecem comentários sobre o próprio fazer poético, sendo, portanto, essas “formas simples”, só para
utilizar a nomenclatura proposta por André Jolles2 com relação aos textos de tradição popular donde se derivam
as formas mais complexas ou literárias; a origem dos contos mais complexos. André Jolles, por exemplo, vai
dizer que o romance policial é a atualização moderna da adivinha. Neste prefácio, Guimarães Rosa vai justamente
mostrar que o conto é originário de uma expressão popular, a anedota. Portanto, o mais complexo e literário,
esteticamente aceitável para os padrões canônicos, seria devedor de algo tão trivial, simples, proveniente da
oralidade. No próprio título do prefácio, o escritor joga com estes sentidos Une um substantivo concreto,
“aletria”, a um substantivo abstrato, “hermenêutica”, demonstrando, assim, o seu próprio estilo, que é extrair
coisas do plano material e concreto para produzir a abstração da linguagem. Assim, ele caracteriza as “anedotas
de abstração”, que vai relatando ao longo do texto. O título deste livro de contos já aponta para isso, pois
“tutaméia” significa ninharia, quase-nada, preço vil, pouco dinheiro. De onde se conclui, que Guimarães Rosa
tira sua expressão poética do mais simples, partindo, assim, para o mais complexo. Mas não se enganem os
leitores com apenas essa via de condução, pois à fala e expressões populares, o autor acrescenta o seu
conhecimento erudito como, por exemplo, as várias citações em outras línguas neste prefácio, demonstrando
o plurilingüismo do autor. Guimarães Rosa cita trechos em latim, espanhol, francês, demonstrando seu estilo
não como algo estático, unívoco, mas reunindo no seu universo paradoxal, duas expressões que não se opõem
totalmente, mas se complementam no jogo artificioso do autor. Resta sabermos se tal plurilingüismo serve
para mostrar erudição, num extremo de vaidade narcisística, ou se ele é utilizado para parodiar a própria
erudição e apostar no popular. Podemos perceber que tal utilização não se adequa a nenhuma dessas
interpretações, ela estabelece, ao contrário, o intenso trabalho dialógico do escritor que reúne, de forma
paradoxal, dois discursos que pareceriam estranhos à primeira vista, mas que pelo processo de carnavalização
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demonstra as inúmeras vozes que se encontram para mostrar que o discurso literário não segue apenas uma via
de mão única, mas é aberto a inúmeras possibilidades, caracterizando seu estilo como híbrido.
Por outro lado, se contestarmos a definição de André Jolles com relação ao que ele caracteriza como
formas simples, veremos que a anedota, na própria caracterização dada por Guimarães Rosa, não se mostra
como algo tão simples assim, pois ela mesma se apresenta como abstração. Nas palavras de Paulo Rónai, no
seu texto “Os prefácios de Tutaméia”, encontramos não a diferença entre anedota e conto (expressão estética),
mas uma semelhança, que aproxima o texto popular do gênero erudito: “Assim ‘Aletria e Hermenêutica’ é
pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de “estória” no sentido
especificamente guimarães-rosiano, constante de mostruário e teoria que se completam.”3 Dessa forma, para
tal crítico, tanto a anedota quanto o texto literário subvertem os reinos da lógica, levando-nos para o espaço
do incognoscível e do abstrato.
Outra característica importante que une a anedota ao texto propriamente literário é o ineditismo que
está presente em ambas as composições, pois anedota, do grego anékdotos, significa inédito. Mas o escritor
utiliza uma ironia sutil que pode passar despercebida para os leitores menos avisados, pois se Guimarães Rosa
estabelece uma correlação entre o mito e o texto literário, cria uma distância entre este e a história. Logo no
início do prefácio, o autor diz: “A ESTÓRIA não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a
História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.”4 Mas temos o processo de inversões em
que a ironia mostra que ao contrário desta afirmação que pareceria taxativa, esconde sob as camadas do texto
um outro sentido. Se por um lado, o texto literário se aproxima do mito, por seu sentido caótico e pré-lógico,
conduzindo-nos ao absurdo, também se distancia da narrativa mitológica, pois esta, segundo Mircea Eliade5 se
dimensiona por seu valor de repetição, na imagem do eterno retorno. Por outro lado, a história é caracterizada
pelo mitólogo pela sua irreversibilidade, pelo seu caráter de não repetição. Dessa forma, percebemos a ironia
como um dos recursos literários apresentado neste prefácio, que estabelece não apenas o jogo das semelhanças,
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mas também das diferenças, através da imagem do espelho invertido. Para Lenira Marques Covizzi, no livro O
insólito em Guimarães Rosa e Borges6, o estilo de ambos os autores se caracteriza pela estranheza, pelo insólito da
composição, em que os elementos da narrativa aparecem em novas e inesperadas relações. Se para a relação
com o mito tal comparação se conjuga nas acepções de não-acreditável, incrível, por outro lado, pode remeter
ao sentido de originalidade, de ineditismo, afastando-se, assim, da concepção mitológica caracterizada pela
repetição de uma origem. O formalista russo Chklovski vai precisamente caracterizar o texto poético ou
literário pelo seu estranhamento, ou seja, pela desautomatização da linguagem, dando a sensação do objeto
como visão e não como reconhecimento. O crítico ainda mostra que a arte se constrói através da singularização
dos objetos, obscurecendo a forma, aumentando a dificuldade e a duração da percepção, sendo, portanto,
contrária à imagem do passado ao percorrer a direção do devir, como podemos ler no seu texto “A arte como
procedimento”7. Essa sensação de vermos o objeto como se fosse pela primeira vez, no seu ineditismo e
originalidade é o recurso que mais está presente neste prefácio, pois o escritor nos narra cada miniconto ou
“anedota de abstração” como algo novo, que apresenta frescor. Além disso, o autor trabalha de forma original
com o campo semântico das palavras. O estilo de Guimarães Rosa se apresenta tanto teoricamente como na
prática como anedótico, pelo ineditismo da forma, pelos constantes neologismos e construções inusitadas. No
próprio relato de algumas de suas “anedotas de abstração”, temos caracterizado este ineditismo, ao autor se
referir à visão do mundo infantil, aproximando o literário da inocência, do frescor e da leveza da observação,
como podemos ver neste miniconto: “A RISADA. A menina – estavam de visita um protético – repentinamente entrou
na sala, com uma dentadura articulada, que descobrira em alguma prateleira: - ‘Titia! Titia! Encontrei uma risada!’ ”8
Partindo agora para outros elementos que constituem a anedota, Guimarães Rosa vai caracterizá-la
neste prefácio a partir do humor, que por sua vez propõe questionamentos e leva aos aspectos mais recônditos
do ser. Assim, teríamos a transcendência e não a imanência do cômico. A teoria proposta pelo escritor sobre o
riso também se afina à interpretação dada por Chklovski sobre o literário, no seu aspecto de desautomatização,
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pois o riso desestabiliza a mecanicidade e os hábitos repetitivos humanos. Pelo seu aspecto de abstração e
complexidade, conduzindo à esfera transcendental, o riso não apenas se caracteriza por sua comicidade, mas
também por sua seriedade. Vera Novis, no livro Tutaméia: engenho e arte, assim afirma sobre o estilo encontrado
neste prefácio: “ ‘Aletria e Hermenêutica’ propõe a retomada da visão platônica, presente em toda a obra
rosiana, da realidade concreta como sombra de outra realidade maior, a realidade incorpórea, transcendental,
do mundo das idéias.”9 Já Erich Auerbach vai precisamente dizer que o gênero cômico, contrariamente ao
trágico, é ligado ao trivial, ao prosaico, não utilizando a seriedade. Ao contrário disto, Guimarães Rosa mostra
a partir deste prefácio que o riso pode levar ao espaço além da esfera da logicidade, ao incognoscível. O
cômico se caracteriza pelo seu não senso, não nos conduzindo a uma leitura literal, mas no seu supra-senso.
Além disso, ele nos oferece o sentido para vida na forma da inversão, sendo esta, outro recurso utilizado pelo
escritor neste prefácio. Neste ponto, a estória é contra a história, pois a anedota nos revela uma visão do
universo pelo avesso da história, sendo que esta se caracteriza pela sua logicidade e linearidade. E é neste
sentido, que a expressão literária de Guimarães Rosa se caracteriza, pela quebra da logicidade e da linearidade,
como ele demonstra nas “anedotas de abstração” apresentadas neste prefácio. Dessa forma, podemos concordar
com as palavras de Mary L. Daniel que diz que os quatro prefácios de Tutaméia revelam de forma sucinta
aspectos do ideário do escritor Guimarães Rosa, “dando-nos vislumbres íntimos do seu processo criador.”10
Outro ponto interessante que encontramos neste prefácio diz respeito ao estilo rosiano de forma geral,
ou seja, para o escritor, a arte é também aquilo que não se realizou, afirmando a arte através de seu caráter de
inesgotabilidade. Blanchot no seu livro O espaço literário11 vai dizer exatamente isso sobre a arte, caracterizandoa através de seu pressentimento. Guimarães Rosa no final de “Aletria e Hermenêutica” vai fechar bem esta
teoria ao dizer que o “livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”12. Assim, a estória se apresenta
como possibilidade do que ainda não foi escrito, o que mostra que a obra literária se estabelece como abertura.
Portanto, o literário também se dimensiona através do esvaziamento, da falta e da ausência, como ele exemplifica
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nas “anedotas de abstração”. Mas, por outro lado, o processo literário lida também com a inclusão, demonstrando,
assim, que o próprio mecanismo de seleção vocabular utilizado pelo escritor percorre o eixo paradigmático,
em que o paradoxo da inclusão e da exclusão se cumpre. Outro paradoxo que encontramos neste prefácio é
entre a afirmação e a negação, entre o tudo e o nada. O nada seria produto da afirmação e negação do objeto.
Por outro lado, não se consegue definir inteiramente o nada, pois o sentido não se esvazia.
Caminhando agora para as questões da mimese e da realidade, há uma questão fundamental presente
em “Aletria e Hermenêutica”, que aponta para o próprio sentido da criação literária. A linguagem imaginária
trabalha com o material inexistente ou recria a partir de dados existentes? Se pensarmos no literário apenas
como imagem da sombra, da irrealidade, teríamos uma visão unilateral. Mas Guimarães Rosa, neste prefácio,
mostra que a linguagem não é auto-existente, precisa de uma externalidade, demonstrando a teoria da
complementariedade das coisas e das palavras. O escritor mesmo cita o poeta Rilke que traz do imaginário ao
real, um ser fabuloso, o licorne. Mas, por outro lado, Guimarães Rosa não fala inteiramente do objeto nos seus
minicontos sem ter a ausência do objeto. O literário é também aquilo que não está presente. Ele é feito de
ausência. Por isso, ele define seu estilo a partir daquilo que ele mesmo chama de “definição por extração”,
“imagens de eliminação parcial”, “seqüências de operações subtrativas” e ainda de “simplificação”, recursos
poéticos que ele retira da anedota, da adivinha, dos koans zen, como ele vai citar no prefácio. Dessa forma, ele
cria a partir dos vazios que o texto possui, por aquilo que é subterrâneo e superposto por camadas, pois o
caráter mimético do literário é ocultar-se revelando.
Por fim, o processo literário da intertextualidade é largamente utilizado neste prefácio, com o apelo do
escritor à tradição, em que ele cita Platão, Bergson, Rilke, dentre outros. Portanto, como vimos, o prefácio
“Aletria e Hermenêutica” é um misto entre teoria e prática, caracterizando o estilo de Guimarães Rosa pela
condensação, simplificação, mas ao mesmo tempo pelo hibridismo e pluralidade de elementos.
BIBLIOGRAFIA
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
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CHKLOVSKI, V. “A arte como procedimento”. In TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org). Teoria da literatura:
formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978.
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
DANIEL, Mary L. João Guimarães Rosa: travessia literária. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991.
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
NOVIS, Vera. Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Perspectiva, 1989.
RÓNAI, Paulo. “Os prefácios de Tutaméia”. In ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
NOTAS
1
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
2
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
3
RÓNAI, Paulo. “Os prefácios de Tutaméia”. In ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p. 217.
4
ROSA, op. cit., p. 7.
5
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991.
6
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
7
CHKLOVSKI, V. “A arte como procedimento”. In TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto
Alegre: Editora Globo, 1978.
8
ROSA, op. cit., p. 13.
9
NOVIS, Vera. Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 25.
10
DANIEL, Mary L. João Guimarães Rosa: travessia literária. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. 180.
11
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
12
ROSA, op. cit., p. 17.
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ALEXEI BUENO
Resumo:
Sempre afirmei que a língua portuguesa é a única língua moderna a criar três epopéias: Os Lusíadas, Os sertões
e Grande sertão: veredas. Uma em verso, no século XVI, e duas em prosa, no século XX. É certo que só Camões a
escreveu dentro dos cânones estritos do gênero, mas o titanismo, o caráter bélico e o pathos épico que dominam a
narrativa histórico-militar de Euclides da Cunha e o romance de Guimarães Rosa fazem com que ambos os livros
existam como epopéias.
GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Sempre afirmei que a língua portuguesa é a única língua moderna a criar três epopéias: Os Lusíadas, Os
sertões e Grande sertão: veredas. Uma em verso, no século XVI, e duas em prosa, no século XX. É certo que só
Camões a escreveu dentro dos cânones estritos do gênero, mas o titanismo, o caráter bélico e o pathos épico
que dominam a narrativa histórico-militar de Euclides da Cunha e o romance de Guimarães Rosa fazem com
que ambos os livros, para mim, emocionalmente, existam como epopéias, o que me importa muito mais do
que a discussão sobre gêneros literários.
O que é inegável é que são eles os nossos dois grandes livros nacionais, respectivamente a nossa Ilíada
e a nossa Odisséia, assim como Os Lusíadas são a Eneida de Portugal. Pois se esse livro cruento, Os sertões,
narrando a queda da “Tróia de taipa dos jagunços”, faz bem as vezes da primeira, Grande sertão: veredas, essa
demanda sublime pelo amor, pelo conhecimento e pela vingança é sem dúvida a possibilidade brasileira da
segunda. Como Ulisses no seu atribulado retorno, o jagunço Riobaldo navega pelos infinitos e ínvios caminhos
do sertão, plenos de tentações físicas e sobrenaturais, na busca do restabelecimento da ordem, do apaziguamento
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final, só conseguidos após a destruição da potência maligna representada por Hermógenes, tal como o grego
só os conseguiu após o massacre dos pretendentes e seus relativos.
Quanto ao sempre discutido e comumente mal interpretado estilo de Guimarães Rosa, foi ele o genial
criador de uma espécie de expressionismo lingüístico, onde violentas deformações da base já muito expressiva
que é a expressão oral do sertanejo brasileiro conseguiram atingir sínteses artísticas e emocionais espantosas.
A primeira e mais direta influência na criação dessa linguagem rosiana é, na minha opinião, a do grande
romancista português Aquilino Ribeiro. A confrontação de alguns parágrafos de uma novela genial como “O
Malhadinhas”, escrita na década de 1920, com outros parágrafos de Grande sertão: veredas me parece
implacavelmente comprobatória, embora no Brasil quase só se fale de Joyce em sua genealogia, autor
radicalmente afastado do transbordamento emocional de Guimarães, ainda que usuário de certos processos
que sem dúvida serviram ao amálgama do fabuloso mestre de Cordisburgo.
Em suma, Grande sertão: veredas é um dos raros livros da sua extensão, em toda a literatura universal,
onde a tensão estética e emocional do todo está em cada parte, em cada parágrafo, em cada frase, fenômeno
típico das obras-primas. Esse sublime fluxo oral de uma memória em direção do ápice traumático de sua vida
é o apogeu da ficção na língua portuguesa.
Alexei Bueno
25-1-2006
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AMADEU DA SILVA GUEDES (MESTRE - UFF)
Resumo:
Este trabalho visa a um estudo da construção do conto Fita verde no cabelo: nova velha estória do autor
Guimarães Rosa. Será feita uma análise do conto, que é uma releitura da narrativa Chapeuzinho vermelho, no
intuito de desdobrar a arquitetura desta pequena narrativa rosiana exibindo questões existenciais re-criadas pelo
autor. Dentre as várias possibilidades de leitura que o conto em questão oferece, a análise deter-se-á, principalmente,
no dialético ciclo da vida re-criado no conto por Guimarães Rosa. Como o autor apresentou e trabalhou essa
questão humana em sua criação literária? Quais reflexões são possivelmente propostas para o leitor nessa pequena
narrativa? O que a criação das personagens e dos elementos presentes no conto tem a nos dizer ou a sugerir à nossa
leitura? Quais sentidos são encontrados no discurso do narrador em Fita verde no cabelo? O que nos oferece o
trabalho com a criação de palavras no conto? Pequenos questionamentos que se multiplicam ao longo da(s)
leitura(s) desta releitura de Rosa. O trabalho a ser apresentado prende-se a análise do discurso de corte bakhtiniano,
procura interpretar o diálogo que o autor da narrativa estabeleceu com outros discursos relacionados à temática
existencial, tanto discursos populares quanto discursos filosóficos não não-populares. Tentar-se-á esboçar uma
interpretação a partir do trabalho artístico-literário do autor.
UM DOS FIOS DA VIDA EM FITA VERDE NO CABELO
Este trabalho é uma análise da narrativa de Guimarães Rosa chamada Fita Verde no cabelo. Nele, pretendese fazer um desdobramento da estrutura desta criação de Rosa exibindo possíveis sentidos nos vários elementos
que a compõem. Através da análise das personagens e suas ações e das situações que as envolvem no texto,
buscar-se-á a construção de um pensamento que esboce um sentido para o todo da “estória.” Para a construção
desse sentido, deve-se ter em mente que o texto analisado é uma releitura da conhecidíssima história infantil
chamada Chapeuzinho Vermelho. O que isso nos diz em um primeiro momento?
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As histórias infantis, assim como muitos outros textos, são passíveis de análises a partir de vários ângulos
do saber humano: psicanalítico, político-social, histórico, filosófico, artístico-literário e outros. Não é objetivo
deste trabalho um aprofundamento de todos esses enfoques em relação aos contos de fadas, nem seria possível
tal empresa em um trabalho de pequeno porte como este, no entanto uma breve consideração sobre algumas
dessas abordagens torna-se interessante.
Assim como em várias narrativas infantis, podemos vislumbrar em Chapeuzinho Vermelho laivos de
historicidade, marcas de um tempo passado entranhadas nos vários elementos da história. Robert Darnton
(1986) chama a atenção para a relação entre os contos de fadas e suas marcas históricas que podem ajudar na
re-construção do universo mental dos camponeses, os não-iluminados do século XVIII. Os contos de fadas
em nossa atualidade já passaram por um processo de pasteurização, ou seja, os arranhões de brutalidade do
tempo passado foram maquiados pela civilização, no entanto ainda é possível perceber nessa maquiagem os
traços de um outro tempo. Essas histórias existiram em uma época e em um espaço rudes, carregados de
violência, sofrimento, fome. Não que o tempo atual não possua todas essas situações, mas é inegável a diferença
existente entre os problemas do presente e os do passado, sem falar dos leitores “civilizados” da atualidade e
os ouvintes “rudes” do tempo das lareiras: são universos diferentes, tanto de produção quanto de consumo.
Em Chapeuzinho Vermelho, há elementos que são indicativos de um tempo. O tão famoso lobo mau, por
exemplo, é uma marca do medo dos camponeses do passado diante da voracidade dos lobos reais.
Em uma outra perspectiva, encontramos estudos dos contos de fadas que atentam para a importância
deles na formação infantil, do suporte que os mesmo oferecem para que a criança se construa e crie para ela
um entendimento do mundo. Bettelhein (1980) nos fala sobre isso em sua conhecida obra A psicanálise dos
contos de fadas.
O texto de Rosa em questão, segundo a análise aqui construída, segue para os enfoques existencial e
sócio-histórico. A partir da releitura de uma pequena história infantil, o autor re-cria o ciclo da vida e o estarAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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no-mundo problematizando-os artisticamente. A estrutura do conto, as suas personagens, os discursos do
narrador e outros elementos, que compõem a narrativa, convidam o leitor a participar dessa discussão sobre a
caminhada do ser humano pela existência e sua relação com as estruturas da coletividade.
Assim como na conhecida história original, a releitura de Rosa é marcada por um trajeto que vai da casa
dos pais à casa da vovó. O que seria esse trajeto? Quais sentidos podem ser construídos a partir dessa caminhada?
Da mesma maneira que a grande travessia presente em Grande sertões: veredas, o caminho percorrido pela menina
com a fita verde no cabelo é dotado de profundo sentido. Tendo em vista o estilo criativo do autor e seus
fortes laços com a universalidade das questões humanas, já se imagina a forte ligação entre o caminho que Fita
Verde percorre e a vida. A filosófica questão da existência recortada na pequena história inicia-se com o
caminhar da heroína por uma estrada cujo início e fim se opõem: infância e velhice. À medida que a menina
caminha, vão ocorrendo mudanças, mudanças essas que são indicativos do processo de envelhecimento e de
adequação em uma ordem social. Porém, essa situação não pára por aí. Ela não fica somente nessa “adequação”
a uma ordem social, há também uma organização da sociedade amedrontada e estremecida. No pequeno texto
de Rosa, há um cruzamento entre angústias individuais e coletivas. Comecemos a desdobrar essas questões.
A história apresenta-se com o foco narrativo em terceira pessoa, como é comum nos contos infantis.
Esse ângulo permite uma ampliação da visão do leitor sobre o desenrolar da narrativa. Além disso, a estruturação
da aventura segue os rumos costumeiros: apresentação do espaço, das personagens e, logo depois, o início da
movimentação. A aldeia é mostrada num espaço totalizante e os habitantes são mostrados realizando ações
contínuas e de acordo com seus respectivos estágios vitais. As formas verbais no pretérito imperfeito do
indicativo marcam a continuidade e a rotina das ações: “...com velhos e velhas que velhavam, homens e
mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam”. Na apresentação do espaço com seus
habitantes, estão presentes a universalidade do ciclo humano e uma organização social solidificada. Os estágios
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de velhice, maturidade e infância são, respectivamente, marcados pelas ações velhavam, esperavam, nasciam
e cresciam. A aldeia se mostra unida em práticas e pensamentos comuns.
Observando as formas verbais que determinam as ações contínuas dos habitantes da aldeia, é notório o
poder das mesmas de suscitar questionamentos. É pertinente uma análise do sentido dessas formas. As terceiras
formas verbais – “nasciam” e “cresciam” – demonstram que as crianças fazem parte de um único segmento
etário que cumpre seu papel biológico e não um papel determinado pelas forças sociais, embora esse segmento
vai ganhando ao longo da narrativa um pouco de siso, uma marca da imposição social. Os outros estratos da
idade humana - os velhos e os adultos – seguem o que a estrutura social determina, esses esperam e aqueles
velham. Se os adultos esperam, está patente que nada fazem de inovador na aldeia. A forma verbal “velhavam”,
um neologismo, algo bem característico de Guimarães Rosa, além de revelar um traço do estilo do autor,
permite vislumbrar um vazio: o que os velhos faziam na aldeia? O que os velhos fazem na sociedade? Qual a
utilidade dos mesmos no sistema social? Foi necessário, na dimensão da criação literária, inventar uma ação
para os idosos. No decorrer da narrativa, vemos elementos do passado, como lobos e aldeia, mesclando-se
com arranhões característicos do espaço urbano do trabalho e da vida burguesa de um tempo moderno.
No espaço comum, universal, marcado pelo juízo e pela obediência dos seres humanos às leis da vida, às
leis do destino e às leis do ciclo evolutivo biológico ou social do homem, uma menina desrespeita ou desconhece
as determinações que lhe são impostas. A personagem é imatura, ingênua e com pouco siso. Seu espírito
infantil não é condizente com a atmosfera estática da aldeia. Vejamos o seguinte trecho que esboça o pensamento
de Fita Verde: “...ela a linda, tudo era uma vez” (p.5). A fita verde no cabelo da personagem é o que simboliza
sua falta de juízo, ou melhor dizendo, seu pensamento inadequado à funcionalidade social. A cor é o indicador
da maturidade da menina, em resumo, a fita verde é proprietária de um forte simbolismo no decorrer da
narrativa, ela está presente desde o início até quase no final do novelo que a menina desenrola ao caminhar de
uma aldeia à outra. É esse trajeto, já mencionado anteriormente, que vai imprimindo cores novas na vida e no
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pensamento da heroína. A personagem opta pelo caminho mais longo e não pelo “encurtoso”, marcado pelo
pragmatismo. A opção pelo caminho mais longo é o indicativo da natural negação da vida racional e apressada
que perpassa a estrutura do lugarejo. Aí vemos duas situações antagônicas: a tradicional aldeia e a pressa dos
tempos modernos. A menina se delicia com esse caminho, seu espírito infantil permite que ela veja a natureza
com fascínio, que capte as cores e se deslumbre com coisas que o espírito marcadamente racional do adulto
não o permite apreciar. Bem à Alberto Caeiro, a menina vê e sente a natureza, o que o adulto não faz. Vejamos
um trecho que corrobora tal afirmação: “Divertia-se em ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar
essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores,
princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa”(p. 10). A estrutura frásica em que o trecho é
organizado já aponta para um desejo de explosão da lógica, de fuga da racionalidade e de apego ao
deslumbramento e ao emocional. Na verdade, dois olhares se encontram na história de Guimarães Rosa: o
olhar da aldeia para a menina e o olhar da menina para aldeia. Nessa troca de olhares, tanto quem olha como
quem é olhado acaba passando por um processo de modificação. A narrativa aborda as modificações da
menina que vai pela estrada olhando e se deslumbrando com o que vê. As ações dos olhos da heroína vão
caminhando para o prazer e para a morte.
Fita Verde e seu comportamento infantil, de certa maneira, é a quebra de um contexto sócio-histórico, a
não-manutenção de uma linearidade histórica: vida adulta conservadora e vida infantil a se construir. Nos
vários momentos da pequena narrativa de Rosa, é possível encontrar elementos que simbolizam um passado,
uma tradição em oposição a elementos que caracterizam a vida moderna. A aldeia e a ordem em que se
apresenta nos remete, em várias situações, a um tempo passado, um momento marcado por tradições, enquanto
o caminho que Fita Verde percorre exibe situações da vida moderna como os trabalhadores (lenhadores) que
exterminaram o lobo. À medida que a menina vai ganhando a estrada, ela vai perdendo a poesia de seu
pensamento. O real já se anuncia em seu caminho quando ela passa pelos lenhadores e não vê o lobo: a fábula
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já começa a deixar de existir dando lugar à realidade que é marcada pelo trabalho (os lenhadores). A ausência
do lobo já desconstrói aquele mundo de sonhos e atualiza a narrativa: em lugar dos lobos, estão os trabalhadores,
a razão e a civilização. O tempo que a heroína despreocupadamente gasta na estrada, algo próprio das crianças
na vida, é o tempo que a avó espera ansiosamente e com medo que ele se acabe antes mesmo de ela ver a
netinha.
Nesse conjunto de oposições marcadas por elementos de diferentes temporalidades, encontramos, entre
outras coisas, uma ordem que vai se instaurando e outra que se dissolve. O contraste entre o conservadorismo
da aldeia e a falta de siso da heroína esboça um diálogo entre diferentes gerações e a luta dessas gerações pela
sobrevivência. Encarando a pequena releitura de Guimarães Rosa por esse lado, encontramos um assunto que
pode ser desdobrado a partir de um pequeno trecho sobre o pensamento de Walter Benjamin:
Primeiro, a experiência se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma
tradição compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho; continuidade e
temporalidade das sociedades “artesanais” diz Benjamin em “O narrador”, em oposição ao tempo deslocado e
entrecortado do trabalho no capitalismo moderno. Essa tradição não configura somente uma ordem religiosa ou
poética, mas desemboca também, necessariamente, numa prática comum; as histórias do narrador tradicional não
são simplesmente ouvidas ou lidas, porém escutadas e seguidas; elas acarretam uma verdadeira formação (Bildung),
válida para todos os indivíduos de uma mesma coletividade. Essa orientação prática [...] se perdeu e explica nossa
habitual desorientação (Rat-losigkeit), isto é, nossa incapacidade em dar e receber um verdadeiro conselho (Rat).
(GAGNEBIN, 2004, p. 57-58)
Chapeuzinho Vermelho é uma história oriunda da tradição oral. Ela remete a um tempo em que as
narrativas próximas à lareira ajudavam a fugir da faina cotidiana e, entre outras coisas, a preservar uma estrutura
social. A releitura de um texto tradicional feita por Guimarães Rosa já traz, em sua própria conformação, um
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diálogo entre tradição e modernidade. Sendo uma releitura, ela já apresenta elementos novos, modificações,
novos pensamentos enlaçados aos elementos da velha narrativa, que é emblema da tradição. O desdobramento
desse diálogo entre diferentes temporalidades aponta para considerações interessantes. Encontra-se na “nova
velha estória” o pensamento de Benjamin sobre a narração e seu caráter de perpetuação de uma estrutura. O
narrador, quando expõe a personagem central como uma menina sem juízo e discordante do fazer costumeiro
da aldeia, revela o perigo que ela oferece para organização social que vai se dissolvendo. O tempo de Fita
Verde não é o tempo de sua aldeia, os referenciais da menina são diferentes. A diferença de referenciais enfraquece
um diálogo entre o passado e o presente mediado pelas narrações. Como contar uma história, dar um conselho
para alguém cujos horizontes se afastam do passado?
Embora haja essa diferença de referenciais entre a aldeia (o passado) e o pensamento infantil (o presente)
da heroína do conto, a situação em que ela se encontra é mais complexa. Há angústias na menina que traz no
cabelo uma fita verde. Ela é considerada sem juízo uma vez que recusa o conservadorismo da aldeia, mas se
angústia quando se depara com situações que fogem do seu universo de compreensão. Choca-se porque não
encontra o lobo e, embora tenha se divertido ao longo do caminho, no final do percurso se espanta e se
entristece, pois se encontra suada, com fome e sem a sua fita verde. A menina passa por um processo angustiante
de desconstrução, ela recusa uma estrutura conservadora, que é a aldeia, mas se depara com uma estrada em
modificação, estrada marcada pelo trabalho, pela falta de fantasia e pela pressa ostensiva quando chega à casa
de sua avó moribunda. É nessa avó agonizante que encontramos não só o fim de uma pessoa senil, mas o fim
de um passado, a perda de um referencial que faz estremecer a jovem personagem, em outras palavras, essa
parte desse processo de descontrução é um esvair-se da história individual de Fita Verde.
Vale observar que não se trata, aqui, de uma análise maniqueísta da aldeia e do espaço da estrada, ou
seja, a aldeia vista como um paraíso mítico, como um passado tranqüilo e seguro em oposição à estrada com
elementos de modernidade considerados massacrantes e fragmentadores. A desorientação da personagem se
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marca pela recusa de um espaço que deseja engessá-la numa estrutura social “ajuizada” e pela decepção com
um caminho que não satisfaz os seus sonhos. Ao mesmo tempo que Fita Verde recusa a aldeia do siso e busca
algo novo, ela se revela dividida, temerosa pela perda de seus referenciais. A menina teme se desconstruir e se
decepciona com o final do percurso. Nessa situação, individualidade e universalidade se abraçam.
Ao final do percurso, Fita Verde se depara com o novo tempo que chega não só para o seu mundo, mas
para sua individualidade. Conforme vai encontrando elementos modernos no decorrer da narrativa, ela vai se
envolvendo com o tempo corrosivo que conduz à morte. Ao chegar à casa da vovó, ao adentrar em seu
mundo, simbolicamente sua casa, a netinha se dá conta de um outro tempo que até então ela não conhecia: a
velhice. A netinha está cansada, com fome e triste. Sua tristeza vem de um detalhe importante: a perda da fita
verde. O juízo começa a tomar conta do seu espírito infantil que ficou na estrada. A fita verde é sua infância.
Ela se choca ao ver a avó, as sensações visuais e táteis não são as mesmas da estrada: o roxo dos lábios da avó,
a palidez do rosto, a frieza do corpo. Enfim, há uma oposição entre a estrada e a casa da avó no texto: esta é
a velhice, o fim do trajeto e aquela é a infância e o início do caminho.
O texto é organizado dialeticamente, já é possível perceber a ponta da oposição na entrada da narrativa:
Nova velha estória. Algo novo, porém cíclico e velho. Em seu todo há dois pólos: a infância e a velhice e em
meio a esses dois fica a relação entre diferentes tempos se manifestando na personagem central. Das duas
oposições apresentadas à menina da fita, surge o juízo, o medo, enfim, um novo ângulo de ver e sentir o
mundo. Podemos dizer que a menina toma conhecimento da vida, do ciclo da mesma, do tempo, espanta-se ao
ver o lado não-mágico e racional das coisas, a realidade em contraste com seu pensamento infantil e mágico.
Então, tem medo, o que até há algum tempo não tinha.
É evidente que a narrativa não se limita somente a esse pensamento aqui construído, a mesma é muito
mais rica e oferece muitas outras interpretações. Enfim o diálogo que Guimarães Rosa estabeleceu neste
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pequeno conto está aberto e, com certeza, há muito mais sentidos a serem construídos para essa pequena e
grandiosa criação literária.
BIBLIOGRAFIA
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13.ed. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1980 (Coleção Literatura e Teoria Literária, v. 24)
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas,
v. 1)
BUCK MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens. Tradução de Ana Luiza
Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó / SC: Editora Universitária Argos, 2002.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4.ed. Tradução de
Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986 (Biblioteca de História, v. 13).
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin.2.ed. São Paulo: editora Perspectiva, 2004.
CANDIDO, Antonio. Jagunços e mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: _____. Vários escritos. 3.ed. rev. e amp.
São Paulo: Duas Cidades, 1995 (p. 147-179).
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TRABALHOS
ELIAS, Maria Cristina. Os não-lugares de Rosa. Cult, São Paulo: Lemos Editorial & Gráficos Ltda. N.: 43
Fevereiro / 2001 (p. 48-49).
NIETZSCHE, Friedrich Wilheim. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantangem da história
para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PACHECO, Ana Paula. História, psique e metalinguagem em Guimarães Rosa. Cult,
São Paulo: Lemos Editorial & Gráficos Ltda. N.: 43 Fevereiro / 2001 (p. 42-47).
PASSOS, Cleusa Rios P. Desenredos em Guimarães Rosa. Cult, São Paulo: Lemos Editorial & Gráficos Ltda.
N.: 43 Fevereiro / 2001 (p. 56-59).
ROSA, Guimarães. Fita verde no cabelo: nova velha estória. Ilustrações Roger Mello. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992.
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ANA MARIA ALBERNAZ (DOUTORANDA – UFRJ)
Resumo:
Memória que forja, que reconstitui. Memória hermenêutica, interpretativa que se constitui a partir de dois
tempos, um cronológico, contável, o outro, que adensa e pulsa: “tempo no tempo.” (p.353). A memória como a
instância de domínio do não-saber. Não se determina o memorável, que se instala indiferente ao desígnio. Por que
a gente lembra uma coisa e não outra? Esquecer também é um modo de lembrar, isto é, o memorável não se
compõe só da lembrança, mas também do esquecimento. A memória é um lusco-fusco, esconder e se abrir. É
surpresa, é espanto, é uma força viva. Caminho do desoculto a partir da experiência do que permanece em
ocultação. Resguardo do “entre” o que se oculta e o que aparece. Alguma coisa que no passado apenas se insinuava,
na memorização retorna inteira, mais completa, ou ao contrário, alguma coisa que no passado tinha uma verdade
inteirada, na memória retorna na incompletude que lhe é própria. “...me vinha idéia de tudo
sóseropassadonofuturo. (...) me lembrei do não-saber.” (p.268). Há uma cumplicidade entre o narrar e o memorizar,
ou seja, entre a poesia e a memória. Parte do biográfico, do histórico e pela narrativa poética os abandona, isto é,
engrandece o sentido. O tempo ganha a dimensão que lhe cabe, de constituinte das experiências, da própria
existência. Rememorar é então se apropriar do tempo. “...são os tempos, travessia da gente...”. (p.375), na latência
do tempo da existência que se desloca. Mas também a memória se estriba na lembrança, não pelo mero recordar,
mas para fazer da lembrança mediação do narrar. ...esquipático no simples (p.420) : “O que lembro, tenho.”(p.176).
Estas duas dimensões se originam da memória – impregnação do tempo criador na narração de Riobaldo.
POESIA – GRANDE SERTÃO: VEREDAS, RIOBALDO:DIADORIM
Nesta obra se revela tanto o desocultar que é a travessia de Riobaldo como a ocultação propiciadora
provinda de Diadorim. Porque desocultar é sempre sair da obscuridade, Riobaldo e Diadorim são conjuntos.
Advém da obra a possibilidade mesma de enveredar-se em um caminho próprio. Na eminência de sua forma se
apresenta o mais perfeito convite que uma poesia pode realizar. Poeticamente se oferece a obra Grande
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Sertão:Veredas, desocultamento como revelação. O que aparece na revelação? O devir de um homem e um
mundo, Riobaldo e sertão, em possibilidade de transcendência, pela força propulsora de Diadorim, que se
encobre à medida que Riobaldo aparece, em relação de recíproca dependência. Grande Sertão é desvelamento
como movimento de aparecimento de Riobaldo e submersão de Diadorim. “... a palavra essencial longe de
abolir o silêncio, ao contrário, protege sua retirada na doação do poema” ()1. A obra é criação comunitária de
Diadorim e Riobaldo, seu movimento único de doação e retração, recepção e presentação.
A experiência de vir a ser de Riobaldo (homem-mundo) que se dá na linguagem, pela narração, é
movida como memória e como pensamento (indagação e errância). Ao mesmo tempo, se revela na retração de
Diadorim, que em modo de doação e sacrifício, entrega a vida a Riobaldo e à própria obra. Entrega que não
implica em aniquilamento, pois sua morte é a contrapartida da vida – sua realização plena. Exposição, exercício,
explicitação poética desde vida de Riobaldo e morte de Diadorim, tomados como um só acontecimento.
Dimensões em contraste e condomínio. Obra que abre mundo: campo propício de experiência de Riobaldo e
Diadorim, que abre o experenciar de cada um, em incorporação mútua. Eroticamente ligados, dois entes
vivem como um só. Riobaldo abriga a neblina que é Diadorim, Diadorim se realiza na vida ensolarada de
Riobaldo, esse duplo gesto implica uma vida, uma morte.
Mas porque Riobaldo pode ser o que é? O que lhe agracia o sertão e o destina jagunço, não como
todos, mas como um dentre todos? Diadorim. Diadorim na escuridão, destituído de tudo, da mais funda
obscuridade provê Riobaldo, homem-mundo. Aí está a doação e o sacrifício que lhe confere existência. Também
Diadorim deve a Riobaldo sua vida que provém da morte. Seu total ocultamento repercute uma claridade. A
partir do desvelamento, que é a realização narrativa, sua trajetória pode ser completamente re-apreendida no
esclarecimento que Diadorim é Deodorina – doadora potenciada, doação que é dom de Deus.
Riobaldo é homem como todos, como qualquer um. Jagunço é modo de ser homem, como comerciante,
vaqueiro, fazendeiro, professor. Riobaldo medita a partir do homem que é. Observa os outros homens. Ser
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homem é no mundo. O mundo é o sertão. Tanto o homem é ilimitado em suas possibilidades, quanto o mundo
oferece infinitas possibilidades. No entanto, ao homem não é imediato o projetar-se nessa infinitude. Por
medo, receio de perder-se, segue uma trajetória já dada, já trilhada muitas e muitas vezes por muitos outros
homens. Com isso se impede de ver. Ver o que? Ver o quanto o mundo é grande, quer dizer, grandioso, belo,
diferenciado. Ver o tanto que o homem pode. O diabo é modo de amarrar o destino que é aberto. Diabolicamente,
o homem se aferra a uma perspectiva e fica cego para todas as outras. Mas o aberto sempre se manifesta. Deus
é o modo de encontrar a destinação que é acolhida no aberto. Riobaldo, na graça do aberto, encontra Diadorim,
seu destino. O encontro é algo que se dá gratuitamente, e é próprio do homem, no entanto, há uma exigência
que é a disponibilidade. Sem disponibilidade não há encontro. Disposição para o aberto importa em disposição
de espera, de despojamento, e dor. É um processo muito simples e natural mas muitas vezes não acontece por
falta de disponibilidade, pela não aprendizagem da própria disposição de disponibilidade. Por medo da dor,
por apego à segurança e ao conforto de um caminho já certo se evita o aberto. Riobaldo não evitou, esteve
sempre na inteireza ou na liminaridade do aberto.
A experiência primeira dessa investida no aberto é o acontecimento de seu encontro com Diadorim.
Diadorim é a infinita possibilidade que viabiliza a possibilidade do que é pra ser, ou seja, do que virá. O que
virá é ao mesmo tempo tudo e um. Diadorim é o ilimitado dentro do limitado. Ser esse paradoxo, encarnar essa
abertura e esse destino, faz de Diadorim um ser distinguível e único. Diadorim é pura doação. Sendo possibilidade
de possibilidade Diadorim sacrifica sua possibilidade mesma. Diadorim é revelação do destino de Riobaldo,
doador de sua vida, e nisso, nesse gesto, nesta ação, se retrai, se obscurece.
No Grande Sertão vemos dois movimentos simultâneos, duas formas são geradas. Uma é a de figuração
da vida de Riobaldo, sua constituição como homem que é; outra é a de desvanecimento de Diadorim, o
desenho de sua submersão. Estas duas forças, uma de aparição, outra de ocultamento são dependentes
mutuamente. Tanto mais Riobaldo aparece, mais próximo é o desaparecimento de Diadorim. Essa mútua
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referência já está inscrita desde o primeiro encontro. Daquele primeiro encontro vemos claramente como
Riobaldo começa a nascer, mas não vemos que também Diadorim principia a morrer. Tudo concernente a
Diadorim é envolto no escurecimento. Rastrear os sinais de Diadorim, de sua passagem, é um dos objetivos do
trabalho. Diadorim deixa poucas pistas de seu modo de ser próprio. Há que existir sempre Diadorim, para que
exista Riobaldo? A princípio, parece que sim. A constituição de Riobaldo é mais fácil de acompanhar, é
também um aspecto desse trabalho. Assim, o que se percebe é que Riobaldo reluta, pelo excessivo de sua
visão, a aderir a uma determinada formatação de homem. Ao mesmo tempo em que a recebe tão bem
condicionada, tão íntegra na sua perspectiva, dela desconfia e não pode assumi-la por inteiro. Por quê? Talvez
porque Riobaldo já se iniciara no aberto – daí viria o suposto excesso de visão. A renúncia à formatação e a
adesão à livre forma da vida enseja a narração, ou seja, a obra, Grande Sertão: Veredas.
Consideramos o modo de ser de homem e mundo como aberto de possibilidade, notando a amarração
diabólica que dirige a ambos na relação determinada de uma trajetória. Observamos a abertura que oferece o
todo de todos os caminhos, e nela a graça de um próprio que se distingue: isto é, destinação. Verificamos a
experiência da narração como o testemunho existencial da travessia consignado como língua e efabulação, isto
é, linguagem.
Ao mesmo tempo, consideramos a natureza dessa oferta e dessa graça. Percebemos seu modo de ser,
poderoso, encantador, e obscuro.
Enfim: a partir da obra, acompanhamos o encontro amoroso propiciador dos modos de existência
Riobaldo e Diadorim, enfatizar a decisão de acatar a travessia de Riobaldo – enveredamento –, achar-se
homem (no mundo), dentre homens (no mundo), e perceber Diadorim doador, seus acenos e sua despedida.
Duas forças em enfrentamento, duas travessias em convergência e dissipação, em entrelaçamento gerador de
uma terceira.
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Diadorim comparece na existência de Riobaldo enquanto jagunço, na atualização de “homência” em
“hominização” 2, restaurador. E comparece na narração já incorporado, já realizado como poesia. De Diadorim
procede a travessia de Riobaldo. E por quê? Por amor, pela força erótica que impele o sacrifício de um – aporte
do velado – e o pacto de outro – aporte do desvelado – são as duas faces de uma destinação única e mútua,
cujo sentido é poético. O que é o sentido poético? É morte-vida em plenitude, é criação.
Tentaremos apresentar essa constituição dialética da obra, sua dinâmica de desvelamento auto-velante,
seguindo os passos do encaminhamento harmonicamente contraditório de Riobaldo e Diadorim, ao mesmo
tempo, aparecimento de um e ocultação do outro. Na verdade, embora à primeira vista, haja duas perspectivas
diversas, seu caminho é comum. Vem à tona a travessia riobaldiana, a partir de sua experiência, a narrativa se
evidencia, o percurso de Diadorim, entretanto, é escasso de vestígios – dele pouco apreendemos a partir do
que dele, pouco ou nada sabe Riobaldo, cujo espanto com a figura misteriosa do amigo é constante em toda a
narração, inclusive ao final, quando a suposta verdade de sua condição feminina é revelada. Interessante
pensar nessa revelação, como um renovado velar. O que nos chama a atenção nessa quase ausência de traços
que cerca a figura de Diadorim é a intensidade de sua presença, sua importância seminal na narrativa, na
experiência, na consciência e no sentimento de Riobaldo, que é por ele conduzido. Diadorim é, nesse sentido,
a figura arquetípica da guia espiritual, conforme a interpretação citada por Willi Bolle3 de Auerbach, para
quem a Beatriz de Dante desempenharia a mesma função. Sem dúvida é uma hipótese interessante. No entanto,
gostaríamos de observá-la conjuntamente ao ocultamento de Diadorim, da pobreza de vestígios que obrigam
seu entranhamento. Mais próxima a este aspecto, vemos a questão que também lhe é pertinente, do gesto
sacrificial, dionisiacamente concebido. Neste sentido, pensamos no sacrifício como morte condutora de vida,
miticamente, teocriptia e cosmofania primordial, de acordo com o exposto por Eudoro de Souza.4 Vemos
então que todo o movimento de ascensão de um mundo – eclosão de vida – manifesta-se em concomitância
com um movimento de descensão de um deus – ocultamento, morte. A interpretação que encontramos em
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Diadorim, remete à própria possibilidade de Riobaldo e Sertão, especificamente a emergência da poesia e do
pensamento que constitui a obra.
Sobretudo nos interessa perceber o ato sacrificial de Diadorim e a experiência de Riobaldo conjuntamente,
ou seja, não há um homem e um mundo que se destaca do seu deus. Em GSV isso fica muito evidente, pela
própria permanência e dominância de Diadorim na narrativa. Essa simbiose erótica implica na irrupção de
uma terceira “personagem”, como fruto do seu congraçamento, e nosso meio de apreensão é a poesia pensante,
a matéria vertente, que é a obra, cujo sentido é a díade Diadorim-Riobaldo.
Para compreender como se dá essa mútua vertência, que é o everter da própria obra, conforme
Heidegger5 entende este processo, é preciso perceber que o enlace erótico implica em êxtase, ou seja, em
esvaziamento de si e encontro de um eu genuíno no outro. Isso ocorre com Diadorim que renasce em Riobaldo,
e em Riobaldo que ressurge em Diadorim. Assim, também Riobaldo morre com a morte de Diadorim, e
Diadorim vive na vida transcendida de Riobaldo, a partir da narrativa.
Um modo de assistir à dinâmica desta comunhão é pela aproximação do ritual velado do sacrifício, ao
rito claramente explícito, que é o pacto diabólico. Apesar das muitas alusões ao diabo, nele o que está em jogo
é o humano. E no pacto o que está sendo empenhado é a própria humanidade. Se este for bem sucedido, o que
Riobaldo obtém é a certeza de si mesmo como o homem absoluto e soberano. No pacto o que é exigido é que
não se pode ser um homem qualquer, um homem como todos, e que humanidade digna de ser afirmada é
aquela que tem como protagonista e único ator, ele mesmo, o homem que a afirma. “O que eu agora queria!
Ah, acho que o que era meu, (...) Eu queria ser mais do que eu. (...) que eu então havia de achar melhor morrer
duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído”.6 (p.393)
Então o diálogo que pretende estabelecer com o diabo, é um diálogo de eu consigo mesmo. Não com
a sua alma, mas com sua mente determinante e seu querer, sua razão objetivante que determina que a troca
aludida vale a pena.. Contudo, paradoxalmente, a contrapartida no sucesso do pacto, a vitória do homem
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humano, é a abdicação de um eu próprio, livre e original. E Riobaldo, eroticamente enlaçado, não se extingue
em um eu único, assim, o pacto põe Riobaldo no risco constante de aniquilação.
“Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu.” (p.303) – diz ao flagrar a
impossibilidade de desvendar-se ante o Diadorim “sacripante”. Mas ao intensificar o olhar, desce a noite
unificante, e dos dois, se gera um, do eu duplo, o duplo um, de Riobaldo e Diadorim, Riobaldo-Diadorim.
Só na poética narrativa o primeiro pode alcançar a existência do segundo. Até a morte de Diadorim,
Riobaldo sabe seu destino de ser duplo, embora o tempo todo o desconfie – do mesmo modo como depois,
enquanto narrador, afirmará a seu respeito que pouco sabe, mas muito desconfia; ao ver Diadorim morrer
na briga de faca com o Hermógenes, e manter-se imobilizado, Riobaldo refere-se à sua não interferência
como “desmim de mim-mesmo” (p.555). Porque ele não se mexeu? Por que não foi até a luta, ou usou sua
destreza como atirador? O que foi essa imobilidade? O que dele se encontrava oculto e só aparecerá
realizado na narrativa?
“Eu era dois, diversos? O que eu não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia.” (p.457). Enquanto
se consuma a vida de Diadorim, Riobaldo é só metade, uma parte dele se compromete e morre conjuntamente
a Diadorim. Mas mesmo o que provém dessa morte, a própria obra, também não é o inteiramente claro, no
desvelamento poético, permanece o oculto.
“Senti esse intimado.”, “... espécie de necessidade.” (p.390). O pacto, supostamente acertado com o
diabo, delineia o horizonte humano, o risco de encerrar-se em si mesmo, implica, contraditoriamente, na
abdicação de um caminho próprio. A perspectiva de fazer o pacto está ao alcance, e é ordinariamente corrente,
entre todos os homens, o que distingue o pacto de Riobaldo é conjugar-se com o sacrifício que partilha com
Diadorim. A partir do enlace erótico o pacto se impossibilita e transcende como geração vida-morte-vida, na
fundação da catábase poética de Riobaldo-Diadorim.
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Riobaldo é um homem que sofre porque é homem, que ama porque é homem, que vive e morre porque
é homem. Essa humanidade nele é tão assoberbada que lhe envia na mais profunda radicalidade, no grande
desafio que ele, só ele, nesse pico de consciência e sentimento humano que lhe é próprio é capaz de sofrer e
busca superar, e mesmo porque intenta superar deixa de ser o “demasiado humano” de Nietzsche. Disposição
de abertura e metamorfose que se encontra em Riobaldo, entranhando-se no mundo, sendo mundo. “Fui o
chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. (...) Só não entendo quem se
praz com nada ou pouco; eu, não me serve cheira a poeira do cogulo – mais quero mexer com minhas mãos e
ir ver recrescer a massa... “ (p.508)
Grande Sertão: Vereda advém de Riobaldo ser, sobretudo e intensamente homem e nessa condição
perceber - poeticamente, como só o homem é capaz - a limitação, a finitude. Encontrar-se ante a natureza
humana que nos é peculiar impõe medo e dúvida porque a fraqueza, a fragilidade se apresentam imensas, mas
ao mesmo tempo é percebida a necessidade da tarefa. Atravessar é alcançar o que pode o homem. Pouco,
mísero, mas algo que é necessário que se adentre. Nisso Riobaldo vê-se empenhado e compreende o que
significa a paradoxal grandeza da ordinária ocupação do ser homem. Primeiro, como princípio, ser homem,
íntegra e plenamente, importa em abarcar mundo, romper a perspectiva subjetivista que o isola diabolicamente,
numa artificialidade de existência autônoma. Ser homem, existir como homem é operar mundo. Embrenharse, misturar-se, diluir-se, encontrar-se homem-mundo. Deste movimento vem uma espécie de força maximizada,
de plenitude alcançada. Riobaldo imiscui-se no sertão. Assim, se difunde no mundo que tem e que o tem.
Assim, se torna jagunço, assim, é tomado pela experiência. Jagunço é o seu destino de homem que Riobaldo
acata na destinação, na formação da forma, no estilo que nele se distingue porque é aceito e obedecido na
máxima graça. Este é o segundo modo de empenhar-se homem, encontrar a destinação que lhe cabe, fazer da
obediência, estilo – singularidade na totalidade. Riobaldo é jagunço diferente de todos os demais, mas isso não
o faz menos jagunço, ao contrário, isso reforça o jagunço que é. A homogenização é que enfraquece o ser
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jagunço. Mas no ser o homem-mundo, o jagunço-sertão que aceita ser como o que lhe é dado ser, Riobaldo se
mantém sobremaneira aberto. Assim recebe e sustenta nele mesmo, o exterior do interior, e o interior do
exterior, faz de ambos um só, fonte e abrigo de olhar e escuta, apreciação, recepção, suporte de tudo, que
sendo ou não sendo, se agüenta no que é. Vem então o tempo gerador, o tempo semeador, o tempo constituidor.
Não rejeita nada, ao contrário, tudo aceita e nesse aceitar entra em errância, e se funda na indagação. Perguntar
é então acatar, e questionar é cuidar.
Nesse sentido se encontra a instauração e recuperação de uma vida pela palavra. Ser atravessado pela
vida conjunto ao ser atravessado pelo dizer, e assim realizar o Real.
Há um hiato que se abre devido à distância temporal, uma distensão que separa a experiência vivenciada e sua
rememoração pela palavra, a narração. Esse é o tempo que nos constitui, tempo apropriador da nossa vida,
que inaugura presente, pretérito, porvir. Mas esse tempo é uma ambigüidade, concomitante ao desgarre que
estabelece uma diferença, uma ruptura, nele também, nisso que só o tempo pode fazer, neste abrir de um
hiato, se dá a possibilidade de unificação sobre o permanente. Esse é o fundamento da historicidade. A
distância temporal nos recria históricos, e sermos históricos é abertura à inauguração de sentido.
Assim é a transformação que se opera em Riobaldo. A partir da distância que se abre entre o que ele
viveu e o que ele rememora Riobaldo narrador passa a ser outro em relação ao jagunço que foi. Não apenas
porque ficou velho, se afastou dos companheiros, ou seja, por causa dos muitos eventos que ocorreram na sua
vida. Mas porque Riobaldo fez da distância temporal, diálogo, ou seja, se assumiu como a história que é. A
historicidade que se faz referência aqui não é aquela que simplesmente relaciona a cronologia dos fatos
biográficos, mas sim a história na perspectiva hermenêutica de recriação de sentido. Na primeira acepção a
história é absoluta mortificação, invariável perecimento fatal, porque nela tudo é passageiro, tudo tem como
contrapartida determinada de toda geração, sua corrupção e morte. O tempo é devorador de vida, e o passado
só se recupera como lembrança, nostalgia. Na segunda acepção, a história exerce um combate e uma
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correspondência à força temporal. Integralmente nutrida do tempo, a história recupera a experiência
criativamente, renovando o sentido dos acontecimentos, os faz surtir mais uma vez e se deixa fecundar.
O tempo na sua ambigüidade mortificante ou vivificadora, assume essa segunda possibilidade, na existência
de Riobaldo, fertiliza, recria. A partir do que é doado e consentido no tempo, Riobaldo empreende sua
“metamorfose existencial”.
Seu percurso é originariedade, não tem ponto de partida, nem ponto de chegada, só “meio-docaminho”(p.289). Nele se encontra a radicalidade da experiência: “o diabo.na rua, no meio do redemoinho...”,
e a possibilidade de travessia. Acolhendo os movimentos demudantes da memória, ou seja, deixando atuar o
memorável e o esquecido, Riobaldo mantém-se no “meio-do-caminho”, abre-se à errância e à indagação, se
realiza na narração.
NOTAS
1
BEAUFRAIT, J. - “O Poema de Parmênides” in Pré-Socráticos. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Editora Abril, 1978. p.162
2
Termos destacados por Ferreira, Lívia. Homência e hominização em Matraga. Revista de Letras, n. 13: 127-146. (1970/1971).
3
grandesertão.br. São Paulo, Editora 34, 2000.
4
Mitologia I. Brasília, UNB, 1988.
5
“A coisa” in Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes, 2000.
6
Todas as citação referem-se à 18ª. Edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
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ANA PAULA MORSE LOBO (MESTRANDA– UERJ)
Resumo:
À luz de preceitos barthesianos demonstrar-se-á de que formas Guimarães Rosa opera deslocamentos dentro
da nossa língua a fim de subvertê-la, para alcançar densidades expressivas que o vocábulo vigente parece não mais
abarcar. Em seus contos e de seu sertão-mundo consegue-se submergir, absolutamente enfeitiçados.
GUIMARÃES ROSA E A TRAPAÇA
QUE ULTRAPASSA A PRÓPRIA LÍNGUA
O presente trabalho tem como principal objetivo demonstrar uma possibilidade de leitura de Guimarães
Rosa, à luz dos preceitos defendidos por Roland Barthes em seu texto Aula, entendendo que língua e poder
estão intimamente relacionados, tal como aponta esse autor.
A princípio entraremos em contato com alguns contos bastante significativos de Rosa para nos
familiarizarmos com esse autor, sua forma singular de escrever, analisando a força expressiva de seus vocábulos,
a estrutura de sua narrativa, a fusão do popular com o erudito, demonstrando seus aspectos à luz de conceituados
teóricos da literatura. Terry Eagleton, por exemplo, resgata a materialidade da língua salientada pelos formalistas
russos e, facilmente, somos capazes de captá-la em Rosa. Jonathan Culler elucidará aspectos da narrativa de
forma bastante pertinente do ponto de vista de seus elementos, comprovando tais aspectos em alguns contos,
tais como: “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “A terceira margem do rio”, “As margens da alegria” e alguns trechos do
“Grande Sertão: Veredas”. Com Assis Brasil, estabeleceremos um importante diálogo face ao que esse expõe de
ordem mais pontual, já que sua fala trata de forma direta o estilo rosáceo de escrever, bem como suas
peculiaridades.
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Importante frisar, no entanto, que apesar de não estar diretamente citado em todo o trabalho, é em
Barthes e nos preceitos defendidos por ele que o mesmo está calcado, por considerar que há um diálogo
perfeito entre ele e Guimarães Rosa. Há uma consonância entre o que o primeiro defende e o que o segundo
realiza, ou seja:
“(...) Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer,
trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.
Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio
ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever” (BARTHES, 1978, p. 17).
Logo a seguir, começaremos o percurso em direção ao Grande Sertão: Veredas, um deslocamento
ímpar na literatura: o intelectual silencia e deixa falar seu personagem-narrador, o jagunço Riobaldo. Assim
como o próprio autor fez em seu trabalho de campo, em pesquisa realizada para a construção da referida obra.
Há que se observar de que maneira Rosa se articula dentro da própria língua para subvertê-la, deslocála, corromper com o seu poder, numa análise barthesiana, as formas que ele adota para criar esses deslocamentos,
de como o seu narrador-personagem contribui com essa tarefa. E ao sabor de textos originais perceber o jogo
com os signos lingüísticos de um modo tal que “a língua aflui no discurso, o discurso reflui na língua” (BARTHES,
1978, p. 32).
“Na ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente,
o sal das palavras que faz o saber profundo, fecundo” (BARTHES, 1978, p. 21)
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Cabe ressaltar que para evitarmos a repetição do título do livro, adotaremos a sigla “GSV” ao mencionar
Grande Sertão: Veredas, suas iniciais, até porque do segundo capítulo em diante essa será a única obra literária
de Guimarães Rosa que dialogará com alguns críticos literários.
Os primeiros contatos com a obra roseana, por meio de alguns de seus contos, são suficientes para
demonstrar uma escrita, um estilo bastante peculiar. Não há como lê-lo sem espanto e impacto diante de sua
forma. Seus neologismos, seu condensamento do erudito com o popular servem à necessidade da nova palavra
que exprime mais “visceralmente” o que intui o personagem e que o vocábulo comum, ou melhor dizendo, as
palavras oficializadas, já existentes e utilizadas, parecem não bastar. É como se já estivessem gastas, desgastadas
pela banalização de seu uso, insuficientes, portanto, diante do termo novo que precisa expandir-se em
expressividade. Do mesmo modo, vocábulos eruditos, pouco usados ou usados em tempos remotos ganham
vitalidade nova em mãos desse escritor.
Resgatemos uma das conceituações pioneiras sobre literatura defendida pelos formalistas russos:
“A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discurso, era o fato de ela
‘deformar’ a linguagem comum de várias maneiras. Sob a pressão dos artifícios literários, a linguagem comum era
intensificada, condensada, torcida, reduzida, ampliada, invertida. Era uma linguagem que se ‘tornara estranha’, e
graças a esse estranhamento, todo o mundo cotidiano transformava-se subitamente em algo não familiar”
(EAGLETON, 1997, p. 5).
Há, de fato, nos contos e histórias de Guimarães, motivos de sobra para consolidar certa materialidade
da língua, tão bem salientada pelos formalistas russos. No entanto, o mesmo ato de estranhar exige uma
compreensão imediata, tão cúmplice e familiar quanto distante.
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“O discurso literário torna estranha, aliena a fala comum, ao fazê-lo porém, paradoxalmente nos leva a vivenciar
a experiência de maneira mais íntima, mais intensa” (EAGLETON, 1997, p. 5).
O contato inicial, o ato de deparar-se com a escritura de Rosa, causa um inevitável impacto. Há
decerto o estranhamento súbito do novo, do diferente; mas a seguir, o leitor se depara com a expressividade,
quase brutal do termo novo, e que, em geral, possui tanta logicidade contextual que se passa a correr o risco
contrário, o do não estranhamento.
Em Grande Sertão Veredas, o narrador assim dirige-se ao leitor:
“(...) O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim,
que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo
comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que
o muito se fala?” (ROSA, 2001, p. 55).
A citação acima demonstra uma cumplicidade estabelecida entre leitor e narrativa – seja por similaridade
do enredo com a própria vida, seja pelo confortável ou relativo afastamento proporcionado pela ficção, comuns
à prática da narrativa de Rosa. É comum e verificável, por meio de sua escritura, o movimento do narrador
que inicia o conto de “fora” do enredo, conservando o afastamento que a narrativa na 3a pessoa propicia, ao
largo dos personagens e suas tramas, mas que se aproxima deles no decorrer do mesmo, chegando ao fim, em
geral mais próximos, pois misturado, confundido com eles. Os exemplos que se seguem são bastante ilustrativos
sobre o acima referido:
Em “Sorôco, sua mãe, sua filha” (ROSA, 2001a), por exemplo, o narrador começa como mero espectador,
absolutamente afastado da “gente” a que se refere; a seguir mobiliza-se, comove-se com os personagens narrados
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e, por fim, integra-se de tal modo à “gente”, antes simplesmente referida que se mistura e se confunde a ela e
nela se soma em coro final sendo também “gente”. Assim, no início do conto:
“A gente reparando notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as Janelas sendo grades,
feito as de cadeia, para os presos. Ia servir para levar as duas mulheres, para longe, para sempre” (ROSA, 2001a,
p. 62).
Já no fim do conto observa-se do narrador:
“A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela
cantiga” (ROSA, 2001a, p. 66).
Referindo-se aos requisitos básicos de uma história, do ponto de vista de seus elementos, Jonhathan
Culler nos alerta:
“Deve haver uma situação inicial, uma mudança envolvendo algum tipo de virada e uma resolução que marque
a mudança como sendo significativa” (CULLER, 1999, p. 86).
Uma narrativa nos moldes tradicionais, bem estruturada dentro de seus parâmetros normativos, apontanos que não é dessa forma que a “trapaça” roseana da língua se dá. Seus contos evidenciam antes a clareza
com que podemos observar os requisitos apontados por Culler na análise do conto “Sorôco, sua mãe, sua
filha”. O próprio movimento do narrador demonstra essa passagem, num tom de significativa mudança.
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Faz-se necessário retomar a já apontada cumplicidade que se estabelece entre leitor e texto, cuja
peculiaridade, ou estranhamento, não inibem a identificação com o seu conteúdo. Assis Brasil acrescenta
ainda:
“Mas o que ressalta o regionalismo de João Guimarães Rosa e lhe dá validade universal, é o psicologismo antiensaístico de sua obra, poderíamos dizer, a caracterização poética de seus personagens. Sua obra faz do homem
e da terra um todo, um organismo vivo, transmitindo-nos as suas tradições religiosas, sociais e paradialetais”
(BRASIL, Assis, 1932, p. 49).
O narrador incita o leitor a aproximar-se das personagens de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, em uma
situação a um só tempo fictícia e verossímil. De outro modo, na pele do filho de “A terceira margem do rio”
(ROSA, 2001a), que é narrado em 1ª pessoa cria-se a atmosfera intimista. Referindo-se a seu pai diz:
“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais (...)” (ROSA, 2001a, p.
80).
Há uma espécie de identidade com esse mesmo pai, solitário naquela canoa encomendada que o colocou
na “impossível” terceira margem de um rio.
Acontece que aqui se evidencia uma nova “trapaça” roseana, posto que, se na estrutura da Língua
Portuguesa não há como “partir para lugar algum”, na vida isto é perfeitamente possível, assim como na boa
literatura. Afinal, quem de nós já não se foi de si mesmo sem ter partido de fato? Ou, ao menos, quem entre
nós há que não tenha, se não vivido, ao menos pressentido alguém que se foi sem nunca ter ido?! Quantos
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excluídos e oprimidos há que pertencem a esse não-lugar tão real quanto aviltante. Fora, mas dentro da sociedade.
Chamados cidadãos e sem cidadania.
No conto “As margens da alegria” (ROSA, 1972) os exemplos também são inúmeros.
“(...) Era uma viagem inventada no feliz” (ROSA, 1972, p 3).
É como se a forma convencional de, por exemplo, “um momento feliz vivido por ele” não pudesse dar
conta do tamanho da carga de felicidade que ele consegue dar ao substituí-la por “no feliz”, “colado ao feliz”,
‘dentro do feliz”. O mesmo ocorre em: “o Menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um
jeito de, folha a cair” (ROSA, 1972, p. 3). Aqui nesse exemplo a redundância dos pronomes, as palavras por ele
criadas bem como as suas metáforas, contribui sobremaneira com a estética e com a carga afetiva que se quer
dar ao texto em comunhão com a cena, que para esse autor não pode se dar de modo frio e distanciado. É uma
literariedade que tem intenção e sentidos claros, muito diferentes de meros recursos alegóricos ou artificiais,
cuja intenção única seria romper com a norma formal da língua.
“(...) O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa – longa – longa nuvem” (ROSA,
1972, p. 4). Aqui a palavra mesma traduz os sentimentos, ante a ansiedade de chegar, não enxergamos sequer
o entorno (tinha tudo de uma vez e nada...) e a repetição da palavra exaltando seu próprio sentido de demora,
relativa, causada pelo mesmo sentimento de ansiedade do menino (longa – longa – longa nuvem) de que as
nuvens acabassem logo, pois isso significaria a chegada do avião ao destino desejado.
“A todo instante o homem fala como poeta, porque como o poeta expressa as suas impressões e os
seus sentimentos na forma que chamamos conversação” (CROCE, 1996, p. 51).
E mais uma deliciosa “trapaça” se evidencia: a prosa de Guimarães Rosa tem a poesia, sua musicalidade
e carga afetiva, transbordando de cada personagem por suas falas e atuações.
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“O romancista como que nos apresenta o processo criador mesmo de uma língua, focaliza no ponto exato o
‘nascimento’ de vocábulos e de expressões necessárias ao seu mundo. Processo que o escritor deve ter observado
ao ‘vivo’, ao natural, pois é comum ao caboclo inventar ‘na hora’, por associações, os vocábulos que possam
preencher as suas necessidades de comunicação” (BRASIL, 1969, pp. 42-43).
Ainda no conto As margens da alegria, que apesar de não ser narrado na 1a pessoa conta com um
narrador onisciente, fica-se a par de uma experiência única vivenciada pelo protagonista, cuja compreensão da
intensidade, da dor e da transformação nele ocorridas só se torna possível por sua própria ótica. Basta notar
que as pessoas ao seu redor sequer notam o que lhe aconteceu e muito menos ainda a gravidade que para ele
assume a morte do peru, seu bicho de estimação; somente o narrador está ciente dos sentimentos do
protagonista, posto que este conhece o íntimo de seu personagem.
E aqui mais uma vez podemos afirmar que não se trata de abjurar a norma convencional de narrativa
e sim de “trapaceá-la”, posto que seja o deslocamento do olhar e a escolha do modo de ser do narrador que
criarão o impacto inovador, e não um simples embate estilístico com a norma gramatical.
Assim, Guimarães Rosa tomou a literatura para si, rompendo valores, transcendendo a língua,
corrompendo-a tanto quanto a muitos valores de sua época, num processo criativo que legitima sua obra
como uma verdadeira obra de arte.
Guimarães Rosa trouxe à tona conflitos de classes, elegeu um jagunço seu narrador, descortinou um
sertão regional, para tocar o sertão que habita cada um de nós. Não aceitou o fascismo da língua e subverteua, mostrou que algumas vezes ela pode ser modificada e retorcida para ser obrigada a dizer o que um prosadorpoeta necessita.
“(...) Pode-se dizer que nenhum dos escritores que partiram para de um combate assaz solitário contra
o poder da língua, pôde ou pode evitar ser recuperado por ele, quer sob a forma póstuma de uma inscrição na
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cultura oficial, quer sob a forma presente de uma moda que impõe sua imagem e lhe preserve a conformidade
com aquilo que dele se espera. Não há outra saída para esse autor senão o deslocamento – ou a teimosia – ou os
dois ao mesmo tempo” (BARTHES, 1978, p. 26).
“Teimar quer dizer, em suma, manter ao revés e contra tudo a força de uma deriva e de uma espera. E
é precisamente porque ela teima, que a escritura é levada a deslocar-se” (BARTHES, 1978, p. 27).
Teimar, deslocar, trapacear, transgredir, ultrapassar, alguns dos verbos que tornam essa ciência estéticohistórica, tão atraente, e que definem a nossa literatura. No entanto, ela situa-se ainda no âmbito de uma
hermenêutica do autor, do intelectual, mesmo que já inclua o leitor em suas novas teorias, como a estética do
efeito e da estética da recepção de que nos falam tão bem Wolfangang Iser e Hans Robert Jauss. Vale desejar no
entanto, um verdadeiro rompimento de fronteiras. Que Riobaldo pegue a arma legítima de sua cultura e tome
a voz. E fale e escreva, sem autorização prévia, sem porta-voz. Que os cantadores publiquem-se sem ter que
mostrar seu passaporte de recém-alforriados dentro da Universidade. E que as diferenças jamais acabem,
acabem sim as injustiças, as condições precárias de vida, os trabalhos alienantes, mas as singularidades, nunca.
A infinidade de possibilidades de estilos, de vozes, de tipos, de culturas, de línguas, de jeitos, de escritas, de
falas e de tudo, talvez seja o que a humanidade possua de mais de rico. (Tudo o que já aconteceu, o que está
acontecendo somados ao que poderá vir...). Que bom saber que as verdades são relativas, que não há certezas
nem tampouco saberes absolutos já que a densidade da vida e o prazer que se pode extrair dela estão contidos
nessa eterna e infinita busca. Conscientes de nossa ignorância passemos à fala, pois é Guimarães Rosa quem
deve concluir a nossa eterna “inconclusão”.
“Serão essas – as com alguma coisa excepta – as de pronta valia que aqui se quer tirar: seja, o leite que a
vaca não prometeu. Talvez porque mais direto colidem com o não-senso, a ele afins; e o não-senso, crê-se, reflete
por um triz a cobrência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente,
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mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão,
que nos dá o ‘Mito da caverna’” (ROSA, 2001b, p. 30).
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. Aula. S.P.: ed. Cultrix, 1978.
BRASIL, Assis. Guimarães Rosa. RJ : Organizações Simões editora, 1969.
CROCE, B. In: “Breviário de estética”. Citado por Buzzi A. R. Filosofia para principiantes. RJ : Vozes, 1992.
CULLER, Jonathan. Teoria da literatura: uma introdução. S.P. : Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. S.P. ; Martins Fontes, 1997.
GALVÃO, Walnice. As formas do falso. 2a ed. S.P. : ed. Perspectiva, 1986.
_______ Gatos de outros sacos. Ensaios críticos. S.P. : Ed. Brasiliense, 1981.
MENDES, Murilo. Transistor – antropologia de prosa. RJ : Nova Fronteira, 1980.
PEREZ, Renard. “Prefácio”. In: ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. RJ: José Olympio, 1978.
PRADO Jr. Bento. Alguns ensaios – Filosofia – Literatura – Psicanálise. S.P., Max Limonad, 1985.
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 6a ed. RJ : José Olympio, 1972.
_______ Grande Sertão: Veredas. 19a ed. RJ : Nova Fronteira, 2001.
_______ Primeiras estórias. RJ : Nova Fronteira, 2001ª.
_______ Tutaméia. RJ : Nova Fronteira, 2001b.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Ensaios sobre questões político-culturais. RJ : paz e Terra, 1982.
PESSOA, Fernando. Obra poética. RJ : José Aguillar, 1972.
VERÍSSIMO, Luis Fernando. A eterna privação do zagueiro absoluto – as melhores crônicas de futebol, cinema e literatura.
RJ : Objetiva, 1999.
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ANDRÉ LUIZ BARROS DA SILVA (DOUTORANDO – UERJ)
Resumo:
“As margens da alegria” e “Os cimos”, de Guimarães Rosa, contos de abertura e de encerramento de Primeiras
estórias (1962), são exemplos do tipo de narrador lúdico infantil que se acha em um “ponto de partida em que tudo
estivesse (...) na esfera do puro potencial” (Candido, 1964; Cf.: Proença, 1958; Lisboa, 1968; Coelho, 1974).
Pretendemos analisá-los a fim de flagrar as duplicidades – alegria/tristeza; cidade/mata; perto/longe; conhecido/
não-sabido; o agora/o depois; o medido/o incomensurável – que os estruturam como temas-chave. Sendo um
conto resposta e continuação do outro, o primeiro iniciando na alegria e findando na tristeza do menino e, o
segundo, invertendo tal percurso, examinaremos como o caráter epifânico do olhar infantil sobre o mundo (como
mistério) desvela uma característica básica da prosa Roseana: o foco na intuição como postura afetiva de lidar com
o não-sabido. Na fase pré-racional, a criança seria mais propícia a lidar com tal faculdade, acessível também ao
artista. A epifania impregna a narrativa, remetendo à possibilidade de superação (“travessia”) das duplicidades e
dos paradoxos, por meio da dinâmica subjacente, misteriosa, da existência. Tal dinâmica se dá em um tempo nãomensurável ou mítico. Nesse périplo, é crucial a experiência do lado negro, ou seja, da tristeza, da morte (Rosenfield,
1993), mas também a construção ativa da esperança (“...então, fosse o que fosse, o Menino (...), teimoso de só
amor, precisava de se repetir: que a Mãe estava sã e boa... O vôo do pássaro habitava-o mais”; “Os cimos”).
EPIFANIA, NÃO-SABIDO E INFÂNCIA: AS MARGENS
E OS CIMOS DA ALEGRIA EM GUIMARÃES ROSA
A análise da dinâmica interna aos contos “As margens da alegria” e “Os cimos”, respectivamente,
primeiro e último do volume Primeiras estórias, lançado por Guimarães Rosa em 1962, indicam uma forma toda
própria de lidar com a epifania, entendida como intervenção inesperada e benfazeja de uma alteridade. Da
dinâmica do protagonista com o nome genérico de Menino, que empresta ao narrador seu olhar infantil, podese inferir uma concepção do homem diante do insuspeitado, ou do fluxo dos acontecimentos que de fato lhe
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importam – ou seja, aqueles que tocam seu ser. Dessa dinâmica faz parte, em seu escopo mais amplo, a
alternância entre alegria e tristeza, signos que presidem e servem como referência a um tipo inusitado de
formação, uma Bildung emocional bastante sutil que se dá no íntimo do Menino. Poderíamos resumi-la como
sendo um “aprendizado do aprender”, ou seja, como se posicionar diante do inesperado, que nunca pára de
emergir dos pequenos eventos do cotidiano. Tal concepção pode explicar um aspecto específico do narrador
rosiano, a saber: sua busca do olhar sem a “montanha de cinzas” do adulto diante da irrupção do acontecimento
que importa, que tem aspecto de epifania e de transformação do modo do viver.
No momento culminante do conto “O espelho”, literalmente central em Primeiras estórias, já que é o
11º conto de um total de 21, funcionando, assim, como mediador e, propriamente, como “espelho” entre o
primeiro e o último contos, se lê: “Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor
pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só”1.
Essa ressurgência oceânica abissal do menino no homem, da infância no adulto é uma das alegorias de Rosa
para uma busca do originário em meio ao caos universal. Em outras palavras: o universo só parece fazer
sentido, para Rosa, se se tem acesso ao gosto das palavras e do sentir originários, frescos ainda de sua fonte. A
fonte é tanto o riacho das musas, na Grécia antiga, origem da fabulação, quanto o coloquial do jagunço,
figuração da fala do próprio sertão, este surgindo como metáfora do abissal que está “dentro da gente”.
Como escreveu Antonio Candido tentando dar conta do Grande Sertão: veredas no calor de seu lançamento,
a invenção rosiana baseava-se “...num ponto de partida em que tudo estivesse no primórdio absoluto”. O
crítico de São Paulo lembra mesmo o exemplo de um Bela Bartók, que usa o folclore para forjar um estilo
formalmente muito refinado. Para Candido, tal material folclórico é “...elaborado de maneira a dar impressão
que o compositor se havia posto no nascedouro da inspiração do povo...”2. Do mesmo modo, Nelly Novaes
Coelho invoca o conceito de homo ludens de Huizinga e o de Todorov para ver em Rosa um “homem-narrador”
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ou um homem-coletivo cuja existência mesma vem do contar estórias (com “e”, obviamente)3. Henriqueta
Lisboa invoca Adolfo Casais Monteiro e uma frase que a ajuda a mostrar a importância do “Motivo infantil na
obra de Rosa”: “Primitivo e elaborado – estes dois conceitos não são de modo algum antitéticos”. Ela completa:
“Em verdade o que surge à tona de seus livros, é um borbulhar de formas buscadas em fontes aurorais, cousas
prematuras...”4. Portanto, além da fonte de inspiração e da fonte folclórica e coloquial, a fonte que emana da
infância é crucial como momento da vida em que se tem acesso àquele balbuciar do começo, e os meninos de
Rosa são poetas lidando com o frescor de uma zona “auroral” da existência, onde a lógica e a filosofia ainda
não deitaram suas mãos pesadas. Além de um “homem dos avessos”, não teria sido o escritor também um
“homem dos começos”?
Mas como se dá tal busca mítica da fala e do pensamento ou, de forma ainda mais primordial, da fala
ainda pouco articulada e do pré-pensamento, em suma, do sentir infantil ou “dos começos” segundo Rosa?
Esperamos que a análise dos dois contos-chave de Primeiras estórias nos permita uma primeira (ou primordial)
resposta.
“As margens da alegria” se inicia com o personagem do Menino viajando para uma cidade ainda em
construção (subentende-se ser Brasília). Está alegre, e a figuração desse sentimento em um conto que tem a
alegria no título é a de um conforto em que “...as satisfações [vêem] antes da consciência das necessidades”5.
Tal falta de consciência significa apenas e tão somente falta de pensamento, já que, nessa situação de alto
conforto e inconsciência da tristeza, “O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente”. Na verdade, a
postura alegre é de otimismo oco (já que sem reflexão) diante do que pode advir, ou seja, do próprio devir e de
seus perigos e lados obscuros: “Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança [ou seja, mesmo a lembrança do perigo
de morte implícito em uma viagem de avião] virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao nãosabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir para o espaço em
branco”6.
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O Menino inicia assim o conto no centro caudaloso do rio da alegria, o título fazendo apenas prever
que existam regiões perigosas a limitar alegria e tristeza. Nessa posição confortável, o movimento em direção
ao “não-sabido”, ao “mais” é vivido como sendo positivo, como “...um crescer e desconter-se”, um benfazejo
“...fugir para o espaço em branco”. Ao conforto objetivo, marcado pelo cinto de segurança no avião que o leva
para a região ainda “em branco”, vazia, não-construída da nova capital no Planalto Central do país, corresponde
um conforto de alma, uma sensação de adequação entre o subjetivo e o mundo. A idéia de adequação é
expressa de forma clara: “E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em
movimentos concordantes...”7. Porém, assim como a idéia de um não-sabido e de um espaço em branco pode
remeter não à alegria, mas à angústia (diante da folha em branco, por exemplo), a idéia da “harmonia prévia”
das coisas e do universo pode dar lugar à desconfiança de que a posição infantil otimista esconde uma ilusão:
a da harmonia universal. No entanto, nesse momento do conto, nem o Menino, que nada tinha diante da
mente, nem o leitor têm ainda elementos para saber onde começam e onde terminam as margens da alegria.
Como na cultura grega antiga, a primeira epifania do Menino é com um animal, o peru, diante do qual se
maravilha. Nesse aprendizado da emoção, o Menino desfruta do prazer do belo diante de um novo ser: “...o
peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. (...) Satisfazia
os olhos, era de tanger trombeta”. Mas o peru não era para sempre. Ele é morto por conta do aniversário do
dono da casa e o Menino sente, pela primeira vez, a força do avesso da alegria. Em meio a remorsos por estar
triste, ou por ter gostado tanto de um ser tão inferior, não supera o desaparecimento com rapidez. O mundo
externo sofre um déficit de sentido; as máquinas que construíam a nova cidade surgem sob uma luz de gratuidade
contrária à vida: “Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no
trabalho de terraplenagem (...), as vagas árvores...”; isso porque ele “...descobria o possível de outras
adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço”. Máquinas derrubam uma árvore como demonstração na
frente do menino e ele se enoja (“O Menino fez ascas...”). Se o espaço aberto, se a construção da nova cidade
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no espaço em branco é decididamente hostil, ele se volta para a pequena casa, onde “...passava-se logo à
cozinha”. O remorso é incerto porque diante do não-sabido, do espaço ainda não conhecido o pensamento é
impotente: “De volta, não queria sair mais do terreirinho, lá era (...) um incerto remorso. Nem ele sabia bem.
Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica”.
Então, eis que surge outro peru, menor, cuja chegada “...um pouco o consolava”. Da educação
sentimental (ou emocional) do menino faz parte um fino sentir da substituição objetal muito próximo do que
Freud e Lacan propõem. Um objeto amoroso pode ser substituído depois do luto, preenchendo um vazio
emocional de forma renovada, em um devir pelo qual perde-se certo tipo de alegria, mas é possível experimentar
uma outra, renovadora. O trabalho de luto, freudiano, e o “objeto a”, lacaniano, aqui se encontram. Tanto
que... “Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam./ Tudo se amaciava na tristeza”. A
formação sentimental continua: à noite, aquietando-se “...com o próprio quebranto (...), alguma força, nele,
trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma”. No pátio, o novo peru topa com a cabeça degolada do
anterior. E, para espanto e aprendizado do Menino, começa a bicá-la, com ódio. O lado negro, portanto, se
insinua8. Atrás da cena terrível, a natureza representa a imensidão agora terrível do não-sabido, do espaço em
branco, ou antes, agora, em negro: “A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo./
Trevava”. Ali perto, porém, a luzinha mínina de um vaga-lume representa, para ele, “...outra vez em quando,
a Alegria”. A contração na casa apertada, protegida do hostil espaço, bem como na luz pontual do inseto
indicam um alargar-se e condensar-se do “sentimento do mundo”, numa dinâmica emocional necessária para
aumentar a alma ao Menino.
O conto “Os cimos”, último do volume, principia com o Menino viajando de novo para a mesma
cidade em construção, só que agora triste de princípio diante da séria doença da mãe. Um macaquinho de
brinquedo faz as vezes de objeto amoroso. Se, no começo da viagem anterior, nenhum alusão ao lado negro da
vida, ao não-sabido ou ao inesperado chegava a afetar sua expectativa diante dos acontecimentos por vir,
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agora a situação se inverte, e mesmo os atos menos alusivos ao perigo parecem aludir ao lado negro, ou seja,
à possível morte da mãe. O espaço aberto só lhe traz um medo antecipado: “Era assim: alguma coisa, maior
que todas, podia, ia acontecer?”9 A mestria de Rosa faz com que não inclua nada de negativo na frase. A
expectativa diante dos novos fatos já é, em si, angustiante, dado o estado em que o Menino se encontra. Tratase de talento incomum para figurar literariamente sentimentos, pautados pela bússola dúplice da alegriatristeza, mas com nuances que se mostrarão mais sutis do que essa simples duplicidade.
Nesse novo estado de ser, há remorso diante do macaco de brinquedo que, além de não morrer, é belo
(“...o Menino concebia um remorso de ter no bolso o bonequinho macaquinho, engraçado e sem mudar, só de
brinquedo, e com alta pluma...”). A sensação geral era de um não mudar (como o boneco e como o vôo, já que
o avião parecia estar parado), embora no íntimo continuava o louco devir: “O Tio olhava o relógio. Então,
quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos igual, as coisas ou outras. A gente, não. A vida
não parava nunca, para a gente poder viver direito, concertado?”. Se para o Menino é impossível ficar parado,
o sofrimento parece um voltar para trás, idéia que lembra o conceito de regressão em psicanálise. Porém, nem
o avião pode voltar aonde está a mãe, que ele sofre ao abandonar doente, nem seu ser pode parar ou regredir:
da educação sentimental10 faz parte a consciência e a resistência à regressão. “Ainda que a gente quisesse, nada
podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de que gostava”11. A frase impressiona por unir
e condensar em uma espécie bem rosiana de provérbio os domínios objetivo e subjetivo: nem o mundo podia
se estancar ou retroceder, nem nosso ser, apesar do desejo ou da reação emocional deste último; nem a mãe
retornaria da morte, caso falecesse, nem ele podia voltar da viagem; nem o peru morto poderia ser restabelecido,
nem nossa ignorância perpetuada, pois o movimento do devir em direção ao não-sabido parece ser imperativo.
Nesse sentido, o sentimento se choca intimamente com o conhecimento e, exteriormente, com o movimento
do mundo: o primeiro quer manter ou voltar ao que conhece e de que gosta, e os dois outros empuxam o ser na
direção do desconhecido e do ainda não provado – o belo ou o sentimento amoroso entrando aí como elemento
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atrativo diante do novo, basta lembrar o encontro, já citado, com o primeiro peru e a epifania diante da luz do
vaga-lume, que examinaremos adiante.
Certa noite o Menino recebe uma “claridade de juízo – feito um assopro (...) feito ele estivesse podendo
copiar no espírito idéias de gente muito grande”. Ou seja, o Menino sobe um degrau em sua formação emocional.
Isso corresponde a uma reflexão sobre o devir dos acontecimentos. Pouco antes de acordar, ele pensa que
nunca se podia “...apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam”. Note-se o detalhe:
bonitas e boas, o bom estando, no nível emocional, próximo ao belo, ou seja, a alegria próxima à epifania,
como veremos. A revolta diante do fato de que não apreciamos as coisas boas e belas o faz pular da cama com
novo entusiasmo. A seguir, ele vê, na copa de uma árvore, um tucano, outra epifania de beleza animal. O
Menino e seu Tio, bem como os operários maravilham-se com o tucano que, ele também, se comunicava com
filhotes ou outros tucanos na mata profunda. Qual é o sentido daquele tucano, que trazia o raiar do sol, ou
melhor, que ia embora assim que o sol despontava?
Se donde vinha e morava – das sombras do mato, os impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os
certos horários: os demais lugares; aonde ia achar comer e beber (...). Mas o Menino pensava que devia acontecer mesmo assim
– que ninguém soubesse. Ele vinha do diferente, só donde.12
Ou seja, o tucano era o ser vindo da alteridade, do espaço em branco (ou preto), do lugar do nãosabido. Apesar da semi-alegria diante da epifania, o Menino obviamente ainda estremece com a idéia da
doença da mãe, e se sente participando do dia “...dos outros, não da gente”, sentindo-se só “...uma certa parte
dele mesmo, empurrado para diante, sem querer”.
Já mais amadurecido emocionalmente do que muito adulto – segundo os preceitos heterodoxos de
Rosa –, o protagonista se revolta contra a idéia de capturarem o tucano para ele. Na verdade, como o minúsculo
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vaga-lume, o tucano é o representante da luz do sol, daí seu anúncio da aurora. E, como o deus Sol, briga com
as trevas, ou seja, com o lado negro do não-sabido. Nesse ponto, podemos aproximar a concepção de Rosa de
certas idéias do Grande Sertão: Veredas. Trata-se de reconhecer no empuxo rumo ao não-sabido, inevitável e
sem descanso, a postura cada vez mutável de uma expectativa positivada em relação ao desconhecido
incomensurável (Deus), ou de uma expectativa negativizada diante desse espaço em branco (o Diabo). Lembrese da dinâmica, clara naquele romance, entre um Deus que não domina o universo, já que há o espaço
propriamente humano (homem humano), e um Demônio que só existe se nele se crê ou se a ele se invoca. Nos
contos analisados, como nos gregos antigos, a epifania é contato benfazejo com a alteridade, capaz de inverter
o negativo (do ser emocional) em positivo, ou seja, é contato com o divino. O “trabalho do pássaro” (título da
penúltima parte do conto) e a insistência do menino em pensar com força que a mãe não pioraria – ou seja, a
parte que cabe à imaginação humana elaborar – acabam dando certo, e finalmente chega o telegrama de
restabelecimento da mãe.
A dinâmica dos acontecimentos e da postura humana diante deles, esboçada no momento de “clareza
do juízo” do menino (pouco antes de sua última epifania: a visão do tucano) fica clara em frases como a que
se refere à cena vista da janela do avião: “...as nuvens de branco esgarçamento, o veloz nada”; ou a memória
afetuosa que quer retroceder ao momento da epifania diante do tucano: “...parado que não se acabava”. O
tempo tem uma concatenação toda própria no plano da emoção do Menino. Quando o Tio fala: “Chegamos,
afinal!”, ele responde: “Ah, não. Ainda não...”, como quem pode dispor internamente de um tempo que não é
mais ditado pelos outros (a maquinaria que derrubava árvores; a sugestão de capturar o tucano; ou o rigor dos
“dias quadriculados” – ou seja, o domínio do cálculo, não-infantil, portanto, não-emocional).
Por fim, diante da perda do boneco do macaquinho, e da substituição por seu chapéu que o comandante
do avião achara, o Menino finalmente se sentiu “...para fora do caos pré-inicial, feito o desenglobar-se de uma
nebulosa”. A metáfora representa a dimensão emocional como uma nuvem das que o Menino vira da janela do
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avião, só que agora saindo de sua esfera fechada (“desenglobar-se”). O Menino já se sente dominando sua
própria emoção por meio da imaginação: parou de chorar quando imaginou o boneco do macaco passeando no
“...fundo escuro do mundo (...), aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam”. Ou seja, assim como a
epifania pode ser vista como contato do espectador-leitor com o belo, o autodomínio emocional, com a calma
que disso resulta, é um trabalho da imaginação: “E era o inesquecível de-repente, de que podia trespassar-se,
e a calma, inclusa. Durou um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum, na gente não cabe: a paisagem,
e tudo, fora das molduras. Como ele estivesse com a mãe, sã, salva, sorridente”. O “parado que não se acaba”
é a calma advinda do domínio imaginativo dos acontecimentos, bons ou maus, que atingem o homem-menino,
ou o homem-do-coração. É essa a grande lição no aprendizado emocional do Menino-protagonista, é a mais
completa resposta a sua indignação na aurora do dia em que ele saltou da cama para ver sua derradeira e
conclusiva epifania: o tucano dos cimos. Ali, naquele momento, ele pensara:
...a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham
depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas (...). Ou
porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam (...) não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas,
acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo
enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas já estavam caminhando para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas...13
Nesse trecho, a própria forma de colocar a questão já determina sua resolução: quem percebe que não
se pode apreciar as coisas bonitas e boas já as isolou como objetos privilegiados da alegria, e já delimitou os
inimigos de tal alegria. Na dinâmica dos acontecimentos da vida em constante devir, tanto a brusquidão
quanto a previsão, tanto a sensibilidade demasiada a coisas ruins quanto a sensação de eterna incompletude
ou, por fim, a melancolia prévia do inevitável término de todas as coisas – todas essas posturas são inimigas de
um acesso à alegria, ou seja, às coisas boas e belas. Para combater esses descaminhos, que só levam à tristeza,
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só existe a abertura ao belo da epifania, que é também amor, tanto pelo bonequinho quanto pela mãe. Mas a
epifania especificamente estética – uma estética cosmogônica, evidentemente, em que um vôo de tucano
pode curar a melancolia de um Menino – é um ponto de ligação com a força positiva da alteridade. Com a
ajuda do trabalho da imaginação, bastante humano, por fim logra-se alcançar a calma íntima que dá acesso à
alegria autônoma, desligada do burburinho do mundo e dos outros que agem de forma maquinal. Bons ou
ruins, os acontecimentos podem, daí em diante, passar pelo crivo do Menino que, assim como o artista – dois
exemplos de “homens dos começos” –, tem acesso à sensação auroral, uma forma de epifania, de visão divina
que, amparada pelo trabalho individual da imaginação, permite a saudável colheita daquilo de que se gosta no
inevitavelmente caótico fluxo do devir.
BIBLIOGRAFIA
CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães Rosa – Fortuna Crítica.
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983.
COELHO, Nelly Novaes. “Guimarães Rosa e o ‘Homo Ludens’”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães Rosa
– Fortuna Crítica. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983.
LISBOA, Henriqueta. “O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães
Rosa – Fortuna Crítica. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983.
ROSA, Guimarães. “As margens da alegria”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova
Aguilar, 1994.
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_______“O espelho”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.
_______“Os cimos”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.
ROSENFIELD, Kathrin H. Os descaminhos do demo – Tradição e ruptura em “Grande Sertão: Veredas”. Rio de
Janeiro/São Paulo, Editora Imago/Edusp, 1993.
NOTAS
1
Rosa, Guimarães. “O espelho”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994, p. 442.
2
Candido, Antonio. “O homem dos avessos”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães Rosa – Fortuna Crítica. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1983, p. 295.
3
Coelho, Nelly Novaes. “Guimarães Rosa e o ‘Homo Ludens’”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães Rosa – Fortuna Crítica. Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983, p. 257.
4
Lisboa, Henriqueta. “O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa”, in Coutinho, Afrânio (org.). Guimarães Rosa – Fortuna Crítica. Rio
de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983, p. 172.
5
Rosa, Guimarães. “As margens da alegria”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994, p. 389.
6
Idem, ibidem.
7
Idem, ibidem.
8
Entre as várias passagens em que Kathrin H. Rosenfield trata do lado negro ou do ódio, cite-se a seguinte:
“Esta primeira recordação infantil – totalmente isolada e despojada de qualquer racionalização – coloca a vida de Riobaldo sob o signo de
um ódio-sem-razão que tende virtualmente a escapar das regras racionais e do entendimento consciente”. Rosenfield, Kathrin H. Os
descaminhos do demo. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Imago/Edusp, 1993, p. 104.
9
Rosa, Guimarães. “Os cimos”, in Ficção completa – Volume II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994, p. 509.
10
Uso aqui “educação sentimental”, título do romance de Flaubert, não nos sentidos oitocentista ou novecentista franceses, em que o
termo “sentimental” referia-se a uma espécie de simpatia universal entre os homens (no século XVIII) e a vida amorosa (no XVIII e no
XIX), mas no de “educação ou formação emocional”.
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Rosa, Guimarães. “Os cimos”, op. cit., p. 510.
Idem, p. 513.
13
Idem, p. 511.
11
12
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ANDRÉ VINÍCIUS PESSÔA (DOUTORANDO UFRJ)
Resumo:
Guimarães Rosa, no diálogo com o crítico Günter Lorenz, realizado em um congresso de escritores latinoamericanos, em 1965, afirmou: “Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna,
de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar
o que a lógica da língua obriga a crer”. As confissões de Rosa a Lorenz deixaram muitas evidências sobre a maneira
que o escritor pensava (e sentia) a tensão dinâmica que move a musicalidade das palavras. A escrita de Rosa se
afina com a possibilidade concreta de ser pensada a partir da Música. A Música das Musas, dos sons que prescindem
do silêncio. Sons que formam palavras que nomeiam coisas e dão sentido ao mundo. Dizeres que remetem a um
modo inventivo de habitar a linguagem, digno de um poetar pensante, isto é, um retirar das palavras o seu canto
original.
A MUSICALIDADE NA OBRA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Música, sendo corpo e evento sonoro, se faz no encontro de ser e tempo. Já a musicalidade pode ser
vista como anterior à música. Uma potência que propicia ao homem fazer música. Nesse sentido é que discorrer
sobre a musicalidade na literatura é o mesmo que falar do que anima não só o escritor na consecução de sua
obra, mas também o leitor, quando este se depara com o texto. O que irá, então, determinar a musicalidade de
um texto? Seria correto afirmar que todos os textos contêm musicalidade e que alguns são mais aptos ao leitor
fazer de sua leitura uma experiência musical?
João Guimarães Rosa, dialogando com Günter Lorenz, afirmou: “Sou precisamente um escritor que
cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao
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outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer” (ROSA apud
LORENZ, 1983, p. 88). As confissões de Rosa a Lorenz deixaram muitas evidências sobre a maneira que o
escritor pensava (e sentia) a tensão dinâmica que rege a musicalidade das palavras.
A obra de Rosa, “Corpo de Baile”, ao encontrar-se tão próxima da poesia em sua essência e origem,
contém uma disposição musical que transparece e faz soar sentidos inauditos. Quase desnecessário afirmar
que é preciso gostar para que se dê um acolhimento amoroso. Gostar, verbo que vem da mesma raiz do grego
geúo, que quer dizer provar ou experimentar. Ler em voz alta ou silenciosamente. Circular na tríade que envolve
o leitor, a leitura e o ato de ler. Musicar a obra literária na medida em que o ritmo da leitura venha trazer
inevitáveis sugestões melódicas e harmônicas. Aproximar-se da sonoridade de cada palavra.
O encadeamento, a abertura das vogais e a alternância consonantal por si só são elementos que têm
como propriedade dar ao leitor a musicalidade do texto. No entanto, a obra de Rosa oferece mais. Faz vibrar a
celebração poética dos sons constituídos em palavras. Sons que prescindem da apreensão representacional do
mundo. Palavras que confluem “na alegria de tudo, como quando tudo era falante, no inteiro dos camposgerais...” (ROSA, 1965, p. 67). Poética no transe de sua sagração sonora, onde o nome e a coisa nomeada se
fundem. Unificam-se concomitantemente no mesmo destino cósmico sua presença e seu som. Consagram-se.
Dirce Riedel, na tentativa pioneira de uma investigação em torno da musicalidade da obra de Guimarães
Rosa, escreveu, em 1962, uma tese chamada “O Mundo Sonoro de Guimarães Rosa”. Seu maior mérito foi o
de levantar questões sobre a importância do reconhecimento de um operar musical na escrita de Rosa. A
autora, na introdução de seu texto, observou no escritor uma disposição para “para se deter diante das coisas,
se colocando dentro delas” (RIEDEL, 1962, p. I).
Ao tocar na questão da “multiplicidade dos ruídos do sertão” (RIEDEL, 1962, p. 48), Riedel provocou
uma abertura para que seja pensada a relação ordenadora que une o evento ruidoso e a música. A obra de
Guimarães Rosa, enquanto um cosmo ordenado, acata o ruído e o faz soar como música? O que é o ruído?
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Seria a “submúsica” (ROSA, 1969, p. 84) mencionada por Rosa no poema “Buriti”? Afirma a autora que “as
imagens suscitadas pelos ruídos ambientes constroem o fundo permanente na narrativa, sustentando a atmosfera
sonora do sertão” (RIEDEL, 1962, p. 72). Martin Heidegger, em um pequeno trecho do seu livro “Introdução
à Metafísica”, toca na questão do ruído. O pensador escreveu que “é muito difícil e para nós insólito descrever
o ruído puro, porque não é o que ouvimos comumente. Com relação ao simples ruído ouvimos sempre mais”
(HEIDEGGER, 1999, p. 61). José Miguel Wisnik, em “O Som e o Sentido”, afirma que a noção de ruído
varia de acordo com o contexto em que este ocorre. As teorias da informação, que lidam com categorias como
mensagem, sinal, emissão e recepção, por sua vez, o vêem como um elemento desordenador. O ruído, se
tomado pela ótica da instrumentalidade, é exemplo de uma interferência indesejável, algo que impede o fluxo
da comunicação. A arte musical, que o recalcou durante séculos, tornou a acolhê-lo no século XX.
Há na essência do ruído uma duplicidade. Ela sugere o trânsito entre a deformidade caótica e a ordem
cósmica. “O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para
nós a todo o momento através de freqüências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para
extrair-lhes uma ordenação” (WISNIK, 2000, p. 30), afirma Wisnik. Para ele, o reconhecimento de uma ordem
entre os ruídos do mundo é a base constitutiva para a formação das sociedades. No mundo arcaico, onde se
assume a constante luta com as forças caóticas, é sempre a experiência do sagrado que rege a possibilidade de
uma ordenação cósmica. Observa-se que, em todos os povos da Antigüidade, a música, ao desafiar o caos, se
impõe como matriz constituinte de suas cosmogonias. Daí pode-se afirmar, ao inverter a frase, que todas as
cosmogonias originárias são fundadas pela música. Wisnik aponta que, através da indiferenciação da dor e da
alegria na música que é tida como primitiva, o ruído se mostra indivisível em sua musicalidade. Na captação
telúrica dos sons – irradiadores de elementares fluxos de energia – é que nasce a força geradora da ordem do
mundo. Ordem fundada nos rituais sagrados em que os sons se metamorfoseiam nas vozes das deidades.
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Apoiando-se no pensamento do musicólogo Marius Schneider, Wisnik relembra os mitos da
concepção do mundo e observa que neles está sempre embutida uma voz primordial: “O deus profere o
mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta, ou da oralidade em todas
as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito)” (WISNIK, 2000, p. 34).
As emanações sonoras originárias vêm sempre de um vazio, um nada, um não-ser primevo e inominável.
Citado por Wisnik, Schneider afirma que este principiar é como “um fundo de ressonância e o som que dele
emana deve ser considerado como a primeira força criadora, personificada na maior parte das mitologias por
deuses-cantores” (SCHNEIDER apud WISNIK, 2000, p. 34).
O escritor Octavio Paz, ao lembrar que toda criação humana está fundada no ritmo, escreveu que:
“Todas as concepções cosmológicas do homem brotam da intuição de um ritmo original” (PAZ, 1982, p.
72). Segundo Paz, o tempo é encarnado pelo verbo e se mostra nas realizações humanas, regidas
poeticamente. “A frase poética é tempo vivo, concreto – é ritmo, tempo original, perpetuamente se
recriando. Contínuo renascer e tornar a morrer e renascer de novo” (PAZ, 1982, ps. 80 e 81), afirmou. O
ritmo, elemento primordial da música, perpassa e engendra toda e qualquer produção poética. Para Octavio
Paz, o poeta é um mago que, por intermédio do ritmo, encanta a linguagem. “No fundo de todo fenômeno
verbal há um ritmo. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos. Se a
linguagem é um contínuo vaivém de frases e associações verbais regido por um ritmo secreto, a reprodução
desse ritmo nos dará poder sobre as palavras” (PAZ, 1982, p. 64), escreveu Paz.
Em todo o “Corpo de Baile” vê-se o entrelaçamento de sons, sejam musicais ou ruidosos, que irrompem
ritmicamente nas narrativas. No percurso do conto “O Recado do Morro”, além da teia de diálogos entre os
personagens, principais e periféricos, da canção de Laudelim Pulgapé, e dos sons musicais, emitidos pelos
homens em torno da preparação de seus festejos, acontecem em simultaneidade diversos sons da natureza em
sua dinâmica movente. O conto de Rosa, além da trama de vida e morte, protagonizada por Pedro Orósio e
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cantada por Laudelim, possui variados elementos sonoros que ecoam livremente, criando uma atmosfera
própria que envolve os personagens. Esses elementos mostram que em Guimarães Rosa há um parentesco
firme entre a arte de contar estórias e a arte musical. O escritor articula uma armação sinfônica que dialoga
com o universo humano da narrativa. Os sons são constituintes de um operar musical da obra, em que seu
cantador, Laudelim Pulgapé, é o principal solista.
Atuando junto à narração como contraponto ou efeitos, não faltam simples exemplos dessas sonoridades.
Há sons como as “redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem
fumegando com vapor e empurram enxurradas mão de rios, se engolfam descendo por fios de furnas, antros e
grotas, com tardo gôrgolo musical” (ROSA, 1965, p. 6). Há também a passarada, os papagaios que gritam, o
gavião que gutura, “os sofrês cantando claro em bando nas palmas da palmeira” (ROSA, 1965, p. 9) e “o pipio
seriado da codorna” (ROSA, 1965, p. 36). “Da gameleira o passarim, superlim. E, longe, piava outro passarinho
– um sem nome que se saiba – o que canta a tôda hora do dia, nas árvores do ribeirão: – ‘Toma-a-benção-aoseu-ti-í-o, João!...’ ” (ROSA, 1965, p. 22). Nesse trecho, especificamente, a articulação de sentido do canto
dessa ave rara e anônima segue o mesmo processo de composição que nomeou um pássaro bem conhecido, o
comuníssimo bem-te-vi. Poder que preside toda criação poética, acasalando som e palavra.
Relata o “Dicionário Grove de Música” que, originariamente, para a produção de efeitos melódicos na
voz ou em instrumentos musicais, o modelo imitativo era “o canto dos pássaros e outros sons animais, bem
como o choro e as brincadeiras infantis” (SADIE, 1994, p. 592). Na escrita de Rosa, a melodia da palavra
pode ser tanto ouvida em sons involuntários como o “bilo-bilo” (ROSA, 1965, p. 7) do riachinho, motivo
recorrente em sua obra, quanto nos sons produzidos pelo homem, donde se ouve “um carro-de-bois, cantando
muito bonito, grosso – devia de estar com a roda bem apertada” (ROSA, 1965, p. 36). Melodia que também se
encontra no som dos aboios, ouvido pela vaqueirama: “O gado entendia, punha orêlhas para o aboio, olhavam,
às vezes hesitavam” (ROSA, 1965, p. 147). E na música propriamente dita, mesmo que na entonação estranha
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de Seo Alquiste e Frei Sinfrão, que juntos “cantavam cantigas com rompante, na língua de outras terras, que
não se entendia” (ROSA, 1965, p. 25).
A escrita de Rosa é a escuta de uma complexa paisagem sonora. Há nas suas palavras uma gama de
sons que se encontra em uma cadência musical espontânea. A ordem musical dos sons acontece como uma
cosmofonia, um formar-se sonoro que se apresenta poeticamente aos ouvidos. Cabe interpretá-lo conforme
diversas possibilidades de sentido. A ação poética na obra de Rosa se dá em grande parte fundada como
oralidade. Rosa permanece atado ao relato e à preservação intencional do verbo ancestral. Sua prosa poética
tem fortes raízes na música trabalhada pelos poetas e cantadores do sertão. Seu mundo se faz mundo através
de sua musicalidade. Guimarães Rosa, em sua escrita, presta homenagem à fecundidade do mundo auditivo.
No conto “O Recado do Morro”, a arte de Laudelim Pulgapé e o evento da festa contribuem lado a
lado para compor o universo sonoro do conto. Rosa traz para o interior de sua narrativa uma série de elementos
dispersos da cultura popular, situando-os no contexto em que os personagens se movem. Festa, que é nome de
uma das nove musas da “Teogonia” de Hesíodo, no “Corpo de Baile” é o eixo da narrativa de “Uma Estória de
Amor”, além de aparecer em uma espécie de apoteose teatral que envolve os personagens de “A Estória de
Lélio e Lina” e também demarcar a ação do tempo em “O Recado do Morro”. “Alegria da palavra!” (ROSA,
1965, p. 42). A festinha a ser realizada domingo à noite no Azevre rendia preparações. Via-se “nas cafuas,
perto das estradas, em casas quase de cada negro se ensaiava, tocando caixas, com grande ribombo” (ROSA,
1965, p. 43), “era aquêle guararape brabo: rufando as caixas, baqueando na zabumba” (ROSA, 1965, p. 50).
“Os dos ranchos: os moçambiqueiros, de penacho e com balainhos e guizos prendidos nas pernas; grupos
congos em cetim branco, e faixa, só faltando os mais adornos; e a rapaziada nova, com uniforme da guardamarinheira” (ROSA, 1965, p. 50). Luís da Câmara Cascudo, para descrever os ranchos, cita palavras do também
etnólogo Nina Rodrigues: “O Rancho prima pela variedade de vestimentas vistosas, ouropéis e lantejoulas, a
sua música é o violão, a viola, o cavaquinho, o ganzá, o prato e às vezes uma flauta; cantam os seus pastores
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e pastoras, por toda a rua, chulas próprias da ocasião” (RODRIGUES apud CASCUDO, 1972, p. 767). Havia
no Azevre o pessoal do Mascamole e do Tu, “chefes, tribuzando no tambor: tarapatão, tarapatão, barabão,
barabão!...” (ROSA, 1965, p. 51). Também, em festa, “vinham passando uns vinte sujeitos, todos compostos
nos trajes brancos e com os capacetes – era a Guarda Marinheira – amanhã haviam de dansar e cantar, rendendo
tôdas as cortesias à Nossa Senhora do Pretos” (ROSA, 1965, p. 56).
Festa, para o pensador Hans-Georg Gadamer é “coletividade e é a representação da própria coletividade,
em sua forma acabada” (GADAMER, 1985, p. 61). O pensador afirma que a experiência da festa é sempre
para todos. Festejar, dessa forma, se determina pela reunião. Reunir-se em comemoração de algo. Visto como
uma arte, este ato comemorativo engloba certos costumes tradicionais que conduzem sempre a um retorno
simbólico às origens das ações coletivas. A ordem temporal comunitária das festas vem a partir deste comungar
de ações. O tempo abandona o caráter sucessivo que o cinde e se torna cíclico. Ao livrar-se da tirania do
indivíduo, o tempo de uma festa se distingue radicalmente do que jaz na objetividade cotidiana. Deixa de ser
tanto o tempo de uma pobre monotonia quanto o de um preenchimento excessivo, dimensões comumente
aferidas pelos limites das individualidades. Gadamer mostra a identidade que há entre o corte temporal da
festa e a experiência da obra de arte. A celebração, “pela sua própria festividade, dá o tempo, e com a sua
festividade faz parar o tempo e leva-o a demorar-se – isto é o festejar” (GADAMER, 1985, p. 65). O mesmo
acontece com o tempo das obras de arte, tempo que nas palavras de Gadamer, “deixa-se descrever muito bem
com a experiência do ritmo” (GADAMER, 1985, p. 63). Para o pensador, é esta a experiência que unifica o
homem e a obra de arte. Se por um lado há o ritmo interno do homem, em sua intimidade existencial, por outro
haverá o ritmo da obra, que se resume em seu tempo mais próprio de ser. Demorar-se na obra é que permitirá
ao homem penetrar no seu universo particular, podendo deter-se em uma correspondência rítmica ao celebrála em seu tempo infinito. Não é por acaso que Rosa, autor de obras tão celebradas e festejadas, finda a
fabulosa narrativa de “Grande Sertão: Veredas” com uma lemniscata, sinal que simboliza o infinito. Confessou
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Rosa a Lorenz: “Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não
conta” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 72).
BIBLIOGRAFIA
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro S. A., 1972.
GADAMER, Hans-Georg. A Atualidade do Belo: a Arte como Jogo, Símbolo e Festa. Tradução de Celeste Aída
Galvão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro Ltda, 1999.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Coleção Fortuna Crítica. Direção de Afrânio Coutinho.
Seleção de Textos: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A. Pró-Memória –
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BERILO LUIGI DEIRÓ NOSELLA (MESTRANDO – PUC/SP)
Resumo:
O artigo que aqui se propõe, nasce de um estudo mais amplo que procurou estabelecer pontos de análise
comparativa entre o modernismo italiano e o modernismo brasileiro. Porém, buscou fazê-lo não pelo caminho das
influências diretas, tanto formais quanto ideológicas, mas a partir da visão de dois críticos sobre suas próprias
experiências: Gramsci, no caso italiano e Candido, no caso brasileiro. O pensamento de um iluminando e
complementando o do outro nos levou à um leitura da obra de Guimarães Rosa estabelecendo relações entre suas
inovações formais, no âmbito da linguagem, e os conteúdos sociais e ideológicos presentes no nosso modernismo.
Confrontar a experiência crítica de Gramsci e Candido nos permitiu fazê-lo sem cair em facilidades deterministas,
numa tradição dialética filosófica herdeira de Hegel e Marx, mas apurando um olhar sobre a obra de Rosa que se
detém sobre os recônditos de sua linguagem ao mesmo tempo em que expande esse olhar para a compreensão de
nossa realidade social.
ANTONIO GRAMSCI E A MODERNIDADE “DELES”;
ANTONIO CANDIDO E A “NOSSA” MODERNIDADE.
O presente texto trata, a partir de uma analise comparativa entre o pensamento crítico de Antonio
Gramsci e Antonio Candido, das relações de tensão dialética entre o Regional e o Universal no processo de
Formação de uma Literatura Moderna Nacional Italiana, na obra de Luigi Pirandello, e os paralelos deste
mesmo processo de Formação na Literatura Brasileira, na obra de Guimarães Rosa.
“A sucessão das três fases – Pirandello siciliano, Pirandello italiano, Pirandello europeu e internacional – é,
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conforme Gramsci, a fonte do crescente relativismo moral e psicológico do dramaturgo, que perdeu
gradualmente o chão seguro debaixo dos pés, começando a demandar da identidade do mundo e de si
mesmo.” (Carpeaux, 1968. p. 225)
Dessa passagem de Otto Maria Carpeaux sobre Pirandello e Gramsci nascem as motivações desse
trabalho. Uma inquietação com relação a uma visão negativa em relação às possíveis fases do autor Pirandello
por Gramsci e uma dúvida quanto a um certo tom pejorativo que a sucessão das ditas três fases poderia conter
é o tema deste. Gramsci, enquanto teórico e crítico contemporâneo à Pirandello, teria, e porque, ressalvas
quanto à qualidade artística de Pirandello?
A partir da passagem de Carpeaux, poderíamos deduzir que Gramsci entende Pirandello inicialmente
como um autor Regional (siciliano) e que sucessivamente passaria dessa condição para a de um autor Nacional
(italiano) e Internacional (europeu) e mais, nesse processo seu valor diminuiria. Na verdade aqui se apresentam
duas questões distintas mas interligadas: 1) há um aspecto valorativo em Gramsci na relação entre um caráter
regional da literatura e um caráter universal em Pirandello? Por que?; e 2) admitindo-se essas fases em Pirandello,
é possível julgá-las evolutivamente e qualitativamente?
As questões me parecem pertinentes em vários aspectos: num primeiro momento numa análise das
multi-faces do autor Pirandello, tanto a respeito da fases quanto dos diferentes gêneros que este autor visitou
(o Conto, o Romance e o Teatro), donde poderíamos afirmar que essas fases, em algum nível, se relacionam
com esses diferentes gêneros. Sabemos que Pirandello possui uma maior produção de Contos numa “primeira”
fase, que coincidiria com a fase regional; posteriormente a produção de Romances, “segunda” fase nacional; e
finalmente a produção dramatúrgica, “terceira” fase internacional. Aqui, a posição de Carpeaux sobre Gramsci,
se apresenta polêmica uma vez que a tradição crítica considera a fase final, dramatúrgica, de Pirandello como
a sua fase áurea. Teria Gramsci se equivocado tão profundamente no julgamento de seu contemporâneo, ou
poderíamos afirmar que o equivoco se encontra na leitura de Carpeaux?
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Num segundo momento, essa relação qualitativa entre o regional, o nacional e internacional se explicaria,
na visão de Carpeaux, por se tratar de uma Itália em início do século XX, recém unificada, e, mais particularmente
ainda, no caso de Pirandello e Gramsci, ao se tratar de uma Sicília, que possui claro caráter colonial, a encontrar
seu lugar nessa unificação. Impossível não pensar em relações (tanto de aproximação quanto de afastamento)
entre esse quadro e o nosso Brasil, que busca a formação de um sistema literário que seja nosso, numa longa
e conturbada história de nossa cultura e, portanto, também de nossa literatura.
Inicie mos olhando para a obra de Gramsci. Gramsci não deixa de perceber o caráter renovador,
porque não dizer moderno, da obra de Pirandello, porém, considera esse elemento renovador atado ao seu
aspecto cultural, mais do que artístico. Mesmo quando valoriza o elemento estético no teatro pirandelliano,
refere-se mais ao encenador e ao autor dialetal que ao literato. Assim, poderíamos supor que Gramsci não
consideraria Seis Personagens em Busca de um Autor como a grande obra prima de Pirandello. Talvez continuasse
achando Liolá ou alguns contos do autor como suas obras fundamentais. É aqui que gostaríamos de olhar a
questão de uma outra forma. Não acreditamos que o aspecto formal universal de Pirandello o “debilite” ou o
relativize, acreditamos que o autor se encontra em perfeita harmonia com a compreensão das transformações
globais da realidade que o cerca. Trata-se, aqui, de complexificar logicamente uma relação que beira o
determinismo, a relação entre forma estética e conteúdo social. Ao mesmo tempo, abrir nossos olhos e aprender
com Gramsci a perceber o caráter ideológico da dissociação entre categorias como “Qualidade Estética” e
“Conteúdo Histórico”.
Para avançar neste debate teórico, desviemos momentaneamente o olhar para o Brasil e para Antonio
Candido. Com esse desvio de olhar, procuremos compreender como essa tradição crítica opera em nosso país
e em nossa crítica literária. Os pontos centrais da compreensão da literatura brasileira e da metodologia crítica
de Candido estão presentes na Introdução à sua obra Formação da Literatura Brasileira. Sabemos que essa
finaliza com o surgimento em nosso horizonte literário de Machado de Assis, mas como queremos olhar um
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pouco mais a frente, para o Modernismo e a Contemporaneidade, apenas passaremos por ela para destacar
uma ou outra questão fundamental.
Na obra em questão, Antonio Candido (1969) desenvolve o conceito de “sistema literário”. Significa
que uma literatura, como, por exemplo, a literatura brasileira, ou a literatura italiana, ou a literatura latinoamericana, só existe quando se estrutura enquanto sistema, ou seja, quando é possível perceber o surgimento
sistemático de obras “esteticamente válidas”. Obras que sejam capazes de captar socialmente nossas estruturas
essenciais e particulares de forma “esteticamente válida”. Porque isso nos é fundamental? Ao pensar desse
modo, Candido subverte a lógica da relação entre uma cultura estrangeira e uma cultura nacional, como no
caso de um Brasil colonizado, pois para ele todas as obras que aqui demonstram alguma influência, seja
cultural, seja estética, passam a fazer parte de um processo histórico de formação desse sistema. A literatura
portuguesa, dessa maneira, não é uma literatura estrangeira, faz parte da história da literatura brasileira. Na
própria obra, Candido afirma (1969, p. 94):
Uma literatura Latino-Americana não passa a existir a partir do momento em que tem condições de estilizar
a realidade da América. Este é apenas um pressuposto básico. Ela só existe quando é capaz de fecundar os
instrumentos de outras culturas matrizes e aplica-los à América. Creio que a literatura nacional começa
quando se inaugura uma tradição de produzir, de maneira sistemática, obras esteticamente válidas. Mas
uma obra só pode ser esteticamente válida se, além de incorporar uma função social adequada, realizando
uma seleção adequada dos elementos da realidade, alcança pelo menos um pouco da universalidade própria
da função total. Quis mostrar nesse livro [Formação da Literatura Brasileira] que era ridículo afirmar que o
Neorealismo era Europa e que o Romantismo era América.
Assim como Gramsci, Candido também vem de tradição marxista, e assim como para Gramsci, a
questão cultural é fundamental. Porém, diferente de Gramsci, Candido se “especializou” como crítico literário
e percebe que a questão cultural se expressa também na forma estética, e que esse espelhamento é, na verdade,
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essencial. Assim, para Candido, além de ser fundamental à obra o retrato de seu tempo e sua superação, é
necessário que ela o faça de uma forma esteticamente válida1. De certo modo, Gramsci também aponta para
esse caminho, mas ao se voltar com maior preocupação para a questão cultural, corre o risco de cair em
“equívocos” quanto ao julgamento estético.
Ainda, no âmbito da Formação da Literatura Brasileira, como já dito, a obra finaliza com o surgimento de
Machado de Assis, pois, para Candido, nesse momento se vislumbra a concretização de um “sistema literário”
brasileiro. O Brasil consegue incorporar dialeticamente os matizes externos das tradições literárias que nos
servem de modelo e formação, numa literatura que nos retrata, que fala de nós, e isso de forma sistêmica. Já
podemos perceber, a partir de Gramsci e Candido, que o antropofagismo oswaldiano não é uma “descoberta
da América”, mas sim, muito mais valioso por sinal, uma proposta cultural e estética profundamente
conseqüente e perfeitamente inserida em nosso processo historiográfico literário.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Philosophicamente.
(...)
“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
(...)
Foi porque nunca tivemos grammaticas, nem collecções de velhos vegetaes. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano,
fronteiriço e continental. Preguiçosos no mappa mundi do Brasil.
(...)
“Filiação. O contacto com o Brasil Carahiba. Ou Villeganhon Print Terre. Montaigne. O homem natural.
Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, á Revolução Bolchevista, á Revolução surrealista e ao bárbaro
technizado de Keyserling. Caminhamos.
(...)
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro emprestimo, para ganhar comissão. O rei analphabeto dissera-lhe: ponha
isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o emprestimo. Gravou-se o assucar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em
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Portugal e nos trouxe a lábia,
(...)
Nunca fomos cathechisados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Imperio. Fingindo de Pitt. Ou
figurando nas operas de Alencar cheio de bons sentimentos portuguezes.
(...)
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e
vingativos como o Jaboty”
Oswald de Andrade
Em Piratininga.
Anno 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
(Trechos retirados do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado na Revista de Antropofagia,
São Paulo, nº 1, 1928 in BELLUZZO, A. M. de M., 1990, p. 268-273.)
Embora Candido finalize sua obra com Machado de Assis, em escritos mais recentes vai redirecionar
o olhar para o modernismo, ao afirmar:
Talvez a única divisão essencial da literatura brasileira seja a que ocorreu em 1922 com a semana de arte
moderna, realizada em São Paulo, mas exprimindo anseios e tendências difusos nos maiores centros do
país. (Candido, 1993, p. 117)
Qual a razão dessa guinada? É fundamentalmente a continuidade. Se, após Machado de Assis houve
uma ruptura, uma fissura na continuidade do processo de Formação, representada pelo Parnasianismo (ainda
assim constituinte do processo), o Modernismo a vem sanar. O mérito não está exclusivamente nele (no
modernismo de 22), mas na sua continuidade. Candido percebe que, após o Modernismo, a incorporação dos
modelos externos se completa. Não que eles deixem de existir, porém cria-se um quadro de referências
consistente na nossa literatura, de forma que não é mais necessário estarmos constantemente recorrendo a
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modelos importados para compreender os nossos.
Se, em seguida, considerarmos não estes fundadores [modernistas de 22], mas um poeta mais moço, como
Carlos Drummond de Andrade [que publica seu primeiro livro em 1930], não precisamos recorrer a origens
estranhas para compreendê-lo; quando existem, elas se pressupõem ou combinam às sugestões constitutivas,
hauridas nos predecessores, há pouco mencionados. (Candido, 1993, p. 118.)
Antonio Candido percebe2 a Formação não apenas no âmbito cultural, mas também no âmbito formal,
no âmbito da linguagem, aliás, percebe mais, essa linguagem que se forma do contato do regional com o
internacional é a nossa cultura, no caso de um país colonial como o nosso. É interessante atentarmos ao que
Candido fala de Adoniran Barbosa, músico e sambista popular de São Paulo muito criticado pelo seu cantar
(falar) “errado”:
... já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que
é o sal de nossa terra, Adoniram colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as
melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas se aliaram
com naturalidade às deformações. (Candido, 1993. p. 211)
O que se dá e deve se dar é efetivamente a criação de uma outra linguagem, aqui compreendida como
um tratamento formal que dê conta de nossa realidade social. Essa linguagem se liga e cria em nós um laço
com nossas raízes (essas também estrangeiras) e, ao mesmo tempo, se projeta artisticamente para fora, ou
seja, é esteticamente conseqüente com uma arte universal e com nossa realidade particular. Assim, o
antropofagismo moderno poderia ser apontado como efetivamente um caminho para essa literatura, caminho
conseqüente e histórico, mesmo se manifestando como ruptura em relação à tradição literária. Guimarães
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Rosa poderia também ser apresentado como um grande exemplo disso.
Candido observa, em Guimarães Rosa, a presença dessa dialética modernista funcionando de modo
consistente. Ele representaria a concretização desse projeto nacional, não um projeto de nacionalismo imposto
de fora para dentro, e sim construído de dentro para fora:
No mundo diverso da ficção regionalística, feita quase sempre “de fora para dentro” e revelando escritor
simpático, compreensivo, mas separado da realidade essencial do mundo que descreve; e que enxerta num
contexto erudito elementos mais ou menos bem apreendidos da personalidade, costumes, linguagem do
homem rústico, obtendo montagens, não a integração necessária ao pleno efeito da obra de arte.
Em Grande Sertão: Veredas, o aproveitamento literário do material observado na vida sertanista se
dá “de dentro para fora”, no espírito, mais que na forma. (Bolle, 2004, p. 191.)
Por meio da construção de sua linguagem, Rosa criaria um tempo-espaço brasileiro, síntese das influências
múltiplas externas e internas formalizadas numa criptografia da história do Brasil, para utilizarmos um termo
caro a Willi Bolle (2004). Por meio de sua narrativa, Guimarães não procura uma imitação caricatural do
nosso interno, porém descortina os impasses que existem numa cultura multifacetada, uma cultura que não é
uma (e alguma o é?) e que se ressente de uma partição eterna. Assim, não mais se trata de tampar as fissuras
de nossas fragmentadas e múltiplas influências culturais, mas de assumí-las como nossa cultura, e não fazê-lo
de forma “romântica” e idealizada, mas encarando seus impasses.
Isso é o que faz Gramsci ao pensar a relação entre o dialeto e o italiano oficial. A Gramática para
Gramsci é histórica, constrói-se no processo cotidiano de comunicação da sociedade. Assim, uma gramática
“...é a ‘fotografia’ de uma determinada fase de uma linguagem nacional (coletiva), historicamente formada e em contínuo
desenvolvimento...” e como fotografia pode ser paralisada. Desse modo, o caso da Itália se apresenta como
exemplar para Gramsci, visto que, no processo de unificação, uma gramática foi imposta (como vontade
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política) a um conjunto de culturas e linguagens díspares. Não que Gramsci se coloque contrário a esse
processo de unificação. A formação de uma Nação Italiana é vista por ele como positiva e necessária, porém
é preciso ter muito claro como se dá esse processo, pois não se pode utilizá-lo como instrumento de dominação
de classe. Gramsci vê a existência de duas gramáticas, uma normativa e uma imanente: a normativa seria o
italiano instituído como língua nacional e oficial; a imanente seria os diferentes dialetos que se formaram
tradicionalmente em suas regiões e ali se transformam cotidianamente. A gramática normativa é um ato
político, a imanente é histórica.
Quantas formas de gramática podem existir? Várias, certamente. Há aquela “imanente” à própria língua,
que faz uma pessoa falar “de acordo com a gramática” sem sabê-lo, tal como o personagem de Molière
falava em prosa sem sabê-lo.
(...)
Na realidade, além da “Gramática Imanente” a toda língua, existe também, de fato, ou seja, ainda que não
escrita, uma (ou mais) gramática “normativa”, constituída pelo controle recíproco, pelo ensinamento
recíproco, pela “censura” recíproca, que se manifestam nas perguntas: “O que você entendeu ou quer
dizer?”, “Explique-se melhor” etc., com a caricatura e a ironia, etc. Todo este conjunto de ações e reações
conflui no sentido de determinar um conformismo gramatical, isto é, de estabelecer “normas” e juízos de
correção e da incorreção etc. (Gramsci, 2002, p. 142).
Gramsci enxerga a necessidade das duas gramáticas. Valoriza, entretanto, a histórica ao procurar
preservar sua importância enquanto formação e meio de expressão diretamente ligada às tradições que a
gerou. Percebe, também, que não basta ao homem de uma determinada região conhecer seu dialeto, pois uma
vez instituída uma gramática normativa, a ignorância dessa pode funcionar como um instrumento de dominação.
Aqui, percebemos novamente o pensamento dialético gramsciano. Não se trata de, instituída a língua
italiana, impô-la sufocando as manifestações lingüísticas dialetais próximas da história e da cultura de cada
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região, pois a desconexão com essa história é alienante. Além disso, o povo de cada região precisa manter viva
sua história, sua cultura e suas tradições, devendo, portanto, aprender seu dialeto e expressar-se por meio
dele. Porém, manter as camadas populares da sociedade na ignorância de uma língua nacional instituída é um
instrumento alienante e negar esse instrumento é também estratégia de dominação de classe.
Um grande exemplo é uma cena do filme Pai Patrão dos irmãos Taviani. Galvino, um garoto “caipira”
(para aproximá-lo de nós), aos poucos percebe o poder de libertação da língua culta, no caso do filme
representada pelo latim (impossível melhor exemplo), que lhe é ensinada pelo amigo “da cidade” (nada menos
que Florença) no exército. Enquanto fazem um treinamento de tanques de guerra, comunicam-se por rádios
numa “aula” de latim e, ao final da cena, questionado sobre suas origens, Galvino cita um trecho da Eneida
(em latim) para expressar a impossibilidade de satisfazer o amigo e lhe contar o que traz dentro de si, sua vida,
sem renovar uma imensa dor. Ainda ao final do filme, o Galvino “real”, em “depoimento”, justifica seu
retorno à sua terra pois, mesmo com as possibilidades que o continente lhe oferecia, tinha medo de, longe de
sua terra, de sua língua, de seu povo, ficar “mudo”.
Um paralelo, encontramos na obra Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa (1984), com a saída
promissora de Miguilim, possibilidade de ver o mundo, e a necessidade do retorno de Manuelzão, que conhece
já o mundo todo. Se voltarmos a olhar para a obra Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, podemos, agora,
tomá-la como possibilidade de dialetizar essa relação, num possível modelo gramsciano, mesmo indo para
além dele, mais do que de contestá-lo. Guimarães não fala como o “caipira”, nem como o “da cidade” e por
isso constrói sua linguagem. Claro que não estamos falando de uma criação inconseqüente, ela se dá
criteriosamente, se não o romance seria ilegível. Mas, no que tange a essa linguagem, percebe-se que não é um
romance de fácil leitura, e acreditamos, como nos mostra Willi Bolle (2004), que essa dificuldade é estratégica.
A dificuldade da forma de Grandes Sertão: Veredas, experimentada por todos os leitores sem exceção, é
estratégica. Essa dificuldade pode ir até o ponto de o texto ser qualificado como “incompreensível” No
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ensaio Sobre a Inteligibilidade (1800), que traz uma reflexão básica sobre o problema, Friedrich Schlegel
esclarece que a compreensibilidade entre os homens não pode ser considerada garantida, uma vez que a
literatura e a filosofia realizam constantemente experimentos “sobre a possibilidade ou impossibilidade”
da “comunicação das idéias. (Bolle, 2004. p. 384).
Estamos tratando aqui, para além de Gramsci, da questão formal e estética. Porém, novamente,
poderíamos contradizer esse ponto sem negá-lo. Essa dificuldade da forma, esse emperro no diálogo, essa
inversão de que estamos falando é retrato nosso, diz respeito à dificuldade de diálogo cultural num país
colonizado de grandes diferenças sociais e de classe. Trata-se, por fim, de perceber que a oposição formal de
linguagem entre o “caipira” e o “da cidade” não é apenas cultural, mas sim histórica, política e de classe.
No caso do romance de Guimarães Rosa, a dificuldade de compreensão expressa um problema que não é
apenas literário ou estético. A obra coloca em cena uma falta de entendimento que é social, histórica e
política. O pseudodiálogo entre o narrador sertanejo e o interlocutor letrado – que é na verdade um
imenso monólogo – é uma encenação irônica, com papéis invertidos, da falta de diálogo entre as classes
sociais. O descaso dos donos do poder para com o povo humilde, em que pesam quatro séculos de
escravidão, representa um imenso atraso para a emancipação efetiva do país. (Bolle, 2004, p. 383-384.)
A negação da possibilidade de entendimento lingüístico poderia muito bem ser compreendida como a
impossibilidade de diálogo que o mundo arcaico encontra com o mundo moderno. O drama de Pirandello,
portanto, é sim regional, mas nos atinge naquilo que temos de universal, nossa incapacidade de sermos “uno”
no mundo global. E se olharmos novamente para a estrutura do grande monólogo expresso no pseudodiálogo
entre o narrador sertanejo e o interlocutor letrado, proposta de Willi Bolle, em o Grande Sertão: Veredas, não
estaríamos olhando também para essa fragmentação da realidade que se formaliza na linguagem cunhada por
Guimarães Rosa e na estrutura narrativa de seu romance?
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Assim, partindo de Gramsci, e continuando adiante com Cândido, retomamos a importância dos artistas
e da arte moderna tanto culturalmente quanto esteticamente. Mesmo se tratando de um autor “pós”modernidade, Guimarães, como vimos, apresenta raiz nessa tradição. Nesse percurso, amadurecemos a
idéia de que reacender o pavio da experiência moderna em nossos dias e em nosso país, não é apenas uma
determinação estilística, mas também retomar as razões e sentimentos que essa experiência estética traz
consigo. Acreditamos, assim, dar continuidade a um projeto estético, cultural, político, econômico, portanto,
um projeto de vida.
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SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
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NOTAS
1
Os ensaios O Cortiço e Dialética da Malandragem são exemplares da fundação dessa tradição em nossa crítica literária (veja Candido, 1993)
2
E ao percebê-lo, abre portas para novos olhares sobre o Modernismo. Tomemos como exemplo a proposta, claramente conseqüência
dessas portas abertas, de análise que Schwartz (2001, p. 22-23) nos apresenta:
“Num estudo sobre Macunaíma, tratando de situar o livro, Carlos Eduardo Berriel liga o nacionalismo de 22 ao setor da oligarquia cafeeira que,
além de plantar, buscou disputar aos capitais imperialistas a área de comercialização, que era a mais rendosa do negócio. O argumento vai além da conhecida
proximidade entre os Modernistas e algumas famílias de grandes fazendeiros: sugere uma certa homologia entre a estética de Mário e a experiência acumulada
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de uma classe...
(...)
...um poeta não melhora nem piora por dar forma literária à experiência de uma oligarquia: tudo está na conseqüência e na força elucidativa das suas
composições. Não se trata de reduzir o trabalho artístico à origem social, mas de explicitar a capacidade dele de formalizar, explorar e levar ao limite revelador
as virtualidades de uma condição histórico-prática; sem situar o poema na história, não há como ler a história compactada e potenciada dentro dele, a qual é
o seu valor. Hoje sabemos que a hegemonia do café já não tinha futuro e terminou em 30, o que naturalmente não atinge a poesia de Oswald, que está viva.”
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CAMILLO CAVALCANTI (UFRJ/CAPES/UFF)
Resumo:
Na obra de Guimarães Rosa, o pluri-significado entrevisto por diversas possibilidades de leitura reclama
incursões em muitas áreas do conhecimento, caso seja pertinente elucidar algumas matrizes do saber, pensadas pelo
leitor. A questão detentora desse trabalho e, em certa medida, dos estudos rosianos diz respeito à busca pelo
entendimento da articulação desse manancial teórico que subjaz, ao menos como hipótese, no texto rosiano. Desse
modo, três veredas, percebidas nas linhas e entrelinhas do texto rosiano, serão encaminhadas como propostas de
leitura integrada, cujo bojo admita, e por isso justifique, interpenetrações e diálogos: a) Fichte, para discutir a
posição dos personagens; b) Freud, para representar o filho seduzido pelo pai ; c) Heidegger e os pré-socráticos, para
visitar o pensamento mítico alógico.
POSIÇÕES E TRANSIÇÕES EM “A TERCEIRA MARGEM DO RIO”
[...] o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo.
João Guimarães Rosa.
Na obra de Guimarães Rosa, o pluri-significado entrevisto por diversas possibilidades de leitura reclama
incursões em muitas áreas do conhecimento, caso seja pertinente elucidar algumas matrizes do saber, pensadas
pelo leitor. A questão detentora desse trabalho e, em certa medida, dos estudos rosianos pode ser elaborada
pela seguinte sentença: há que se buscar o entendimento da articulação desse manancial teórico que subjaz, ao
menos como hipótese, no texto rosiano. Os estudos sobre Guimarães Rosa, na esteira das recentes reflexões
de Manuel de Castro (2006: 11-64), não têm essa questão; ao contrário é ela que os tem — por isto, a imensa
bibliografia dedicada à obra rosiana:
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Quando perguntamos isso já não entendemos nada do que propriamente é questionar. Simplesmente porque queremos uma
resposta. E questões não têm respostas. Todo trabalho, toda indagação, toda caminhada consiste em recolocar a questão, as
questões em novas e inaugurais manifestações. A questão não é um problema. O problema se resolve, se acha uma
solução para ele. Por isso os problemas aparecem e desaparecem. As questões não, elas nos freqüentam permanentemente: são
nosso oxigênio. (CASTRO, 2005: 37; grifo do autor)
Uma das primeiras constelações que seduz o navegante, nessa viagem pela vastidão do oceano, é
tomar como verdade que o autor tenha as mesmas leituras de que se vale para singrar mares nunca d’antes
navegados. E logo algum recife imperioso surge na distração do viajante: talvez o autor não conheça a
bibliografia com a qual se quer adentrar sua obra, através de embarcação desconhecida.
A arte supera o produtor quando por si mesma ultrapassa os limites históricos na sua “desrealização do
real”, de modo que “a obra literária continua sendo um conjunto de significantes, que se projeta significativamente
pelo ser da linguagem” porquanto “o poema de Cassiano Ricardo ultrapassa Cassiano Ricardo” — como se vê da
brilhante investigação de Eduardo Portella sobre a arte (1973: 26; grifo do autor e 27).
Este é o primeiro farol: deixar o autor e enfocar a obra. Por isso, se Guimarães Rosa leu ou não Fichte
para discutir a posição dos personagens, se leu ou não Freud para criar o filho dependente do pai na terceira
margem, se leu ou não Heidegger e os pré-socráticos para visitar o pensamento mítico alógico — essas
possibilidades não desautorizam as múltiplas leituras embasadas nas linhas e entrelinhas do texto rosiano.
Essas três veredas serão encaminhadas como propostas de leitura integrada, cujo bojo admita, e por isso
justifique, interpenetrações e diálogos.
Essa desrealização não é tomada mais na distinção entre representação e realidade, mas na investigação
desse “ser da linguagem”, narrador e/ou personagem, sujeito e/ou natureza. Fala-se, portanto, de um novo
ato, posterior a esta desrealização, que se opera dentro do universo de “A Terceira Margem do Rio”, preconizado
por Fichte. Nas diversas tentativas de explicar sua teoria, o filósofo alemão alega que “A doutrina-da-ciência
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dá como necessário o espaço e o ponto como limite absoluto; mas deixa para a imaginação a plena liberdade
de pôr o ponto onde quiser.” (FICHTE, 1973: 28). Esclarece, ainda, que:
Podes sem dúvida pensar: eu; e, ao pensá-lo, encontras intimamente tua consciência determinada de certa maneira: pensas
somente algo, precisamente aquilo que captas sob aquele conceito de eu. / Em lugar desse algo determinado, terias podido também
pensar algo outro, por exemplo: tua mesa, tuas paredes, tua janela; e chegas mesmo a pensar efetivamente esses objetos, se te peço
que o faças. Logo, notas atividade e liberdade nesse teu pensar, nesse passar do pensamento do eu ao pensamento da mesa, das
paredes, e assim por diante. Teu pensar é para ti um agir. Falo somente da atividade que, neste estado, tens consciência imediata, e
na medida em que tens consciência dela. Mas, ao te pensares, não és para ti apenas o pensante: és também, ao mesmo tempo, o
pensado; nesse caso, pensante e pensado devem ser um só; teu agir no pensar deve retornar a ti mesmo, ao pensante. Portanto — o
conceito ou o pensamento do eu consiste no agir sobre si do próprio eu; e, inversamente, um tal agir sobre si mesmo
dá o pensamento do eu, e pura e simplesmente nenhum outro pensamento. — Assim, ambos, o conceito de um pensar
que retorna para dentro de si e o conceito do eu, esgotam-se mutuamente. O eu é o que põe a si mesmo, e nada mais; o que põe a si
mesmo é o eu, e nada mais. (opus cit., p. 41-42 passim.)
Como resposta desafiadora a esta proposição fichteana, o pai, no conto rosiano, é posto num nãolugar, no meio do rio, seja nos meandros da transformação, seja no transitório:
Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida
longa. / Nosso pai não voltou. Êle não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do
rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo
a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
(ROSA, 1967: p. 33)
Fichte, considerando o pôr distinto e singular do eu, pois é um pensar sobre si mesmo, acredita que,
nas últimas instâncias do mais profundo pensamento auto-reflexivo, “esse existir do eu nada mais é do que o
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estar-posto de ti mesmo para ti mesmo” (FICHTE, opus cit., p. 43), antecipando o cerne da filosofia heideggeriana
sobre o autoconhecimento do ser, como demonstrado adiante. Dotado que era de uma filosofia transcendental,
Fichte pondera que:
para teres consciência do teu pensar, tens de ter consciência de ti mesmo. [...] Mas, para que possas fazê-lo, o pensante nesse pensar
tem de ser por sua vezs objeto de um pensar superior, para poder ser objeto da consciência; com isso, obténs, ao mesmo tempo, um
novo sujeito, que deve novamente ter consciência daquilo que antes era o estar-consciente-de-si. (opus cit., p. 43)
Adiante, o pensador alemão, usando a lógica, afirma que “há uma consciência em que o subjetivo e o
objetivo absolutamente não se separam, e são absolutamente um e o mesmo” e constata que “a autoconsciência
é imediata; nela, subjetivo e objetivo estão inseparavelmente unificados e são absolutamente um” (opus cit., p.
44). A autoconsciência, relacionada evidentemente àquele pensar a si mesmo, em que sujeito e objeto estão
indiferenciados passa a ser nomeada como intuição. Essa intuição eclode no interior do pai — que não sabe
explicar ou ex-por — e apenas põe a si mesmo para executá-la:
Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. / Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau vinhático,
pequena, mal com a tabuinha da pôpa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser tôda fabricada, escolhida forte e arqueada
em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. (ROSA, opus cit., p. 32)
E como o pai, em “A Terceira Margem do Rio”, pode existir sendo o próprio pensar, que é agir, sobre
si mesmo? É que essa personagem rosiana, sob este ponto de vista, representa a tomada de consciência de si
mesmo, o próprio e mesmo pensar que retorna para dentro de si, já observado na dissolução entre sujeito e
objeto. O pai, metáfora da autoconsciência, tinha acesso ao infinito para o qual se direciona toda autoconsciência
na sua esporulação de consciências necessárias para pensar o eu-pensante visto como pensado; mas,
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evidentemente nunca esgotando essa infinitude pantanosa — o “pondo perpétuo” (opus cit., p. 36) —, continuava
no entremeio das margens, dos binarismos, da diferenciação elementar entre sujeito e objeto, eu e não-eu,
coisa e representação, no meio caminho dos conceitos, habitando o próprio pensar, a trans-posição:
ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir,
perto e longe de sua família dêle. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas [...], descrevendo que nosso pai nunca se surgia
a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, sôlto solitariamente. (opus cit., p. 33)
Esta “outra sina de existir” parece despregar o sujeito da alienação em que vive como primeira experiência
de vida, em direção, nas já citadas palavras de Fichte, a um “existir do eu [que] nada mais é do que o estarposto de ti mesmo para ti mesmo” (loc. cit.). Em espécie de ironia subjacente, o texto de Rosa permite essa
interpretação ao ex-por que, refutando qualquer relação com o outro, opta pelas mediações “de si para si
mesmo”:
nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando
foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram lancha e tencionavam tirar retrato dêle, não venceram: nosso pai se
desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só êle conhecesse, a palmos,
a escuridão daquele. (opus cit., p. 34)
Segundo Maria Lúcia Guimarães, em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Letras da
UFRJ, em 2005, a separação entre o pai e a família se dá num abismo intransponível:
Na fala de despedida da mãe, a intransponibilidade da distância que se abre entre o pai e os outros já está selada para sempre: “—
Cê vai, ocê fique, você nunca volte” . A gradual distenção da síncope “cê” até atingir a forma normal “você” exprime concretamente
a separação que se decreta, a perda da intimidade, o esfriamento da afetividade. O tratamento solene “você” assina o afastamento que
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nunca mais seria vencido.
No conto rosiano, ninguém sabia por que o pai permanecia em trânsito, nessa mediação, ao invés de
seguir/concluir viagem, entregando a canoa às correntezas do rio. Mas talvez se possa sobre-por um motivo
fichteano à indagação que possivelmente emane de vários leitores: na teoria de Fichte, procurar se a consciência
ou o sujeito é que se consagra fonte do pensar é uma preocupação vã, porque causa e efeito, co-relacionados
aqui no agir-pensar, desencadeiam uma seqüência infinita, sem a definição de qual origina ou qual resulta: nas
palavras de Fichte, “para cada consciência [gerada por um sujeito que pensa sobre si], precisaremos de uma
nova consciência, cujo objeto é a primeira [para que esta tenha consciência do sujeito que pensa], e assim ao
infinito” (opus cit., p. 43). Por isso, o pai se contenta em estar nas transições do pensar, que são as transições do
ser, pois o ser é o agir de quem pensa sobre si, na medida em que somente quem se pensa é quem se põe, e
somente quem se põe é quem se pensa. Daí, o filho-narrador pergunta:
Sendo que, se êle não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens,
longe, no não-encontrável? Só êle soubesse. (opus cit., p. 35)
Experimentando o pensar a si mesmo como um medium-de-reflexão que conduz ao infinito, o ser que
rompe radicalmente com o “mero pôr” — para falar com Fichte — e se torna cada vez mais autoconsciente,
se põe nos labirintos da auto-reflexão, rumo ao infinito, que, sendo o que é, em sua infinitude, é por isso
ininteligível, inesgotável, inexplicável; conseqüentemente desconhecido, ilimitado, mágico-transcendental. Claro
está que, por esse viés, o infinito toma feição do mito, nesses traços indicados e outros que possam haver em
comum. Essa dimensão transcendental o pai adquire com vigor, pelo modo com o qual é visto por cada um da
família e ainda pelos vizinhos e personalidades locais. Por ser inexplicável a atitude de permanecer no meio do
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rio, a esmo, os observadores começaram a tentar uma narração, que é a forma de conhecimento, do mito:
Só as falsas conversas, sem senso como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam,
todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fôsse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa êle tinha antecipado;
pois agora me entrelembro. (opus cit., p. 36)
A relação entre mito e memória já é bastante conhecida, pois a fonte do mito é a rememoração que o
perpetua. Assim, Zeus pactuou com Mnemosine para eternizar seu nome e sua glória. Da mesma forma, o
mito no conto se sustém pela rememoração do filho. Quando se recorre aos mitos, não há interesse por
explicações lógico-racionais, pois é próprio do mito preferir as indagações sobre o evento ao fechamento
numa resposta intransitiva do racionalismo. Enquanto outra forma de esclarecimento, o mito consagra e dispõe questões — daí parte da riqueza de “A Terceira Margem do Rio”.
A dis-posição do pai, no conto rosiano, — ainda que ladeie, em parte, o pensamento de Fichte —
remete, antes de tudo, aos ensinamentos pré-socráticos, antecedentes — e, por isso, livres — do racionalismo
ocidental, buscando, na meditação impulsionada pelos mitos, a fonte do conhecer. Segundo Tales de Mileto, a
água é o princípio-elemento de tudo. Vê-se tal pensamento citado por Aristóteles na sua Metafísica:
Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma.
Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser água [o
princípio] (é por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre a água), levado sem dúvida a esta concepção por ver que
o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive. (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1973: 13;
colchetes do tradutor)
Contemporaneamente, Martin Heidegger se detém proficuamente no pensamento pré-socrático, trazendo
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à baila Anaximandro de Mileto, discípulo e sucessor de Tales, cuja sentença (traduzida para o vernáculo por
Nietzsche) foi revitalizada nos e pelos estudos heideggerianos e talvez constitua a consideração pré-socrática
de maior interesse para a hipótese de leitura de “A Terceira Margem do Rio”:
De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar
e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo. (opus cit., p. 25)
Parece que o pai do conto rosiano — exemplificando a crença de Tales na água como princípioelemento de todas as coisas, origem dos seres — cumpre e representa essa máxima. Sua posição, i.e., não só o
lugar que ocupa, mas fundamentalmente — enredando a teoria fichteana — o estar-aí, o existir, que determina
a autoposição (opus cit., p. 42-43), como pensar a si mesmo, pôr-se como pondo, que é a própria intuição ou
autoconsciência imediata (opus cit., p. 44).
Heráclito de Éfeso incrementa o pensamento de Tales, acrescendo outras ponderações, pertinentes à
interpretação do texto de Rosa:
Aos que entram nos mesmos rios outras e outras águas afluem; almas exalam do úmido. (opus cit., p. 86)
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. (opus cit., p. 90)
Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma
condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem
depois, mas ao mesmo tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se. (opus cit., p. 94; grifos do tradutor)
A semelhança entre o rio e o pai se dá por características como o silêncio que circunda ambos; o
incondicionado transpassando os dois, pela dimensão primeira (mas não única) do mito (no rio, essa de Heráclito;
no pai, a correlata de Noé), a vastidão; a fluidez, a inconstância e a indefinição de ambos; solidão que expressa
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a singularidade, a diferença entre o pai e o resto (e nisso o complexo psicológico do filho). Entretanto, o conto
“A Terceira Margem do Rio” não só desafia a teoria fichteana, mas também o pensamento pré-socrático de
Heráclito, pois, não conhecendo fim o primeiro mergulho no rio, o pai inviabiliza o segundo contato entre
homem e rio, fundamental para a verificação da premissa heraclitiana. O estar-aí fichteano, que representa o
existir, já não é, preso às velhas bases metafísicas, suficiente, porque, segundo Heidegger:
A filosofia se vai transformando, aos poucos, numa técnica de explicação pelas últimas causas. Já não se pensa. Ocupa-se de
“filosofia”. Na porfia da consciência, tais ocupações se apresentam pùblicamente como ísmos e procuram sobrepujar uma à outra.
O domínio dêsses títulos não é um acaso. Baseia-se, principalmente, nos tempos modernos, na ditadura tôda particular da
publicidade. Mas a chamada “existência privada” também não constitui o ser-homem Essencial, quero dizer, livre. (HEIDEGGER,
1967: 31)
Tão logo que a Verdade do Ser se torna para o pensamento digna de ser pensada, a meditação sôbre a Essência da linguagem tem
que atingir um outro nível. Já não se pode ser apenas uma simples filosofia da linguagem. (opus cit., p. 32)
Será por isso que o pai, ávido de um conhecimento e uma experiência para além da publicidade, existe
para além da existência privada? Esta, sempre vista como instância autoconstrutiva, autocentrada e
autoconhecedora, constitui, todavia, um auto-engano:
Ela, simplesmente, se enrigece numa negação do que é público. É um despôjo dependente que se nutre da simples fuga diante dêle.
Assim, contra a própria vontade, dá testemunho de sua escravidão ao que é público. (opus cit., p. 31)
Bem se vê a proximidade entre essa instância do “além-existência-privada” e o esforço fichteano do
“estar posto de si mesmo para si mesmo”. Note-se que o narrador-filho ressalta a tal ponto a “existência
privada” do seu pai que constitui o primeiro enunciado do conto, na iminência, também, do relato surpreendente
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sobre a construção da canoa para habitar, constantemente, a terceira margem, o passageiro, o transitório:
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; se sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas
sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, êle não figurava mais estúrdio nem mais triste do
que os outros, conhecidos nossos. (ROSA, opus cit., p. 32)
Não sendo satisfatória essa “existência privada”, “nosso pai, quem sabe, [...] se desertava para outra
sina de existir.” (loc. cit.). Explica Heidegger que “sempre, em todos êsses casos se passa à margem — e em
razão do mesmo projeto metafísico — da Essência do homem” (opus cit., p. 43). Desviando-se do projeto
metafísico que concede ao homem a doce ilusão da “existência privada” como refúgio à alienação e reificação
do ser, — na verdade, escravidão disfarçada — “todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam
dizer: doideira.” (opus cit., p . 33); i.e., a loucura como projeto anti-metafísico, porque desprovido de razão, a
mesma que norteia o pensamento e julgamento da vizinhança. Numa oposição irreconciliável com a lógica e
a metafísica, o pai escolhe o Dasein, o aqui-do-ser:
O homem é, — isso significa, na linguagem tradicional da metafísica, a “essência” do homem — repousa na ec-sistência. A essência
do Dasein está na existência. Pois não se trata aqui de uma contraposição de existentia e essentia de vez que não estão em questão
essas duas determinações metafísicas. [...] Ao invés, o homem se essencializa, de tal sorte que êle é o “lugar” (Da), isto é, a clareira
do ser. Êsse “ser” do lugar (Da), e só êle, possui o caráter fundamental (Grundzug) de ec-sistência, isto é, da insistência ec-stática
na Verdade do ser. (opus cit., p. 42-43 passim)
Em seu conteúdo, ec-sistência significa exportar a Verdade do Ser. Existentia (existence) diz, ao contrário, actualitas,
realidade, distinguindo-se da simples possibilidade concebida como idéia. (opus cit., p. 45)
A opção pelo Dasein implica exportar a Verdade do Ser (ec-sistência), pois, no caso desse conto rosiano,
o pai não mais reflete as convenções de linguagem, como preconizado pela teoria heideggeriana, persistindo
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obstinadamente ilhado no meio do rio, no trans-curso:
De dia ou de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com chapéu velho
na cabeça, por tôdas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. (opus cit., p. 34)
O “fazer conta” sugere exportação da Verdade do Ser. É, também — como indica uma das possibilidades
de interpretação desse sintagma —, contar, racionalizar e justificar o homem diante da realidade que o escraviza.
Aqui, abre-se uma hipótese de resposta à indagação do filho: “por que, então, não subia ou descia o rio [...] no
não-encontrável?” (loc. cit.), que encontrava na teoria fichteana resposta na escolha pelo por-se de si para si, i.e.,
pensar sobre si mesmo. Quase totalmente ausente, senão pela provisão necessária à subsistência, o pai preserva,
com o fim do diálogo, sua busca pela Verdade do Ser:
O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra
do barranco, êle recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? [...] E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. (opus cit., p.
34-35)
O “se-ir do viver”, esse Dasein confortado na “clareira do Ser”, “se essencializa num ‘lançamento’. Êle
se essencializa no lance do Ser, que, destinando-se, instaura o destino” (opus cit., p. 46), isto é:
O homem foi “lançado” pelo próprio Ser na Verdade do Ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a Verdade do Ser;
a fim de que, na luz do Ser, o ente apareça como o ente é. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, a História e a
natureza ingressam, se apresentam e se ausentam da clareira do Ser, isso não é o homem quem decide. O advento do ente repousa
no destino do Ser. (opus cit., p. 50)
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Porém, “o esquecimento da Verdade do Ser em favor da avalanche do ente, não pensado em sua
Essência, é o sentido da ‘decadência’” (opus cit., p. 53). Mas “o homem é o pastor do Ser” que “tem de guardar
a Verdade do Ser” (opus cit., p. 51). A falta de contato com a Verdade do Ser rareia o conhecimento da clareira,
tornando-a “não-encontrável”:
O próprio Ser é a conduta (Verhältnis), porquanto êle conduz e reúne em si a ec-sistência, em sua Essência ec-sistencial, isto é,
ec-stática, como o lugar da Verdade de Ser no meio do ente. Porque, enquanto ec-sistente, o homem chega a estar nessa conduta
(Verhältnis), em que o próprio Ser se destina, na medida em que o Ser o suporta ec-satàticamente, isto é, na medida em que o homem
o assume na Cura, por isso, em primeira aproximação, êle desconhece o mais próximo e se atém ao menos próximo (das
Uebernächste). Pensa até que o menos próximo é o mais próximo. E, no entanto, mais próximo do que o mais próximo, e, ao
mesmo tempo, mais distante, para o pensamento comum, do que o que para êsse pensamento é o mais distante, é a própria
proximidade: a Verdade do Ser. (opus cit., p. 53)
É por isto que o pai, escolhendo esse mergulho nas instâncias mais íntimas e recônditas do Ser, perdese na fluência e confluência das águas. Nesse sentido, o rio pode ser visto como metáfora da difícil conduta
que assume o Ser na Cura, não alcançando plena ou totalmente sua Verdade, embora seja o mais próximo de
si (porque a própria proximidade é o mais difícil):
Sendo que, se êle não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens,
no não-encontrável? (ROSA, opus cit., p. 35)
Walter Benjamim irá investigar as co-relações entre essa auto-reflexão do sujeito e a representação
artística, a partir da teoria de arte do romantismo alemão. Nesse sentido, o teórico de Frankfurt fará estudo
minucioso sobre a concepção de obra de arte para Schlegel, Novalis e Schelling, apontando as fontes desses
românticos na filosofia de Kant, Winckelmann, mas, principalmente, de Fichte:
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De modo inteiramente análogo ao pensamento com o qual Fichte [...] vê a reflexão se manifestar na simples forma de conhecimento,
a pura essência da reflexão anuncia-se aos românticos na aparição puramente formal da obra de arte. A forma é, então, a expressão
objetiva da reflexão própria à obra, que forma sua essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra, ela serve, então, a priori, de
fundamento dela mesma como um princípio de existência: através de sua forma a obra de arte é um centro vivo de reflexão. No
medium-da-reflexão, na arte, formam-se sempre novos centros de reflexão. Segundo seu germe espiritual, eles abarcam na reflexão
conexões maiores ou menores. A infinitude da arte atinge a reflexão primeiramente apenas em um tal centro como num valor-limite,
isto é, atinge a autocompreensão e, deste modo, a compreensão em geral. (BENJAMIM, 2002: 78-79)
A arte é reflexiva, e a reflexão é imanente à arte; mas a forma é o que torna a reflexão possível — então
a forma, além de “expressão objetiva da reflexão”, fomenta “o centro vivo” da obra, um centro reflexivo. Ora,
é notório que a forma seja a ex-posição da obra, quer dizer, o modo com que a obra externaliza sua essência; nas
palavras de Benjamim, “um princípio de existência”. Portanto, a obra rosiana é modelar para o Círculo de Jena
porque irradia, como queriam os românticos, um “centro vivo de reflexão”, que rejeita o fechamento/limite
de seu sentido por um único vetor. A autocompreensão da obra de arte, isto é, a maneira como ela se compreende
e compreende o geral depende diretamente da sua infinitude, manifestada como “valor-limite”, determinando,
assim, a partir do que se pode chamar seu “germe espiritual”, a amplitude das conexões reflexivas. Por esse
prisma, o que “A Terceira Margem do Rio” faz é, nas palavras de Manuel Castro, “recolocar [...] questões em
novas e inaugurais manifestações”, compreendendo-se que elas “não têm respostas”, e por isso “nos freqüentam,
constantemente” (loc. cit.)
Benjamim, concluindo o mesmo parágrafo citado, afirma que a tarefa da crítica, com base no pensamento
romântico alemão, seria extrair essas conexões, tanto mais intensivas quanto maior for a rigidez formal — e de
novo a questão da forma envolvida na delimitação da obra de arte. Em “A Terceira Margem do Rio”, as
conexões são amplas, mas os três pontos levantados neste estudo parecem formar o tripé que as irradia: a) as
posições e as transições na relação entre b) pai e c) filho. Essa relação, representada no conto de Guimarães
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Rosa, é a base de toda a trama: somente pelo afeto do filho ao pai é que o foco narrativo incide na sempitravessia
fluvial do pai, pois, de outro modo, se o filho o superasse, seguindo o exemplo da família, o conto teria outras
rotas. Mas, permanecendo ali, à margem da vida do pai, o filho desenvolve relação assaz específica, muitas
vezes chamada de apego. Segundo Greimas & Fontanille:
O apego está associado, por um lado, à intensidade [...] e, por outro, ao “desejo de possessão exclusiva”. / [...] Na medida em que
o apego aparece como a constante subjacente a todas as contingências da relação entre o sujeito e o objeto, ele pode ser determinado
como uma necessidade[...] O apego repousaria num dever-ser que modalizaria não o objeto, mas a junção[...] / [...] a
intensidade do apego se reconheceria, em particular, quer previamente aos programas ou aos comportamentos aferentes ao objeto,
quer em sua colocação em primeiro plano na representação figurativa que o sujeito se dá de seu fazer. / Mas dificilmente se pode
admitir que essa tradução figurativa da intensidade não seja, pouco ou muito, prefigurada em imanência; enquanto manifestada, ela
pressupõe uma manifestante. [...] O dever é prefigurado, nesse nível, por uma modulação pontualizante, que suspende o devir,
transformando-o em simples prazo fixo e neutraliza todas as potencialidades de mudança; para o sujeito tensivo, isso significa que
as zonas de valências são todas unificadas: o conjunto das modulações de seu devir está reunificado em torno de uma única valência,
a do objeto de apego. (GREIMAS & FONTANILLE, 1993: 81-82 passim.)
Sendo assim, o problema do sujeito finca raízes em tal necessidade do objeto. Em “A Terceira Margem
do Rio”, o filho escolherá o pai como objeto de apego, comprometendo todo o seu devir:
Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei —
na vagação, no rio no êrmo — sem dar razão de seu feito. (ROSA, 1967: 36)
Como se vê, o apego neutraliza as potências individuais para mudança, suspendendo o devir, que,
limitado, não é mais devir; é simples prazo — e o sujeito passa a ter o objeto como referência e significado:
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De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento (ROSA, opus cit., p. 36).
Tal relação, sob o ponto de vista psicanalítico, engloba fatores outros, que tentarão explicar as causas
desse apego: notadamente, as extrínsecas. A relação entre pai e filho possui importância vital na sexualidade
do sujeito, bem como, e principalmente, na própria formação do ser, em sentido amplo. Na teoria psicanalítica,
é largamente conhecido o complexo de Édipo, que traduz, em forma de conceito, as relações entre pais e
filhos, do plano real para o reflexivo. O complexo de Édipo, enquanto categoria psicanalítica, pretende ver na
tragédia de Sófocles uma representação do afeto entre um filho (Édipo), sua mãe (Jocasta) e seu pai (Laio),
genericamente verificável em todos os seres humanos de sexo masculino. Na tragédia grega, Édipo mata o pai
e desposa a mãe, sem saber de seus laços consangüíneos porque fora abandonado. Evidentemente, com relação
à observação psicanalítica sobre os meninos, esses atos acontecem simbolicamente. Por isso, o complexo de
Édipo é vencido quando o sujeito não se fixa ao pai (pelo excesso de amor/ódio ou anulação/castração), nem
tampouco se sente seduzido pela mãe. Refletindo a questão em “A Terceira Margem do Rio”, há que se
perceber o diferencial do personagem rosiano, que representa o caso — muito próximo da realidade — de
jovens que não se libertam da figura paterna, tendo-a como referencial absoluto e, por isto, anulador da
personalidade deste filho que com ele se identifica. Nesse sentido, Édipo, arquétipo do filho, não mata o pai,
no caso representado no conto de Rosa. E, assim, cabe a pergunta: torna-se o Não-Édipo? Ou já constitui uma
figura outra, lida a partir de outros referenciais? À medida que ser Édipo implica a escolha de matar o pai, o
personagem do conto rosiano pode ser encarado como aquele que escolhe o “não-matar” e, ao contrário de
Édipo, insta a preservação do pai: esse Não-Édipo se edifica a partir de uma interação dialética com Édipo,
pelo oposto.
Segundo Paulo Roberto Ceccarelli, da Societé de Psychanalyse Freudienne e do International Forum
of Psychoanalysis, existe um tipo de relação com o pai muito pouco estudada — a sedução do pai —, responsável
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por situações de apego:
A dimensão da sedução pelo pai, nos dois sexos, apresenta conseqüências que têm sido pouco exploradas pelos psicanalistas. [...] /
Trata-se, antes, de um pai que estabelece uma relação muito particular com o filho e que vive, na maioria das vezes, fantasmaticamente
[...] um pai que, ao invés de encontrar o seu gozo junto a uma mulher, procura-o em sua relação com a criança. (CECCARELLI,
2001)
Embora Ceccarelli, psicanalista que é, insira esse indivíduo seduzido pelo pai numa versão de Édipo
não conhecida, em que pai e filho disputam o amor do jovem Crisipo, resultando então no patricídio, não se
pode enclausurar o personagem rosiano nesses parâmetros porque o filho, mesmo seduzido, não mata o pai,
como propõe qualquer versão da fábula de Édipo. Mas podem-se rastrear semelhanças entre o pensamento
psicanalítico elaborado por Ceccarelli e o conto de Rosa: por exemplo, os pais se mostram fantasmáticos,
principalmente o pai de “A Terceira Margem do Rio”, porque este, pela posição que buscou (o “pondo-se perpétuo”,
na autoreflexão) , causou impressões míticas não só ao filho e à família, mas também à vizinhança. Além disso,
trazia consigo um silêncio quase totalizante, enfatizado pela narrativa nas diversas alusões que o filho faz a
esta característica essencial do pai: “só quieto”, “calado que sempre”, “nem falou outras palavras”, “nosso pai
suspendeu a resposta”, “perguntei [...] e ele só retornou o olhar para mim” (p. 32); e outras passagens que,
embora se confundam com o próprio sentido de recolho e isolamento da opção do pai pela transição das águas,
ratificam a permanência do silêncio, o mesmo silêncio anterior à sua partida “ao-longe” (ROSA, opus cit., p.
33): “nosso pai não voltou”, “me viu, não remou para cá, não fez sinal” (p. 33); “nosso pai passava ao largo [...]
sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala” (p. 34) “e nunca falou mais palavra, com pessoa alguma”, “a
gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu” (p. 35). Adverte Ceccarelli que:
O pai que se “oferece” ao filho como possibilidade de objeto de desejo inverte seu papel: ao invés de ser aquele que castra, ele seduz.
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[...] a “sedução do pai” [...] compromete o recalcamento da corrente afetuosa e da hostil. [...] O estado de coisas gerado pela “sedução
do pai” terá repercussões na construção da nostalgia da proteção do pai [...] (2001)
Evidentemente, o objeto “de desejo” significa, nesse contexto, tão-somente aquele pelo qual se nutre
algum afeto, por vezes sublimado, como é habitual entre familiares, em admiração. Sobre essa questão, é
profundamente importante destacar os fragmentos rosianos que expressam o sentimento-base para com o pai:
Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.
(ROSA, opus cit., p. 34)
Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi
pai que um dia me ensinou assim....”; o que não era o certo, o exato, mas, que era mentira por verdade. (opus cit., p. 35)
Como se lê, há superestima e apego ao pai, evidenciando a fixação dos referenciais nele e a simultânea
suspensão do devir, soluções estas estimuladas, provavelmente, pela feição fantasmática do pai, propícia a
desencadear nos interlocutores impressões míticas:
Do onipotente pai herói — o grande homem da infância — profundamente admirado, por vezes idolatrado, mas também temido —
ficará a nostalgia do pai, sentimento que coincide com a necessidade de proteção ligada ao desamparo humano. É também ele que vai,
via ameaça de castração, — o pai que castra mas que protege — marcar e diferenciar, por assim dizer, o desejo do filho.
(CECCARELLI, opus cit.)
Tal mitificação, para além da que fez a vizinhança, interage na construção do sujeito, resultando, no
caso da ausência dessa figura paterna (ou da superação dela) — problemática representada, evidentemente,
em “A Terceira Margem do Rio” — inaptidão para lidar com a vida de maneira independente e ou autônoma:
“eu fiquei aqui, de resto”; “eu não podia querer me casar”; “eu permaneci, com as bagagens da vida”; “esta
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vida era só o demoramento” (loc. cit.). O pai-herói sedutor compromete o pleno crescimento do sujeito porque
este não consegue parar de temer o pai-castrador, que, num jogo dialético, esconderá sua face tirana sob o
disfarce do pai amigo, “uma variante da sedução do pai” (Ceccarelli, opus cit.), máscara que predominou até
agora no conto. Entretanto, como esclarece Ceccarelli:
Quando a interiorização do medo do mundo externo não é transformada em angústia do pai[,] a criança vê-se impedida de
experimentar seus sentimentos ambivalentes. Isto pode prejudicar a maturação do desejo de morte do pai e entravar a identificação
com o pai edipiano. (2001)
O texto rosiano apresenta o filho que teme o pai, pois a mitificação exaltou a figura paterna, conhecida
pelo silêncio e pela ausência. O super-signo desconhecido e divinizado é traduzido por seus aspectos heróicos,
em profunda admiração: aliás, desafiar a vida, resistindo às intempéries e à alienação no espectro social, é
tarefa quase sobre-humana, como se percebe desta passagem do conto:
Às vêzes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que êle agora virara cabeludo,
barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado prêto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu [...] (ROSA,
opus cit., p. 35)
Ao tentar aproximar-se, porém, o herói, tão desconhecido (um de seus traços míticos), é convertido
em ameaça, i.e., monstro horripilante, assustador, recoberto de uma magia incognoscível: “ao por fim, ele
apareceu, aí e lá, o vulto” (p. 36); provoca, então, medo irrefreável no filho, que, num rompante desesperado,
foge instintivamente:
“[...] O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E assim
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dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. / Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água. Proava pra cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, êle tinha feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos
anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado.
Porquanto ele me apareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (opus cit., p. 37)
Esse ser divinizado, o mito encarnado, causa pavor no sujeito, à beira daquela epifania mágica: “ele me
pareceu vir: da parte de além”. A dialética das máscaras pai-herói e pai-castrador, vista pelo filho, perpetua a
identificação com o pai, o autêntico tirano. Segundo Ceccarelli:
Se a única figura de pai continua sendo a do “tirano”, que pode castrar ou seduzir, a relação do sujeito com o mundo [...] corre risco
de, em determinadas ocasiões, apresentar-se sob um modo persecutório ou histérico. (2001)
É absolutamente necessário terminar esses apontamentos alternando o foco analítico entre pai e filho,
e ainda dialetizando essas figuras. Por exemplo, o pai, em certa medida, vive ainda o seu complexo edipiano
irresoluto, transferindo para o filho algumas frustrações, como a de significar solidão ou isolamento. Por outro
lado, se o filho não amadurece suficientemente diante dessas questões paternas, o pai impinge a herança do
silêncio, isto é, o péssimo legado de uma estrutura deficiente, problemática ou até mesmo ausente: “sou o que
não foi, o que vai ficar calado”. Nesse sentido, a falha parece ter surgido a partir de particularidades de seu
caráter, eximindo o pai de suas responsabilidades:
[...] aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua função[,] pressupõe que o pai saiba o lugar que ele ocupa foi ocupado
anteriormente por outro, e que seu filho, assim como ele, só ocupará de modo transitório. (CECCARELLI, opus cit.)
Tal consciência da transitoriedade, o pai apresenta no momento em que decide regressar à margem,
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trocando de lugar com o filho na canoa. Ainda sob esse ângulo de visão, os pontos negativos da imaturidade
do filho são evidenciados porque “para aspirar ser como o pai, é necessário parar de temê-lo” — a travessia,
tomando esse norte, perde o rumo pela inaptidão do filho. Claro que os dois enfoques — tanto sobre o pai
quanto sobre o filho — devem se completar para haver uma apreensão mais consubstancial do conto em
questão.
Por fim, é válido anotar que a transitoriedade das figuras, do imaginário, dos conteúdos, da sintaxe da
obra de Guimarães Rosa, tomando “A Terceira Margem do Rio” como exemplo, culmina na dialética das
margens — aqui, as transições se completando: a) a família como única ou terceira margem do rio, antes da
partida do pai (e nisto o pai à margem do rio com todos); b) o pai no rio (pondo-se como margem solitária, em
contraposição à margem que a família já é, criando um rio-metáfora-abismo entre pai e família); c) este pai se
transforma de margem a fluxo, com as duas margens tais quais as do rio, e mais a terceira, seu filho; d) a
diferença/diferenciação intensa entre pai e filho, a terceira margem como a recusa da síntese (pois não há
respostas, é uma questão); e) o filho proponente a ficar no rio (como prospecção hipotética, duas — pai e filho
— em uma margem), então (do possível encontro de duas margens), uma terceira, que recuperaria o contato
entre humano e humano, humano e sobre-humano, filho e pai, memória e esquecimento, homem e mito,
mundo e além-mundo, condicionado e incondicionado, transitoriedade e contingência, tendo no abandono da
família o negativo da metáfora da redenção (fim proveitoso da jornada auto-reflexiva), e com isto a
autocompreensão e a compreensão da realidade.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIM, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (trad. de Márcio Seligmann-Silva). São
Paulo: Iluminuras, 2002.
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TRABALHOS
CASTRO, Manuel Antônio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A sedução do pai. Grifos. Instituto de Estudos Psicanalíticos. Belo Horizonte:
IPESI, 2001, número 18.
FICHTE, Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
GREIMAS, Algirdas Julien & FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões: dos estados de coisa aos estados de
alma. São Paulo: Ática, 1993.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo (trad. e notas de Emanuel Carneiro Leão). Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1967.
OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
PORTELLA, Eduardo. Teoria da comunicação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
ROSA, João Guimarães. A Terceira Margem do Rio. in: —. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967.
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CARMEN ELENA DAS CHAGAS (UFF)
Resumo:
O presente trabalho objetiva fazer uma análise da oralidade na literatura de Guimarães Rosa através de alguns
contos do livro “Primeiras Estórias”, tomando como parâmetros os fundamentos teóricos da Lingüística, da Análise
da Conversação e da Teoria Literária. “Falar” confunde-se muitas vezes com “narrar” e isto nos é acrescido através
do talento do narrador. Tanto a fala primitiva da narrativa oral de fatos reais como a narrativa escrita de eventos
fictícios têm, grosso modo, a mesma estrutura básica, utilizam as mesmas técnicas e outros pontos em comum,
tendo porém, aqui, em mente a realidade da fala e da narrativa falada de fatos reais, preocupando-se, principalmente,
com a narrativa literária.. Não é possível fazer chegar ao leitor a ilusão de uma realidade oral, desde que tal atitude
decorra de um hábil processo de elaboração que é privilégio do texto literário. O escritor emprega na escrita “marcas
de oralidade” que permitem ao leitor reconhecer no texto uma realidade lingüística que se habituou a ouvir e que
incorporou em seus esquemas de conhecimento, frutos de sua experiência como falante. Assim, ninguém melhor do
que o autor Guimarães Rosa para representar isto, sabendo que este se preocupou tão e, exclusivamente, com o
contar na obra Primeiras estórias, cuja reinvenção da oralidade na linguagem é expressiva e relevante.
ORALIDADE NA LITERATURA:
AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS DE QUIMARÃES ROSA
João Guimarães Rosa escreveu prosa como se fizesse poesia. Não se quis discursivo, persuasivo ou
lógico, mas expressivo e lúdico. Procurou uma prova emocionada que tivesse a força dos substantivos e a
união das palavras, através da pureza, mostrando os novos valores que até então não existiam. A partir deste
pressuposto é que se justifica a escolha do tema oralidade na narrativa de João Guimarães Rosa no livro
“Primeiras Estórias”, pois o autor se preocupou tão e, exclusivamente, com o contar nas suas obras, cuja
reinvenção da oralidade na linguagem é muito dinâmica e relevante. A pista disto, ele nos dá no próprio título
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do volume: seria o primeiro de estórias, histórias estas que se querem o seu tanto parecidas aos “causos”.
Todas as histórias se fazem de mergulho ou vôo. Parafraseando o próprio Guimarães Rosa, “não se podia
excluir, no seu refazer dos homens, a fala deles”. Guimarães é para ser lido como se ouve palavra por palavra,
cada uma delas recarregada de vida, pois ele busca restaurar, ao escrever, os jogos da oralidade e toma a
linguagem do sertão, “a fala pobre” e “de-dia-de-semana” e a descobre rica, não só em saber nomear, mas em
suas virtualidades expressivas e sintáticas.
Este trabalho apresenta duas partes distintas e com funções bem específicas. A primeira versa sobre a
fundamentação teórica, baseada na Lingüística, na Sociolingüística e na Teoria Literária. A segunda analisa o
material selecionado em seis contos, procurando aplicar as teorias através de passagens significativas encontradas
em “Primeiras Estórias”, objetivando fazer uma análise da oralidade na literatura de Guimarães Rosa e tomando
como parâmetros as questões como a da narrativa literária em contrapartida à narrativa oral; o emprego das
variedades lingüísticas; a presença do autor, conscientemente, no uso da oralidade, criando novos efeitos no
processo narrativo e no diálogo de suas personagens; o paradoxo da oralidade na literatura; a incorporação da
língua escrita na falada e como se contrapõem o oral no escrito ou o sonoro no visual. Não é possível fazer
chegar ao leitor a ilusão de uma realidade oral, desde que tal atitude decorra de um hábil processo de elaboração
que é privilégio do texto literário. O escritor emprega na escrita marcas de oralidade que permitem ao leitor
reconhecer no texto uma realidade lingüística que se habituou a ouvir ou que pelo menos, já ouviu alguma vez
e que incorporou a seus esquemas de conhecimento, frutos de sua experiência como falante. Segundo Preti,
“não se pode estabelecer uma dicotomia rígida entre fala e escrita” (Preti, 2004: 125), pois embora se possa
estabelecer um elenco de distinções, o que ocorre, na verdade, “situa-se num continuum e não seria razoável
tomar tais distinções como estanques” (Marcuschi, 1993:71). Da mesma forma, no diálogo literário, o contexto
e a qualificação das personagens poderão facilitar-nos a compreensão da linguagem utilizada. O diálogo literário
se presta a uma análise das relações entre os propostos iniciais do falante na interação e as estratégias que
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escolhe para desenvolvê-las, porque podemos servir-nos das informações do narrador e do contexto.
Espera-se nestas considerações prévias e, demasiadamente difusas, mostrar a idéia da extensão do
mundo rosiano e ter como recompensa o deleite de engendrar nos muitos atalhos de Guimarães Rosa.
O ato de narrar foi uma das primeiras manifestações sociais e uma das primeiras variantes da
comunicação oral, empregada esta inicialmente apenas para comunicar necessidades, depois atos fictícios,
logo após de maneira avaliatória, opinativa ou fantasiosa. Já o falar confunde-se muitas vezes com o narrar,
acrescentando a isso o talento do narrador. Toda narrativa é antes de tudo um discurso, portanto, pressupõe
uma enunciação e, obviamente, um locutor e seu ouvinte, ou mais diretamente, narração é o “ato de enunciação
que produziu a narrativa.” (Maingueneau, 1996b:207) A narrativa pode se definir,de um lado, na qualidade de
gênero, como discurso, e, por outro lado, na qualidade de espécie, como mundo fictício discursado. Assim:
“Há, pois, em simultâneo, distinção e ligação estreita entre, de um lado, o discurso verbal que instrui sobre um
mundo, a narração e esse próprio mundo: lugares, tempo, personagens, ações, que chamaremos narrativa
propriamente dita, ou a “ficção”, a diegese.”(Lefebve, 1975:172)
A diegese propriamente dita são os acontecimentos físicos ou mentais reconstituídos na seqüência
lógica, preenchendo as lacunas ou elipses inevitáveis. A diegese só se explica como uma das faces da narrativa,
de que, como vimos, a outra é a narração, ato narrativo ou enunciação narrativa. Ela é o referente da narração
e, diríamos, sob certo aspecto, é o enunciado da enunciação narrativa. Daí que, todos os parceiros semânticos
de narração, o discurso nos parece o mais sugestivo e próprio, na medida em que lembra um ato de enunciação,
graças ao qual se põe em palavras a diegese e se estrutura a narrativa. O traço diferencial básico parece ser a
abstração ou não da presença do locutor na narração. Quando se considera a abstração, tem-se o discurso;
quando não, a história. Na verdade em ambos os casos há discurso, ou seja, enunciação.
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2.2-Dialetos sócio-culturais
Os autores de costumes procuram fazer do diálogo de seus personagens um elemento a mais para
especificar uma época, aproximando o melhor possível da realidade falada de seu tempo. Sabe-se que fatores
como posição social, nível de escolaridade, classe econômica, raça, idade e profissão podem ser elementos
importantes na definição dos níveis de linguagem e nas marcas que aparecem em qualquer campo da língua
que no caso da literatura é, principalmente, no léxico.
A situação que não é diretamente determinante da formação de dialetos num indivíduo provoca
normalmente a adaptação da linguagem do emissor ao nível sócio-cultural do receptor. Preti (1994, 30) diz:
“Assim, um sermão pode, sob certas condições e considerado o tipo de ouvinte, aproximar-se do dialeto
popular, da mesma maneira que um político, num comício, poderá empregar, para melhor comunicação,
vocabulário e estruturas lingüísticas típicas do povo que o ouve.”
Porém o que se deve levar em consideração é que a forma do discurso literário dirige-se a um leitor e
não a um ouvinte com todas as possibilidades que isto implica. O leitor comum procura no escritor o conceito
de que o escritor é o representante de uma camada de cultura superior, para ele o escritor é aquele que escreve
bem, melhor do que os demais que escrevem na sociedade. Sobremaneira entre o nível cultural do artista, de
acordo com a sua individualidade e a linguagem da obra, pode surgir o que se classifica de nível lingüístico de
narração na prosa. À medida em que o texto de ficção consegue envolver em sua atmosfera o leitor, este
aceitará as variações de linguagem dos personagens ou narradores, ligando-as a um falante e uma situação de
interação que podem ser reais.
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2.3-Línguas falada e escrita
Ao conceituar a fala e a escrita, é importante saber que são duas modalidades pertencentes ao mesmo
código lingüístico, o código da Língua Portuguesa. Desta forma, o que se poderia considerar distinção corresponde
a diferenças, simplesmente, estruturais. Ambas apresentam distinções porque são diferentes nos seus modos
de aquisição, isto é, nos modos de produção, transmissão e recepção.
Para Givon “a língua escrita é uma transposição da oral, e é indiscutível que ela tem relações genéticas
com a fala.”1 Já Marcuschi diz que “as diferenças entre fala e escrita não se esgotam nem têm seu aspecto mais
relevante no problema da representação física (grafia x som), já que entre a fala e a escrita medeiam processos
de construção diversos”.2 Outros pensadores chegaram a mesma conclusão de que o oral tende a ser
caracterizado por menos palavras, orações mais curtas, com predomínio da coordenação e mais palavras
pessoais do que o estilo escrito. Com relação ao social, pode-se observar os valores partilhados por toda a
cultura dos indivíduos e quanto ao atos destes indivíduos, deve-se observar, também, os sentimentos,
julgamentos, bem como o modo de fala e o grau de comprometimento em relação ao assunto.
Entre as características distintivas mais comuns apontadas entre língua falada e escrita são:
a)Fala
A fala é fragmentada, incompleta, não planejada e com pouco uso de passivas. Possui planejamento
simultâneo ou quase simultâneo à sua produção, acesso imediato às reações do interlocutor e o falante pode
processar o texto, redirecionando-o a partir das reações do interlocutor.
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b)Escrita
A escrita é mais planejada, não-fragmentada, completa, com predomínio de frases complexas,
muitas passivas e é bem elaborada. Possui planejamento anterior à produção, O escritor pode processar o
texto a partir das possíveis reações do leitor, tendo possibilidade de revisão ou criação.
Acontece que estas diferenças nem sempre distinguem as duas modalidades, pois existe uma escrita
informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da escrita de acordo com a situação de
comunicação.
Analisando por fim a literatura lingüística sobre as diferenças entre fala e escrita, nota-se que ela
revela características específicas de um tipo de texto em comparação a outro e não diferenças entre a fala e
escrita. Isto significa que essas diferenças se acentuam dentro de um continuum tipológico que vai do nível
mais informal ao mais formal, passando por graus. Desta forma a informalidade consiste em apenas uma
das possibilidades de realização não só da fala como da escrita.
A língua literária é o instrumento da literatura, assim toda obra deve ser definida a partir e em
função de sua linguagem. A mensagem literária, tendo uma intenção estética, não é utilitária como a
linguagem coloquial cujos referentes veiculados são de utilidade situacional uma vez que se referem à
realidade prática e concreta. Pode-se compreender que a linguagem pode ser criada e recriada
parcialmente dentro do texto literário com valores e funções vinculados à intenção estética do autor.
A língua literária é, ainda, difusa e unilateral, pois é estabelecida de um autor para leitores sem
reciprocidade. É uma arte que apresenta o artificial dentro do natural. Esta artificialidade cria-se, em
princípio, por ser uma língua escrita, condicionada às técnicas próprias da língua escrita e depois passa pela
estruturação narrativa planejada e termina por uma linguagem estilística. Sendo a obra literária de ficção
uma transposição da realidade, recria no texto todas as espécies ou modalidades lingüísticas, mas sob o
aspecto abrangente da intenção estética e artística. Assim, o artista literário pode querer que aquilo que ele
escreve seja lido como se fosse falado com o objetivo de dar a ilusão da fala.
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Em relação à oralidade, a análise engloba tanto a narrativa do narrador-personagem quanto à fala
dos demais personagens.
Observando as marcas da oralidade sob um aspecto mais lingüístico cabe ainda considerá-las de
acordo com um aspecto de ordem mais estilística. Nos contos há a presença de marcas específicas de
oralidade como redundâncias, repetições, marcas de subjetividade através das exclamações, correções,
onomatopéias e construções próprias da linguagem oral como jargões populares.
1- Conto “Famigerado”
a)Narrador
“Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça?” “Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um
cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato.” “O cavaleiro esse – o oh – homem – oh – com cara de
nenhum amigo.” “Só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe.” “Com um pingo no i, ele me
dissolvia. O medo O. O medo me miava.” “A conversa era para teias de aranha.” “Assim no fechar-se com o
jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá.”
b)Personagem
“-Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmigerado... faz megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado?”
“-Saiba vosmecê que saí ind‘hoje da serra.”
“-Pois... e o que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
“Ah, bom!...”
“A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... só pra azedar a mandioca....”
2- Conto “A menina de lá”
a)Narrador
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“Mas pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido.” “Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto:
da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces,
comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou de precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por
dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” “Desabado aquele feito, houve muitas dores, de todos, dos de casa: um
de-repente enorme.” “Aí, Tiatônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do
passarinho, Nihinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara.”
b)Personagens
“-Ele xurugou?”
“-Eu... to-ou... fa-a-zendo.”
“-Cheiinhas!”
“-Alturas de urubuir...”
“-Mas não pode, ué...”
“O pai em bruscas lágrimas, esbravejou: que não!”
3- Conto “A terceira margem do rio”
Narrador-personagem
“...se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele.”
“e, ele, ou desembarcava e viajava s‘embora...”
“O senhor vem, e eu agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!”
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4- Conto “Pirlimpsiquice”
a)Narrador-protagonista
“e um, cá, teve a idéia.” “E quem disse que, em outro dia, seguinte, domingo – o dia!” “Eu! Ah, e o “ponto”?”
“O contentamento – o medo. O fraque? O povo. O – ali, quem meio escondido, me cutucando o - Alfeu!” “O povaréu de
cabeças, estrondos de gente entrando e se sentando, rumor, rumor, oh as luzes.” “Eu, não. Eu: teso e bambo, no
embondo, mal em suor frio e quente, não tendo dá-me-dá, gago de ê, ê, ê, no sem-jeito, só espanto.” “Ah, a gente:
protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens personificantes.” “... só a maneira de sair –
do fio, do rio, da roda, do representar sem fim.”
b) Personagens
“-Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estória também era a de verdade?”
“Lembrem-se: circunspecção e majestade! ... proferia o Dr. Avante ... e: Longa é a arte e breve é a vida... –
um preconício dos gregos!”
5- Conto “Fatalidade”
Personagens
“Sou homem de muita lei... tenho um primo oficial-de-justiça... mas não me abrange socorro... Sou muito amante da
ordem...”
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“Quanta crista!”
“Por conta daquele – Cujalma! Proferiu Meu Amigo...”
“- Quer café... ou uma cachacinha, hem?...”
“Disse um “Oh” polissilábico, sem despesas de emoção.”
“-Seja, que aceito... despois...”
6- Conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”
Narrador
“A gente reparando, notava as diferenças.” “A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta” “... o
povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro.” “Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado
a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum.”
“A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela, era um repouso estatelado...”
Entendida a linguagem como instrumento autônomo de comunicação, mas sobretudo como instrumento
de interação social, vinculado às situações de sua produção, procurou-se observar nos contos as condições de
situações comunicativas criadas pelo autor e os efeitos produzidos.
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As análises realizadas nos contos selecionados comprovam a hipótese de que Guimarães Rosa incorporou
o registro da oralidade, aqui entendida como língua falada popular, onde, como e quanto lhe permitiam a
verossimilhança e o canal escrito, realizando assim, à sua forma, a linguagem literária desses contos.
O emprego de marcas da oralidade pode ser uma estratégia intencional do escritor para dar a seu
diálogo de ficção uma proximidade maior com a realidade. O que existem são estilos literários diferentes que
se valem das características da linguagem culta ou, às vezes, da espontaneidade da fala cotidiana para melhor
atingir seus objetivos. Pretendendo manter o texto num registro coloquial, Guimarães Rosa optou por uma
seqüência de formas orais, utilizando neologismos, vocábulos próprios da linguagem regional, repetições,
paráfrases, correções e onomatopéias, o que o mantém na linha da oralidade. Mas mesmo utilizando vocábulos
típicos do oral, o autor conseguiu uma surpreendente valorização de seu significado, unindo-os num tecido
semântico que progrediu com o desenrolar dos contos, dando vida a idéia de que o narrador estava contando
as suas “estórias” diante de um interlocutor vivo e presente e não de um leitor.
Uma análise das variações lingüísticas no diálogo literário deve contar com as contribuições do narrador,
de acordo com a sua maneira de mostrar a situação de comunicação. É através dele que são conhecidos os
aspectos importantes de como os personagens se apresentam no diálogo e pode se avaliar como as falas
correspondem a uma realidade.
Os contos foram considerados em sua maioria como narrativas que reforçam a espontaneidade e
imprevisibilidade das narrativas orais. Na verdade, não existem parâmetros precisos que sustentam tais
conclusões, prevalecendo o aspecto lingüístico mesmo.
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A competência lingüística advém de variáveis e fatores que determinam de forma mais ou menos
estável o conhecimento lingüístico do emissor. Desta forma, ele pode ser considerado culto ou não,
lingüisticamente falando, segundo obtenha o domínio da norma culta ou não, adquirido através de fatores
como escolaridade ou classe social. Já o desempenho de um emissor, competentemente culto, nem sempre
pode desenvolver a sua competência bem, quando fala, devido a inúmeras situações. Enquanto a competência
apresenta-se mais estável, o desempenho pode variar a cada momento de comunicação, de acordo com o grau
de amizade, o grau de emoção e o tema da conversa.
Acredita-se que a apresentação dos contos tenha sido suficientemente representativa para comprovar
como Guimarães Rosa, com clara consciência, conseguiu elaborar em seu estilo as variedades lingüísticas,
desde a culta até a popular, com grau maior ou menor de informalidade. Mas sobretudo serviu para mostrar
que é na essência da oralidade que o autor buscou e encontrou a inspiração para a sua linguagem literária.
BIBLIOGRAFIA
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Cursos de 1º e 2º graus. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 32ª edição, 1988
BOSI, A. O conto brasileiro contemporâneo.São Paulo: Ed. Cultix, 22ª edição
FÁVERO, L. L. et. al. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. São Paulo: Ed.
Cortez, 4ª edição, 2003
FERREIRA, A. B. de H. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2003
FIORIN, J. L. & SAVIOLI, F. P. Para entender o texto. Leitura e redação. São Paulo: Ed. Ática, 1990
KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos.São Paulo: Ed. Contexto, 8ª edição, 2005
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___________. A inter-ação pela linguagem.São Paulo: Ed. Contexto, 9ª edição, 2004
LIMA, R. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 44ª edição,
2005
MARCUSCHI, L. A . Da fala para a escrita: atividades de retextualização.São Paulo: Ed. Cortez, 6ª edição,
2005
____________ . Análise da conversação.São Paulo: Ed. Ática, 5ª edição, 2005
PRETI, D. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2004
____________ . Sociolingüística- os níveis de fala: um estudo sociolingüístico do diálogo na Literatura Brasileira.
São Paulo: Edusp, 9ª edição, 2003
____________. Estratégias conversacionais no diálogo construído: em busca de uma teoria da “conversação literária”. Niterói: in. Revista Gragoatá, nº 9, 2000, p. 205-220
ROSA, J. G. Primeiras estórias.Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2005
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2005.
NOTAS
1
FÁVERO,1999, p. 70
2
Ibidem. P. 70
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CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO (PROFA. DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA - UFRJ)
Resumo:
Os subterrâneos da “razão” e da “desrazão”: a importância dos velhos, loucos e aleijados na obra de Guimarães
Rosa, Luandino Vieira e Mia Couto. A subversão do senso comum e a apreensão dos sentidos poéticos da
existência. Os vôos da imaginação e da linguagem. O repensar dos mecanismos de censura e opressão, filtrados por
perspectivas éticas e estéticas.
A PRESENÇA DE GUIMARÃES ROSA EM LUANDINO VIEIRA E MIA COUTO:
AS MARGENS DO INEFÁVEL
As obras de Guimarães, Mia Couto e Luandino encontram-se no cerne dos paradigmas da
modernidade, fundando na literatura de seus países uma escritura descentrada, caracterizada pela reinvenção
tanto da linguagem, como da arquitetura ficcional. Embora se inscrevam na esfera transgressiva da ficção
contemporânea, não rompem com a tradição oral, trabalhando com a memória viva popular, tecida por uma
rede de mitos, crenças e costumes diversos. Além da artesania que efetuam com a linguagem, os três escritores
têm outras afinidades: em seus discursos estão presentes as ambivalências entre o regional e o universal, entre
o social e o existencial, entre o real e o supra-real. Seus textos estão cheios de seres de exceção como crianças,
velhos, aleijados e loucos, personagens que, em geral, conservam uma visão de mundo não convencional e,
por isso, captam o mistério poético da existência. Os velhos, na antiga filosofia de vida africana, eram
considerados os guardiães da memória, os “griots”, ou seja, os contadores de estórias que passavam aos mais
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jovens os conhecimentos ancestrais.
Em Guimarães Rosa, a velhice é vista com positividade, pois é o tempo privilegiado em que as
personagens atingem “a terceira margem da existência”, ou seja, apreendem a poesia do universo. Em Grande
Sertão:Veredas, a narrativa se tece a partir de Riobaldo já velho, aposentado da jagunçagem. É quando se
encontra “barranqueiro”, à margem da labuta cotidiana, que reflete sobre a vida, a morte, o amor e o ódio. A
senescência torna-se, então, o momento de revisão dos atos juvenis, pois, como afirma Riobaldo,”mocidade é
tarefa para mais tarde se desmentir” (ROSA,1965, p.21). É a ocasião do ócio, do repouso, da rede, que leva o
protagonista-narrador a “especular idéia” e a reimaginar o vivido. Assim, é no balanço do lembrar, no “rangerede das recordações”, que o velho jagunço efetua uma travessia cósmica em direção ao seu eu-profundo.
Na ficção de Mia Couto, os anciãos também têm uma grande importância. Cumprem, entre outras
funções, a de alertar os mais jovens para o perigo da morte do antigamente, como ocorre no romance A
Varanda do Frangipani. No conto “Sangue da Avó, Manchando a Alcatifa,” do livro Cronicando, a avó Carolina se
sente estrangeira na casa dos filhos, onde a televisão acabara com o hábito de contar e ouvir estórias. Ela se
rebela, então, contra os modernos costumes da cidade e volta para sua aldeia. No romance Terra Sonâmbula, é
o velho Tuahir quem salva o jovem Muidinga e o ajuda a recuperar a memória. No conto “Nas Águas do
Tempo”, do livro Estórias Abensonhadas, é o avô quem passa as tradições ao neto e o desperta para a necessidade
de sonhar e de, assim, poder captar os profundos sentidos da vida e da morte. É ele quem ensina ao menino
que: “há olhos que espiam para dentro; são os que usamos para ver os sonhos.” (COUTO, 1994, p.16).
Em Luandino Vieira, a figura dos idosos também vem revestida de sabedoria. No conto “A Estória
da Galinha e do Ovo”, do livro Luuanda, Vavó Bebeca, junto com as crianças, é quem reinstaura a harmonia na
ordem grupal ameaçada, resolvendo a disputa do ovo que a galinha Cabíri botara na cubata de Nga Bina,
vizinha de Nga Zefa. O saber e a sensibilidade são dos mais novos e da mais velha, seres que, nas culturas
africanas tradicionais, geralmente, se encontram à margem dos valores mesquinhos do senso comum. O vôo
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final de Cabíri, misturando-se ao sol, funciona como metáfora da paz recuperada.
Além dos velhos e das crianças, também é recorrente, na obra dos três autores aqui estudados, a
presença de personagens “loucos” e/ou aleijados, cuja função é a de denunciar os valores convencionais
presentes nas sociedades e o binarismo que, geralmente, opõe o normal ao anormal, excluindo todos os que
não se enquadram nos padrões ortopédicos e disciplinares impostos pelos preceitos médicos e morais socialmente
consagrados. Vigilâncias, punições, exílios são os mecanismos discriminatórios utilizados para anular os
diferentes.
Mula-Marmela, personagem principal do conto “A Benfazeja”, de Guimarães Rosa, é a personificação
do grotesco com que a sociedade preconceituosa, em geral, rejeita o lado demoníaco do inconsciente humano.
No plano do enunciado, o narrador conta a história dessa mulher discriminada, a Marmela, que matara o
marido malfeitor, de nome Mumbungo, passando, depois, a guiar o enteado, o cego Retrupé, “um revoltado
blasfemífero”, o qual, ela mesma veio também a assassinar. Mas os crimes por ela cometidos foram, entretanto,
movidos por um profundo amor. Amor por esses dois homens que só semeavam desgraças. E amor pela
comunidade, livrando-a da periculosidade desses seres a quem tanto se afeiçoara. É o narrador que, no plano
da enunciação, procura comover os leitores para que possam entender o outro lado dessa mulher.
Desconstruindo provérbios consagrados, subverte a imagem de Marmela, desvelando-lhe a fisionomia doce e
a abnegação pelo cego. Mula-Marmela, no texto, é descrita como a “grande loba”. Aliás, há diversas referências
à semântica leporina relacionadas a ela: “do lobo a pele”(ROSA, 1962, p. 129),“feia, lupina” (ROSA, 1962,
p.133). A loba representa o desejo voraz; é a grande mãe e também a grande prostituta, tanto que lupanar, cuja
etimologia é a mesma de lúpus (lobo), significa prostíbulo. Marmela é essa figura ambígua, a que mata e a que
ama, “a maldita” e “a benfazeja”, prostituída pela vida, mas com um grande instinto maternal. Do conto fica
a seguinte questão: por que julgar e discriminar, quando, por baixo da pele de lobo, pode haver um coração de
cordeiro, ou seja, sob a aparência do grotesco, podem existir amor, misericórdia e outros sentimentos sublimes?!
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No conto “A Estória da Menina Santa”, de Luandino, a protagonista também apresenta defeitos
físicos: os olhos sempre colados ao acordar e o acentuado desvio na coluna. Criada pela autoritária Madrinha,
a menina foi vítima de inúmeras surras que podem ter sido a causa de sua atrofia. O narrador deixa essa
hipótese em suspenso, apresentando várias versões da história. O certo, entretanto, é que a madrasta sempre
exerceu grande tirania em relação à enteada.
A Menina-Santa, como a Mula-Marmela do conto de Guimarães, também abrigava o desejo sublime
da maternidade. E muito lutou por isso, embora tenha sido sempre incompreendida. Ainda mocinha, descobriu
exercícios corretivos de yoga e passou a praticá-los, despida, à frente do espelho. Mas, logo foi proibida de
continuar a ginástica pela madrasta Ximinha. Quando, mais tarde, Santa ficou grávida, foi também rejeitada e
teve de deixar o musseque, acusada de despudorada. Exilada espacial e culturalmente, ela se debateu entre o
desejo de ter o filho e a culpa do pecado cristão inculcado em seu interior pelas palavras de Ximinha. O
clímax do seu sofrimento se dá, quando, desesperada, ingressa em delírio profundo, rompendo com os limites
do senso comum. Fraturada entre as origens africanas e os valores católicos em que fora criada, começa a orar
em português e quimbundo, língua materna por onde jorrava toda sua afetividade. Apoiando-se na devoção à
virgem-madrinha, assume seu propósito de ser mãe e volta ao musseque, exibindo, sem medo, o ventre crescido.
Mia Couto, no conto “A Rosa Caramela”, também coloca como protagonista uma menina “gauche”,
marginalizada, cujo lindo rosto contrastava com a corcunda. Vivendo sob o signo da exclusão, Rosa se
acostumara a ser sozinha. Com os sentimentos petrificados, depois que o noivo a deixara esperando no altar,
passa a se enamorar das estátuas. Alegoria de sua solidão, pedras e minérios apontam para a frieza de sua vida.
“Vigiar e punir” _ como ensina Michel Foucault_ são os mecanismos ortopédicos e disciplinares mais usados
pelas culturas repressoras que não dão espaço aos diferentes.
A voz enunciadora é mordaz, quando pergunta: “Era a loucura da corcunda que fazia voar os nossos
juízos?”(COUTO, 1992, p.18). Nas entrelinhas textuais, fica a denúncia da tênue fronteira que, na verdade,
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separa o senso do não-senso. Tal questionamento se acirra com o episódio da prisão de Rosa.“Seu único delito
fora venerar a estátua de um colonialista”. Os fantasmas do passado, portanto, continuavam a assombrar as
mentalidades revolucionárias que haviam mandado derrubar os monumentos coloniais em respeito à nação
recém-libertada. Para “o chefe das milícias a loucura da corcunda escondia outras, políticas razões” (COUTO,1992, p.
19). Ou eram as cicatrizes da guerra que faziam com que visse em tudo motivos políticos subjacentes?!... A
enunciação do conto deixa essas questões em suspenso, instigando o leitor a uma reflexão crítica.
Saída da prisão por terem reconhecido sua inocência, Caramela, em seu “sobressonhar”, extrapola
os ditames da moral e da razão convencional. Comparecendo ao enterro de um enfermeiro que se enforcara, se
desnuda, à beira da cova. Atira sua roupa para dentro da sepultura e pergunta, deixando todos perplexos: “_
Deste morto posso gostar! Já não é dos tempos. Ou deste também sou proibida? (COUTO, 1992, p. 22) A personagem,
em seu supra-senso, questiona, da mesma forma que a Menina Santa, de Luandino, o direito de amar, de não
ter o corpo excluído por causa do defeito físico.
O final do conto é surpreendente. O pai do narrador, homem doente do coração, desencantado do
trabalho e da vida, que apenas tinha notícias da cidade através do irmão, era o noivo que deixara Rosa esperando
no altar. Ao saber da cena da moça no cemitério, fica muito incomodado e, à noite, quando a ouve soluçar no
degrau de sua varanda, vai ao seu encontro, comovido. Realidade e sonho se entrelaçam. Rosa se irrealiza e os
dois partem noite adentro... Como a Mula-Marmela, de Guimarães, Rosa-Caramela é doce também, trazendo
na própria onomástica o puro gosto do mel. Ambas apresentam, assim, na semântica de seus nomes, a ternura
dos que são capazes de sentimentos sublimes, porque, a despeito da solidão e do desprezo, ainda conseguem
buscar o amor e os sonhos.
Concluímos que Guimarães, Luandino e Mia Couto, apesar das afinidades, afirmam, principalmente,
as diferenças de suas respectivas culturas. Embora operem com o local, atingem também o universal, pois, ao
romperem com os dualismos aprisionadores do humano, recuperam as figuras dos excluídos, descobrindo-lhes
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sentidos poéticos profundos que os recolocam além das fronteiras da razão convencional, às margens do
inefável, onde a vida, a poesia e a linguagem se enlaçam, fluindo à procura de infinito:
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando o mais dentro aflora
Puro silêncio:
Água da palavra...
Asa da palavra....
Margem da palavra ...
( NASCIMENTO, M. e VELOSO, C.)
BIBLIOGRAFIA
COUTO, Mia. Cronicando . Lisboa: Ed. Caminho ,1991. p. 29-32.
_______ Cada homem é uma raça. 2. ed. Lisboa: Caminho,1992. p.11-24.
_______ Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho,1992. 220 p.
_______ Estórias abensonhadas. Lisboa: Caminho,1994. p.9-14.
_______ A Varanda do frangipani. Lisboa: Caminho, 1996. 154 p.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1986. 277 p.
PADILHA, Laura. Entre voz e letra. Niterói: EDUF, 1995. 216 p.
NASCIMENTO, Milton e VELOSO, Caetano. “A Terceira Margem do Rio”. In: L.P. Txai. SP: Discos Colúmbia,
s.d.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio: José Olympio,1962. p.124-134.
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_______ Grande sertão: veredas. 4. ed. Rio: José Olympio,1965. 460 p.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Além da idade da razão: longevidade e saber na ficção brasileira. Rio: Ed. Graphia,
1994. 246 p.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. 3. ed. Lisboa: Edições 70, s.d. p. 99-123.
________Velhas estórias. 3. ed.. Lisboa : Edições 70, 1986. p.99-164.
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CLÁUDIA ANDRÉA PRATA FERREIRA (DOUTORA - UFRJ)
Resumo:
Leitura hermenêutica e o texto Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa com o objetivo de evidenciar
o percurso da memória e a vivência da religiosidade na narrativa. Riobaldo, narrador-personagem, realiza a
procura do sentido da sua existência emaranhando-se pelas veredas narrativas. Centralizamos a narrativa como o
elemento privilegiado para o homem resgatar o binômio memória-identidade e por extensão, o sentido da existência.
Centralizamos nossas atenções na palavra e na narrativa tendo como referência o pensamento do crítico W.Benjamin.
O ato de narrar, segundo Benjamin origina-se na experiência (Erfahrung). Portanto, narrar é a capacidade de cada
um trocar experiências com o outro. Constatamos que tanto a filosofia e narrativa sofreram as conseqüências
impostas pelo domínio da razão e da ciência e das transformações nas relações sócio-econômicas. Benjamin
propõe a reconstrução da Erfahrung acompanhada por uma nova forma de narrativa.
A narrativa provoca o pensar, as lembranças. Materializa a experiência e a memória através da palavra. A
palavra des-vela a existência de Riobaldo e é a partir dela que se reconstrói o seu caminho e compreende a sua
existência. Finalizamos a leitura do texto rosiano focalizando a relação memória-religião como um desdobramento na procura existencial realizada pelo narrador-personagem.
RIOBALDO E O SENTIDO DA EXISTÊNCIA NAS VEREDAS NARRATIVAS.1
1 – Riobaldo: a Identidade – Memória e a Diferença
Viver - não é? - muito perigoso. Porque ainda não se sabe.
Porque aprender a-viver é que é o viver, mesmo.
(GS:V, p.443)2
Apropriamos nos do fragmento 101 de Heráclito “Eu me busco a mim mesmo” para ilustrar a problemática na qual se encontra o personagem Riobaldo no texto Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa: a
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procura do sentido de si e do mundo que o cerca - a procura da identidade.
A leitura do sentido da identidade dar-se-á a partir de duas perspectivas: a memória e a vivência da
religiosidade. A memória entendida como elemento essencial da identidade e compreendida na perspectiva
temporal, pois a forma do ser só se concretiza no ser e estar no tempo. O mundo religioso surge como uma das
inúmeras maneiras com que o indivíduo vivencia a sua singularidade frente aos outros.
Partimos da premissa de que a palavra permite ao indivíduo, no caso o personagem Riobaldo, fazer
uma leitura interiorizada de si e descobrir a essência do seu ser e com isso chegar ao sentido real, verdadeiro de
sua procura, ou seja, a sua identidade.
Partindo da seguinte exposição de Roberto da Matta, procuramos delinear nossa concepção de identidade:
(...) entre as formigas existe sociedade, mas não existe cultura. Ou seja, existe uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam como coletividade. (...) Mas não há cultura porque não existe uma tradição viva, conscientemente
elaborada que passe de geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular e única uma dada
comunidade relativamente às outras. (...) Ter tradição significa mais do que viver ordenadamente certas regras
plenamente estabelecidas. Significa, isso sim, vivenciar as regras de modo consciente, colocando-as dentro de uma
forma qualquer de temporalidade.3
Ou seja, para que um indivíduo tenha identidade é necessário que possua alguma espécie de memória. Pois a sua forma ou essência de ser só pode ser compreendida na perspectiva do tempo e com referência a ele;
a forma de ser só se concretiza no ser e estar no tempo. Outro aspecto fundamental é a diferença. O modo de se
relacionar com o mundo, de conceber o real e o divino seriam os elementos singularizadores, que delimitariam
o espaço de cada grupo (ou indivíduo, como no caso do personagem Riobaldo) frente aos outros. Clifford
Geertz denomina tal diferença como sendo o “ethos” de um povo que pode ser expresso de inúmeras maneiras:
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“... é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude
subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete”.4
Uma vez definido o sentido de identidade e memória que pretendemos adotar, começaremos a nossa
leitura de Grande Sertão: Veredas.
O triângulo Identidade-Memória-Diferença só pode ser re-construído a partir da opção pela fala
feita por Riobaldo.
Riobaldo “Cerzidor” (GS:V,p.126.) cose os fatos vividos semelhante a uma colcha de retalhos e volta
o seu olhar para o passado à procura de um sentido para além do significado isolado de cada fato.
Riobaldo insiste no ato de ler e reler os elementos fragmentários, os seus “retalhos”, estabelecendo
uma rede de combinações e relações múltiplas entre eles. O passado não é um tempo homogêneo e vazio, mas
rico de sentido e mistério.
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do
comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o
seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita (GS:V, p.77.).
Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas
passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho
que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado (GS:V, p.143.).
Riobaldo não vive a diferença apenas em relação aos outros, mas em relação a si mesmo. Ele lê e relê
os “retalhos” da sua vida - infância, adolescência, fase adulta - as transformações e seus efeitos. Riobaldo
narrador procura recuperar o sentido da sua existência emaranhando-se pelas veredas. Narrando, Riobaldo faz
viver tudo o que o rodeia. Na palavra, Riobaldo encontra Riobaldo. Ele pensa a existência. A palavra existência de origem latina (ek-sistere), compõe-se do prefixo ex: movimento para fora e sistere: estar. O ek-sistere é o
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libertar-se do homem, implícito no prefixo ek, que interpretamos como sendo o lançar-se para fora das relações de uso, em busca da realização plena da sua humanidade.5
Nessa tensão de identidade e diferença surge o espelho como mediador. A palavra espelho origina-se
da palavra latina speculum, que formou o verbo especular e especular significa pensar, refletir. Riobaldo projeta
a sua imagem no espelho. Quando olha o espelho, ele vê um não-eu e toma consciência do que não-é. Desse
modo, o homem precisa sair de si para chegar a si mesmo no outro. Riobaldo só se afirma como Riobaldo
quando sai de si e se projeta no outro. Assim, Riobaldo delimita o que é, ou seja, a sua identidade.
2 – Riobaldo: Narrador
Centralizamos nossas atenções em dois elementos: a palavra e a narrativa. Tomamos como referência os ensaios de Walter Benjamin intitulados Experiência e pobreza6 e O Narrador7.
Segundo W.Benjamin, a arte de narrar origina-se na experiência - Erfahrung, conceito central no pensamento benjaminiano. Do verbo alemão erfahren “chegar a saber” temos Erfahrung “experiência”. Visto sob
esse ângulo, narrar é a capacidade de cada um trocar experiências com o outro. A experiência é, por conseguinte, o elemento original e originário a que recorreram os narradores. A troca de experiência estava relacionada a uma organização social e comunitária ligada a uma tradição viva e coletiva. Desse modo, a narrativa
consiste numa troca de experiências. No seu sentido etimológico, o verbo latino narrare significa “fazer conhecer”. Portanto, erfahren e narrare fazem chegar o conhecimento ao homem. Erfahrung é a experiência que leva o
conhecimento ao homem. Mas não a um conhecimento científico ditado por regras para estabelecer o que é ou
não é verdadeiro. Erfahrung é a experiência que leva o indivíduo a conhecer a sua existência.
Concomitantemente ao desaparecimento da narrativa como memória e experiência partilhada e
transmissível coletivamente surge o modo capitalista de produção, que responde pela organização sócio-econômica do império da razão. A sociedade moderna, assentada no modo de produção capitalista, na cientificidade
e na técnica, não deixa espaço para a Erfahrung. A Erfahrung “cede” o lugar para a Erlebnis, também experiênAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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cia, mas uma experiência vivida isoladamente por um indivíduo solitário, desligado do seu grupo, de uma
memória comum.
W.Benjamin mostra em seu ensaio O Narrador o impacto na narrativa das transformações sociais e
culturais que deram à luz a modernidade européia, mais tarde modernidade ocidental, hoje simplesmente
modernidade. A modernidade técnica inerente ao estilo de vida burguês e capitalista do império da razão
acaba com a arte de narrar e transforma a comunicação, até então portadora de uma sabedoria, em informação, portanto, um artigo de consumo como outro qualquer. W.Benjamin propõe a reconstrução da Erfahrung
acompanhada por uma nova forma de narrativa.
Desse modo, a escolha da narrativa para Riobaldo realizar a sua procura existencial não é gratuita.
Guimarães Rosa escolhe a narrativa para que Riobaldo reconstrua o seu percurso existencial. A narrativa
permite a Riobaldo manifestar o seu ser. Ela provoca o pensar, as lembranças. A narrativa é experiência e
memória. Guimarães Rosa estabelece essa relação de experiência e memória na elaboração do seu texto:
“Quando escrevo, repito o que vivi antes”8. O universo literário rosiano é construído a partir da sua experiência de homem do sertão:
(...) nós os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está em nosso sangue narrar estórias; já no berço
recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas
multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se
assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e penetra
nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens.9
Riobaldo re-constrói o seu percurso existencial a partir da narrativa. Materializa a sua experiência e as
suas memórias através da palavra. Na sua definição: “O que é pra ser - são as palavras” (GS:V, p.39.). É no
narrar que ele entende o viver e o seu “eu”, pois na história oral a pessoa não resgata outra coisa, mas sim ela
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própria, o que ela tem para contar. A palavra des-vela a existência de Riobaldo e é a partir dela que se reconstrói o seu caminho: “É na palavra, é na linguagem que as coisas chegam a ser e são”.10
Eu estou contando assim, porque é meu jeito de contar. (...) A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. De cada
vivimento que real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa
(GS:V, p.77-78.).
O ato de narrar torna-se possível na medida em que Riobaldo retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência, ou a relatada pelos outros. Os causos contados fazem parte da sua experiência de vida.
Deste modo, Riobaldo repete a relação de criação de Guimarães Rosa com os seus textos. Guimarães Rosa
desbasta as camadas sedimentadas pelo uso e pelo tempo que encobrem a palavra, a narrativa e o próprio
homem para que estes possam redescobrir o originário que vige em cada um.
Guimarães Rosa resgata o binômio memória-experiência, que caracteriza a narrativa na elaboração
do seu texto. As dúvidas, o caráter indagador e a procura existencial riobaldiana percorrem toda a narrativa.
Ao final do percurso narrativo Riobaldo conclui: “Existe homem humano. Travessia” (GS:V, p.460.). Rosa/
Riobaldo retratam o mundo do sertão com sua lógica própria que não é a da razão tecnológica. O sertão é a
morada que acolhe o homem e permite a manifestação do seu ser.
3 – Riobaldo à procura de si
Guimarães Rosa desbasta o idioma, “única porta para o infinito”11 das “montanhas de cinzas”12 com
que o uso o encobriu e o afastou do seu sentido original. Cabe ao escritor limpar e cuidar do idioma, expressão
da vida, pois “O bem-estar do homem... depende de que ele devolva à palavra seu sentido original”.13
Percebemos em Guimarães Rosa uma preocupação com a linguagem, semelhante à preocupação
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heideggeriana, em que esta é definida como a morada do ser, libertando-se o ser através da libertação da
linguagem. Os poetas e pensadores são os guardiões da Casa do Ser, a linguagem. Na sua luta pela linguagem,
Rosa chega a chocar as palavras antes de falar ou escrever, ocupando-se de uma palavra ou frase durante horas
ou dias. Seu método consiste em utilizar cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das
camadas de impurezas, impostas pela linguagem quotidiana, e reduzi-la a seu sentido original. Desse modo, G.
Rosa realiza a vigília da Casa do Ser, a linguagem.14
Guimarães Rosa promove uma comunhão entre a língua e o homem - “A língua e eu somos um casal de
amantes que juntos procriam apaixonadamente...”15 - em busca da própria unicidade perdida da linguagem
universal: “Queria a língua que se falava antes do Babel”16.
Nesta perspectiva, Guimarães Rosa, para além do significado corrente, busca na palavra a sua origem,
onde procura o semen, a semente de significados que a própria língua oferece e numa atualização imprime
dimensões novas, que dão singularidade à sua criação: “ ... quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a
palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem”17. Esse poder de
semantizar as palavras comparece com grande intensidade na denominação do personagem principal: Riobaldo.
Na entrevista a Günter Lorenz, Rosa expõe a ligação/relação desse nome com a palavra rio:
... gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco.
O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da
sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são
tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua
eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.18
De um modo geral, o rio está estreitamente ligado à água. A fluidez do rio, por sua vez, o transforma
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em símbolo do tempo e da transitoriedade, mas também da renovação. O tempo do rio não é o tempo histórico, cronológico ou do “relógio”. O rio possui um tempo próprio. Podemos nos reportar a imagem de uma
pessoa, Riobaldo sentado na cadeira junto ao seu interlocutor (?) no início da narrativa. Ele escolhe o seu
caminho, a narrativa. Vive as experiências e quando termina volta ao ponto de origem. Riobaldo pode retornar
ao local e ter a mesma aparência física, contudo a sua essência não será a mesma, pois ele vivenciou as
situações e ao final foi capaz de compreender o sentido da sua existência. Logo, os seus olhos passam a
observar as coisas sob um prisma diferente.
A trajetória realizada pelo rio - de onde veio, para onde vai - simboliza a existência humana e o curso
da vida com a sua sucessão de desejos, sentimentos, emoções, intenções e a variedade de seus desvios. Por
isso, o rio com a sua simbologia do tempo e da existência se casa tão bem com o personagem Riobaldo.
Riobaldo traz o passado para o presente não para que ele aconteça novamente, mas para poder compreendêlo.
O nome Riobaldo é formado por dois elementos: Rio e -baldo. O rio, como observamos anteriormente,
designa o fluxo e a movimentação mutante da água. Simboliza a fluidez das formas e a renovação. O curso de
suas águas é a corrente da vida e da morte. A água é fonte de vida e meio de purificação. Por sua vez, o
elemento -baldo levou os críticos a diversas interpretações – das quais destacamos duas:
1) O termo -baldo é uma forma contracta do particípio “baldo” do verbo baldear.19 A interpretação
dada por Consuelo Albergaria20 ressalta que a diferença entre Riobaldo e os outros jagunços está na diferença de
objetivos: “Se uns querem vencer a batalha, o outro pretende assumir a totalidade do seu ser, através do
conhecimento”21. A interpretação de C. Albergaria, longe de qualificar as atitudes de Riobaldo, destaca o
homem em estado de procura e compreensão do seu ser. Na visão da autora, a luta de Riobaldo não se restringe
a um plano físico, mas o ultrapassa. Donde a sua opção pelo verbo baldear. Baldear sugere uma idéia de
movimento com a transferência de algo de um lugar para outro e o balançar. Podemos interpretar essa idéia de
movimento como o fluir das águas, que faz do rio o símbolo do tempo e da transitoriedade, da renovação
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constante e também de duas dimensões: a da superfície e a da profundidade. Podemos acrescentar, ainda, duas
perspectivas a leitura de baldear. Na primeira, baldear evoca a imagem do rio com a sua oscilação e nos remete
a um narrador em busca de um sentido. A segunda, baldear significa um rito de passagem para Riobaldo. Ou
seja, a transição de uma situação para outra e de um mundo cósmico e social para outro. Em outras palavras,
a transição de um mundo aparente, físico, da jagunçagem e suas andanças para outro, o mundo da religiosidade.
2) Ana Maria Machado elabora a sua interpretação do nome Riobaldo a partir do estudo de M. Cavalcanti
Proença.22 O nome Riobaldo marca, segundo a autora, as mudanças de curso do personagem, que não se fixa
num único caminho e se encontra num permanente fluir, tomando o rio por modelo: “E como o rio Urucuia,
ele nunca chega ao mar, frustrado em sua vida de jagunço”23 A.M.Machado ilustra a sua interpretação com as
seguintes citações:
Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me
entende? O que eu queira (GS:V, p.260.).
Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte,
ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucúia é um rio, o rio das montanhas. (...) Recolhe e semeia
areias. Fui cativo, para ser solto? (...) Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucúia está sempre, ele
corre. O que eu fui, o que eu fui (GS:V, p.329.).
Ah, não, eu não - rio, riachos! - não me amofinava (GS:V, p.335.).
A.M.Machado constata que Riobaldo se compara a um rio, quando completa com outros versos a
canção de Siruiz:
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(...)Urucúia - rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das águas claras
que turvam na perdição (GS:V, p.241.).
Na concepção de A.M.Machado, Riobaldo é um rio, que implica em travessia, desafio permanente e
um dos conceitos capitais no texto rosiano. A relação rio e travessia, percebida pela autora, fornece outra
dimensão ao nome Riobaldo: “... quando um homem enfrenta um rio para atravessá-lo, sem pontes ou embarcações, contando apenas com seus próprios recursos, tem que descobrir o VAU DO RIO. Essa procura, RIOVAU-DO a traz em seu Nome e a dissemina”.24
Para Riobaldo, o vau significa alegria e coragem: “O vau do mundo é a alegria! (...) Vau do mundo é a
coragem...(GS:V, p.232.). Ou seja, o vau é o próprio Deus: “... Deus é alegria e coragem...” (GS:V, p.237.).
Donde a autora defende a idéia de que a procura do vau por onde realizar a travessia do mundo se confunde
com uma procura de Deus. Assim, Riobaldo encerra em seu nome a oscilação entre dois pólos: o de Deus e o
do Diabo. Riobaldo/rio cheio de meandros oscila e não se resolve; assim ele segue frustrado e baldo, e banha
os dois lados, rega as duas margens.25 Desse modo, a interpretação de A.M.Machado consegue avançar na
discussão sobre o nome Riobaldo, não se prendendo à possível frustração de Riobaldo por não ter se realizado
como jagunço. A sua “frustração” está ligada fundamentalmente, como observou Augusto de Campos26, à sua
dúvida existencial, a dúvida hamletiana (ser ou não ser), que encontra o seu paralelo no texto de Rosa, na
relação Deus X Demo: “Remanso de rio largo... Deus ou o demo, no sertão...” (GS:V, p.424.).
4- Sertão
Nossa leitura do texto rosiano privilegia o sertão como uma região múltipla, complexa e ambígua. O
sertão reflete, a seu modo, a oscilação presente ao longo do texto entre Deus e o Diabo, o Bem e o Mal: “O
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sertão não é malino, nem caridoso, mano oh mano!: ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo” (GS:V, p.394.).
O sertão se transforma em linguagem e essa linguagem revela toda a dimensão da vida humana. Revela
um ser, Riobaldo, em procura do sentido da vida, da existência. No sertão, Riobaldo vive em constante procura de sentido: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes” (GS:V, p.79.). No sertão, Riobaldo realiza
suas andanças como jagunço, vive as suas contradições e defronta-se em sua condição de “homem provisório”. Nesse espaço construído pelos conflitos interiores e a indagação metafísica de Riobaldo, o narradorpersonagem realiza uma procura do sentido da vida.
Analisado por este prisma, o sertão está intrinsecamente ligado ao tema da travessia, palavra que
perpassa todo o texto. Compreendemos a travessia como sendo o percurso existencial realizado por Riobaldo
na procura do significado da sua existência, da sua identidade. Riobaldo encontra-se em estado de procura do
seu ser: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” (GS:V,
p.312.).
Riobaldo revive no presente as suas andanças, pois estas não foram concluídas no passado: “E estou
contando é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da
coragem, da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder” (GS:V, p.79.).
Este estado de procura se desenvolve e toma corpo na palavra, no ato de narrar. Riobaldo vivenciou as
experiências narradas no presente, contudo ao contá-las ele as vivencia novamente, procurando compreender
aquilo que até o momento não pudera compreender.
5 - Travessia
A travessia e o infinito, temas intimamente ligados, perpassam toda a narrativa rosiana. A travessia
significa, essencialmente, a procura de Riobaldo pelo “homem humano” (GS:V, p.460.). Seu percurso pelas
veredas do sertão simboliza a procura humana na compreensão do seu ser. Riobaldo se encontra em toda a
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travessia em estado de procura e busca de compreensão do ser: “Digo: o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (GS:V, p.52.).
O símbolo do infinito, associado à travessia, ultrapassa o símbolo matemático, não se reduzindo a uma
simples convenção e ganha uma dimensão mais rica na narrativa.
Qual a relação de travessia e infinito? Consuelo Albergaria nos fornece uma pista em seus estudos
intitulados Bruxo da linguagem no Grande sertão: leituras dos elementos esotéricos presentes na obra de Guimarães Rosa27 e Narrativas espelhadas em João Guimarães Rosa28. Como observa a autora, o símbolo do infinito (¥)
aparece em alguns ramos do ocultismo, conhecido como lemniscata na vertente esotérica oriental. A figura da
lemniscata é melhor compreendida a partir da sua etimologia. Lemniscata, palavra latina, traduzida por “fita”,
configura o movimento da mente em sua ação de pensar. A autora enriquece a leitura etimológica, observando
que o sentido dado ao infinito por Leibniz eqüivale a movimento. Logo, para Riobaldo o infinito significa o
movimento que ele realiza à procura do ser. Ao final Riobaldo conclui: “Existe é homem humano. Travessia”
(GS:V, p.460.).
Riobaldo utiliza a narrativa para realizar a sua travessia, que simboliza a procura existencial do personagem. É neste contexto que devemos compreender o leitmotiv “Viver é negócio muito perigoso...” (GS:V,
p.11.), motivo repetido ao longo do texto rosiano que reflete na linguagem um caráter indagador. Todo o
relato é construído sob o signo da procura, da procura de um sentido. O homem é valorizado ao extremo, “...
eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.” (GS:V, p.15.). Ele é
um ser livre com total liberdade, sem estar preso a qualquer tipo de crença restringente para procurar elementos para se encontrar, compreender a sua existência.
6 – O silêncio e a solidão
O silêncio é a possibilidade da palavra se desconcentrar, permitindo a visibilidade do seu significado.
O silêncio permite a Riobaldo perceber o sentido não apenas da palavra como também da sua vida. A cena da
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encruzilhada onde se realiza o pacto ilustra o impacto do silêncio e da solidão sobre Riobaldo:
- “Lúcifer! Lúcifer!...” - aí eu bramei, desengulindo. Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só...
- “Lúcifer! Satanaz!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo demais (GS:V, p.319.).
A solidão é o espaço que Riobaldo se deu para ser o que ele é: “Pois a solidão traz consigo a força
primigênea que não nos isola mas lança toda a existência na proximidade profunda de todas as coisas”29.
No nível simbólico, o silêncio é o prelúdio da revelação, funcionando como um rito de passagem que
envolve o grande acontecimento da narrativa rosiana: a recuperação do sentido da existência de Riobaldo por
ele mesmo.
Visto pela ótica das regras monásticas, o silêncio é uma grande cerimônia: “Deus chega à alma que faz
reinar em si o silêncio...”30. O silêncio faz o sentido de nossa existência se tornar mais claro para nós, uma vez
que nos convida a reflexão.
A narrativa riobaldiana alcança o seu sentido pleno no silêncio, um mergulho no âmago do ser do
narrador-personagem. O encontro com o diabo, o “outro”, é na verdade o encontro com o seu “próprio eu”,
o ponto de equilíbrio que permite a Riobaldo se ver como sujeito do seu destino.
7- O Caminho
Riobaldo sintetiza a essência do Zen. O Zen é, em sua essência, a arte de descobrir a natureza do
próprio ser e mostrar o caminho do cativeiro à libertação. O Zen se propõe basicamente a disciplinar a mente
por si mesma, fazê-la seu próprio mestre através de uma visão introspectiva na sua própria natureza. O termo
Zen origina-se do sânscrito Dhyana por meio do chinês Ch’an. Geralmente traduzido por “concentração”. Nas
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palavras de Daisetz Teitaro Suzuki: “Qualquer ensinamento que exista no Zen vem mediante nossa própria
mente. Ensinamo-nos a nós mesmos. O Zen meramente aponta o caminho”31. Desse modo, Riobaldo utiliza a
narrativa para descobrir o sentido do seu ser.
Ao longo da narrativa, Riobaldo só consegue recompor a sua existência trilhando o seu próprio caminho, pois na sua totalidade o Zen é uma experiência pessoal.
Conforme o ensinamento do compadre Quelemém, “... a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” (GS:V, p.47.) Riobaldo reconstrói o seu percurso existencial através da palavra que se desloca por todo
o texto, dando sentido à sua procura. A palavra se propõe a pro-curar o percurso realizado e cujo sentido só
Riobaldo conhece.
8 - O tempo
O tempo no texto rosiano não é o tempo contado do relógio e não está comprometido com o ritmo
louco da vida urbana, contemporânea e capitalista. O tempo tem o seu ritmo próprio, não é homogêneo, linear
ou histórico. É um tempo cheio de oscilações, que vai se compondo conforme a vontade do narrador. Lembra
o caleidoscópio, pequeno instrumento cilíndrico, em cujo fundo encontramos fragmentos de vidros coloridos,
os quais, ao refletirem-se sobre um jogo de espelhos angulares dispostos longitudinalmente, produzem um
número infinito de imagens. Para o narrador, cada uma dessas imagens terá um sentido. O importante não é a
seqüência dos acontecimentos (das imagens), mas a compreensão do sentido dos mesmos.
Na interpretação de Benedito Nunes32, o uso da categoria de tempo é dividido em quatro momentos:
1°) O tempo da narrativa - desenvolvido em três unidades temporais distintas: a) a unidade correspondente ao relato oral que está sendo feito (presente); b) a unidade dos acontecimentos épicos (passado); c) a
unidade correspondente às lembranças evocadas (presente-passado).
2°) O tempo do relato oral - de duração limitada em três noites e dois dias e situando o narrador e o
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interlocutor no mesmo espaço e o fluxo da narração no presente:
Eh, que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho
de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo
me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias (GS:V, p.22.).
3°) O tempo correspondente aos acontecimentos que já se consumaram - situa-se no pretérito perfeito das coisas
transcorridas, que o “epos retoma (a sucessão ou passagem desse tempo sendo sustentada, em diversos momentos da narrativa, por expressões determinadas)”33.
4°) O tempo da evocação, da lembrança - o narrador reatualiza o presente do passado; o narrador coloca-se
diante dos episódios da sua aventura finda, “leva-o também, por força das expectativas, aspirações e decisões
tomadas, que a esses instantes remontam, a projetar o futuro que neles se presentificou, gerando o passado”34.
O passado, o presente e o futuro formam um continuum no qual o personagem Riobaldo desloca-se todo
o tempo. Este deslocamento temporal revela uma visão fragmentada, na qual surge novamente a figura do
caleidoscópio. Basta girar levemente e o caleidoscópio forma uma imagem e quanto mais giramos mais se
formam imagens, que vão se sucedendo, nunca iguais, cada qual com a sua especificidade. Riobaldo volta-se
para as suas lembranças, que passeiam por toda a narrativa sem se preocupar com o tempo mas com o seu
“...signo e sentimento” (GS:V, p.77-78.), revelando o estado de pro-cura do narrador.
A palavra procura compõe-se do prefixo latino pro, que significa “movimento para frente”, e do substantivo latino cura, que quer dizer “cuidado”, “aplicação”, “atenção”, “inquietação”, “preocupação” e “vigilância”. Nesta perspectiva, a palavra procura revela um cuidado com aquilo que nos é importante. Assim,
Riobaldo re-vela um cuidado com a sua maneira de contar, pois é através da fala que ele recupera o sentido da
sua existência.
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O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço querendo
esquentar, demear, de feito meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte
das coisas caminho do que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é (GS:V, p.135.).
A visão retrospectiva, oscilante, mais ou menos organizada de Riobaldo - “Ai, arre, mas: que esta
minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas.” (GS:V, p.19.) - evidencia o
estado de pro-cura de significado e compreensão dos fatos vividos, ou seja, a construção da identidade. A
leitura dos acontecimentos não se detém apenas no “que houve”, mas também no aspecto essencial do que
“não houve”. Essa leitura da sua vida lhe permite compreender o real sentido da sua identidade através da
contextualização da memória no ser e estar no tempo, pois a memória só pode ser lida e (re)vivida na sua
inserção temporal e no modo pelo qual Riobaldo na singularidade do seu ser se situa frente aos outros.
As três unidades temporais - o passado, o presente e o futuro - formam um continuum ou como define
B.Nunes35 um processo de temporalização que conclui com o processo da própria narrativa. A narrativa
riobaldiana com todo o seu contar dificultoso, tortuoso e oscilante depende do tempo como movimento da
existência finita em seu cuidado e em sua inquietude. As unidades temporais (passado-presente-futuro) se
interligam no processo da narração, produzindo o tempo continuum enquanto paralelamente a narrativa vai
sendo produzida. Tempo e narrativa produzem uma reflexão sobre a trajetória de Riobaldo, um indivíduo em
busca do conhecimento de si próprio e do mundo que o cerca.
9 – O institucional e o marginal na religiosidade
A religiosidade riobaldiana está ligada ao sentido etimológico da palavra religião oriunda do latim
relegere, que significa “ligado à transcendência de Deus” ou ainda do latim religare que significa “ligar de novo,
religar”, no caso, religar o Homem a Deus, de quem ele havia se separado. Nesse contexto, religare promove um
retorno do homem a Deus.
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A religiosidade para Riobaldo não passa necessariamente e/ou exclusivamente pelo caminho
institucional, no seu caso a Igreja Católica (Instituição). Católico e religioso Riobaldo admite: “Sei que é bem
estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos” (GS:V, p.10.) A religião como instituição está inserida no
mundo da ordem que define o espaço de atuação do indivíduo no mundo, restrito ao cultivo e reprodução
dessa mesma ordem. A instituição regula a atuação do indivíduo no mundo. Por isso, a religiosidade vivenciada
via poder institucional é uma religiosidade desprovida de vida, inoperante e puramente ornamental. Os ornamentos podem dar um certo colorido à vida, mas não podem dar o sentido real da Vida. A instituição desligase da vida quotidiana, dos anseios e dúvidas do ser humano e perpassa através dos tempos como um grande
elefante branco. Esse elefante mantém a ordem social, legitima o status quo dominante, mas não tem a verdadeira
fonte do sentido da existência. Na concepção de Riobaldo, a religiosidade é uma opção que o indivíduo faz de
estar ligado a Deus: “De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou
cuida só de religião só” (GS:V, p.15.). Etimologicamente, a palavra latina margo significa “margem, beira,
extremidade”. Marginal significa então estar à margem do que é estabelecido, estar consequentemente, fora do
controle. Essa religiosidade vivenciada à margem do poder institucionalizado prioriza uma relação direta e
espontânea com Deus, sem intermediários e regras, na qual só importa a intenção sincera de estar em comunhão com Deus. A religiosidade não precisa ser vivida exclusivamente dentro das instituições, mas também
fora delas.
(...) O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que
se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é
que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo
água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e
aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim,
onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles.
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Tudo me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar - o tempo todo
(GS:V, p.15.)
Riobaldo como “homem religioso” tende a viver o mais possível voltado para a coisa simbolizada, o
sagrado ou muito próximo dos objetos consagrados. Na sua visão, toda a Natureza é suscetível de revelar-se
como uma sacralidade cósmica. Esta “abertura” para o Mundo possibilita uma comunicação com Deus considerando aqui a visão monoteísta na crença de um só Deus - e a participação na Santidade do Mundo. A
vivência do homem religioso só pode ser concretizada no Mundo “aberto”, pois isso o torna “capaz de se
conhecer conhecendo o Mundo - e tal conhecimento é-lhe precioso porque é um conhecimento religioso, um
conhecimento que se refere ao Ser”36. Na perspectiva do homo religiosus, o mundo é uma criação divina, portanto este constitui uma prova da Santidade.
Olhe tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a
ela pago, todo mês - encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos um rosário. Vale,
se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina
Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual.
Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! (GS:V, p.16.).
E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até a Vila da Pedra-de-Amolar. (...) Às
vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio das gerais,
para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos
vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se
espraiava em Deus, dado logo, até a hora de cada morte cantar(GS:V, p.47.).
Riobaldo resolve os seus problemas, angústias e dúvidas por dois caminhos: o primeiro, a narrativa,
onde ele procura o sentido da sua existência; o segundo, a religião. A vida nesse mundo é caos, queda, desorAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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dem, tudo fora dos eixos. A religião oferece a proteção e o equilíbrio necessários para o indivíduo encontrarse. Riobaldo é só religião, mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa, pois para ele tudo é
a procura do sentido da sua existência.
10 – Deus x Diabo
Como estabelecemos anteriormente, a vivência da religiosidade riobaldiana em dois planos: o institucional
e o marginal. O institucional compreendido no âmbito do mundo da ordem que estabelece o conjunto das leis e
das normas que regem a conduta do indivíduo na sociedade. O marginal compreendido como a verdadeira
fonte de Vida religiosa por cuja via Riobaldo apela para resolver os seus problemas, as suas angústias. Marginal
é estar à margem, nas extremidades e consequentemente, afastado do domínio das instituições e seus mecanismos reguladores. Portanto, é no âmbito do espaço marginal que Riobaldo apela para o que não pode ser controlado, o diabo. O diabo compreendido como uma força que se lança para fora das relações habituais, para além
das margens.
Finalmente, concluimos nossa leitura do texto rosiano com a compreensão da relação Deus e o Diabo,
que perpassa toda a narrativa e atinge o seu ponto culminante na cena do pacto, evidenciando a dúvida
existencial riobaldiana. O diabo não é uma entidade externa ao homem, mas parte da existência do homem
humano, em cujo interior convivem o bem e o mal como elementos integrantes e complementares da existência
humana. A compreensão desta questão permite Riobaldo compreender por fim, a sua identidade e o sentido
do ser.
O diabo simboliza, nesse contexto, as forças que fazem Riobaldo tomar consciência e voltar-se para si
mesmo. O diabo é uma iluminação superior às normas habituais, que permite a Riobaldo ver mais longe e
com segurança as suas memórias.
A palavra diabo vem do grego e compõem-se do prefixo diá, que significa “força através da qual” e de
bo, que se origina do verbo ballein e significa “mandar” e “infundir ânimo”. Nesta perspectiva, o diabo é uma
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força que encontra no homem um dos locais possíveis de sua manifestação: “... o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem...” (GS:V, p.11.).
Riobaldo procura o diabo para realizar o pacto. Chega às Veredas-Mortas e dirige-se a uma encruzilhada: “Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos” (GS:V, p.317.). Simbolicamente, a encruzilhada é o
local onde o homem encontra a si mesmo, local de reflexão do Ser: “Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de
lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro as espantosas palavras. Eu fosse
um homem novo em folha” (GS:V. p.317).
Riobaldo chega no final da narrativa a uma conclusão semelhante à mensagem do cantador do filme
Deus e o diabo na terra do sol: “A terra é do homem. Não é de Deus, nem do Diabo”37. E conclui: “Amável o
senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia” (GS:V, p.460.).
Riobaldo nega a existência do diabo como uma entidade externa e afirma a existência do “homem
humano”, em cujo interior convivem o bem e o mal, partes da sua essência.
A partir desses elementos, como podemos entender o pacto? Houve ou não houve? E o que significa?
O vocábulo latino pactum origina-se do verbo paciscor “fazer um tratado, acordo, pacto, convenção” (forma
mais antiga: pacere). É quase sinônimo de pactio “pacto”, “convenção”, “acordo” e “contrato”. Possui a mesma
raiz de pax, pacis “paz”.
Riobaldo tenta realizar uma relação contratual com o diabo. Esta relação manifesta-se como pacto e,
portanto, como pax entre o diabo e o homem. Assim, Riobaldo recebe “... um adejo, um gozo de agarro, daí
umas tranquilidades - de pancada.” (GS:V, p.319.) e transforma-se interiormente:
E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando
minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto,
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neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava
o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o tempo todo (GS:V, p.321.).
A palavra latina pactus origina-se do verbo paciscor. O pacto ganha uma nova dimensão, tendo como
ponto de partida o verbo paciscor, que significa “contratar”. Este verbo é o incoativo de pango, que entre outros
significados, tem o sentido de “escrever poesias, poetar”. Logo, o pacto com o diabo, como observou oportunamente M.A. de Castro38 é um contrato no nível da poesia, para poder poetar.
A partir do pacto, Riobaldo torna-se capaz de pensar e falar sobre a sua vida. O pensar e falar não se
reduzem a uma faculdade humana, mas significam essencialmente articular o Destino do Ser no homem.
Desse modo, o pensar que acolhe a Palavra e tenta redizê-la, é poesia, pensamento originário.
BIBLIOGRAFIA
ALBERGARIA, Consuelo. Bruxo da linguagem no Grande sertão: leitura dos elementos esotéricos
na obra de Guimarães. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977. 154 p.
presentes
———. Narrativas espelhadas em João Guimarães Rosa. In: ANAIS do I Congresso Internacional da
Faculdade de Letras da UFRJ (14 a 18 de set./87.). Rio de Janeiro,UFRJ/Faculdade de Letras,
1989. p.294296.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 4.ed. São
Paulo, Brasiliense, s.d. v.1. p.114-119 e 196-221.
CASTRO Manuel Antônio de. O homem provisório no Grande Ser-tão: um estudo de: Grande Sertão: Veredas. Rio de
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CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Coordenação Carlos Sussekind. Trad.
Vera da Costa e Silva ... (et al.). 3.ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro, José
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COUTINHO, Eduardo de Faria. (Org.). Guimarães Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991. 579
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CUNHA, Helena Parente. Introdução à leitura hermenêutica. Tempo Brasileiro. Martin Heidegger. Rio de Janeiro, 50:27-36, jul./set. de 1977.
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco, 1987. 246
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. Lisboa, Livros do Brasil, s.d. 235 p.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. rev. e ampliada. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1986. 1.838 p.
FERREIRA, Cláudia Andréa Prata. Riobaldo: o indivíduo à procura da compreensão do seu ser.
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Rio de Janeiro,
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UFRJ/Faculdade de Letras, 1995. Dissertação de mestrado. 124 p.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Trad. Fanny Wrobel. Rio de Janeiro, Zahar
323 p.
HEIDEGGER, Martin. Por que ficamos na Província? Revista Vozes. Petrópolis, (4):44-46,
Editores, 1978.
mai.1977.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. Vozes, Petrópolis,
mai.1977.
4:5-18,
MACHADO, Ana Maria. Recado do Nome: leitura à luz do nome de seus personagens. Rio de Janeiro, Imago,
1976. 200 p. (Logoteca).
NUNES, Benedito. Literatura e filosofia: (Grande sertão: veredas). In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em
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ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol. Com Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon
Maurício do Vale, Lídio Silva e Sonia dos Humildes. P & B. /1h10min./ 35 mm. Brasil, 1964.
Bastos,
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 9.ed. Rio de Janeiro, 1977. 460 p.
SUZUKI, Daisetz Teitaro. Introdução ao zen-budismo. Trad.Murillo Nunes de Azevedo. São Paulo,
mento, /1991/. 157 p.
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Pensa-
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NOTAS
1
Trabalho baseado em nossa dissertação de mestrado em Teoria Literária: FERREIRA, Cláudia Andréa Prata. Riobaldo: o indivíduo à procura
da compreensão do seu ser. Rio de Janeiro, UFRJ/Faculdade de Letras, 1995. Dissertação de mestrado. 124 p.
2
Trabalhamos com o texto de ROSA, João Guimarães. Grande Sertão:Veredas. 9.ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974. Todas as citações
desta obra serão feitas por essa edição, no correr do texto com a simples indicação das iniciais GS:V e o número da página, salvo indicação
em contrário.
3
DA MATTA, R. (1987) P.48.49.
4
GEERTZ, C. (1978) p.143.
5
LEÃO, E.C. (1977) p.14.
6
BENJAMIN, W. (s/d) p.114-119.
7
Ibidem, p.196-221.
8
J.G. Rosa apud: LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, E.F. (1991) p.72.
9
Apud: LORENZ, G. In: COUTINHO, E.F. (1991) p.69.
10
Martin Heidegger apud: CUNHA, H.P. (1977) p.30.
11
Apud: LORENZ, G. In: COUTINHO, E.F. (1991) p.83.
12
Ibidem, p.83.
13
Ibid. p.83.
14
Ibid. p.79 e 81.
15
Ibid. p.83.
16
J.G. Rosa apud: CASTRO, N.L. (1970) p.25.
17
Apud: LORENZ, G. In: COUTINHO, E.F. (1991) p.84.
18
Ibidem, p.72.
19
FERREIRA, A.B. de H. (1986) p.224. “Baldear: tirar com balde. Passar (líquidos) de um vaso para outro. Passar (mercadorias) de um
para outro navio. Passar (bagagens ou passageiros) de um veículo para outro. P. ext. Passar de um lugar para outro; transferir. Agitar ou
sacudir de um lado para outro; balançar. Passar para outro lado.”
20
ALBERGARIA, C. (1977) p.108.
21
Ibidem, p.108.
22
MACHADO, A.M. (1976) p.60-61.
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Ibidem, p.61.
Ibid. p.62.
25
Ibid. p.63.
26
CAMPOS, A. Um lance de “Dês” do Grande Sertão. In: COUTINHO, E.F. (1991) p.334.
27
ALBERGARIA, C. (1977) p.76-78.
28
ALBERGARIA, C. (1987) p.294-295.
29
HEIDEGGER, M. (1977) p.45.
30
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. (1990) p.834.
31
SUZUKI, D.T. /1991/ p.59.
32
NUNES, B. (1983) p.202-203.
33
Ibidem, p.203.
34
Ibid. p.203.
35
Ibid. p.203.
36
ELIADE, M. (s.d.) p.15.
37
ROCHA, G. Deus e o diabo na terra do sol. Brasil, P & B, 1964.
38
CASTRO, M.A.de. (1976) p.71.
23
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CLEIDE MARIA DE OLIVEIRA1 (DOUTORANDA – PUC/RIO)
Resumo:
A presente comunicação tomará como provocação para reflexão o mote “viver é perigoso”, repetido pelo
jagunço Riobaldo em suas travessias roseanas. O perigo da vida está em que a mesma carece de fundamentos e
pressupostos outros que não aqueles que a ela imputamos, e a personagem Riobaldo encarna o conflito
demasiadamente humano de assumir a liberdade que se é sem escusas ou negaceios. Usando como imagem-questão
o mito judaico-cristão da expulsão do primeiro casal humano do paraíso, estaremos propondo uma leitura mítica
da trajetória de Riobaldo., que trava uma batalha de vida e morte com as forças do Bem e do Mal que nele estão
em ação rumo à compreensão de que a liberdade não é uma escolha, posto que é ela que nos define como homens
vivendo fora de toda tutela divina — fora do Éden — e responsáveis pelo ethos que construímos.
FORA DO ÉDEN, VIVER É PERIGOSO
Coração da gente — o escuro, escuros. Riobaldo
Viver é negócio muito perigoso... diz-nos Riobaldo ainda nas primeiras páginas da narrativa épica que irá
protagonizar. Esse é o mote que ele irá repetir por todo o romance, reiterando no leitor a suspeita de que, mais
do que as aparências possam inicialmente fazer acreditar, existe entre ele e Riobaldo uma cumplicidade dada
pelo consenso quanto a essa afirmativa; afinal, também a nós está posta a angústia do jagunço pois, se ‘Tudo
é e não é’ , resta ao homem humano fazer com que certas coisas sejam (legitimando-as) e outras não sejam
(relegando-as à impossibilidade do não ser). As escolhas de Riobaldo são sempre éticas, porque ele é bastante
lúcido em relação aos limites (e deslimites) do humano em fundamentar esse estar-no-mundo compartilhado,
bem como da impossibilidade de não exercer seu arbítrio2. Daí que ele estará sempre, ao contrário dos demais
jagunços, inclusive Diadorim, permeado de dúvidas e crises de consciência quanto à legitimidade das próprias
ações.
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A questão proposta por Riobaldo — a existência do diabo e a possibilidade de ter feito um pacto com
o mesmo — é uma questão ética, essa é a nossa hipótese. A existência do Mal — assim mesmo, em maiúscula
— é inegável, tanto na ficção roseana quanto na hiper-realidade das sociedades contemporâneas, e as reflexões
do jagunço Riobaldo sobre essa questão surpreendem pela argúcia e perspicácia, pois ele avança resolutamente
em meio ao grande sertão3 inóspito e trágico como um cão farejador4 que, perplexo, quer entender a substância
das próprias ações, separar, qual joio do trigo, o bem e o mal que tão bem se misturaram na sua própria
existência. A constatação de que “.... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o
mal, por principiar” (p. 32), acompanha a narrativa que Riobaldo fará ao visitante-leitor; ele narra para entender
a matéria vertente (p. 116) da vida, aquilo que move os homens (que a ele mesmo moveu) para “dar corpo ao
suceder” das boas e das más ações.
De onde vem o mal, entendido aqui como ação objetiva que viola a liberdade do outro e causa sofrimento
e desespero; como explicar que tanto a beleza quanto a dor venham das mãos do mesmo homem humano;
como entender que bem e mal se alternem qual duas faces de uma mesma moeda em um jogo perverso do qual
todos participamos? Ou, em outros termos, francamente “paulinos5”, porque, mesmo querendo o bem (pelo
menos para si) o homem realiza o mal? Ainda, porque o mal, sinônimo de sofrimento e destruição, parece ter
tão maior força que o bem, identificado no romance com a força criadora do amor (“Qualquer amor já é um
descanso na loucura”)? Essas são questões que perpassam todo o romance, enquanto nosso jagunço-filósofo
tenta ordenar o caos reinante em um mundo onde o bem e o mal estão misturados, por isso a conclusão óbvia
é que “todo-o-mundo é louco”, cabendo à religião dar o arcabouço ontológico capaz de ‘desendoidecer’ (p. 32) os
homens, re-ligando-os a uma parte alienada de si: o Bem — assim mesmo, em maiúsculo.
Riobaldo é, na travessia dessas veredas existenciais, um propositor de perplexidades, ensinando-nos
“outras maiores perguntas” que abrangem temas tão vastos quanto o amor, o erotismo, a amizade, a morte, Deus,
o Diabo, a beleza, o papel da ficção na vida do não-especialista, a riqueza infinita da linguagem poética, etc.
Como o disse Adélia Prado “Tudo é bíblias. Tudo é grande sertão”6, verso que sintetiza a inesgotável capacidade
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dessas duas escrituras de propor, de forma plural e multifacetada, as mais diversas questões sobre a existência
humana. Entretanto, estaremos nesse pequeno ensaio nos detendo sobre as considerações de Riobaldo acerca
do bem e do mal, tentando entender, através dos fatos narrados e das suas reflexões, um pouco do ‘perigo’ que
a vida, fora do Éden, implica.
Percorrendo as trilhas desse sertão tentamos pensar o problema do bem e do mal a partir de uma
perspectiva ética, ou, nas palavras de Paul Ricouer, buscando a convergência entre pensamento, ação (moral
e política) e transformação emocional dos sentimentos. Entenda-se aqui ética como a construção de ethos:
identidades, culturas e ações pragmáticas que abrangem os diversos âmbitos da vida humana em sociedade.
Nesse sentido, a ética não é algo que seja reservado à ação dos santos ou à reflexão dos filósofos: todo o
homem humano é ético, porque a ele se demanda, cotidianamente, posicionamentos concretos e historicamente
determinados, ele deve “agir”, e ao agir torna legítima (ou não) esta ou aquela ação.
O romance Grande sertão: veredas se inicia com uma dúvida — “E me inventei o gosto de especular idéia. O
diabo existe e não existe?” (p. 26) — e termina com uma provável certeza: “Nonada. O diabo não há! É o que eu digo,
se for .... Existe é o homem humano. Travessia” (p. 624). Entre as duas afirmativas uma travessia: o velho jagunço
Riobaldo, antigo Tatarana e Urutu-Branco, dividi com o leitor suas preciosas lembranças7 na tentativa de
tornar entendível a substância da vida, clareando aqueles pontos obscuros dessa vida movente que vai “em
êrros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria” (p. 261). Riobaldo conta e pede ao leitor que
ponha o ponto (p. 546) nessa trágica história de amor e ódio onde o bem e o mal estão de tal modo misturados
que não é possível perceber onde um começa e o outro acaba.
Diadorim — o nome perpetual (p. 387) — é um bom exemplo para ilustrar essa caótica mistura de
enganos e verdades que permeiam os sertões, onde “Tudo é e não é”. Diadorim: menino valente, sensível
apreciador das belezas sertanejas, jagunço vingador, amigo fiel, enamorado ciumentíssimo, donzela guerreira
— corpo branco de mulher repisado de sangue... quantas verdades e enganos se escondem em uma só existência.
As personas se sobrepõem e Diadorim-Reinaldo-menino não pode ser compreendido em apenas um desses
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papéis: sua identidade polifônica e andrógena é um desafio posto a Riobaldo, como o enigma da esfinge:
“Decifra-me ou devoro-te”.
A Riobaldo incomoda esse caos assombroso, ele sente necessidade de ter “todos pastos demarcados”, para
que “o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito
e a alegria longe da tristeza” (p.234). Mas como ter certezas, ainda que provisórias, nesse mundo onde as coisas
se misturam imprudentemente? Enquanto a maior parte dos homens vive das convicções alheias, Riobaldo
diverge do senso comum por ser homem ‘forro’ (p.31), que tem dificuldades em aceitar verdades prontas e
domesticadas: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” (p. 31).
E é esse desconfiar que caracteriza Riobaldo como um homem duvidoso. Nesse sentido ele se apresenta
como figura simbólica para caracterizar um humano que se localiza ‘fora do Éden’ e precisa se posicionar
eticamente em mundo do qual ele próprio desconfia da fragilidade dos valores. Viver é perigoso porque a vida
não é entendível, e os acontecimentos da própria existência parecem não compor um todo orgânico e integrado,
é o que nos diz Riobaldo em diferentes momentos da narrativa:
Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em êrros, como um relato sem pés nem cabeça,
por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gostos seu
papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. (p. 261).
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento,
uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de
rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo
que era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto.
(p.115).
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Triste é a vida do jagunço — dirá o senhor. Ah! Fico me rindo. O senhor nem não diga nada. “Vida” é noção que a
gente completa seguida assim, mas só por lei de uma idéia falsa. Cada dia é um dia (p. 414).
A cosmogonia de Riobaldo é interessante: muito embora seja impossível negar a doideira da vida, ele
acredita em um modelo ético-moral onde cada ação esteja perfeitamente conformada com as demais, e na
existência de uma bússola que aponte para um rumo certo, um norte a partir do qual o homem humano possa
direcionar seus passos e saber certamente do bem e do mal que lhe rodeia. Para cada conjunto de possibilidades,
apenas uma ação correta, comparando a vida a um grande teatro onde cada um deve cumprir o papel a ele
designado com empenho e escrúpulos. Entretanto, quais personagens cujas falas foram trocadas, e desandam
loucamente a representar a ‘fala’ uns dos outros, fazendo ruir o próprio tecido da vida, os ‘atores’ não conseguem
encontrar a pauta adequada para cada dia e a vida continua ininteligível:
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e
vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito,
de cada uma pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe que, sozinho,
por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava
sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é
que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que fizer, ou deixar de
fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do
verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada
representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel.... (p. 500).
Alguns eventos do romance são exemplares para mostrar as dúvidas ético-morais que perseguem
Riobaldo. Nesse sentido pode-se citar alguns, dos muitos momentos em que o questionamento ético aparece:
a primeira luta que Riobaldo enfrentou no bando de Titão Passos, em lealdade a Joca Ramiro e contra Zé
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Bebelo, aquele que havia sido protetor e aluno de Riobaldo; o julgamento de Zé Bebelo (p. 285); o quase
estupro da mocinha neta de Seo Ornelas (p. 472-473); a tripla tentação para matar Constâncio Alves, com
quem o bando de Riobaldo havia topado no Chapéu-do-Boi (p.485); após ter poupado a vida de Constâncio
Alves, os apertos de Riobaldo para ‘driblar’ a promessa que ele mesmo havia feito de matar o primeiro ser
vivente que aparecesse em sua frente (p. 491); o desejo de matar o “lázaro” entocaiado na árvore (p. 508-510).
Tomemos como exemplo a situação da tentação de Riobaldo para matar Constâncio Alves e,
posteriormente, o ‘homem da égua’ com a cachorrinha, que ficou “por preencher o lugar que devia de ser o do nhô
Constâncio Alves” (p. 489). A situação é bastante delicada para Riobaldo, que se sentindo tentado pelo diabo
para matar o desconhecido viajante que topara com seu bando pelos ermos dos gerais, arquiteta um ardil para
sair da armadilha preparada pelo demo: ele decide fazer uma pergunta, e caso o homem respondesse errado
seria morto sem mais demoras ou piedades. O que Riobaldo pretende com esse ‘acordo’, feito em silêncio em
seu íntimo, é que a morte de nhô Constâncio Alves não fosse mais exclusiva responsabilidade sua, ação
arbitrária movida pela mão do diabo, e sim fruto da ‘sorte’ de uma má resposta dada pela vítima. Mas Constâncio
Alves responde adequadamente, e Riobaldo, “para se pacificar e enterter o Outro” promete: “— Perdoei este; mas, o
primeiro que se surgir, destas estradas, paga!” (p. 489). E logo aparece, no horizonte do bando, um pobre miserável
com sua égua e uma cachorrinha. Ainda que “a vontade de matar tinha se acabado”, Riobaldo está preso pela
palavra empenhada a si mesmo, ao diabo e a seus homens: “Porque eu não podia voltar atrás na promessa da minha
palavra declarada, que meus cabras haviam escutado e glosado. Ah, o demo bem me conhecia! Devia de estar no astuto, ali por
perto, do meu querer de crime!” (p. 490).
Riobaldo, o Urutu-Branco, dono da vida de muitos, sabe que aquela morte é sem-sentido, e logo
encontra meios de salvar sua honra sem cometer essa injustiça, afirmando que quem deveria de morrer era a
cachorrinha, e não o homem, pois fora ela a que primeiro avistou. Mas também a cachorrinha que “prezava
correta, latindo tão relatado” (p. 493) ele não queria matar; não, foi a égua que viu primeiro e é ela que deve
morrer, decide. No momento em que a égua se encontra desapeada do dono e pronta para o abate, Riobaldo se
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sente tomado pela vontade de chorar, fazendo coro ao homem da cachorrinha, desgostoso de si (p. 494), mas
decidido a dar um fim razoável àquela desastrada história por ele mesmo começada. Quem o impede é Fafafa,
que se oferece para pagar o resgate pelo animal, considerado inocente dos pecados humanos. À sugestão do
companheiro de armas Riobaldo reage com alívio, pois entende que “Do Demo era que eles discordavam” (p. 495),
e finaliza a má história afirmando que o dito ficava pelo não dito, pois a promessa feita fora para o primeiro
homem que visse e não para uma cachorrinha ou uma égua.
Ao fim da narrativa, Riobaldo compartilha com o ouvinte-leitor a seguinte dúvida: “Será — mal pergunto
ao senhor — que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio?” (p.497). Como entender esse duelo com o diabo,
onde a vontade humana torna-se refém de pensamentos arquitetados nos sombrios da alma, sob a influência
dos maus humores do maligno? Penso que o diabo deva ser entendido, nas travessias de Riobaldo, como uma
exteriorização do próprio mal que permanece latente em cada um de nós, um mal contra o qual precisamos
reivindicar nossa ‘posse’, afastando-nos dele em busca de perspectivas menos egocêntricas e autocentralizadas.
Riobaldo luta contra o mal que sente em si — sócio indesejável —, e busca fundamentar sua identidade no
pertencimento a um Bem superior a sua fraca vontade: “Mas a minha alma tem de ser de Deus: se não como é que ela
podia ser minha?” (p. 501). Se Deus é o Ser, e o diabo o não-ser, a ausência, a falta, e a carência, uma resposta
possível ao mal é uma radical proximidade com o bem, sem nunca se esquecer que “essa alma (vontade) é
minha”, pois não há como fugir das responsabilidades pelas próprias ações.
Segundo apontado por Almeida (2004), o romance opera um interessante deslocamento na ‘geografia’
imaginária do inferno, em uma “longa trajetória do inferno das regiões do submundo terreno para a luz do dia” (p. 08).
O diabo não habita apenas os recantos das Veredas-Mortas — onde o pacto se deu — ou o Liso do Sussuarão
— lugar maldito de impossível travessia que apenas será ‘domado’ após o pacto de Riobaldo com o diabo —
, ele anda entre os homens, conforme a epígrafe que abre o romance: “o diabo na rua, no meio do redemoinho”.
Essa desterritorialização do inferno parece indicar uma “falta de fronteiras entre o bem e o mal” (p.08) que implode
os limites de uma concepção maniqueísta de mundo para localizar o titânico duelo na frágil matéria humana:
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“Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras” (Rosa, 2001, p. 268).
O perigo da vida está em que cada ação traz em si uma série de conseqüências imprevisíveis, e não
raramente indesejáveis; em muitos momentos Riobaldo se sente “propriedade” de forças alheias, ao mesmo
tempo em que precisa tomar decisões individuais acerca desse ou daquele acontecimento, decisões que pretende
que sejam suas, apenas suas. Riobaldo quer o exílio da liberdade: “Não sou do demo e não sou de Deus!” (p. 510),
dirá ele, raivoso, à Diadorim, quando o amigo tenta impedi-lo de matar o lázaro; e antes, no momento do
pacto: “Eu queria ser mais do que eu” (p. 437). Se decidir é arriscado, pois implica na possibilidade do mal, ainda
assim é a mais humana de todas as características, tão humana que torna-se distintiva entre os homens e os
deuses: apenas os homens podem escolher o mal, aos deuses, pelo menos ao deus cristão, é vedada a opção
pela transgressão, pelo arrependimento, pelo erro, conforme se vê na promessa bíblica: “Deus não é um homem
para mentir, e nem filho de homem para se arrepender”8.
Dissemos que o romance se inicia com uma dúvida e termina com uma provável certeza, a de que o diabo
não existe, existe apenas o homem humano, e o bem e o mal que d(n)ele se engendram. Mas tal conclusão
não minimiza a perplexidade de Riobaldo: ainda que o diabo não exista sua alma foi vendida, em pacto
firmado nas Veredas-Mortas. Alguma coisa ali aconteceu, é o que nos diz Riobaldo:
Então, se não vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não
há, e a ele vendi a alma.... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende,
só, é sem nenhum comprador? (p. 501)
Entre Deus e o Diabo Riobaldo teima insistentemente em afirma-se livre, sedento de possuir-se, tanto
que, por ocasião do pacto, ele dirá: “E o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que
queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era — ficar sendo!” (p. 436). Uma possível interpretação
para o périplo de Riobaldo seria entendê-lo enquanto tentativa de uma definitiva emancipação do humano,
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que se arrisca, longe do Éden, a uma existência sem balizas confortáveis ou metadiscursos consoladores.
Entretanto, se pensarmos que o próprio Riobaldo caracterizou-se como um homem a quem apenas dois destinos
eram possíveis — chefe de jagunços ou padre religioso —, isto é, personagens que se encontram nos extremos
do bem e do mal, precisamos admitir que essa liberdade absoluta — a ‘maioridade ética’ — é uma utopia que
apenas se manifesta em momentos pontuais, e que, mesmo longe do Éden, o humano continua a sonhar com
o fim das dicotomias e com um paraíso onde o Bem e o Mal sejam novamente irreconhecíveis, porque
reconciliados nos escuros de seu coração.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Leonardo Vieira. Uma construção do Inferno: de Homero a Guimarães Rosa. Comunicação apresentada
no I Simpósio de Estudos Helênicos do Instituto de Letras da UERJ, novembro 2004. Inédito.
BIBLIA SAGRADA. Revista e corrigida. São Paulo: Editora Vida, 1997.
MILES, Jack. Deus: uma biografia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997.
PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
ROSA, Guimarães João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SOARES, Afonso M. A ; VILHENA, Maria Angela. O mal: como explicá-lo? São Paulo: Paulus, 2003.
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NOTAS
1Doutoranda em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. [email protected]
2 Estou fazendo referência aqui à definição sartreana de liberdade: “a liberdade é um exílio”, porque ontológica, isto é, ao homem é
impossível recusar o agir ético, e apenas a existência de má fé pode iludir-se com o consolo de que foram outros — as circunstâncias
históricas e sociais, as contingências, as inclinações psicológicas irrecusáveis, etc — que decidiram por ela. Parece-me que Riobaldo,
segundo a terminologia de Sarte, assume uma existência autêntica, por saber-se livre e não recusar essa liberdade.
3 O sertão está sendo entendido como metáfora da própria existência humana.
4 “O senhor concedendo eu digo: para pensar longe sou cão mestre — o senhor solte a minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa
por fundo de todos os matos, amém!”. Op. Cit., p. 31.
5 É Paulo quem nos diz: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço”. Romanos 7:19. BIBLIA
SAGRADA. Revista e corrigida. São Paulo: Editora Vida, 1997.
6 Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
7 Para se entender o valor que Riobaldo a memória veja-se o que ele nos diz: “Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer para
mim, é quase igual a perder dinheiro”. p. 18.
8 Números 23:19. In: BIBLIA SAGRADA. Revista e corrigida. São Paulo: Editora Vida, 1997.
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CRISTIANE SAMPAIO1
Resumo:
“Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina...” Em Grande sertão: veredas, um vão se
abre, se revela, após a trágica morte de Diadorim. Imerso nesse vão, Riobaldo, narrador e personagem do romance
de Guimarães Rosa, está, justamente, lançado no nada. A partir da experiência de Riobaldo, buscaremos pensar
a neblina, o nada, o tempo da poesia e do pensamento, que remetem ao que faz falar em Riobaldo: a linguagem,
uma linguagem pertencente a um não-lugar, inenarrável, que não diz tudo o que foi, mas que se apresenta como
uma linguagem que fala “por falar”, que está sempre em jogo, arriscando-se até mesmo ao incomunicável.
O TEMPO DA POESIA E DO PENSAMENTO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE
GUIMARÃES ROSA
“Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo”.
(ROSA, 1986: 531)
“O QUE LEMBRO, TENHO...”
Nonada - é a palavra que inaugura Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Sim, palavra. Mas,
também, experiência. Nonada: bagatela, quase-nada, mea omnia2. _ “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de
briga de homem não, Deus esteja” (ROSA, 1986:1). Lançado, arremessado “no - nada”, no que lhe pertence como
homem, está Riobaldo, personagem e narrador da estória que aqui se quer aproximar, que se quer tomar como
experiência, muito menos no que ela pudesse narrar de uma vida de jagunço, mas no que nela verte, transborda
em demasia, isto é, a linguagem.
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Em Grande sertão: veredas, nonada é a palavra que rompe a enigmática obra de Rosa, mas é também
experiência, pois funda-se diante de um abismo vertiginoso, um vão que se abre, que se revela após a trágica
morte de Diadorim e de sua ausência na vida de Riobaldo; é a partir desse nada que mais uma vez Riobaldo
pode narrar, vivenciar o que com ele se passou pelo sertão, após a travessia do rio São Francisco com o menino
Reinaldo- Diadorim.
“Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina” (ROSA, 1986:16) - é o que nos declara
Riobaldo. Envolto por essa neblina, Riobaldo se põe a dizer o que viveu. Nesse dizer nada se diz, ou melhor,
se diz sim. No entanto, se diz não no que nos informa, em “dobrados passos”(ROSA, 1986: 187), como ele
mesmo afirma, faz questão no dizer, mas no que se mostra, se revela. Isso que se mostra, se revela, é a
linguagem, o lógos. O que a linguagem, o lógos, fala é o ser - tão. Quem lhe mostrou, lhe abriu para o ser - tão
pela primeira vez foi Diadorim. Em tudo e por tudo o que traduz o ser- tão, na sua tentativa de comunicar o
incomunicável, o ser - tão lhe inquieta, tal como Diadorim, a sua neblina, que se abre, se apresenta a partir da
experiência desse nada que ele vivencia.
Narrar, então, o que viveu é desvendar o enigma que é Diadorim em sua vida, ou seja, é decifrar essa
neblina que lhe aparece na sua travessia pelo ser - tão, presente em seus mínimos detalhes e das mais diversas
formas - o sertão que Diadorim lhe ensinara a ver, perceber as “belezas sem dono” (ROSA, 1986: 18). Assim, ele
diz que “o sertão está em toda parte” (ROSA, 1986:1), impossibilitando a compreensão de uma visão, simplesmente,
geográfica do sertão.
O sertão que Riobaldo está à escuta, à procura, é um sertão que não diz respeito a um espaço ou a um
lugar, mas um sertão que ele só consegue decifrar quando de “range rede” (ROSA, 1986:3), “feita a folga que
lhe veio”, “deu para especular idéia”. Esse é o sertão que está em toda parte e que, também, não está; que é a
sua matéria de especulação e de imaginação, pois em Grande sertão: veredas poesia e pensamento habitam em
uma vizinhança na narrativa de Riobaldo, que não narra simplesmente o que viveu, não se distancia do tempo,
seja presente, passado ou futuro, mas revigora-o para além de uma temporalidade, através do pensamento e da
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criação poética.
O nada, a neblina, o tempo da poesia e do pensamento... Todas essas questões nos remetem para o que
fala em Riobaldo: a linguagem. Uma linguagem pertencente a um não-lugar, inenarrável no dizer tudo o que
foi, mas que se apresenta como uma linguagem que faz falar o sertão; que fala, como diria Novalis, “por falar”
(NOVALIS, 2001:195), que está sempre em jogo arriscando-se ao incomunicável e pondo em risco o que
deseja nele lhe fazer falar. Assim, se põe Riobaldo, constrangido muitas vezes em seu dizer de viés, pedindo
perdão a seu interlocutor como quem sem serventia não comunica nada, mas que só vem assim misturar os
fatos nesse ser - tão para lá de misturado, ou contribuir para a neblina ser mais neblina a cada instante que
deseja desvendá-la, domar essa matéria em redemoinho que se apresenta diante dele.
Narrar é tomar, assim, posse do que é seu. Como bem lembra Guimarães Rosa em sua “Correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Classon”3, o próprio Riobaldo diz a certa altura: “O que lembro, tenho”. No
entanto, essa lembrança apresenta-se já transfigurada. É uma lembrança que movida pela reflexão (pelo
pensamento) e pela criação poética transfigura a realidade, a vida de mesmice, mesmagem que Riobaldo se
nega a narrar como ele mesmo afirma, diz. “De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração,
e isso de guerra é mesmice, mesmagem” (ROSA, 1986: 265).
Ao tomar posse do que é seu, Riobaldo está diante de tudo e de nada. Já não pode narrar alinhavado
o que se passou com ele pelo sertão, pois, como ele mesmo diz, tudo é muito misturado, confuso mesmo. O
que relembra, retoma, toma para si, é incomunicável. No entanto, precisa dizer, fazer aparecer o sertão,
decifrar a matéria vertente. Vem vindo, segundo ele, de “velhas alegrias” (ROSA, 1986: 163). É o que
lembra, o que tem. Entretanto, o que tem se apresenta de modo tão fugaz como a neblina que é Diadorim.
E, ao mesmo tempo, isso que é fugaz lhe ata a existência, lhe dá coragem, firmeza e é o que lhe faz verter
numa linguagem mostrante o que viveu. E o que viveu vem vindo com ele; não é algo que foi, que jaz, mas
o que ele é. E o que ele é, o que ele tem, é lembrança, memória.
Em seu livro Infância e História, Giorgio Agamben fala de uma pobreza da experiência. Para ele, não
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seria o mundo atribulado da modernidade, em redemoinho, como diria Riobaldo, o responsável por essa
incapacidade de narrar experiências. A experiência não estaria relacionada ao extraordinário, mas ao
cotidiano, matéria-prima no que diz respeito à tradução de experiências.
É esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável - como em momento
algum no passado - a existência cotidiana, e não uma pretensa má qualidade ou insignificância da vida
contemporânea confrontada com a do passado(aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana tenha
sido tão rica de eventos significativos) (AGAMBEN, 2005: 21)
Em Grande sertão: veredas, Riobaldo narra suas experiências pelo sertão não a partir do extraordinário, mas da vida de jagunço, de
suas idas e vindas pelo sertão, de sua lida diária que rememora. Assim, por exemplo, na sua tentativa de decifrar o sertão, faz referência a
várias estórias que vivenciou, experimentou. Se acerca de um saber que não é senão experiência; não experiência de alguém que simplesmente
viveu mais que outros, mas de uma experiência que é incomunicável e que, portanto, é a experiência inauguradora: a experiência da poesia
e do pensamento.
O vão que se abre, se revela, e que permite a Riobaldo narrar essas mesmas experiências, é o que, segundo Agamben, Montaigne,
cuja obra, Essais de Montaigne, pode ser considerada a “última da cultura européia a ser ainda inteiramente fundada sobre a experiência”(AGAMBEN,
2005: 26), chama de uma “antecipação da morte enquanto limite extremo da experiência”. Riobaldo precisa narrar o que viveu, ainda que sua
condição seja assentir o nada, a neblina, o sertão tal como se lhes apresentam, ou seja, como o incomunicável, ao mesmo tempo que busca
decifrá-los. Para isso é preciso “antecipar a morte”. É preciso compreender o nada como “nossa condição”4. Essa é a experiência incomunicável.
Assim, por exemplo, Riobaldo não pode provar a seu interlocutor, o homem douto, sábio, o que viveu; não pode dizer o que é o sertão
de modo objetivo, a altura do vigor científico, ainda que a palavra sertão e a definição do lugar sertão conste nos dicionários geográficos.
Ele mesmo confessa a seu interlocutor:
(...) Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e
repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para
mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei.
Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas_ e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que
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muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (ROSA, 1986: 84).
Em O que é metafísica, Heidegger diferencia angústia de temor, dizendo que temos temor diante de algo
determinado, ao contrário do sentimento de angústia, que é sempre diante de algo que não sabemos bem o que
é, mas que está diante de nós o tempo todo, que nos ronda, nos acossa desde que nascemos; em Grande
sertão: veredas esse sentimento de angústia aparece como condição do homem entender o ser- tão, para fazer
sua travessia.
Essa inquietação que, portanto, toma conta de Riobaldo, essa angústia que ele carrega consigo é o fato
que se deu, se abriu para ele um dia. Assim, ele deseja dividir com outrem, mostrar o que com ele se passou.
Mas a cada vez que busca dizer, dividir sua experiência, ainda que relate muitas de suas estórias pelo sertão, o
que nos deixa, nos presenteia é o que Platão chama em seus diálogos de dianóia, ou seja, de um diálogo da
alma consigo mesma; Riobaldo ao dizer o que se passou com ele apenas deixa a experiência ser. Desta forma,
a cada vez que ele fala, deixa a angústia ser angústia, o nada ser nada, a neblina ser neblina.
Riobaldo, ao narrar sua experiência, narra algo que é condição originária do homem, ou seja, a angústia,
o nada que “nela se revela”, mas que, ao mesmo tempo sabe que o que narra não pode ser compreendido por
todos, não porque apenas se trata de uma compreensão que apenas poucos podem ter acesso, mas porque o
que ele narra é algo que não se passa por uma compreensão, por uma decodificação racional das coisas, da
realidade, mas algo que é preciso um certo movimento, o movimento da experiência, que não tem a ver com
um conhecimento douto ou não, pois é o movimento de algo que não se pode comprovar.
No capítulo intitulado “Da experiência”, presente em seus Ensaios, Montaigne comenta em determinado
instante sobre a experiência da educação e diz, confessa sua gratidão pelo abandono a que seu pai lhe presenteou
em sua infância; ao acaso a que foi entregue como forma educativa.
Montaigne se refere a algo que nunca pode ser dado: a experiência. Assim, por exemplo, Riobaldo é
lançado em sua travessia pelo sertão; Riobaldo, de “escuro nascimento”, mas que, como ele mesmo diz, nunca se
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envergonhara com esse fato, possui a experiência de abandono de que fala Montaigne. Fora criado desde cedo
por experiências que a vida lhe dera. Aprendera, é certo. Ele mesmo diz: “Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho,
decorei gramática, as operações, regra - de- três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei
bonitos mapas” (ROSA, 1986: 7).
Em Grande sertão: veredas, Riobaldo é convocado para um certo abandono, experiência de travessia,
de vivência, a que nenhuma “regra - de três”, ou “estudo pátrio” pôde lhe dar; Riobaldo é convocado para a
experiência do não saber para ser. Assim, o abandono de que fala Montaigne é antes um duro exemplo para se
falar de experiência do que uma regra para se seguir fielmente, cegamente. Ao fazer isso, Montaigne distingue
dois saberes: o saber de experiência e o saber, a educação, tradicional familiar e que, provavelmente, se
reproduziria no saber das ciências, ou seja, o saber que se deseja passar adiante, se deseja transmitir como
verdade. A respeito dessa distinção, Giorgio Agamben comenta:
(...) até o nascimento da ciência moderna, experiência e ciência possuíam cada uma o seu lugar
próprio. E não só: distintos eram também os sujeitos de que lançavam mão. Sujeito da experiência era o
senso comum enquanto que o sujeito da ciência é o nous ou intelecto agente, que é separado da experiência
(AGAMBEN, 2005: 27).
Em Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, com que tantas vezes Guimarães Rosa fora comparado
em estilo audacioso no que diz respeito à linguagem, temos o personagem Stephen Dedalus que, diante dessa
cisão a que nos referimos entre o saber de experiência e o saber científico, se depara com uma grande
incompreensão diante da idéia de mapa, das noções geográficas, que lhe aparecem como algo exterior a ele e
que ele busca transformar em matéria de poesia ao traçar no papel seu próprio mapa.5 Da mesma forma
Riobaldo que, como ele mesmo diz, estudou geografia e tudo o mais está à busca do que é o sertão; não o
sertão que consta nos livros de geografia, nos dicionários, mas do sertão que está em toda parte, do sertão que
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ele não sabe, que ninguém sabe, do sertão que vem vindo com ele.
Assim sendo, diante do nada, da neblina, a angústia se dá, e diante dessa angústia Riobaldo deixa o
sertão falar. A cada reflexão sua, a cada vez que deixa a fala se dar, que deixa o sertão falar, recai sempre no
que chama de sua ignorância, recai sempre no nada, na neblina que lhe inquieta, lhe angustia. Em Retrato do
artista quando jovem, Stephen Dedalus se depara também com o nada. Em sua reflexão sobre o contorno do
mundo ele pensa: “Que é que haveria depois do universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em volta do universo para
mostrar onde ele parava antes de começar o lugar do nada?” (JOYCE, 1971:18). James Joyce e Guimarães Rosa falam,
em suas obras, de experiência, do mundo movente, em redemoinho; falam do sertão, do que ninguém sabe, da
angústia, do nada. “A angústia”, diz Heidegger, “nos corta a palavra (...) O fato de nós, procurarmos muitas vezes, na
estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada”
(HEIDEGGER, 1973: 238).
Em Grande sertão: veredas, Riobaldo se depara a todo instante com essa “angústia rouca”; lhe faltam
palavras diante do mundo que se apresenta para ele. No entanto, a todo instante ele diz, nomeia o que não tem
nome; põe na palavra o motor para poder agir, para ser, não mais como jagunço, mas como quem dá “para
especular idéia”. Assim, ele mesmo diz: “Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo” (ROSA, 1986: 154). Desta forma, a ação
mesma se dá num sentido contrário; ação não é guerra, não é matança; nem mesmo atravessar todo o sertão
para vingar a morte de Joca Ramiro. Ação principia para Riobaldo no silêncio de seu “range rede”, em sua
velhice. Ação é em Grande sertão: veredas força para atravessar o mundo movente através da palavra e do
pensamento. A respeito do que vem a ser ação, Hannah Arendt, em seu livro A condição humana, comenta:
Agir, no sentido mais original do termo, significa tomar iniciativa, iniciar(como o indica a
palavra grega archein, “começar”, “ser o primeiro”, e, em alguns casos, governar”), imprimir movimento
a alguma coisa( que é o significado original do termo latino agere). Por constituírem um inicitium, por
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serem recém-chegados e iniciadores em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas,
são impelidos a agir...”portanto, o homem foi criado para que houvesse um começo, e antes dele ninguém
existia”, diz Agostinho em sua filosofia política. Trata-se de um início que difere do início do mundo; não
é o início de uma coisa, mas de alguém que é, ele próprio, um iniciador. (ARENDT, 1981:190).
Ao lembrar do que se passou com ele, Riobaldo se coloca como um “iniciador” de que fala Hannah
Arendt. A ação de pôr a memória em movimento é a ação de que necessita para deter algo consigo, que não é
apenas o seu passado, o que foi, mas o que ele é. Assim, Riobaldo diz as seguintes palavras: “O que lembro,
tenho...” Ao dizer isso, é como se anunciasse que tudo o mais que não é memória (ação) é o que faz com que o
homem não seja. Ação é, portanto, condição para ser...
BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Belo Horizonte. UFMG, 2005.
______. Le langage et la mort. Paris. Christian Bourgois,1997
______. “La fin du poème.In La fin du poème. Paris, Circé, 2002.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Editora Forense- Universitária,1981.
HEIDEGGER, Martin. Approche de Hölderlin. Paris, Gallimard, 1973.
______.O que é metafísica. In: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural,1973.
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______. A caminho da linguagem. Rio de Janeiro, Vozes, 2003.
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro, 1971.
MONTAIGNE. Ensaios. In: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1972.
NOVALIS. Pólen. São Paulo, Iluminuras, 2001
PUCHEU, Alberto. Platão e as questões da arte: a poesia e seus entornos interventivos. In: A arte em questão:
as questões da arte, Rio de Janeiro, 7 Letras, 2005.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo, Globo, 1994.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. _____. Correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras; Belo
Horizonte, MG: Ed da UFMG, 2003.
_____. Primeiras estórias.Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
_____. Tutaméia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. Fichte e as questões da arte. In: A arte em questão: as questões da arte.) Rio de
Janeiro, 7Letras, 2005.
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NOTAS
1
Cristiane Sampaio é Doutoranda em Ciência da Literatura na UFRJ.
2
ROSA, Guimarães. Tutaméia, p.184. perderam!. Uma pena. Tudo virou água rala, mingau(p.114)
3
ROSA, Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, p.114. Assim comenta Guimarães Rosa com Curt Meyer- Clason
sobre a edição americana de Grande sertão: veredas: “I) à página 158 da edição americana, começando com o último parágrafo, lê-se: “My memories are What
I have.” Ora, o que está no original(pág.188[ 204], da 1ª edição, ou pág. 179 da 2ª edição) é: “O que lembro tenho.” E a afirmação é completamente
diferente... Riobaldo quer dizer que a memória é para ele uma posse do que ele viveu, confere-lhe propriedade sobre as vivências passadas, sobre as coisas vividas.
Toda uma estrada metafísica pode ter ponto-de- partida nessa concepção. E que os tradutores entenderam, chatamente, trivialmente, foi que Riobaldo,
empobrecido, em espírito, pela vida, só possuísse agora, de seu, suas lembranças. Um lugar-comum dos velhos. Justamente o contrário. Viu? Tanto mais que,
seguindo-a imediatamente,a pequenina frase que completa é, no original: “Venho vindo, de velhas alegrias.” E eles verteram: I am beggining to recall bygone
days”. Aí, toda a dinâmica e riqueza irradiadora do dito se ”
4
ROSA, Guimarães.
“Nada e a nossa condição”. In: Primeiras estórias.
5
JOYCE, James. O retrato do artista quando jovem, p.17.
DANIELLE CORPAS (DOUTORA – UFRJ)
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Resumo:
Em 1973, José Hildebrando Dacanal publicou o ensaio A epopéia de Riobaldo, integrante de uma coletânea
onde expõe a tese segundo a qual a narrativa latino-americana da geração de Guimarães Rosa consiste num novo
momento da épica ocidental, que ganha forma com o andamento do Terceiro Mundo. Nessa análise de Grande
sertão: veredas há vários pontos relevantes para a discussão a respeito das relações entre o romance e a experiência
histórica brasileira. Embora este seja um tópico valorizado no atual momento da recepção do escritor (fato patente
com a publicação simultânea, em 2004, de O Brasil de Rosa, de Luiz Roncari, e grandesertão.br, de Willi Bolle), o
estudo de Dacanal tem sido pouco discutido. Vale a pena retomá-lo. Uma de suas principais contribuições para a
interpretação do livro de Rosa consiste na articulação entre a trajetória social do protagonista Riobaldo – “um
jagunço calculista e arrivista, flor de reacionarismo” –, a estrutura do romance, a “visão de mundo” do narrador e a
inserção do país no contexto do “novo colonialismo global”. As hipóteses apresentadas sugerem ainda um caminho
para se pensar o papel destinado ao leitor na arquitetura da obra. Para o crítico gaúcho, Grande sertão: veredas
singulariza-se por constituir uma “solução de compromisso” em relação às tensões históricas implicadas na “nova
narrativa épica latino-americana”. E o leitor parece figurar como contraparte decisiva na formulação dessa solução.
Como assinalou José Antonio Pasta Jr. em um artigo de 1999, a empatia entre interlocutor e narrador – um
referendando o discurso do outro – “manifesta de maneira decisiva o modo de ser mais íntimo da obra”.
O JAGUNÇO ARRIVISTA E O LEITOR DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS
(Notas sobre um ensaio de José Hildebrando Dacanal)1
A certa altura da Advertência ao leitor que abre a segunda edição da coletânea de ensaios Nova narrativa
épica no Brasil (1988), José Hildebrando Dacanal confessa que se, naquele momento, fosse reescrever o texto
sobre Grande sertão: veredas (A epopéia de Riobaldo, preparado entre 1971 e 1972 e publicado no ano seguinte,
na primeira edição do livro), provavelmente teria mais peso em sua análise a “matéria histórica brasileira”
presente no romance (“os fenômenos do coronelismo e da jagunçagem na República Velha, por exemplo”).
Assim, ficariam acentuadas “linhas interpretativas que são apenas afloradas ao longo do texto ou que apareAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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cem em observações à margem”.2 Com essa afirmativa, o autor pôs-se na contramão das tendências vigentes
na recepção da obra de Guimarães Rosa em fins da década de 1980. A maioria dos intérpretes pouco se
interessava pelas relações entre o romance e a história do país, permaneciam sem desdobramento os achados
a esse respeito existentes em estudos realizados entre 1956 e o início dos anos 1970, como os de Antonio
Candido e de Walnice Nogueira Galvão (que, em nota ao ensaio sobre o livro de Rosa, Dacanal cita como
exceções em meio ao “descaminho ou a ausência de resultados satisfatórios da maior parte da crítica” à obra
do autor).
Em A epopéia de Riobaldo, as “linhas interpretativas” referentes à matéria histórica, ainda que não
plenamente desenvolvidas, compõem um encaminhamento bem singular para a abordagem de Grande sertão:
veredas que leve em conta experiência brasileira. Veja-se, por exemplo, o comentário a respeito da inserção do
protagonista na hierarquia social do sertão:
Riobaldo, filho natural de Bigri e Selorico Mendes, é um arrivista no plano social. (...) O sonhar de Riobaldo por Otacília
não é apenas um sonhar romanticamente Penélope em uma Ítaca qualquer (por exemplo [...]: “Mesmo com a minha
vontade toda...” etc., onde a necessidade de uma companheira termina na recordação das grandes fazendas da mesma!...). Os bens de Otacília, portanto, são um tema que sempre retorna (...).
Riobaldo, socialmente, é um jagunço calculista e arrivista, flor de reacionarismo, que consegue chegar a
grande fazendeiro, colocando-se ao final em uma posição digna do mais puro filisteu: “Mas o que mormente
me fortaleceu foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam como talentoso homem-de-bem, e
louvavam meus feitos, eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da
jagunçagem. Fui indo melhor.” (...) Realmente, ir além é impossível! Riobaldo surge assim renegando suas
origens, satisfeito por ter sido o instrumento de destruição de seus próprios iguais, de seus companheiros do
passado. Socialmente, o herói de Guimarães Rosa é um inocente útil. Talvez mais útil do que inocente...!3
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A descrição da travessia do herói como percurso oportunista orientado pelo arrivismo tem – o ensaísta
sabe de antemão – tudo para desagradar “os construtores apressados de um impressionismo laudatório sem
base”, já então comum na recepção da obra de Guimarães Rosa. De fato, as proposições do crítico gaúcho
raramente são lembradas por intérpretes que o sucederam. Em textos sobre Grande sertão: veredas, é freqüente
a avaliação indiscriminadamente positiva do destino do protagonista e das motivações que fazem dele narrador.
Na maior parte das vezes, os significados atribuídos aos movimentos do enredo, assim como aos procedimentos de elaboração lingüística e narrativa, revestem-se de valor positivo – o intérprete apresenta as atitudes do
narrador-protagonista como opções louváveis no contexto dos processos históricos implicados no tecido
ficcional. Exemplo: costuma-se elogiar a inquietação auto-questionadora que impulsiona a narrativa por seu
caráter de busca de esclarecimento e superação do obscurantismo no universo sertanejo, ficando em segundo
plano, na maioria das leituras, o viés negativo presente no interesse de auto-justificação, que também anima o
narrador.
No caso de Dacanal, a identificação das “pretensões de Riobaldo” no plano social não conduz à exploração
simplista do que há de realismo em sua trajetória, no fato de sua ascensão ser processo verossímil na sociedade
sertaneja. É como tentativa de esclarecer a vinculação entre a forma do romance e as coordenadas históricas
em que ela se configurou que o crítico considera o arrivismo do herói – menino muito pobre, filho bastardo de
fazendeiro que chegou a chefe de jagunços e assim conseguiu casamento proveitoso para confirmar seu
posicionamento na classe dos donos de terras. Esse percurso é descrito logo na parte 1 do ensaio, onde consta
como argumento a favor da hipótese de que a contraposição entre passado e presente corresponde à “estrutura mais profunda da narrativa rosiana”. E em vários outros pontos surgem comentários, mais breves, a respeito da trajetória social de Riobaldo, inclusive em passagens importantes para a defesa da tese que unifica os
artigos reunidos no volume.
Em clave historiográfica, A nova narrativa épica no Brasil propõe-se a explicar um conjunto de romances da
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segunda metade do século XX em face da experiência econômica e social de nosso continente. A literatura do
país figura como manifestação local de um processo mais amplo, em curso na ficção latino-americana. As
reflexões sobre a matéria histórica brasileira presente em Grande sertão: veredas adquirem dimensão de questões
relativas ao passado, ao presente e ao futuro do então chamado Terceiro Mundo. Romances como o de Rosa,
O coronel e o lobisomem (José Cândido de Carvalho, 1964), Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez, 1967),
Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro, 1971) e Os Guaianãs (tetralogia de Benito Barreto publicada entre 1962
e 1975) são apresentados como integrantes do “ciclo da nova narrativa épica latino-americana”, um estágio recente na história da literatura ocidental desde Homero – hipótese que o autor, na Advertência à segunda edição
de seu livro, reconhece pretensiosa, mas que nem por isso descarta. Os livros considerados seriam expressão
de “um fenômeno qualitativo radicalmente novo no âmbito daquela ficção romanesca ocidental cujo primeiro
grande marco indiscutível é Cervantes, com seu Dom Quixote (...)”. Para Dacanal, o “caráter fundamental”, ou
“essencial”, dessa tradição se define pela “perspectiva ficcional lógico-racionalista”, engendrada por dois elementos:
a “busca da verossimilhança, exigida por uma estrutura consciencial lógico-racional”, e o “distanciamento perante
tudo quanto não for verossímil” do ponto de vista daquela estrutura de consciência. São fatores que estabeleceram uma “continuidade racionalista” na ficção romanesca de vertente européia. O crítico argumenta que a
singularidade da nova narrativa épica latino-americana reside no fato de esta “colocar lado a lado, de forma
inocente, sem distanciamento, o mundo real, verossímil, e o mundo mítico-sacral, inverossímil”. Seria “um terceiro
(ou quarto) momento da épica” na história literária que inclui o epos grego, as obras da literatura medieval
(épicas entre aspas, dada “a Weltsanschauung idealista dentro da qual tais obras se inscrevem e a enorme incidência do lírico e, às vezes, do trágico nelas notada”) e o romance da idade burguesa européia. O critério
levado em conta para classificar como épicos esses “mundos ficcionais de natureza diversa que surgem em
mundos de estruturas conscienciais obviamente também diversas (...) é o fato de neles, (...) ser fixada, narrada
e celebrada a ação do homem sobre o mundo (...)”.4 Daí a necessidade do “diálogo implícito” com as Lições de
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estética de Hegel e com a Teoria do romance de Lukács, diálogo que ajuda a especificar os contornos do universo
ficcional brasileiro/latino-americano, filiado à tradição e ao mesmo tempo distinto das expressões épicas
anteriores. Isso não é possível sem uma visão da literatura orientada pela dialética histórica.
Hegel e Lukács são importantes como pontos de referência na análise de uma obra da nova narrativa épica latino-americana
na medida em que ambos captam as coordenadas históricas dentro das quais surgiu e desapareceu o romance [europeu]:
a estrutura consciencial laicizada, dessacralizada do mundo europeu; na medida em que, por terem desvelado o essencial, esclarecem, por contraposição, a especificidade de uma obra nascida dentro de outras coordenadas históricas.5
Em suma: José Hildebrando Dacanal apresenta Grande sertão: veredas como forma épica na qual o tipo de
consciência lógico-racional assimilado pelo narrador-protagonista ao longo de sua formação confronta-se com
a estrutura de consciência mítico-sacral, manifesta tanto na “problemática demonológica” pessoal – que inquieta o personagem e dá ensejo à narração – quanto no contexto sertanejo de crendices e superstições em que
se ambienta a história. Para definir o “caráter específico” do mítico-sacral na obra de Guimarães Rosa, o
ensaísta opera com a dialética passado-presente que considera estruturadora do romance, e o tema da trajetória social de Riobaldo assume um papel decisivo na argumentação. Reaparece na seguinte seqüência de
constatações: 1) no presente da narração, o problema demonológico retorna constantemente, sob forma de
negação da existência do Demônio (ressaltada pelas digressões reflexivas em que o narrador convoca a
racionalidade do interlocutor como reforço contra a possibilidade de encarnação da essência do Mal) e nas
intermitentes menções ao episódio do pacto (cujo relato, “iniciado várias vezes e outras tantas postergado”,
só ocorre, na íntegra, quando se encaixa no curso da cronologia); 2) essas duas formas de negação do Demônio
(a refutação lógica e o adiamento da narração da cena do pacto) são possíveis porque o narrador se refere a
uma experiência “que já é passado distante”, 3) experiência que “poderia desvelar o núcleo central da obra”:
“o salto qualitativo de um plano de consciência para outro”. Nesse ponto, quando apresenta sua análise dos
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acontecimentos relacionados à cena do pacto, Dacanal avança nas considerações a respeito da ascensão de
Riobaldo na hierarquia da sociedade sertaneja.
É verdade que o ensaísta ressalva que o tema da ascensão social e econômica tem, no conjunto do
romance, peso menor do que a “transformação interior” pela qual o protagonista passa quando busca o Demônio na encruzilhada. Ainda que “secundária”, a mutação do raso jagunço em fazendeiro aparece na interpretação como processo vinculado à transformação vivida pelo personagem-narrador (“a libertação dos terrores
mítico-sacrais, dando início à caminhada que o levaria à conquista de uma visão de mundo agnóstico-existencial, dentro da qual ser-lhe-ia possível integrar todos os fenômenos contraditórios da existência humana”).
Associando o tópico que privilegia (a diferença de visões de mundo – mítico-sacral x lógico-racional) ao
histórico social de Riobaldo, José Hildebrando Dacanal formula uma leitura de Grande sertão: veredas na qual o
romance é apresentado como figuração do “processo de ascensão do Terceiro Mundo”. O que torna A epopéia
de Riobaldo um ensaio relevante para a perspectiva crítica que procura conjugar forma literária e processos
sociais é esse seu investimento numa possibilidade pouco explorada de compreensão do livro, que combina a
constituição do enredo e do protagonista-narrador, o viés realista empenhado nessa constituição (verossímil
em relação ao contexto local em que a ação é ambientada) e uma experiência histórica que, ao mesmo tempo,
é nacional e ultrapassa fronteiras, que diz respeito a uma grande área do globo.
Segundo Dacanal, ao procurar o Diabo para fazer o pacto, o herói de Guimarães Rosa tenta achar um
caminho que lhe permita “encontrar para a vida um sentido totalizador” e, nesse movimento, abraça seu
“destino elitário”. Evocando a teoria do romance de Lukács, o crítico atribui à atuação do herói problemático o significado de esforço elaborador de uma totalização que não se evidencia na imediaticidade dos fatos:
“[Riobaldo] Vê que deve encontrar um denominador comum para ordenar os fenômenos contraditórios que
compõem o mundo, a existência”. Essa busca de sentido é associada à escalada feita pelo jagunço arrivista:
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Riobaldo marcha para a transformação com a qual pretendia alcançar dois objetivos: encontrar (...) um fundamento
que pudesse dar sentido totalizante às realidades desconexas, contraditórias, do mundo e subir socialmente, deixando
de cachorrar pelo sertão como um raso jagunço.
(...)
O evento essencial desta trajetória é a superação de um plano de consciência por outro: o mítico-sacral pelo lógicoracional. (...)
O episódio de Veredas Altas [local onde é invocado o Demônio] se encerra com um sentimento de alegria indizível
(...), com o alvorecer, o nascer de um novo dia (...), contraponto do nascer do homem novo (...). Agora, Riobaldo está
pronto para assumir o comando dos jagunços e, através da contraposição Diadorim/Hermógenes e da conquista de
Otacília, entrar na plenitude de seu destino, misto de trajetória cultural-filosófica – a superação do plano consciencial
mítico-sacral e o encontro de uma visão de mundo agnóstico-existencial, capaz de integrar a totalidade dos fenômenos
da condição humana – e de arrivismo social e econômico – o casamento e a nova posição sócio-econômica de fazendeiro
e, last but not least, de ultra-reacionário e filisteu.6
O que isso tem a ver com o conjunto de nações que há pouco tempo era chamado de Terceiro Mundo ou,
nas palavras de Dacanal, com “os grupos nacionais, étnicos e culturais que até o momento tinham sido marginalizados e, na condição de explorados, permaneciam como simples objeto da história do planeta dos últimos séculos”? No ensaio, arma-se uma equação que inclui entre seus termos o Grande sertão: veredas, o “novo
colonialismo global” da década de 1970 e as perspectivas que então se apresentavam para os países da periferia do capitalismo. Ou seja, a reflexão sobre a singularidade épica do romance de Guimarães Rosa incide
também sobre a história recente do Brasil, naquilo que ela tem em comum com a de outros países do continente, e de outras regiões. Para o crítico, “Grande sertão: veredas é o Terceiro Mundo em marcha”. Isso porque
Guimarães Rosa construiu “um herói equilibrado e unitário, um herói que mergulha(ra) na ação e se justifica
ao aceitar a condição humana – sem problematizá-la – num contexto de pura horizontalidade”,7 quando, em
nações do centro do capitalismo, já não parecia haver condições para a configuração de totalização épica – a
qual ainda fora possível mesmo no “mundo degradado” da ficção real-naturalista observado por Lukács,
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“mundo completo em si próprio, completo mesmo em sua intrínseca problematicidade”. A teoria do romance
figura por isso como marco de uma divisão de águas na ficção romanesca européia, assinalando o fim do
“simples existir histórico, da epifania inocente de um mundo” e o “início da consciência, ao debruçar-se reflexivamente sobre este mundo”. Dacanal faz questão de ressaltar, em seu comentário sobre o romance da consciência individual burguesa, que Lukács, nos termos com que o descreve, evidencia o fato de que se trata de uma
derradeira e paradoxal unificação totalizadora (épica) na narrativa do Velho Continente.8 Em A epopéia de
Riobaldo, essa discussão acerca do clássico problema dos gêneros literários integra um esforço de compreensão das relações entre as formas estéticas e a experiência histórica, resultando em reflexões bem singulares no
conjunto da fortuna crítica de Grande sertão: veredas. Encaminhando-se para o fim do texto, o ensaísta se pergunta: o que viabiliza a emergência do épico, de uma visão de mundo totalizadora, num romance brasileiro de
1956, décadas depois de a literatura européia ter iniciado uma busca de rumos para a forma romanesca que já
não se pautava pela tentativa de fazer da figuração literária a expressão de uma totalidade (nas criações de, por
exemplo, Marcel Proust, James Joyce e Thomas Mann)? O que significa, no âmbito da história contemporânea,
a permanência da possibilidade de figuração totalizadora da experiência encontrada por um escritor do Terceiro Mundo?
Eis os passos da explicação apresentada.
A “estrutura fundamental” de Grande sertão: veredas, o “alternar-se contínuo dos planos temporais do
presente e do passado”, permite “a valoração do passado como experiência existencial, vital, imanente, positiva e, em conseqüência, épica”. A fala do narrador avança num movimento pendular, repetidamente indo ao
passado (relato dos fatos vividos) e voltando ao presente (reflexões formuladas no tempo da narração). Se os
momentos reflexivos trazem para o primeiro plano a situação dramática (o fazendeiro em conversa com o
“doutor”), nos momentos em que são contados os episódios da vida de jagunço parece que aquela cena
presente é esquecida pelo narrador, cancelando-se a possibilidade de distanciamento crítico com relação ao
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passado. E isso vale também para o leitor: também ele, nessas passagens, tende a encarar as aventuras do herói
menos como objeto para reflexão do que como eventos cujo curso se acompanha. Assim, “Riobaldo torna-se
um aedo: o cantor de feitos heróicos existentes em definitivo num tempo mítico (do passado que jamais
retornará).” É essa vivência definitiva, absoluta do passado, compartilhada pelo narrador e pelo leitor do
romance, que o crítico caracteriza como épica.9
Esclarecida a dinâmica interna que viabiliza a emergência do épico no romance, Dacanal passa a desenvolver uma hipótese sobre as condições históricas implicadas na possibilidade de se armar uma tal estrutura
ficcional. E propõe um sentido bastante original para a tão propalada universalidade de Grande sertão: veredas,
associando-a à trajetória do Terceiro Mundo na ordem global do século XX. As opiniões que o autor emite
com relação a fatos contemporâneos ao seu texto – em especial aquelas que se referem ao destino dos países
da periferia do capitalismo – poderão hoje parecer ingenuamente otimistas e equivocadas, se não forem levados em conta as tendências que se apresentavam no contexto mundial da época, o posicionamento político de
quem escreve e os ideais em circulação assimilados no texto. No início dos anos 1970, nem mesmo a realidade
desestimulante da ditadura Médici impedia que se alimentasse o projeto revolucionário. A mera existência de
nações não-capitalistas dava força à idéia de que era possível uma guinada à esquerda no Brasil. Considerando
a História pelo prisma da dialética hegeliana e assumindo a perspectiva que reputava comum às “elites progressistas do Terceiro Mundo”, Dacanal encara o “processo de ascensão” dos países que formavam esse bloco
como movimento radicalmente transformador. As obras “épicas” que analisa em seu livro, criadas por membros daquelas elites, parecem constituir um sinal de ímpeto afirmativo dos “grupos nacionais, étnicos e culturais” de “estrutura consciencial mítico-sacral” que, na visão do autor, mostravam-se inclinados a romper com
a condição de “serem apenas objetos da história e área de rapina econômica e cultural dos grandes impérios
europeus e norte-americano”.
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Tudo leva a crer que a espinha dorsal do processo histórico que atravessa o séc. XX se estruture em torno de um
movimento ascendente/descendente entre dois pontos. Na parte superior está a decadência da idade européia, com
o desaparecimento da cena histórica dos grandes impérios coloniais (...) e sua substituição – entre 1914 e 1945 – por
duas novas potências, Estados Unidos e União Soviética (...). Na parte inferior deste movimento ascendente/
descendente se encontra o Terceiro Mundo. (...) Tais grupos, ameaçados de desaparecimento diante do avanço
implacável do novo colonialismo global representado pelo avanço da civilização racionalista e tecnicizada ad nauseam
da era da computação e pressionado pelo instinto de sobrevivência, são levados a reagir. Dado que uma reação
negativa – quer dizer, de recusa total, de não aceitação – representaria, no contexto de uma economia mundial de
mercado (...), o suicídio livremente escolhido, esses grupos são obrigados, na medida de suas possibilidades, a optar
pela única saída existente: um movimento dialético de recusa de seu estágio anterior e de aceitação mais ou menos
rápida do processo. (...)
Mas antes de desaparecerem ou, melhor, ao desaparecerem marcarão de forma profunda e indelével a consciência
ocidental e a história do planeta. A partir de agora esta será também a sua história, o que determina, assim,
dialeticamente, o fim definitivo do Ocidente pós-renascentista e das estruturas sócio-econômicas dele específicas: a
expansão capitalista, o colonialismo de rapina e o neocolonialismo tecnológico e militar.10
Sabemos que as mais louváveis expectativas de José Hildebrando Dacanal não se confirmaram. De todo
modo, aqui, o que interessa não é pôr em discussão a validade de qualquer visão ou projeção da História, mas
sublinhar a possibilidade de aproveitamento crítico de certas percepções sobre a forma literária que dependem
da compreensão de circunstâncias históricas. Desse ponto de vista, o que há de mais relevante nas teses de A
nova narrativa épica latino-americana é o fato de ensaiar-se uma leitura de Grande sertão: veredas que procura
entender a forma ficcional levando em conta processos sociais, econômicos e políticos globais, sem recair no
lugar-comum de atribuir ao livro de Guimarães Rosa uma universalidade tout court. O crítico especifica matizes
para a abrangência ampla dos processos históricos sobre os quais reflete enquanto comenta a obra estética. Ao
longo do ensaio, a transição entre os “estados de consciência” “mítico-sacral” e “lógico-racional” surge como
realidade comum a várias nações da periferia do capitalismo e, para demonstrar isso, Dacanal as contrasta com
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países do centro do sistema, enfoca a ordem mundial. A mesma transição constitui o cerne daquilo que ele
considera a “estrutura profunda” na construção romanesca de Rosa – passado x presente na narração. E
também aparece nos comentários esparsos a respeito da trajetória arrivista do herói na sociedade sertaneja.
Assim, fica sugerido no ensaio que o arrivismo de Riobaldo é fator estruturante da forma ficcional.
Resumindo a hipótese de Dacanal a respeito das interações entre circunstâncias históricas e a configuração do romance: a emergência do épico se faz possível porque as circunstâncias em que transcorrem as aventuras narradas deixaram de existir- – o jagunço encerra sua carreira no momento de transformação da ordem
política da República Velha, aquele é um tempo definitivamente passado, “perdido irremediavelmente para
Riobaldo e para a comunidade que ele representa”; por outro lado, a consciência do narrador permanece em
defasagem com relação a “seus pares (elites) do Ocidente urbanizado”, pois “Riobaldo, ao superar o nível de
consciência mítico-sacral, não passa ao nível cético-racionalista próprio dos centros urbanizados do Ocidente
desde a segunda metade do século XIX”.11 A visão que tem o narrador de Guimarães Rosa só pode funcionar
como ponto de vista capaz de justificar o desconcerto do mundo apegando-se à imanência – “Existe é homem
humano”12 –, mantendo-se a salvo do ceticismo contemporâneo que refuta toda possibilidade de totalização.
Ilhado em sua fazenda, isolado no sertão, ele consegue formular reflexões “baseadas na aceitação do mundo
como experiência e como realidade imanente”, sem que alguma problematização das explicações em que
aposta ameace o equilíbrio conquistado. O contexto no qual está fixado viabiliza o “estado de consciência”
que lhe proporciona o conforto de encarar a própria existência como um todo justificável, retrospectivamente
não-problemático – todos os movimentos imprevistos no fluxo da vida, todas as decisões arbitrárias tomadas,
tudo se reveste de sentido e parece lógico, ordenado numa mitologia pessoal. “Somente no sertão de um país
do Terceiro Mundo – ainda não plenamente integrado na crise de fundamento da consciência ocidental (...) –
apenas ali seria possível localizar e recriar um mundo épico”.13 Esse isolamento estratégico em que o escritor
coloca seu narrador-protagonista inclui a possibilidade de interação com o universo mítico-sacral da religiosiAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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dade popular. Mesmo no presente da narração, mesmo assimilada a lógica personificada no “doutor”, não está
de todo neutralizada a inquietação com a razão de ser dos fenômenos em que Riobaldo se viu envolvido, como
testemunha ou como agente. Sinal disso, segundo Dacanal, é sua participação em “experiências religiosas
ecléticas”, ocasiões de catarse às quais “não adere interiormente”, as quais “usa como calmante para esquecer
o desconcerto do mundo que sempre o perturba apesar da solução agnóstico-existencial-imanente que soubera encontrar”.14 A conciliação oportuna entre o estado de consciência do velho Riobaldo (“agnóstico-existencial-imanente”) e suas práticas vinculadas a um estado de consciência que ele no passado renegou leva o
ensaísta a afirmar que a figura do narrador-protagonista de Grande sertão: veredas é uma “solução de compromisso”, que confere singularidade ao romance (do ponto de vista do andamento da literatura latino-americana
que lhe é contemporânea):
Mas este processo de ascensão do Terceiro Mundo é, evidentemente, contraditório e doloroso. Porque ao mesmo
tempo em que tais grupos nacionais, étnicos ou culturais se movimentam para cima em busca de sua sobrevivência e da
manutenção de seus valores próprios, eles são obrigados a aceitar, se não totalmente, pelo menos em parte, a civilização
racionalista, tecnicizada e pragmática do Ocidente. Ora, esta aceitação da modernização provoca necessariamente a
destruição de seus valores mais profundos, de seu próprio mundo até hoje guardado no mais recôndito de seu ser. (...)
Talvez não seja por acaso que as grandes obras do realismo mágico ou, na expressão utilizada na introdução deste ensaio,
as grandes obras da nova narrativa épica latino-americana se encerrem com cataclismas em que – com exceção da solução
de compromisso em Grande sertão: veredas – os personagens são destruídos, varridos da face da terra juntamente
com o mundo que os cerca.15
O sujeito esclarecido que é o velho Riobaldo recorre à religiosidade popular com intuito de apaziguamento, e este parece ser também uma de suas motivações na narração. Ao contar seu passado, esforça-se por
obter de quem acompanha o relato uma avaliação positiva para as alternativas que encontrou. E o visitante
vindo da cidade – ou seja, aparamentado com os princípios racionais e, portanto, gabaritado para avaliar a
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justificabilidade dos fatos narrados segundo essa ótica – parece sempre confirmar as proposições do narrador.
Do modo como se estrutura o romance, o papel reservado ao interlocutor da narrativa parece ser o de validar
as opções que deram vida nova ao herói. Depois das tragédias da guerra e do amor irrealizado, ele encontra no
casamento com Otacília, na paz doméstica da vida de fazendeiro, o conforto de manter-se, na prática, à salvo
das tensões com que convivera. E ao ouvinte, duplo do leitor, esta trajetória surge como que justificada em si.
Nessa medida, Grande sertão: veredas é uma solução de compromisso da qual o leitor é pactário.
NOTAS
1
Com ligeiras modificações, este texto corresponde a um dos trechos da tese de doutorado O jagunço somos nós: visões do Brasil na
crítica de Grande sertão: veredas, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ em agosto de 2006.
2
José Hildebrando Dacanal, Advertência ao leitor. In: Nova narrativa épica no Brasil: uma interpretação de Grande sertão: veredas, O
coronel e o lobisomem, Sargento Getúlio e Os Guaianãs. 2. ed. rev. e amp. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p. 6. Segundo o autor,
o ensaio A epopéia de Riobaldo sofreu apenas pequenas alterações, irrelevantes para seu sentido geral, na passagem da primeira à
segunda edição, à qual se reportam os comentários deste artigo.
3
Id., A epopéia de Riobaldo. Op. cit, p. 37-38.
4
Cf. Ibid., p. 10-19.
5
Ibid., p. 19. Itálicos do autor. Para melhor entendimento das proposições de Dacanal, vale a pena transcrever alguns trechos do ensaio
que especificam a abrangência de termos como “épica”, “consciência de estruturas lógico-racionais” e “consciência de estruturas míticosacrais”:
“(...) o termo épico, empregado como substantivo ou adjetivo, possui aqui o sentido amplo com que é utilizado seja na Estética de
Hegel, seja em Teoria do romance, de Lukács. (...) o termo épico define a forma literária (ficcional) cujos exemplos mais puros são o
epos grego e o romance (real-naturalista). Esta forma é a da narração da ação (e a celebração desta ação) do indivíduo sobre o mundo
que o cerca”. (p. 68).
“Para uma consciência de estruturas lógico-racionais (...) o mundo exterior existe e é interpretado na medida em que possuir objetividade empírica – os fenômenos – ou lógica (...) existe apenas o fenômeno como fenômeno, em sua imediaticidade captada ou captável,
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empírica ou lógica (as leis resultantes da observação das relações entre os fenômenos). O fenômeno tem apenas e sempre o valor de
fenômeno e jamais é o portador de um significado que o ultrapasse.
Para uma consciência de estruturas mítico-sacrais, ao contrário, o fenômeno pode carregar um sentido, uma mensagem que ultrapassa
sua realidade empírica ou lógica. Assim, o raio pode ser o mensageiro de um poder transcendente (...).” (p. 41-42).
6
Ibid., p. 49-54. Itálicos do autor.
7
Cf. Ibid., p. 68-72
8
Cf. Ibid., p. 17-18. “Depois dele [Lukács] não será mais possível esquecer – sob pena de não se entender nada – que o romance
europeu é realmente a epopéia de ‘um mundo sem deuses’, dessacralizado, onde todos os valores são relativos e onde esta relativização
é, paradoxalmente, a própria plenitude. Um mundo estilhaçado, órfão de um centro catalisador ou, melhor, mundo cuja própria
unidade é a de não possuí-la. Este é o sentido da expressão lukacsiana mundo degradado, dentro do qual caminha um herói também
degradado, incapaz de recolher os fios e repor os estilhaços. Cada romance é um mundo próprio, cada herói busca outros, diversos,
valores. Eis por que o romance é o mundo da total relatividade ou, em termos lukacsianos, da total degradação.” (p. 18).
9
Cf. Ibid., p. 69-70.
10
Ibid., p. 73-75. Itálicos do autor.
11
Ibid., p. 69.
12
João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 538.
13
José Hildebrando Dacanal, A epopéia de Riobaldo. Op. cit.., p. 71.
14
Ibid., p. 70-71. Itálico do autor.
15
Ibid., p. 75. Itálicos do autor, negritos meus.
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DIEGO BRAGA (MESTRANDO - UFRJ)
Resumo:
Dentro de uma perspectiva hermenêutica, buscaremos, através da reflexão acerca da tensão estabelecida por Rosa no
conto “São Marcos”, de Sagarana, entre conhecimento epistêmico e saber poético, causalidade e casualidade, rito e mito,
demonstrar alguns indícios do caráter fundamentalmente paideumático de toda cultura, especialmente em sua realização plena
enquanto poiésis.
O COMBATE MÁGICO E MÍTICO
um ensaio sobre o conto São Marcos, de Guimarães Rosa
Os poetas são sempre poetas da terra. Amam tanto a Linguagem que se
identificam com terra, sentido-lhe as vibrações pulsarem nas veias de suas poesias. Continuamente estão superando a dicotomia e alienação de homem e terra.
Mesmo nas tensões do mundo da técnica total, olham sempre com olhos de
primeira vez e por isso descobrem em tudo um espetáculo de originalidade, o
mistério de viver.
- Emmanuel Carneiro Leão
João Guimarães Rosa reinventou o Sertão, disso todos já se aperceberam. Talvez ainda falte apontar com
a devida insistência que o Sertão de Rosa não pertence a Rosa. Este grande autor só é autor porque se deixou
pertencer ao Sertão, aceitou esse pertencimento radical e entregou-se ao espanto de sua contemplação e
escuta. Somente a partir do sertão se dando como linguagem o autor pôde renunciar à sua fala, sendo ele
mesmo uma manifestação da natureza, e reinventar o Sertão do silêncio sempre originante. Em seu ensaio “A
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Criatividade da Memória”1, Ronaldes de Melo e Souza reflete acerca da potência mitopoética chamada na antiga
Grécia de Mnemósyne, demonstrando que, dada ligação radical entre as deusas Memória, as Musas suas filhas,
e os montes e vales férteis – a criação artística tem caráter telúrico. Já na experiência grega, e nesta mesma de
um modo privilegiado, a physis, aquilo que sempre surge e, aparecendo, oculta-se, doa-se em seu vigor como
linguagem no rigor do pensamento2.
A composição poética, como reunião sim-bólica de linguagem e pensamento, é o fundamento da obra de
João Guimarães Rosa, pelo qual a arte retorna ao centro da articulação de verdade e sentido, tal como ocorre
nos contextos de pensamento mítico. Não põe Rosa, no lugar do lógico, o mítico como o meramente analógico,
mas sim como o dia-lógico: a instauração do horizonte entre o limite do mundo narrado e o ilimitado da
natureza que conclama ao narrar se dá, nessa articulação dialógica, pela palavra poética, pelo logos como
reunião acolhedora.
“ XXXXX é a postura recolhedora (acolhedora). Mas para os gregos XXX continua sendo também: apresentar,
expor, narrar, dizer. XXXXX seria, então, a palavra grega para fala, como dizer, para a linguagem. E não somente isto.
Pensado como a postura recolhedora, XXXX seria a essência da saga, pensada de modo grego. Linguagem seria saga.”3
O conto de que trataremos, “São Marcos”, faz parte da obra “Sagarana”. Rosa, poeta da prosa que é,
condensa a linguagem já desde os seus títulos. Saga é uma palavra de origem germânica a que se acrescenta o
sufixo tupi -rana. Este último traz consigo o sentido de “à semelhança de” ou “parecido”. Em alemão, sagen
significa: dizer, contar, narrar. No dizer poético rosiano, narrar consiste numa cosmomitia na medida em que o
sertão, um ermo geográfico, surge da obra de arte na incompletude de seu mistério, em pequenos contos que o
manifestam como um mundo em abundante geração e degeneração. Como mostra Manuel Antônio de Castro,
em sua dissertação de mestrado a respeito de “Grande Sertão: Veredas”, o mero sertanejo torna-se, na dimensão poética rosiana, um pro-jeto do ser como “o homem provisório no grande ser-tão.”4
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Assim, Rosa elabora uma poética da terra totalmente nova, celebrando a in-venção no sentido de fazer
vir de dentro da linguagem mesma a plenitude de seu sentido. Além dos neologismos, arcaísmos, cultismos,
hibridismos e regionalismos5, no esteio do que fizeram Hesíodo na Grécia e Lao-tzu na China, para ficarmos
com alguns exemplos, ele se apropria do falar cotidiano e comum e lhe dá um peso todo especial, fazendo-nos
experimentá-lo como linguagem, condição de possibilidade de qualquer mundivisão original e originante. As
figuras de linguagem da retórica tornam-se imagens de pensamento da poética.
Publicado em 1946, Sagarana contraria, por um lado, a chamada geração de 45 que, opondo-se ao projeto
lançado - mas não plenamente realizado - pelos modernistas de 22 e de 30, seguia no esteio das importações
teóricas6 com que se buscava pensar a “terra incógnita” brasileira; por outro, uma certa tradição poética que se
dedicava ao inventário, pelo qual o sujeito (pós)colonial passa a fazer o trabalho do colonizador por livre e
espontânea vontade7, ainda que na boa intenção de conscientizar e criticar. Um regionalismo radical não pode
tratar o regional a partir do esquema dicotômico margem-centro, porque trazer o marginal para o centro não
resolve o problema da cisão valorativa. A palavra região é oriunda do latim regio, que indica um sentido, um
limite, pelo que também se chamava regio o lugar delimitado pelas linhas imaginárias que os áugures traçavam
no céu para fazerem suas profecias8. Deste modo, a obra de Rosa, inaugural, é regionalista apenas se considerarmos o sentido radical de região como o lugar que surge fundado no ilimitado como horizonte de sentido e
verdade.
O título do conto, São Marcos, traz à tona também essa referência ao poder mágico, profético, da linguagem, pois este é o nome de uma “(...) oração sesga, milagrosa e proibida (...)”9, tão proibida que o leitor não
fica sabendo como ela é. Contam-se apenas os estranhos fenômenos que ocorrem com aqueles que impropriamente recitam esses versos magicamente poderosos, capazes de reverter a ordem tradicional das coisas, num
caos em que uns andam nas paredes e outros, recitando propriamente, passam milagrosamente pelas grades de
uma cela. Há ainda que se notar que essa oração é endereçada ao diabo, devendo-se lhe recitar à meia-noite –
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o que acentua ainda mais o vigor dessa recitação como força caótica de reversão do sentido estabelecido da
realidade. O conto, sendo batizado segundo essa reza sesga, isto é, que tem o poder também de assentar as
coisas e deitá-las na quietude, projeta-se igualmente como um jogo de confusão e rearranjo: a dinâmica de
caos e cosmos.
O que se conta é a catábase pela qual um homem douto que afirma desacreditar de toda superstição
renasce como um poeta da natureza. Logo depois de afirmar seu ceticismo, este homem de ciência enumera
uma longíssima lista de concessões às crenças populares. Fica patente o tom irônico já desde o início da
narrativa, quando se diz que as superstições são “(...) no total: setenta e dois – noves fora, nada.”10 Ainda
ironicamente, o tal doutor, narrador, afirma que suas incursões na mata têm fins unicamente práticos de
observação científica, mas o que se nos mostra é o entusiasmo profundo, o espanto diante da natureza que
resulta na composição de cantos de louvor ao encanto oriundo da abundância do real por parte deste cientista,
já metamorfoseado num poeta. Eis alguns exemplos da celebração nada pragmática a que se entrega o doutor:
1. “Os bambus! Belos, como um mar suspenso, ondulado e parado. Lindos até nas folhas lanceoladas, nas
espiguetas peludas, nas oblongas glumas... Muito poéticos e muito asiáticos, rumorejantes aos vôos dos ventos”11
2. “Mas as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas,
sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais constrictas.”12
A menos que se trate das experiências poéticas de um Alexander Von Humboldt, estas passagens em
nada se assemelham às descrições de um naturalista.
Unindo na sua poética a dinâmica catabática em que a alternância tensional de caos e cosmos nos remete
para o processo de mundificação, próprio do discurso fictício inaugural, e a suspensão parabática da ironia
intencional a narrativa rosiana se auto-legitima como reflexão dialógica e metalingüística13, posto que suspender é radicalmente por algo em condição de pensamento. Pelo discurso irônico em que se nega e afirma o
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mesmo, o percurso da narrativa se instaura não no ilógico, mas no dialógico que prescinde de uma síntese
lógica final, substituindo assim a metafísica da “(...) oposição antagônica pela oposição complementar”14, esta
última, própria da mitopoiésis sim-bólica.
Ao contrário da imaginação sim-bólica (a ação poética de com-por em imagem), os processos de representação conceitual, na medida em que se interpõem como discurso dia-bólico, traçam a clivagem entre ser e
humano. Contudo, o que Rosa nos sugere não é um retorno do homem ao seu “estado natural”, o bom selvagem de Rosseau, como declara o nosso protagonista a respeito de sua estadia nas matas: “Porque não é a esmo
que se vem fazer uma visita: aqui, onde cada lugar tem indicação e nome, conforme o tempo que faz e o
estado de alma do crente.”15 Veja-se bem, a composição pática que rosa nos propõe aqui não é a oposição
antipática de homem e natureza e nem mesmo também a síntese apática, mas sim a tensão simpática: conforme
o tempo que faz e o estado da alma do crente. Não podemos habitar a realidade natural, apenas o mundo em que
somos historicamente lançados, a realidade interpretada. Como no mito bíblico da queda do paraíso: estamos
condenados à existência.
A realidade interpretada, porém, advém, óbvio, da interpretação da realidade, que se doa como linguagem. Isto quer dizer que a eclosão existencial do homem se radica na sua essência terreal. Não há télos que não
seja telúrico. “Como quer que se determine a posição do mundo na história da humanidade, a Terra lhe opõe
sempre as tensões de sua proteção”,16 e eis que a narrativa de São Marcos se configura justamente na tensão do
humano mundificante com a natureza fundante. No primeiro momento do jogo catabático, o protagonista é
lançado na mundície caótica da natureza. É pelo entusiasmo diante da brotação das coisas que o cientistatornado-poeta desanda a nomeá-las de acordo com o vigor fenomênico com que se doam. Nesta primeira parte
da narrativa, predomina o sentido patético visual diante do mistério instigante das matas:
1.
2.
“Bem perto está o bosquete, e eu me entorto de curiosidade (...)”;17
“Duas árvores adiantadas, sentinelas: um cangalheiro, de copa trapezoidal, retaca; e uma cajazeira que oscila
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os brônquios verdes no alto das forquilhas superpostas.”18
A visualidade é tão predominante que chega a se sobrepor a outros sentidos, como o do paladar e o do
olfato:
“No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, gláceo, emborcado; só na barra sul do horizonte estacionavam
cúmulos, esfiapando sorvete de coco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido – um massa-mel amarelo, com favos
brilhantes no meio a mexer.”19
A presença desta sinestesia transcende seu uso retórico como figura de linguagem, articulando-se como
elemento na unidade de sentido da obra. Assim, está em tensão com a posterior cegueira que marca o percurso
de transformação da personagem e da realidade ficcional apresentada. Um outro sentido que ela adquire é o de
deixar claro que qualquer apelo que chegue até o nosso protagonista o fará inicialmente por meio da visão. A
natureza convoca o homem à sua vocação poética por meio de um poema que aparece riscado num bambu:
“Os grandes colmos jades, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta
de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
‘Teus olho tão singular
Dessas trancinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa marieta.”20
O narrador, à maneira dos cantadores do sertão, aceita o desafio do mote e responde:
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“Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonossor
Belzabar
Sanekherib.”21
O que é esse rol de nomes dos antigos reis babilônicos? Logo em seguida é dito que não é por sua riqueza
ou representatividade que tais nomes apareceram, mas somente pela sonoridade das palavras. Instaura-se o
sentido mais visceral devolvendo-se as palavras à sua musicalidade, em que toda possibilidade de significação
e representação se desfaz na corporeidade do nome, que aí se justifica no simples ser-nome. Desta maneira,
Rosa anula a possibilidade de que se entenda sua linguagem como um suporte de idéias ao conduzir sua
narrativa pela inutilidade e pelo absurdo.
Podemos inicialmente entender que esse poema que convoca à disputa poética que então se instaura não
vem da natureza, mas de uma pessoa, de um alguém, um outro sujeito poeta declarando seu amor a uma tal
Marieta. Contudo, atentando para o que é dito, lemos um pouco antes que os bambus pediam autógrafos. Quem
será o autor desse poema não autografado?
“O trovador se esmerara. Ou seria outro, um terceiro? Pouco vale: para mim, fica sendo um só: ‘Quem será’. E
‘Quem-Será’ ficou sendo meu melhor amigo, aqui no Calango-Frito. Mas, não tive dúvida; o mato era um menino
dador de brinquedos(...)”22
O diálogo não se dá, portanto, no âmbito do intersubjetivo, tampouco temos um sujeito que poetiza um
objeto passivo, apenas a reafirmação da tensão simpática entre homem e natureza, em que a fala daquele
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corresponde ao apelo desta, doando-se – de modo patético e patente – como linguagem. Através da ironia,
que impossibilita qualquer redução de sua narrativa a uma idéia central, combinada ao fundamento telúrico de
sua composição mitopoética, Rosa rompe com os limites da representação e da expressão e nos lança na
ambigüidade do sentido. Este é a manifestação da própria verdade em seu devir. Se da representação conceitual
obtemos o conhecimento como certeza sobreposta ao real, na experiência de nomeação poética temos o saber
sempre inaugural, tal como sugere a passagem:
“(...) à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente
usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas
drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros
de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção
da altura?”23
Esta outra verdade nomeadora, não doutrinária, que em sua historicidade de re-velação é sempre um
termo da interminável cadeia ontológica de vir-a-ser, conhecemos apenas em parte. Isto porque só nos cabe a
tarefa de vê-la em seu enigma, na medida em que seu vir-a-ser se opera plenamente na obra de arte24. A
nomeação poética, como já mencionado anteriormente, é o agir instaurador de mundo por excelência. Cabe ao
poetar pensante e ao pensar poético consumá-lo em sua atualidade própria de vir-a-ser da verdade. Ficcionalizar,
fingir, do latim fingere, se originam do verbo grego phúo, que significa brotar, fazer nascer, produzir, apenas
através de longo percurso de encobrimento de seu sentido radical engendrado pela tradição metafísica, pelo
qual a linguagem se prendeu à certeza, tais palavras puderam vir a ser equiparadas a mentir, iludir e enganar.
Assim pensando, já não se pode estabelecer uma separação entre ficção e verdade, como nos disse Nietzsche:
“O que é a verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma
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soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são,
metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível (...)”25
Guimarães Rosa, poeta da prosa que é, não usa a linguagem como representação da realidade, mas deixaa ser apresentação ocultante. Toda grande arte operacionaliza essa dinâmica da verdade: re-velar é mostar
encobrindo, na medida em que é um velar novamente. Essa é a própria dinâmica da natureza em seu acontecimento linguageiro.
“Talvez a poesia, ao recusar-se a tratar a linguagem como utensílio, entre com ela numa nova relação de amizade, de
confiança, e de abandono, seja qual for o direito que ela se arrogar sobre essa matéria ou o controle que exercer sobre sua
própria atividade. A linguagem é de per si natureza, mas é uma natureza que fala e que inspira, testemunha e expressão,
diremos, de uma Natureza naturante que por si mesma nos fala.”26.
Ao contrário do que comumente se pode considerar, não é a representação do discurso teórico que
confere ou estipula o sentido da arte, mas sim o contrário, a partir da apresentação do mundo na arte fundado
na natureza é que pode toda ciência, toda filosofia, toda religião institucionalizada estruturar-se no horizonte
da palavra poeticamente instaurada27. Na poética da prosa ou do verso, não opera a linguagem como significante,
pois este é um processo que pressupõe uma referência ao real já interpretado segundo as idéias dos significados, mas como puro sentido musical sempre inagural. Ao mesclar o cotidiano e o extra-ordinário, as incursões
mundanas e as excursões terrenas, a poética rosiana projeta os limites da língua à liminaridade da linguagem.
Quem pode dizer o significado do que a música diz? Ainda assim, quem pode negar o que a música nos diz?
Assim é a linguagem do nosso poeta demiurgo:
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“E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem (...) E que o comando “Abre-te Sésamo etc.” fazia com
que se escancarasse a porta da gruta cofre...”28
Ou ainda como nessa passagem, em que todo jogo léxico é trabalhado em função de sua musicalidade:
“E as superfícies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas,
penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabuas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquaraçus.
Outras imbaúbas, mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos,
flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques (...)”29
Será a obra Rosiana composta então de palavreado oco? Será o fundamento da poesia o balbuciar louco
de um homem irracional que não tem o que fazer? Isso é uma impossibilidade. Essa pura voz, o puro som, he
phoné, nos falta, somente os animais a tem. Ante o relinchar do cavalo e o coaxar do sapo, qual o nome da voz
humana? O ser humano só fala dependente da linguagem, porque pensa, e “O pensamento é a pendência da
voz na linguagem.”30 Ademais, a própria razão só nos é possível pela e na linguagem. Toda palavra é preconceitual.
Toda proposição racional é elaborada com palavras já esvaziadas de sua força potencial de canto, para tornarem-se suporte conceitual. A palavra em sua musicalidade realça, da linguagem, a feição musal, das Musas,
filhas de Zeus e de Memória, que por sua vez foi gerada pelas núpcias de Céu e Terra. Um poeta-pastor grego
cantou o ambíguo enigma da voz musal: “(...)sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos/e sabemos, se
queremos, dar a ouvir revelações.”31
A verdade ficcional da palavra cantada se fortalece na contradição, que não se pode reduzir à antítese,
que é um princípio da dialética em sua configuração lógica. Justamente a força instauradora da palavra poética
é que confere um poder mágico às palavras, e não apenas num ambiente cultural configurado na oralidade, em
que o saber e a memória de um povo dependem inteiramente do canto dos poetas. A voz de Thot, deus egípcio
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da linguagem, da escrita e das fórmulas mágicas chega aos mortais sempre como um canto.32 Também chega ao
nosso narrador a voz da natureza re-velada no divino: “Hoje vamos, primeiro, às Rendas da Yara, para escutar
de próximo os sete rumores do riacho (...)”33. Ora, o som das águas que descem do monte Hélicon é, de modo
semelhante ao do riacho rosiano, o som da dança das Musas34, e a Yara é a mãe das águas na mitologia tupi, a
sereia dos rios que encanta os homens com seu canto.
Através da poetização misteriosa da realidade é que se abre o espaço de reflexão como numa clareira
em meio à floresta. Reflexão, contudo, mitopoética, em que os deuses e heróis imortais do ilimitado são o
fundamento dos limites dos mortais, vigendo em suas existências como o sentido das coisas próprias da
humanidade. Assim no locus amenus da clareira, enquanto lê “(...) a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda
(...)”, é dito que “(...) convém meditar sobre as belezas da castidade (...)”35, logo depois, a natureza fundida
numa potência divina chamada Venusberg, ou Monte de Vênus (“Berg” em alemão é “monte”), estimula
uma visão erotizante do fálico jequitibá, da catuaba viril, numa pletora natural agora interpretada segundo o
convite ao pecado36. Ainda assim o arrebatamento do narrador confere a esta mesma natureza a atmosfera
de um santuário. Templo, miticamente pensado, identifica-se com o sentido já indicado de região: é espaço
aberto na terra e no céu em que se manifesta o sagrado37. As clareiras são, para o narrador, como um templo: “Agora vamos retroceder, para as três clareiras, com suas respectivas árvores tutelares; porque, em
cada abertura do mato, há uma dona destacada (...)”38. Pode-se pensar que se fala de árvores e não de
deuses, mas é logo depois que se diz que a primeira dessas donas é o já citado Venusberg; ainda mais adiante, diz: “(...) ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a Pan.”39
Nomeada e mitificada, plena de sentido no advento de sua verdade, a terra envolve o mundo que se
desenvolve por meio do êxtase mitopoético a que se entrega o nosso protagonista. Isso porque “(...) o mito não
nos relata o aparecimento dos deuses no mundo, mas sim, o seu desaparecer no aparecimento do mundo que
eles só acenam, enquanto ‘acenantes mensageiros da Divindade’”40. Do caos desordenado inicialmente menAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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cionado, o nosso herói poeta, tal como um Hércules após seus trabalhos de ordenamento cósmico, cria um
mundo como um deus. Então senta-se para descansar na paz passageira do sétimo dia de um cosmos que
momentaneamente impede o ímpeto caótico de invardir-lhe os limites. O primeiro indício do encerramento do
primeiro movimento caótico, que tinha como contraponto a nomeação cosmofânica, é o fim da disputa de versos
com “Quem-Será?”,41 donde surge a vocação poética do narrador. Em seguida, compartilhamos da visão de
uma nova realidade fenomênica que, ainda que consumada em sua manifestação, mantém-se na unidade dual:
“Todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e não-humanos, tão repousantes!”42. Então, cumprido o seu
papel, declara o nosso poeta: “Uf! Aqui, posso descansar”43. O mundo continua sereno em seu acontecimento,
“corre o tempo”44, “(...)nada de novo no rabo da lagoa, e aqui em terra firme muito menos – e chegou um
momento sonolento, em que me encostei para dormir”45, até que, no último instante desta perene interposição
ordenada ele declama: “Paz.”46
Entramos então no segundo movimento catabático pela irrupção de um novo caos advindo da cegueira
da personagem. Este segundo movimento é marcado pela mudança de uma percepção visual para uma percepção auditiva: “Continuava, porém, a debulha de trilos de pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da
mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços (...)”47. Este é um dos motivos da grande angústia
experimentada pelo nosso cientista-poeta, tão ligado que era à visão que esta lhe condiciona o paladar: “Experimento um cigarro – não presta, não tem gosto, porque não posso ver a fumaça”48.
Não sabemos nós, nem a personagem, de início, a causa da cegueira: estamos no domínio do fantástico,
em que se quebra a relação de causa e efeito, em que as coisas acontecem, simplesmente: “Cego?!... Assim de
súbito, sem dor, sem causa, sem prévios sinais?...”. Contudo, ao fim do conto nos é relatado que a cegueira
resultou de um feitiço do negro João Mangolô – o antagonista do narrador, com quem este entra em conflito
no indireto início e direto no final da estória. Ainda assim, permanece elemento fantástico do conto: este
apenas se transfere da cegueira para a feitiçaria. O fantástico promove a ruptura total com o discurso causal
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fundando uma narrativa erigida no sensacional. Esse é também o modo de vigência da narrativa mítica.
O processo mitopoético, assim como o irônico, ambos presentes na obra rosiana, conforme até aqui
demonstrado, se caracterizam pela composição tensiva de opostos intensivos. Na perspectiva mítica, a natureza é encarada em sua dinâmica cíclica vital de tornar-se, e não numa suposta mecânica factual. Essa dinâmica natural é uma composição de homem e natureza. Contudo, não no sentido dos ritos de passagem de Arnold
van Gennep49, que pressupõem um animismo mimético, mas sim de uma experiência pela qual toda existência
é compreendida em seu fundamento ontológico como uma realização do que se é. Uma conjugação do ser que
resguarda seu infinitivo: ser-sendo. Surgimento e ocultação, luz e trevas, visão e cegueira, saber e não-saber,
terra e céu, os mitos de criação nos apresentam um cosmos assim ordenado, mas sempre a partir do caos: o
vazio, o invisível, o nada, o não ser, o chásma méga é o fundamento de tudo que vem a ser50. Toda invenção, do
latim in-venio, vem de dentro da criação e nela se estabelece como limites inventados, como mundo ficcionalizado.
Instaura-se nessa segunda catábase o mesmo vigor de pensamento que se apresentou na primeira, com a
diferença de que agora o personagem deve reaprender a escutar. Reaprender o silêncio depois de tanto dizer,
para receber novamente a visão e sair da floresta renascido. Isso, a partir da escuta e do silêncio que traz à
memória o verbo sagrado na forma da oração de São Marcos. Esta traz uma nova ordem ao mundo. Como no
mito de Édipo, após se impor como senhor e sábio, ele já se encontra destinado à cegueira e à perdição. Na
cegueira é, contudo, que Édipo encontra a sabedoria ao experienciar o enigmático do enigma: que toda resposta é um novo enigma. O homem não é o solucionador do enigma. Antes, é uma enigmática aparição da
natureza que põe todo enigma51, seja pelos lábios de uma esfinge, seja pelos entrenós de um bambu. A
presença de uma segunda catábase ecoando a primeira sugere claramente que, assim como a ordem inicialmente instalada foi apenas uma ruptura na irrupção originária da natureza, esta segunda ordem instaurada,
com que se fecha o conto, não significa um final feliz no sentido do assentamento definitivo de uma ordem
absoluta.
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Mas, como assim reaprender a escutar? Como reaprender o silêncio? O que o conto mesmo nos diz? Não
dissemos que às percepções visuais da personagem se sucedem as auditivas? Atentemos à seguinte passagem
que aparece em meio às demais imagens-som: “(...) aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e
reensaia discursos irônicos (...)”.52 Um araçari ensaiando discursos irônicos em vez de fazer música é uma
personificação que, além de sua simples constatação como figura de linguagem, nos diz claramente que o
personagem não ouve sons, ruídos, mas sim o canto do pássaro, o soluço da pomba, a ironia do araçari. Mais
adiante, o cego escuta:
“Outro chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência:
- ‘Güenta o relance, Izé!”53
Pode a natureza nos chamar pelo nome e ordenar, ser aliada e aconselhar resistência? Sim, porque nunca
ouvimos tão somente um som, só chegamos ao som a partir da escuta de uma sonoridade. Não escutamos o
ruído tal, mas a chuva, o trovão, o carro, a voz conhecida, ou o desconhecido, que nos advém como sentido
enquanto desconhecido, muito embora nada signifique. Ainda mais radicalmente: não sabemos o que é o
barulho, por mais que meçamos seus decibéis, porque o barulho é o som não interpretado, o caos auditivo que
funda toda escuta que nos vem na medida de sua interpretação, naturalmente ocultando-se como barulho e
mostrando-se como sonoridade, o rumor sonoro, que abre o caminho do sentido ao seu duplo, a voz cantada.
O narrador escuta assim a voz de “Quem-Será?”54, a linguagem como natureza e a natureza como linguagem.
Diz o narrador, após escutar o chamado da natureza: “Eco não houve, porque a minha clareira tem boa
acústica.” A escuta (acústica, do verbo grego akoúo: escutar) se dá propriamente na insistência ouvinte do
mundo (clareira), mas nos chega sempre da natureza persistente, do além-do-mundo. Esta é a campainha que
anuncia o mistério visiteiro. Ela não se dá em função do eco de nossa própria voz. Escutar propriamente
implica obedecer, do latim ob-audire, e assim procede nosso herói:
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“- E agüento mesmo!
(...) mas o tom combativo de minha voz derramou em mim nova coragem. (...) Vamos ver!
Vamos ver o faz-não-faz.”55
Obedecendo, o narrador sente novamente a coragem de prosseguir, sendo capaz de dizer, em meio à
cegueira, vamos ver! Como pode um cego ver alguma coisa? Ora, não dizemos que uma mesa é cega só porque
ela não enxerga. Ver e enxergar são coisas diferentes. Em grego, eído diz não somente “ver”, mas também
“imaginar”, “compreender”, sendo a palavra que origina idéia. Ver é uma experiência de pensamento. O que se
propõe a ver nosso personagem cego, de modo que poderíamos perguntar igualmente, a que se destina então
o seu pensamento? Ao faz-não-faz. Instaura-se, no percurso da narrativa, a questão do agir. Agir não é o mesmo
que agitar-se, que fazer qualquer coisa para anestesiar a angústia do vazio, pelo menos não para o nosso herói:
“É isto. Devo esperar, quieto.
Tempo assim estive, que deve ter sido longo. Ouvindo. Passara toda a minha atenção para os ouvidos. E então
descobri que me era possível distinguir o guincho do paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos
pulos das cotias (...)”56
Na busca de pensar o agir, o herói se põe em silêncio e começa a prestar atenção no que ouve, começa a
reaprender a escutar. O drama do agir e não-agir articula-se com o do saber e não-saber. Esse drama surge de
um vigor combativo, como anunciou nosso narrador57. Diz Heráclito, no fragmento 52: “O tempo é uma
criança, criando, jogando o jogo das pedras; vigência de criança”58. O combate, o jogo, é o próprio princípio de
composição do conto São Marcos, como temos observado. É, outrossim, a própria realidade em sua dinâmica
temporal “caosmica” e a origem da nomeação mundificante a que se entregara a nossa personagem, surgida do
jogo poético com “Quem-Será?”:
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“O tema se esgotara, com derrota minha e o triunfo de “Quem-Será?”. Me vinguei, lapisando outra qualquer
quadra, começo de outro assunto. E nesse caminho estamos.”59
Ainda segundo Heráclito, em seu fragmento 18: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo
sem caminho de encontro nem vias de acesso”60. Esse agir esperando é o faz-não-faz que o personagem quer
ver. Esse é o caminho que ele quer encontrar. Na passagem anteriormente citada o herói diz que, apesar de
finda a disputa inicial, com derrota sua, donde veio a paz, ele e “Quem-Será?” permanecem nesse caminho.
Que caminho é esse? Pelo que nos conta o narrador, o caminho é a própria disputa. Agir e não-agir. “Como
chegar à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém me escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Grito.
Nada. Que posso? Nada.61” Não adianta o falatório, o grito que inutilmente tenta estrangular o silêncio. Que
pode, radicalmente, o homem, se não se lança na escuta da natureza, da voz da terra? Nada. Finalmente,
quando parece chegar à percepção de quão pueril fica o intelecto diante da natureza62, declarando que por si só
não é homem de achar rumo63, é que lhe chega, com clareza misteriosa, a voz da floresta, novamente. São os
versos com que “Quem-Será?” vencera anteriormente a disputa que lhe vêm à memória:
“Chegando na encruzilhada
eu tive de resolver:
para esquerda fui, contigo.
Coração soube escolher.”64
O caminho aparece na encruzilhada, entre caminhos: o caminho-do-entre: a terceira margem do rio.
Este caminho é o mesmo caminho seguido por rosa como linha mestra de sua poética, lançando sempre os
limites da língua na liminaridade da linguagem:
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“Entre o sentido e o não-sentido, o ser e o nada, a escrita rosiana habita esse lugar central e periférico, o rio do
texto, fruindo-se no equilíbrio instável de um logos para além da pseudo estabilidade das margens, da sua fixidez
sistêmica asfixiante.”65
Entre saber e não saber, agir e não agir, o personagem nos revela sua condição: “Ir. Sem tomar direção,
sem saber do caminho. Pé por Pé, pé por si. Deixarei que o caminho me escolha.”66 Assim entregue e assim se
lançando, tomando para si a tarefa do agir e do saber ambíguos, cuja presença se funda na própria ausência e
casualidade, o cego, calando e escutando, vai sendo guiado. Repentinamente, em meio à desordem caótica de
tudo, irrompe de seus lábios a oração com toda sua força mágica:
“E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao
proferir as palavras (...)”67. Segue-se então uma espécie de êxtase, em que o cego se atira em debandada pelos caminhos
desconhecidos até que sai da floresta. Ocorre então o seu embate com o feiticeiro, em que recupera a visão. O caos das
vozes do mundo se consome, consumando-se novamente numa composição visual: “(...) ao longe, nas prateleiras dos
morros cavalgavam-se três qualidade de azul.”68
* * *
De que nos serve este conto? De nada. Assim como este ensaio é completamente inútil. Entretanto, o
conto e, cremos, o ensaio, são profundamente motivados. O motivo que nos move é perguntar sempre, numa
tentativa, certa no conto e duvidosa aqui, de pensar. A desvantagem é enorme. O que se pretende aqui é
corresponder ao encanto gerado por uma escrita poética que corresponde ao apelo da terra, ao apelo da
linguagem da terra donde brotam todas as línguas poéticas, inaugurais, como a rosiana. Quem sabe, abandonando a tentativa de sermos claros e oferendando a língua ao mítico da linguagem, devolvendo a linguagem ao
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seu trono no entrenó de um bambú nas veredas do Ser-tão, sejamos capazes de falar não sobre a obra poética,
mas falarmos com ela, num combate mágico e mítico menos injusto? Nesta esperança, esperamos o pensamento. Porque permanece a pergunta: qual o sentido de tudo isso? Mistério.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. “O Fim do Pensamento”, in: Terceira Margem: Revista do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura. UFRJ, CLA, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano IX, no. 11, 2004. (pp. 157-159)
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ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
NOTAS
1
SOUZA, 2002.
2
HEIDEGGER, 2001, pp. 227-249
3
idem, p. 201
4
CASTRO, 1976.
5
BOSI, 2002, p. 434
6
PORTELLA, 1981, pp. 44 e 45
7
SÜSSEKIND, 2000.
8
FARIA, 1962.
9
ROSA, 2001, p. 268
10
idem, p. 262
11
idem, p. 273
12
idem, p. 278
13
SOUZA, 2000, p. 31
14
SOUZA, 2000, p. 33
15
ROSA, 2001, p. 278.
16
LEÃO, 2000, p. 107.
17
ROSA, 2001, p. 273.
18
idem, p. 278.
19
idem, p. 264.
20
idem, p. 273-274 (grifos nossos).
21
idem, p. 274
22
idem, p. 276 (grifos nossos)
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idem, p. 274.
HEIDEGGER, 2005, p. 27.
25
NIETZSCHE, 1983, p. 48
26
DUFRENNE, 1969, pp. 52-53.
27
VICO, 1979, p. 67
28
ROSA, 2001, p. 275
29
idem, p. 278
30
AGAMBEM, 2004, p. 157
31
HESÍODO, 2003, p. 107, vv. 27-28.
32
ZUMTHOR, 1997, p. 187.
33
ROSA, 2001, p. 279
34
HESÍODO, 2OO3, p. 105, vv. 1-8.
35
ROSA, 2001, p. 279
36
ibidem.
37
FARIA, 1962.
38
ROSA, 2001, p. 279
39
ibidem
40
SOUSA, 1998, 1995, p. 112.
41
ROSA, 2001, p. 277.
42
idem, p. 280.
43
ibidem
44
idem, p. 282.
45
idem, p. 283.
46
ibidem
47
idem, 2001, p. 284.
48
idem, 2001, p. 285.
49
WHEELWRIGHT, 1966, pp. 64-65
50
CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, pp. 300-301
23
24
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CASTRO, 2005, pp. 22-28.
ROSA, 2001, p. 284.
53
idem, p. 285.
54
idem, p. 285.
55
idem, pp. 285-286.
56
idem, p. 286.
57
ibidem
58
LEÃO, 1999, p. 73.
59
ROSA, 2001, p. 277.
60
LEÃO, 1999, p. 63
61
ROSA, 2001, p. 287.
62
NIETZSCHE, 1983, p. 45.
63
ROSA, 2001, p. 288.
64
idem, p. 277.
65
VARELA, 1995, pp. 340-341.
66
ROSA, 2001, p. 289.
67
idem, p. 290.
68
idem, p. 291.
51
52
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ÉRICO COELHO DE MELO (MESTRANDO – USP)
Resumo:
O estudo da unidade de “Corpo de Baile”, de João Guimarães Rosa, vem sendo negligenciado pela crítica
brasileira desde a primeira publicação do livro, em janeiro de 1956. Através do entrelaçamento de todos os quatro
níveis discursivos apontados por Guimarães Rosa como campos intencionais de construção de sentido, um sistema
de intertextualidades construído sobre a epistême da antiga doutrina das semelhanças estabelece, num diálogo
micro- e macrocósmico, a unificação coreográfica dos sete poemas desse monumental ciclo romanesco. A construção
unitária do conjunto das narrativas, engendrada neoplatonicamente como urdume alegórico de um complexo jogo
de analogias, poderia ser investigada a partir do nível “cenário e realidade sertaneja”, cujas interligações simpáticas
com o nível “metafísico e religioso” do ciclo procurariam reproduzir sobre o território do sertão mineiro o
desenho reconstelado das sete esferas planetárias pioneiramente assinaladas por Heloísa Vilhena de Araújo. A
configuração geodésica do conjunto dos cenários forneceria o arcabouço estrutural sobre o qual os trânsitos de
personagens e motivos ao longo do livro constituem importante instância de articulação entre os poemas. Propondo
a hipótese de que a totalidade cíclica de “Corpo de Baile” é operada por similitudes e oposições apenas legíveis a
partir de uma posição de contemplação, o texto aponta no aproveitamento ficcional do espaço cartográfico do
sertão mineiro, convertido por Rosa num intrincado “mosaico mágico”, alguns dos procedimentos simbólicos de
unificação do céu interior do livro.
CIRANDA MULTÍVOCA: A UNIDADE RECONSTELADA DE CORPO DE BAILE
A meu pai
A Roberto Zular
And thus much spoken concerning the
figures of the Planets, may suffice.
Agrippa, 1651, p. 303.
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1.
A despeito do recém-completado cinqüentenário do pioneiro artigo de Paulo Rónai, que assinala a existência
de variadas “conexões de temática, correspondências estruturais, efeitos de justaposição e oposição” (Rónai, 1956)
entre os sete poemas de Corpo de Baile, a unidade alegórica do monumental ciclo romanesco continua atraindo
escassa atenção ensaística. As interessantes hipóteses aventadas por Heloísa Vilhena de Araújo em A Raiz da
Alma ainda não lograram estimular de modo sensível a investigação dos complexos mecanismos ficcionais que
efetuam a unificação do livro.
O pressuposto hermenêutico da autora é o estabelecimento de analogias entre a tessitura simbólica do
ciclo e a recorrência, nos poemas, de mitemas associados aos planetas da antiga cosmologia platônica e às
correspondentes divindades olímpicas (Araújo, 1992). Segundo Araújo, a sobreposição dos pares de opostos
Sol-Lua, Marte-Vênus e Júpiter-Saturno, com o singular Mercúrio-Terra na posição central, comporia uma
totalidade arquitetônica semelhante à representação medieval do corpo humano reproduzida por Jean Seznec
em The Survival of the Pagan Gods1. Naquele desenho (Munique, cód. Lat. Monac. 13002), exemplar paradigmático
da “doutrina das semelhanças” (Benjamin, 1996, p. 108), a cada parcela microcósmica – isto é, os membros e
órgãos do corpo – correspondem, no nível macrocósmico, os atributos eletivos de determinados planetas e
constelações (Araújo, 1992, p. 21).
Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...
Andrade, 2002, p. 310.
2.
As interligações das partes de Corpo de Baile, erguidas sobre uma epistémê constelada de astros (Foucault,
2002, p. 28), procurariam distribuir-se sobre o tabuleiro simbólico do espaço romanesco de modo a emular na
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continuidade sintagmática da leitura a temporalidade mítica das revoluções celestes. Prescrevendo a
contemplação simultânea das órbitas dos sete poemas, Rosa circula a transmissão do recado do livro através
de um jogo de correspondências meticulosamente planejado como proliferação contrapontística de sentidos
entre numerosas instâncias de operação textual, encenando ficcionalmente a comunhão das “emanações
escalonadas que constituem o Todo universal” (Nunes, 1967, p.152).
O olhar requerido para a investigação da unidade alegórica de Corpo de Baile necessita, portanto, efetuar
a “reprodução dos processos” que engendram as semelhanças entre os poemas (cf. Benjamin, 1996, p. 108110). Essa variedade construtiva de percepção parece estar aludida numa significativa passagem de A Estória
de Lélio e Lina em que Lélio, “vaqueiro de fora”, é escalado pelo capataz Aristó para campear três reses
desgarradas, cujas figuras precisa mentalmente reconstituir. O capataz lhe descreve as cabeças de gado perdidas
num saboroso dialeto campeiro, mobilizando “palavras-cantiga” como “almarada”, “pernalã”, “zulêgo”:
Lélio nem precisava de fechar os olhos e esforçar cabeça, para formar a figura daquelas rêses: no ouvir cada ponto,
ia ajuntando, compondo cada uma, da cauda aos chifres, tinha o retrato terminado, a conforme carecia (Rosa, 1960, p.
168).
A dança ilustra admiravelmente o princípio de que o físico e o metafísico não se excluem, antes se completam.
Mendes, 2001, p. 878.
3.
Na célebre carta de 25 de novembro de 1963, Rosa explica a Edoardo Bizzarri que as operações
discursivas em Corpo de Baile são do seguinte modo escalonadas:
a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto;
b) enredo: 2 pontos;
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c) poesia: 3 pontos;
d) valor metafísico e religioso: 4 pontos (Rosa, 2003, p. 90).
Pontuados à maneira dos elementos do tetraktys pitagórico, tais níveis de sentido são assim resumidos
numa carta a Harriett de Onís acerca de Sagarana:
1.- the underlying charm (enchantment)
2.- the level-lying common meaning
3.- the “overlying” idea (metaphysic) (apud Daniel, 1968, p. 172).
A superfície discursiva que remete ao “alto original” (Rosa, 2003, p. 99) da idea constitui importante
índice do platonismo da escrita de Rosa, e seu “valor metafísico-religioso” se estende sobre o velado plano
“alegórico espiritual” das narrativas (Rosa, 1969b, p. 3).
O nível operativo que efetua o enchantment subjacente à prosa de Guimarães Rosa é o avatar da
musicalidade escutada em Corpo de Baile por um atento Osvaldino Marques, que a batiza “prosoema” (Marques,
1968, p. 83), correspondendo a uma interpenetração dos itens “c” e “1” das listas supracitadas. “E não é sem
assim que as palavras têm canto e plumagem” (Rosa, 1971, p. 238): esse canto, para Benedito Nunes, figura na
camada fônica do conto Um Burrinho Pedrês ora “o ajuntamento numeroso de diversas qualidades e raças
mestiças de bois”, ora “o estrépito do galopar martelado das reses”. Procedimento rítmico a que se adiciona a
variedade colorística da “plumagem”, “essa soltura dos vocábulos encadeados, enquanto modo transverso de
um dizer fusionante, expansivo, pregnante, coligente, ao correr de frases, onde não há mais intervalo entre
narrar e descrever” (Nunes, 1998, p. 250).
Agrupáveis sob a rubrica common meaning, os níveis “a” e “b” da escala Bizzarri designam a sobreposição
matricial de personagens, acontecimentos e cenários que se configura em Corpo de Baile sob a consistência
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espacial do vasto “teatro de palcos múltiplos” (Plotino, terceira epígrafe) estabelecido sobre a geografia física
do sertão mineiro, tal como documentada em meados do século XX.
Eu estava em loxodrômicas!
Rosa, 1969a, p. 20.
4.
Na physis neoplatônica emulada em Corpo de Baile, as espécies sublunares estão fadadas a reproduzir
analogicamente, num devir reiterado, as revoluções das esferas celestiais. Segundo Plotino, os acontecimentos
nos céus (overlying) são mais adequados para a leitura do Destino porque sua recorrente precisão participa com
maior proximidade do Bem, mas eventos da série terrestre (level-lying) como o canto dos pássaros podem ser
igualmente utilizados para as predições.
Há desde o primeiro até o último princípio um fluxo descendente no qual infalivelmente cada princípio retém
seu próprio lugar enquanto o subseqüente toma outra posição, mais baixa, embora cada ser esteja em identidade
com seu antecessor enquanto mantém esse contato (Plotino, 1952, p. 215).
Concebendo-se como totalização contemplativa da dança dos viventes entre os “palcos múltiplos” do
sertão, a investigação da unidade de Corpo de Baile pode portanto fundamentar-se sobre o “solo firme” (Plotino,
segunda epígrafe) oferecido pela “realidade sertaneja”. Convertida em suporte das recorrências de personagens,
motivos, temas e cantigas, a geografia do sertão constitui importante instância de estruturação do alegorismo
do ciclo, conferindo solidez verossimilhante à combinatória poética efetuada entre os diferentes níveis
discursivos das narrativas.
Assim, desviando-se das grandes constelações metafísicas que ora monopolizam o interesse hermenêutico
de amplos setores da crítica roseana, a descrição do sistema geodésico composto pelas principais localidades
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das tramas de Corpo de Baile poderá fornecer uma insuspeita rota de entrada nesse que Ivan Teixeira aponta
como “o livro mais enigmático da literatura brasileira” (Teixeira, 1998, p. 106). Num movimento de revalorização
do common meaning dos poemas, a investigação da unidade de Corpo de Baile deve partir do rastreamento das
preciosas indicações cartográficas e toponímicas esparsamente distribuídas por Rosa ao longo do vasto território
textual do ciclo.
Empreendida sobre o espaço potencial da “diferença similhante” (Rosa, 1960, p. 355), esta tentativa
pretende demonstrar que as assinalações dos atributos dos planetas da antiga cosmologia platônica foram
consteladas no céu interior do ciclo ao neoplatonicamente recobrir a “raia noroesteã” da topografia de Minas
Gerais. O itinerário da comitiva de O Recado do Morro – núcleo interior da Parábase – fornecerá amostra relevante
para a análise de algumas correspondências cartográficas estabelecidas entre os cenários dos poemas.
A dança regula o conflito entre o corpo e o espírito; por isso ela deve ser menos temperamental, do que proporcional
e harmônica.
Mendes, 1995, p. 877.
5.
Em Corpo de Baile, inscritos no embate mítico entre os homens e a natureza, episódios de violência
física como as caçadas em Campo Geral e a morte acidental do vaqueiro Ustavo, em A Estória de Lélio e Lina,
bem como as brutalidades do ajuntamento da boiada na ouverture de Cara-de-Bronze, são traumas deflagrados
em intensividade nitidamente desproporcional à dos quase inefáveis massacres da Fazenda dos Tucanos e na
Batalha do Paredão, em Grande Sertão: Veredas. Esse contraste no interior do grande díptico de 1956 encena,
com efeito, duas tendências formais diametralmente opostas. Enquanto a disposição coreográfica dos poemas
de Corpo de Baile presume a sedimentação do conjunto num grande construto unificado, a conformação narrativa
das andanças de Riobaldo é caracterizada pela fragmentação centrífuga.
Os efeitos da violência vivida como experiência cotidiana são premissa talvez fundamental da narrativa
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hesitante de Riobaldo, tendo conseqüências diretas sobre a forma da expressão de seus atos de fala. No plano
dos conteúdos, a enunciação experimenta continuamente uma proximidade limítrofe do silêncio da morte,
que efetua sobre a totalização retrospectiva dos eventos recordados uma ação desagregadora (cf. Ginzburg,
1993). A tentativa de reorganizar em série narrativa os fragmentos estilhaçados pela memória da violência é,
assim, marcada pela precariedade.
A narração do ex-jagunço padece de sucessivos colapsos ao explorar o território baldio das memórias
da guerra. Abandonando a difícil primeira pessoa do discurso, Riobaldo precisa freqüentemente interromper o
curso dos acontecimentos com a interpolação de causos ou estórias que, à guisa de digressões exemplares, o
auxiliam a tentar compreender os sentidos de sua trágica existência. Na direção do conflito final com o
Hermógenes, as dissonâncias manifestadas entre as diferentes velocidades diegéticas do romance são provocadas
pela articulação problemática entre os atos de lembrar e contar, uma vez que o exercício dessas ações está
constantemente sujeito ao questionamento do próprio narrador.
No âmbito geográfico do romance, Rosa converte algumas localidades decisivas como as Veredas
Mortas e o Liso do Sussuarão em paragens apenas concebíveis no obscuro teatro da subjetividade de Riobaldo,
construindo cenários que extrapolam as possibilidades da representação cartográfica. O rastreamento de certos
cenários situados além da margem esquerda do Rio São Francisco, região misteriosa e despovoada em que se
dá a maioria dos eventos traumáticos do livro, está, assim, desde sempre fadado a permanecer sob uma aura de
mistério insolúvel (Candido, 1957, p. 5).
A tendência à amarração centrípeta do sistema Corpo de Baile figura, no pólo oposto, a superação ritual
das implosões violentas consumadas na forma de Grande Sertão: Veredas. Em Buriti, a distância compreendida
entre as palmas do Buriti-Grande e o terreno incerto do Brejão-do-Umbigo, “ladrão de si mesmo” (Rosa, 1960,
p. 455), pode abrigar um símile plástico do abismo formal inventado pelos dois livros.
A modalidade de discurso indireto livre predominante no ciclo instrumentaliza um narrador
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necessariamente distanciado da primeira pessoa, conquanto capaz de “absorção completa da vida espiritual
das personagens” (Costa, 1956). Desde sua altitude onividente, esse theorós que “mudo e alto maquineja”
(Rosa, 1960, p. 412), contemplador demiúrgico dos “palcos múltiplos” do livro, estabelece uma radical diferença
estrutural em relação à efetuada desordem da fala de Riobaldo.
A inversão, em Corpo de Baile, das forças centrífugas que amiúde ameaçam a viabilidade da narração do
romance é também indicada por uma divertida passagem da correspondência a Bizzarri em que Rosa aponta
para o muito de “dionisíaco (contido), de porre amplo, de enfática desmesura” que há no ciclo (Rosa, 2003, p.
125). Seria útil, nesse sentido, lembrar que as cenas do assassinato de Luisaltino e do suicídio de Bernardo
Cássio, assim como o episódio do rapaz “matado assassinado” (Rosa, 1960, p. 50) pelo Patorí, em Campo
Geral, se dão sempre em segundo plano, narrados sumariamente por Vovó Izidra ou pelo Vaqueiro Salúz. Num
registro próximo da cortesania cantada, os atritos de Lélio com Alípio e Canuto perduram no enredo de A
Estória de Lélio e Lina apenas como desafios verbais. Os valentões comparecidos à festa de Manuelzão não
produzem “nenhuma discussão, nem um começo de briga, por deslei” (idem, ibidem, p. 128). Sussurradas
cautelosamente entre os amigos de Dalberto, em Dão-Lalalão, as passadas valentias de Soropita – que no
último minuto desiste de matar o vaqueiro Iládio – somam-se talvez à luta final de Pedro Orósio, em O Recado
do Morro, como as únicas cenas de violência bélica efetivamente trazidas ao primeiro plano da narração (id.,
ib., p. 287).
A despeito de sua brutalidade física, a peleja de Chãbergo constitui no plano alegórico uma reiteração
do dialogismo eletivo travado entre os poemas do livro. Após a superação das atribulações químicas da forma,
o triunfo de Pê-Boi ecoa dançadamente o itinerário cosmológico da comitiva, numa metáfora animada das
afinidades e repulsões que cristalizam as partes do livro numa totalidade articulada em enfática consonância.
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E assim seguiam, de um ponto a um ponto, por brancas estradas calcáreas, como por uma linha vã, uma linha
geodésica.
Rosa, 1960, p. 245.
6.
O rastreamento da excursão de O Recado do Morro através de mapas de Minas Gerais impressos em
grande escala e com boa abrangência toponímica não oferece dificuldades intransponíveis. Foram utilizados
neste trabalho uma carta em projeção Mercator de 1956 (escala 1:1.000.000), emitida pelo Departamento
Geográfico do Governo daquele Estado, e um atlas do Brasil (idem) publicado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) em 1972. Quando eventualmente houve dúvida acerca de certas formações de
relevo, foram utilizadas imagens de satélite extraídas do banco de dados geodésicos manipulado pelo aplicativo
Google Earth® .
O âmbito geográfico da viagem, como se sabe, compreende a distância entre o território da Fazenda
do Saco-dos-Côchos, de Juca Saturnino, ainda hoje existente nos arredores imediatos da cidade-natal de Rosa,
e o ponto extremo a partir do qual se percorre o caminho inverso, a fictícia fazenda do Apolinário, no limite
meridional dos Campos Gerais (cf. Rosa, 1960, p. 255).
A segunda estação, a fazenda do Jove, encontra-se na vizinhança ocidental de Cordisburgo, “entre o
Ribeirão Maquiné e o Rio das Pedras”. A estimativa relativamente precisa de sua posição é possível em
virtude do fato de que tais cursos d’água percorrem direções quase simétricas, o Ribeirão Maquiné sendo
tributário do Rio das Velhas e o Rio das Pedras afluente do Rio Paraopeba. Jove, portanto, deve situar-se entre
as duas cabeceiras.
A Serra do Boiadeiro, em cujo pé se encontra a decisiva fazenda de seo Nhôto e Nhá Vininha – onde
boa parte dos elos da corrente que transmite o recado é estabelecida nas narrações do Catraz a Joãozezim,
deste ao Guégue e posteriormente a Nomindômine – é facilmente reconhecível nas proximidades do Morro da
Garça (cf. Apêndice, Figura 1).
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A localização precisa da fazenda de Nhô Hermes é a mais problemática, talvez em concordância com
a fugidia trajetória celeste do planeta correspondente. O Córrego da Capivara é a única referência toponímica
imprescindível para a definição do trajeto da comitiva que não aparece nas cartas consultadas. Entretanto, as
imagens de satélite permitem inferir que o “transvale” a ser atravessado pela comitiva entre Hermes e Vininha,
no caminho de volta (idem, ibidem, p. 256), se assemelha à depressão escavada pelo Rio do Peixe entre a Serra
dos Gerais, além de cujos espigões se situa a fazenda mercurial, e a Serra do Boiadeiro (Figura 1). À falta de
indícios mais incisivos, e tendo em vista o ubíquo papel de mediação usualmente atribuído a Hermes2, a
hipótese que situa o Córrego da Capivara nas proximidades do local assinalado na figura pode ser talvez
sustentada.
Na ponta (norte?) da Serra de Santa Rita, numa “belavista”, está situada a fazenda de Nhá Selena.
A fazenda do Marciano pertence ao contraforte mais elevado (“de mais cabo”) da Serra do Repartimento.
É possível inferir que a cabeceira do Córrego do Mêdo – segundo extremo da região mediada pelo Marciano,
não encontrado nas cartas consultadas – esteja situada ao sul do Córrego da Onça (Figura 2), uma vez que a
altitude da referida serra é nesse quadrante nitidamente mais avantajada (o que se pode facilmente verificar
com o auxílio das imagens de satélite).
Quanto ao Apolinário, na vertente do Formoso, um refrão de cantiga cantado durante a festa de
Manuelzão, em Uma Estória de Amor, esclarece que a extremidade “noroesteã” do périplo de Pedro Orósio se
situa no vale que entremeia o Chapadão dos Gerais e o Morro Vermelho (Rosa, 1960, p. 122). A vertente do
rio é assinalada pelo ponto a partir do qual a altitude de seu leito começa a decrescer acentuadamente no
acidentado percurso até o Rio São Francisco.
E o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
Pessoa, 1986, p. 386.
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7.
Alguns caracteres mitológicos das fazendas ou planetas de O Recado do Morro são transmitidos com
nitidez até os poemas cujos cenários se situam na vizinhança geográfica imediata do caminho percorrido por
Pedrão Chãbergo e seus quatro companheiros.
Escolhido por Soropita para viver seu idílio com a ex-prostituta Doralda, em Dão-Lalalão (poema
associado por Heloísa Vilhena de Araújo ao amor e ao planeta Vênus), o fictício arruado do Ão provavelmente
se localiza “num vão, num saco” (Rosa, 1960, p. 289) da Serra dos Gerais, a 5 ou 6 léguas de distância de
Andrequicé. Pois é empiricamente possível assumir que, ao percorrer o caminho de volta entre o mencionado
vilarejo e sua fazenda, a velocidade do ex-valentão seja da ordem de 1 légua por hora, uma vez que ele viaja
devaneando e economizando o esporear3. Como a distância é percorrida no intervalo de tempo entre o “meio
do dia” e o pôr-do-sol4, e que naquela latitude, durante o inverno5, o ocaso acontece aproximadamente às
17h30m, o percurso de Soropita precisa ter seu extremo oriental a menos de quarenta quilômetros de Andrequicé,
na “vertente sossolã” (leste) da Serra. Seria então bastante verossímil situar o arruado no “saco” destacado na
Figura 1. Soropita parece corroborar essa hipótese quando informa a Dalberto, quase no fim do percurso, que
o Rio São Francisco se situa dali a nove léguas, “descambando a Serra” (idem, ibidem, p. 316), distância
compatível com a localização proposta.
A provável conveniência geográfica entre nhô Hermes e o eixo Andrequicé-Ão (cf. Figura 1),
sobrepondo-se às supostas influências de Vênus, projeta, assim, alguns atributos da divindade mercurial –
comunicação, comércio – sobre a caracterização ficcional de Soropita. O ex-valentão é proprietário de uma
pequena venda no arruado e, incumbido por Doralda de alguma compra, precisa semanalmente cavalgar a
Andrequicé, onde escuta as radionovelas que depois reconta ao pessoal do Ão. Paralelamente, na quarta
estação da viagem da comitiva, os forasteiros acham “notícias do mundo, por meio de jornais antigos”, e na
mesma propriedade seo Jujuca do Açude negocia a compra de 50 cabeças de gado curraleiro (id., ib., p. 255).
Em Uma Estória de Amor, poema associado a Júpiter e ao culto (Araújo, 1992, p. 45), o nome “Samarra”
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se refere a uma variedade de vestimenta eclesiástica, e substitui o topônimo “Sirga”, fazenda de onde partiu a
famosa boiada acompanhada por Rosa em sua expedição sertaneja de 1952. A localização da Fazenda da Sirga
é bem conhecida: a “barriga serrã” delimitada Serra dos Gerais e pelo Rio São Francisco (Rosa, 1960, p. 84),
no atual município de Três Marias, à margem esquerda do Rio de-Janeiro.
O evento inaugural da festa de Manuelzão é a missa presidida por frei Petroaldo, padre “diabo de
môço” e estrangeiro, proveniente de Pirapora (idem, ibidem, p. 239). Em O Recado do Morro, na fazenda de nhá
Selena, acontece uma “festinha”, e nessa mesma localidade um energético frei Sinfrão, padre também estrangeiro,
“desses de sandália sem meia e túnica marrom, que têm casa de convento em Pirapora e Cordisburgo”, reza
duas missas e confessa umas dúzias de arrependidos (id., ib., p. 255).
A celebração concomitante do sagrado nas duas fazendas, cuja proximidade geográfica é entretanto
relativa, provavelmente alude à hidrografia da região, que situa na vertente oeste da Serra de Santa Rita as
nascentes do Rio de-Janeiro. Uma vez que a Samarra está localizada a pequena distância da barra desse
importante marco do sertão roseano – não convém esquecer que é no porto da barra com do de-Janeiro com o
São Francisco que se dá o encontro entre Riobaldo, que residira em criança na Sirga, e o Menino –, o rio se
estabelece como privilegiada via de transferência simbólica entre a quinta estação da comitiva e o currais-degado da Samarra.
O destino da boiada a ser conduzida por Manuelzão reforça a marcada influência lunar operada sobre
o segundo poema de Corpo de Baile: a Fazenda Santa-Lua de Federico Freyre, no Rio das Velhas (id., ib., p.
125).
Aí, Zé, ôpa!
Rosa, 1960, p. 387.
8.
É ainda Heloísa Vilhena de Araújo quem argutamente identifica a recorrência de variadas operações
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de inversão especular entre os níveis discursivos de Corpo de Baile, destacando os dois índices da primeira
edição do livro, dispostos em seqüências numericamente contrárias, e as simetrias astrológico-alquímicas
construídas entre os nomes de lugares e inimigos em O Recado do Morro (Araújo, 1992, p. 24).
Com efeito, unificando dançadamente as sete fazendas ou planetas do conto, o trajeto da comitiva
inscreve um S invertido, “que começa grande frase” (Rosa, 1960, p. 239), sobre o mapa de Minas Gerais
(Figura 3).
Tal grafismo sobreposto à representação cartográfica do espaço sertanejo – numa hipótese possivelmente
fecunda – circunda a linha geodésica que une Cordisburgo à vertente do Rio Formoso6. A inclinação do
segmento Saturnino-Apolinário em relação ao meridiano, em se confirmando a provável situação geográfica
dessa última estação do poente, é de aproximados 29 graus na direção noroeste7, isto é, especularmente
invertida em relação ao “rumo magnético de 29 graus nordeste” (idem, ibidem, p. 246) apontado por Malaquias
em seu “rebenzimento” contra o agourento recado do Morro da Garça.
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Apêndice
Figura 1 – Localizações prováveis das fazendas de Hermes e Vininha, bem como do arruado do Ão.
“ saco”
Andrequicé
Hermes ?
Ão
Sa. dos Gerais
“ transvale”
N
Sa. do Boiadeiro
10 Km
Vininha
Morro da Garça
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Figura 2 – Localização aproximada da fazenda do Marciano. IBGE, 1972.
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Figura 3 – As sete estações da comitiva, com itinerário estilizado.
Departamento Geográfico de Minas Gerais, 1956.
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BIBLIOGRAFIA
AGRIPPA, Heinrich Cornelius. Three books of occult philosophy. Londres, 1651. Fac-símile disponível em http://digital.lib.msu.edu/
collections/index.cfm?TitleID=247. Consulta em 16 jul. 2006.
ANDRADE, Carlos Drummond de. “A Dança e a Alma”. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. A Raiz da Alma. São Paulo: Edusp, 1992.
BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In: Obras Escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1996.
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______. “A simples e exata estória do burrinho do comandante”. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969a.
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______. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro-Belo Horizonte: Nova Fronteira-UFMG, 2003.
TEIXEIRA, Ivan. “Rosa e depois: o curso da agudeza na literatura contemporânea (esboço de roteiro)”. Revista Usp 36, dez 97-fev 98.
WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NOTAS
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
1
1. Campo Geral (Sol)
5. Dão-Lalalão (Vênus)
2. Uma Estória de Amor (Júpiter)
6. Cara-de-Bronze (Saturno)
3. A Estória de Lélio e Lina (Marte)
7. Buriti (Lua)
4. O Recado do Morro (Terra/ Mercúrio)
2 Goethe, em As Afinidades Eletivas, confere ao personagem Mittler (cujo nome alude em alemão a seu papel central na trama), outro
provável avatar literário do fugidio Mercúrio, a função de mediar os conflitos e oficiar as reconciliações entre os protagonistas.
3 Nhô Gualberto Gaspar, em Buriti, igualmente ocupado com a ruminação de pensamentos diversos e atravessando a cavalo um terreno
em declive, a baixada do rio Abaeté, demora entre 3 e 3 horas e meia para percorrer 3 léguas (Rosa, 1960, pp. 406-7).
4 “Junto de casa é que se via que era bem de tardinha, o fêcho do dia” (idem, ibidem, p. 319)
5 “Mas, neste tempo de frio, nunca tem peixe...” (id., ib., p. 316)
6 Na projeção cartográfica das cartas consultadas (Mercator), essa linha pode ser denominada, em terminologia geoespacial, loxodrômica do grego loksós, “oblíquo”, “inclinado” (Houaiss); cf. o neologismo loxia (Rosa, 1960, p. 246).
7 Utilizei para ratificar o resultado trigonométrico obtido à régua sobre o mapa de 1956 o procedimento padrão da Marinha Brasileira para
o cálculo de loxodrômicas (Miguens, 1995, p. 1161), a partir dos dados aproximados de latitude e longitude de Cordisburgo e Apolinário
tais como fornecidos pelo aplicativo Google Earth®.
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FRANCESCO JORDANI RODRIGUES DE LIMA (MESTRANDO – UFRJ)
Resumo:
Interpretação, comparação e interpenetração poética entre Magma, de Guimarães Rosa e Livro sobre nada, de
Manoel de Barros. O princípio cosmogônico como moto-constitutivo das obras. Velamento, desvelamento e
revelação: a physis. A nadificação como pressuposto da originalidade e da criação. A pulsão da linguagem mitopoética. Leitura de Magma sob o prisma das narrativas roseanas. A influência decisiva de Guimarães Rosa nos
versos de Manoel de Barros: diálogo fraternal e poético. Celebração do gênio – 50 anos de publicação de duas
obras-primas, Grande sertão: veredas e Corpo de baile.
RIOS ENTRECRUZADOS: MAGMA, DE GUIMARÃES ROSA
E LIVRO SOBRE NADA, DE MANOEL DE BARROS
Entrecruzar e não cessar em desfiar em si novas formas; desafiar-se, portanto, à beira do espanto da
revelação e do abismo da impossibilidade. Entrecruzar significa, aqui, a busca maior das realizações poéticas
de Guimarães Rosa e Manoel de Barros: reconciliar linguagem e natureza. Estrofes esculpidas no vazio do
nada, pintadas nos ladrilhos opacos dos lagos, moldadas na urgência da última brisa, almejam ressoar seus
cantos no infinito do universo. Versos caóticos, decerto, loucos, irracionais, totalmente aquém de toda a
perfeição e beleza formais, embora reféns do ímpeto da vida. Versos que se apóiam, isto sim, nos andaimes da
língua como base de vôo para palavras aladas, palavras-viscerais nascidas onde não havia pensamento, na préhistória da razão e da ciência.
A presente comunicação tem por objetivo estabelecer um contato crítico entre a Magma, único livro de
poemas de João Guimarães Rosa e Livro sobre nada, obra-prima de Manoel de Barros. A relação entre as
construções poéticas possibilitará, nos limites desta apresentação, precisar três convergências principais entre
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as obras: (1) a linguagem poética, o desvelamento conceitual da palavra e a crítica à metafísica; (2) a teoria
cosmogônica da obra de arte, no que tange à criação inéditos de universos e imagens, e (3) as estreitas relações
entre a liberdade e a pluralidade da poesia e a fluidez metamórfica da natureza: a poiesis.
Em A linguagem, Heidegger problematiza as complexas relações entre pensamento e linguagem. Na
conferência, a linguagem é notada de maneira bastante peculiar. Para o teórico “a linguagem fala” como fala
essencial e genuína do homem. Não somos nós, sob este prisma, que falamos sobre ou a respeito da linguagem.
A linguagem, a palavra, em si e por si só, já fala, a despeito de tudo. Deste modo, o questionamento heideggeriano,
“opondo-se à determinação das palavras exclusivamente como conceitos”, procura libertar o pensamento
humano “das cadeias de uma explicação lógico-racional como também recusar os limites impostos por uma
descrição puramente lógica da linguagem”1.
No que diz respeito à poética de Manoel de Barros, a comunhão com o pensamento heideggeriano
torna-se muito frutífera quando lemos na dissertação Manoel de Barros: o poeta sobre nada, de Andréa Serpa de
Mendonça, que o escritor “através de sua metapoética [alavanca] pensamentos que em sua estrutura poética
procuram distanciar-se, quanto à forma, da influência racional-filosófica” e complementa a autora, assinalando
que na obra do poeta as reflexões demonstram-se “mais profundamente ligadas ao aspecto da experiência
vivencial, mais conciliadora do que a experiência excludente”2. O próprio Manoel de Barros com a ironia
falsamente ingênua que lhe é peculiar tratou do assunto em entrevista a José Castello, ao dizer duas frases
lapidares: “Não gosto de dar confiança para a razão, ela diminui a poesia” e: “Tenho medo que a ciência acabe
com os cavalos, com a luz natural, com as fontes do ser.”
Noutra face da questão, através do estudo de Maria Lúcia Leonel, é possível notar que em Magma,
Guimarães Rosa corrobora, via linguagem poética, a crítica aos postulados científicos que procuram categorizar,
dividir e classificar segundo fundamentos matemáticos a dinâmica vital. Em Guimarães Rosa: Magma e gênese da
obra, a teórica afirma: “É clara, na composição, a recusa radical de filósofos, cientistas e artistas que
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“geometrizam” a vida, que procuram detê-la em câmara lenta.”3
Nada prescinde mais do primado da liberdade de ação do que a poesia no que concerne ao seu
sentido mais amplo e irrestrito. A linguagem poética que gesta um mundo inconcebível, que gera uma nova
articulação entre ser e espaço e que, portanto, origina toda e qualquer possibilidade de existência, nasce e se
concretiza na metáfora de um vôo alado.
A poesia fala um dizer profundamente íntimo, silencioso e quieto, mas que não deixa,
conjuntamente, de expandir o ruído caótico da inquietação e da perplexidade do transe do viver.
Poderíamos supor e, por conseguinte, afirmar então que, no pensamento de Heidegger, linguagem é poesia?
Leiamos, antes de responder, outro trecho de A linguagem que ainda discorre sobre o íntimo “chamado” da
linguagem a todas as coisa e seres:
Evocar no sentido originário de deixar vir a intimidade de mundo e coisa é propriamente
chamar. Esse chamado é a essência do falar. No dito do poema, vigora o falar. É o falar da linguagem. A
linguagem fala. A linguagem fala deixando vir o chamado, coisa-mundo e mundo coisa (...)4
Ou conforme escreveu em seu diário a personagem Bugrinha, de Livro sobre nada, menina simples,
tão amigada da quietude da linguagem:
22.4
Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios.5
Da fala incessante da linguagem poética brota a caótica e intermitente novidade como única
possibilidade de engendrar e formar o cosmos anteriormente impossível. O horizonte inteligível que nos é
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apresentado e imposto mostra sempre tão-somente uma face da realidade, propagando-a como única e universal,
aplacando, pouco a pouco, as vontades geradoras de nosso horizonte sensível. A grandiosidade de uma obra
de arte genuína mora, entretanto, justamente em seu aspecto subversivo e contestador, isto é, na criação de
uma nova face complementar e crítica da realidade que culmina na concretização de um mistério até então
latente e adormecido. Na poesia de Guimarães Rosa, da pulsão irrefreável de Magma, cada verso reflete esta
percepção, pois diz o indizível e cada palavra toma para si um significado que parece eclodir de uma vontade
própria, de uma “fala” extremamente profunda, naturalmente pujante. No poema “Águas da Serra”, Deus
dorme tranqüilo, alheio ao turbilhão de eventos apresentado (pedras que rolam dos morros, novos vidas e
formas se desprendendo de suas origens, numa impressionante sede de movimento e mutação) apenas observa,
pois parece não ter amplo domínio dos impulsos caóticos na natureza em cósmica e infinita reforma:
Águas da Serra
Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?...
E então, do semi-sono dos paraísos perfeitos,
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os diques se romperam,
forças livres rolaram,
e veio a ânsia que redobra ao se fartar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
e as águas e as lágrimas sempre correndo,
e Deus talvez ainda dormindo,
e a luz a avançar sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem-fim...6
Ronaldes de Melo e Souza observa que “no sério jogo do mistério da poesia, a verdade é que o mito da
luz diurna e o rito da cruz noturna são duas versões de uma mesma realidade ou da única possibilidade”.7 A
realidade inaugurada pelo fazer poético é, sob este prisma, uma “única possibilidade” que reúne em seu mistério
toda possibilidade de ser e de viver no mundo conjugado e harmonizado. Mundo evocado pela poesia, como
salientaria Heidegger, o espaço mito-poético que “dimensiona tanto o êxtase do surgimento como a sobriedade
da seiva nutridora. O crescimento contido na terra e a dádiva do céu se pertencem mutuamente”.8 Decerto,
como sabemos, o evocar heideggeriano refere-se a uma árvore enquanto figura de metonímia em relação à
natureza como um todo. Não seria descabido, porém, enaltecer e destacar o ser humano e todas as coisas no
que se refere a este “êxtase existencial”, no qual, descerrado o horizonte racional e visível, surge o horizonte
volitivo e invisível que move-se continuamente, posto que se pinta à feição de quem o cria e recria. No
instante em que o eu-poético percebe que inventa seu mundo (cosmogonia) e não mais recebe um mundo
inventado, tudo é possível e o impossível é tudo. À feição do que lemos em Livro sobre nada, de Manoel de
Barros:
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol...
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O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos. 9
Causa sobressalto o belíssimo verso: “As distancias somavam a gente para menos.” A imaginação leva
os personagens à distâncias inconcebíveis, muito além do horizonte tangível, nas quais o mundo imaginado
passa a vigorar como verdade genuína de todos e a torná-los cada vez mais íntimos e unidos.
Aliás, o sobressalto inaugurado a partir do ato de vislumbrar novas formas de vida também se faz
presente tanto em Magma, quanto em Livro sobre nada. Manoel de Barros, de maneira sucinta recorre à metáfora
dos estilhaços, como se o sujeito observador tivesse sua objetividade subjetiva posta à prova pelo choque da
linguagem poética e, quando reconstituído, não fosse mais o mesmo; mas, sim, um espantado diante da energia
luminosa e telúrica da vida, um mosaico-humano de expectativas:
I
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.10
No belíssimo poema “Pavor”, de Guimarães Rosa, por exemplo, o mito da cegueira edipiana é trazido
à tona, a fim de salientar que a cosmogonia que reestruturou e remodelou o universo poético da obra, demandou,
também, um novo olhar acerca da natureza ou da vida como um todo. Note-se como, diferentemente, de Livro
sobre nada, que protagoniza bêbados, loucos e vagabundos (encerrados na figura emblemática do subversivo e
tragicômico Charles Chaplin), a ironia perde espaço para o sofrimento e medo em Magma, advindos ainda do
espanto diante da potência caótica da vida. Leiamos o poema:
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Pavor
Em torno a mim
círculos concêntricos se fecham,
como as órbitas lentas de um corvo...
Tudo é torvo e pesado,
falta de ar e de amor...
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alma se enfurna
Em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado e queimado o carvão todo.
Como um cego
que dormisse na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...11
Manoel de Castro em ensaio intitulado Poiesis, sujeito e metafísica compara o homem do mito da caverna
de Platão, protótipo do homem racional, ao Édipo Rei, de Sófocles:
O primeiro sai das sombras para a luz do Sol/eidos/logos/razão. O segundo vive na mais intensa luz e
exercício da razão como sujeito para ir negando à medida que busca o que ele é através do que ele fez e faz (essência
do agir), até nega-la de uma maneira tão radical que lhe nega qualquer poder, arrancando os olhos. Só então, diz
Hölderlin, Édipo adquiriu o terceiro olho, isto é, a sabedoria do não-ver, do não-agir, do não-ser, sendo então o
que ele é.12
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A sabedoria sófocliana transpassa e ultrapassa o crivo da Lógica e almeja decifrar às cegas; portanto,
desprovida das luzes da razão, os enigmas recônditos da Vida. Quando o eu-lírico canta no último verso de
“Pavor”: “Como um cego que dormissse na treva, amedrontado, para sonhar que mais uma vez cegou...”,
determinasse que é no enigma da essência do agir (a poieisis) que deve se ater o perplexo expectador. Perplexidade
irmanada da sedução ao observamos a força da filiação poética dos dois poetas ora estudados, ambos ouvintes
das cores e sons da natureza, dos silêncios dos homens e do brilho e tristeza das coisas. Amigos no caos da
vida, solidários no sonho de reconciliar o homem à sua essência, Manoel de Barros e Guimarães Rosa transcendem
em seus poemas a superficialidade da vida mundana, como dois rios revoltos, entrecruzam-se, fundem-se,
unem suas margens num limiar certa vez chamado: “Travessia”.
BIBLIOGRAFIA
BARROS, Manoel de. Livro Sobre Nada. 11ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2004.
CASTRO, Manoel Antonio de. (Org.) Poiesis, Sujeito e Metafísica. In: A construção poética do real. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2004.
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HEIDEGGER, Martin. A Linguagem. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis/RJ Vozes: São Paulo/Editora Universitária São
Francisco, 2003.
LEONEL, Maria Célia. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo: Edusp, 1997.
MELO E SOUZA, Ronaldes. A unidade poética do caos e do cosmos. In: Revista Tempo Brasileiro. Literatura Comparada/Teoria da
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MELO E SOUZA, Ronaldes. A poética rilkiana da existência. In: CASTRO, Manoel Antonio de. (Org.) Poiesis, Sujeito e Metafísica. In: A
construção poética do real. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2004, p. 191: 222.
MENDONÇA, Andréa Serpa de. Manoel de Barros: o poeta sobre nada. Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura, na FL/UFRJ, Rio
de Janeiro, 2002.
PLATÃO. A Republica. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004.
ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
NOTAS
1 HEIDEGGER, 2003, p. 11.
2 MENDONÇA, 2002, p. 15.
3 LEONEL, p. 133.
4 HEIDEGGER, p. 22.
5 Ibdem, p. 33.
6 ROSA, 1997, p. 15.
7 MELO E SOUZA, 1993, p. 127.
8 HEIDEGGER, 2003, p. 18.
9 Idem, 2004, p. 11.
10 Ibdem, 2004, p. 60.
11 ROSA, 1997, p. 134.
12 CASTRO, Manoel A. de., 2004, p. 26.
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IGOR T. S. FAGUNDES (MESTRANDO – UFRJ)
Resumo:
“O sertão está em toda a parte”: João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e o regionalismo sertanejo
como metáfora/metonímia para uma universalidade existencial. A poética do rio no conto “A Terceira Margem do
Rio”, de Guimarães Rosa, e nas “Duas Águas” de João Cabral (“O Cão sem Plumas” na primeira; “O Rio” e “Morte
e Vida Severina” na segunda). Transmutações do rio em homem e do homem em rio no curso de ambos os joões:
o rio/discurso sobre a condição humana e o rio/discurso da condição sub-humana. A síntese da antítese: destacar
a água para afirmar a sede. Confluências entre o musical e místico da escrita líquida de Guimarães Rosa e o
imagético e ateu da escrita seca de João Cabral. Cruzamentos entre escrita e oralidade, entre a norma culta e a
linguagem coloquial: outros desaguares discursivos na obra dos autores. Desconstruindo (ou reconstruindo) a
dinâmica do eu lírico: a potência do impessoal na narrativa de Rosa e o lirismo oblíquo do verso cabralino.
EXISTE É RIO HUMANO: JOÃO CABRAL NA TERCEIRA MARGEM DE ROSA
O senhor tolere, isto é o rio. Uns querem que não seja. Lugar rio se divulga: o rio está em toda parte1.
Como, em toda parte, está o sertão de João Guimarães Rosa. E em toda parte do que se divulga como sertão
rosiano, o rio a se tecer no seu tecendo-se como ser-tão, ser em excesso, potencializado, atópico, de modo que, na
terceira margem, rio também seja “onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”2.
Como se o gesto de sê-lo designasse o habitar a realidade em sua permanente movência criadora; como se,
nela, este habitar-mergulhar-singrar-navegar o rio fosse um dar-lhe a voz, de modo que “o poder do lugar”
vigorasse na eclosão da força de linguagem que o vivifica, rompendo margens, descobrindo-o “por aí se
estendendo grande, fundo (...). Largo, de não se poder ver a forma da outra beira”3.
Nesse rio ser-tão – nesse tão-ser do rio, nesse tão-rio do ser –, seria a margem terceira também o sozinho
do grande sertão? O dentro da gente? O do tamanho do mundo? O personagem-questão Riobaldo, aquele que é baldo
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de rio, carente de curso, ambicioso no curso, no pensar, baldado, isto é, malogrado de pensar, malogrado para
pensar e pensar-se como rio-curso-incurso-percurso? “A terceira margem” como epígrafe? A epígrafe-questão
de João Guimarães Rosa? A nossa questão? A questão? Não é Riobaldo a imagem – humana, humanizada – da
contínua transmutação? Imagem daquele quem a ser aquilo que, ontem, não foi e poderá ser amanhã o que
ainda não fora? A travessia existencial, originária, ou seja, que não cessa de acontecer, de originar-se, de
desvelar-se ao mesmo tempo que perdura em retração e velamento, sem que jamais se esgote na tensão entre o
que, nela e dela, vemos e o que, no nonada, é inatingível e impossível de ser visto.
O sertão de Riobaldo dá corpo a essa questão pelo eterno mover-se no entre, estreito caminho que se
abre, expande-se, vereda que aparentemente separa o conhecido e o desconhecido para uni-los e tramá-los, ou
seja, tê-los e vivê-los como teia. Destinado também à trama e ao movimento, não seria, por sua vez, o rio de
“nosso pai”4 em “A terceira margem” – ou melhor, não seria o “nosso pai” no rio – a pergunta pelo “dever durar
na água por uns vinte ou trinta anos”5? Não seria este durar na água um fazer-se teia na vida, da vida, um
confundir-se com a própria água, de maneira que “nosso pai” não rumasse mais no rio, mas fosse o próprio rio,
o próprio rumo do rio, o seu sem-rumo:
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”6
Terceira margem: o sem-rumo desse rumo. Nela, “existe é rio humano. Travessia”7. Nela, enquanto obra,
poética, outra também se faz borda, outro João a borda: Cabral de Melo Neto e o sertão nordestino de homensrio, rios-homem, frente ao sertão do gerais, sertão geral, generalizado ser-tão porque a-geográfico, de Guimarães
Rosa.
Se na poética do romancista mineiro, rumar no rio (ser como rio) é a aventura no vazio do sem-rumo
(“para outras paragens, longe, no não-encontrável”8), a questão em João Cabral é o rumo dos sem-rumo, o rumar
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daqueles que, desarrumados, reivindicam para si um rumar. Longe, no encontrável. É a falta de rumo que incita à
procura por ele. É por não ter um rumo que as gentes severinas saem em retirada:
Somos muitos severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
(...)
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia 9
Neste sertão nordestino de Cabral, homem e rio se definem pela seca, pela carência, pelo impasse
isomórfico de ambos: chegaremos ao Recife? chegaremos ao mar? Mataremos a sede? Mataremos a seca? A
dúvida se anuncia na própria fala do Capibaribe, tornado, no poema “O Rio”, narrador-personagem: “Eu não
sei o que os rios / têm de homem do mar; / sei que se sente o mesmo / e exigente chamar”10.
Em João Cabral, o presente é vivido como aquilo que não pode durar, como aquilo que não deve ser
mas já é enquanto falta, enquanto demanda de um futuro em que se seja mais do que a vivência do não. Na
cidade do Recife, deságua “O Rio” e também “deságua a gente / de existência imprecisa, no seu chão de lama
/ entre água e terra indecisa.11
Na poesia do pernambucano, o retirante é na medida de ser a própria negação de seu lugar, a própria
negação de seu ser. Não tendo ou não sendo lugar, o retirante é a medida da negação concomitante à afirmativa
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do deslocamento. Rumo a alguma margem, isto é, o encontro com a existência precisa entre água e terra.
No entanto, falar em margem só é possível porque, antes de traçada, antes de traçados, somos puro
sem-fim, desmoldura, puro a-se-traçar de um traçando-se. Terceira margem, este infinitivo a gerundiar, este infinitivindo. A iminência do traçado. O não traçado eminente. E se falamos em traço, em fio, em teia, precisamos
falar em vazio. Não é a teia, a rede, uma doação do vazio? Ele mesmo, o vazio – terceira margem se doando.
Por estarmos nela lançados; por sermos nessa falta de margem é que podemos (e queremos, constrangidos pelo
caos) conceber alguma. Ao menos, duas, cardeais do início e do fim de uma trajetória, quando a terceira
margem é o que desaparta os pontos estanques, tornando-os eterno começo de um meio, o sem-fim de um
durante. Esta, justamente, a questão em Rosa: não a daquele que se retira em nome de um lugar sempre por
vir, mas a de quem se retira da experiência do lugar para se reconhecer como o “sem-lugar” de toda experiência,
o “em toda parte” do pensamento e/ou do não-pensamento (do não pensável) a divulgar-se epidemicamente.
Abandonando o “ordeiro”, a fixidez do lugar, o preciso, “nosso pai” é este ser que se divulga sem
qualquer nome próprio no conto “A Terceira margem do rio”, num rio também sem qualquer nome, o “rio-riorio, o rio-pondo perpétuo”12. Sem nome, “nosso pai” passa a ser potência de todos os nomes que nele se
inscrevam como pater. Sem nome, “nosso pai” verte-se em apelido para quem, com ele, na leitura, também se
manifeste como escritura epidêmica de vida, criação, o inaugural do fecundar a terra-mater, fundando o vértice
a partir do qual conjugará a família das experienciações.
Nos poemas de Cabral de Melo Neto, ao contrário, o anonimato dos sertanejos se confunde com a
própria esterilidade das famílias, a própria infecundidade e falta de rosto das vidas que buscam alguma
identificação, algum batismo nas águas, elas sim, sempre tangidas de nomes ou apelidos, apesar de igualmente
rasas. Não ter um nome, agora, seria a não-potência, risco de vida não inaugurada. Ou interrompida. Lemos
em “O Rio”:
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Os rios que eu encontro
Vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
Que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns como nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
Que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.13
Embora “de água pouca”, os rios que correm paralelos ao devir das gentes, são batizados, nomeados,
designados, marcados por uma origem. Mas “para os rios e os bichos / nascer já é caminhar”14, ou seja, trazem, já
na origem, seu curso; seu destino projetado, seu quinhão. Diferentemente do ser humano, rios e bichos nada
sabem da finitude; não são, como os homens, seres-para-a-morte, pois não vivem a morte como morte. Não
pensam. Pensar é pensar a morte, da morte, para a morte, pensando o homem como eros – doação de elos que
nos prendem a ela, que nos libertam para a vida, para que, em nós, vida se liberte. Pensar é pensar o homem
como liminaridade entre ser-no-mundo (ser em elo) e ser para a morte: eros e thanatos.
Entre o humano e os demais entes, uma diferença: vida vivida e vida experienciada. Rios e bichos vivem
a vida, porque não lhes cabe a ação da escolha (o aprendizado, a aprendizagem). Homens, ao contrário,
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experienciam a vida: a eles cabe o conhecer (o aprendizado) e a sabedoria, o ethos (a aprendizagem). Cabe-lhes
apropriar-se daquilo que lhes é próprio e realizar-se como plenitude de princípio. Por isso, o rio nomeado, batizado,
contado, cartografado de Cabral, é o rio do batismo, da origem: do início e do fim. Da linearidade. O rio semnome de Rosa não é o rio da origem, mas do originário, do cíclico, do que está por batizar-se. É o rio que vige
na inversão do verso cabralino “nascer já é caminhar” para caminhar é já nascer. Um nascer que se dá enquanto
se caminha, um nascer a cada dia, um reinício, caminho definido pelo durar do iniciado. Caminho indefinido,
portanto, pois o que nele e dele se inicia perdura na condição de um ainda iniciável.
Contudo, o poema de Cabral de Melo Neto também está suscetível à leitura invertida, o que confere
um caminho de mão dupla ao suposto vocabulário unívoco do poeta pernambucano. Afinal, se nos rios cabralinos
se diz também a caminhada dos homens, pressupõe-se a possibilidade de que, mais do que vivida (“nascer já
é caminhar”), vida nos versos de Cabral possa ser, pela inversão, experienciada (caminhar é já nascer). Eis o
que se inscreve em “O Rio” e em outros poemas, tais qual “Morte e vida severina”: a luta pela inversão. Pela
inversão da vida. Deste tipo de vida sub-humana: homens que só podem viver como rios e bichos, ou seja,
marcados pelo seu quinhão, pela sua origem, na luta contra a morte, sem que se façam originários, senhores de
sua travessia: “E vi todas as mortes / em que esta gente vivia”15. Homens que buscam viver, enfim, como
homens, como aqueles que podem inverter, reverter, conquistar. Homens, portanto, a quem não foi dada a
possibilidade do humano. E rios que, a partir do momento em que ganham voz para contar sua história,
parecem também atrás do humano da conquista, da possibilidade da escolha, do narrar-se, do escrever-se,
pensando a si mesmos como quem pensa a morte no mar, para o mar. Rios aos quais não foi dada a possibilidade
também de ser – apenas – rios. Não é o desaguar das águas doces nas salgadas o que os caracteriza como tais?
Mas como desaguar se água lhes falta para a ação? Se lhes falta a chance de ser, primeiro, rios? Se lhes falta o
direito de ser doce? Aos rios e homens do sertão cabralino, a impossibilidade de ser tão-somente eles mesmos.
A necessidade de se amalgar uns com os outros.
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Se, como dissemos, os homens são na liminaridade entre ser-no-mundo e ser-para-a-morte, o rio cabralino
é aquele em que ser-no-mundo é já ser a morte. Do mesmo modo segue o sertanejo em Cabral. A inversão do
“nascer já é caminhar” para “caminhar é já nascer” traz a negação da própria afirmativa: se passamos a entender
que caminhar é já morrer, então, na verdade, o sentido é caminhar é já não nascer. Por isso, água e sede (ou água e
seca) apontam, numa poética de rios e sertões, uma para a outra, evocando, nelas, essa mútua referência entre
o nascer e o morrer que caracterizam a tensão do caminhar.
Nesse sentido, o sertão em Cabral nunca é um ser-tão, um ser potencializado na transmutação eterna
de um ser-a-mais. Trata-se de um ser-a-menos, que convence na intimidade da sede, no íntimo de seu ínfimo,
mas do que no íntimo infinito do ser em Rosa, conforme podemos dialogar com a leitura de Antonio Carlos
Secchin:
Em Cabral, o sertão nasce para anunciar a morte: Sertão, SerThânatos. Natureza desfalcada, palco de atores –
bichos, homens, rios – em perpétua retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma
afirmação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devastação e resistência que a poesia de morte e vida
cabralina vai tentar traduzir o Sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-lo, levá-lo além, de um ponto a
outro: do verso do poeta ao reverso do deserto (ou desertão) onde a vida severina pede passagem. Traduzir o
deserto solar do Sertão no deserto polar da página branca, pois “o sol da palavra / é natureza fria”16.
Nas palavras de Secchin, traduzir o sertão severino é conduzir-se pela palavra sem adorno, desemplumada,
na dureza do discurso a-melódico, não encantatório e rigorosamente educado pela pedra, em meio ao que o
crítico chama de “combate entre o líquido e o sólido”:
A ambigüidade da água: portadora da vida, é também agente do excesso, da exuberãncia, de uma proliferação
descontrolada que repugna ao poeta. Daí a água em Cabral ser aquela do Sertão: fios de rios exíguos, que elevam
à mais alta tensão o combate entre o líquido e o sólido. A água lhe interessa, antes de tudo, como elemento de
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trânsito, de articulação, espécie de correspondente metafórico da sintaxe, linha que tece a ligação entre os elementos.
(...) Água moldada pela terra – poeta fluvial, não marítimo. Ou água contida, imóvel – num poço ou numa
garrafa...”17
No poema-livro O cão sem plumas (1949-1950), por exemplo, o ponto de vista sobre o regional (lançado
sobre o rio Capibaribe que cruza o Recife) se vincula ao pensamento da linguagem-engenheira do mínimo: o
cão sem plumas (leia-se: sem adornos) é o rio, é o homem e é também o verso de Cabral. Tal qual a realidade
de carência e de espessura da carência, a arte cabralina traz a água moldada pela terra, o líquido moldado pelo
árido e concreto, “onde a fome / estende seus batalhões de secretas / e íntimas formigas”:
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
(...)
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
(...)
Espesso
porque é mais espessa
a vida que se luta
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a cada dia,
como o dia se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
consquistando seu vôo)18.
Ao contrário de “O Rio” e de “Morte e vida severna”, não há, em O cão sem plumas, um narrador-rio ou
um severino-narrador. Rio e homem se narram, sim, na amálgama do impessoal. É o próprio real que se narra,
porque, impessoal, abarca todos os entes, inscrevendo em si rio e homem, ou melhor, escrevendo-se em
homem e rio:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
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onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.19
Essa realidade mendiga requer, em João Cabral, o verbo pobre que a intensifique sem perdê-la e perderse em espessura: “não o de aceitar o seco / por resignadamente, / mas de empregar o seco / porque é mais
contundente”20. Ou ainda: “a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstruir a leitura fluviante, futual, açula a
atenção, isca-a com o risco”. A linguagem cabralina, ela mesma, já define o ser que a motiva. Quando o poeta
apresenta sua “educação pela pedra”, torna explícito o desejo de tingir a voz poética com o mesmo desbotado
da circunstância de penúria à qual se refere. Desejo, afinal, de descolori-la:
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(...)
outra educação pela pedra: no Sertão
(...)
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.21
Daí que o rio-sertão, o rio ser-thanatos em João Cabral pode ser, definitivamente, contado segundo o
ser-thanatos dos homens. Em “O Rio”, o Capibaribe revela, à medida que se conta, a educação pela pedra à
qual é submetido:
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Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra
para amassar com sangue
os ossos duros desta terra.22
A fala do rio se constrói nesse embate entre finitude e sobrevida e, sendo puro silêncio (ou seja, não
tendo o rio pensamento e, logo, articulação lingüística), o Capibaribe só (se) diz porque humanizado; porque,
nele, a gente à margem o freqüenta, dando-lhe voz, ambos vítimas da ameaça de não poder rumar. No poema
de João Cabral, é o rio que fala e é o rio que não fala. A sintaxe do rio serve à semântica das gentes. A sintaxe
do retirante confere ao rio uma semântica: “Vou na mesma paisagem / reduzida à sua pedra”23, ouvimos o rio,
assim como as gentes: “Há aqui homens mais homens / que em sua luta contra a pedra / sabem como se armar
/ com as qualidades da pedra”24.
Em contrapartida ao rio cabralino, um falar não se concede ao rio de Rosa. Na terceira margem, no
invisível sem borda, o que contar daquilo que não se conta, do que não tem traçado fixo e é o transitório, o
provisório, o ainda-nem-sido, o que virá a ser, o sem-rumo do rumo? Um rio a ser: apenas a questão. O rio, o
ser: a questão, apenas. Exclamada.
Ao rio de Rosa se concede o silêncio. A escuta desse não-dizer. A travessia em que consiste essa
escuta: a possibilidade de fazer da fala do silêncio a eclosão do sentido daquilo que se é. Ouvi-lo, mais do que
falá-lo. Ouvir-se, mais do que falar de si é o que inscreve “o nosso pai” no mesmo movimento: “...não figurava
mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto”25. Quieto, o pai, como também
o rio, “calado que sempre”26. Calados e quietos, o rio e o pai: “...perguntei: -‘Pai, o senhor me leva junto, nessa
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sua canoa?’ Ele só retornou o olhar em mim...”27. Face aos retirantes que aguardam uma hora de chegada,
“nosso pai” não caminha pelo silêncio das falas para chegar. Entre o ser e o nada, a criação, o infinito onde se
move a canoa. Um rio invisível . Um rio-movimento, apenas ritmo, continuum, música.
Destarte, em João Cabral de Melo Neto, pensar poeticamente é uma articulação por imagens. Não
interessa ao pernambucano o submerso, o abissal. A ele não compete refletir sobre o que, em silêncio, é fala da
natureza. Seu interesse está no que, à superfície, no visível, está suscetível à fala e, por isso, no rio se dizem as
gentes. Nele, nada se diz se não estiver previamente manifestado. O pensamento do rio, no rio, é um já
pensado a partir de uma espécie de fenomenologia poética, de uma descrição minuciosa de todos os vieses
daquilo que se mostra.
De um lado, o a-se-pensar rítmico do verbo rosiano; de outro, o pensado imagético do verso cabralino,
que rompe o silêncio do rio com o grito dos retirantes, ainda que – quase – afásico, tal qual o rio, o versejar. E
por não serem quietos, nem calados que sempre e, sim, porque talvez sejam mais estúrdios e mais tristes do que os
outros, esses homens de Capibaribe fogem à ausência na presentificação de uma alguma história possível. Mas
o “nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pele ou
à fala (...) sempre fazendo ausência”28. Da ausência, portanto, nosso pai não foge em “A terceira margem”.
Nela, sua viagem. Com ela, seu encontro. Ela – sua presença.
Em Guimarães Rosa, matar a sede é construir a canoa. Por ser um “homem cumpridor, ordeiro e
positivo”29, “nosso pai” nela se põe como quem se desprende de sua vidinha ordenada, estática, do meramente
vivido e rotineiro, para libertar-se na plenitude de um experienciar, de um comungar consigo e seu entorno,
desfazendo as fronteiras entre o dentro e o fora do corpo, entre o corpo e o espírito, e concebendo-se imensamente
povoado mesmo quem em aparente solidão.
Construir a canoa, portanto, não consiste em dar fim à sede. Como saciá-la, se a viagem, cíclica, só se
faz de ida e ida e ida? A sede, sempre um retorno, quando o que existe é o gesto de tentar saciá-la. Quando o
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que existe é o gesto. A ação da sede é a sede de ação. Os retirantes de Cabral, em êxodo, esperam a hora do
repouso. O repouso de nosso pai, em Rosa, existe na contradição de que o porto seguro consiste no próprio
inseguro de viver sem porto, “numa canoinha de nada, nessa água, que não pára”30, na qual o filho escolhe não
rumar. Ao mergulho no mistério, ele renuncia, talvez porque, à margem, viver é menos perigoso. Mas viver não
é muito perigoso? Vive ou sobre-vive o filho, então? Interpretar a partida do pai como morte? Não viver, afinal,
não caberia à àquele que, sem sair da margem, culpa-se pelo que não foi e irá ficar calado?
De novo, a voz do mito eros e thanatos: não se morre um dia. Morremos enquanto vivemos. E porque a
morte não está no futuro, mas vige no presente, como presente, é que vivemos desde sempre e desvelamos
cada dia como se fosse o último e o primeiro. Com ou sem plumas. Educados pela pedra. Ou pela canoa, “rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro...”31.
NOTAS
1 Até aqui reinventamos, dialogicamente, o fragmento de Grande sertão: veredas: “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não
seja. (...) Lugar sertão se divulga: (...) O sertão está em toda parte. (ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, p. 7-8).
2 Id., ibid., p. 24.
3 ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. Em: Primeiras estórias. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 27.
4 Id., ibid., p. 27.
5 Ibid., p. 27.
6 Ibid., p. 28.
7 Id., Grande sertão: veredas. op. cit., p. 568.
8 Id. “A terceira margem do rio”. Em:Primeiras Estórias. op. cit., p. 30.
9 MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 29.
10 Id., ibid., p. 3.
11 Ibid., p. 22.
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12 ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. op. cit., p. 31.
13 MELO NETO, João Cabral. op. cit, p. 5.
14 Id. ibid., p. 7 [grifos nossos].
15 Ibid., p. 16.
16 SECCHIN, Antonio Carlos. “Morte e vida cabralina”. Em: Poesia e desordem. São Paulo: Topbooks, 1996, p. 66.
17 SECCIHN, Antonio Carlos. Op. cit. p. 67-68.
18 MELO NETO, João Cabral de Melo Neto. “O cão sem plumas”. Em: Poesias Completas: 194-1965. 2ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975.
19 Id., ibid., p. 190-192.
20 Ibid., p. 165.
21 Ibid., p.
22 Id., Morte e vida severina e outros poemas para vozes. op. cit.., p. 8.
23 Ibid.
24 Id. ibid.
25 ROSA, Guimarães. “A terceira margem”. op. cit., p. 27. [grifo nosso].
26 Id., ibid.
27 Ibid.
28 Ibid., p. 29; 31.
29 Ibid., p. 27.
30 Ibid., p. 32.
31 Ibid.
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JOSÉ MAURÍCIO DA SILVA (MESTRANDO – UFRJ)
Resumo:
O que buscamos neste trabalho é fazer uma escuta do conto, de João Guimarães Rosa, “A hora e a vez de Augusto
Matraga”, do livro “Sagarana”, tendo como pano de fundo a possibilidade de aproximação entre Literatura e
Filosofia. Operação nem sempre vista com bons olhos, tanto por escritores como por alguns filósofos. Não pretendemos
em absoluto a aplicação de modelos interpretativos, teses, correntes, escolas, etc. sobre a obra, este é, exatamente,
o comportamento do qual procuramos nos distanciar nesse trabalho. Por outro lado, como não poderíamos deixar
de adotar uma base teórica, que desse o necessário suporte às nossas reflexões, pois, se assim não fosse, haveria perigo
de tentarmos reinventar a roda, e fazê-la triangular ou quadrada. Essa base, nós a buscamos no “método”
fenomenológico, preconizado por Martin Heidegger, no §7 de “Ser e tempo”. Que, parafraseando Husserl, a quem
“Ser e tempo” é dedicado, podemos resumir como um encaminhamento “à obra, elamesma”. A “autorização” para
essa aproximação nós a buscamos no fato de que uma verdadeira obra literária é um típico fenômeno que opera o
jogo do des_velar e do re_velar, uma vez que qualquer apreensão de um texto será sempre “uma” apreensão e trará
consigo, implícitas e veladas, inúmeras outras “possibilidades” de leitura.
Augusto Matraga – um ser-para-a-morte
1.
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras ...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo
Alberto Caeiro
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Nosso objetivo é fazer um movimento de aproximação entre Literatura e Filosofia, operação que deve
ser feita com cuidado para não perdermos a riqueza própria de cada uma dessas formas de pensamento.
João Guimarães Rosa, a princípio, nos dá a impressão de não ver com bons olhos essa proposta. À
pergunta que lhe faz o crítico alemão Günter Lorenz, em uma famosa entrevista :
“Você tem alguma coisa contra os filósofos ?
Guimarães Rosa, responde : Tenho. A filosofia é a maldição do idioma. Mata a poesia, desde que não venha de
Kierkegaard ou Unamuno, mas então é metafísica.”;
ao que Lorenz retruca:
“– Mais adiante vamos ter que considerar com mais calma seus conceitos filosóficos, (...)”
Esta postura mais parece ser uma “implicância localizada”, dirigida, talvez, a alguns pensadores, pois, na
mesma entrevista são inúmeras as referências à filosofia e aos filósofos, como no trecho visto. Alguns exemplos:
“Guimarães Rosa: (...) O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinza. (...) sou
eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente ‘Umsorgem’ [cuidar dele]. Soa a Heidegger não ?”;
outra passagem:
“Guimarães Rosa: Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. (...) A alquimia do escrever precisa de
sangue do coração”.;
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Esta lembra Nietzsche, em Assim falava Zaratustra:
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e
aprenderás o que é espírito”.
Já o filósofo citado por Guimarães Rosa – Martin Heidegger – cujo pensamento nos guiará no âmbito da
filosofia, manteve sempre uma relação de paixão para com a literatura, em especial com a poesia, são inúmeros
os seus escritos sobre o tema. A famosa frase “ A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o
homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias.”, nos dá prova suficiente desse bom relacionamento.
Guimarães Rosa pode ser lido como místico, sociólogo, psicólogo, filólogo, teólogo e quantos mais “logos” aparecerem, porque então, “simplesmente”, não olharmos sua escritura como “logoz”. A fala, por
excelência, dos filósofos, aquela que, uma vez “sabiamente escutada”, nos ensina Heráclito, diz : “tudo é um”.
Buscar uma ausculta desse “logoz”, através de Rosa, é o que tentaremos
O nosso escritor fala do Jagunço, e o jagunço é o homem lançado no mundo (o Da-sein – “ser-aí”– nas
palavras de Heidegger). Guimarães nos fala do Sertão e o sertão é “... do tamanho do mundo”, “ ... é dentro da
gente”, “ ... querendo procurar nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”, todas
assertivas tiradas de GS:V, e que nos lembram a Physis do, já citado, Heráclito. Fala, ainda, de Veredas, estas
são os caminhos e as experiências, realizadas pelo homem na sua travessia existencial.
2.
“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Guimarães Rosa
Parafraseando Husserl (mestre de Heidegger), passemos “à obra ela mesma” e, com esse convite, fica,
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também, explicitado que o nosso caminho será o da fenomenologia.
Portanto, podemos dispensar o aval explícito de G.R.. O que precisamos é ouvir da obra se ela, de fato,
nos autoriza a vê-la como algo mais do que uma simples narrativa “pedagógica” sobre um indivíduo poderoso
e truculento que tem uma morte violenta, após a purgação de um merecido castigo por suas arbitrariedades,
como uma singela fábula soteriológica com.um esquema de “pecado-purgação- prova final e graça “, um
“causo pitoresco” passado em uma região sem lei, etc.
O conto inicia com um enigma, quase oracular: “MATRAGA NÃO É MATRAGA, não é nada. Matraga
é Esteves.[...] Ou Nhô Augusto – o homem – (...)”. Podemos entender daí, entre muitas outras leituras igualmente
plausíveis, que a estória contada não é a de “um” homem, mas é a do “homem” como “ser-histórico” (aquele
ente que precisa “fazer-se”).
Achamos oportuno notar que em nenhum momento da narrativa que se seguirá, Nhô Augusto, ou Nhô
Esteves, é referenciado pelo nome Matraga, somente no título, aqui na abertura do conto e no final, já
agonizante, ele voltará a ser assim nomeado.
A antroponímia em Guimarães Rosa é sempre significativa, os jogos possíveis com os nomes são muitos
e abrem os mais diversos caminhos interpretativos. Arriscamos a proposição de um: em “Matraga é Esteves.
Augusto Esteves.”, poderíamos, sem “violentar” o texto, ler : ‘a Vida deve ser construção-luta – simbolizada por
matraqâ que é pau, cacete, – para ser premiada, reconhecida – o significado de esteves como coroado, e
a apoteose, a consagração – lida em augusto como o consagrado – é o prêmio, o reconhecimento final
alcançado ao fim da Vida-Luta, i.e., na Morte”.
Resumindo toda a saga de “Matraga”- Augusto Esteves : “A Vida deve ser conquistada, lutada, para que seja
coroada de êxito ao seu final, para dar um sentido à Morte”.
Voltando ao caminho fenomenológico.Um outro sinal, recebido da obra, a nos autorizar a ouvi-la apenas
à “ela mesma”, pois, além e fora dela não há nada, é o que nos diz o próprio narrador, ao interromper a
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narrativa e dirigir-se a nós, leitores, na seguinte passagem:
“E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho desse jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma porque
esta aqui é estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”;
tal enunciado corresponde, mais ou menos, ao que nos diz Brás Cubas, o defunto autor, na mensagem
“Ao leitor”: “A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me a tarefa; se te não agradar, pago-te com um
piparote, e adeus.”
Assim, (auto)liberados, vamos em frente.
“MATRAGA NÃO É MATRAGA, não é nada.”
Não ser nada é ser alguma coisa. O “nada” aqui pode ser visto como positivo, trata-se de um nada prenhe
de possibilidades, que o modo de ser característico do homem, o Da-sein, traz como “possibilidade de
possibilidades”, aquele ente que nunca está (pré)determinado como estão uma pedra, uma alface ou um
passarinho. Na indeterminação desse “nada” está o “poder-ser”, ele guarda todas as possibilidades que a
liberdade para ex_istir nos oferece na abertura ofertada pelo mundo, o apelo para “virmos-a-ser” o que “devemosser”.
Encontramos, no início do conto-novela, um Nhô Augusto tão alheio à possibilidade de sua morte, tão
confiante na sua suposta onipotência de uma vida “inautêntica”, que ele ignora todos os sinais que prenunciam
uma derrocada. É incapaz de qualquer escuta e obediência ao “logoz”. Após o relato da fuga de Dionóra, sua
esposa, e da debandada de seus capangas para servir a um inimigo, nos diz Rosa:
“Mas Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e galopou, teso para trás, rei na sela,
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enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar um gole d’água para beber. Assim.
Assim, quase qualquer capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do
azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar, (...)”.
Vai, então, sozinho, enfrentar o desafeto. É espancado até ser dado por morto, mas no momento em que,
conforme ordens do Major Consilva, é marcado a ferro em brasa: “(...) Nhô Augusto viveu-se, mordia, com um berro
e um salto, medonhos. (...). Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura. O corpo rolou, lá
em baixo, nas moitas, se sumindo”.
Matraga chega a um ponto em que só lhe resta uma opção: um salto que é fim e começo para um outro
que é o mesmo. O personagem dá um salto literal, para um abismo idem, mas leva consigo seu duplo inseparável:
o Matraga pre-sença, este salta para dentro de si-mesmo.
O ferro em brasa atua como um relâmpago que proporciona a visão reveladora de uma outra dimensão,
atinge Matraga com violência correspondente à profundidade da sua letargia. Uma epifania. A ferro e fogo, ou
... a porrete. A primeira, das três que destacaremos no percurso de Matraga.
Morto para o contexto do qual pulara em direção a um abismo, abre-se para ele uma nova maneira de ser
no mundo. Nhô Augusto Esteves está pro-_jetado para um outro mundo e tomado por outro modo de ser.
Recolhido do fundo da grota e acolhido por um casal de pretos, que “(...) cuidavam muito dele, não arrefecendo
na dedicação”, ele passa por um longo período de convalescença durante o qual “Podia sarar. Podia pensar.”
Houve “o contingente” e, “de repente”, um “salto” seguido de uma “serenidade”, dentro da qual “podia
pensar” – nas palavras de Riobaldo: “(...) primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. (...)
mas, agora, feita a folga (...) me inventei neste gosto, de especular idéia.”. Esses “movimentos” vão permitir a Nhô
Esteves experimentar a “angústia” de estar lançado, nu, em um outro mundo, vazio de significados, acontecimento
que lhe impõe olhar para si mesmo, perceber a possibilidade de um “outro nele mesmo” e buscar significado para
essa nova ex_istência com a qual, de agora em diante, ele vai se ocupar.
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Esse percurso do personagem é análogo ao do artista, do pensador e, também, de todos aqueles que,
dotados do modo ser-no-mundo, dão-se conta de que para um viver “autêntico”, há que se cumprir o, dificílimo,
mandamento pindárico: “Venha a ser aquilo que tu és”.
De alguma forma ele compreende: “Tudo perdido! O resto, ainda podia... Mas, ter a sua família, direito, outra
vez, nunca. Nem a filha...Para sempre... E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante”, ao
romper definitivamente com aquilo que era e ser tomado por uma “(...) vontade virgem, (...)”, que desvela para
ele uma abertura, na qual tem que realizar uma nova possibilidade da sua presença:
“(...) féria feita, a vida já se acabara. (...) e, com o passar do tempo, tudo isso foi lhe dando uma espécie nova e mui serena de
alegria. (...) já tinha seus planos (...) ir para longe, para o sitiozinho mais perdido no sertão mais longínquo (...)”.
Matraga passou pela experiência da angústia que o repôs no agir, tirando-o da letargia própria do modo de
ser inautêntico.
Nhô Augusto, diante do “pro_jeto” em que é lançado pela “facticidade” e pela gratuidade existencial de
ser-aí, elabora planos para uma vida própria, aqui no sentido ôntico, mas que, mais uma vez, irá se revelar
como “imprópria e inautêntica”.
Tocado pela afirmação consoladora do padre que lhe dá assistência durante seu período de recuperação:
“— Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”, ele determina, ao iniciar a sua ocupação com a nova
vida:”— Eu vou p´ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal! ... E a minha vez há de chegar... P’rá o céu eu vou, nem que
seja a porrete!...”
Para atingir esse objetivo, nosso personagem passa a viver de uma forma tão impessoal e imprópria
quanto a anterior, apenas com os sinais trocados. O total desprezo que votava aos seus semelhantes está,
agora, voltado para si mesmo, e todo o seu empenho está em uma dedicação diuturna ao próximo, atitude que
termina por anulá-lo completamente: “(...) não tinha tentações, nada desejava, (...) não fumava mais, não bebia, não
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olhava para o bom-parecer das mulheres, não falava junto em discussão”.
Porém a gratuidade e faticidade se fazem presentes :
“(...) conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz
bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi”.
assim, um velho conhecido de Nhô Augusto dá com os costados naquele vilarejo perdido, e traz notícias
que levam nosso herói a, mais uma vez, questionar o sentido de sua atuação no mundo: “— Desonrado, desmerecido,
marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu ?”.
A partir daí, outros pensamentos vão povoar a cabeça de Nhô Esteves, quando ele está desocupado das
tarefas do seu dia-a-dia:
“(...) alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, (...)
“Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia fácil, e o corpo muito bom. (...) acordou
sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom se levantar”.
É quando ele está nesse estado de espírito, que surge no povoado um grupo de cangaceiros chefiados
pelo “homem mais afamado dos dois sertões do rio”, o temido: Joãozinho Bem-Bem. O bando foi para ali levado
pelo acaso:
“— A gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha esse comercinho ... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do
rio tinha a maleita, e da outra está reinando bexiga brava ... E falaram também numa soldadesca, que vem lá da Diamantina ... Por isso
a gente deu tanta volta”.
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Ainda uma vez, o sem porquê dos acontecimentos se revela como propiciador de possibilidades. Porém,
dessa vez, Matraga está à espera, está à escuta de si-mesmo e, portanto, preparado para caminhar ao encontro da
“matraguidade”.
Em uma “manhã feita gargalhante por um bando de maitacas”, ele desconhece o mundo:
“E ainda outras coisas tinham acontecido (...) sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas
largas, numa tensão confortante, que era regresso e um ressurgimento. (...) e deu uma manhã em que Nhô Augusto
saiu para o terreiro e desconheceu o mundo (...) — a manhã mais bonita que ele já pudera ver. (...)
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava. (...) E outro. Mais outro”.
Como Riobaldo, em “Grande sertão”, Nhô Esteves poderia ter dito: “Amanheci minha aurora. Mas a vergonha
que eu sentia agora era de outra qualidade”.
Os bandos de pássaros e uma rapariga que passou atrás da cerca levaram-no ao devaneio. Um outro
piscar de olhos e deu-se a segunda epifania, Matraga “desconheceu o mundo”, e pode ver. Lembrou de uma velha
cantiga e “pegou a cantar”:
“Cantou longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
Não passam mais ... Ô papagaiada vagabunda ! Já devem estar longe daqui ...
Longe, onde ?
“Como corisca, como ronca a trovoada,
no meu sertão, na minha terra abençoada ...”
Longe, onde ?
“Quero ir namorar com as pequenas,,
com as morenas do Norte de Minas ...
Mas, ali mesmo, no Sertão do Norte, Nhô Augusto já estava.
Longe onde, então?”
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Como podia ser isso de longe ? se onde ele estava já era o longínquo “Sertão do Norte”: ele já estava
aonde queria ir !
A compreensão de que “sua hora e sua vez” sempre já estiveram e estariam aí começa a insinuar-se em
Matraga.
Ao terminar o desfile de pássaros no céu, Nhô Augusto parecia desorientado:
“Mas, dali a pouco (...)
— Adeus, minha gente, que aqui é que não mais fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por
ela em outras partes !”.
Decidiu-se. Partiu. Sem rumo certo, deixou-se guiar pelo jegue, animal cheio de manias e vontades e
que parecia se orientar na direção tomada pelas “maitacas viajoras”, mas para Matraga o mundo se tornara
prenhe de significação. Pouco importava onde estivesse ou o que contemplasse, tudo lhe aparecia belo e
harmonioso: “— ‘Qualquer paixão me adiverte ...’ Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com
Deus! ...”
Esse andar errante termina por levá-lo ao encontro do bando de Joãozinho Bem-Bem. Este demonstra
grande satisfação pelo reencontro, e Nhô Augusto tomado de alegria exclama: “— Agora sim! Cantou p’ra
mim, Passarim! ...”. O chefe do grupo torna a convidá-lo para ingressar no bando e lhe oferece as armas de
Juruminho, jagunço morto à traição por um morador do vilarejo, que fugiu após o crime:
“Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou
coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações.
Fazer parte do bando (...) por fim, negou com a cabeça, muitas vezes (...)”.
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Seu Joãozinho está, justamente, cuidando da vingança dessa morte, fazendo justiça ao seu modo: matando
um dos irmãos e liberando seus homens para violentarem as irmãs do fugitivo. Diante dos pedidos desesperados
feitos por um ancião, pai dos jovens que irão pagar pelo crime do irmão, Nhô Augusto interfere junto ao chefe
do grupo:
“— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de
Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda
e o diabo faz !
O jagunço reage ao pedido com estranheza : “— Pois pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje ouvi nem
atendi! ...”; por sua vez , Nhô Augusto desafia o homem a quem tanto admira a “(...) passar primeiro por riba de eu
defunto ...”. Eclode, de imediato, uma furiosa e curiosa luta entre eles.
E temos a terceira epifania:
“E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e
miando de maracajás, e nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.
— Ô gostosura de fim de mundo! ...”
Joãozinho Bem-Bem é o primeiro a morrer, e Nhô Augusto, agonizante, ainda encontrou forças para,
com o rosto radiante, falar:
“— Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas !
— Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô Augusto ...
Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu:”
— E hein, hein, João ?!
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— P’ra ver ...
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e
de seu rosto subia um sagaz contentamento.
Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido:
— Põe a benção na minha filha ... seja lá onde for que ela esteja ... E, Dionóra ... Fala com a Dionóra que está
tudo em ordem!
Depois, morreu.”
Augusto, o consagrado, Matraga, o que lutou sua Vida e sua Morte, demonstra no “sorriso intenso” e
no “sagaz contentamento” o coroamento de Esteves na conquista de sua liberdade para a Morte. Na sua hora e
na sua vez. Na sua Vida.
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JOSÉ MAURÍCIO GOMES DE ALMEIDA (PROF. DE LITERATURA BRASILEIRA DA UFRJ)
Resumo:
O sertão teve sempre, desde a época romântica, presença destacada na narrativa brasileira.A partir do final do séc.
XIX torna-se dominante a abordagem realista dessa temática, tendência essa que irá encontrar sua realização mais
perfeita, já no modernismo, com Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Guimarães Rosa, conferindo ao sertão
um papel nuclear em sua criação ficcional, adota, contudo, postura radicalmente diversa: para ele o sertão ganha o
valor de um microcosmo, um espaço mítico onde vai se desenrolar a aventura humana; ou, utilizando suas próprias
palavras, o sertão torna-se símbolo e modelo do universo.Desse projeto não resulta, como se poderia temer, um
sertão abstrato, estilizado: longe disso. A paisagem física e social do sertão mineiro, dos Gerais , está magistralmente
fixada na obra roseana; apenas, o autor sumete-a a uma transfiguração simbólica para nela poder encenar, num plano
intemporal, os múltiplos conflitos e dilemas da travessia existencial do homem.
DA VISÃO REALISTA À VISÃO MITOPOÉTICA: O SERTÃO COMO MICROCOSMO.
Por sua importância na geografia física e humana do Brasil, o sertão teve sempre, desde a época
romântica, presença destacada na narrativa brasileira, seja como simples pano de fundo para um drama
sentimental, como em Inocência (1872), de Taunay, seja como reduto incontaminado da mais autêntica
brasilidade, na visão nacionalista e idealizante de Alencar, em O sertanejo (1875).
A partir da fase realista, o tratamento literário da temática sertaneja ganha uma amplitude ainda
maior, no romance e no conto, já agora marcados por uma preocupação ducumental que busca registrar não
apenas ambiente e costumes, como as modalidades dialetais em uso nessas regiões relativamente isoladas dos
grandes centros cosmopolitas. No campo específico do romance, o exemplo mais marcante e bem sucedido é
Dona Guidinha do Poço, de Manuel Oliveira Paiva, escrito por volta de 1891, onde o autor consegue, com rara
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mestria, a inserção de uma trama dramática de gosto naturalista no espaço telúrico do sertão cearense. Na
utilização literária do falar regional, Oliveira Paiva demonstra também grande criatividade, que parece antecipar,
em seus melhores momentos, a estilística rosiana. Mas o enfoque, tanto do tema, como do meio social retratado,
permanece fiel aos postulados do Realismo.
No início do séc. XX, uma obra de extraordinária força expressiva vai, por assim dizer, revolucionar
a visão que os brasileiros tinham do sertão e dos sertanejos: referimo-nos a Os sertões, de Euclides da Cunha,
publicado em 1902. Diversamente do que ocorre com seus antecessores, Euclides baseia o seu retrato dos
sertões em um episódio real – a Guerra de Canudos – bem como em um conhecimento pessoal e direto do
conflito, na condição de correspondente enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Mas a matéria coletada no
front vai aparecer transfigurada nas páginas dramáticas da narrativa euclidiana, que se torna, assim, autêntica
epopéia em prosa, com a particularidade, incomum no gênero, de ser uma epopéia dos vencidos. Poder-meiam objetar que Os sertões não constituem apenas um relato épico, mas também um ensaio de história, de
geografia e de etnografia da região interiorana do Nordeste. Não importa: é como construção em larga medida
ficcional, de sopro épico-dramático, que a obra euclidiana sobrevive como um dos grandes monumentos da
nossa literatura. E embora em sua gênese Os sertões sejam tributários do episódio concreto da Guerra de
Canudos hoje, há mais de um século de distância dos eventos históricos que o motivaram, podemos afirmar,
mesmo com o risco de irritar uma parte da crítica euclidiana, que é o livro de Euclides que confere vida e
realidade a um evento que, sem ele, estaria perdido, como tantos outros, em algum desvão escuro da memória
nacional. A Tróia real, que os arqueólogos procuram exumar em suas pesquisas e escavações, é um ponto
perdido na noite dos tempos, mas a Ilíada conserva sua eterna juventude.
Prosseguindo nossa trajetória pelo sertão na narrativa brasileira, que deverá conduzir-nos a Guimarães
Rosa, convém nos determos por alguns momentos na ficção nordestina da geração de 30, que concedeu um
lugar bastante destacado à temática sertaneja. Dentre os escritores dessa geração, foi sem dúvida Graciliano
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Ramos quem mais profundamente abordou tal temática, com Vidas secas, de 1938. Pela ótica dos diversos
componentes de uma família de retirantes, inclusive a da própria cachorra, o escritor apresenta uma visão
aguda e dolorosa das condições de vida do homem pobre na caatinga. A opção estética de Graciliano é por um
realismo radical, tanto no tratamento temático, quanto na própria linguagem que, seca e descarnada, parece
refletir, no plano estilístico, a secura extrema da vida em meio à árida paisagem física e social de uma região
condicionada “ pelo sol, pelo gavião e outras rapinas”, como exprime João Cabral de Melo Neto, em notável
poema dedicado ao romancista alagoano.
Observe-se que o sertão do Nordeste, retratado em Vidas secas, é um lugar marcado pela aridez da
terra, pela seca, pelas fomes periódicas, pelos êxodos humanos, em suma, um lugar bem diverso do sertão
mineiro que iremos encontrar no Rosa. Além disso – e este ponto é essencial – em Graciliano, cuja obra
encarna por excelência a literatura de denúncia social dominante entre os escritores nordestinos da geração de
30, o romance se volta para o questionamento das precárias condições de vida de uma região geográfica e
históricamente bem definida, cujos habitantes, além de esmagados pelo clima e pela miséria, são explorados
por 1uma organização social injusta. Conquanto a elevada qualidade da realização artística confira à narrativa
do mestre alagoano uma dimensão que transcende de muito seu projeto ideológico específico, convém deixar
bem explicitado o fato de que o propósito da obra não é o de refletir sobre a condição humana em si, mas sobre
as condições concretas de existência dos viventes do sertão, seres perfeitamente situados no tempo e no
espaço. Insistimos em tais considerações por nos parecerem essenciais para compreendermos, adiante, a natureza
radicalmente diversa do sertão rosiano.
Em conhecida entrevista, concedida ao crítico alemão Günter Lorenz, a propósito da condição
regionalista ou não de sua obra, reponde Guimarães Rosa:
/.../ Estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura regionalista. /.../ Sou
regionalista, porque o pequeno mundo do sertão, /.../ este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o
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símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo.2
Como se pode verificar, a condição de regionalista não é rejeitada, mas é entendida de forma bem
diversa de como a entenderam os ficcionistas de 30. O sertão é afirmado como matriz da criação, mas deve ser
entendido como um microcosmo onde vai-se desenrolar a aventura humana. “O sertão é do tamanho do
mundo”, afirma Riobaldo em GSV.
Ainda na entrevista citada, o escritor se refere à sua vivência de juventude no interior mineiro, ressaltando
a importância que tiveram em sua formação as estórias que o cercavam em seu ambiente natal:
Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que
me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.3
Mais adiante, rebatendo o elogio do entrevistador que o aponta como o maior romancista do Brasil,
retruca:
Não, não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade
contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade. /.../ Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam
a escrevê-los. /../ É, neste caso, o que se chama precisamente inspiração.4
Evidentemente o autor utiliza aqui a palavra “romance” (como faz em relação a algumas das narrativas
de Corpo de baile) num sentido primitivo, de criação narrativa imaginária, relativamente livre com relação aos
ditames da realidade observada. A distinção existente na língua inglesa entre novel e romance pode ajudar-nos a
compreender melhor este matiz semântico de que se vale Guimarães Rosa para definir seu projeto ficcional.
Tal posição fica bem clara no título do primeiro livro, Sagarana. “Rana” é um sufixo de origem tupi que
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significa “semelhante”, o que confere ao título da obra o sentido de: “ à maneira de uma saga”. Ora, as sagas
são aquelas narrativas míticas dos povos escandinavos, ou, num sentido mais genérico, uma narrativa de
cunho lendário. Sob esse aspecto, pode-se afirmar que, em larga medida, toda a obra rosiana constitui uma
extensa sagarana. Não é necessário sublinhar o quanto esta visão, tanto de sertão, como da criação literária se
distancia daquela de Graciliano Ramos.
Há, porém, outros pontos, porventura mais importantes, que necessitam ser ainda destacados, nessa
tentativa de delimitar melhor o conceito de sertão em Guimarães Rosa. Em primeiro lugar, a relação entre a
obra e o tempo histórico. A certa altura, na entrevista, afirma o autor:
Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. /.../ Sou
apenas alguém para quem o momento nada significa /.../, que se sente no infinito como se estivesse em casa. /.../
Provavelmente, eu seja como meu irmão Riobaldo. Pois o diabo pode ser vencido simplesmente, porque existe o
homem, a travessia para a solidão, que equivale ao infinito.5
Numa atitude bem diversa da dos romancistas de 30, preocupados com a inserção de sua obra na
história sociopolítica do país, Guimarães Rosa confessa que, em Grande sertão: veredas desejava libertar o homem
do peso da temporalidade: “Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original”
(FC., 84). E, mais à frente, remetendo à grande tradição literária do Ocidente, não só reitera essa busca do
infinito, como alarga ainda mais o conceito de sertão, valendo-se de afirmativas intencionalmente paradoxais:
Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievsky, Tolstoi, Flaubert Balzac; ele era, como outros que eu admiro,
um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava o infinito./.../ Portanto, torno a repetir: não do ponto
de vista filológico e sim metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievsky e Flaubert, porque o sertão é o
terreno da eternidade, da solidão. 6
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Como se pode verificar nas passagens assinaladas, a amplitude que conceitos como sertão e sertanejo
adquirem na linguagem do escritor e em sua obra distanciam-se bastante da acepção geográfica e etnográfica
correntes. Sertanejo, para o Rosa, define antes uma condição de ser, do que um acidente de nascimento,
embora isso não exclua, no seu caso, um autêntico orgulho com a condição de homem do sertão. Daí talvez
uma característica única da ficção rosiana: nela os Gerais mineiros são ao mesmo tempo tratados como um
espaço real, geograficamente definido e objeto de fixação literária insuperável, e como um microcosmo, como
um espaço simbólico onde o escritor projeta todas as suas indagações existenciais e metafísicas. Sem dúvida,
a essência e o valor superior da obra de Guimarães Rosa está nessa sua capacidade de transfiguração do
espaço real em espaço mito-poético.
Grande sertão: veredas, como todos sabem, nos apresenta o relato oral de um ex-jagunço que, à beira da
velhice, evoca uma fase de sua vida passada para, resgatando o tempo perdido, tentar encontrar nele o seu
significado profundo. De um lado há a lembrança querida de Diadorim, de outro, a necessidade de libertar-se
de uma culpa que o atormenta: o pacto que teria (ou não) efetuado com o demo. Para conseguir isso necessita
penetrar nos arcanos do sertão-vida. Como ele próprio explica:
Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas
– e só essas poucas veredas, veredazinhas. 7
O romance tem como epígrafe a frase: “ O diabo na rua, no meio do redemoinho...”, que aparece como
um motivo recorrente ao longo da narrativa, e que remete, concretamente, ao local onde se deu o combate
final entre Diadorim, no papel de anjo da vingança, e a figura odiosa do Hermógenes, encarnação do demônio.
Numa das muitas reiterações da frase referida, Riobaldo acrescenta: “Acho o mais terrível da minha vida,
ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar.” Ora, em uma leitura mais abrangente, podemos
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entender “rua” como metáfora mesma dos caminhos do mundo, que o homem deve percorrer em sua travessia
existencial, tendo sempre pela frente, como ameaça constante, o diabo, as tentações do mal. Um diabo que,
oculto no meio dos redemoinhos da existência, torna sua presença simbólica ainda mais ameaçadora.
Mas os dilemas morais com que se defronta o homem em sua trajetória têm que ser resolvidos por ele
mesmo: daí a importância do tema da solidão na narrativa de GSV. Assevera-nos o narrador: “Sertão é o
sozinho”, ou ainda, “Sertão: é dentro da gente” (GSV., 305). Por isso a angústia que Riobaldo sente quando
rememora o malfadado “pacto”:
Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não
existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é esse. A quem vendi? Medo meu é esse, meu senhor: então a alma,
a gente vende, só, é sem nenhum comprador... (GSV., 475).
Quando já detém o poder nas mãos, na condição de chefe dos jagunços, Riobaldo começa a sofrer
repetidamente as tentações do mal, que Diadorim, assumindo agora o papel de consciência moral do amigo,
busca sofrear. Amor e repulsa se combinam nos sentimentos e nas reações do protagonista em face do amigo,
o que o leva a concluir: “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa
o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (GSV., 485). E, em outra passagem, conclui: “Sertão é isto: o
senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se
espera; digo. (GSV., 282).
Como se pode ver, ao longo do romance, a partir de diferentes angulações, multiplicam-se as tentativas
de apreender o significado real de sertão, como se o narrador estivesse sempre buscando, pelos meios limitados
da palavra, exprimir o sentido de uma verdade que escapa sempre ao seu anseio por penetrá-la. Mesmo aquelas
“raríssimas pessoas” que conseguem alcançar algum conhecimento do grande sertão da vida, dele só vislumbram
umas “poucas veredas, veredazinhas”. Mas uma constatação é inquestionável:
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O senhor faça o que queira ou o que não queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há de estar sempre
em cima do sertão. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele ajuda, com
enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso.” (GSV., 521).
Por conta disso é que Riobaldo não se cansa de alertar: “Viver é muito perigoso”; pois longa é a rua a
percorrer, entre o amor e o ódio, entre o medo e a coragem, entre Deus e o diabo. Mas, - como ele próprio
conclui a certa altura: “Travessia perigosa, mas é a da vida” (GSV., 530).
Acreditamos que tudo o que vimos apresentando até aqui deixa bem claro quão multifacetado é o
conceito de sertão na obra rosiana, e quão distante se acha da abordagem realista que, de uma forma ou de
outra, dominara as narrativas inicialmente citadas. Não desejamos com isso diminuí-las, mas estabelecer com
clareza a especificidade de cada uma. Guimarães Rosa, como seu irmão Riobaldo, busca acima de tudo em sua
criação sentido da vida, para além das balizas espaço-temporais que a limitam. Em carta a seu tradutor alemão,
Curt Meyer-Clason, confessa:
Todos os meus livros são simples tentativas de rodear, de devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa
movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada realidade, que é a gente mesmo, o
mundo, a vida. 8
Essa indagação sobre a realidade, entendida como parte integrante do “mistério cósmico”, é que
constitui a essência do grande romance rosiano. A nós, leitores, cabe a tarefa fascinante de acompanhar Riobaldo
em sua travessia pelas veredas do sertão, tarefa sem dúvida complexa e arriscada, mas que nos conduz, no
final, a um dos mais altos cimos já atingidos pela literatura brasileira.
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NOTAS
2
Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo de Faria, ed. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983, p.
66 (Col. Fortuna Crítica, 6).
3
Op. Cit., p. 69.
4
Ibidem, p. 70-71.
5
Ibidem, p. 72-73.
6
Ibidem, p. 85-86.
7
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 101. Em todas as subseqüentes citações do texto do
romance, indicaremos apenas, entre parêntesis, uma sigla indicadora da obra (GSV) e a página referida.
8
ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 238.
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Josias da Costa Júnior (Doutorando – PUC/RIO)
Resumo:
O objetivo central desta comunicação é discutir a questão do mal no horizonte interpretativo literário-religioso.
Abordar a temática do mal, considerando seus matizes implica reassumir uma tarefa desafiadora e de grande risco à
teologia e, ao mesmo tempo, entrar em área de grande criatividade literária. A imagem do mal pode apontar para
dimensões mais profundas do que as características folclóricas sugerem. As imagens do mal mais presentes no
imaginário estão estreitamente ligadas à religião que, por sua vez, perpassa toda a dimensão da vida e não está
somente na sua periferia, conforme o pensamento moderno tentou sedimentar. A teologia não conseguiu dar conta
da questão do mal, na medida em que assimilou em grande medida o pensamento moderno, dentro do qual a religião
representava um estado pueril da humanidade. Por isso, é importante partir em busca das ricas imagens do mal no
histórico das culturas no interior da obra literária, em particular no Grande sertão: veredas. O mal é destacadamente
tema fundamental para a vida, portanto a literatura não pode deixar de descrevê-lo em seus variados aspectos.
Guimarães Rosa investiu na temática e a questão do bem e do mal faz parte dos temas moventes na obra Grande
sertão: veredas. Nesse sentido, a religião aparece como tema transversal movente que perpassa todo o texto. Com
isso, Grande sertão: veredas surge como intérprete do fenômeno religioso, contribuindo assim com o diálogo entre
literatura e religião.
Teologia e literatura:
o problema do mal a partir de Grande sertão: veredas
Primeiras considerações: duas perspectivas
Este texto objetiva discutir a questão do mal a partir de interpretações teológico-literárias. Falar do mal,
considerando seus matizes, implica reassumir uma tarefa desafiadora e de grande risco à Teologia e, ao mesmo
tempo, entrar em área de grande criatividade literária. A imagem do mal pode apontar para dimensões mais
profundas do que as características folclóricas. As imagens do mal mais presentes no imaginário estão
estreitamente ligadas à religião que, por sua vez, perpassa toda a dimensão da vida e não está somente na sua
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periferia, conforme o pensamento moderno tentou sedimentar.
A Teologia não conseguiu dar conta da questão do mal, pois assimilou muito o pensamento moderno no
qual ele representava um estado pueril da humanidade. Por isso é importante partir em busca das ricas imagens
do mal no histórico das culturas no interior da obra literária, em particular no Grande sertão: veredas.
Na perspectiva histórico-teológica, não se pode falar de um problema da teodicéia para uma boa parte da
história da Teologia e do imaginário cristão. Este termo começa a ser incorporado ao universo conceptual
teológico a partir de Leibniz, no início do século XVIII. A idéia do malum naturale (mal físico) e a idéia do
malum morale, são as duas grandes visões que nortearam as discussões sobre o tema. É Leibniz que cunha a
idéia de um malum metaphysicum.
O século II é o começo de mudanças mais profundas com a propagação de filosofias e religiões
marcadamente de visão dualista do mundo: Gnosticismo, Maniqueísmo. Esta em especial, uma religião mundial
daquela época, que alcançava desde o Egito até a China, cujo fundador era o persa Mani (216-276/7), se
caracterizou como um grande desafio para a teologia cristã, através de seus dois princípios fundamentais (Luz
e Trevas, Bem e Mal, Deus e Satanás). A declaração de Calcedônia “cremos num único Deus, Pai poderoso,
criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis” deve ser entendida à luz desse pano fundo teológico, cultural
e eclesial.
Agostinho, ex-adepto do Maniqueísmo, assume uma posição fundamental para sedimentar a visão da
Igreja em torno do mal: i) tudo o que existe é criação de Deus; ii) o mal existe como conseqüência do fracasso
humano e do diabo. A partir dessa época se pensa na idéia de permissão divina para o mal, mas não com a
criação do mal.
Sobre a contribuição de Agostinho para a Teologia ou a Literatura do mal no Ocidente, pode-se considerar
que seus escritos (354-430) têm o centro dos debates sobre o mal os escritos de 421. A visão de Agostinho
pressupõe um cosmos ordenado, cujo pensamento fundamental é que tudo que é, faz parte de um cosmos
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ordenado. Nos escritos do cristão Agostinho a visão dualista sobre a criação se torna inaceitável. Mesmo no
autobiográfico Confissões1 (em torno do ano 400) ele indicava que mesmo o mal pertencia a esta ordem do
cosmos. O mal aqui tem um papel determinante para certa “estética” do cosmos, pois o mal é visto como
carência do bem e, por isso, pode ajudar a destacar a excelência do bem. Para Agostinho a origem do mal
residia na vontade decaída do ser humano. No interior desta concepção é que se deve entender o poder que a
teoria da queda ou pecado original tem, no desejo sexual, uma das maiores forças de representação na teologia
agostiniana. Para Agostinho Deus não é responsável pelo mal, mas a vontade decaída do ser humano. Não se
trata de uma questão meramente individual, mas tem conseqüência biológica, social e política. O mal então
tem três dimensões: ontológica (significa que ele está no ser), estética (o mal ressalta o bem ordenado no
Cosmos) e antropológica (significa que o mal resulta da ação humana).
Para Tomás de Aquino (1225-1274) a permissão divina para o mal é colocada em dimensão teleológica.
Deus não é o criador do mal, mas o permite quase como um “acaso”. Calvino (1509-1564), diferente de
Tomás de Aquino, entende que Deus é o criador de todas as coisas e cada uma delas se encontra sob a
soberania de Deus. O diabo é, por assim dizer, instrumento de Deus. No teocentrismo de Calvino, o fato de o
mal ter origem em Deus não deve ser confundido como uma culpa divina, mas como um processo pedagógico
de Deus para educar o ser humano.
Pensando em perspectivas literárias, deve-se dizer que muitas narrativas bíblicas passam a ter força de
construção figural na produção literária. Fazem parte da herança literária ocidental as personagens e as estórias
da Bíblia. Mas não somente as dimensões figurais das narrativas são traduzidas em narrativas literárias, mas
também os seus conteúdos teológicos. Dilemas e possibilidades de interpretação teológica do mal deixam suas
marcas na dinâmica narrativa da literatura.2
No período do pós-guerra, a Europa foi abastecida com textos centrados na problemática do mal na
história e na vida do indivíduo. “A Peste” de Albert Camus é muito importante para esta constatação. Uma
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idéia significativa na literatura européia é a da culpa de Deus como metáfora da culpa humana. O dilema de
Deus, enquanto personagem, se torna o dilema da vida humana.
Segundo Robert Muchembled,3 em alguns países europeus – como França e Bélgica – o mal ficou no
campo do imaginário, como se valeram bem as histórias em quadrinhos. Elas foram grandes contribuintes na
formação de um espaço demoníaco imaginário, na praça do lúdico. Quadrinhos franco-belgas dos anos de
1945-1965 despertaram interesses de jovens entre 15 e 24 anos. Tal interesse revela um fenômeno de
transformação cultural de grande importância. As histórias, a partir de 1965, eram recheadas com os ideais de
liberdade; forja-se uma geração pós-guerra, cujo imaginário é permeado de ruptura com outros modelos de
quadrinhos mais conformistas. A análise de Muchembled o faz perceber que neste universo social o diabo não
teve espaço e recuou, pois a filosofia do prazer pessoal e da busca pela felicidade o fez recuar. Apesar de a
juventude do início do século XXI ainda ler os quadrinhos daquela época, os imaginários que se superpuseram
aos outros não os permitem que ela se reconheça nesses quadrinhos.
É interessante que na literatura as imagens do mal são reescritas pelos processos culturais diversificados
desenvolvidos. Como “filho de seu tempo”, o diabo assume características diferentes, em diferentes épocas,
por isso, Muchembled faz uma análise do mal na produção cultural européia (cinema, literatura, religião). Há
uma grande riqueza que precisa ser adequadamente discutida, seja na literatura existencialista de Albert Camus,
na fantástica de Gabriel García Márquez, ou na regionalista de João Guimarães Rosa, que salientam a diversidade
da experiência do mal na história das culturas.4
O mal é destacadamente tema fundamental para a vida, portanto a Literatura não pode deixar de descrevêlo em seus variados aspectos e a Teologia não pode se esquivar do tema. Guimarães Rosa investiu na temática
e a questão do bem e do mal faz parte dos temas moventes na obra Grande sertão: veredas. Nesse sentido, a
religião aparece como tema transversal movente que perpassa todo o texto. Com isso, Grande sertão: veredas
surge como intérprete do fenômeno religioso, contribuindo assim com o diálogo entre teologia e literatura.5
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O lugar da religião no pensamento de Guimarães Rosa
Na obra Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa, Suzi Frankl Sperber6 pesquisou a biblioteca de Guimarães
Rosa e ali viu algumas obras que podem ter influenciado o pensamento do escritor mineiro de Cordisburgo.
Sua biblioteca chama a atenção pela ênfase nas questões “esprituais”. As imagens de Deus se espalham e
ficam misturadas. Ali, não são imagens definidas de Deus que chamam a atenção, mas a variedade. Não há,
por assim dizer, uma linha teológica, antes um sincretismo: esoterismo, Bíblia, Chandogya Upanishad, Platão,
Sertillanges, Romano Guardini, Plotino e o Christian Science. Uma seqüência nas influências espirituais não se
aplica a Guimarães Rosa. Riobaldo, o protagonista e narrador de Grande sertão: veredas, fala da centralidade da
religião e da necessidade de “muita religião” para a vida.
Todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para
se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu
moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca,
talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina
dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubin, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de
pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me
refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus
é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – O que faço, que quero, muita curial. E em cara de todos faço,
executado. Eu? – não tresmalho!7
Eis a visão inclusiva de Riobaldo. A sua pluralidade religiosa supracitada reflete a variedade e a
complexidade da própria vida concreta, que não se deixa capturar em apenas uma interpretação ou versão da
religião. É pouco, é muito. Muitas religiões servem para dar respostas, significar mais a vida multifacetada,
inquieta e desejosa de respostas.
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É importante destacar que a religião não é um tema acidental, periférico ou descomprometido na obra de
Guimarães Rosa. No estudo da Bíblia, por exemplo, suas anotações dão conta do valor que as escrituras têm
para sua vida e para suas obras e, conforme Sperber diz:
As observações marginais – ingênuas – parecem indicativos de um cristianismo sui generis. Um cristianismo de
fé e oração, um cristianismo em que o Espírito Santo teria algo de milagroso, de mediador com a transcendência –
inerente à sua natureza intrínseca – mas não forçosa e indissoluvelmente ligado ao Pai e ao Filho.8
Mas Sperber ainda vai além e afirma que “as leituras roseanas são sui-generis, indubitavelmente. Ao
invés de comentar, à margem, o tema religioso (a fé), Guimarães Rosa faz ilações, neste exemplar, que pressupõem
leituras filosóficas e alquímicas anteriores.”9 Guimarães Rosa não é somente um admirador passivo e inocente
fiel do tema religioso, mas se mostra também com uma formação abrangente e sólida no tema religioso.
De Romano Guardini, por exemplo, Guimarães Rosa hauriu seu conceito de fé, que “não é fraqueza, é
forte, rija, sadia, ativa.”10 Além disso, aprendeu com Guardini “temas como o medo, o mal, a morte e os
defeitos humanos como condições da finitude do homem, expressos na incoerência, no medo, na fraqueza,
sendo que o maior deles é o medo.”11
Outros trabalhos também destacaram, acertadamente, a importância que Guimarães Rosa deu à religião.
O estudo de Francis Utéza resultou na obra Metafísica do Grande sertão, que marca significativamente os estudos
sobre a questão religiosa na obra roseana, todavia, ela limita a discussão à questão esotérica, não abarcando
outras tradições religiosas. Com isso, ficaram de fora das discussões temas fundamentais do Grande sertão:
veredas, como a problemática do mal e o pacto com o diabo, por exemplo.12
É exatamente o que nos interessa aqui, isto é, a questão fundamental que perpassa o romance Grande
sertão: veredas: o questionamento do mal, que atravessa toda a existência humana e não apenas a Riobaldo.
Então, como surge o mal? O diabo existe ou não? Como é possível falar do mal?
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Possibilidades interpretativas
Segundo José Carlos Garbulio,13 em seu estudo realizado sobre o Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa
apresenta uma estrutura narrativa quase que constantemente bipolar. Com isso, ele afirma que a narrativa
roseana comporta sempre dois planos de expressão: um plano é objetivo. Compreende a história, pois ali
acontecem os eventos e ali estão as personagens; o segundo plano é subjetivo e o olhar recai sobre os
acontecimentos, a fim de encontrar as explicações que estão além daquilo que está posto.
Tematizando um pouco mais: no primeiro plano da narrativa – o histórico – estão as ações e as personagens,
é o enunciado, aquilo que está posto. Este é o plano passado, o tempo em que ocorrem os eventos narrados.
No caso do Grande sertão: veredas é a vida de Riobaldo desde a infância até o momento em que deixa a
jagunçagem, passando pelo encontro com Diadorim, seu amor por ele/ela, que morre na batalha com os
inimigos de Joca Ramiro, seu pai.
O segundo plano da narrativa se interessa pelo como. É a enunciação, aquilo que não está dito, o que pode
vir à tona. Nesse sentido, pode-se dizer que é o plano do tempo presente, ou seja, é a narração de Riobaldo ao
seu hóspede que veio da cidade. Trata-se, portanto, do tempo não apenas da narração em si, mas também da
reflexão, ou do filosofar do narrador sobre suas experiências passadas.
Considerando a pista dada acima, o enigmático e labiríntico sertão de Grande sertão: veredas é palco das
inquietações de Riobaldo e da sua busca constante de uma resposta ao problema do mal, que se dá no
(des)envolvimento envolvente da narrativa. Isso provoca sensações diversas e a certeza do incerto, do insolúvel,
por causa das muitas possibilidades existentes. Isto nos remete diretamente à riqueza do símbolo, do qual se
vale Guimarães Rosa.
Mircea Eliade considera que o símbolo é o mediador entre o divino e o sujeito humano que o experiencia.
O símbolo religioso é o meio pelo qual a possibilidade comunicativa entre o sujeito religioso e o sagrado
acontece. Segundo Eliade há sempre um outro sentido apontado pelo símbolo, além daquele que está dado,
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porque o símbolo é polissêmico e assim um acumulador de significados.14
Conforme nos ensina Paul Tillich, o símbolo autêntico é aquele que coloca o simbolizado em uma dimensão
hermenêutica, isto é, o símbolo deve ser sempre um modo de abrir e alargar o sentido pela propriedade de
participar daquilo que constitui o que é simbolizado. Assim, o símbolo não é somente um substituto, mas é
uma forma de expressão, um meio de ir além de um sentido. Sair do sentido definido é sempre a possibilidade
que é aberta pelo símbolo, pois ele aponta “para algo além”.15 O símbolo, portanto, amplia as possibilidades e
abre portas, porque está prenhe de bipolaridades, o que significa dizer que está eivado de ambigüidades,
repleto de duplicidade, cheio do é e do não é, pleno da afirmação e da negação.
Ao recurso analítico supracitado pode ser adicionado um terceiro elemento para aproximação da narrativa
e da temática do mal na obra roseana. A passagem de uma consciência mítico-religiosa para uma consciência
lógico-racional. No primeiro tipo de consciência está o jagunço-Riobaldo, tipificando as sociedades dos sertões
brasileiros e latino-americanas em geral, inclusive indígenas. Neste tipo de consciência o mundo é explicado
segundo a visão que admitia a existência de poderes superiores como Deus e o diabo, além de outros seres
misteriosos como sereias, mula-sem-cabeça, saci-pererê etc.
No segundo tipo de consciência está o Riobaldo pós-Veredas-Mortas, quando partiu a fim de fazer o
pacto com o diabo. Este tipo consciência representa a moderna civilização racionalista, com sua visão de
mundo tecnologicamente cientifizada, mecanicista, que tem o ser humano no centro de todas as coisas. Diante
dessa intrigante constatação emerge a seguinte questão: quando Riobaldo narra sua vida ao hóspede citadino
recusa a visão mítico-mágica em benefício de uma visão antropocêntrica, tipicamente moderna, cuja consciência
e razão formam o núcleo do ser humano?
Com a idéia de bipolaridade que permeia a narrativa de Guimarães Rosa, também somos convidados a
um exercício interpretativo da questão do mal em Grande sertão: veredas, que caminha em duas dimensões.
Assim, interpretar o demônio mencionado por Riobaldo, com quem este resolve fazer o pacto, é perceber a
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dupla possibilidade interpretativa ali implicada.
Carlos Nogueira em sua obra O diabo no imaginário cristão afirma que na Idade Média o diabo representa
uma figura horrenda, assustadora mesmo. Os demônios eram seres capazes de penetrar corpos humanos,
possuir a alma, e enlouquecer homens incautos e conduzi-los ao inferno. O poder do diabo e o temor a ele,
cada vez mais foram ganhando amparo na doutrina oficial da Igreja através de seus renomados intérpretes,
como Tomás de Aquino, para quem o diabo era uma “substância espiritual”, que conservava suas capacidades
naturais, mesmo depois da “queda”.16
Como o diabo tem poder de penetrar o pensamento humano, poder que enebria e fascina sua imaginação,
conduzindo-lhe a vontade, ele é portanto um inimigo digno de ser temido e combatido com o auxílio de todas
as forças celestes.
As imagens medievais sobre o demônio se contrastam com o pensamento Iluminista. Na esfera da
racionalidade moderna as imagens e representações forjadas no seio da medievalidade soam caricatas e grosseiras.
Para Nogueira, o “imaginário do demo” forja uma sociedade ocidental cristã que se afirma no contraste do
bem divino. A crença no diabo é a contrapartida da afirmação de fé cristã em Deus. Aquele que deseja o Bem
é o mesmo temente do Mal e com isso as representações simbólicas de ambos os lados da vida se dramatizaram
ao longo dos séculos. Estas representações falavam de situações humanas concretas de dor, sofrimento, morte,
debilidades física e moral, contrastado com o desejo de felicidade, paz e bem-estar.
No avançar da história, a partir das revoluções do século XVIII e o distanciamento entre a Igreja e o
Estado os discursos sobre o mal ganharam novas configurações, e Satã adquire significação positiva, a partir
do século XIX. É interessante que o diabo no romantismo simboliza o espírito livre, a vida alegre, livre da lei
da moral, rejeitando a rejeição ao mundo, conforme os ditames da Igreja. Neste sentido, satanás é liberdade,
ciência e vida.17 Bom exemplo disso é Goethe, cujo demoníaco simboliza o pleno desejo de conhecimento
científico e das forças da natureza.
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Ainda com a idéia positiva do simbolismo do diabo, Muchembled chama a atenção para o fato de que a
Europa do fim do segundo milênio assiste ao fim do diabo repugnante como elemento coercitivo. O demônio
é dotado de beleza e se torna o desejável. A tradicional idéia do inferno foi abandonada, bem como as paixões
que tomavam conta do inconsciente não precisavam ser domadas. A Revolução Francesa e outras utopias
sociais fomentaram a passagem da libertação dos povos para a liberação do indivíduo. O ser humano não
deveria mais sofrer e sim gozar a vida, plena e intensamente, mesmo com a ajuda de alucinógenos ou drogas
outras. Ocorre assim um estreitamento entre as fronteiras do Bem e do Mal. O que impera não é mais uma
visão demonizada, localizada no interior das esferas da tradição cristã. Do “esforço obrigatório” aos “direitos
fundamentais de cada um à felicidade imediata”.18 Eis a significativa mudança na civilização ocidental.
Portanto, o simbolismo do diabo não oferece apenas uma possibilidade interpretativa. De um lado, o
diabo representa uma força maligna que se contrapõe à fé cristã em Deus – conforme sedimentou o pensamento
medieval – e por outro lado, ele representa o espírito livre da moral, o prazer de viver – conforme o pensamento
iluminista.
Do mítico-religioso ao lógico-racional: a travessia de Riobaldo
O mal na sociedade profana radica-se na própria consciência do ser humano, e a tomada de consciência
da insensatez humana esvazia a idéia de homens e mulheres possuídos pelo demônio. A veiculação por meio
de um rico imaginário religioso, artístico e popular, destituiu gradativamente a figura misteriosa do demônio e
a diluiu em variadas figurações, porém percebíveis no contexto cultural.
Na consciência mítico-religiosa dos sertões brasileiros, o diabo é facilmente encontrado na representação
folclórica, conforme expressa o subtítulo da obra roseana: “o diabo na rua no meio do redemunho...” Mesmo
vivendo de modo íntimo com o ser humano, ele resguarda algum mistério, personificando a sedução da terra.
Harmonia com a natureza, através do respeito, constitui um elemento da consciência mítico-religiosa e, assim,
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acontece a preservação da relação mística com forças do bem e do mal que formam uma conspiração sedutora.
O ser humano procura se inserir nesse contexto, por meio de representações ambivalentes, em que as forças
subterrâneas emergem fantasticamente.
Esse é o mundo fantástico encontrado no Grande sertão: veredas, no qual se constrói a figura do diabo,
recebida por Riobaldo do imaginário popular. O demônio representa a falta de lógica do Grande sertão: veredas;
na verdade trata-se de uma paradoxal existência.
Na obra Veredas trágicas do “Grande sertão: veredas”, Sônia Maria Viegas Andrade, seguindo Dora Ferreira
da Silva em seu comentário sobre o diabo na obra roseana em questão, fala de uma “negatividade positiva” do
demônio, que coloca Riobaldo diante de duas possibilidades: “imanentização do mal” e projeção. Uma espécie
de maniqueísmo. Assim, nos bichos, nas plantas e nas pedras poderiam haver uma instância demoníaca pronta
para surgir a qualquer momento. O demônio como um negativo positivo deve ser entendido, portanto, dentro
da lógica do paradoxo. Isso permite explicar como no Grande sertão: veredas, o fictício aparece em pé de igualdade
com o cotidiano humano.19
Na existência do diabo o mundo é explicado no oposto, ou seja, o mundo não se deixa capturar e se
aprisionar em explicações inflexíveis, mas na sua falta de lógica ele é explicado. O diabo, então, é o que não
está posto na evidência, é o que está nos bastidores das coisas; ele é o avesso de tudo, é “o avesso do avesso do
avesso” – para lembrar as palavras de Caetano Veloso em “Sampa”. “O diabo na rua no meio do redemunho...”
Nesse contexto, a rigidez de um método mecanicista para se explicar o mundo sucumbe frente à imprevisibilidade
da “ilogicidade” do diabo, “pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa,
que se come comum, e a mandioca-brava, que mata?”20 – indaga Riobaldo, semelhante ao Jesus dos evangelhos,
que levantava questões de grande profundidade, mas com tamanha simplicidade, através de parábolas. A
dúvida glacial que nos cerca e nos deixa desejosos de resposta suscita a pergunta: a que podemos comparar isto?
E, ainda, na falta de lógica do diabo os opostos convivem e também migram, fazendo com que uma coisa
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logo surja no seu negativo. O mundo seguro e organizado se dissolve diante do trânsito de opostos.
A mandioca doce pode de repente virar azangada – motivos não sei [...] E, ora veja: a outra, a mandioca-brava,
também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal [...] E o demo – que é só assim o
significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está
misturado em tudo.21
Diante desse trânsito de opostos, e do fato de que o diabo está misturado em tudo, se torna praticamente
inevitável perguntar: “bem” e “mal” seriam, muitas vezes, uma questão de ponto de vista, um lugar a partir do
qual se mira? Responder afirmativamente à esta questão, parece que é a alternativa mais adequada. Quando
surge no avesso, o mundo existe e não existe; os contrários surgem como negações mútuas, assim tanto o bem
surge do mal como o mal surge do bem.
O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois?
Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o
barranco, sobre a cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...22
O mundo como uma totalidade fluida não se deixa explicar pelo rígido esquema mecanicista, alimentado
pelo maniqueísmo bem e mal. Dois pólos diferentes podem, assim, coexistir sem que um anule o outro, e é
nessa relação tensa e ambígua que se pode penetrar com mais profundidade a vida. Com isso, para explicar o
mundo, além da existência é necessário também a não existência do diabo. Em Grande sertão: veredas a ênfase
recai sobre os elementos de simultaneidade – positivo e negativo, criativo e destrutivo, bem e mal – porque
trata-se de uma relação dialética e assim implicam-se reciprocamente. Eis o conceito de ambigüidade; eis a
superação da visão do bem e mal como realidades dicotômicas; eis a possibilidade de compreensão do mundo
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pela confluência dos pólos. Se em Hamlet a existência se dá a partir da lógica da exclusão, em Riobaldo a
existência aponta para uma conjunção aglutinadora e que nada exclui. Ser ou não ser? Eis a questão. “É e não é”.
Eis a resposta. “O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...”23
As questões de Riobaldo são insolúveis e nelas está o demônio como realidade mítico-religiosa. Essa
realidade fantástica do demônio mostra as várias possibilidades de se olhar o mundo polissêmico, com suas
perspectivas múltiplas e complementares, mas que nunca abrangem a totalidade que se apresenta em cada
momento da vida. Sustentando esse mundo mítico-religioso, o demônio funciona como um alerta para essa
totalidade indecifrável e que não se abrange.24
O demônio é muito difuso, é desmedido, é ambíguo. O mundo de Riobaldo é demoníacamente ambíguo
e nele tudo é possível acontecer, na medida em que se estrapola as linhas divisórias da ordem, do verdadeiro,
da limpidez, neste sentido a obscuridade se torna maligna, pois é marginal. O ser humano surge neste mundo
como alguém inacabado, em aberto e aberto para o possível, tanto diabólico quanto divino.25
O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas
– mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me
alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é a às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A
força dele, que quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do
mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.26
No inacabamento do ser humano estão os pólos do mundo luminoso e do mundo sombrio. Assim, na
perspectiva da consciência, o demônio não tem mais a supremacia sobre o mundo fantástico. A idéia do Deus
que age na mansidão, se contrapõe aqui com a brutalidade do diabo. Deus é a sutileza, é o milagre, a harmonia
que perpassa os opostos e lhes reúne num todo dinâmico. Aí está um conceito de milagre que fala da presença
do mundo mítico-religioso no interior da dinâmica do real. O milagre também exige que a consciência habite,
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ao mesmo tempo, os dois mundos: o luminoso e o sombrio, o da harmonia e o da desordem. Há uma experiência
de solidão implicada nesse processo de recusa brutal do demoníaco e aceitação da insensatez da realidade
infinita diante da qual se encontra. No caso do Grande sertão: veredas, a experiência de solidão é afirmada como
introjeção do diabo, que é, por assim dizer, um driblar o diabo, é o enfrentamento do infinito.
À medida que o diabo vai sendo introjetado, suas representações folclóricas vão diminuindo. Dentro do
humano ele seria a voz da consciência e o momento em que se inaugura a crise da consciência – ou a passagem
para consciência lógico-racional –, que é a cena do “pacto”27.
Devemos dizer, portanto, que o pacto é a aquisição da consciência – de liberdade e de coragem. Essa
consciência do Grande sertão: veredas é o demônio socrático.28 Riobaldo, nas Veredas-Mortas, ávido por um
sinal, não recebe mais do que o silêncio. “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.”29 Esta
experiência é o início do drama da subjetividade que precisa assumir o mal. É a experiência trágica do absoluto,
da infinidade negativa. Na não realização do diabo está caracterizada a experiência da negatividade, e a cena
do pacto, que privilegia o ser, representa, para a consciência, o enfrentamento com o nada. Nessa experiência
de encontro consigo mesmo na encruzilhada de total escuridão, Riobaldo percebe que ali era ele mesmo, como
que diante de um espelho. Lembra-nos o conto O espelho30, em que o narrador também se espanta ao se descobrir
refletido num espelho. Um espelho que reflete o terrível de si mesmo, o próprio engodo que é a aparência
humana.
Contribuições de Grande sertão: veredas à Teologia: notas inconclusas
Há mais do que a dialética racional e irracional, mais de um modo de se explicar o mundo e a existência
humana, que estão além das definições. Esta é uma contribuição da obra roseana para o trabalho teológico. O
discurso está estabelecido no Grande sertão: veredas, porém não definido, pois está em fase de definição, num
estado de inacabamento e aberto a infinitas possibilidades de reconfiguração. Não deve ser assim o discurso
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da fé? Sempre em fase de definição, de (re)definição constante para o viver diário. Tantas quantas forem
necessárias deveria ser recomposta a vida de fé.
A ênfase da narrativa está na espacialidade em detrimento da temporalidade. O espaço subverte o tempo,
que se dilata e se intensifica. “É esta abertura para o espaço que conduz para o infinito as buscas de Riobaldo.”31
A Teologia oficial sempre foi unicamente temporal, baseou sua Escatologia dependente da história e do tempo.
Em Grande sertão: veredas a Teologia é convidada a migrar para o espaço, a fim de que no fazimento do discurso
da fé o corpo não seja deixado de fora, mas que seja paradigma nas variadas expressões e contingências. Nesta
obra roseana ocorre a libertação do ser humano do peso da temporalidade.
Uma Teologia inclusiva, portanto, é o que se exige. Uma Teologia que (con)funda pensamentos diversos,
agregando escatologias, cosmogonias, enfim, que seja dialógica. É um grande desafio construir uma teologia
que seja inclusiva, em detrimento de um modo de pensar cismático, intolerante e exclusivo. Assim, pensar o
mal a partir da obra roseana e perguntar pelo seu surgimento é fazer coro com Paul Ricouer32 e dizer que ele é
um grande desafio à Teologia, pois mostra a limitação da problemática do mal no interior do quadro
argumentativo da teodicéia. É cair, portanto, em um terreno extremamente instável, pois é de um lugar
insondável que o mal surge, do silêncio que se quebra na fala quebrada e linguagem truncada de Riobaldo, e
faz com que estejamos diante do incerto. O mal ontológico se esfacela, pois ele está nas veredas da vida, nos
questionamentos da existência humana.
Ora, após o silêncio permanecem os questionamentos da existência humana; no lugar da certeza acerca
da origem do mal, a dúvida é o que se percebe. Ou seja, ao que parece o esquema teológico pergunta-resposta,
consagrado a partir da segunda metade de século XX, no qual pressupunha que a revelação cristã era capaz de
oferecer respostas às grandes questões da humanidade, tanto na perspectiva metafísico-transdendente, quanto
na perspectiva ético-política, se configura como demasiadamente estreito. Nesse esquema teológico, Deus é
apresentado como “sentido último” para a existência, identificado com qualquer tipo de ordem do mundo.
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Nesse sentido, assim como a revelação cristã não deve ser identificada com a solução de todas as questões,
também a Teologia não pode avançar em certezas superficiais na tentativa de apressadamente produzir sentido.33
Assim, a teologia deve se abrir para afirmar Deus como sentido último da existência e também como crise de
sentido e pergunta aberta, pois do contrário teria como base uma pretensão de totalidade.34 Nos questionamentos
sobre o mal, Riobaldo permite-nos que pensemos em Teologia muito mais como pergunta do que como resposta.
Portanto, a inquietação deve ser afirmada e não descartada da fé cristã, assim como a resposta não deve surgir
para calar as perguntas que inquietam a existência humana.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Sônia Maria Viegas. Veredas trágicas do “Grande sertão: veredas”. São Paulo: Loyola, 1985.
BARCELLOS, José Carlos. Fé cristã e crise de sentido. In.: BINGEMER, Maria Clara L. e YUNES, Eliana.
Murilo, Cecília e Drummond. 100 anos de poesia brasileira. Rio de Janeiro/São Paulo: Centro Loyola de Fé e
Cultura/Loyola, 2004.
CARVALHAES, Cláudio. Teologia e literatura: João Guimarães Rosa – A terceira margem do rio. In: teologia
e literatura. Cadernos de Pós-Graduação em Ciências da Religião 9. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997.
CROATTO, José Severino. Los lenguajes de la experiencia religiosa: estudo fenomenologia de la religíon. Buenos
Aires: Docência, 1994.
GARBULIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972.
KUSCHEL, Karl-Joseph. Os escritores e a escritura. Retratos teológicos-literários. São Paulo: Loyola, 2001.
MAGALHÃES, Antonio Carlos Melo. Representações do bem e o mal em perspectiva teológico-literária:
reflexões a partir de diálogo com Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa. In.: Estudos de Religião 24.
São Bernardo do Campo: UMESP, 2003.
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MUCHEMBLED, Robert. O prazer ou o terror. Demônios do final do segundo milênio. In.: Uma história do
diabo. Século XII – XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.
NOGUEIRA, Carlos. O diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, 2002.
RICOUER, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus, 1988.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROSA, João Guimarães. O espelho. In.: Primeiras estórias. 14 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985, p. 6572.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.
SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: secretaria da Cultura, 1976.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
UTEZA, Fracis. JGR – Metafísica do Grande Sertão. São Paulo: Edusp. 1994.
NOTAS
1
SANTO AGOSTINHO. Confissões, 1973, p. 132-133.
2
MAGALHÃES, Antônio Carlos Melo. A questão do mal na teologia e literatura, 2002.
3
MUCHEMBLED, Robert. O prazer ou o terror, 2001, p. 303.
4
MAGALHÃES, Antônio Carlos Melo. Representações do bem e o mal em perspectiva teológico-literária, 2003, p. 83.
5
MAGALHÃES, Antônio Carlos Melo. Representações do bem e o mal em perspectiva teológico-literária, 2003, p. 84.
6
SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa, 1976.
7
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, 2001, p. 32.
8
SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa, 1976, p. 40.
9
Idem, p. 54.
10
Idem, p. 94.
11
CARVALHAES, Cláudio. Teologia e literatura: João Guimarães Rosa – A terceira margem do rio, 1997, p. 47.
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MAGALHÃES, Antonio Carlos Melo, Representações do bem e o mal em perspectiva teológico-literária: reflexões a partir de diálogo
com
Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa, 2003, p. 87
13
GARBULIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa, 1972.
14
CROATTO, José Severino. Los lenguajes de la experiencia religiosa: estudo fenomenologia de la religíon, 1994, p. 61-80.
15
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, 1987, p. 202.
16
AQUINO, Tomás de. Summa theologica, p. 64. Citado por NOGUEIRA, Carlos. O diabo no imaginário cristão, 2002, p. 54.
17
NOGUEIRA, Carlos. O diabo no imaginário cristão, 2002, p. 104.
18
Idem, p. 299.
19
ANDRADE, Sônia Maria Viegas. Veredas trágicas do “Grande sertão: veredas”, 1985, p. 60.
20
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, 2001, p. 27.
21
Idem.
22
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, 2001, p. 26.
23
Idem, p. 27. O grifo é meu.
24
ANDRADE, Sônia Maria Viegas, Veredas trágicas do “Grande sertão: veredas”, 1985, p. 62
25
Idem, p. 63.
26
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, 2001, p. 39.
27
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, 2001, p. 434.
28
SPERBER, Suzi Frankl., Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa, 1976, p. 75.
29
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, p. 438.
30
ROSA, João Guimarães. O espelho, 1985, p. 65-72.
31
SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa, 1976, p. 129.
32
RICOUER, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia, 1988.
33
KUSCHEL, Karl-Joseph. Os escritores e a escritura, p. 220-21.
34
BARCELLOS, José Carlos. Fé cristã e crise de sentido, p. 117.
12
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LÉLIA PARREIRA DUARTE (PUC MINAS)
Resumo:
Este meu trabalho é uma reflexão que se insere na pesquisa do grupo que se intitula “As máscaras de
Perséfone: figurações da morte nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas” e que acaba de publicar o
seu primeiro livro (Editora PUC Minas, de Belo Horizonte, e Bruxedo, do Rio de Janeiro).
Os textos estudados nessa pesquisa focalizam a crise da representação, iniciada no Romantismo com a ironia
romântica, e se caracterizam por tentar fazer sobressair menos o sentido que a linguagem, mais o trabalho de
escrita e sua dimensão performativa que as possibilidades pedagógicas da literatura. Trata-se de textos que
exercitam mais a voz e o murmúrio que a possibilidade de dizer, tecendo assim uma trama que se configura como
um exemplo da literatura do “não”, aquela que lida com o vazio e, por isso mesmo, questiona qualquer
ideologia. Ao trabalhar com ambigüidades, esses textos brincam com a morte e falam da impossibilidade da
obra, atingindo então a própria essência da literatura, pois apresentam o neutro, a exterioridade e o vazio como
a potencialidade que engendra o saber literário, em que o eu que fala não é um eu, mas uma representação, uma
construção de linguagem.
A revitalização da linguagem em Guimarães Rosa em “Cara-de-bronze”:
ambiguidades e trapaças que vencem a impossibilidade de dizer
Este meu trabalho é uma reflexão que se insere na pesquisa do grupo que se intitula “As máscaras de
Perséfone: figurações da morte nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas” e que acaba de publicar
o seu primeiro livro (Editora PUC Minas, de Belo Horizonte, e Bruxedo, do Rio de Janeiro).
Os textos estudados nessa pesquisa focalizam a crise da representação, iniciada no Romantismo com
a ironia romântica, e se caracterizam por tentar fazer sobressair menos o sentido que a linguagem, mais o
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trabalho de escrita e sua dimensão performativa que as possibilidades pedagógicas da literatura. Trata-se de
textos que exercitam mais a voz e o murmúrio que a possibilidade de dizer, tecendo assim uma trama que se
configura como um exemplo da literatura do “não”, aquela que lida com o vazio e, por isso mesmo, questiona
qualquer ideologia. Ao trabalhar com ambigüidades, esses textos brincam com a morte e falam da
impossibilidade da obra, atingindo então a própria essência da literatura, pois apresentam o neutro, a
exterioridade e o vazio como a potencialidade que engendra o saber literário, em que o eu que fala não é um
eu, mas uma representação, uma construção de linguagem.
Estudar essas obras literárias é, portanto, uma forma de melhor sondar e compreender os saberes de
uma escrita que privilegia questões de textualidade e leitura. Trata-se de textos que se ironizam a si mesmos:
confessando-se artefato, artifício, elaboração, jogo, arte, revelam consciência de seu caráter de linguagem,
exibição do vazio e da falta que caracterizam o sujeito. Constituem o corpus da pesquisa: textos que não
procuram passar um sentido, não trazem uma verdade, não apresentam a voz de uma autoridade (de um autor
que sabe e pode falar), não pretendem que a literatura seja a representação de algo fora dela.
E aqui chego a Guimarães Rosa e ao seu “Cara-de-bronze”, pois parece-me que, como outros textos
estudados em nossa pesquisa, também este elabora simplesmente o desejo de fazer contato com o outro, sem
apresentar modelos ou verdades. Dirige-se ele a um outro que vive a mesma curiosidade insatisfeita, indicadora
de angústias, ansiedades e frustrações. E certamente por isso desperta tanta curiosidade aquela sedutora
sereia que aparece como a Noiva fantasmática supostamente trazida pelo Grivo de sua viagem. Através
dessa noiva insere-se no texto o tema do amor, como apontou Benedito Nunes. Tema que se apresenta
entretanto apenas como uma sugestão de dúvidas: teria o Grivo com ela se casado? Ou seria ela a outra, a
Muito Branca, que reúne as figuras míticas da Terra Mãe, da Terra Primordial e da Árvore da Vida? Lembrese que, mesmo quando uma personagem do conto - Iàs-Flores - parece descrevê-la (“Vocês viajem êsse rio
Urucúia, pra baixo, pra riba, e não é capaz de se encontrar outra mulher tão bonita se penteando...” (p. 95)),
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continua a dúvida, expressa pelo vaqueiro Pedro Franciano: “Ué, então êle trouxe a Mãe-d’Água?!...” (p. 96).
Qual seria, então, o significado dessa noiva na estória? Se muitas vozes falam dela, se ela se configura
certamente como objeto de desejo, nada de concreto se pode apurar a seu respeito, de modo que Ela pode ser
também a inexistente, a desejada que indica o amor que falta, ou ainda a que existe apenas pela criação
poética, pela narrativa, feita de palavras, esses “nadas etéreos” que nada dizem, nada afirmam, mas por isso
mesmo recuperam a potencialidade criadora do Verbo.
O mistério insolúvel daquela suposta noiva é apenas um dos elementos com que o texto de “Cara-debronze” excita o desejo de saber. Pois a todo momento ele refere também a curiosidade dos vaqueiros/
trabalhadores e dos compradores que vieram de fora, irmanados na busca de compreender o enigma da figura
estranha e oculta do Cara-de-bronze, figura enigmática feita de palavras, meio gente, meio terra, com a sua
“cabeça encalombada de bossas – como se dela fossem brotar idades e montanhas”. (ROSA, 1969, p. 98). Ou
“Seria lepra? Lepra, mal-de-lázaro, devia de ser, encontrar-se um rico fazendeiro nesse estado não era raridade”
(p. 97).
Ninguém sabe de onde veio o Velho; quando chegou “Parecia fugido de tôdas as partes” (p. 84), diz o
vaqueiro Tadeu, que entretanto completa: “Sei que não sei, de nunca” (p. 84), pois tudo o que ele sabe é por
ouvir de outros: “Êle era para espantos. Endividado de ambição, endoidecido de querer ir arriba (...) Tinha de
ser dono. Vocês sabem, sabem, sabem: êle era assim”. (p. 84-85)
O poder do Cara-de-bronze é inqüestionável: resguardado no seu “quarto de achacado”, ele dá ordens,
mas permanece invisível. E quando Moimechêgo quer saber “Como é o homem, então, em tudo por tudo?” (p.
86), parece surgir a suspeita de que ele quisesse esconder-se, o que se poderia relacionar com as viagens /
buscas encomendadas ao Grivo, e até com a história contada pelo vaqueiro Tadeu do moço que, alvejado pelo
pai, atira nele e vê-o cair, fugindo em seguida, para saber apenas quarenta anos depois que o pai caíra de
bêbado... (p. 126).
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O retrato do Cara-de-bronze é feito em tom de ladainha pelos vaqueiros e constrói-se como que em
mosaico, com pequenos elementos, muitas vezes contraditórios. Psicologicamente, seria ele “Teimosão calado”
(p. 89), que gosta de contradizer, “Mas acredita em mentiras, mesmo sabendo que mentira é”; não gosta de
nada, “Mas gosta de tudo. É um homem que só sabe mandar. Mas a gente não sabe quando foi que êle
mandou” (p. 89). Em conclusão, ninguém sabe dizer se Cara-de-bronze é bom ou ruim, numa dúvida expressa
pelo vaqueiro Tadeu: “Quem é que é bom? Quem é que é ruim?” (p. 90). E o vaqueiro Mainarte conclui: “Pois
êle é, é: bom no sol e ruim na lua... é o que eu acho...”(p. 90). Apenas suposições, nenhuma certeza...
A partir desse retrato oscilante e duvidoso, Cara-de-bronze parece configurar-se afinal como uma
construção de linguagem, uma figura literária, no sentido de que fala Maurice Blanchot: a literatura é, não diz.
Por isso é difícil compreender até mesmo o seu nome oscilante, que lembra o famigerado com suas dúvidas:
“fasmisgerado... faz-me gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?” (ROSA, 2001, p. 59). Segundo os vaqueiros, o
Cara-de-bronze seria o “Velho”, Sigisbé, Sejisbel Saturnim (com numerosas variações na voz dos vaqueiros) ,
Xezisbéo Saturnim, Jizisbéu, Zijisbéu Saturnim, Jizisbéu Saturnim, e ainda Sezisbério e Segisberto Saturnino
Jéia Velho, Filho.
A instabilidade do nome é reafirmada quando ele mesmo lhe retira o “Filho”. Nunca quis ser pai, e ao
colocar / retirar o “Filho” do nome como que aceita / recusa o pai, bambeando as amarras que lhe dariam
ascendência e significação, talvez porque, como diz o cantador, o nome estivesse ligado à idéia de sofrimento:
“meu nome com o meu penar...” (p. 79).
Todas essas dúvidas do texto se renovam no relato da chegada do Grivo, pois não se sabe ao certo o
que foi ele fazer nessa viagem de dois anos, e nem o que teria trazido para o patrão que, segundo alguns,
estaria para morrer, vendendo terras, fazendo testamentos e mudando nomes de suas propriedades, crismando
a Vereda-do-Sapal de Buriti de Inácia Vaz, nome que poderia ser o de sua mãe. Novamente a sucessão de
nomes, nesse relato em que o cozinheiro-de-boiada Massacongo parece saber o que aconteceu, mas confessa
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ser apenas um retransmissor do que ouviu, sem garantia de verdade: “O Peralta contou à Iàs Flôres, Iàs Flores
contou a Maria Fé, Maria Fé contou à Colomira, aí Colomira me disse. Daí é que eu sei... Vou indo!” (p. 81).
“Cara-de-bronze” parece assim trabalhar também a questão da “espera”, de que fala Ettore FinazziAgrò relativamente ao Grande sertão: veredas: o velho fazendeiro aguarda o Grivo que foi buscar a poesia e tem
um interminável relato a fazer; os vaqueiros/trabalhadores e os que vieram de fora também aguardam o relato
do viajante, esperando assim compreender o enigma daquela noiva feita apenas de palavras.
Quando o narrador da estória confessa, quase a meio da novela, as dificuldades de sua tarefa, ele
também fala de espera, mostrando sua expectativa relativamente à recepção de seu texto:
Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no
arenoso. Alguns dela não vão gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas – também a gente vive
sempre sòmente é espreitando e querendo que chegue o têrmo da morte? (p. 96)1
Também a nossa leitura elabora uma espera, sempre em busca desse final prometido que nunca chega
e que nos mantém presos e intrigados até a não-revelação que fecha a estrutura teatral da novela, que assim
termina:
“Voz e riso de um (do escuro): ...de mim, eu é que sei...
Outro (gritando, acolá): Que foi, Cipas?
O vaqueiro Muçapira:
– Estou escutando a sêde do gado”. (ROSA, 1969, p. 127)
Se a pergunta vem do escuro, a resposta nada esclarece, confirmando a impossibilidade de dizer e a
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incompletude que caracteriza essa literatura. Seu objetivo parece ser apenas o de fazer contato: seu jogo
inconcluso foge ao senso comum, reconhecendo entretanto o outro como outro e, sem soluções possíveis mas
num devir constante, afirma ambiguamente ao mesmo tempo a morte e a vida.
Talvez por isso mesmo Guimarães Rosa tenha denominado “Cara-de-bronze”, inicialmente, de “poema”.
Seu primeiro título foi “A viagem do Grivo”, sendo que o motivo da viagem, presente anteriormente em
outros textos do autor, torna-se, neste, tema central, como lembra Benedito Nunes em seu estudo de 1969.
“Cara-de-bronze” se caracterizaria, ainda, pela estrutura polimórfica, polifônica e dialógica, e pelo horizonte
mítico-literário, em sua demanda da Palavra e da Criação poética. (NUNES, 1969, p. 181)
Interessa-me aqui de modo especial esse fato de Rosa ter denominado poema o seu “Cara-de-bronze,
bem como a questão de a novela multiplicar estórias e hipóteses de estórias, narradores e narratários, em
versões que não combinam mas que pacificamente convivem em irresolvíveis enigmas. O que fica de todos os
boatos, suposições e meias palavras de que se entretece a novela parece centralizar-se na figura do Cara-debronze e em sua mudança: se ele sempre tinha sido homem-senhor, indagador, que geria suas posses e ampliava
seu poder, passou a querer noticiazinhas, sem proveito: “Agora êle indagava engraçadas bobéias, como estivesse
caducável”. Queria “O que não se vê de propósito e fica dos lados do rumo. Tudo o que acontece miudim,
momenteiro. Ou o que vive por si, vai, estrada vaga...” (p. 100).
A figura central da narrativa é um Cara-de-bronze velho, doente, paralizado, desconforme e deformado,
“olhando no espelho da velhice”, e que parece pretender desfazer-se com pressa das riquezas (o que explica a
urgência dos negócios e a entrega das boiadas), para entregar-se à degustação do “que no comum não se vê:
essas coisas de que ninguém não faz conta...” (p. 105). Envia então seus emissários, colocando-os à prova,
com a recomendação: “Tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do dôido
rojão das coisas proveitosas”. (p. 105) Escolhido como o mais capaz, o Grivo é então mandado em viagem,
“no ignoro. Nos outonos. Para chorar noites e beber auroras.” (p. 110). Percebendo que todos os valores são
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culturais: “Então, perde tôdas as vergonhas que teve...” (p. 112), entende que o importante é o reconhecimento
do outro e descobre que “Tôda árvore, tôda planta, demuda de nome quase que em cada palmo de légua, por
aí...” (p. 108). Se os nomes variavam, podia ele inventar caridades gentis, quando alguém pedia notícia de um
desaparecido (p. 119). Ou então podia despedir-se de forma primitiva de amigos novos: “– Daí, já de longe,
abriu num avançado de abôio, sem fim nenhum, em que entravam gemidos e rezações com exato de um bicho
animal...” (p. 120)
Essa referência faz lembrar o estudo de Blanchot de um conto de Tolstoi, em que Brekhunov, o rico e
bem sucedido comerciante, perdido na neve com seu criado Nikita, tenta reanimá-lo e impedir a sua morte,
até que percebe, com uma alegria particular, a própria debilidade, o que o leva ao movimento incompreensível
de deitar-se sobre o criado enregelado, vendo-o certamente como o seu outro. Não seria também o
reconhecimento do outro o que teria levado Grivo e o vaqueiro a se entenderem como bichos animais? Não
seria esse mesmo reconhecimento o que levaria Cara-de-bronze a enviar o Grivo em viagem, entendendo-se
os dois através de expressões poéticas desprovidas de pragmático sentido ligado ao poder? Não seria assim
que ambos podiam brincar com a morte e encontrar a literatura - a poesia -, ignorando a aproximação do fim?
Em sua conjugação criadora, “Cara-de-bronze” elabora vários mundos num tecido poético: inicialmente
os Gerais do trovão e do vento, na amplidão do sertão, com seu grameal, seu agreste, suas veredas e seus
buritizais, e em que o homem é sempre um cavaleiro pequenininho, como que indefeso, “curvado sempre
sobre o arção e o curto da crina do cavalo”, sem nome. Dentro da realidade desse mundo desmedido e
inóspito, em evidente contraste, integra-se a fazenda de gado do Urubuquaquá, com seu mato-grosso, as
pastagens, a vacaria e o gadame, num mundo que “desmede os recantos”. Nesse mundo a riqueza é “dada e
feita”, evidente nas referências às várias boiadas, aos numerosos vaqueiros e à solidez da casa assentada, com
madeiras de lei, “num pendor de bacia” (p. 73), que configuram o indiscutível poder de seu dono.
Mas essa casa forte, aparentemente integrada no mundo concreto da realidade, adquire aspecto
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fantasmático, como que passando para um mundo virtual, o da potencialidade das palavras, quando se nomeia
Cara-de-bronze o seu dono e se informa que, num intervalo do trabalho pesado, em que “o gado era feroz”,
“nesse dia em feio assim, com carregume, malino e chuvisco, rabisco de raios”, os vaqueiros formam grupos
de conversa e discutem “o azonzo de alguma coisa”, anunciada nas primeiras coplas do violeiro.
Buriti – minha palmeira?
Já chegou um viajor...
Não encontra o céu sereno...
Já chegou um viajor...
Buriti, minha palmeira,
é de todo viajor...
Dono dela é o céu sereno,
dono de mim é o meu amor...
A voz desse violeiro poderia ser vista como a voz intemporal da poesia: significativamente chama-se
ele “João Fulano”, é “conominado Quantidades” e está “sempre cantando modas novas, que carece de tirar do
juízo” (p. 77). Com ele surgem os temas da novela: a viagem e o amor, integrados ambos num mundo que não
é o do pragmatismo, do poder ou do trabalho, mas o da potencialidade criadora de palavras que paradoxalmente
se contradizem, desestabilizando o relato com incertezas e dúvidas, pois no desenvolvimento da narrativa,
não se concretizam eles em acontecimentos, permanecendo no campo da sugestão.
O que se acentua, sugestivamente, é a curiosidade dos vaqueiros, os que trabalham na fazenda e os
que vêm comprar gado e se configuram, em intervalos do trabalho, como narratários da estória, representando
assim intradiegeticamente os leitores da novela e insuflando também a sua curiosidade, o que vale dizer: o seu
desejo de saber, de dominar o sentido.
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Constantemente falam eles de sua atenção “no que dentro da Casa estaria acontecendo” (p. 76), ou
fazem perguntas sobre o Velho, sobre o Grivo e sua suposta noiva, sem conseguir informações satisfatórias,
como se também no plano dos acontecimentos houvesse a mesma instabilidade do chão oscilante em que
pisavam: “Travavam-se no barro, de enlôo, calcurriando nas poças ou se desequilibrando no tauá de tijuco,
que labêia e derreita feito ralo excremento de morcêgo em laje de lapa” (p. 75). É como se essa instabilidade
que caracterizava os bois, em seu movimento que semelhava o das ondas do mar pois, “de vezvez destornavamse, regiro-giro, se amontoando, resvalões, pinotes pesados, relando corpos e com chispas de chifres” (p. 75),
indicasse também o sentido instável e fugidio da narrativa.
De outras mobilidades constrói-se ainda “Cara-de-bronze”: há momentos em que parece peça teatral
ou proposta de filme, pois as cenas se sucedem, com marcação de espaços e falas e as intermitências de um
cantador que marca os temas da viagem e do amor; a disposição do texto na página indica, em alguns momentos,
a possibilidade de se pretender ali um poema; já a indagação constante sugere enigmas e mistérios de uma
novela policial ou de uma adivinha, como aquelas de um dos prefácios de Tutaméia. Se no enunciado do texto
se encaixam várias pequenas estórias, também em sua enunciação apresenta ele uma estrutura em abismo:
narrada inicialmente em terceira pessoa, com diálogos encenados teatralmente, trovas de um “Cantador” e
descrições do cenário e do ‘Cara-de-bronze’ em mosaico / ladainha, mais ou menos a meio do texto surge
entretanto uma voz em primeira pessoa, numa referência ao dificultoso processo de construir essa estória que
deve ser seguida “olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto” (p. 96). O paradoxo acentua a
ironia com que toda afirmativa é colocada em dúvida, como acentua esse narrador, que relaciona narrativa e
morte (p. 96), sugerindo que sua narração esconde segredos, pois não houve testemunha do que o Grivo
contou ao Cara-de-bronze, grande senhor cercado por mistérios: “Oé, o Cara-de-bronze tinha uma gota-d’água
dentro de seu coração. Achou o que tinha. Pensou. Quis. Mas isto são coisas deduzidas, ou adivinhadas, que
êle não cedeu confidência a ninguém”. (p. 99)
Deduzidas ou adivinhadas também por nós, leitores extradiegéticos dessa estória estranha, exemplo de
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uma literatura que se volta para (ou até contra) si mesma, em que o eu que fala é como um ventríloquo ou uma
máscara que murmura – é um outro. Trata-se, portanto, de uma literatura que funda a sua própria realidade,
que é obscura, ambígua, desconhecida, não contando com qualquer dialética que possa dar-lhe uma síntese ou
um sentido, indicando a existência de uma identidade secreta entre morrer (ou experimentar a morte) e cantar.
Como outros textos estudados na pesquisa “As máscaras de Perséfone”, creio que Guimarães Rosa
parte, em ‘Cara-de-bronze”, do princípio de que o usuário da linguagem é um assujeitado – às normas culturais,
à gramática com que escreve, à inexorável morte. A criatividade da literatura está assim ligada a esse
“desobramento” que desarticula propósitos e desautoriza “verdades”, abrindo espaço para o contato com o
outro, contato vazio entretanto de propostas e de significações.
Como “Cara-de-bronze” são as narrativas de que se ocupam as máscaras de Perséfone: tratam elas de
morte, de frustrações, de questionamento de “verdades”, de enfrentamento do vazio e da morte. O seu ponto
de partida é a “outra noite” de que fala Blanchot, em que o animal deve ouvir o outro animal, num sussurro
imperceptível, num ruído que mal se distingue do silêncio. Essa linguagem não defende um ponto de vista;
não quer persuadir, ao contrário: ela confessa a sua ambigüidade, mostrando que a palavra literária tem uso
próprio, é fundadora de sua própria realidade.
Essa arte se entrega assim ao não-essencial, configurado entretanto ele mesmo como essencial, pois a
sua linguagem não é um meio de dizer algo; ela não é um instrumento, pois as palavras perdem nela a sua
função designativa e, passando a ter uma finalidade em si mesmas, criam o objeto, ao invés de representá-lo.
Paradoxalmente, apesar de elaborar temas negativos como a perda, a doença, a morte, o desejo insatisfeito e
a impossibilidade do saber, constroem-se elas com extraordinária leveza, fazendo uma afirmação da vida e
estabelecendo contato com o outro, também desvalido e frustrado desejante.
Concluo, então: a meu ver, “Cara-de-bronze” não usa uma linguagem transparente que promete a paz,
porque é paradoxalmente a realização de uma irrealização. Por isso mesmo, poderia ser visto como explicitação
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da perspectiva de que a arte literária falseia, não por mentir, mas por falar do que não sabe e do que não pode
ser dito, em seu registro constante do “estar a morrer”. A única certeza que essa novela pode trazer – a
verdade secreta do escritor –, expressa também em muitos outros textos de Guimarães Rosa, é de que a
literatura usa a história, a geografia, a filosofia, a mitologia e tantas outras ciências, sem conseguir entretanto
(ou até sem pretender?) fazer de um eu caótico, descontínuo e contraditório, um ser uno e coerente.
Especialmente porque usa as ambigüidades e trapaças de uma linguagem que, revitalizando uma
potencialidade desvirtuada e comprometida com o poder, constrói-se como aquela literatura de que fala
Blanchot, e que começa quando se torna uma questão: o seu ideal é falar para nada dizer. Pois também o Carade-bronze testemunha: “Existe é homem humano. Travessia.”
Referências:
BLANCHOT, Maurice. O lado de fora, a noite. In: O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 163-171.
NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 181-195.
ROSA, João Guimarães. ‘Cara-de-bronze’. In: No Urubùquaquá, no Pinhém. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1969, p. 73-130.
ROSA, João Guimarães. Famigerado. In: Primeiras estórias. 49. Impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.
56-61).
ROWLAND, Clara. A cor do bronze: narração, recriação e poesia em “Cara de bronze”. In: DUARTE, Lélia
Parreira et al (Org.). Veredas de Rosa II. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 117-122.
ESPÍRITO SANTO, Rosana Silva do. ‘Cara de bronze’: mosaico nos gerais. In: DUARTE, Lélia Parreira et al
(Org.). Veredas de Rosa II. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 699-706.
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NOTAS
1
Todas as citações da novela serão dessa edição, indicadas apenas pelos números das páginas.
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LEONARDO VIEIRA DE ALMEIDA (DOUTORANDO – UERJ)
Resumo:
A primeira novela do volume No Urubuquaquá, no Pinhém, que compõe a obra Corpo de baile, de João
Guimarães Rosa, tem início com um S. O desenho da estrada em que caminha o grupo de viajantes liderados por
Pedro Orósio possui, por sua vez, o mesmo traçado da letra inicial. Nesse sentido, podemos sugerir a hipótese de
que a viagem dos peregrinos é não só um percurso pela natureza, mas através da própria linguagem. Ou, de outro
modo: a natureza seria um artifício do lógos, que elide a representação cartográfica como instância da verdade.
Seguindo as anfractuosidades que serpeiam pelas trilhas verbais de Guimarães Rosa, acompanhamos a voz do
Morro da Garça, entoada pela boca dos loucos. Nesse movimento pelo qual a natureza se torna palavra pensante,
o mundo assume o lugar de porta-voz de um discurso mítico. O fim trágico de Pedro Orósio, inscrito no recado,
só será compreendido numa reescritura críptica, anterior a toda escrita. Portanto, na Escritura primordial de uma
Antinatureza é que se poderia reencenar a viagem do Rei dos Gerais, o guiador Pedrão Chãbergo.
NATUREZA E ARTIFÍCIO: A VOZ PEREGRINA EM “O RECADO DO MORRO”
O CORPO DA SERPENTE: O CORPO DO MUNDO
Corpo de baile, obra seminal de João Guimarães Rosa, publicada em 1956, no mesmo ano de Grande
Sertão: Veredas, constitui campo complexo para a exegese literária. Isto se deve a algumas chaves estruturadoras
do projeto estético do escritor mineiro: a proliferação de camadas do intertexto; a correspondência entre
forma e conteúdo; a projeção de escalas microscópicas em estruturas macroscópicas, refratando os semas nos
sintagmas, e, por sua vez, estes últimos em corpúsculos maiores (os parágrafos, as páginas), até atingir o corpo
final do texto. No caso de Corpo de baile, inicialmente publicado em dois volumes, posteriormente em um
tomo, e, finalmente, em três exemplares, a estratégia rosiana se complexifica ainda mais. Nesse vasto panorama
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de mais de oitocentas páginas, as sete novelas (cada uma erigida sob a ótica das chaves estruturadoras) refletem
e expandem sua problematicidade no conjunto total da obra. Por meio de um efeito dióptrico, temas, signos,
lexias, compõem um espaço constelar, espécie de calidoscópio formador de imagens em constante mutação.
A referência ao calidoscópio, artefato óptico provido de pequenos pedaços coloridos de vidro ou de
outro material, pressupõe a questão do espelhismo. Este processo possibilita a construção de uma forma
quiásmica, princípio simétrico que organiza o jogo ou combinação de imagens1.
Desse modo, torna-se necessário desvendarmos a chave primeira de um projeto como Corpo de baile. Tal
chave é apresentada pelo próprio Rosa, em carta ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, de 19 de novembro
de 1963. O autor aponta o aspecto planetário ou de correspondências astrológicas existente na novela “O recado do
morro”2. A mesma questão é examinada em detalhe por Heloísa Vilhena de Araújo, em seu livro O roteiro de
Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. A partir da idéia deste corpo planetário, a crítica estabelece importantes
correspondências com o pensamento do místico flamengo do século XIV, Ruysbroeck, de cuja obra Guimarães
Rosa extrai algumas epígrafes para o Corpo de baile. A autora salienta que, no livro Ornamento do casamento
espiritual, Ruysbroeck descreve o início, o crescimento e amadurecimento da vida espiritual do homem, tendo
em vista a trajetória do Sol durante o ano, com suas estações. Tal pensamento segue a antiga tradição estabelecida
no Timeu, de Platão, onde o desenvolvimento do corpo e da alma do homem possui estreita ligação com o
corpo e alma do mundo, e, portanto, com o universo. Ainda segundo Platão, há uma relação fundamental entre
a estrutura harmônica da alma do mundo e da música, derivando daí argumentos de suma importância tanto
para a cosmologia como para a filosofia da música (já que os princípios que regem a construção da alma
universal são os mesmos que entram na constituição da alma individual).
É como um grande corpo cosmológico que Guimarães Rosa concebe Corpo de Baile. No centro deste
corpo encontra-se “O recado do morro”, novela que trata, nas palavras do próprio autor, de “uma canção a
formar-se”3. Canção esta que vai se materializando ao longo de uma viagem em terras dos campos-gerais. Por
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sinal, a viagem é um elemento norteador do Corpo de Baile. Seguindo a ordem das novelas na versão original,
verificamos que esse tema, em “Campo geral”, tem início no final do texto, quando Miguilim parte do Mutúm
da infância para a cidade grande, saudoso de seus olhos míopes. Em “Buriti”, a última novela, para não
esquecermos a estrutura quiásmica, a viagem é do Miguilim adulto (Miguel), de volta ao Buriti Bom. “Uma
estória de amor” e “Cara-de-Bronze” traçam a cartografia da alma: Manuelzão e o Grivo partem em busca do
“quem” das coisas. “A estória de Lélio e Lina” e “Dão-Lalalão” têm como caminho os descaminhos do amor.
Ocupando o círculo interno, em torno do qual se equilibram as seis novelas está “O recado do morro”. O
amor, a palavra, a música, o aspecto zodiacal e cosmológico, a geografia sentimental da ficção rosiana. Como
se todos os elementos que configuram as viagens em Corpo de baile convergissem para este corpo único, como
se ele fosse o espelho, pedra brilhante que reflete todas as outras novelas num baile de luz: “A pedra preciosa
de que falo é inteiramente redonda e igualmente plana em todas as suas partes”4. A citação é de Ruysbroeck,
o Admirável, contribuindo para associarmos a pedra ao espelho, que gera reflexos que se movimentam, refratamse, transformam-se, gerando repouso e movimento, opacidade e brilho, planos únicos e múltiplos5.
No início da novela “O recado do morro”, em algum ponto desta “pedra brilhante”, distinguimos um S
de estrada, pelo qual caminham cinco personagens, sendo guia Pedro Orósio. A linha não tem começo nem
divisamos seu fim. Parece uma linha viva, uma abstração. Seus limites sinuosos nos fazem remeter ao ícone da
serpente. Ícone da armadilha, e também suscetível a todas as representações, todas as metamorfoses. A serpente
cósmica, grafema da viagem pelos ciclos do mundo, abraça a criação numa linha contínua. Sobre seus limites,
figuramos um grande traçado cosmográfico e geográfico. Em torno de seu corpo se agregam múltiplas viagens
entrelaçadas, que configuram, por sua vez, o corpo do texto, seguindo o desenho sinuoso da linguagem.
Portemos-nos, então, de lentes acuradas, como os grossos óculos do pesquisador Olquiste. Procuremos
examinar em que sentido a viagem se estampa numa cartografia do artifício, como Guimarães Rosa naturaliza
o falso, concebendo a gênese da própria linguagem. Escavemos as camadas semânticas e semióticas, como
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anfractuosidades do texto, em torno da serpente, do S de estrada. Pela configuração destas anfractuosidades o
Corpo de baile rosiano pode se fazer presente por meio dos signos do desejo e da pergunta sobre o que é a
literatura. O desejo peregrino seria o desejo de desnudamento do texto. Esta é a hipótese deste ensaio, ou seu
recado.
1 - NATUREZA E VIAGEM: PELO S DOS SIGNOS E DAS SAGAS
1.1 - Píton e Apolo nos campos-gerais
Na primeira página de “O recado do morro” é apresentada a comitiva guiada por Pedrão Chãbergo ou
Pê-Boi, enxadeiro dos Gerais: Alquiste, um pesquisador nórdico, trazendo uma câmera fotográfica, binóculo e
caderneta para anotações; Frei Sinfrão, dono de uma casa de convento em Pirapora e Cordisburgo, lendo um
breviário; seo Jujuca do Açude, fazendeiro de gado, e filho de fazendeiro; Ivo, Ivo de Tal, Ivo da Tia Merência,
tangendo burros cargueiros. Esses personagens se encontram em pleno sol nos campos-gerais, em algum dia
de julho. Todos a cavalo, exceto Pê-Boi, que vai a pé, descalço. Pedro Orósio, por sua vez, possui o talhe e a
força de um gigante6.
“Desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa grande frase”7. É por este S, início
da frase, que caminha a comitiva. S que, por seu lado, corresponde à letra que abre a novela: “Sem que bem se
saiba”. Nesse sentido, visualizamos que a viagem dos peregrinos não é apenas por algum lugar específico dos
campos-gerais, ela é também o percurso da linguagem, trajeto sinuoso, como veremos, acompanhando seu
próprio desenho.
Sob esse ponto de vista, é importante lembrarmos o interesse de Guimarães Rosa pelo valor iconográfico
dado ao texto. Podemos, seguindo esta linha, salientar um ponto de reforço a esse problema. Tal ponto é
delimitado com precisão por Vilém Flusser no ensaio “Concreto-abstrato”. Flusser, analisando os poetas
concretos da geração de Haroldo de Campos, Décio Pignatari e outros, aponta para a importância do movimento
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concreto como foco de resistência contra o “processo civilizante”, que considera “um avanço a partir da
plenitude do significado em direção à amplitude do insignificado”8. Segundo o crítico, esse processo teve três
fases, ou três Idades: a Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna. Nos três casos, sempre se partiu do
“concreto dos mitos”, do “concreto da fé” ou do “concreto sensorial”, progredindo e decaindo em abstrações
ocas. “Adão” ou “Ahriman”, nomes próprios cheios de significado do “concreto dos mitos”; “Deus”, “alma” e
“salvação”, referentes ao “concreto da fé”; “pedra”, “queda” e “conhecimento”, de acordo com o “concreto
sensorial”. Desses, numa forma degrada, partiu-se para: a “lógica aristotélica” ou “antropocentrismo” ou
“plotinismo”; “prova ontológica”, “realismo” e “tomismo”; “antipróton”, “campo unificado” e
“Indeterminabilidade de Heisenberg”. Para Flusser, a civilização parece ter chegado a um ponto em que os
nomes próprios concretos dos sentidos se estagnam em conceitos científicos. É nesse preciso instante que
surge a poesia concreta, que, para o autor, apresenta-se inibida, atrelada a abstrações ultrapassadas.
Mesmo sem citá-lo, parece que o nome Guimarães Rosa sobrepaira no ensaio de Flusser. Porque, de
fato, em sua prosa, o escritor mineiro conseguiu recuperar a qualidade do “concreto”, dando uma outra dimensão
à língua. Em sua obra encontramos palavras relacionadas ao “concreto dos mitos”: “Salomão”, “Sansão”; ao
“concreto da fé”: “Apocalipse”, “Jesus Cristo”, “Verbo”; ao “concreto sensorial: “pedra”, “pirâmide”, “sino”;
para ficarmos com o vocabulário de “O recado do morro”. Além disso, Rosa também explora as potencialidades
da própria letra. Sem dispor da forma poética dos caligramas, cujas linhas ou caracteres gráficos compõem
uma figura relacionada com o conteúdo ou a mensagem do texto, o autor, na medida em que inscreve um sinal
gráfico no corpo da página, constrói um desenho que pode ser lido por dois enfoques: o concreto, isolado do
texto que o cerca, significa-se a si mesmo. Já se o relacionarmos com todos os outros vocábulos, opera-se uma
tradução de seus reflexos sobre o que lhe é exterior e vice-versa. Não é outro o caso do S em “O recado do
morro”. Lido isoladamente, ele já guarda uma ampla gama de simbolismos: na ornamentação primitiva, como
um princípio de unificação entre o céu e a terra, o masculino e o feminino, a montanha e o vale, as trombas e
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turbilhões. Esta letra pode simbolizar, do mesmo modo, a ligação entre o alto e o baixo, ascensão e queda. De
acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário de símbolos: “Também é possível ver nela a
subida sinuosa da fumaça sacrificial. O que domina nessas percepções diversas é o símbolo de uma unidade de
movimento que põe em relação seres, elementos, níveis diferentes (...)”9.
Por outro lado, em relação a uma das camadas do enredo da novela de Guimarães Rosa, o tema da
emboscada, o desenho do S se torna a linha da serpente, como já vimos, ícone da armadilha. Isto, se levarmos
em conta o referencial semântico. Porque, se nos atentarmos para o plano semiótico, a sinuosidade da serpente
representa a armadilha textual: seu verso e anverso.
Na mitologia grega, há uma famosa serpente, também considerada por muitos um dragão fêmea, que
guardava o Oráculo de Géia, a Terra Primordial. Trata-se de Píton, que simbolizava a autoctonia e o poder
primitivo das forças telúricas. Apolo, o deus solar, se dirigiu a Delfos (lugar onde se encontrava o Oráculo) e
derrotou Píton10. Simbolicamente, a luta de Apolo contra a serpente representa a vitória do deus patrilinear
contra a potência matrilinear e telúrica ligada às trevas11.
O S, a serpente inscrita no mapa de “O recado do morro”, tem seu aparente início sob a luz do sol,
Apolo. Rastreando seu percurso, podemos detectar que ao longo do mesmo se embaralham, de modos diversos,
figuras e situações.
A viagem “geográfica”, uma música por formar-se, a temática do rei traído, as referências apocalípticas,
o cosmos, o zodíaco, a pesquisa científica, todos esses fios seguem, como a comitiva, o corpo tortuoso da
serpente délfica que se estende pela paisagem dos campos-gerais. No entanto, esta é apenas uma das leituras
possíveis do grafema. Porque, além de ser um ícone da armadilha, a serpente também representa a troca
cambiante: as duas serpentes enroscadas em sentido inverso numa vareta compõem o emblema de Hermes,
mensageiro dos deuses, guia dos seres em suas mudanças de estado, as direções ascendentes e descendentes.
Nesses termos, torna-se pertinente assinalarmos o aspecto mercurial da linguagem na novela “O recado
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do morro”. O enigma emitido pelo Morro da Garça só poderá transformar-se em canção se o seu teor
ininteligível, obscuro, for banhado pelo brilho de Apolo. A vitória do deus de Delfos contra Píton encarnaria
simbolicamente a própria dinâmica do texto rosiano, sua capacidade, como nos diz José Miguel Wisnik no
ensaio “Recado da viagem”, apolínea e solar: “(...) de dar forma ao símbolo, integrando os elementos dispersos,
intensos e conflituados da experiência do limite e da fantasia, da negatividade e da positividade”12.
Apolo: deus do equilíbrio e da harmonia dos desejos, cujo número, sete, é o número da perfeição13; que
une simbolicamente céu e terra, o princípio masculino e feminino, a luz e as trevas. Hermes; deus do comércio;
inventor da lira, feita de cordas fabricadas com tripas de bois; responsável pela troca entre o céu e a terra,
mediação que pode converter o comércio em simonia ou santificação; mantenedor da viagem entre os limites
infernais, terrestres e celestes.
Como se vê, Apolo e Hermes possuem muitas características em comum. Apolo, na Ilíada, é aparentado
à noite, dono do arco de prata e brilhante como a Lua. Zeus lhe enviou uma lira e um carro guiado por cisnes.
Segundo outra manifestação do mito, a primeira lira que Apolo adotou, foi a de Hermes.
Deuses da canção e da viagem, da ascensão e da queda. São justamente essas chaves que se manifestam,
do mesmo modo, na figura de Pedro Orósio. Guia e futuro decifrador da música, capitaneia os quatro peregrinos
em sua marcha pelos campos-gerais, seguindo a trilha sinuosa da serpente.
1.1 - A gesta de Óros e Bukólos
Ao acompanharmos a viagem de Pedro Orósio pelo S e a natureza que o circunda, é possível observarmos
que uma das referências intertextuais com a qual dialoga é a gesta da Idade Média. Particularmente se tivermos
em vista que seo Alquist, após escutar a canção composta pelo violeiro Laudelim Pulgapé, faz o paralelo com
Saxo Grammaticus e o herói Hrolf Kraki. Grammaticus, considerado um dos mais notáveis historiadores da
Idade Média (viveu, provavelmente, entre fins do século XII e início do século XIII) e um de seus grandes
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escritores, foi o autor da obra Gesta Danorum, composta por dezesseis livros que tratam das sagas de diversos
reis escandinavos. Um desses livros é A saga do Rei Hrolf Kraki e seus campeões. Hrolf e seus doze cavaleiros, no
final do livro, são mortos numa armadilha preparada por sua meia-irmã Skuld, filha de seu pai, Helgi, com uma
elfa14.
Por sua vez, Pê-Boi se configura como um Rei medieval dos campos-gerais, a quem se unem também
traços de Sansão (referido por Alquist) e de Héracles. Será importante lembrar que, na história de Deucalião e
Pirra, que consta do livro primeiro de As metamorfoses, de Ovídio, aos únicos descendentes do dilúvio que
devastou a humanidade, é incumbida a tarefa de carregar pedras em suas costas e lançá-las no ar, daí surgindo
uma nova raça de seres humanos. O designativo de pedra, tanto no nome próprio (Pedro) quanto no sobrenome
(Orósio, óros: montanha), salienta a estreita ligação entre o homem e este símbolo, apresentando ambos um
movimento duplo de subida e de descida. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O homem nasce de
Deus e retorna a Deus. A pedra bruta desce do céu; transmutada, ela se ergue em sua direção”15. A viagem de
Pedro Orósio é uma ascese, que só pode ser atingida com o domínio da voz do Morro da Garça, domínio do
homem sobre a pedra, que, muitas vezes, apresenta traços bovinos, tauromáquicos. O outro nome de Pedro
Orósio, Pedrão Chãbergo, reforça ainda mais essa questão, pois “bergo” deriva do francês berger, pastor,
vaqueiro16. Nesse sentido, Pê-Boi precisa domar a pedra, subjugar a rês bravia, daí podermos associá-lo à
figura do bukólos (vaqueiro) e do rei medievo, assunto explorado desde José de Alencar, em Nosso cancioneiro,
passando por Euclides da Cunha (Os sertões), Câmara Cascudo (Vaqueiros e cantadores), e outros. Guimarães
Rosa, em Pé-duro, chapéu de couro, presta sua dívida a alguns desses autores17.
Todos esses elementos de “O recado do morro” comportam a releitura rosiana dos textos da Idade
Média, a que se agregam influências bíblicas, cosmológicas, musicais, reinserindo-as no universo do sertão.
Daí a importância que acreditamos deva ser dada ao conceito de antinatureza proposto por Clément Rosset,
em seu livro A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica. Nessa obra, Rosset defende a idéia, a partir de um
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exame dos filósofos trágicos (Empédocles, Lucrécio, Maquiavel, Hobbes, Nietzsche), que a natureza mostrase sempre como miragem: “(...) escapa no momento em que acreditávamos tê-la agarrado, e surge num ponto
imprevisível do horizonte, o qual abandonará no instante em que olhar tiver tido tempo de lá se fixar”18. Isso
quer dizer: o mundo da natureza é o mundo do artifício. No caso de “O recado do morro”, tendo em vista o
tema das sagas medievais, podemos observar que sua leitura não é apenas intertextual, porque a naturalização
do artifício empreendida por Rosa inscreve os signos da literatura da Idade Média sobre a própria phýsis, como
no trecho a seguir: “À formiga, sumiu-se na ladeira, tapado por uma aresta de rocha e um gravatá – panóplia
de muitas espadas presas pelos punhos”19. A “panóplia” é uma armadura completa do cavaleiro medieval
europeu. De fato, o escritor mineiro proporciona, por meio de seu projeto estético, ler-se no espaço da natureza
o espaço dos livros. A gesta de Pedro Orósio pelos campos-gerais parece acompanhar páginas de livros impressas
no horizonte do sertão.
Sob esse ponto de vista, se o tema da viagem é motivo norteador da novela “O recado do morro”, tornase relevante apontarmos o artigo de Bento Prado Jr., “O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães
Rosa”. Nesse texto, o crítico faz o paralelo entre a peregrinação de Pedro Orósio e a de Dom Quixote, ambas
ligadas pelo tema da cavalaria andante. De acordo com Prado Jr., o herói de Cervantes e os heróis de Guimarães
Rosa seguem o mesmo espaço, só que em direções diferentes. Rosa procura reconstituir o horizonte que se
dissolvera nas andanças do cavaleiro da triste figura. É aí que Prado Jr. nos remete à obra de Michel Foucault,
As palavras e as coisas, particularmente o capítulo “Representar”, em que o filósofo francês define Quixote
como leitor de um universo mudo, a Mancha do século XVII, em busca dos signos e das semelhanças codificados
nos romances de cavalaria. Seu itinerário acaba por provar a cisão entre a linguagem e o mundo, em que a
sabedoria transformou-se em delírio20. O caminho percorrido por Rosa é o espelho inverso: seus heróis partem
da decifração de um texto inscrito na própria natureza. Ou ainda, numa phýsis enquanto espaço do falso,
agregam-se elementos tanto da geografia (a gruta de Maquiné, o Morro da Garça, os Gerais, em “O recado do
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morro”) quanto fragmentos do próprio vocabulário das gestas medievais:
Agora, pelas penedias, escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatás se abrindo de flôres em azule-vermelho, azagaias de piteiras, o páu-d’óleo com raízes de escultura, gameleiras manejando como alavancas suas
sapopemas, rachando e estalando o que acham; a bromélia cabelos-do-rei, epífita; a chita – uma orquídea; e a clatéia,
sofredora, rosíssima e roxa, que ali vive no rosto das pedras, perfurando-as.21
“Gameleiras manejando como alavancas suas sapopemas”; “a bromélia cabelos-do-rei”. No primeiro
exemplo, a imagem das árvores parece nos remeter aos aríetes, máquinas de guerra com que se derrubavam as
muralhas ou portões de cidades sitiadas. Já no segundo, cabelos do rei sopram na superfície de uma planta. O
texto rosiano, como nos fala uma vez mais Bento Prado Jr., se identifica no “sopro impessoal que silva por
entre as folhas do Lógos em estado selvagem (selva selvaggia) ou no traçado das picadas, no desenho das
veredas que estruturam o Sertão sauvage, salvage”22. Mas não só a flora se transforma em heráldica. Também os
estratos geológicos são decodificados, na medida em que as palavras se tornam verdadeiros espeleotemas23,
compondo uma “natureza” saturada de códigos lingüísticos:
E nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice, de bichos sem estatura de regra, assombração deles
– o megatério, o tigre-de-dente-de-sabre, a protopantera, a monstra hiena espélea, o páleo-cão, o lobo espéleo, o
urso-das-cavernas -, e homenzarros, duns que não há mais.24
A “monstra hiena espélea” e o “lobo espéleo” são ossadas de animais selvagens revestidas de salitre no
interior das grutas. Tal dado nos faz lembrar as pesquisas do cientista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que,
em 1833, durante uma viagem para estudar a flora brasileira, ao passar por Curvelo, em Minas Gerais, visita a
Lapa Nova de Maquiné, tendo escrito com minúcias, os espeleotemas encontrados. Sabemos do interesse de
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Guimarães pelos relatos de viajantes (Humboldt, Spix e Martius); além de suas próprias viagens ao interior de
Minas Gerais para colher em campo o material vivo de sua obra. Esta é mais uma referência importante que
vem se somar ao universo de “O recado do morro”, o relato científico, materializado na natureza e na caderneta
de seo Alquist.
É cercada por esses signos que segue a comitiva chefiada por Pedro Orósio. Mas não só a natureza traz
em sua “geografia” indícios do recado (fragmentos da futura armadilha ao qual poderá sucumbir o enxadeiro
Pê-Boi). O Morro da Garça começa a “falar”. Sua voz, ainda esfingética, viaja de recadeiro em recadeiro: os
cinco loucos, o menino Joãozezim, e finalmente, o violeiro Laudelim Pulgapé. Assim, entrelaçadas no corpo
de Píton, se espelham duas viagens, a expedicionária e a musical. Sob ambas paira o tema do agouro, motivo
recorrente nas gestas medievais25. Decifrar o recado, ou seja, domar a pedra das palavras e escapar à emboscada,
se refrata numa outra viagem: o percurso anagógico-interpretativo da voz do Morro da Garça supõe um ato de
leitura sobre “atos de fingir”26, sempre escapáveis.
2 - MORRO DA GARÇA E O SINO DE SALOMÃO
2.1 - O canto da pirâmide e sobre o luto dos signos
A viagem do recado enigmático tem início com um “homenzinho”, Gorgulho, também conhecido como
Malaquias, que diz tê-lo ouvido dos desabamentos do Morro da Garça (marco principal dos viajantes de Minas
Gerais). Pedro e sua comitiva ficam sabendo que esse velho – morador de uma lapa, uma “urubuquara” (casa
de urubus) - está se dirigindo ao seu irmão, Zaquias, também morador de uma gruta. Em verdade, Gorgulho
quer aconselhar o irmão a não se casar. A princípio, Malaquias diz que o morro enviou um certo recado, sem
se ater a maiores explicações. No entanto, ao se dispor a acompanhar Pedro Orósio e seus companheiros,
chega um instante em que Gorgulho expõe a mensagem na íntegra, a respeito de um rei e de uma morte
tramada à traição: “Com a caveira, de noite, feito História Sagrada, Del-rei, Del-rei!...”27
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Importante notar que os nomes dos dois primeiros recadeiros, Malaquias e Zaquias, nos remetem aos
mensageiros bíblicos dos Livros Proféticos. As mensagens de ambos apresentam uma dimensão profundamente
escatológica. Para Zacarias, a salvação exige do povo uma renovação interior. Já para Malaquias, o abuso por
parte dos sacerdotes e o desinteresse pelo culto bem como a promiscuidade dos maridos com relação às suas
esposas anunciam a proximidade do julgamento divino.
O que motiva os sete traidores, em “O recado do morro”, é o fato de Pedro Orósio seduzir diversas
mulheres dos Gerais. Movidos pelo ciúme, os embusteiros aguardam o momento oportuno para desfechar a
vingança, ao mesmo tempo que a voz do Morro da Garça procura avisar Pedrão Chãbergo de seu fim iminente.
Assim, o recado se constitui como um sinal da morte (a traição) e da vida (pela decifração da mensagem).
Por sinal, em determinado trecho da novela, o Morro da Garça é comparado a uma pirâmide: “Lá –
estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide”28. A pirâmide é um “lugar de
encontro entre dois mundos: um mundo mágico, ligado aos ritos funerários de retenção indefinida da vida ou
de passagens para um vida supratemporal, e um mundo racional, que evocam a geometria e os signos de
construção”29. Atribui-se ainda, a Hermes Trimegisto, que:
“(...) o cume de uma pirâmide simbolizaria o Verbo demiúrgico, Força primeira não engendrada, mas emergente
do pai e que governa toda coisa criada, totalmente perfeita e fecunda. Assim, no final da ascensão piramidal, o iniciado
atingirá a união com o Verbo, como o faraó defunto se identifica, no oco da pedra, com o deus imortal”.30
Não será inoportuno, de acordo com esse ponto de vista, sugerirmos que o Morro da Garça, ao ser
representado pelo símbolo da pirâmide, configuraria o próprio procedimento de leitura da novela “O recado
do morro”, qual seja: para compreender o sentido do recado, que acompanha a tentativa de interpretação dos
cinco loucos (Gorgulho, Catraz, Guégue, Nomindome, o Coletor) do menino Joãozezim e do violeiro Laudelim
Pulgapé, seria necessário guiarmo-nos pelos signos mortos da tradição literária, evocando a geometria e
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reconstrução desses signos num outro contexto. Referindo a idéia de Ernest Cassirer, em seu livro Liguagem,
mito e religião, a concepção verbal primitiva se dá como um choque violento com a forma mítica em seu grau de
diferenciação, constituindo-se esta como um “deus momentâneo”, desligando-se de qualquer cadeia associativa
e surgindo como “intuição imediata”. A tarefa dos recadeiros e, por fim, de Pedro Orósio, seria uma viagem do
nascimento do mythos ao lógos, expressada, também pelo “sino de Salomão”, citado na novela. Este símbolo,
formado por dois triângulos (ou pirâmides) superpostos, constituindo uma estrela de seis pontas, totaliza o
pensamento hermético. O “sino de Salomão” aparece como síntese dos opostos e a expressão da unidade
cósmica, assim como sua complexidade. Ou seja, a pirâmide/Morro da Garça, túmulo funerário, mas também
ponte para o renascimento, poderia ser compreendida como o vértice do próprio espaço da linguagem em “O
recado do morro”. Maurice Blanchot, no ensaio “A linguagem e o direito à morte”, assinala que é pela morte
dos signos, despidos de seus antigos contextos, e reogarnizados pelo jogo do falso, que o espaço literário se
constrói31.
Outro dado importante, e não deve esquecido, é que o sino de Salomão engloba os sete planetas que
formam a totalidade do céu. Aos sete traidores (Ivo Crônico, Martinho, Nemes, Veneriano, Zé Azougue,
Lualino, Jovelino) correspondem as sete fazendas onde a comitiva toma pouso (a fazenda de Juca Saturnino,
de Marciano, de Dona Vininha, de Nhô Hermes, de Nhá Selena e de Jove). E, conseqüentemente, os sete
planetas.
Desse modo, o espaço ficcional em “O recado do morro” se estrutura mediante um processo seletivo
que parte de campos múltiplos, inserindo as referências intertextuais numa posição perspectivística, em que
alguns de seus elementos são atualizados pelo texto, enquanto outros se mantêm inativos32. Por sinal, a própria
seleção desses elementos se configura como um “ato de fingir”, pois que opera uma “transgressão de limites”.
Por sua vez, o ato de seleção realizado por Rosa, por meio de uma estética de fragmentos extraídos de diversos
contextos e justapostos, com sua posterior combinação, conduz a uma oscilação tanto semântica quanto
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semiótica. A terceira margem configurada pela transgressão das referências intertextuais e dos procedimentos
estilísticos provoca, ao mesmo tempo, uma relação de forma (Figur) e fundo (Grund). No caso de “O recado do
morro”, o fundo - a geografia dos campos-gerais, os elementos das sagas e gestas da Idade Média, a escatologia
bíblica, a mitologia greco-romana, a literatura científica, a astrologia, a cosmologia - demarca os limites da
forma. Sobressai dessa estratégia ficcional a revitalização dos signos mortos da tradição literária, o inventário
de suas ruínas que, aglutinadas pela voz do Morro, tendem a um novo desejo do texto: na medida em que o
recado é interpretado sob diversos enfoques pelos seus sete recadeiros, ensaiam-se os próprios “atos de fingir”
da novela. Ou ainda, ensaia-se a história do nascimento de uma canção popular oral, que, como diz o pesquisador
Olquiste: “transmuz da pedra das palavras”33.
Assim, vislumbramos nesse processo de decifração do texto rosiano, os vestígios de seu artifício.
Procedendo ao exame de suas camadas intertextuais, podemos perceber a proliferação de elementos alógenos,
encontrados seja na forma de citações (a referência à saga de Hrolf Kraki, feita por Alquist, serve de exemplo);
de reminiscências, como a viagem de Peter Lund ao interior de Minas Gerais (decodificada nos vocábulos
“Lundiana” e “Lundlândia”, que se encontram no texto) ou os relatos cosmológicos, em que o Timeu platônico
parece se esconder sob o espelhismo provocado pela órbita celeste e a viagem terrestre dos peregrinos.
No entanto, se procuramos rastrear algumas referências no plano semântico (o fundo), faz-se necessário
investigarmos como esses mosaicos dispersos são reordenados pelo andaime (a estrutura arquitetônica do
texto, a figura). Voltemo-nos sobre o grafema que abre a novela, a serpente délfica inscrita nos campos-gerais.
Ícone da armadilha. Linha que traduz o percurso sinuoso da linguagem rosiana. Traçado que se insere de
forma dúplice no caduceu hermético, índice da viagem mercurial. Mas, também, seu risco curvilíneo, que
volteia entre a geologia do sertão, abarcando seus limites, faz-nos lembrar um acorde. Hermes, deus mensageiro,
não deixa de ser o inventor da música, da lira, cujo corpo, talhado em chifres de cabra, tem a forma de um S
duplicado. Dessa maneira, a viagem científica e a viagem musical se espelham, ambas consignadas na figura
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do guia Pedro Orósio, filho da pirâmide, dos planetas, dos signos estratificados nas pedras das palavras.
2.2 - Rei caminhante nas pedras da linguagem
Seguindo a travessia do recado pela voz dos sete recadeiros, constatamos que a pedra é um dos elementos
recorrentes da novela, núcleo isofórmico que não se encontra apenas na natureza, mas, por vezes, nos nomes
próprios, como é o caso de Pedro Orósio. O Morro da Garça, que emite o recado, bem como as casas dos
loucos (Gorgulho, Catraz, Nomindome) são conformações geológicas: montanhas, grutas, lapas, abrigos
calcários. O nome de Gorgulho, primeiro recadeiro com o qual o grupo de peregrinos se depara, deriva
etimologicamente de um conjunto de fragmentos, entre os quais se encontra o ouro. O Coletor risca números
nas pedras, signos do Apocalipse. Por sua vez, Pê-Boi, guia e viajante dos campos-gerais, caminha pelas
“pedras” do texto, por suas gretas, ravinas, anfractuosidades que contêm, em seu arcabouço, os símbolos
cifrados da tradição. Desse modo, uma das possíveis chaves de leitura de “O recado do morro”, seria assumir
a posição de um geólogo, cabendo ao tradutor/crítico escavar seus estratos, proceder a uma litologia do mapa
textual que procura retratar a “geografia” dos Gerais.
Sob esse aspecto, a técnica rosiana de construir uma cartografia que se serve de elementos da realidade
do sertão (a gruta de Maquiné, o Morro da Garça) e de decalques oriundos do imaginário alegórico e mitológico,
parece aproximar seu procedimento ao dos antigos cartógrafos. Era por meio de falsificações, apropriação de
lendas e informações colhidas de cartógrafos anteriores (cuja veracidade era muitas vezes posta em questão)
que se desenhavam os chamados “mapas de fantasia”. Um dos mais antigos exemplos desse tipo de mapa é o
de Sebastian Munster, Cosmographey (1544), em que a Europa, na verdade, é a imagem de uma rainha. Sua
coroa corresponde à Espanha; o cetro da mão esquerda, às Ilhas Britânicas. A geografia sofre um processo de
distorção, para combinar não com a realidade, mas com a “idéia”. Num outro mapa, de 1749, L. E. Bestehorn
desenha uma vista do Brocken em perspectiva. Ao autor não interessava apenas a geografia do monte, mas
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seu substrato mítico: lugar de encontro das bruxas na noite de Santa Walpúrgis, imortalizado no Fausto, de
Goethe. Por isso, vêem-se seis bruxas negras cavalgando bodes e vassouras em direção ao cume do monte34.
Não dispondo de elementos iconográficos, Guimarães Rosa concebe um mapa semiótico, mediante uma
isomorfia verbal em que as palavras, organizadas num dispositivo de justaposições diversas, passam a conotar
um significante “ausente”. A enumeração de signos litológicos (pedra, gorgulho, lapa, gruta, morro);
cosmológicos e astrológicos (as sete fazendas e os sete traidores com os nomes dos planetas); apocalípticos (as
mensagens dos recadeiros), traça uma órbita em torno do grama ausente: o “mapa”. A collage de signos, grafemas,
ícones35, conduz ao espaço constelar, inconcluso, no qual gira o corpo de baile rosiano e pelo qual, no caso de
“O recado do morro”, acompanhamos a trajetória de Pedrão Chãbergo, enxadeiro e “Rei” dos Gerais.
Por sua vez, o trajeto do recado segue os passos de Pedro Orósio e sua comitiva, sendo interpretado
pelos sete mensageiros. Na fazenda de dona Vininha, numa sexta-feira, surge o segundo recadeiro, o Catraz,
Zaquias ou Qualhacôco. Também morador numa gruta, como o irmão, Gorgulho, Catraz é o inventor do
arioplãe, um carro de madeira puxado por urubus. Ele conta ao menino Joãozezim o que ouviu do irmão, sobre
o Morro da Garça falando de “seis ou sete homens” caminhando juntos; de um “rei”, da “caixa da morte”, de
uma “festa”, de uma “caveira”, da “História Sagrada”, da “Morte à traição”36.
Importante se notar que, à medida que o recado migra de um a outro mensageiro, novos elementos são
agregados à mensagem inicial. O Gorgulho não se refere, em nenhum momento, aos sete traidores, o que, ao
contrário, ocorre na interpretação do Qualhacôco. O menino Joãozezim, ao passar o recado ao Guégue, já se
refere a “salomão” e a uma “espada”. O Nomindome, Jubileu ou Santos-Óleos (outro morador de uma lapa),
aparece com um dado inteiramente novo: seu agouro não trata especificamente do futuro de um rei, mas de
uma escatologia universal, o Apocalipse. O “Arcanjo”, “temporal e raios”, “querubins”, “brasas bentas”,
“trapes cavalos”, “panela de breu”, “trombeta”, são os signos proferidos pelo velho profeta louco. Esse recado
apocalíptico irá cruzar com a mensagem do Guégue, que conta ao Nomindome a versão que havia escutado
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de Joãozezim. Neste caso, à palavra “salomão” se une a palavra “sino”, compondo o termo “sino-saimão”,
forma contraída de “sino de salomão”, o hexagrama que constitui o conjunto dos elementos do universo.
Como se vê, esses signos dispersos, mosaicos de linguagem vão se associando, enriquecendo-se à medida
que os mensageiros dão seu recado ao recado. Partindo do Morro da Garça, a mensagem é decifrada por moradores
de rochas, como que ecoando e refratando-se nas superfícies das pedras. O que se apresenta é, em certa
medida, a decupagem do corpo de uma canção. Sob esse aspecto, Rosa procede à partição e reogarnização dos
semas e sintagmas que, de recadeiro a recadeiro, representam em escala semiótica o próprio processo de
construção do literário37.
Depois de ouvir o recado do Guégue, Nomindome dá adeus aos peregrinos, falando que precisa espalhar
para o mundo a notícia do Apocalipse. Porém, ele ressurge no arraial de Juca Saturnino, o último ponto de
parada da comitiva capitaneada por Pedrão Chãbergo, às vésperas da festa do Rosário. Num sábado, pela
manhã, o arraial é acordado pelos gritos do profeta louco, que, agora, se chama Nominedômine. A agregação
de partículas ao nome original, Nomindome, parece sugerir o próprio ecoar do onomástico. Atraindo a população
do arraial para a igreja, Santos Óleos continua anunciando o fim do mundo, até que faz badalar o sino, outro
canal de mensagem do recado:
E o sino feria, estalava facas no ar, feito raios. Mas no plém dêle se sentia uma alegria maluca e santa,
rompendo salvação, pelas altas glórias. A voz do Nominedômine, em seu despropósito de urgente felicidade. Aí,
quando iam acabando de subir a ladeirinha, e chegando lá – êle parou. Esbarrou de tocar, de um pronto curto, no
coração da gente, que se tonteou. Como quando uma cigarra graúda de dezembro está tinindo muito perto, e
acaba.38
Junto com o sino, símbolo que evoca a ligação entre o céu e a terra (não esqueçamos que as pegadas de
Pedro Orósio seguem o mapa cosmológico), vibra o corpo e o nome de Jubileu, até que, por fim, o som se
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extingue, como o chirrear de uma cigarra39. Se o recado teve sua origem no Morro da Garça, e, portanto,
provém da pedra, é numa igreja (casa de pedra destinada aos ritos sagrados) que ele encontra seu penúltimo
mensageiro: o Coletor, fazendo contas de números nas beiradas dos jornais, dá sua versão do recado transmitido
pelo Catraz. Mas é na saída da matriz, quando Pedro Orósio e Laudelim Pulgapé reencontram-no, agora
inscrevendo seus números nas paredes de pedra da Igreja, que o Coletor profere outra interpretação para a
mensagem. Não acredita mais nas palavras do Nominedômine sobre o fim do mundo, e muito menos na
traição ao rei. É improvável para ele supor que, depois de se tornar tão rico (o que pode ser demonstrado pelas
inúmeras cifras que recobrem a igreja do Rosário), haja a notícia do Apocalipse.
Cabe ao último mensageiro, Laudelim, transformar o recado em canção. Seu nome, ao mesmo tempo
que evoca as loas e louvações (do latim laudare), também nos remete ao dobre de um sino, por meio de sua
última partícula, o sufixo –im, que, por sua vez, faz eco com as cordas do violão do cantador. A história do rei,
anunciada por meio de um vaticínio divino, conjuga as inúmeras partículas dispersas nos recados no corpo de
suas estrofes. Com a chegada da Morte, “vestida de Embaixador”, o rei toma ciência de que sua vida encontrase traçada. É então que comunica aos sete cavaleiros a necessidade de se dirigir à “Lapa de Belém”, talvez
com o intuito de decifrar a escritura críptica representada na “bandeira do Divino”, símbolo heráldico de seu
nascimento. Novamente a pedra serve de mediador para os conteúdos cifrados, pois é mediante a “Lapa”
(cavidade em rochedo, gruta), que o rei pretende escapar à tocaia armada pelos sete cavaleiros. O recado,
proferido pelo Morro da Garça, torna-se cantiga popular pela arte de Laudelim Pulgapé. Porém, o violeiro não
pode ser tomado como o último receptor da mensagem. Após ouvir a canção, Ivo Crônico convida Pedro
Orósio para celebrarem juntos a véspera da festa do Rosário. Acompanhando-os, Jovelino, Martinho, João
Lualino, Zé Azougue, Veneriano e Hélio Dias Nemes preparam-se para reensaiar a cantiga de Laudelim.
Pressagiando o espaço noturno, a notícia da morte do rei terá seu último pouso: regida pela lua de Apolo e
Orfeu, seu filho.
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PEDRO ORÓSIO E A SAGRAÇÃO DA NOITE
A viagem de Pedro Orósio, que tem início com o sol de Apolo, vislumbra seu término no espaço lunar,
noturno, na véspera da festa do Rosário. Se a serpente no início da novela, o S onde “começa grande frase”,
abre-se para o astro do deus solar (mas escondendo sua natureza também noturna, embusteira), seu término se
encontra na noite onde os sete traidores preparam a morte de Pê-Boi. A viagem do guiador enxadeiro poderia
ser lida, deste modo, como a peregrinação por todos os recados, prefigurando, na ambivalência, sua superação.
A serpente solar enfrenta a serpente lunar, como no cetro de Hermes, o caduceu. Dessa operação deriva o
outro sentido da viagem em “O recado do morro”: o encontro com a música, cujo instrumento de codificação
se encontra velado, como tantos outros signos da cartografia textual da novela, sob seus estratos menos
superficiais.
Sob esse aspecto, não se torna inoportuno remetermo-nos ao estudo de Severo Sarduy sobre alguns
artificialismos lingüísticos do neobarroco latino-americano, pelos quais se desvelam camadas ocultas de
determinados textos. Debruçando-se sobre o termo proliferação, Sarduy verifica que esse mecanismo consiste
em ocultar o significante de um significado específico, sem substituí-lo por outro, mas por uma cadeia de
significantes que, a partir de uma leitura radial, possa inferir sua ausência. Este procedimento pode se apresentar
de duas formas: em cadeia fechada, onde o elemento ausente conduz a um significado preciso; ou em cadeia
aberta, como se a operação de significação, que por acumulação aponta o significante ausente, não condissesse
mais que à contradição dos significantes, que em vez de se unirem, dispersam-se, anulando-se de maneira
mútua40.
Em “O recado do morro”, podemos observar inúmeros procedimentos de proliferação em cadeia fechada,
que “desenham” os significantes ausentes mediante a acumulação de elementos que tomam seu lugar na série
sintagmática: os setes planetas (o mapa cosmológico e astrológico); os recados (a profecia); a heráldica das
gestas medievais (estampada na natureza). E também, por meio do grafema da serpente, o S de estrada: a
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referência a Apolo, Hermes e Orfeu; o tema da canção; o espaço noturno para o qual se dirige a narrativa; o
sete como número proliferante em contextos diversos (os sete planetas, as sete fazendas, os sete traidores, o
sete do Apocalipse). De acordo com este último exemplo, é possível inferirmos o traçado de uma “lira órfica”
subjacente ao texto rosiano; seu corpo, formado por duas laterais sinuosas (em forma de S), suas sete cordas.
Instrumento musical de Orfeu, filho de Apolo, que desce às sombras da noite para resgatar Eurídice.
Nesse sentido, Maurice Blanchot, em O espaço literário, estabelece a correlação entre o momento inspirador
da escrita e a armadilha perpetrada pela noite. Tomando como exemplo o mito de Orfeu, Blanchot apresenta
o olhar do deus da música (que transgride a medida imposta por Plutão e Perséfone, de não voltar o rosto para
a silhueta da amada, enquanto estiver saindo do Hades) como o momento de extrema liberdade. Assim, Orfeu
liberta o sagrado contido na canção: “(...) dá o sagrado a si mesmo, à liberdade de sua essência, à sua essência
que é liberdade (a inspiração é, para isso, o dom por excelência)”41. Perdendo-se na morte e na noite, o movimento
de Orfeu é o da decifração da própria escritura, nesse caso representada pela música.
Pedro Orósio, contrariamente a Orfeu, que após voltar do Hades é sacrificado pelo ciúme das mulheres,
descobre a traição planejada por Ivo Crônico. Consegue apreender pelo olhar a maquinação velada nos rostos,
gestos e falas de seus inimigos. Decifra a canção de Laudelim e doma o tempo, Crônico, Cronos, conseguindo
subjugar seus pretensos assassinos. A boca da serpente, ou sua cauda, entrançadas pelas inúmeras camadas
semânticas e semióticas do texto, convergem, dessa maneira, para o espaço órfico. A viagem de Pê-Boi, portanto,
também se configura como uma viagem pelo nascimento da poesia: de seu caos primitivo (os sons proferidos
pelo Morro da Garça), tornando-se estória oral e, por fim, código escrito (a aventura do rei inserida nas páginas
da novela de Guimarães Rosa). Trajeto que nos remete às composições dos antigos aedos, e sua compilação
posterior por Homero; às cantigas do provençal Arnaut Daniel, troubadour da natureza e do amor, na Idade
Média; ao papel dos repentistas na divulgação do herói de Roncesvales, Rolando, no sertão nordestino. Ou
seja, em “O recado do morro”, Guimarães Rosa ensaia ficcionalmente a história da literatura oral, por meio do
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trajeto metanarrativo de uma mensagem.
O enxadeiro Pedrão Chãbergo, vencendo seus traidores, domando a “pedra das palavras”, consagra-se,
assim, como o herói do espaço lunar. Sua peregrinação encontra um aparente pouso final no povoado de Juca
Saturnino. No entanto, regida pelo signo de Saturno, deus que simboliza os obstáculos e o azar (mas também
a alavanca da vida espiritual), a estória se abre para um novo começo. As duas pontas da serpente délfica, o S
de estrada, se unem, agora, sob o olhar de Pedro Orósio, pulando de estrela em estrela, “até aos seus Gerais”.
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WISNIK, José Miguel. “Recado da viagem”. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, 2º sem., 1998.
NOTAS
1
Neste sentido, é importante notar que o livro Primeiras estórias também obedece a uma estrutura quiásmica. No centro dos vinte e um
contos se encontra “O espelho”, para o qual convergem todos os outros textos. “As margens da alegria”, primeiro conto, refrata-se no
último, “Os cimos”, e assim sucessivamente.
2
Cf João Guimarães Rosa, João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, p. 86.
3
Cf João Guimarães Rosa, João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, p. 92.
4
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém,
5
Cf. Apud Heloísa Vilhena de Araújo, O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa, p. 384.
6
Este início parece nos remeter a algumas páginas de Geoffrey Chaucer (1340? – 1400), particularmente o “Prólogo” de Os contos de
Cantuária (The Canterbury tales), em que o poeta inglês retrata, em traços breves, a comitiva de peregrinos que parte da estalagem do
Tabardo para o túmulo de Santo Tomás Beckett. No entanto, podemos notar que nesta obra, pertencente ao gênero qualificado como
Rahmenerzälung (novela enquadrada), há um motivo para a viagem, no caso, a visita ao túmulo do santo. No exemplo de “O recado do
morro”, não distinguimos com clareza o motivo que leva todos os peregrinos a viajarem pelos campos-gerais. Apenas o nórdico
Alquiste tem um interesse científico. Esta é uma característica marcante da obra de Guimarães Rosa, a falta de delimitação para o início e
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o fim da viagem. O mais importante é a travessia.
7
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 5.
8
Cf. Vilém Flusser, “Concreto-abstrato”, in: Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade, p. 151.
9
Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), p. 793.
10
Públio Ovídio Nasão, em As metamorfoses, trata de Píton, serpente que nasceu da terra após o dilúvio. Apolo vence o monstro usando
seu arco. O nome da serpente derrotada deu origem aos jogos sagrados, denominados Píticos.
11
Cf. Junito de Souza Brandão, Mitologia grega, Vol. II, p. 94.
12
Cf. José Miguel Wisnik, “Recado da viagem”, in: SCRIPTA, v. 2, n. 3, p. 168.
13
Importante notar que o número sete é referência fundamental em “O recado do morro”: as sete fazendas nas quais tomam estadia os
peregrinos guiados por Pedro Orósio e os sete traidores (correspondendo aos sete planetas da Antiguidade e da Idade Média: Lua,
Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno); os sete mensageiros do recado emitido pelo Morro da Garça; o sete como número
recorrente no Apocalipse. Além das cordas da lira de Apolo: sete.
14
O herói Hrolf Kraki também pode ser encontrado no poema anônimo escrito no século VIII, Beowulf, o mais antigo épico europeu
que trata de uma sociedade anglo-saxônica. Sendo que, no caso dessa obra, seu correspondente onomástico é Hroulf. De maneira
semelhante, o tema da traição a um rei e seus pares, encontra-se em A canção de Rolando, poema anônimo francês do século XI.
15
Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), p. 696.
16
“Bergo” também pode guardar em si a palavra alemã Berg, montanha. Cf. Ana Maria Machado, Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa
à luz do nome de seus personagens, p. 110.
17
Em verdade, de José de Alencar a Guimarães Rosa, há uma linhagem de autores cuja temática do sertão está associada à reinvenção do
herói da cavalaria medieval na figura do vaqueiro. Em O sertanejo (1875), último romance de Alencar, o personagem Arnaldo, um
vaqueiro, apresenta traços do cavaleiro medieval.
18
Cf. Clément Rosset, A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica, p. 19.
19
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 24.
20
Cf. Bento Prado Jr., “O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa”, in: Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise,
p. 225.
21
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 8.
22
Cf. Bento Prado Jr., “O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa”, in: Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise,
p. 226.
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Na geologia, o espeleotema corresponde a qualquer formação mineral originada numa caverna pela ação das águas, como a estalactite e
a estalagmite.
24
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 7.
25
Quanto ao tema do agouro nas gestas medievais, o texto de Saxo Grammaticus citado por Alquist, A saga de Hrolf Kraki e seus campeões,
é referência importante. A poucos instantes da batalha final entre Hrolf e as tropas chefiadas por sua meia-irmã Skuld (na qual sairá
derrotado), o narrador comenta o motivo que levou a uma espécie de atmosfera trágica que paira sobre Hleidargard, reino de Hrolf: o rei
e seus campeões há muito se encontravam afastados de seus deuses, acreditando apenas no próprio poder.
26
Reportamo-nos aqui ao conceito proposto por Wolfgang Iser em O Fictício e o imaginário, o qual desenvolveremos mais adiante.
27
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 22.
28
Idem, ibid, p. 15.
29
Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), p. 696.
30
Idem, ibid, p. 721.
31
Sob esse aspecto, é importante assinalarmos como Blanchot compreende a questão da “morte dos signos”. Em verdade, ele se serve
do seguinte trecho de Hegel, contido num conjunto de ensaios reunidos sob o título de Sistema (1803-1804): “O primeiro ato, com o
qual Adão se tornou senhor dos animais, foi lhes impor um nome, isto é, aniquilá-los na existência (como existentes)”. A partir daí, o
teórico francês deriva a hipótese de que a tarefa do escritor seria a de reencenar o gesto adâmico, em que a “palavra exige, portanto, como
preâmbulo a qualquer palavra, uma espécie de imensa hecatombe, um prévio dilúvio, mergulhando num mar completo toda a criação”.
Cf. Maurice Blanchot, “A literatura e o direito à morte”, in: A parte do fogo, p. 311.
32
Os conceitos por ora empregados se referem ao primeiro capítulo do livro O fictício e o imaginário, “Atos de fingir”, de Wolfgang Iser.
Segundo o crítico, o texto literário é uma forma determinada de acesso ao mundo. Esta forma, porém, não é dada de antemão pelo
mundo, e, por sua vez, o autor deve inseri-la no mundo. No entanto, inserir não é copiar as estruturas existentes, mas decompô-las. Daí
que a seleção realiza a desvinculação do real, “da estruturação semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados”. Cf.
Wolfgang Iser, “Atos de fingir”, in: O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 16.
33
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 64.
34
Cf. Oswald Dreyer-Eimbcke, O descobrimento da terra: História e histórias da aventura cartográfica, pp. 19-20.
35
Para uma análise mais detida sobre o conceito de “justaposição” e collage, como uns dos mecanismos de artificialização do neobarroco
latino-americano, sugerimos a leitura do ensaio de Severo Sarduy, “O barroco e o neobarroco”, in: América Latina e sua literatura, pp. 161178. Retomaremos o mesmo conceito de significante “ausente” quando analisarmos a construção de uma “lira órfica” em “O recado do
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morro”.
36
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, p. 32.
37
Outro texto em que Rosa exemplifica o próprio processo narrativo é “Cara-de-Bronze”, novela seguinte a “O recado do morro”, no
volume No Urubuquaquá, no Pinhém. Nela, um fazendeiro à beira da morte, Segisberto Géia, incumbe ao empregado Grivo a tarefa de
buscar o “quem” das coisas. Ou seja, a viagem do Grivo é pela própria poesia.
38
Cf. João Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, no Pinhém, pp. 47-48.
39
Na Grécia clássica, a cigarra era consagrada a Apolo. Sob esse aspecto, os sinais do deus solar se encontram disseminados em inúmeros
pontos da cartografia textual de “O recado do morro”. O arioplãe, carro puxado por urubus, parece nos remeter ao carro de Apolo,
guiado por cisnes, presente de seu pai, Zeus. Lembremos que a novela se abre sob o sol de Apolo.
40
Cf. Severo Sarduy, “O barroco e o neobarroco”, in: América Latina em sua literatura, pp. 164-166.
41
Cf. Maurice Blanchot, O espaço literário, p. 176.
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LEONOR DA COSTA SANTOS (DOUTORANDA – UFRJ)
Resumo:
Pretende-se uma aproximação entre “O burrrinho pedrês” e “Duelo”, inseridos em Sagarana (1946). Consideramse três traços distintos para essa união: a técnica de expectativa desiludida, a maneira ziguezagueante de narrar e o
princípio da indeterminação do destino. As duas novelas pertencem à obra de estréia de Guimarães Rosa e contêm
elementos característicos da “maneira Rosa de contar a vida”. Ali são ainda sementes, mais tarde tornam-se traço
distintivo. O primeiro, inserido no jogo lúdico do processo narrativo, diz respeito ao ludibrio do leitor durante a
narração da história. O segundo elemento mexe com a desconstrução do enredo tradicional, e mostra um brotar
incessante de histórias. A narrativa principal cede lugar a outras secundárias. E finalmente, o terceiro e último ponto
de aproximação das novelas está alicerçado no princípio da indeterminação do destino. Esse, por sua vez, pautado
na causalidade das ações humanas. Na impotência humana no comando de seu próprio destino.
O Pedrês nosso de cada dia, no Duelo de hoje, nos dai sempre!
ou a técnica da expectativa desiludida em “O burrinho pedrês” e “Duelo”
Este ensaio pretende estabelecer um elo de ligação entre dois contos de Guimarães Rosa – O burrinho
pedrês e Duelo, ambos inseridos na obra de estréia do autor, Sagarana (1946). Apesar de ímpares, no mínimo
três traços os irmanam: o primeiro relaciona-se à técnica de expectativa desiludida, o segundo à maneira
“ziguezagueante” de narrar e o terceiro ao princípio da indeterminação do destino.
Entende-se por técnica de expectativa desiludida de narrar, a maneira pela qual o autor distancia-se da
construção do enredo tradicional – calcada em acontecimentos lineares de causa e efeito – e envereda por
uma montagem narrativa que ludibria o leitor, sugerindo a ele pistas e caminhos que findam por deixá-lo “na
mão”. O que se pensava que é não é, e o que não se pensava ser poderá sê-lo. Segundo o próprio autor, numa
de suas cartas a um de seus tradutores: “O próprio mundo é uma sucessão de enigmas giratórios”.
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O segundo ponto em comum que ora tenta-se mostrar, diz respeito à forma ziguezagueante de narrar. Tal
aspecto já fora percebido por Ângela Vaz Leitão em O ritmo em O burrinho pedrês:
A linha narrativa ziguezagueante rompe a cronologia, mergulhando no “reservatório profundo” que é a memória
do burrinho, ou na sua fina intuição, que quase lhe confere capacidade divinatória.1
A narrativa primeira cede lugar a outra secundária, que por sua vez origina uma terceira, e que se distancia
da principal desviando o leitor por estórias e mais estórias que parecem brotar de si mesmas.
Por fim, o último elemento comum às duas novelas roseanas, liga-se ao princípio da indeterminação do
destino. Tal princípio guia-se pela casualidade das ações humanas. Tanto em “O burrinho pedrês” como em
“Duelo” o acaso é a força motriz da trama, o acidental é o determinante do fio narrativo. Conforme intervenção
do narrador em “O burrinho pedrês”, quando da escolha do burrico para a viagem: “Quem é visto é sempre
lembrado”2. Não fora sua displicente aparição próximo ao Siô Major, como lembrar do velho animal para levar
o gado?
Pretende-se, então, não obstante os inúmeros estudos anteriores, apreciar essas duas novelas nesses três
aspectos singulares, e então aproximá-las nos pontos comuns.
De enredo bastante simplório, que se ordenado segundo o cânone do romance tradicional, caberia em
poucas linhas sem novidade aparente. Trata-se de uma narrativa que vangloria a proeza de um burrico, que,
apesar da pouca vitalidade, serve de bússola salvadora a destemidos vaqueiros, que apesar de habilidosos no
manejo com o gado, vêem—se surpreendidos pela natureza “arrelienta” em forma de temporal apocalíptico,
ameaçando-os durante a viagem.
Já nesta primeira novela de Sagarana, o autor deixa bem claro que o enredo é mero pretexto à carpintaria
textual. Em Guimarães Rosa, ou o narrador está refletindo criticamente sobre o que está narrando, ou os
personagens estão vivenciando emoções. Aqui, em especial, é o “ritmo narrativo” no “concerto de vozes do
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sertão”, orquestrado pelo genial maestro, que dá requinte à narrativa.
O ritmo da narrativa e sua conseqüente aproximação com a poesia é a primeira singularidade de “O
burrinho pedrês”. Aqui o texto roseano requintou-se de tal forma, que a marcha bovina – personagem à parte –
é descrita ora por versos pentassílabos, ora por dissílabos, conforme a maior ou menor velocidade, imprimida
à marcha bovina. Nessa prosa nada é despropositado. Segundo palavras do próprio Guimarães Rosa: “Nos
meus livros nada é gratuito”. O narrar é modulado, ou seja, modifica-se em consonância com o que se quer
apresentar. O autor subordina a prosa ao espírito da musicalização. A sonoridade das palavras vem ajudar a
reproduzir a ambiência narrada.
Apesar de texto em prosa, não faltaram sequer as aliterações para aproximá-la ainda mais da poesia. O
narrador – verdadeiro encantador de palavras – descreve a marcha da boiada aparentando velocidade em :
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Danca doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem,
volta vem na vara, vai não volta, vai varando...3
Também na movimentação dos cavalos tem-se a imagem visual própria da partida: “Caracoleiam os
cavalos, com os cavaleiros em giros de picadeiro”4 Sugere-se, então, uma coreografia circense durante a
concentração dos animais para a viagem. Apontando para a impaciência dos animais, o autor descreve a
ambiência eufórica que costuma anteceder essas locomoções.
Em outros momentos de extrema musicalidade - não basta apenas sugerir imagens – Rosa vai mais além
e extraindo do significante todo o seu significado com rimas ditongadas em /ão/, descreve com mestria como
as retinas ébrias do vaqueiro Badu captam a vila, quando a vê das cangalhas do burrico: “Dançando estão,
dançando vão, as casas todas em procissão”. 5 No embalo do dorso do burrico ginga o mundo ao redor do
vaqueiro tonto. A paisagem é refletorizada pela visão embriagada de Badu e, apesar de imóvel, ela é percebida
como se solta estivesse.
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Deste imenso coral sertanejo, também participam os sapos, que num coaxar intermitente, também
pontuam a viagem bovina.: “No covo da ipueira, o coaxar dos sapos avançava longe e voltava – um... um...
um... – como se corressem escalas de um imenso teclado fanho”.6 Todas as vozes, todos os bichos participam
dessa composição pictórica da floresta virgem. Cada barulhinho, por menor que seja, revigora o ambiente da
mata na viagem dos animais.
Também as cantigas populares entremeiam a viagem, colorindo-a com a marca lírica da oralidade interiorana.
No início da marcha, irrompe o vaqueiro num ufanismo sentimental: “O Curvelo vale um conto,/ Cordisbrugo
um conto e cem./Mas as Lages não tem preço,/Porque lá mora meu bem.”7 Ora, o sertão roseano é todo
construído sobre as marcas da linguagem oral, onde as modinhas varam gerações. O homem que ali vive,
apesar de rude, socorre-se dessas canções, para embalar o lirismo, escamoteado numa aparência tosca, cultivada
para sua sobrevivência na mata.
Ainda com a sonoridade das onomatopéias, Guimarães Rosa parece afinar o som da floresta ao labirinto
do leitor: “Me molhou todo, rasgou minha roupa, diabo!... Goiabeira, pelo cheiro... Fosse um imbaré ou pau de
espinho, me matava!”...- Lhó... lhó...lhó...- vão devagar as braçadas do Sete-de-Ouros”.8(S, 65) Assim recria a
barulheira do burrico rompendo o aguaceiro da enchente, no trotar soberano do sábio.
Do imenso coral – natureza afinadíssima – também participa o pássaro que prediz a intensidade das
chuvas, amedrontando os cavalos que reconhecendo o agouro, empacam. “- João corta pau, João corta pau!”
reconta o narrador ritmando o canto “que vinha da moita em cada minuto justo.” (S, 62 ) Os bichos não só se
entendem, como obedecem aos avisos mandados pela própria natureza.
Ë neste cenário de rara musicalidade que narrador apruma a batuta e orquestra os viventes do sertão –
humanos ou não – num exercício de alteridade. Pois é justo na experiência da multiplicidade do mundo, que há
possibilidade dos contrários se complementarem. Nessa exótica paisagem todos se interligam.
O primeiro aspecto a alinhavar as duas novelas é que, em ambas, privilegia-se a técnica da expectativa
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desiludida. Guimarães Rosa despreza a lógica, já pouco comum à existência humana, e risca-a, de vez, do
texto. A escolha do velho burrico, para acompanhar a boiada em marcha, contraria a expectativa de uma
viagem segura e bem conduzida. Também é acidental o momento da decisão daqueles que acompanhariam o
Major na marcha dos bois. Acontece no exato momento em que o displicente burrico viera esgueirar-se próximo
ao pilar da varanda onde o patrão proseava. É deste incidente inicial que se determina não só a sina do
burrico, bem como o rumo da estória.
- Ara, veja, louvado tu seja! Hô-hô... Meu compadre Sete-de-Ouros está velho... Mas ainda pode agüentar uma
viagem vez em quando...Arreia esse burro também, Francolin!
- Sim, senhor, seu Major. Mas o senhor está falando sério, ou é por brincar?[...]
Com a risada do Major, Sete-de-Ouros velou os olhos, desgostoso, mesmo sem saber que eram donas de duras
as circunstâncias.9
Contudo a surpresa não fica só nisto, se a preferência pelo animal idoso é, em si, uma aberração, o
espanto maior vem da salvação da boiada inteira pelo mesmo desacreditado ser. “O burrinho é quem vai
resolver: se ele entrar n’água, os cavalos acompanham e nós podemos seguir sem susto”10.
Para o burrinho não há caminho certo, vai pelo instinto e ao final da travessia salva a todos. Com os olhos
fechados, vê com o terceiro olho, com a intuição. É o típico “personagente”, difere do personagem tradicional
na medida em que, enquanto este está enclausurado na máscara que lhe é concedida, aquele desempenha um
papel feito só para si, liberto da “persona” grega que aprisiona e asfixia. O burrinho, dono de seu destino, traça
seu papel singular à proporção que a história se desenvolve.
De volta à fazenda, com a narrativa em anti-clímax, aconchegado entre seus pares, na clarividência da
escuridão, o animal volta a dormitar.
O segundo traço, que une os dois contos em evidência, é que ambos são narrados em técnica de ziguezague.
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É Antônio Cândido quem aprecia:
Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. O autor chega à condescendência excessiva para com ela, a ponto de
quebrar a espinha das suas histórias a fim de dar relevo a narrativas secundárias, terciárias, cujo conjunto resulta mais
importante que a narrativa central.11
Neste narrar, as histórias brotam como a própria natureza. À semelhança de sua força proliferante, as
palavras também têm força geradora. E a viagem é toda pontuada com casos, que contados pelos vaqueiros,
colorem o tempo da travessia sugerindo ao leitor uma ambiência épica, dado o conteúdo heróico das narrativas
secundárias. Essas, entremeadas, engrandecem a principal.
A esse respeito também aponta Ângela Vaz Leão:
No conto de Guimarães Rosa, a história central, do burrinho é intermitente: a todo momento é interrompida por
longas descrições da boiada e por episódios vividos pelos vaqueiros...[...] Mas o melhor contador de casos é Raimundão.
Se interrompe a narrativa para falar da boiada ou da chuva, os companheiros e próprio patrão lhe pedem que continue.
A fala é viva e poética, obtendo plena adesão dos ouvintes, entre os quais se inclui o leitor. 12
Em “O burrinho pedrês” o narrador não se concentra nas ações humanas. Os homens apenas adquirem
relevo quando se intimidam com os animais. Durante a viagem, é possível extrair-se das histórias contadas a
intimidade do homem com natureza. Nelas os heróis estão absolutamente vulneráveis aos desígnios da natureza.
Vale lembrar aqui, não só o lamento bovino em solidariedade ao pretinho, retirado do convívio materno a
contra gosto, bem como a fuga maciça da boiada, durante a noite, num protesto ainda mais expressivo de
apoio ao menino lesado. “Que é do gado?! Só o rastro da arrancada. Tinham arribado de noite!...[...] Saudade
em boi eu acho que dói mais do que na gente...”13
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Outro momento da narrativa que revela a íntima relação do homem com as forças naturais, decorre da
história do boi Calundú, contado pelo vaqueiro Raymundão. O zebu traiçoeiro é cruelmente fulminado pela
fúria da natureza, num acerto de contas pela traição ao pequeno menino que lhe oferecera sal nas mãos. “O
Calundu, aquilo ele berrava um gemido rouco, de fazer piedade e assustar... [...] Ele está arrependido por ter
matado o menino.[...] De manhã cedo, no outro dia ele estava murcho, morto, no meio do curral...”14(S, 44)
Finalmente, o terceiro ponto passível de semelhança entre os contos o “O burrinho pedrês” e “Duelo”
refere-se ao princípio da indeterminação do destino. A ele subjaz a casualidade dos fatos em detrimento da
causalidade dos atos.Embora esse aspecto apareça, ainda em forma embrionária no primeiro conto, no segundo
ela se acentua e ganha corpo.
Na história do burrinho, a indeterminação do destino começa já na sua origem, quando é apontada uma
noção vaga de um animal que veio “não se sabe de onde no sertão”.15Por conseqüência e pela idade avançada
vale também para seu destino: perambula à toa pela fazenda, sem ser apercebido, embalsamado por um sono
quase crônico. “Enfarado de assistir a tais violências o Sete-de-Ouros fecha os olhos. E cabisbaixo volta a
cochilar”.16 Ora, nesta circunstância, praticamente à margem da rotina laborativa da fazenda, só mesmo um
acidente de percurso poderia guinar o destino do animal e erguê-lo a categoria de herói. Como já dito antes,
apenas a exposição meramente acidental aos olhos do Major Saulo, bem como a fuga inesperada dos cavalos
na noite anterior, puderam levá-lo à convocação para a viagem. Ora, também para montá-lo é escolhido o
mais leviano dos vaqueiros: “O João Manico vai tocar a boiada no burrinho! Imagina só, meu-deus-do-céu,
que graça!...17
Estes três aspectos, aqui apontados, serão retomados adiante em “Duelo” e relacionados ao “O burrinho
pedrês”.
“Duelo” é o conto aqui escolhido, também de Sagarana, para fazer contraponto ao “O Burrinho Pedrês”.
Este abre o livro de sagas, sugerindo um enredo construído em zigue-zague e usando, sem medida, a técnica
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da expectativa desiludida. Contudo é com Duelo, que o autor atinge seu auge, nesta maneira ímpar de narrar
histórias: quanto mais o leitor envereda pelo “caminho roseano”, tanto mais sujeito a novidades estará.
O enredo desta novela é no mínimo, curioso. O título apesar de ensejar luta - duelo - não estende à trama
o confronto real, ou seja, os rivais nunca se encontram. Trata-se de uma perseguição originada por um flagrante
de adultério. Turíbio Todo, o marido enganado, retorna de viagem sem avisar e encontra a mulher, em carícias
íntimas com Cassiano Gomes. Contudo, considerando o porte e habilidades do rival, o marido surpreendido,
em vez de enfrentar a situação, prefere contar até dez e dar meia volta, deixando o acerto de contas para mais
tarde. “Respirava fundo e a sua cabeça trabalhava com gosto, compondo urdidos planos de vingança”.18Isto
posto, “numa quinta-feira” vai até a casa de Cassiano Gomes tocaiar-se e executar o rival. Aproveita o momento
em que este aparece na janela e atira. Qual não é o desatino quando se dá conta que, a bala em vez de acertar
o pretenso alvo, pegou o irmão. Nesse exato momento, o perseguidor vira perseguido e a história toma um
rumo inesperado. Agora quem terá de fugir mata adentro é Turíbio Todo e não mais Cassiano Gomes. A
perseguição é tão desbaratada, que há momentos, em que os dois se cruzam em direções opostas, cada qual
galopando para um lado. Meses passados neste pesadelo, Cassiano Lopes, que já dera baixa da polícia por
insuficiência cardíaca cansa da correria insana e adoece. Nesse momento, cria raízes em um povoado, onde
acaba por salvar a vida do filho de um “pobre diabo” apelidado Vinte-e-um. Agradecido pela nobreza do
gesto, o tal homem se mostra disponível a executar qualquer serviço de que o doente careça. É nessa hora que
Cassiano, embora partindo desse mundo, deixa a incumbência da punição ao outro que fica. Por outro lado,
Turíbio Todo tão logo se dá conta de que não está mais sendo perseguido – noticiado que é da morte de
Cassiano – prepara-se para voltar ao arraial e retomar a “feliz” vida matrimonial. Pois é nesse retorno, já perto
de recuperar a rotina conjugal que Turíbio é surpreendido por Vinte-e-um, que mesmo contrariado, dá cabo de
sua vida em atenção ao combinado com Cassiano Gomes. “Turíbio Todo pendeu e se afundou na sela, com
uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo correu; o pé do defunto se soltou do estribo. O corpo
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prancheou, pronou e ficou estatelado.”19(S, 172)
Das sagas desenvolvidas em Sagarana, “Duelo” é a que mais sugere o enredo da casualidade dos
acontecimentos, a que mais coloca o leitor em pista errada. Pela lógica padrão, o drama de vingança exige que
o ofendido lave sua honra tão logo aviltada, contudo não é o que ocorre. Turíbio Todo, que de “todo ou
inteiro”, parece não ter nada, vira um “nadinha”, quando se depara não só com a cena de adultério, mas com
a “grandeza” do rival. Ao invés de fechar a expectativa do leitor, encerrando o episódio adultério, o autor cria
uma perspectiva futura de acerto de contas. O ofendido recua “como o bom, o legítimo capiau, quanto maior
é a raiva tanto melhor e com mais calma raciocina”20, e quando vai vingar-se do adversário, erra o alvo e atira
no irmão de Cassiano Gomes. Daí então, o perseguido passa a perseguidor, e a narrativa toma um rumo
totalmente inesperado. Por outro lado, como os duelistas jamais se encontram, a estrutura do conto passa de
lógica à lúdica.
Em “Duelo” pode-se dizer que um jogo rítmico leva à tensão das ações, que se paralelizam e surpreendem
o leitor. Nessa organicidade artística de ações paralelas aparece um elemento novo: a týche > futuro >
fortuna > boa ou má sorte, que com tal força atua como um protagonista do drama, promovendo o ziguezague das ações. É quando o drama de vingança passa a drama irônico do acaso. O eventual suplanta o real, o
imprevisível o previsível, e a lógica canônica, cartesiana, é posta em cheque. Tudo porque na mundividência
roseana “As coisas acontecem, ninguém faz nada, pensa que faz.”
Assim como em “O Burrinho Pedrês” em “Duelo” Guimarães Rosa “usa e abusa” da técnica da expectativa
desiludida. O momento ímpar da narrativa acontece quando o narrador justifica a “meia volta” do ofendido ao
flagrar a mulher em adultério:
Turíbio Todo não ignorava isso, nem que Cassiano Gomes era inseparável da parabellum, nem que ele, Turíbio,
estava no momento, apenas com a honra ultrajada e uma faquinha de picar fumo e tirar bicho do pé. 21(S, 143)
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Turíbio que enfrentaria o rival de pronto, recolhe-se em função do poder embutido na sua aparência. O
duelo, em vez de intempestivo, é calculado para o futuro. Foge, então, às regras de praxe o contumaz ajuste de
contas do sertanejo, comumente regado à paixão e raiva.
O segundo momento importante, onde se depara com a técnica acima aludida, diz respeito à morte
acidental do irmão de Cassiano, que consoante informa o narrador, “detestava mexida com mulher dos outros’.
Ora, justamente aquele homem, pouco afeito à cobiça da mulher alheia, por um equívoco, termina penalizado
com a própria vida. Desse engano, origina-se um novo rumo absolutamente diverso à trama, mudando inclusive
a posição dos dueladores.
O terceiro episódio curioso de Duelo é relativo a Vinte-e-um, personagem que acidentalmente topa com
Cassiano Gomes e termina por vingá-lo. Grato, por ter tido o filho doente salvo, Vinte-e-um oferece seus
préstimos a Cassiano, quando esse já se encontra muito debilitado e prestes a morrer. Quem é Vinte-e-um
nessa narrativa? Apresenta-se ele mesmo: “..minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro...E por via
disso eles botaram esse nome em mim.”22 Contudo, o que o torna singular, é que, visto pela primeira vez por
Cassiano quando apanhava de um dos irmãos desabafa: “...minha mãe sempre falava p’ra eu não levantar a
mão p’ra irmão meu mais velho...”23(S, 163) Sendo, então o mais novo da extensa prole, fora o próprio “saco de
pancadas” da família, e a ele coube dar cabo de Turíbio Todo.
Por fim, ainda relacionado ao item anterior, tem-se a tremedeira que acomete o matador antes de eliminar
Turíbio. ‘A mão da garrucha do capiauzinho tremia.”24 Outra vez, é justo “Timpim”, apelido outro do matador,
que remete a “tipinho” é quem vai por fim à peleja incessante, nem que trêmulo da cabeça aos pés.
Ora, no tocante à técnica de expectativa desiludida, parece que os elementos acima apontados são
suficientes para provar-se a incidência desta característica na trama.
O segundo traço, do qual compartilham as duas novelas, é o da narrativa em zigue-zague. Não fosse o
próprio traçado de perseguição – os personagens nunca se encontram – (“Depois, viajaram quase de conserva,
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perfeitamente paralelos, e a hora da missa-cantada, e o fim de tanta caceteação”25), as histórias menores que
povoam a trilha dos “fugitivos” na mata, seriam o suficiente para demonstrar este traço em Duelo. Inclusive, o
encontro com o assassino “encomendado”, vem através de uma história menor dentro da principal, quando
Cassiano, já cansado da vã correria, pára num povoado, pela debilidade física, onde troca dinheiro por serviço.
Finalmente, o terceiro e último traço relevante em “Duelo”, que é também típico de o “O burrinho
pedrês”, liga-se ao princípio de indeterminação do destino. Ora, também à reboque da técnica de expectativa
desiludida, a indeterminação do destino é marca registrada em Duelo. A volta antecipada de Turíbio, o flagrante
do marido “traído”, o ajuste de contas postergado, o tiro equivocado, a fuga às pressas do homicida, a morte
do perseguidor acelerada pela canseira da perseguição, a encomenda de crime de vingança, e por fim a morte
de Turíbio Todo por Vinte-e-um, cuja sina na vida fora apanhar dos vinte irmãos predecessores, fazem com
que em “Duelo”, o futuro tenha mesmo forma de interrogação.
Às vezes, só o lugar comum tem a força necessária para expressar certas idéias: a narrativa roseana é
mesmo revolucionária! Tanto na técnica utilizada, como na abordagem que faz do real, esmiuçando a vida, a
natureza, os entes da floresta, os rios, as aves, até mesmo os mínimos barulhos que compõem a sinfonia
existencial! Guimarães Rosa faz muito mais do que a mera recriação da ambiência sertaneja. Não admite a
realidade como constituída e pronta. Propõe antes, uma interação harmônica de todos os viventes, inclusive
do homem – bicho tão escuso! Mostra que “o que acontece em um, repercute no outro”. Aponta para a
inserção do homem no mundo cósmico, respeitando as diferenças e compondo uma unidade plural.
Nas novelas aqui abordadas, “Duelo” e “O burrinho pedrês” a casualidade do destino vem reforçar a
idéia de que “as coisas simplesmente acontecem, nós nada fazemos”. Em Duelo, a idéia do imponderável que
germinara em O burrinho pedrês, quando do salvamento de todos, por um velho burrico há muito desacreditado,
ganha ainda mais força, pois na segunda novela, as marcas da imprevisibilidade são ainda mais fortes na
narrativa. A lógica cartesiana cai por terra abaixo e o caminho novo que se descortina é o da eterna
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imprevisibilidade dos fatos. Desta forma, os duelistas ziguezagueam sem rota certa, rumo a um embate que
nunca acontece.
Por fim, atentando-se à sugestão do título deste ensaio - O pedrês nosso de cada dia, no duelo nos dai
sempre - tomara que se tenha, no dia-a-dia, a intuição do velho burrico sonolento e sábio, para os estonteantes
duelos da vida, que tanto enfado nos trazem!
BIBLIOGRAFIA
CANDIDO, Antonio – Sagarana. In.: COUTINHO, Eduardo, org. Guimarães Rosa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
________. Mineiros de Claudio a Guimarães. In.: Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.
________. O homem aos avessos. In.: Tese e antítese. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1964.
CARDOSO, Wilton – A estrutura da composição em Guimarães Rosa In.:
Ciclo de
Conferências sobre Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1966.
LEÃO, Ângela Vaz. O ritmo em “O burrinho Pedrês” In.: COUTINHO, Eduardo. org.
Guimarães Rosa. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1983.
OLIVEIRA, Franklin. Guimarães Rosa. In.: COUTINHO Afrânio, org. A literatura no
Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
OLYMPIO, José. org. Em memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1968.
ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1980.
______, João Guimarães. Sagarana.23.ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1980.
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SOUZA, Ronaldes de Melo e. “A criatividade da memória.” In.: VENCESLAU, Francisco.
org. Historicidade da Memória. Rio de Janeiro, Caetés, 2001.
_______. Introdução à poética da ironia. Linha de Pesquisa. Rio de Janeiro: vol.1 27-48, 2
2000.
________. O narrador metamórfico de “A hora e a vez de Augusto Matraga.” Rio de
Janeiro.
________. Anotações de aula do curso A saga roseana do sertão no 1º semestre de 2004 na Faculdade de
Letras da UFRJ.
NOTAS
1
VAZ, Leitão Angela (1983) p.250
2
Rosa, Guimarães. (1980) p.8
3
Rosa, Guimarães. (1980) p.8
4
Idem. p.13
5
Idem. p. 49
6
Idem. p. 51
7
Idem. p. 23
8
Rosa, Guimarães. (1980) p.8
9
Idem. p.8
10
Idem. p.61
11
CANDIDO, Antônio. (1983) p. 246
12
VAZ, Leitão Ângela. (1983) p. 250
13
Rosa, Guimarães. (1980) p. 58
14
Rosa, Guimarães. (1980) p. 44
15
Rosa, Guimarães. (1980) p. 3
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Idem.p.7
Idem p.11
18
Idem p. 143
19
Rosa, Guimarães. (1980) p. 172
20
Idem. p.142
21
Idem. p.143
22
Rosa, Guimarães. (1980) p. 172
23
Idem. (1980) p. 163
24
Idem.(1980) p. 171
25
Idem.(1980) p. 151
16
17
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LUIZ RUFFATO
Resumo:
Sempre me perguntei porque alguns autores, independentemente de juízo de valor, inoculam nas gerações
seguintes traços de sua personalidade criadora, que poderíamos nomear “diálogo” mais que “influência”, enquanto
outros produzem obras impermeáveis, que encerram-se em si mesmas. Não encontrei respostas, mas ouso uma
hipótese, escudado numa máxima de Northrop Frye, de que a literatura é “uma fonte inexaurível de novas
descobertas críticas e continuaria sendo, mesmo que novas obras literárias cessassem de ser escritas”.1
... E GUIMARÃES ROSA NÃO DEIXOU SEGUIDORES...
Sempre me perguntei porque alguns autores, independentemente de juízo de valor, inoculam nas gerações
seguintes traços de sua personalidade criadora, que poderíamos nomear “diálogo” mais que “influência”,
enquanto outros produzem obras impermeáveis, que encerram-se em si mesmas. Não encontrei respostas,
mas ouso uma hipótese, escudado numa máxima de Northrop Frye, de que a literatura é “uma fonte inexaurível
de novas descobertas críticas e continuaria sendo, mesmo que novas obras literárias cessassem de ser escritas”.2
Assim, penso que poderíamos dividir os escritores em duas categorias: os emuladores e os esterilizantes. Por
emulador entendo aquele que incita os pares a perseguir seus passos, seja estilisticamente, seja em termos de
visão de mundo; e por esterilizante, aquele que paralisa, castra uma possível descendência.
Ambos os grupos encabeçam-nos dois dos maiores nomes da história da literatura brasileira. De um
lado, Machado de Assis; de outro, Guimarães Rosa. Machado de Assis, cada vez mais reconhecido com um
dos maiores escritores que a humanidade produziu, seria, na minha nomenclatura, exemplo maior de autor
emulador. Ironicamente, contrariando Brás Cubas, que conclui sua narrativa com a célebre frase, “não tive
filhos, não transmiti a nenhuma creatura o legado da nossa miséria”3, seu criador fecundou uma extensa
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filiação, desde um hoje esquecido Pedro Rabello (1868-1905), autor dos contos de A alma alheia, até um
Murilo Rubião (1916-1991), passando por Lima Barreto (1881-1922), Graciliano Ramos (1892-1953), Cyro
dos Anjos (1906-1994) e Marques Rebelo (1907-1973), entre outros. Poderíamos assim constatar uma já rica
tradição machadiana na literatura nacional.
Guimarães Rosa, por outro lado, seria o representante mais paradigmático da segunda acepção, a do
autor esterilizante. Experimentalista e renovador como Machado de Assis, não há notícia de escritor importante
que possa ser considerado de linhagem roseana. Há, talvez, pastiches, imitações, epigonias – ou seja,
condenações. Mas nunca diálogos. Antes que me bradem nomes como o do romancista Mário Palmério (19161996), com seu Vila dos confins, ou do poeta Manoel de Barros (1916), ou mesmo do angolano Luandino Vieira
(1935) ou do moçambicano Mia Couto (1955), concordemos provisoriamente que aqui se trata de criação de
outra natureza.
Para mim, Guimarães Rosa não deixou seguidores pela simples razão de que, assim como alguns
poucos outros autores (e poderia citar uma Clarice Lispector ou uma Hilda Hilst, por exemplo), ele não pode
ser entendido como um autor “realista”, ao contrário de Machado de Assis. A linguagem é um meio para a
descrição do mundo – adequa-se às necessidades implícitas do escritor. Como afirma Guimarães Rosa, em
carta a Curt Meyer-Clason, “a língua, para mim, é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável,
sempre perfectível, etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do homem de Deus, da Transcendência”.4
E, no caso, sua linguagem permeia e é permeada pelo mundo que criou, situado fora do espaço e do tempo,
habitado antes que por indivíduos, por tipos – um sertão e um sertanejo míticos em suma, porque, afirma
Guimarães Rosa, “o sertão é o terreno da eternidade”5 e, na eternidade, sabemos, o tempo e o espaço encontramse suspensos.
Daí advém a genialidade de Guimarães Rosa e também sua solidão – basta lembrar que ele não foi, em
sua época, a unanimidade que hoje se tornou. Em 1958, a revista Leitura produziu uma enquete, intitulada
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Escritores que não conseguem ler ‘Grande Sertão: veredas’, que ocupou duas páginas da publicação, listando nomes
como Barbosa Lima Sobrinho, Osório Borba, Jayme Adour da Câmara, Permínio Ásfora e Joel Silveira, entre
outros, chegando Adonias Filho a afirmar, categórico: “Na obra de Guimarães Rosa – e tenho que o declarar
com a maior franqueza – se não encontro o ficcionista, também não encontro o escritor”.6 Pode-se argumentar,
com razão, que talvez essa certa má vontade da crítica se deva àquele momento, que é de reorientação estética
da literatura brasileira – os romancistas dito “regionalistas” perdiam pouco a pouco espaço para o que veio a
se chamar mais tarde, genericamente, de “literatura intimista”. Só para lembrar, 1956 marca o lançamento de
O encontro marcado, de Fernando Sabino, Doramundo, de Geraldo Ferraz, A lua vem da Ásia, de Campos de
Carvalho e Contos do imigrante, de Samuel Rawet (1929-1984). Mas, creio, essa constatação não antecipa o
ponto onde quero chegar.
Quando afirmo que Guimarães Rosa não é um autor “realista”, e que, por isso – por ter criado um
mundo mítico e uma linguagem própria para descrevê-lo – não deixou descendentes, estou tomando de
empréstimo a conceituação de Ian Watt. Em seu fundamental A ascensão do romance7, Watt afirma que a introdução
do “realismo formal” seria a característica essencial que marca a diferença entre a obra dos romancistas do
início do Século XVIII e a ficção anterior. Por “realismo formal”, o ensaísta entende um “conjunto de
procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros
literários que podem ser considerados típicos dessa forma”8. Grosso modo, assim poderíamos resumir esse
“conjunto de procedimentos narrativos”: individuação dos personagens, dimensões espacial e temporal e
linguagem específicas.
Poucas entrevistas deu Guimarães Rosa ao longo de sua vida e, acredito, mais por horror à controvérsia
que pelo gosto da conversa. Instado a fazer declarações públicas, recolhia-se no silêncio ou na dissimulação,
caráter atribuído à mineiridade que o autor cultivava como a uma flor. Mas, à reserva pública, opunha-lhe a
excitação da correspondência com alguns poucos privilegiados – seus tradutores italiano e alemão,
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principalmente, Edoardo Bizzarri e Curt Meyer-Clason. Não uma excitação amazônica, que feriria seus
princípios, mas, digamos, sãofranciscana. Portanto, a ir à obra para explicitar alguns pontos dessa exposição,
preferi recorrer às cartas e às raras entrevistas, que expõem a intenção do artista, possibilitando a abertura de
caminhos para o entendimento de seu processo de escritura.
Watt afirma que o romance se diferencia dos outros gêneros e de formas anteriores de ficção “pelo
grau de atenção que dispensa à individualização das personagens e à detalhada apresentação de seu ambiente”9.
Assim, o enredo “envolveria pessoas específicas em circunstâncias específicas, e não, como fora usual no
passado, tipos humanos genéricos atuando num cenário basicamente determinado pela convenção literária
adequada”10. E a maneira pela qual o romancista indica sua intenção de apresentar uma personagem como um
indivíduo particular é nomeando-a da mesma forma que os indivíduos particulares são nomeados na vida real.
“Os nomes próprios têm exatamente a mesma função na vida social: são a expressão verbal da identidade
particular de cada indivíduo”11.
Vejamos, agora, o processo de nomeação dos personagens, assunto pelo qual Guimarães Rosa, todos
sabemos, dedicava uma particular atenção. Em carta a Edoardo Bizzarri, o escritor esclarece: “quanto a ‘O
recado do morro’, gostaria de apontar a Você um certo aspecto planetário ou de correspondências astrológicas,
que valeria a pena ser acentuadamente preservado, talvez. Ocorre nos nomes próprios assinalamento
onomástico-toponímico:
As fazendas, visitadas na excursão:
Os companheiros de Pedro Orósio:
1 – Jove
2 – dona Vininha
3 – Nhô Hermes
4 – Nhá Selena
(JÚPITER)
(VÊNUS)
(MERCÚRIO)
(LUA)
o Jovelino
o Veneriano
o Zé Azougue
o João Lualino
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5 – Marciano
6 – Apolinário
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(MARTE)
(SOL)
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o Martinho
o Hélio Dias (Nemes)”12.
Ou seja, nesse caso, os nomes próprios, de lugares e de personagens, estão cada um deles relacionados
a um astro, conferindo-lhes uma tipificação específica. O processo também se percebe em Grande sertão: veredas:
Riobaldo assim se chama até tornar-se jagunço, quando então passa a ser Tatarana ou Lagarta-de-Fogo, ou
ainda Urutu-Branco, quando assume a chefia do bando. E Diadorim, Reinaldo para o resto do bando, tem
como nome de batismo, no final revelado, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Não nomes e apelidos,
mas nomeações funcionais, modelares.
Passemos para o segundo aspecto que constitui o “realismo formal”, segundo Watt, a dimensão espacial.
“As personagens do romance”, afirma, “só podem ser individualizadas se estão situadas num contexto com
tempo e local particularizados”13. Ora, aparentemente essa é a grande certeza que nos concede Guimarães
Rosa, a de que estamos pisando território conhecido e sobejamente explorado, os sertões de Minas Gerais,
com pequenas incursões à Bahia e Goiás. Alan Viggiano, em seu Itinerário de Riobaldo Tatarana14, esmiúça as
andanças do bando com uma impressionante precisão cartográfica. Mas será mesmo que esse espaço, verossímil,
é real? É com uma curiosidade de naturalista europeu do Século XVIII que Guimarães Rosa registra nomes de
plantas e acidentes geográficos, anota cantigas populares, vocábulos e costumes sertanejos, descrevendo
minuciosamente o espaço onde se dão os embates de suas histórias.
Mas se faz isto é apenas para tornar reconhecível sua saga – porque o sertão que ele cria “está em toda
parte”. Em sua correspondência com Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa, em várias momentos, assume que
inventou-se botânico, lingüista, etnógrafo, antropólogo ou geógrafo. Num passo, por exemplo, discordando de
seu tradutor, que insistia em colocar um adendo explicativo a um coco, que seria usado como epígrafe de DãoLalalão na edição italiana, o escritor argumenta que isso quebraria o “encantamento mágico, a que visamos, e
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traz o acento para o aspecto ‘documentário’ do livro – que é apenas subsidiaríssimo, acessório, mais um ‘mal
necessário’, mas jamais devendo predominar sobre o poético, o mágico, o humor e a transcendência metafísica”15.
Em carta a Curt Meyer-Clason, explicita, de outra maneira: “quanto aos nomes próprios de lugares, penso que
deveria traduzir muitos deles, principalmente os inventados”16, o que clareia seu processo de apor ao mapa
real o seu mapa imaginário. Regina Zilberman, em sua tese de doutoramento em Filosofia pela Universidade
de Heidelberg, afirma que o autor, “ao concluir a sua definição de espaço, este deixa de determinar uma parte
dentro de um todo, mas confunde-se com a totalidade”17. Ou ainda nas palavras do próprio Guimarães Rosa:
“este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo
o modelo de meu universo”18.
Passemos à questão da dimensão temporal. Entende Watt que “o romance constitui um relato completo
e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como
a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes que são
apresentados através do emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas
literárias”19. Ora, aqui a questão aparece mais simples. A dimensão temporal, na maior parte da obra de
Guimarães Rosa, não é explicitada. Pode ser referenciada, ou subentendida – um momento impreciso entre
finais do Século XIX e início do Século XX – mas tudo vago e indeterminado. Um tempo sem tempo num
espaço mítico onde vagam personagens-tipos em busca da ordenação de um mundo primitivo e violento, em
que crenças e fantasias são tão concretas quanto bois e cavalos. Ou, nas melhores palavras de Regina Zilberman:
“quanto ao absolutismo do tempo primordial, destaca-se a identificação entre o momento histórico vivido e
um primitivismo essencial, que ultrapassa o atraso cultural historicamente determinado em que vivem os
sertanejos mesmo na atualidade. Esta primitividade é a do início do mundo”.20
Acredito que talvez possamos nos encaminhar agora para uma constatação provisória de que Guimarães
Rosa estabelece em sua obra uma relação diferenciada do “realismo formal”, em que, mais importante que o
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tempo e o espaço “reais”, onde cavalgam indivíduos, interessa-lhe o tempo e o espaço míticos, onde se
desenrolam a ação. Afirma o escritor, em carta a Bizzarri, “sou profundamente, essencialmente religioso,
ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o Riobaldo do
“G.S.:V.”, pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí, todas as minhas, constantes, preocupações religiosas,
metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio-existencialista-cristão (alguns me classificam assim),
meio neoplatônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os
livros são como eu sou”.21
Para descrever esse mundo original, a linguagem realista não basta. Guimarães Rosa afirma então que,
como sobre o sertão (aqui entendido como lugar onde “a magia é inseparável de todos os aspectos da vida”22)
não podia fazer ‘literatura’ do tipo corrente, teve de buscar um “idioma próprio” – a língua considerada como
“elemento metafísico” –, utilizando cada palavra “como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das
impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original”.23 Seu diálogo se dá portanto não com as
formas literárias correntes a partir do Século XVIII, mas com as formas anteriores, calcadas na épica: “Eu
mesmo fiquei espantado de ver, a posteriori, como as novelas, umas mais, outras menos, desenvolvem temas
que poderiam filiar-se, de algum modo, aos ‘Diálogos’, remotamente, ou às Enéadas, ou ter nos velhos textos
hindus qualquer raizinha de partida. Daí, as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck”24.
Evidentemente, sendo Guimarães Rosa um homem do Século XX, seria anacrônico o rotularmos de
“autor épico”, até porque, agindo assim, estaríamos talvez reduzindo sua genialidade, que está justamente na
sua capacidade de estabelecer uma ponte entre a tradição mais arquetípica da literatura e o mundo hodierno –
a transcendência que garante a perenidade de sua obra. Contemporâneo e clássico, dono de uma linguagem
própria e inimitável, assenhorou-se de um mundo – o sertão roseano – que, por fechado em si mesmo, torna
impossível influências posteriores, ou seja, permite-me conceituá-lo como autor esterilizante. Depreendo
daqui uma última ilação. Nunca compreendi o enquadramento de Guimarães Rosa no escaninho de “autor
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regionalista” – aliás, sempre me incomodou o próprio termo “regionalismo”, para o qual até hoje não encontrei
conceituação adequada. Não podemos entendê-lo “regionalista” se tomarmos o espaço da ação como parâmetro
– o seu sertão de Minas Gerais é uma fabulação abstrata e, segundo ele mesmo, acessória. Também assim caso
tomemos a linguagem como parâmetro, porque mais uma vez poderíamos incorrer no erro de acreditar que a
sua é a linguagem “mineira” – quando ele apenas decalca uma oralidade característica, subvertendo-a em seu
ritmo, sintaxe e semântica. E se nos guiarmos pela temática, sua obra, que anseia a “posse da totalidade, do
absoluto, da simultaneidade e plenitude eternas”25, cairia submetida a enredos de aventuras banais.
Aliás, essa é uma questão que sempre lhe provocou mal estar. Ao responder à pergunta de Lorenz, se
se incluía no grupo de literatos brasileiros denominados “regionalistas”, o autor enuncia, mineiramente, “sim
e não”, esquivando-se de retorquir26. A mesma indagação lhe fez Ascendino Leite, se ele aceitava a classificação
de “regionalista” para Sagarana, e ele novamente desvia do assunto: “Aceito tudo. Fico neutro, nesta matéria”27.
Parece que a resposta está em outro lugar: “Quem interpreta como um nacionalismo mesquinho o fato de eu
partilhar a maneira de pensar e de viver do sertão, é um tolo...”28, já que para ele “o escritor deve se sentir à
vontade no incompreensível, deve se ocupar do infinito”29.
Eu, confesso, sinto-me mais à vontade em entender Guimarães Rosa dentro de uma própria conceituação,
que é uma verdadeira declaração de como gostaria de ser compreendido pela posteridade: “Por isto mesmo,
como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1
ponto; b) enredo: 2 pontos.; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos. Naturalmente, isto é
subjetivo, traduz só a apreciação do autor, e do que o autor gostaria, hoje, que o livro fosse.”30 Mas, como ele
próprio afirma, em arte não vale a intenção.
NOTAS
1
FRYE, Northrop. Fábulas de identidade. Estudos de mitologia poética. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo, Nova Alexandria, 2006,
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pág. 16.
2
FRYE, Northrop. Fábulas de identidade. Estudos de mitologia poética. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo, Nova Alexandria, 2006,
pág. 16.
3
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. (Edições críticas de Machado de Assis). Rio de Janeiro/Brasília, Civilização
Brasileira/MEC, 1975, pág. 301.
4
ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organizaçãoe notas Maria
Aparecida Faria Marcondes Bussolotti. Rio de Janeiro/Belo Horizonte, Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras/Editora UFMG,
2003, pág. 412.
5
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa.In: Guimarães Rosa. Seleção de textos: Eduardo de Faria Coutinho. Rio de Janeiro/
Brasília, Civilização Brasileira/INL, 1983, pág. 86.
6
In: Leitura. Rio de Janeiro, Ano XVII, Outubro de 1958, n° 16, pág. 50-A.
7
A ascensão do romance. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
8
Op. cit., pág. 31.
9
Idem, pág. 19.
10
Ibidem, pág. 17.
11
Ibidem, pág. 19.
12
ROSA, J. Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano. São Paulo, Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1972, pág. 64.
13
Op. cit, pág. 22.
14
VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana. 2ªa edição. Rio de Janeiro/Brasília, Livraria José Olympio Editora/INL-MEC,
1978.
15
Op. cit, pág. 94.
16
Op. cit, pág. 165
17
ZILBERMAN, Regina. Do mito ao romance – tipologia da ficção brasileira contemporânea. Caxias do Sul. Universidade de Caxias do Sul/
Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes, 1977, pág. 96.
18
LORENZ, Günter. Op. cit., pág. 66.
19
Op. cit, pág. 31.
20
Op. cit., pág. 97.
21
Op. cit., pág. 67.
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ROSA, J. Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano. Op. cit., pág. 60
LORENZ, Günter. Op. cit., pág. 81.
24
ROSA, J. Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano. Op. cit., pág. 67.
25
ROSA, J. Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano. Op. cit., pág. 29
26
Op. cit., pág. 66.
27
LEITE, Ascendino. Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa. Org. Sônia Maria van Dijck Lima. 2ª edição, revista. João Pessoa,
Editora Universitária, 2000, pág. 61.
28
LORENZ, op. cit., pág. 86.
29
LORENZ, Günter. Op. cit., pág. 89.
30
ROSA, J. Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano. Op. cit, pág. 68.
22
23
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MANUEL ANTÔNIO DE CASTRO (PROFESSOR TITULAR DE POÉTICA – UFRJ)
Resumo:
A vida aparece em Grande sertão: veredas como uma imensa teia da vida, onde quem faz a teia são as questões. A
vida enquanto questões. Atravessar essa teia é o grande desafio do viver, pois viver é muito perigoso. Podemos nos
perder nos descaminhos labirínticos da rede, nos buracos que sempre nos espreitam, nos enlaçamentos dos nós.
Podemos ficar nas “veredas tortas” e nas “veredas mortas”, nos entre-cruzamentos. Podemos ficar sem finalidade,
enredados nas múltiplas solicitações das funções ou profissões em que somos usados para a rede funcionar. A
função profissional deixa de ser função na travessia para se tornar a própria finalidade e sentido de vida. E neste
funcionamento a própria obra de arte se vê analisada e envolvida e reduzida a formas e funções.
GRANDE SER-TAO: A TRAVESSIA
Vivendo se aprende, mas o que se aprende, mais,
é só a fazer maiores perguntas
(Rosa, 1968: 312).
Arte e vida
A arte, toda arte, é alimento para que cada um faça da sua vida uma obra de arte. Porém, há uma
questão, que é o maior desafio em nossas vidas. Qual? Fazer da arte vida. É neste horizonte de fazer da arte
vida que se coloca a questão radical para cada um de nós: nossa travessia.
O autor, a obra e o leitor
Um autor sem obra não é autor. Há uma tendência muito grande em nos prendermos à vida do autor e
às circunstâncias em que sua obra nasceu. Tudo isso é muito perigoso, pois pode nos desviar da obra, do
operar da obra. Obra vem do termo latino opus, ligado ao verbo operari, ou seja, operar, trabalhar, agir. Obra,
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em si, diz o que opera, o que age. Neste agir e por este operar não só surge o autor, o poeta, mas também o
leitor. Nós não lemos o autor, o poeta, mas, sim, a obra e é ela que opera, age e não e jamais o autor. No
famoso poema Autopsicografia, Fernando Pessoa diz:
O poeta é um fingidor.
Igualmente podemos dizer: O leitor é um fingidor. É a obra que faz o autor, é a obra que faz o leitor. E
é a arte que faz a obra de arte. E qual é a relação entre fingir e obra? O fingir da obra não é, evidentemente, um
mentir, um inventar coisas imaginadas e irreais. Se são coisas imaginadas e irreais não há obra. O que há, se
não há obra? Há coisas imaginadas e irreais, coisas e sentimentos subjetivos e individuais. Mas, então, quando
há obra? Se cada um não se coloca em sua individualidade, quando há obra? Obra não é o que resulta dessa
exposição subjetiva? Não é. Obra, já dissemos, é o que opera. Obra não é o livro editado ou o poema ou o
conto depois de escrito num papel. Hoje pode ser simplesmente um arquivo num computador ou gravado num
cd. Nada disso precisa ser escrito, pois podemos simplesmente ouvir. E a escrita deixou de ser escrita, pois foi
gravado em linguagem de computador, onde só aparecem os números zero e um. Mas podemos observar um
fato realmente importante e aparentemente novo: A obra nos chega e se faz real e presente como linguagem e
fala. A obra consiste de linguagem e fala. Que linguagem? Que fala?
A linguagem
Numa palestra em 1954, Heidegger disse: “A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde
à linguagem”. Na medida em que a obra, toda obra poética, é feita de e como linguagem, a obra opera falando.
Cabe ao autor escutar, cabe ao leitor escutar. A escuta da fala da linguagem é que constitui o fingir, a ficção, o
poema. A linguagem escrita, melhor, língua ou a linguagem (símbolos) matemática do computador já é o
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resultado de uma escuta. Há, pois, duas falas: a do autor, enquanto escrita, ou a do leitor, enquanto leitura, e
a fala da linguagem enquanto vigor do operar, enquanto poiesis. Autor e leitor só falam a partir de fala da
linguagem constituída em obra. A singularidade e originalidade de cada autor e da sua obra está na escuta da
linguagem. Porém, cada autor, escutando, deve escrever numa determinada língua. E são tantas as línguas! A
mãe-mulher também pode ser mãe de muitos filhos e nem por isso deixa de ser mulher e mãe. A linguagem é
a mãe de todas as línguas.
As questões
A questão não quer provar, quer provocar.
A questão quer o não-saber de todo saber.
A questão, mergulhada nas águas correntes, ansia pela fonte, proveniência do
que elas são.
O leitor que abre Grande sertão: veredas vê-se logo envolvido num emaranhado de questões, achando,
quando se concentra na leitura, que caminha numa selva selvagem e estranha. Diante de tanta questão há
leitores que simplesmente desistem. Isso é natural. É que somos instruídos para os conceitos e queremos
achar tudo claro. O conceito é o delimitar preciso de uma idéia dentro de uma teoria. As palavras conceituais
tendem a ser unívocas. Se digo verde, tem de ser verde, e não amarelo, vermelho ou outra cor. Porém, a
realidade não cabe nessa univocidade das palavras conceituais. Se olho para uma encosta cheia de árvores,
vejo muitas variedades de verde. O conceito é pobre para dizer e manifestar essa riqueza excessiva do real. O
mundo é muito mais rico e alegre e vivo e poético. Quem traz para o mund,quem manifesta essa riqueza excessiva
do real é a palavra poética. E ela ainda se torna mais poética quando se nos dá como imagem-questão. Na
imagem-questão o não visível do visível se manifesta inauguralmente. Porém, não são apenas as árvores ou
outra qualquer coisa que se apresenta nessa riqueza, também as pessoas. Elas são mutáveis, esquivas, ambíguas,
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dissimuladas. E não só as pessoas, também os acontecimentos. O mesmo acontecimento visto por pessoas
diferentes e ao mesmo tempo tem versões diferentes. E não é apenas uma questão de perspectiva ou teoria. É
mais. Diz Caeiro:
O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia de universo é que é uma idéia minha.
Esse mesmo acontecimento age dentro de nós e sofre um estranho trabalho da memória, de tal maneira
que tempos depois esquecemos alguns aspectos e, por outro lado, o reinventamos de maneira diferente. Ou
fica de vez jogado para o sótão do insconsciente da memória. É que a memória não é só o consciente, mas
também o inconsciente. E do inconsciente quem fala não somos nós, mas a memória enquanto linguagem. Quando
se juntam as coisas, as pessoas e os acontecimentos então todo o real se nos dá num mundo mutável, rico, estranho,
poético. É o que Rosa não cansa de dizer e mostrar em Grande ser-tão: veredas. Temos aí a ficção poética. Esta se
faz de imagens-questões, personagentes-questões, eventos-questões, narrador-questão, enredo-questão. Então
a obra de arte como tal e como um todo é um acontecer poético.
Mas em nosso viver cotidiano como nos advêm as questões? Aparentemente quando começamos a
perguntar. Mas não perguntamos para ter as questões. Pelo contrário. Só perguntamos na medida em que
somos convocados e provocados pelas questões. Por nascer e ao nascer já somos jogados nas questões, de tal
maneira que, como doação das questões, vivemos sempre num entre: entre nascer e morte, entre ser e não-ser,
entre eros e thanatos. Se agora voltarmos ao começo e relermos a citação de Rosa, veremos que viver é um
aprender, mas só se aprende mesmo é a fazer maiores perguntas. Só pergunta, se for uma verdadeira pergunta,
quem questiona. Grande sertão: veredas é a ficção poética onde se tecem e entretecem as grandes questões, pois
estas é que nos levam, no viver a vida como vida experienciada, “a fazer maiores perguntas”.
Daí que a vida aparece em Grande sertão: veredas como uma imensa teia da vida, onde quem faz a teia
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são as questões. A vida enquanto questões. Atravessar essa teia é o grande desafio do viver, pois viver é muito
perigoso. Podemos nos perder nos descaminhos labirínticos da rede, nos buracos que sempre nos espreitam,
nos enlaçamentos dos nós. Podemos ficar nas “veredas tortas” e nas “veredas mortas”, nos entre-cruzamentos.
Podemos simplesmente ficar sem rumo, sem sentido, como Zé Bebelo, confiante demais no poder da razão.
Podemos ficar sem finalidade, enredados nas múltiplas solicitações das funções ou profissões em que somos
usados para a rede funcionar. A função profissional deixa de ser função na travessia para se tornar a própria
finalidade e sentido de vida. E neste funcionamento a própria obra de arte se vê analisada e envolvida e reduzida
a formas e funções. A função para ser função só pode se constituir de conceitos. Os interstícios dos conceitos são
as questões. Na rede são os buracos que unem e reúnem as linhas e nós da rede. É a rede-vida, o corpo-vida.
A rede é uma doação do vazio, assim como a vida é uma doação da morte. A travessia da morte para a vida são
as questões, da vida para a morte são os conceitos, porque funcionais e orgânicos.
Grande sertão: veredas é uma intrincada selva de questões. Pois as questões também formam uma selva.
A pergunta abre uma clareira nessa selva. Toda pergunta é querer ver claro a selva da vida, pois sabemos que
vivemos na espera da sua plenitude: a morte. A morte é o vazio onde se move e tece a teia da vida. Vivemos
nesse E de vida E morte como um entre sempre pro-visório.
A arte e a imagem-questão
Os grandes poetas só são poetas porque se surpreendem e apreendem acossados pelas questões, pelas
grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis.
Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a
Palavra, como questão-poética. Cada Palavra-imagem-questão traz em si o sentido e a verdade manifestativa.
Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, quando poética,
é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância
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sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das palavras-imagens-questões.
Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. O apropriar-se (amar) é a imagem-questão-poética. Poiesis
é radicalmente apropriação enquanto amar. Toda imagem se torna imagem-questão na medida em que nela
age, se concentra e consuma a ambigüidade da realidade (“on”/”res”). A imagem como questão é um entre, um
entre-imagem-questão onde a realidade (“on”/”res”) se apropria como realidade. É o que nos provoca e
invoca a pensar sempre o frag. 123 de Heráclito: O desvelar-se apropria-se no velar-se. O apropriar-se é o “lugar”
(imagem-questão-entre) de convergência e divergência da physis enquanto desvelar-se e velar-se.
Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão,
como a linguagem, não é, dá-se. E, dando-se, é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente,
opera. E operando é. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra-dearte não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um
paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem,
não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode
atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poietizando, e isso é o ser se
doando como desvelamento e velamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou
aquele ente. Riobaldo, como imagem, não é, porque Riobaldo é personagem-questão, enquanto é imagempoético-manifestativa de questões, é imagem-personagem-questão. Na obra de arte tudo é questão: as imagens,
os personagens, os eventos, a narração, o narrador ou narradores, o tempo, o lugar. Como imagem e verbo
toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra,
Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.
A escuta erótico-amorosa da linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais
nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e
manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja
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retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária
de tempo e mundo, memória e linguagem, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.
Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado
de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos,
melhor, as obras-de-arte, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo,
“Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. “Sertão” e “veredas”, em
Grande sertão: veredas, são imagens-questões. Que questões essas imagens nos colocam? Aí é só começar a
pensar, dialogando com a fala da obra-de-arte. E então podemos ligar, por exemplo, “campo” a lugar, a mundo,
a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica usamos a denominação:
Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada
na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Diadorim, Mme.
Bovary, Capitu, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. Estas se entre-tecem com o poder
ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do “entre” (metá). A
imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do “entre”, na medida em que a linguagem é a própria
manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega:
tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico,
“entre” o ser escrita e o ser lida, dialogada, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada, mas onde ela,
ao ser experienciada como escuta do que somos e não somos, ambigüamente se retrai em sua fala silenciosa.
A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala
de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória
enquanto Musas. Nesse horizonte toda leitura só é leitura se houver diálogo. Quando o diálogo acontece,
dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da “Cura” como fonte de todas as
questões que essencialmente fundam o ser humano como Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de
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linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagemquestão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o
lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar. Como
Hermes, diz sempre a verdade, mas não toda a verdade. Hermes é o verbo ambíguo de desvelamento e
velamento. O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela,
enquanto mundo e linguagem: clareira. Por isso, o caminhar é a travessia “entre” o velado/silêncio/vazio E
o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.
O método: o diálogo
O método de leitura que propomos é o diálogo. Este é o caminho proposto em Grande sertão: veredas.
Todo ele se estrutura num diálogo paradoxal, onde, eu, você, cada leitor é solicitado insistentemente a
acompanhar todas as profundas reflexões do personagem-questão Riobaldo. Na obra o leitor/ouvinte não fala,
mas escuta. O quê? Quem? O que em todo diálogo fala. A voz da obra de arte: a linguagem. O diálogo como
escuta da linguagem é a poiesis falando.
No diálogo e como diálogo estamos já desde sempre no ser-tao. Tao é o caminho como as veredas da vida
enquanto sentido e verdade da morte.
A travessia
Travessia vem do latim trans-verto, que significa o verter-se e o figurar-se no percurso do viver. A
imagem-questão da travessia, como um imã, atrai e congrega todas as demais questões. É que só na travessia o
homem chega ao que o faz humano. Por isso, na obra, depois do longo, envolvente e questionante diálogo de
autor e leitor, resta uma certeza: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1968: 460). O que é a travessia?
Esta é a questão para a qual convergem todas as outras, todas as indagações, todas as dúvidas, todas as
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procuras. E é a grande questão porque é nela que se dá a conhecer ou não o que é o ser humano. Perguntar pelo
ser humano é perguntar pela travessia. É isso que Rosa diz: “Existe é homem humano. Travessia”. É na
travessia que o homem se torna humano. Por que na travessia o homem se torna humano? O que é então o
humano? Quando o homem é humano? Isso só podemos saber, se chegarmos a saber, no decorrer da travessia.
E cada um faz a sua travessia (aprendizagem). Mas o que faz o homem ser homem humano? Sem dúvida
nenhuma o ser. E então já estamos diante não apenas de uma, mas de duas grandes questões: o ser humano (a
travessia) e o ser. Que ser? O ser-tao. É nessa ambivalência que se congrega todo o percurso da obra como
indagação e questionamento. E se o leitor notar bem, isso já nos foi indicado pelo título: Grande sertão: veredas.
Ser-tao e veredas são os dois núcleos. Veredas indicam pequenos riachos em meio ao ser-tao, ou seja, são os
caminhos possíveis da travessia.
A travessia e o agir
Se em travessia, o radical “vessia” provém do verbo vértere, que significa, verter, tomar figura, realizar, já
o prefixo trans diz o que se dá através de, no agir e ir além, no se mover nas veredas e como vereda, como
caminho. Mas o ir além, o agir pressupões a ação. O que significa a ação para que nela e com ela se dê uma
travessia? E não só isso, mas muito mais importante, para que nesse agir o homem se torne humano?
O que nós sabemos sobre o agir? Achamos que não há necessidade de refletir sobre o agir, porque até
para refletir já estamos agindo, para viver já estamos agindo. Para que querer saber? Nem o próprio saber
prescinde do agir. Portanto, melhor que saber é agir, achamos. Acontece que podemos confundir simplesmente
o agitar com o agir. A travessia como agitação pode ser bem diferente da travessia como agir. E pode até haver
travessia no agitar? Podemos nos tornar “homem humano” no agitar? Ou não nos poderemos tornar deshumanos?
Ao querermos saber o que é o agir não estaremos “aparentemente” fazendo uma tentativa vã, como
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que querendo morder o próprio rabo, constituindo necessariamente um círculo, pois só já agindo podemos ir
em demanda da essência do agir. De fato, isso pode-se tornar um exercício racional que nos desvia do envio e
avio da questão. Para mostrar isso Rosa criou o personagem-questão: Zé Bebelo.
A travessia e os três telos
“Telos” é uma palavra grega que recebeu algumas traduções que podem levar a equívocos, quando se
trata de tentar entender o que o “on” é ou, na visão biológica de hoje, a “unidade”. A palavra grega é o
partícipio presente do verbo einai, ser. Uma tradução literal e verbal seria sendo. Em virtude da interpretação de
cada sendo (“unidade”), no sentido de que tem dentro de si um vigor que lhe é dado pelo verbo ser, enquanto tal
vigor é o que sub-está para que cada unidade manifeste “o que é” n”o como é”, ou seja, nas suas características,
tal entendimento se deu em grego como hypostasis, que foi traduzido para o latim como sub-estar, ou seja, substantivo. O “on” como verbo se entendeu como substantivo. Só que na interpretação e sua respectiva tradução
se perdeu, em geral, o sentido verbal. O que é este sentido verbal? Verbo significa ação. O que é ação? Essa é a
questão das questões. Aristóteles já disse que “em toda ação vive um empenho por algum bem” (Apud:
LEÃO, 1992: 156).
A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, to telos, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir telos por meta, fim,
finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é
o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação (Leão, 1992: 156).
Toda ação traz, pois, em si não só o vigor do que é mas também no telos um desdobrar-se no como é. A
integração harmônica do que é no como é é o que chamamos unidade. Porém, podemos falar de três telos.
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1º. A vida como “unidade” e seu telos
Hoje, a biologia considera cada ser vivo como uma “unidade”. As descobertas mais recentes trouxeram
uma nova visão do ser vivo. Ele não é mecânico nem o produto de um meio. Pelo contrário, em cada “unidade”
há um código genético comum a outros seres vivos da mesma espécie e, ao mesmo tempo, totalmente único. Por
tradição só damos nomes diferentes aos seres humanos, para marcar a sua singularidade, mas, de fato, cada ser
vivente, cada “unidade” também deveria ter um nome único. Quem convive com animais sabe como eles são
únicos, daí darmos nomes que os identificam, isto é, que mostram sua identidade como diferença na
uniformidade conceitual da espécie. Em seu meio e em relação à espécie de que participar mais diretamente,
cada “unidade”, na medida em que vive, também age e, nesta ação, se empenha por um bem. Exatamente como
o disse Aristóteles. Ou seja, cada ser vivo tem também um telos. Para expressarem a realização deste telos, os
biólogos passaram a falar em auto-poiese. São duas palavras gregas que dizem que há um fazer que realiza o que é
próprio, portanto, criativo, novo, diferente. Mas uma tal autopoiese apenas realiza o que já está dado no código genético.
Ele já contém em si o seu telos, o seu bem e seu sentido. Constituir-se como bem e sentido não é isto o que
tradicionalmente se diz mundo e linguagem? Tanto isto é verdade que se diz que cada ser vivo é constituído por
seu código genético. A palavra código provém de um modo lingüístico de entender a linguagem. É o código genético
linguagem? O que é linguagem? Como saber o que é língua e seu código sem saber o que é linguagem?
Tradicionalmente classificou-se o ser humano na escala dos animais, pois diz-se que ele é um animal
racional. O que o distingue dos outros animais é a razão. Esta palavra de origem latina foi a tradução da palavra
grega logos, que tem muitos sentidos, mas na tradição ocidental o mais usual é razão. Mas logos é radicalmente
linguagem. E só por ser linguagem é que pode ser compreendido como razão. Quando hoje a biologia através do
estudo do código genético chega à conclusão de que há em cada ser vivo autopoiese, a distinção tradicional perde
a sua base. Isto não pode aqui e agora ser aprofundado, mas é algo realmente fundamental que recoloca a
questão do que é o ser humano. Rosa se coloca, nesse sentido, ao caracterizar o ser humano como travessia,
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numa posição poética inaugural a respeito do que seja o ser humano. Por isso indagar e pesquisar na sua obra
o que é travessia torna-se algo realmente fundamental. Saber o que é travessia não é fácil, porque o ser humano,
como “unidade”, é também constituído de um código genético e, como código genético, realiza uma autopoiese. Podemos
confundir esta com a travessia? Sim e não.
2º. Telos: o ser humano e a moira
O traço fundamental da Modernidade é a fundação do ser humano como sujeito, enquanto este sujeito é o
exercício da razão. Ao se construir e ao construir racionalmente a realidade, fundando as ciências, algo imemorial
no ser humano foi confrontado: a sua memória mítica. A compreensão do ser humano a partir dos mitos foi
considerada i-lógica, frente à concepção lógica (racional). Note-se que aí se julga a memória mítica de fora do
seu âmbito de constituição. O mito é julgado e descartado a partir do logos, reduzido à razão. E o mito sempre
falou do ser humano como pertencente a um genos (de onde se forma a palavra moderna genética). Indicava uma
família, um gênero (formada também de genos), uma etnia. Como família tinha algo em comum, o genos, mas
cada um dentro desse genos recebia um quinhão, a sua “cota” no genos da família. O nome para esse quinhão foi
e é: Moira. A tradução mais tradicional não é quinhão, mas destino. Destino é o que a razão, fonte do livre agir
do ser humano, não podia determinar nem controlar. Pela visão racionalista, o destino se opõe à liberdade
humana. No existir o ser humano deve-se dar livremente a sua essência, o seu genos enquanto seu quinhão. Nessa
visão, a existência precede e determina a essência. O existir enquanto o como é deve determinar livremente o que é.
O homem não tem um destino, dá-se um destino. Esta foi a utopia moderna. Em parte parece que a biologia
pós-moderna vem confirmar esta utopia. Não vem. É um engano. Ela apenas acaba com o positivismo
determinista e representacional da Modernidade. O que a biologia afirma é que cada genos não é cópia nem
representação. O genos de cada unidade é sempre uma autopoiese, algo novo, único. Porém, esta autopoiese consiste
em realizar o que o genos já determinou e prevê. Mas não confundir com cópia nem com reprodução. Cada autopoiese
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é uma “unidade”, uma singularidade. O como é da autopoiese não é diferente d”o que é”, enquanto código genético.
Assim como há mundo e linguagem em cada autopoiese também há, de certo, uma certa liberdade, liberdade esta
inerente ao código genético e não a um livre agir em relação a seu código. Noutros termos, em certo sentido,
podemos dizer que cada unidade tem uma moira, um destino. A questão agora é, tendo em vista Rosa: Podemos
considerar a autopoiese uma travessia? Que cada um é também uma “unidade” e tem um código genético, isso é
tranqüilo. Que não somos o produto do meio nem uma representação ou cópia de algo que nos é externo,
também é tranqüilo. Isso vem desdizendo tudo o que se disse do ser humano no percurso ocidental e metafísico.
Mas ainda não avançamos nada em direção ao que seria a travessia. Mesmo gêmeos unicelulares, apesar das
numerosas semelhanças, acabam por fazer uma travessia diferente. A questão da clonagem está em saber se um
ser humano clonado teria necessariamente a mesma travessia da unidade da qual foi clonado. Então a questão é:
O que a travessia traz e dá que o código genético como é entendido até agora não dá? Ou seja: O que é a travessia? Na
declaração de Rosa: “Existe é homem humano”, temos dois duplos núcleos: 1º. Existe e é; 2º. Homem humano.
Podemos considerar o primeiro núcleo: “existe ... homem”; e o segundo: “é ... humano”. O existir diz aí o
homem enquanto é dotado de um código genético como as outras unidades e que manifesta o que é em o como
é, ou seja, no ex-istir. Nesse sentido, toda unidade existe e, por isso mesmo, pode-se dar uma autopoiese. No que
existe, cada unidade é. Mas nem toda unidade é humana. Em que consiste o humano da unidade homem? Não
advirá este humano na travessia? Perguntar, pois, pelo humano é perguntar pela travessia.
3º. Telos: A travessia enquanto homem humano
É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o
humano é inerente ao homem, mas que manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não
contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é
inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes. Então resta a
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questão: como advém e se constitui a travessia? O que aqui e agora vamos tentar é um exercício de pensamento
poético. Como leitor, vamos dialogar com Riobaldo e pôr-nos à escuta. Pensar para nós não é raciocinar, onde
se procura conceitualmente estabelecer uma verdade representativa e adequacional a uma realidade que se
racionaliza em conceitos. Pensar é mais que raciocinar. Em Grande sertão: veredas, a diferença está entre Zé
Bebelo (a raciocinar) e Riobaldo (o pensar). Para isso não ficaremos restritos à vida, embora jamais possamos
prescindir dela. Um conceito só se potencializa realmente se se deixa engravidar pelo paradoxo. Os paradoxos
são os interstícios dos conceitos. Muitos são os paradoxos da vida, mas o único realmente fundamental e até vital
é a morte. Dizer que a vida é um paradoxo é deixar eclodir a questão da morte. A morte é o interstício da vida. A
palavra interstício forma-se do verbo latino: intersistere, que significa pôr-se no entre. Já o pará-doxo é o ensino e
aprendizado do entre. A morte surge como paradoxo da vida porque nos joga originariamente no entre vida E
morte. O pensamento é questão porque nos joga já desde sempre no paradoxo da vida E da morte. Por isso,
pensar é deixar acontecer no saber da vida o não-saber da morte. O pensamento é sempre questão porque
pensa o paradoxo da vida e da morte. O pensamento é poético quando pensa o paradoxo do sentido da vida no
abismo do sentido da morte. Pensar o sentido é pensar o telos poético. O primeiro e o segundo telos sempre se dão
no âmbito da vida, do código genético como vida, como unidade vital. No terceiro telos advém a morte como paradoxo
da vida.
A morte como paradoxo da vida é a possibilidade de travessia como terceiro telos. É o que vamos procurar.
A vida vivida e a vida experienciada
A vida vivida é o código genético enquanto o que é no como é. E a vida experienciada?
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no
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moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E
me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito ... viver é negócio muito perigoso ... (Rosa, 1968:
11).
Riobaldo é uma personagem-questão. Como ficção é personagem de questões e não quer representar
ninguém, nem ficcionalmente. Enquanto figura que fala, age e pensa é a poiesis se fazendo questão. Nessa
passagem central dentro da obra poética, vemos claramente que estamos diante da questão do duplo Riobaldo,
que é a duplicidade de qualquer leitor. Um duplo não paralelo, mas poeticamente circular (de ser o que é no
horizonte e vigor do ser). É o que fica claro no primeiro período acima. Há um primeiro Riobaldo que vive a
vida no seu fazer e agir: “De primeiro, eu fazia e mexia ...”. É a vida vivida como sertanejo, nas suas andanças de
jagunço pelo ser-tão. Na vida sendo vivida ainda não se tinha aberto para os “prazos”, porque a vida imediata
o tomava completamente. Era como um peixe vivo no “moquém”. O que é “moquém”? É uma grelha de varas
que serve para assar ou secar o peixe ou a carne. Certamente, o moquém é aqui uma imagem-questão do viver
o trivial onde a vida se vai dissecando sem chegar a viver as suas possibilidades de plenitude, de travessia. Por
isso, ele logo acrescenta: “ ... quem mói no asp’ro não fantaseia”. É um agir inerente ao código genético como o
agir e viver de qualquer ser vivente, onde as ações se sucedem em pro-curas e empenhos de bens que não são
o bem. É um viver no cotidiano e prosaico “asp’ro” para superar as necessidades, os “pequenos dessossegos”.
A vida vivida apenas manifesta “o que é” n”o como é”, sem ainda se dar travessia. Para esta ocorrer é necessário
tomar posse dos “prazos”. O que são os “prazos”? Prazo é um tempo determinado; espaço de tempo durante o
qual deve realizar-se alguma coisa. Esse sentido dicionarizado não consegue apreender aqui toda a sua força
poética, pois trata-se de uma imagem-questão. Qual questão essencial nos traz essa imagem? Todos nós nascemos
com um “prazo”, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. Nesse entre-tempo alguma coisa deve
ser realizada. O quê? O destino como travessia. Para tal não basta viver é preciso algo mais, é necessário fazer da
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vida vivida uma vida experienciada. Nisso consiste o destino como travessia. O que é a experienciação? Ela ainda
não se dava porque como diz ... pensar não pensava. Não basta viver, é necessário pensar. Mas o que é o pensar?
Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de eros. Eros e Thanatos é a possibilidade de
experienciação de todas as nossas experienciações. Experienciar a morte como morte no viver é a possibilidade
de fazer a travessia e cumprir os prazos, o destino. No arrocho das aporias do cotidiano, como ele diz que vivia:
“Vivi puxando difícil de difícel”, não sobra tempo para “fantasiar”. Nessas condições, ainda não eclodiu o poder
que é próprio do ser humano: o poder fantasiar. O sentido atual de fantasiar é tanto imaginar como vestir uma
fantasia. Porém, a palavra vem do grego phantasia. É um substantivo formado do verbo phaino, que significa
manifestar, daí também a palavra fenômeno. Fantasiar é poder manifestar o quê? Fantasiar diz imaginar e
vestir uma fantasia. Os dois sentidos não se excluem, integram-se. Revestir-se de uma fantasia como imaginar
(isto é, apropriar-se do que é próprio) é realizar a travessia enquanto destino.
Como isto ocorre? Como há dois Riobaldos, também há duas vidas: a vivida e a experienciada. A vivida
é inerente ao código genético. Já a experienciada é inerente ao genos como Moira. Porém, esta não consiste
simplesmente em viver, mas em apropriar-se do que é próprio enquanto travessia. E o que nos é próprio? O que nos
é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na
vida experienciada não é o ente o sujeito. Não. Ela consiste em deixar-se ser tomado pela morte como sentido e
vigor do viver. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida,
mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como
destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre vida e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde a medida
da vida é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por um outro
agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o manifestar numa
realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do “entre”, enquanto o “mesmo’.
Aos dois Riobaldos corresponde uma mediação, de dupla medida. A dupla medida é inerente a nosso ser
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ambíguo, como ser-do-entre. Ultrapassado o horizonte dos “pequenos dessossegos, estou de range rêde”. O que a imagemquestão rede nos quer provocar a pensar? Na rede acontece a quietude do silêncio do pensar. O que é pensar?
Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa, portanto, pendido, pendurado.
Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de
fio de lá que se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A concentração da articulação da tecelagem
remete sempre, de alguma maneira, para além dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em
silêncio (Leão, 1999: 246).
Riobaldo se entretece como pensamento no silêncio da quietude da rede. E o que ele entretece ao se
entretecer? Diz: “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Especular vem do verbo latino speculare, que diz
pensar no sentido de re-fletir. Por siso o verbo deu origem à palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha, mas
como imagem, onde o espelho não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação. Por outro lado, devemos
dizer que os três se im-plicam. O que no especular ele re-flete? Refletir é fazer emergir na reflexão a medida, onde
a reflexão é a própria medida, na medida em que se procura a medida do que é próprio. Medida aí não e jamais
é paradigma. Então a reflexão só aparentemente é um exercício de quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto
quem reflete como tanto o que se procura na reflexão: a medida. No especular o que advém é o eidos/idéia, mas
quem a doa é a medida do especular, o que medéia o especulador na busca do que é em sua reflexão. Especular é
um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida. Por isso, a medida é o não-ser do ser
enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se especula. Especular é sempre se experienciar na ambigüidade
do entre, o espelho. Mas o que move, o que se pro-cura no empenho do especular, pois a toda ação corresponde
um penhor? Diz: “O diabo existe e não existe? Dou o dito”. Estamos diante de uma questão: do diabo. Note o leitor
a complexidade do dito. Trata-se do diabo, mas dele: a) se afirma; b) se nega; c) se pergunta negando e afirmando.
Aonde nos querem levar os paradoxos? Ao ser-tao do ser-tão. Por quê? Diabo se compõe de dia-, que significa
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entre; -bo é lançar, jogar. Diabo, portanto, é o vigor do mediar, do caminho, o ser enquanto tao.
Os três ser-tões
Na obra de Guimarães Rosa, o sertão é o lugar onde o povo vive sua sina, seus sofrimentos, paixões
e alegrias. O sertão é o umbigo do mundo. Por isso Rosa não escreveu sobre o sertão, mas a partir do sertão,
porque antes de tudo ele é um sertanejo, isto é, o homem do ser-tao. Por isso todos somos ser-tanejos. É bom
que o leitor se lembre que esse escritor mineiro antes de se tornar um cidadão do mundo exerceu três profissões
que ajudaram a entender como o sertão é amplo, bonito e triste, e verdadeiro, lugar de experienciação da
vida e da morte. É que ele vivenciou o sertão como médico do interior: na então Vila da Conquista, hoje
Itaguara, interior de Itaúna. Disso lhe veio uma profunda experienciação do sofrimento. Por conjuntura política,
participou da revolução de trinta e dois, como médico do exército. Isso lhe deu uma profunda experienciação
da proximidade da morte. O destino, tornando-se diplomata, o lançou na construção dos diálogos entre os
povos, levando-o a uma profunda experienciação da consciência como diálogo. São essas três experienciações essenciais
que se fazem presentes em Grande sertão: veredas. São essas experienciações, como ser que temos que ser, que
constituem as veredas e travessias dos sertões. Pois podemos falar, para tornar mais acessível aos leitores o seu
diálogo com a obra, de três ser-tões.
O sertão é o grande tema da sua obra mais admirada: Grande sertão: veredas. Nela, o sertanejo Riobaldo
narra as aventuras e desventuras de sua vida, revelando as muitas facetas do Sertão como paisagem natural,
paisagem humana, paisagem religiosa e, sobretudo, como lugar do mistério. A separação que a seguir fazemos
é somente para facilitar ao leitor a escuta da fala da poesia e dialogar melhor com o apelo que nos advém nas
muitas falas de Riobaldo como personagem-questão. É que o ser do sertão sempre se faz presente em tudo, no
todo que somos.
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O sertão geográfico
Qualquer leitor brasileiro com um mínimo de formação geográfica identificará imediatamente
a sua localização. Aliás, o próprio narrador faz alusão freqüente à sua localização, a lugarejos, vilas, cidades
etc. que constam do mapa de Minas Gerais, do sul da Bahia, bem como dos campos-gerais de Goiás. Onde se
localiza o sertão? Guimarães tem uma noção de sertão bem ampla e profunda. “Uns querem que não seja: que
situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia.
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então em toda parte não é dito sertão?... O sertão está em toda
parte” (Rosa, 1968: 9)
Neste mundo, a bela e simples “natureza” chama a atenção de Riobaldo com suas plantas e bichos. “Aí
foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas
pontas, viçoso no cerrado: o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada
é muito restível, se dobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco” (p.24). Também os
pássaros e animais comparecem com seus nomes populares. “Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta
altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o
tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das
vacas devendo seu leite” (p. 24). Estes aspectos do sertão não são decorativos, eles envolvem o sertanejo em
seu mundo e ser, levando-o à convivência e à integração com a Mãe-Terra. Assim é que um passarinho e uma
flor adquirem um sentido especialmente afetivo-amoroso: “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal,
indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhas,
peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam
beijos de biquinquim – a galinhalagem deles” (p. 111). Este par amoroso vai ter seu complemento numa bela
e perfumada flor que de acordo com o momento muda de nome: “Casa-comigo... Dorme-comigo... liroliro” (p.
146). Por aqui se vê que tudo co-participa da travessia do homem humano. Outros “elementos” do sertão têm
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uma grande importância como o vento, os rios e as veredas. Esse sertão “natural e geográfico” compõe o
âmbito e palco onde os homens vivem seu destino. É a mãe-terra.
Um levantamento minucioso dos nomes desses lugares trouxe, no entanto, grandes surpresas. Ao lado
de numerosos nomes constantes nos mapas geográficos, outros são pura “invenção” do autor. Por isso, para
além de um mundo “cientificamente geográfico”, há muito mais um “mundo poético”. Na sua obra o geográfico
se torna uma geopoética, onde há uma confluência de Ser-tão e Terra. Trata-se então de um mundo mítico, imemorial,
onde há uma profunda ligação de todos com a paisagem, as árvores, os pássaros, todos os animais, todas as
plantas, é uma ligação mítico-poética de mundo onde todos se irmanam numa grande aventura da vida: é o
mundo. É nesse sentido que temos em Grande sertão: veredas não tanto um espaço geográfico, mas um lugar míticopoético. O personagem-questão que efetiva esta profunda ligação é Diadorim, na medida em que ele é a alma e
corpo telúrico de Riobaldo, ou seja, de cada um de nós.
O sertão como mundo-humano
O Sertão é a morada do homem. Por isso o sertão humano se mostra difícil e mutável. A luta do
homem é a luta do sertão. “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito
governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 374); “O sertão me produz, depois me engoliu, depois
me cuspiu do quente da boca...” (p. 443); “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 59): “O sertão é sem lugar”
(p. 268). “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (p. 121). Guimarães Rosa nos fala de um
sertão histórico e de um sertão como mundo poético. O histórico, quando se passam as andanças e aventuras
de Riobaldo, é anterior à chegada do “progresso”. É o sertão onde os bandos de jagunços exerciam um poder
que fugia à autoridade constituída e ao mesmo tempo protegiam e eram protegidos pelos grandes fazendeiros.
Era um sertão onde a palavra e a honra eram cumpridos à risca, mas que por outro lado fugia à separação e à
distinção estabelecida pela lei. Por isso, há referência a três leis. Para o jagunço não havia a ordem e a desordem,
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o bem e o mal. Tanto que relata: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...” (p. 17). O sertão está radicalmente
ligado à condição do homem como essência do humano. Não é, pois, o sertão sócio-histórico o principal, mas
trata-se da aventura humano do homem. Noutra passagem acrescenta: “O sertão tem medo de tudo” (p. 237). Os
habitantes do sertão, ou o sertão humano, não são apresentados a partir de preconceitos culturais, como
matutos ou qualquer outra qualificação cultural. Pelo contrário, surpreende neles seres humanos que têm seu
saber e sabor, seus ódios e seus amores, sua coragem e seu medo, enfim são seres do sertão, seres da condição
humana, nós. Uma pesquisa meramente sociológica nada saberá falar deste sertão poético-humano. Mas essa
é uma das facetas mais importantes da obra. Rosa não escreveu uma obra sociológica, mas poética. E é nesse
horizonte que devemos dialogar com ela. Pois aí não se trata de qualquer mundo poético subjetivo, ou seja, de
Guimarães Rosa, mas de todo leitor que atenda à provocação, como leitor atento, das falas de Riobaldo
enquanto questões nossas.
Mas o que é mundo? Não se trata aqui de querer qualificá-lo com qualquer adjetivo: regionalista,
sertanejo, mineiro, ficcional, primitivo, latifundiário etc. etc. Será que ao acrescentarmos a mundo um adjetivo,
não partimos do pressuposto de que já sabemos o que é mundo? No entanto, não sabemos. A Terra eclodindo,
manifestando-se no humano, é o homem da Terra (ser-tão) sendo ser-humano. É desse humano do homem
como mundo que se constitui o segundo ser-tão, mas jamais separado do primeiro. O mundo é o ser se dando
em seu sentido. Nele todos estamos integrados nas veredas da história e nas radicais experienciações de eros e
thanatos.
O sertão sagrado: a poiesis
Na medida em que o sertão é humano surge outra dimensão que marca sua presença de início ao fim:
o sertão sagrado. Com este, um tema central: a existência e presença do diabo. O longo início do romance
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mostra como o sertão está povoado pelas muitas estórias em torno do diabo, de que são também testemunho
os inumeráveis nomes a ele atribuídos. Exatamente para evitar nomeá-lo, porque do contrário, a força do
nome provoca a sua presença temida. Por outro lado, o diabo é a concretização do poder, daí a preocupação
central e a dúvida de com ele se poder selar um pacto. Que poder advém no pacto? O poder do sagrado.
O que é o sagrado? Não podemos confundir o sagrado com o religioso. Ele é mais. Ele é um mistério.
Ele é o próprio Ser-tão. O homem ocidental experienciou de seis modos diferentes o sagrado: no mito, no
religioso, na poesia, no místico, no pensamento, na metafísica. Essas seis facetas do sagrado percorrem
profundamente Grande sertão: veredas.
O diabo é figura-questão do poder do sagrado. Por isso, ele está ligado ao nome, ao verbo, à palavra.
Mas então trata-se do verbo e palavra poética, indicando este adjetivo muito mais que uma simples qualidade
de certas composições em versos. Não. É o próprio ser~tão se manifestando poeticamente, é o vir à luz do ser
no agir dos poetas. Poiesis significa ação de sentido. Isso fica evidente no momento do pacto. O personagemquestão, ou seja, o próprio poeta, invoca o diabo para que haja um pacto. E como ele o invoca, na hora
decisiva? Ele in-voca Lúcifer. Esta é uma palavra latina que diz: aquele que é portador da luz. A luz emergindo
do caos é o ser se fazendo mundo pelo poder do sagrado, ou seja, pelo que é o portador da sua luz. É nessa e
dessa luz que se origina a travessia do homem humano.
Pelas múltiplas manifestações e experienciações possíveis do sagrado, isto é, do
Ser-tao, já podemos notar que o ser-humano tornando-se humano, ao se deixar atravessar pelo sagrado,
nunca consegue dizer, isto é, manifestar o sagrado, só experienciá-lo. O diabo é um anjo anunciador e
mediador. A tais experienciações é que Rosa denomina tao/veredas. É que o ser-tao é tão grande, é tão misterioso,
é tão abismal, é tão o Nada, que nós já desde sempre só nos podemos mover: “- No-Nada” (p.9).
Este Ser-tão misterioso do sagrado nos convoca a pensar o narrador Riobaldo dirigindo-se a nós, a
nós leitores, na seguinte fala:
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Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa
e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou
lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só
essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p.79).
Nesta fala, leitor, sou eu, é você que é conclamado a se abrir para esse mistério que : “Ninguém ainda
não sabe”. Mas há “veredas, veredazinhas”. Atravessá-las só é possível pela abertura pelo diálogo-poético de
escuta do Ser-tao.
Os três ser-tões são um só. Como disse Heráclito no fragmento 123: “Tudo é um”. Mas nós somos
seres-humanos e o humano é de difícil escuta e conquista. Voltados para o aprendizado de conhecimentos
geográficos, sociais, políticos, poéticos etc. etc., acabamos por nos perder em meio às múltiplas veredas de
atividades mundanas e conhecimentos funcionais. É a rede e mundo funcional. Tudo isso é muito importante
na nossa vida. Mas temos um encontro marcado para o pacto: o deixarmo-nos ser atravessados pelo poder do
sagrado, pelo poder poético. Poético diz sempre o que é próprio da poiesis.
É este o apelo que nos faz, ao longo de toda a obra Grande sertão: Veredas, o personagem-questão:
Riobaldo. Ele é a voz do poético.
Grande sertão: veredas não tem idade. Seu ser-poético são suas questões. E estas não têm tempo. São
imemoriais. Elas se manifestando são o ser-humano se humanizando. Elas têm a idade do homem porque são
elas que o constituem ser-homem-humano. Essa é, portanto, a idade de Grande sertão: veredas. O sertão é o
lugar poético-telúrico do ser humano. Grande sertão: veredas é uma Gaia-poética.
BIBLIOGRAFIA
ROSA, J.Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
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LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992.
———————————————— . O pensamento a serviço do silêncio. In: SCHUBACK, Márcia S.
C., org. Ensaios de filosofia. Petrópolis, Vozes, 1999.
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MÁRCIA DE OLIVEIRA REIS BRANDÃO (DOUTORANDA – UFF)
Resumo:
No presente trabalho, desenvolvemos uma análise do conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa,
focalizando o processo de construção da narrativa e seu narrador e personagens, com base no domínio da
linguagem e na opção pelo discurso do silêncio.
A ESCRITURA DO SILÊNCIO
Em O Livro Por Vir, de Maurice Blanchot (2005), o silêncio desponta como uma das questões
determinantes para a reflexão filosófica sobre o discurso literário na contemporaneidade. Segundo Blanchot,
especialmente a partir da Modernidade e com a predominância da narrativa, o foco deslocou-se da história a
ser contada para a própria trajetória de sua constituição. A luta do escritor frente à palavra, a necessidade
simultânea de dizer e conter, de significar através da palavra e somente através dela, fugindo do excesso de
discurso e de fatos - recusando a via fácil da referencialidade - con-formariam a especificidade de um novo
momento na literatura.
Tais temas parecem perpassar de modo bastante peculiar a prosa de Guimarães Rosa. A presença
contundente da paisagem humana e de elementos da geografia brasileira na superfície de seu texto é responsável
pela instituição de um universo ficcional único.
Conforme amplamente destacado pela crítica, Guimarães Rosa recria a fala do sertanejo, não apenas no
nível do vocabulário, mas também no nível da sintaxe, resultando na obtenção de um ritmo especial da frase,
em consonância com o que seria definido por uma “sertaneja mineiridade”.
O próprio escritor tinha consciência de que, através da utilização de recursos estilísticos diversos e,
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prioritariamente, da atualização da linguagem enquanto experimentação, construiu uma linguagem marcada
pela idiossincrasia:
Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a
realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de
controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos
no Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam
meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da
gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas
pelos inimigos da poesia.
(Apud BRAIT, 1982, p.102)
No conto “A Terceira Margem do Rio” tais recursos obviamente se fazem presentes e integram, ou
melhor, constituem a própria relação significado/significante. A subversão da ordem sintática tradicional é
um dos elementos recorrentes em sua escrita: “Nosso pai encalçou o chapéu e decidiu um adeus para a gente.
Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação” (ROSA, 2005, p.77)
ou, “Nossa mãe muito não se demonstrava” (p.79).
Outra marca distintiva de sua escritura é a criação de novos vocábulos através de processos tradicionais
de composição por justaposição, mas também por meio da utilização peculiar de termos usuais que adquirem
sentido novo, único. Em seu texto, figuras de linguagem deixam de ser apenas artifícios de estilo ou demonstração
de expertise, traduzindo a própria dialética da estória que se constrói e, simultaneamente, tangenciando questões
que embora não constituam (?) o cerne principal da narrativa, também são mobilizadas no conto como em
“Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos” (p.80) em que o uso da antítese, além de apontar para
o fluxo inexorável do tempo cronológico, permite vislumbrar o caráter subjetivo da experimentação do tempo,
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a durée destacada por Bergson em seu texto seminal Matéria e Memória.
Mas o criador de uma linguagem quase nova parece ir além na experimentação lingüística, e promove ,
como outros mestres da literatura moderna, uma instabilização entre os gêneros literários, ao fazer uso em sua
prosa de recursos tradicionalmente freqüentes na poesia, como em “o rio-rio-rio pondo perpétuo” (p.81).
Nesta “frase-expressão” encontramos, além da repetição do vocábulo rio, a presença da aliteração da consoante
oclusiva /p/, o uso do verbo no gerúndio a indicar continuidade e, por fim, o vocábulo perpétuo em uma
alusão ao fluxo aparentemente repetitivo do rio. Tais recursos quase transformam a frase em um verso. De
modo análogo, note-se a construção melódica da frase “Nosso pai nada não dizia” (p.77) em que, além da
inversão da ordem sintática tradicional, ao antepor o objeto ao verbo, a repetição da consoante nasal /ñ/
também parece nos remeter ao próprio fluxo contínuo do movimento do rio, ecoando, em um ir e vir infinitos.
A escrita roseana revela-se, assim, marcada pelo hibridismo, sintoma de um tempo que, simultaneamente,
incorpora e aponta para o esvanecimento das fronteiras, dos limites bem demarcados entre as formas literárias.
A mobilização destes recursos ao mesmo tempo constitui e desvela o universo que se apresenta no
conto: a aparente afirmação da ordem social pela figura do pai, vai ser pouco a pouco abalada pela inusitada
estória de um homem pacato que, inesperadamente, rompe a estrutura vigente. Em sua frase inaugural, o
personagem “pai” fora apresentado como cordato, submisso às regras sociais estabelecidas: “Nosso pai era
homem cumpridor, ordeiro, positivo...” (p.77).
No entanto, neste mesmo parágrafo, o personagem começa a demonstrar uma determinação até então
desconhecida; surpreendendo todos, sobretudo por se tratar de alguém que sempre se portara de modo previsível:
“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa” (p.77). A ruptura instaura-se a partir de
então e se verifica na própria transgressão da sintaxe tradicional, já aqui referida, quando o pai passa a existir na
canoa: “Se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (p.78).
A desconstrução da figura do pai, e, conseqüentemente, do sertanejo tradicional, não se fundamenta
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apenas em sua ação inesperada, mas nas repercussões que esta implica e que se traduzem, inicialmente, nas
diversas proposições quanto à sua motivação. Primeiramente, por parte da mãe: “Nossa mãe jurou muito
contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?” (p.77)
e, mais adiante, ao término da construção da canoa, quando o personagem aparentemente parte, é o próprio
narrador quem reflete: “...todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira”(p.78).
Por todo o conto as especulações geradas pelo ato do pai se sucedem:
Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe,
por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe
de sua família dele (Ibidem).
Na canção “A Terceira Margem do Rio”, Caetano Veloso retoma o texto de Guimarães Rosa,
parafraseando-o, e remetendo-nos à originalidade da dialética do personagem, que estende ao próprio escritor:
....................................
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
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Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai.
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai. (Grifo nosso)
A referência à escritura roseana é clara: ao mesmo tempo em que se promove a experimentação lingüística,
seu texto se caracteriza pela ausência do excesso, pela palavra precisa, pela percepção de que o jogo que se
estabelece só se torna possível porque é, antes de tudo, discurso.
A ausência da fala, a transferência do discurso usual ao outro, representado pela “mãe”, parece ter sido
sempre característica constitutiva do personagem “pai”, pois já no início do conto o narrador deixara entrever
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que o poder auferido pela palavra, no restrito universo familiar, se atualizava através da mãe: “Nossa mãe era
quem regia, e que ralhava...” (ROSA, 2005, p.77). Entretanto, esse jogo entre presença/ausência que se
concretiza plenamente na própria relação do pai com a ausência da palavra, somente é tornado plenamente
visível a partir de sua ação radical de presentificar-se à distância. O personagem, assim, insere-se em um
discurso no qual o silêncio marca a sua posição, constitui sua significação.
O discurso do silêncio se reafirma enquanto discurso da margem. O discurso da margem, como nos
mostra Derrida (1971), abole a crença na origem centrada e destaca o jogo de substituições infinitas próprio da
realidade e responsável pela significação. Justamente por isto, a adoção do discurso do silêncio não implica
abdicar da significação. O silêncio não é ausência de sentido, de mensagem, mas sim, prioritariamente, outra
forma de expressão: “Nosso pai não diz, diz” (Grifo nosso).
No conto, a partida caracteriza a ruptura. O personagem parece romper com uma existência até então
caracterizada pela normalidade, pelo modo inexpressivo de viver. É interessante notar que, quando parece
verdadeiramente abdicar da capacidade ou possibilidade de comunicar-se, expressar-se, ele se torne, exatamente,
remarkable, expressivo. Na perda do vínculo aparente, o personagem encontra-se, libertando-se para outra margem.
Ao assumir o discurso do silêncio de forma plena, sua existência adquire verdadeira significação.
Um dos pontos marcantes do conto é exatamente a relação que se estabelece entre o binômio presença/
ausência. Longe de apontar para um dualismo tradicional em que um termo elide o outro, ou reduzir-se à
síntese hegelliana, a atitude do pai marca a coexistência de estados aparentemente excludentes: simultaneamente
ausente e presente. O personagem se posiciona entre o dentro e o fora, e se mantém em uma espécie de entrelugar,
à margem, em uma margem, na terceira margem. Note-se que o personagem não opta por lado algum, já o
próprio título revela a instituição desse espaço que, embora além do estabelecido, do visível, não reforça a
noção de limite, mas, antes, a desconstrói:
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Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer
naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza
dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia (ROSA, 2005, p.78).
Nesta dialética, o termo “imagem” assume papel determinante. Se a imagem for concebida como mera
representação, tanto a Memória quanto a Ficção, por estarem a ela ligadas, poderiam ser vistas apenas como
simulacros da realidade empírica. A imagem, contudo, não constitui mera representação, podendo sim ser
compreendida como evocação ou produto do imaginário. A retomada do termo “ausência”, segundo sua
definição por Derrida (1971), é indispensável à nossa análise: a “ausência” pressupõe o abandono de toda
referência a um centro, a um significado transcendental. A “ausência” opõe-se à “presença” que, vinculada à
idéia de identidade, limitaria as possibilidades do jogo de substituições infinitas viabilizado pela desconstrução
das noções de origem e centro absolutos. Justamente por abolir o centro, a “ausência” pressupõe o jogo da
suplementariedade. Este não visa a construir uma interpretação que complemente o significado de um fato ou
texto na busca da unidade entre significado e significante, mas sim, através do suplemento visa a suprir
temporariamente uma falta do significante. Tal oposição, entretanto, de forma alguma abole, exclui a relação
entre os termos, por esta razão, o pai é ausente e presente, é imagem e presença concreta.
Assim, embora o personagem pareça ter adotado o isolamento, o desligamento absoluto não acontece,
pois ele permanece à margem. A partida definitiva do personagem não ocorre, ele não prescinde de continuar
existindo...
Sua opção definitiva pelo silêncio, paradoxalmente, parece torná-lo mais visível e audível, embora não
verbal. O personagem se faz muito mais presente durante sua existência na canoa, no rio, do que antes, junto à
família.
Ao mesmo tempo que constrói sua narrativa, o narrador também se constitui, deixando perceber , através
do conflito psicológico que experimenta, que divisa haver algo além no afastamento do pai que o faz ser o
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único a permanecer e corporificar o jogo, estando perto/longe do pai:
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade...
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui,
de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu
sei – na vagação, no rio ermo – sem dar razão de seu feito (p. 80-81).
Mas o narrador, repetimos, parece vislumbrar que a atitude do pai é consciente, uma quase “missão”,
chegando mesmo a cogitar, quase ao fim do conto, em assumir seu lugar para cumpri-la, adotando o discurso
contundente do silêncio. Embora o narrador se depare com sua incapacidade para adotar plenamente o que ele
implica: dizer sem dizer, deixar aparentemente vazio o espaço da palavra, ele também o atualiza: “Sou o que
não foi, o que vai ficar calado” (p.82). Ratifica-se, assim o jogo, proposto por Derrida, em que não se busca a
identificação ou redução de contrastes, mas a possibilidade de substituições infinitas, que mobiliza o suplemento,
a atitude do “filho” (narrador), ao mesmo continuando e instaurando um novo modo de realização do discurso
do silêncio.
Assim, a escritura de Guimarães Rosa, fundindo o universo cultural do sertão com elementos universais,
tematiza questões que ultrapassam, embora perpassem, o universo do regional e atinge uma espécie de
“decantação” da linguagem sertaneja para apontar para a contigência e contudência da condição humana.
BIBLIOGRAFIA
BLANCHOT, Maurice. O Livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BRAIT, Beth. Guimarães Rosa. São Paulo: Abril Educação, 1982.
COSTA LIMA, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. 1986.
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DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1985
Glossário de Derrida; trabalho realizado pelo Departamento de Letras da PUC/RJ, supervisão geral de
Silviano Santiago. Rio de Janeiro: F. Alves. 1976.
LUCAS, Fábio. O caráter social da ficção do Brasil. São Paulo: Ática, 1985.
ROSA, João Guimarães. “A Terceira Margem do Rio”. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2005.
SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. Formação da Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico;
Niterói: Universidade Federal Fluminense/EDUFF, l987.
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MARIA CÉLIA LEONEL (PROFESSORA DA UNESP – ARARAQUARA)
Resumo:
Refletimos sobre a noção de sertão na obra do escritor mineiro em duas direções. De um lado, examinamos
o modo como, de Sagarana à produção posterior, Guimarães desenvolve essa noção. De outro lado, investigamos
de que forma ele transcria anotações de viagem referentes ao sertão mineiro (hoje pertencentes ao Arquivo
Guimarães rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo) para a constituição do sertão
em Grande sertão: veredas.
A CRIAÇÃO DO SERTÃO GUIMARÃES ROSA
No mundo mítico grego, segundo Hesíodo, da fecunda união entre Urano e Gaia, Céu e Terra, originaramse os doze titãs, seis filhos e seis filhas. As titanesas Têmis e Mnemósine diferenciam-se dos irmãos e das
demais irmãs e merecem atenção em conseqüência dessa diferenciação:
A primeira é a potência por excelência da Ordem do Mundo: Têmis é a Lei, o eterno equilíbrio. Sua irmã,
Mnemósine, é o poder do Espírito, a Memória que garante a vitória do espírito sobre a matéria instantânea e funda
toda inteligência. (GRIMAL, 1983, p. 27)
Mnemósine é também a mãe das musas. Sendo assim, na teogonia grega, fenômenos como espírito e
inteligência, de que dependem o homem e suas criações, vinculam-se diretamente à memória, que é
A possibilidade de dispor dos conhecimentos passados. Por conhecimentos passados é preciso entender aqueles
que já foram, de um modo qualquer, disponíveis; e não já simplesmente conhecimentos do passado. (ABBAGNANO,
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1970, p. 629)
Essa definição pode ser completada com a idéia de que, em nossa memória, o passado faz-se presente,
vencendo a transitoriedade, visto que o passado não é abandonado por nós como algo supérfluo: ele se
atualiza no presente, é parte de sua constituição “como natureza humana que se cria e se forma” (KOSIK,
1976, p. 134). Há, portanto, uma contínua integração crítica e avaliatória do passado no presente.
O passado concentrado no presente (e portanto aufgehoben no sentido dialético) cria a natureza humana, isto é, a
‘substância’ que inclui tanto a objetividade quanto a subjetividade, tanto as relações materiais e as forças objetivadas,
quanto a faculdade de ‘ver’ o mundo e de explicá-lo por meio dos vários modos da subjetividade – cientificamente,
artisticamente, filosoficamente, poeticamente, etc. (Id. ibid.)
Justamente a disponibilidade dos conhecimentos passados permite ao homem construir a cultura,
entendida não no sentido mais atual de “conjunto dos modos de vida de um grupo humano determinado”,
mas como “o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam também
indicar pelo nome de civilização.” (ABBAGNANO, 1970, p. 209) Toda cultura viva e formativa deve ser aberta
ao futuro, mas ancorada no passado e, para que ele possa ser recuperado e fazer parte da cultura, é necessária
a memória, princípio que possibilita os fazeres humanos como a ciência e as artes, entre elas, a literatura.
A atividade cultural depende de algum tipo de acumulação, de armazenamento – que pode se dar quer
seja pela memória dos mais velhos, quer seja pela memória conservada nos mais variados acervos - arquivos,
museus, pinacotecas, bibliotecas, hemerotecas e também na memória eletrônica do hipertexto. Tais acervos,
por sua vez, podem constituir, como conseqüência de sua manipulação, novas memórias, proporcionando,
assim, mudanças na cultura.
A memória de que agora tratamos não é aquela que se manifesta em cada sujeito, constituída por
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fragmentos de lembranças que, por algum motivo, iluminam-se, presentificam-se. Todavia, essa memória de
que cuidamos tem ligações com a dos indivíduos particulares, que, já na distinção feita por Platão, dispõe de
duas condições ou momentos distintos, por ele denominados “conservação de sensações” (ou retentiva) e
“reminiscência” (ou lembrança):
1. a conservação ou persistência, de uma certa forma, dos conhecimentos passados que, por serem passados,
devem se ter subtraído à vista: este momento é a retentiva;
2. a possibilidade de evocar, na ocorrência, o conhecimento passado e de torná-lo atual ou presente: que é
propriamente a lembrança. (ABBAGNANO, 1970, p. 629)
Aristóteles destaca outra característica fundamental da memória como lembrança: o caráter ativo da
deliberação ou da escolha, havendo, portanto, oposição entre o caráter do primeiro momento, o da retentiva,
que é natural ou passivo e o caráter do segundo momento, o da lembrança, que é ativo ou voluntário.
Na memória de arquivos e acervos de modo geral, essa distinção não se apresenta como tal, pois não se
trata da manifestação individual da lembrança. Naquela há que se considerar, inicialmente, no processo de
retentiva, de conservação, o caráter ativo do ou dos responsáveis pela constituição do acervo. Igualmente, no
momento em que o arquivo representa a condição de reminiscência, na consulta, a procura é voluntária, é
uma busca de quem tem pistas e pode, geralmente, servir-se de índices.
Vejamos a aplicação dessas últimas observações no Arquivo Guimarães Rosa pertencente ao Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo com cujo material mantivemos contato prolongado seja
como participante de sua organização, seja como consulente. Tal contato trouxe o interesse pela reflexão
sobre o vínculo entre esse material - a memória conservada - e a elaboração da obra pelo escritor.
Para tratar do Arquivo, cabe lembrar a conhecida explanação de Guimarães Rosa a Günter Lorenz
sobre os motivos que o levaram a tornar-se escritor:
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“[...] nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. [...] Desde pequenos, estamos constantemente
escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às
vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e
penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. [...] No sertão, o que pode uma
pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contálas, escrevia. [...] Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o
ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda. (ROSA apud LORENZ,
1973, p. 325)
Retomemos alguns pontos desse excerto que, de algum modo, remete ao mundo do narrador clássico
de que nos fala Walter Benjamin. O momento da retentiva por parte dos que, como Guimarães Rosa, ouvem
as histórias “multicoloridas” é o momento da reminiscência, da lembrança para os que narram as histórias,
que podem ser idosos ou não. Já quando o autor de Grande sertão: veredas escreve e retoma fragmentos do que
ouviu, a atividade da reminiscência atua. Dessa forma, esses dois pólos constroem sua memória, sua cultura
e sua obra.
Mas o escritor mineiro, além de conservar “sempre os ouvidos atentos” e de escutar “tudo o que podia”,
amplia, em muito, e modifica a atividade de retenção, de conservação do mundo do sertão e também de
outros mundos. Não bastando a memória pessoal, cuida de anotar o que vê, ouve e lê nas cadernetas e em
muitos outros tipos de suporte: cadernos, folhas soltas, pedaços e pedacinhos de papel.
Assim ele corrobora a memória pessoal, construindo uma memória material, que tem especificidades. A
reprodução escrita, desenhada, fotografada, de alguma maneira, grafada, é mais objetiva, não está à mercê das
inconstâncias e traições da memória individual. A diferença entre a memória humana e a escrita ou conservada
por qualquer outro tipo de suporte é, portanto, de meios e de possibilidades de utilização. A memória de cada
um é sempre virtual, o que não ocorre com a material.
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O autor de Sagarana optou por essa modalidade de conservação de conhecimentos e informações muito
cedo, como se vê na declaração a Lorenz. De acordo com Mário Palmério (1968, p. 5), no discurso de sua
posse na vaga de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, o período em que viveu em Itaguara
como “médico de roça” foi o mais proveitoso, pois
Guimarães Rosa anotava tudo, não só de memória, mas, e principalmente, nas suas famosas cadernetas. [...] As
anotações resultaram em abastado glossário sertanejo, verdadeiro léxico enciclopédico de todo um novo vocabulário e gramática,
de uma nova história natural e antropologia, e tudo rigorosamente autêntico, fiel ao visto e ouvido. Não tivesse Guimarães
Rosa acumulado esse minucioso e exato pé-de-meia, ser-lhe-ia impossível levar a cabo a estendida e densa obra de arte que foi
o seu importantíssimo legado. (Id. ibid.)
O Arquivo, por sua vez, é conseqüência dessa ampliação do que queria guardar, em especial, para
possível utilização na obra e parte do que lá se encontra pode ter sido acumulado em Itaguara. Pode-se
mesmo dizer que o acervo de Guimarães Rosa constitui parte fundamental de seu projeto de construir
vigorosa obra literária. Tanto a formação do Arquivo, momento da retenção, quanto seu uso, no momento da
consulta que corresponde à lembrança, de modo em geral, são operações voluntárias. Para recuperar o
passado, Guimarães Rosa examinava o que registrou e guardou ou o que recortou e conservou. A manipulação
do material do acervo – a memória - para trazer o passado registrado à lembrança, possibilita que chegue ao
presente também o não-procurado, o inesperado que pode ser de grande proveito; de variadas maneiras,
portanto, o Arquivo torna possível “dispor de conhecimentos passados”.
No que se refere a sua formação, esse acervo é constituído de documentos que, falando qualitativamente
mas também quantitativamente, cuidando do modo como são organizados, enformam um determinado
conhecimento. Não se trata apenas de, por exemplo, algumas pastas de anotações de viagem ao interior
mineiro ou à Europa, mas de um conjunto de insights, dados e informações registrados e agrupados, que
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estruturam uma memória específica, um conhecimento de grande amplitude. Não se trata, ainda, desde que
foi institucionalizado, unicamente, de parte da memória do homem Guimarães Rosa, visto que, se contém o
que ele desejou conservar, conta também com a interferência de determinados pesquisadores que lhe deram
a organização que tem no momento e realizaram os índices analíticos de cada setor.
Cabe aqui uma observação no que diz respeito ao trabalho de arquivista, ao ato de, no Arquivo Guimarães
Rosa, reunir documentos, e, especialmente, de separá-los para que sofram novo agrupamento: essa atividade
foi sempre realizada a partir de critérios traçados com o máximo cuidado.
O Arquivo Guimarães Rosa, portanto, não é formado apenas pela retentiva do escritor, é uma memória
constituída de muitas memórias – do autor de Corpo de baile, dos organizadores de seu material, dos consulentes
– servindo sempre para produzir novas memórias. Com absoluta certeza, até um determinado momento, esse
acervo alimentou a obra rosiana, foi examinado e manipulado pelo escritor. Depois, passou a alimentar várias
pesquisas sobre sua obra.
O “trabalho da memória e o da pesquisa que lhe está ligada se relaciona [...] a um conjunto de desejos,
de propósitos, de intenções, a uma busca por caminhos que a todo momento se bifurcam.” (OLIVEIRA,
1998, p. 273) Bifurcando-se, multiplicando-se, os caminhos, procurados em conseqüência de desejos, propósitos
e intenções, resultam da busca de um sentido para alguma coisa. Se pensarmos que o material do Arquivo
só existiu e só existe como memória quando ele foi ou é manipulado de forma a constituir, de uma maneira
qualquer, um sentido, voltamos à idéia de que um dos resultados da memória é a criação dos sentidos da vida
humana, portanto, da cultura.
A pesquisa é, por conseguinte, outro momento de ação da memória, interpretando, acrescentando,
criando conhecimento. O avanço ou a mudança que a pesquisa pode proporcionar no conhecimento pela
atividade de investigação é também uma face da cultura, dado que cultura não é apenas armazenamento, é
um princípio ativo e, como tal, sujeita à modificação.
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Cuidemos agora da maneira como Guimarães Rosa conservou a memória do sertão. Entre os
documentos do Arquivo, muitos revelam que o escritor tomou nota do que viu, ouviu, sentiu ou percebeu nas
célebres viagens ao interior mineiro. Tais anotações, inicialmente feitas nas já conhecidas cadernetas, foram
depois datilografadas, constituindo dois diários de viagem ao mundo sertanejo de Minas Gerais. Um deles
recebeu o nome de Grande excursão a Minas e outro de A boiada, este dividido em duas partes.
Para que se tenha idéia do tipo de anotação realizada, apresenta-se um trecho de A boiada 2 (ROSA,
s.d, p. 5):
Jatobá (miudinho)
Jacarandá.
Faveira.
O páu-dôce: compridos cachos, amarelo grôsso.
3 hs.25’ – Chegamos à vereda da Tolda.
! – O cheiro bovino se acentuando mais e ficando dôce, como o mel na tacha, cheiro de engenho. Raimundo
Bindóia explica: é dos cascos, nas pedras!
Em outra página do mesmo diário (ROSA, s.d, p. 16), temos:
(Zito): “Ignácio Rocha: - Tinha 5 bestas de sela. Atendia chamados, atendia “qualquer aurora”.
12 hs. 20’ – Costeamos bela larga vereda – a mais bela – com buritis grandes e meninos, verde e amarelo oiro. Nêles
o vento zumbe. As fôlhas altas, erectas, se dedeiam. Vários leques, cada um.
“Sofrer” – amarelo e preto. Bandos dêles, nos buritis.
12 hs. 40’ – Bandos de sofrês, nos buritis. Cantam!
[...]
Chegamos à 1 h. 15’ na Fazenda Santa Catarina, do sr. Pedro Mendes.
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_ “O que é “aquilo” lá, aquêle mouro?
- “É um boi carreiro. Morreu o companheiro dêle, e estou levando êle...
Em tais notas, determinadas representações de componentes do espaço regional mineiro são fixadas a
partir de um olhar subjetivo, já imantado pela poesia, constituindo ampla paisagem humana e social, animal,
vegetal. Esse é o principal tipo de memória conservada no diário: um modo de ver o interior de Minas, o
mundo da cultura sertaneja.
O conteúdo desses diários mostra que as anotações – e, conseqüentemente, também a obra rosiana são resultado de muitas memórias: do escritor, e, apesar de sua interferência nos registros, de vaqueiros como
Manuelzão, Zito e muitos outros, de pessoas que encontrou durante a viagem, de quem registrou os causos,
as histórias, as quadras, as expressões, fazendo, de uma parte importante do Arquivo, um repositório privilegiado
da memória cultural do sertão. Embora o acervo não seja apenas constituído pela representação do mundo
popular, pois há nele uma boa quantidade de registros provenientes do universo erudito como transcrições de
Homero, Virgílio, Freud e outros, podemos dizer que o sertão tem espaço privilegiado no Arquivo.
A importância que o sertão tem no acervo ensejou a busca de relações entre a memória do sertão e a
obra, trabalho de pesquisa que é de mão dupla: vai da obra ao Arquivo e deste à obra para verificar, não
apenas o que dele foi aproveitado, mas, principalmente, o modo como isso foi feito. Vários trabalhos assim
realizados permitem dizer: a obra rosiana seria muito diferente sem aquilo que o escritor anotou e conservou
e que hoje constitui o seu acervo e, possivelmente, podemos concluir o mesmo da obra de Mário de Andrade
e de outros autores.
Vejamos como elementos do Arquivo podem chegar à obra de Guimarães Rosa, espaço de
aproveitamento das memórias registradas. Uma das possibilidades dessa operação é, na obra, o escritor casar
a memória do sertão mineiro com outra memória, a da antigüidade greco-latina, que nunca deixou de estar
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presente na vida ocidental, mesmo que disso não tenhamos consciência.
Tomando-se um pequeno trecho de Grande sertão: veredas, vemos como, com o influxo do Arquivo,
ocorre a aproximação entre os dois universos, o sertanejo e o erudito, mistura que é uma das bases da obra
rosiana. Trata-se de anotação de A boiada 2, que se articula com o texto da narrativa, de forma a permitir que,
concretamente, acompanhemos a transcriação de registros na composição literária. A nota do diário de
viagem refere-se ao momento em que vaqueiros e bois pernoitam na fazenda denominada Santa Catarina
(ROSA, s.d, p. 16):
A Fazenda Santa Catarina fica perto (junto do) céu – um céu azul pintural – de Pisa ou Siena – com núvens
que não se removem.
Observa-se, no registro, a impressão causada pelo espaço dessa fazenda, importando, sobretudo, a
tentativa de descrição do azul do céu, numa frase que não é unicamente informativa, mas carregada de
conotação, evidenciando-se a presença da subjetividade do escritor.
Da obra, interessa o episódio referente ao primeiro encontro de Riobaldo com Otacília em Grande
sertão: veredas, de grande importância na narrativa, ainda que não seja considerado como um dos momentos
cruciais e divisores de águas. Sobre os envolvimentos amorosos de Riobaldo, diz Benedito Nunes (1969, p.
144) que o protagonista do romance
[...] conhece três espécies diferentes de amor: o enlevo por Otacília, moça encontrada na Fazenda Santa Catarina, a
flamejante e dúbia paixão pelo amigo Diadorim, e a recordação voluptuosa de Nhorinhá, prostituta [...].
Entre muitos estudos sobre as mulheres que acompanham a trajetória de Riobaldo, destacamos o de
Benedito Nunes, não apenas por ser clássico, mas porque a qualificação que ele faz de Otacília é justamente
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seu vínculo com a Fazenda Santa Catarina, que tem alguns significados, como o de indicar o possível desejo
de aburguesamento do protagonista Riobaldo. No entanto, a presença da fazenda pode ser lida em outro
paradigma.
A aproximação entre o texto publicado de Grande sertão: veredas e as notas mencionadas leva à observação
das transformações ocorridas no intervalo redacional e à verificação dos resultados da operação, ou, pelo
menos, a uma parte dos resultados: um dos efeitos do processo de elaboração é a construção de um lugar a um
tempo sertanejo e mítico, ou, melhor dizendo, o espaço que representa o sertão mineiro é transformado em
lugar propício ao mito. De fato, o espaço é sacralizado por meio de recursos como a construção de uma
atmosfera mítica em que a menção a componentes do mundo dos mitos da antigüidade é instrumento importante.
Ao mesmo tempo, as personagens recebem coordenadas míticas, havendo uma simbiose entre elas e o lugar.
A narração do encontro entre Riobaldo e Otacília antecipa-se em flash-back, em analepse rápida, mas
altamente significativa:
Moça de carinha redonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foi um sorriso. Isso chegasse? Às
vêzes chega, às vêzes. Artes que morte e amor têm passagens demarcadas. (ROSA, 1965, p. 122)
Vinte e três páginas depois, o encontro é retomado com minúcias. Com a chegada dos jagunços à
fazenda Santa Catarina - “de tardinha, noitinha já era, noite, noite fechada” (ROSA, 1965, p. 122), como
lemos na antecipação citada - a “graça de carinha e riso e boca” de Otacília é vislumbrada “num enquadro de
janela, por mal aceso de uma lamparina.” (ROSA, 1965, p. 145)
A imagem responsável pelo despertar amoroso de Riobaldo é a de uma jovem que começa a configurarse como uma Afrodite do sertão, cujas armas são a doçura e a sedução e de cujo mágico poder de atração
ninguém deve escapar.
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A par da renovação do atributo da graça e beleza inerente a Afrodite, Otacília apresenta uma virtude
própria de Héstia, aquela que está no centro do espaço doméstico e nunca abandona a casa, que, por sua vez,
caracteriza-se por fixar-se no solo (VERNANT, 1965, p. 101). Como símbolo da permanência, Otacília
apresenta-se, nesse momento, no espaço circunscrito e fechado da casa da fazenda, iluminada pelo fogo da
lamparina. Temos, por conseguinte, o mito grego recriado. A comparação entre o texto do diário e o da ficção
desvenda um dos modos pelo qual se constrói o episódio e o espaço diegético do encontro entre as duas
personagens.
Outra amostra da articulação entre registro de viagem e texto narrativo é a seguinte:
- Já passaram mais de vinte
‘verdadeiras’ ...(ROSA, s.d., p.20)
O talento e a cultura rosiana criam a cena em que pombas mineiras cumprem papel de simbolização.
Os caminhos de Otacília, como os de Afrodite, cobrem-se de flores, e as pombas a acompanham como ocorre
com a deusa em esculturas antigas e em moedas que a representam (DAREMBERG e SAGLIO, s.d., p. 521).
O renascimento das energias vitais não é mais que um dos aspectos da influência de Afrodite sobre
tudo o que é vida:
É a forma elementar da impulsão geral dos seres a propagar a espécie. Para o homem, de quem perpetua a raça
pelo amor, é uma divindade da família e do casamento, pois, entre eles, é a união estável e legal dos sexos que
assegura a perpetuidade das raças. (Id., ibid.)
O processo de criação que se relaciona com as notas de viagem constrói um cosmos singular, sacralizado
pelo discurso, em que o texto das anotações, poeticamente transfigurado, participa da narrativa. Assim é que,
muito próximo e muito distanciado do espaço sertanejo – lugar profano - o conjunto das anotações permite
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compor um novo espaço e a Fazenda Santa Catarina, em Grande sertão: veredas, apresenta-se em homologia
com a sedução, com o amor que movem as personagens.
A verificação da recorrência da mitologia greco-latina no texto rosiano não permite considerar que, no
romance, a mitologia seja simples repositório de figuras ou alegorias do humano, do seu fazer. Recurso da
imaginação do escritor, próprio de sua memória, logo de sua cultura, a mitologia presta-se a explicar o que é
inexplicável pela razão e pela vontade. Com ela recriando o espaço do sertão, Guimarães Rosa produz um
discurso novo, com grande carga poética.
Lembrando que, no que se refere à memória, “Para Xenofonte como para os romanos, a questão da
origem é decisiva: os homens são mortais, mas se imortalizam pelos seus feitos e os feitos dos antepassados,
criando a origem da sociedade, dão a ela a imortalidade.” (CHAUÍ, 1992, p. 42), podemos dizer que a obra de
Guimarães Rosa com essa fusão de memórias que opera é parte da formação da sociedade brasileira, de sua
memória e lhe confere imortalidade.
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Trad. coordenada e revista por Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou,
1970.
CHAUÍ, M. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. In: CUNHA, M. C. P. O direito à memória.
São Paulo: DPH/SMC, 1992. p. 37-46.
DAREMBERG, C. e SAGLIO, M. E. Dictionnaire des antiquités grecques et romaines: d’après les textes et les
monuments. Paris: Hachette, s.d. v.5.
GRIMAL, P. A mitologia grega. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
KOSIK, K. Dialética do concreto. 2. ed. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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LORENZ, G. W. João Guimarães Rosa. In: _____. Diálogo com a América latina: panorama de uma literatura do
futuro. São Paulo: EPU, 1973. p. 315-355.
NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: _____. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo: Perspectiva,
1969. p. 143-171.
OLIVEIRA, L. C. V. A pesquisa em literatura e os processos de construção da memória. Boletim do Centro de
Estudos Portugueses. Belo Horizonte, FALE/UFMG, n. 23, p. 267-276, jul./dez. 1998.
PALMÉRIO, M. Evocação de Guimarães Rosa. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 nov. 1968. Suplemento
Literário, p. 4-5.
ROSA, J. G. A boiada 2. Arquivo Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros, USP. Texto inédito.
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. VERNANT, J. P. Hestia-Hermès.
In: ______. Mythe et pensée chez les grecs. Paris: François Maspero, 1965. p. 98-145.
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MARIA LUCIA GUIMARÃES DE FARIA (PROFESSORA DE TEORIA LITERÁRIA DA UFRJ)
Resumo:
O sentido das primeiras e das terceiras estórias. A estrutura arquitetônica dos dois livros e o profundo vínculo
que os solidariza. A poética rosiana das estórias. A pedagogia ascensional e o pacto de puro entusiasmo. O chegar
a existir e o portentar-se às portas da morte em Primeiras estórias. Tutaméia como um livro tragicômico.
A PEDAGOGIA ASCENSIONAL DAS PRIMEIRAS ESTÓRIAS
1. Introdução
As Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, são atos inaugurais de um viver. Compõem um projeto po-éticoexistencial em que o cotidiano sobreviver demasiado humano é superado, abrindo-se a clareira vital na qual o
homem, animado pela vontade de ser e pela potência do querer, anuncia-se como o inventor do seu próprio
destino, único e inimitável, e lança os alicerces de um autêntico existir, alheio e estranho aos modelos e
normas de conduta instituídos e canonizados, seguindo apenas a sua própria intuição e os singularíssimos
ditames do seu coração. As estórias marcam o instante fundamental em que se diz “Não!” ao anonimato, à
mediania e à mediocridade, e se celebra o nascimento de um si próprio, pronto a manejar as rédeas de sua vida
e a decidir os rumos de seu futuro.
As duas estórias que se interpretam a seguir, além de ilustrarem com muita sensibilidade a pedagogia
ascensional do magistério rosiano do verdadeiro existir, permitem que, a seu propósito, se delineie uma visão
de conjunto do livro e que se destaquem várias notáveis correlações que as estórias urdem entre si, compondo
um todo arquitetônico, que se propõe harmônico e coeso. Ao longo do livro, os temas, as imagens e os motivos
que aqui se apontam são retomados reiteradas vezes, numa estrutura fugata, que confere poesia e musicalidade
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à obra.
2. MUITO BRANCO-DE-TODAS-AS-CORES: “Um moço muito branco”
Um moço muito branco, mas não branquicelo, antes “figurando ter por dentro da pele uma segunda
claridade” (Rosa, 1978, p. 86), chega à comarca de Serro Frio, saído do nada, no simbólico dia de São Félix.
Como está gravado no nome do santo padroeiro do dado dia, o moço “de distintas formas” vem para outorgar
alegria a todos os que se “engraçam” (p. 87) dele, vale dizer, os que se deixam tocar pela graça que gratuitamente
esbanja a sua figura singular. O moço “fazia para si outra raça” (p. 86/87). Entretanto, não era o único
espécime dessa raça especial. A ela pertencem alguns outros personagens emblemáticos das Primeiras estórias.
Em primeiro lugar, o Menino de “As margens das alegria” e “Os cimos”, companheiro no abençoado dom da
alegria. O moço, “claro como o olho do sol” (p. 91) e o Menino, mestre-aprendiz na pedagogia do diário
levante do ímpeto ascensional, inserem-se na fulgurante mitologia solar, com tudo o que se lhe associa: a
clarividência, a transcendência, a leveza, a capacidade de voar, a força de existir. O moço se fora de partida
“com a primeira luz do sol” (p. 91), assim como o tucano ia e vinha com “a fina primeira luz da manhã” (p.
154) para anunciar o advento do sol. Em segundo lugar, Nhinhinha, a menina de lá, residente, como ele, “nas
altas atmosferas” (p. 88). Assim como ela “fazia saudade” (p. 18) de um “lá” que ela mesma não sabia precisar,
ele conseguia, em si, uma “saudade inteirada” (p. 88), que o levava a “olhar sempre para cima, o mesmo para
o dia que para a noite” (p. 89/90). Ela “apreciava o casacão da noite”, particularmente as “estrelinhas piapia”; ele era “espiador de estrelas”. Ela possuía “olhos muito perspectivos” (p. 19) com os quais podia ver
através das coisas; ele surpreendia, assaz observando, “até espreitasse por miúdo os vezos de coisas e pessoas”
(p. 87). Em terceiro lugar, o Pai de “A terceira margem do rio”. Em ambos, a “liberdade vaporosa” que
praticam é conseqüência direta do “espírito de solidão” (p. 89) que cultivam. A conquista da terceira margem
é a superação de todos os obstáculos que cerceiam o livre desempenho da faculdade humana de criar mundo
e inventar destino. Nesse sentido, é também “terceira margem”, o “lá” a que se refere Nhinhinha, o “alhonde”,
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em que se movimenta o moço muito branco (p. 89), o “transcendente” a que se reporta o narrador de “O
espelho” (p. 61), o “alhures” em que se suspendia, por vezes, “alheio”, Tio Man’Antonio (p. 73), a “mansão
estranha fugindo atrás de serras e serras, sempre”, de “Nenhum, nenhuma”, etc. Em quarto lugar, integra essa
raça o narrador de “O espelho”: o “quanto como uma luz que se nublava, aos poucos tentando-se em débil
cintilação, radiância” (p. 67) é como a “segunda claridade” sob a pele que o narrador adquire após a metamorfose
existencial. Pertence a esta raça, também, Tio Man’Antonio, “serafim”, eternamente transitando entre o aqui,
agora, e o “outro lugar, outro tempo” (p. 88), no suspenso limiar entre o ser e o nada. Também o rapaz de
“Seqüência”, impulsionado, não por um desígnio lógico, mas por uma “oculta, súbita saudade” (p. 59), inserese nesta casta. E, ainda, Brejeirinha, cujo “audaz navegante” é o símbolo de uma infatigável transcensão de
limites, o louco de “Darandina”, encarapitado no “páramo empíreo” onde praticava, também, a liberdade
vaporosa, e Maria Exita, que trabalhava a própria susbtância da alvura. O anelo último das Primeiras estórias é
que todos cheguem a compor essa “raça” de “personagentes” (p. 124), após o ponto de conversão vital que
constitui justamente o teor das estórias.
Quem do moço mais gostou foi o preto José Kakende, “escravo meio alforriado de um músico sem juízo,
e ele próprio de idéia conturbada” (p. 87). Como é habitual na obra rosiana, o “delirado varrido” é o único
capaz de escutar o recado do sobrenatural e de perceber a “movida e muda matéria” (p. 74) que se esconde por
detrás da realidade aparente. Os marginais da razão, como não têm os sentidos viciados pela lógica nem o
espírito amestrado pelo bom senso, pegam aviso das coisas e enxergam, para além do visível, toda uma dimensão
invisível palpitante de aconteceres. Escravo de um músico meio aluado, Kakende tinha sua loucura de certa
maneira duplicada pela do patrão, e tinha, ainda, trato com a arte, que é uma outra forma de desautomatização
da sensibilidade, de modo que era ele o indicado para uma percepção mais ampla dos “fatos de pavoroso
suceder” (p. 86). Assim é que as suas “desorbitadas sandices” (p. 87) de “nuvem, chamas, ruídos, redondos,
rodas, geringonça e entes” (p. 91) constituem, na verdade, uma visão profética, toda calcada em Ezequiel I, 428, conforme demonstra Heloísa Vilhena de Araújo (Araújo, 1998, p. 145). A apropriação da visão bíblica dá
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uma dimensão religiosa à estória, e os atos do moço muito branco ganham uma maior profundidade e relevância.
Anunciado pelo profeta, o moço surge como o “bem-chegado” (tal qual o rapaz de “Seqüência”), cuja vinda,
semelhante à de Cristo, opera milagres, promovendo conversões inimagináveis. De inspiração bíblica é também
a expressão “o filho de nenhum homem” (p. 87), que se reporta, por contraste, à profecia de Ezequiel, onde se
emprega recorrentemente a perífrase “filho do homem” para representar a fraqueza humana perante a majestade
divina. O filho de nenhum homem, portanto, é aquele que transcendeu a condição meramente humana e
entabulou uma conexão mais direta com Deus, realizando-se na dimensão intermediária entre as esferas divina
e humana. Com efeito, de acordo com as “altas e despauteradas falas” do preto, que viu descerem “os Arcanjos”
de dentro de “uma artimanha amarelo-escura”, o moço desempenha-se como um arcanjo, cuja função resolvese numa mediação, que libera os homens para transcensões insuspeitas, evitando que eles se imobilizem em
acontecimentos definidos e definitivos. A mediação do anjo nos protege de um duplo impasse: tanto do
fracasso em transcender que nos paralisa num estado de imanência bruta, quanto do malentendido de uma
transcendência teísta que cria uma distância intransponível e nos condena ao ascetismo com todas as suas
fúrias e rejeições. O anjo propõe a idéia de teofanias, como inesgotáveis adventos da alma (Corbin, 1981, p.
292). A ligação do moço com os anjos confirma-se na ocasião de sua partida, quando, auxiliado pelo preto
José Kakende, ele acende “de secreto, com formato, nove fogueiras”, para as nove hierarquias angélicas (Araújo,
1998, p. 148).
Toda espécie de transformação passa a acontecer com a chegada do moço muito branco. O próprio
terreno “muda de feições” (p. 86) após os cataclismos provocados pelo fenômeno luminoso que se projetou no
espaço. Hilário Cordeiro, comportando-se de acordo com a cordialidade e a alegria configuradas em seu nome,
recebe-o de coração, e de seu zelo iria, mais para diante, ter melhor razão, pois “tudo lhe passou a dar sorte” (p.
89). Duarte Dias, “maligno e injusto, sobre prepotências”, em cujo coração “não caía nunca uma chuvinha”
(p. 87/88), encontra, guiado pelo moço, uma grupiara de diamantes ou um panelão de dinheiro, e, por arte
desse prodígio, converte-se, bem no dia da vigília da Transfiguração, em “homem sucinto, virtuoso e bondoso”
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(p. 91), para estupefação geral. O cego Nicolau desperta a atenção comovida do moço, de quem recebe uma
semente desconhecida, que produz “um azulado pé de flor, da mais rara e inesperada, com entreaspecto de
serem várias flores numa única” (p. 89). Este pé de flor azulado traz à memória, como agudamente observa
Heloísa Vilhena de Araújo, a “Flor de um azul etéreo”, do Heinrich von Ofterdingen, de Novalis, símbolo de uma
busca iniciática da origem, por intermédio da poesia. A Flor, ao redor da qual se reuniam milhares de flores de
todas as cores, entre cujas pétalas “nadava um terno rosto”, é a precursora da “flor pelágica”, que anuncia o
nascimento abissal do rostinho de menino (Araújo, 1998, p. 146/147). Mas o acontecer mais bem-vindo e
notável patrocinado pelo moço foi a metamorfose da moça Viviana. Esta, desmentindo o seu nome, não vivia;
antes encerrava-se numa “vagarosa tristeza” que a consumia e não fazia lustrar a grande “beleza do feitio” (p.
90). A ela chegou-se o moço, “gentil e espantoso”, pondo-lhe a palma da mão no seio, delicadamente. O gesto
curou-a de qualquer dor ancestral que a paralisava, e ela “despertou em si um enfim de alegria, para todo o
restante de sua vida”, finalmente concordando com o desempenho inscrito no próprio nome e com o dom de
formosura que a distinguia.
Também ao moço muito branco o dom de alegria e benevolência dispensado aos moradores do Serro
Frio traz benefício e paz. Ele, que, em sua chegada, era “o moço, pasmo” (p. 86), transforma-se em “o moço,
plácido” (p. 91), depois de propiciar a conversão existencial aos que o acolheram, e, inclusive, conquista as
asas com que retorna à sua pátria estelar. Em “Nenhum, nenhuma”, estória que se defronta com “Um moço
muito branco” na simetria desenhada pela colocação de “O espelho” no centro do livro, o Moço parte da casade-fazenda, perdida na bruma do “indescoberto rumo”, em estado de grande comoção, de alma conturbada,
“falido, ido, noutro confusamento” (p. 50), porque não pudera compreender a atitude da Moça em querer
“esperar até à hora da morte”, nem alcançara elucidar o sentido da interrogação que ela lhe dirigira: “Será que
você seria capaz de se esquecer de mim, e, assim mesmo, depois e depois, sem saber, sem querer, continuar
gostando?” (p. 48/49). Da mesma forma que ressoam na estória “Seqüência”, os ecos daquela interpelação
longínqua fazem-se ouvir aqui, autorizando a suspeita de que Viviana, a “mais bela moça” (p. 87), seja uma
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espécie de figuração imanente daquela imagem transcendente, a Moça, “a mais formosa criatura que jamais
foi vista” (p. 45), a quem o Moço dera as costas, deixando-a, “lágrimas em olhos”, “linda já de outra espécie”,
chorando abraçada à Nenha velhinha (p. 49). Ao depositar a palma da mão no seio da moça Viviana e despertarlhe um enfim de alegria, o Moço não estaria redimindo-se daquela incompreensão originária e conquistando
uma expansão de alma – simbolizada pelas asas subitamente “tidas” – capaz de apaziguar-lhe o espírito e leválo de volta para perto da Moça, cuja “maravilhosa luz” é a mais perfeita expressão do “que está por trás da
palavra ‘paz’” (p. 43)? A alegria despertada na moça de cá cura a tristeza da Moça de lá. A conversão do moço
branco de “pasmo” em “plácido” traz à recordação o “limite de transformação” que a Moça, “flor”, representava
(p. 48), e a metamorfose que ele precisava cumprir para preparar-se para a grande hora. A “saudade inteirada”
que sentia, o seu sorriso referido a “outro lugar, outro tempo”, indicam precisamente que o seu amor tinha
pouso certo: “coração de cão com dono” (p. 88). Sua “estranha memória” (p. 89) consistia em não ter-se
esquecido da Moça, apesar de “perdida a completa memória de si, sua pessoa” (p. 87), vencendo a prova
proposta por ela e obtendo resposta afirmativa para a tremenda indagação que fizera a si mesmo, ao partir,
junto com o Menino: “Será que posso viver sem dela me esquecer, até à grande hora? Será que em meu
coração ela tenha razão?” (p. 50). O que antes não pudera entender com a razão viera a compreender com a
saudade, “a salvo do entendimento”. Agora era a grande hora: o moço estava pronto para desnascer e retornar,
dando seqüência ao que ficara interrompido.
Agora, observe-se a seqüência das estórias: seguindo-se a “Um moço muito branco” vem “Luas-demel”, que celebra as núpcias do Moço e da Moça. Não se diz que o Moço e a Moça de “Luas-de-mel” sejam os
mesmos Moço e Moça de “Nenhum, nenhuma”, como se o livro Primeiras estórias fosse uma brincadeira de
esconde-esconde ou uma grande charada a ser decifrada. O Moço e a Moça, quando assim mencionados, sem
nomes que os particularizem, encenam as arquissituações e os arquissentimentos envolvidos nos encontros e
desencontros amorosos. Na origem, há uma Moça, que é simultaneamente a jovem donzela e a anciã, o eterno
feminino unindo as duas pontas da vida. Essa Moça tem o seu Moço, o eleito do seu coração, que, no entanto,
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se rebela e recua diante do limite de transformação que a Moça simboliza. Esse retrocesso, recusa de ser,
medo de dar o salto no nada – que é o mesmo pavor vivido pelo narrador de “A terceira margem do rio” –
ocasiona um desenraizamento, que conduz a um desgarramento, que produz um esquecimento, que se traduz
como errância. A alma errante não sabe o que é. Suas palavras não têm voz, o que ela diz não é mais do que
texto decorado, seu rosto não é um vero semblante, mas um disfarce externo, seus passos não constroem um
rumo, antes denunciam um descompasso com a sintonia cósmica que rege o universo. Essa alma precisa –
como condição de possibilidade de chegar a existir – “desdeslembrar-se” (p. 47), religar-se à origem, ir buscarse por detrás de si mesma, dar o salto catabático em sua própria intimidade, ousar a travessia para o silêncio e
a solidão, encontrar o seu eu abissal, que brota, do fundo de sua angústia e de sua carência, como a flor
pelágica que finalmente irrompe ante o estremecer dos prados. O amor é o caminho para o religamento. Eros,
o deus cosmogônico, cria mundo, ao celebrar as bodas de dois destinos que se completam. Nesse mundo, que,
finalmente, adquire sentido, pode a alma humana vicejar e crescer. Esta é a Estória. Por isso, o Moço e a Moça
muito aparecem, encenando as tantas faces de uma Estória que nunca termina, e que, sendo a Mesma, nunca
é a mesma. A seqüência, portanto, que articula as Primeiras estórias, não é a de peças num quebra-cabeças, de
cujo encaixe dependesse a elucidação do todo. Assemelha-se, antes, ao “azulado pé de flor, da mais rara e
inesperada, com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas de maneira impossível, num
primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século” (p. 89). Raras
e inesperadas, as primeiras estórias oferecem precisamente o aspecto de serem várias estórias numa única
Estória, entremeadas de maneira impossível, porque inovadora e imprevisível, num primor confuso de cores
singulares e inéditas, valendo “primor” em todos os sentidos da palavra – o que ocupa o primeiro lugar,
qualidade superior, perfeição, excelência, delicadeza, beleza, encanto (Holanda, 1986) – além de outros que
lhe cabe atribuir – primordial, primitivo, original e originário – e compreendendo-se “confuso” como aquilo
em que estão fundidos, em reunião festiva, sem o jugo de um método ou a coerção de uma lógica, todos os
passos do itinerário das almas em seu trajeto ascendente. Esses passos compõem a via crucis do homem em
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demanda de sua re-generação, que constitui o seu autêntico nascimento como “o filho de nenhum homem”,
gerado de sua própria decisão de ser e de sua vontade de acontecer. Vale lembrar que, no frontispício do livro,
o título Primeiras estórias acha-se disposto de maneira cruciforme, prefigurando o percurso transcendentetransdescendente que está prestes a se iniciar.
“Um moço muito branco” é conduzida por um narrador não presente aos eventos narrados, que narra o
que veio sendo contado e recontado pelo “decorrer do tempo” (p. 87), por narradores que, tampouco,
presenciaram os fatos narrados, mas se fiaram em relatores que eram, porventura, meninos, quando travaram
conhecimento com o moço, por ocasião dos extraordinários fatos “referidos nas folhas da época e exarados
nas Efemérides” (p. 86). Isso significa que o narrador é destituído de onipotência e desprovido de onisciência,
e espera extrair, do próprio narrar, o sentido do que narra. Assim de fato ocorre, pois, mesmo não podendo
corrigir o que foi “transtornado incerto” (p. 87), nem esclarecer certas imprecisões que pairam sobre a estória
– “Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado” (p. 90) – é do narrador a conclusão
final, que ilumina a natureza do moço muito branco:
“Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada” (p. 91).
“Cintilar ausente” significa brilhar sem se deixar ver, realizar-se como uma fonte luminosa que projeta
a luz, mas a si mesma se esconde, desocultar todos os entes, permanecendo sempre oculto, ser a branca matriz
de todas as cores, cujo anulamento cromático garante e sustenta o inesgotável colorir, exatamente como o
“nenhum” é a possibilidade intrínseca do aflorar de todos os entes. Cintilar ausente é existir conforme ao ser,
que se desempenha como um desvelar auto-velante. “Acontecer” é não se deixar subjugar pelo manifesto e
desvelado, mas incessantemente propiciar o advento do novo, favorecer o devir, inspirar-se do nada, ocasionar
ser. O cintilar ausente patrocina o acontecer emergente. Só acontece quem se afeiçoa à movida e muda matéria
do nada, e apenas almeja ser, e mais nada. Para este cintilar ausente, imagem frisante do moço-muito-brancoAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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de-todas-as-cores, que aconteceu do alto do infinito a fim de despertar um enfim de alegria no coração das
pessoas, conduz o narrador a narrativa, como dádiva que outorga ao leitor, à guisa de “rápida partícula”, que,
plantada em solo fértil e receptivo, fornecerá um pé de flor da mais rara e inesperada, e, se cultivada na solidão
e no sigilo da alma que se encanta, não definhará, com pouco, nem secará, sem produzir outras sementes ou
mudas.
3. TARAN-TÃO: “Tarantão, meu patrão”
“Tarantão, meu patrão” é uma narrativa de 1ª pessoa, cujo narrador sofre uma metamorfose existencial
no decurso dos formidáveis sucessos que se narram. A relação formal patrão-empregado muda durante a
empreitada maluca e fabulosa para uma de mestre-discípulo, à medida que Vagalume se conscientiza da seriedade
da aventura e passa a encarar o patrão, não mais como “um traste ancião” (p. 141), cujas manias e esquisitices
atazanam os empregados da fazenda, mas como alguém que abre uma nova dimensão vital, roubada ao tempo
e ao espaço, em que o maravilhoso e o inesperado têm permissão para acontecer. Para Vagalume, cuja narrativa
bem revela que ele compreendeu a grandeza da experiência compartilhada e a solenidade do instante final do
patrão, a vida, após o transe hiperbólico, nunca mais seria a mesma. Muito mais do que coisa de gente “zureta”
(p. 139), a jornada desatinada revela-se-lhe a oportunidade única de perceber que ele próprio não era “um
porqueira” (p. 145), e de acrescentar-se, expandindo e aprofundando o seu horizonte existencial.
A princípio, tudo lhe parecia pura maluquice, sem eira nem beira, acontecida só para lhe desarrumar o
sossego. Na narração exagerada de Vagalume, as freqüentes interjeições e deprecações concretamente mostram
o seu hercúleo esforço para se haver com os excessos do patrão, e os verbos escolhidos, além de emprestaram
um colorido especial ao relato e marcarem o ritmo da ação, comunicam a viva e cômica impressão do jovem
empregado esfalfado e atarantado atrás do seu velho patrão, que, embora “aprazado de moribundo”, não se
dava por morto antes da hora e continuava “fazendo das dele” (p. 139):
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“Ôi, tenho de sair também por ele, já se vê, lhe corro todo atrás. Ao que, trancei tudo, assungo as tripas
do ventre, viro que me viro, que a mesmo esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho: obrigações do
meu ofício. – ‘Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!’ – acha ainda de me informar o caseiro Sô Vincêncio, presumo
que se rindo, e: – ‘Valha-me eu!’ – rogo, ih, danando-o, epa! e desço em pulos passos esta velha escada de pau, duma
droga, desta antiqüíssima fazenda, ah…” (p. 139).
Resignado, Vagalume se prepara para “pajear o caduco” (p. 141). Logo de início, contudo, ele já percebe
que a situação não se pautava pelo despauterado usual, “pelo peso das palavras” que o patrão lhe dirige: “Que,
o que é, menino, é que é sério demais, para você, hoje!” (p. 139). Ainda assim, é com enfado e desgosto que ele
o acompanha: “E eu – arre a Virgem – em seguimentos” (p. 140). No entanto, os lances vão-se sucedendo tão
espantosos, as fabulosas coisas vão-se agenciando tão certeiras, e o Velho, repimpado em seu eixo extraordinário,
inventa-se tão em apogeu, que as certezas de Vagalume começam a vacilar: “Se boto o reto no correto:
comecei a me duvidar” (p. 143). O Velho mais o punha em espantos, e ele menos se achava, tendo-se todo em
admirações: “Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para grandezas” (p. 145).
Já a esta altura, estava formado o desengonçado “exército” do Velho, reunido para as sinistras façanhas
anunciadas. Todos, por uma mágica de alma operada por ele, saíam de suas nulidades para atos super-humanos,
e, por uma vez, faziam e aconteciam, transfigurando a insignificância em um sentido inédito e grandioso. Os
que o seguiam naquela experiência tão estapafúrdia quanto memorável estavam recebendo mais alma e a
possibilidade irrepetível de darem um salto na escala espiritual. Contagiados pelo entusiasmo do Velho, que,
“num outro assomo ao avante se lançava” (p. 143), eles “retumbavam”, como o galope dos cavalos. O impulso
vital que arrebatava o Chefe arrastava-os para a frente. Um sopro do espírito amplificado do Velho, iluminado,
naquele limiar, pelo influxo conjunto da vida e da morte, os “assoprava”, “desembaraçando-os” das amarras
que quotidianamente emperram o florescimento da alma e inserindo-os na “espraiança” da corrente da vida,
que flui adiante, “por cima de quaisquer idéias”:
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“Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a
gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer idéias. Era
um desembaraçamento – o de se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de chegar ao ponto: – ‘Mato mortos e enterrados!’
– o velho se pronunciava” (p. 145)
Em observação importante, Heloísa Vilhena de Araújo reúne todos os “assoprados” que seguem
intuições reveladoras ao longo das Primeiras estórias:
“O grupo segue o excessus mentis do velho, ‘por cima de quaisquer idéias’, como os colegas seguiram a
representação inventada em ‘Pirlimpsiquice’, como os habitantes da vila seguiram o canto da mãe e da filha de
Sorôco, em ‘Sorôco, sua mãe, sua filha’, como o vaqueiro seguiu a vaquinha de ‘Seqüência’, como Joaquim
Norberto remoçou com o amor dos noivos em ‘Luas-de-mel’, como as crianças embeveceram-se com a estória
inventada por Brejeirinha em ‘Partida do audaz navegante’, como a multidão, debaixo da palmeira, enlouqueceu
com a loucura do homem de ‘Darandina’. Estão ‘assoprados’, inspirados pelo Espírito Santo” (Araújo, 1998:
200).
Quem segue está inserido numa seqüência. A seqüência que se persegue durante todo o livro é a da
própria vida, que, sem cautela, “ao avante se lança”, fluida, impetuosa, borbulhante, a custo contida no
sempre renovado ímpeto de ultrapassar-se, transmitindo, a quem sintoniza com o seu obscuro engrossar-se, a
sensação tonificante de “crescer e desconter-se” (p. 3). Quando a intuição aguda do puro fluir da vida – como
“o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo” (p. 31) – superpõe-se às preocupações de superfície que normalmente
distraem a nossa atenção do nosso eu profundo e subterrâneo, o resultado é um pathos avassalador, que inclui
e arrasta em seu bojo quem se deixa contagiar pelo sentimento da total sintonia. Não sem razão a última frase
do livro diz: “E vinha a vida”. Assim, além dos seguidores assoprados nomeados acima, inserem-se nessa
seqüência a menina de lá, que referia estórias absurdas, vagas, que assimilavam “só a pura vida”; o Pai, que
executa a invenção de se permanecer fundido com a terceira margem de um rio que nunca acaba; a Nenha, em
quem “a vida vibrava, em silêncio, dentro de si, intrínseca, só o coração, o espírito da vida, que esperava”; o
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narrador de “O espelho” que, desescondendo a sua vera forma, compreende que “a vida consiste em experiência
extrema e séria”; Tio Man’Antonio, transitando na eterna passagem da vida e da morte; Seo Giovânio e
Reivalino, que celebram a vida no farto espumejar da “quanta” cerveja; as pessoas da comarca do Serro Frio,
que se deixam influir pelo dom de alegria prodigalizado pelo moço muito branco; Sionésio e Maria Exita, que
aderem materialmente à substância do polvilho, que os integra na ampla vida cósmica do universo; o Menino
de “As margens da alegria” e “Os cimos”, que percebe nitidamente, no “desmedido momento”, a duração da
sua vida, que se avoluma com o novo instante incorporado, como uma nota acrescentada a uma melodia que
jamais se interrompesse. E mais Damázio das Siqueiras, que persegue uma palavra e encontra a si mesmo; os
Dagobé sobrevivos e o moço Liojorge, que começam a viver, como a chuva cai; Zé Centeralfe, que suplanta
a fatalidade e se arregala de desperto; e a Mula-Marmela, cuja obra altíssima, favorece a vida de toda a
comunidade.
Vagalume consuma o seu alto desempenho na estória ao atinar com o epíteto que evidencia o verdadeiro
ser do patrão. No “trupitar” entusiasmado da marcha dos cavalos, Vagalume tem a iluminação a respeito do
quem do Velho. O nome diferente, intensivo, retumbante e onomatopaico – Taran-TÃO – assoma da própria
estrupida desbestada dos cavalos. Os ensaios em que o nome gradualmente se pro-põe – tapatrão, patrapão,
tampantrão, tarantão – fazem soar o próprio alarido do bater das patas no chão. Da matéria bruta do tropeado
estrépito, a forma do nome se evola e se enforma, e Vagalume, “reespiritado” (p. 54), a pega no ar. O nome de
família, apesar das “sumas grandezas e riquezas” passadas (p. 140), nada diz acerca da singularidade inimitável
de cada indivíduo: “João é João, meu Patrão…”, divulga Vagalume, com a mesma disposição anímica que
fizera Riobaldo proclamar: “Eu sou é eu mesmo, divêrjo de todo mundo” (Rosa, 1970, p. 15). Curiosamente,
no título da estória, a palavra “Tarantão” é precedida de um como que hífen, indicando, por ventura, a síncope
de alguma letra. Assim, Tarantão poderia ser o atarantado que se “tarantou”, por queda do alpha privativum,
vale dizer, o desorientado que se orientou, o desnorteado que encontrou seu norte, o anônimo que se nomeou
ao “assumir-se” no formidável fecho de sua vida:
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“Súspe-te! que eu não era um porqueira; e quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar – cavalos
bons! – que quem visse se perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos ferros. – ‘Vigie-se,
quem vive!’ – espandogue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores. Me passei para o lado do velho, junto – …
tapatrão, tapatrão… Tarantão… Tarantão… – e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros,
esses muito se mexiam. Me viu mil. – ‘Vagalume!’ – só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. – ‘João é João,
meu Patrão…’ Aí: e – patrapão, tampantrão, tarantão… – cá me entendo. Tarantão, então… – em nome em
honra, que se assumiu, já se vê. Bravos! Que na cidade já se ia chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos,
desbestada” (p. 145/146).
É interessante comparar os neologismos onomatopaicos “trupitar” e “campampantes” (p. 141).
Campampantes, com a aliteração do “p” e a reiterada nasalização, reproduz a marcha lenta, trotada e
compassada, do início da jornada, quando a aventura apenas se ensaiava. O trupitar, à estrupida, em marcha
desbestada, com as aliterações combinadas do “t”, do “d” e do “p/b”, desenha sonoramente a crescente
velocidade, o ritmo infrene, a aceleração da galopada externa e do tropel interno, o crescendo das emoções,
com as importantes revelações e descobertas. Para Vagalume, o mundo foi rodando nas patas do seu cavalo, e,
galopando ventos e flores, dando patas à fantasia, ele também “se nasceu” e se assumiu: “Súspe-te! que eu não
era um porqueira; e quem não entende dessas seriedades?” A interjeição promove o instante, conferindo um
tom ascensional à auto-revelação de Vagalume. A descoberta precede por pouco o insight acerca da grandeza
insuspeita do patrão, aquele homem que ele “conhecia, que desconhecia” (p. 147). Aliás, foi por ter-se posto
à altura de si mesmo que Vagalume pôde ombrear com o Velho e, pela primeira vez, conhecê-lo: “Me passei
para o lado do velho, junto”. Este, também, somente agora, após os lances transfiguradores, enxergava o
empregado: “Me viu mil”. Nesse transe hiperbólico, que corrigia o grotesco e o ridículo, até levá-los ao sublime,
Vagalume tomava posse simultaneamente do seu nome e do seu cognome: João, felizardo dos seus pés que o
tinham levado nessa empresa maluca e divina (João Dosmeuspés Felizardo), finalmente luzia e brilhava
(Vagalume). Perceber que não era um porqueira, passar-se para o lado do Velho e intuir a magnitude dos
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portentosos fatos que se davam são acontecimentos solidários, que reciprocamente se afiançam.
Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes é a versão rosiana do nobre fidalgo e cavaleiro andante Dom Quixote
de La Mancha. Igualmente cavaleiro andante, não lhe faltam o acólito estouvado, o discurso inflacionado, a
presença imponente, nem os meneios de grande e renomado paladino. Não lhe falta, tampouco, a dama, que
ele enaltece, galante, com mimos de rainha. Tem o seu momento de moinhos de vento tomados por gigantes,
quando considera homenagem à sua ilustre pessoa a Festa de Santo que se celebrava no Breberê. Mas, enquanto
Quixote estava mais para anjo-da-guarda dos desvalidos, o Tarantão queria-se o próprio demo, com pacto e
tudo, para vingança infernal e fim de não deixar pedra sobre pedra, matando sujos e safados, pobres e coitados,
vivos e enterrados. Já se vê que, com tanto “tresbulício” (p. 130), o Velho, em seu funil de final, não se
conforma de “aprazado de moribundo”, mas inventa de “volumar suas presenças”, dando-se de “o mor valentão,
com todas as sertanejices e braburas” (p. 141). Para além do aspecto cômico dessas bravatas extemporâneas,
uma noção muito mais fundamental, e profunda, se impõe, que suscita o verdadeiro sentido da estória. A
velhice não é a decrepitude senil, a decadência do espírito, o declínio da vitalidade, mas, ao contrário, a
apoteose da vida. O Velho, “encostado, em maluca velhice, para ali, pelos muitos parentes” (p. 140),
“ressuscitava” (p. 146), num último alento, e “impava” (p. 144), o que significa, simultaneamente, que ele
crescia em altanaria e alçava-se ímpar, singular em seu gesto insólito. Em vez de achacoso e frouxo, declinado
para “nãoezas” (p. 92), o Velho se propunha de rei e guerreiro (p. 145), e, com “o espírito de pernas-para-o-ar”
(p. 146), invertia a lei segundo a qual a velhice é o ocaso da vida, e renascia, ascensionalíssimo (p. 119), para
a graça de um “monumental desfecho” (p. 132).
Se a velhice é a grande “sazão do ser” (p. 60), então a morte é o mais consagrador dos acontecimentos
vitais. A morte é uma culminância, mas só para aqueles que se portentam no instante final. Quem não chega
a existir não morre, perece. Ao “julgamento-problema” sobrevindo na simples pergunta “Você chegou a existir?”
(p. 68) corresponde o juízo final anunciado na indagação essencial “Você é capaz da sua própria morte?”
Chegar a existir consuma-se num morrer a própria morte. O homem não deve ser tomado de assalto pela
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morte, como um títere cujo fio subitamente se arrebenta, mas tecê-la com a mesma linha com que trama o
enredo de sua vida, entrelaçando uma na outra, na confecção de um tecido que se continua em qualquer
sentido. A morte não deve colher de surpresa, mas acolher em cumplicidade. Ela não nos deve acometer de
fora, como estrangeira e alheia à nossa matéria íntima, mas brotar da nossa própria interioridade abissal, como
a possibilidade mais verdadeira de cumprirmos a promessa de ser que somos. É este o sentido do nome
aumentativo Taran-TÃO, que bem condiz com a atitude superlativa de magnificar toda uma vida no
despropósito de um derradeiro gesto grandioso: “O Velho só se crescia. Supremo sendo” (p. 147). Quem se
sobressai às portas da morte, é, de fato, capaz de morrer. Toda a vida do Velho se resume e se portenta naquele
gesto extremo, em que a sua natureza dá saltos, e o cômico dá um pulo ao excelso. À nossa morte, não
devemos voltar as costas, mas viver com os olhos postos nela, discernindo-a, por detrás da catadura sombria
e terrível, como a benfazeja, que recebe e abraça em noturnidade, e semeia para um novo começo. A morte do
Tarantão coincide com o batismo da filha do Magrinho, de modo que uma mesma festividade acaba por
celebrar o início e o fim, a vida e a morte, tal como o faziam os rituais das antiqüíssimas religiões de mistério.
Realizar o que Heidegger chama de “o ser para a morte” é a única maneira de autenticar a vida. A morte,
então, não é fim, mas início. Por esta razão, na seqüência das estórias, ao Velho de “Tarantão, meu patrão”,
segue-se o Menino de “Os cimos”, reiniciando o ciclo vital. Como este é o mesmo Menino de “As margens da
alegria”, o livro, em seu fim, retoma o seu o começo, gerando um contínuo e ininterrupto movimento circular
e confirmando a solidariedade intrínseca, a continuidade íntima da vida e da morte, que constitui o supremo
ensinamento do livro.
Em versos célebres, Shakespeare diz: “Quantas vezes, no limiar da morte, / Um homem fica alegre! É o
que chamam / De fulgor antes da morte” (How oft when men are at the point of death / Have they been merry, which
their keepers call / A lightning before death) (Shakespeare, 1986, p. 364). Em sua última claridade vital, o Velho se
pronunciava:
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“Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! – e se saiu, foi por aí embora a fora,
sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era
de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores de chorar. (…) O Velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que
falou, eram baboseiras, nada, idéias já dissolvidas” (p. 147).
O fundamental, neste instante de con-junção da vida e da morte, não é o que ele diz, mas o dizer, o
falar, no ímpeto de um último arrojo vital, em consonância com o fluir da vida, que se exacerba às portas do
fim, acontecer vertente concretamente traduzido na expressão “ror e rolar das pedras”. Também em “Sorôco,
sua mãe, sua filha” e em “Pirlimpsiquice”, importa, não o conteúdo do que se canta ou recita, mas o próprio
cantar ou dizer, como expressão de uma premência de ser que transcende quem canta ou fala. Em momentos
de alma, o homem pode coincidir de tal maneira com a vida, que ela fala através dele. As palavras não têm
sequer o tempo de se organizar em sentido. O advento do que irrompe diretamente do abismo não passa pelo
crivo do intelecto, mas desprende-se do próprio corpo, em estado bruto, na pureza de sua brotação espontânea.
O nexo que está em jogo não é o do rigor, mas o do vigor. E o sentido, ilógico, é o passaporte para as grandes
verdades, que são mais afeitas ao silêncio do que à retumbância dos grandes discursos. Depois da folia da fala,
o Velho se cala “em suspensão” e se recolhe “sozinho em si”. O narrador, totalmente aderido ao seu “patrão
para sempre”, percebe agudamente a passagem do ser ao não-ser, o retorno ao nada, que ele exprime
materialmente na imagem eloqüente e serena: “Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto
como um copo vazio” (p. 147). A intimidade cúmplice entre a vida e a morte, a exata noção de que o fim é o
início, a complementariedade dos contrários, constituem a grande lição que Vagalume extrai dos excessos
vividos, e que ele resume na ambigüidade altamente esclarecedora da palavra “excelentriste”:
“Aquele meu esmarte Patrão, com seu trato excelentriste – Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes. Agora,
podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão – então…
Tarantão… Aquilo é que era!” (p. 147)
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Com esta derradeira estória, completa-se o percurso existencial do Homem que se emancipa da tutela
das sombras e abre para si a vereda original de um caminho singular. De Damázio das Siqueiras a Iô João-deBarros-Diniz-Robertes, seguindo o exemplo do narrador de “O espelho” e desdobrando a lição aprendida pelo
Menino de “As margens da alegria” e “Os cimos”, o homem evolui de personagem a personagente e sagra-se
como o psiquiartista que desinventa a história de uma vida banal para inventar a estória de uma existência
que, pela primeira vez, acontece como fenômeno próprio e autônomo. Este advento do homem é contado em
cada estória individualmente e por todas as estórias coletivamente. No conjunto, cada estória aduz um elemento
novo a esta trajetória em que o homem desembaraça-se da lei da fatalidade e gaio assume-se como o
prodigalizador do seu próprio destino, doravante comprometido apenas com a graça de existir, na conjunção
movente da liberdade sério-jocosa dos transes hiperbólicos e da vertiginosa solidão da terceira margem do rio.
Da infância à velhice, e da velhice rumo a uma nova infância, suspendem-se no pérvio as primeiras estórias,
transitoriantes e transitoriadoras, construindo a eterna ponte entre o ter sido e o vir a ser, na qual o homem
deve manter-se em trânsito, jamais se resignando ao péssimo, mas procurando infatigavelmente a inopinada
altura do seu eixo extraordinário.
BIBLIOGRAFIA
ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. O espelho. Contribuição ao estudo de Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1998.
CORBIN, Henri. Creative Imagination in the Sufism of Ibn’ Arabi (translated by Ralph Manheim). Princeton:
Princeton University Press, 1969.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio: Nova Fronteira, 2.ed., 1986.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio: José Olympio, 7.ed., 1970.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio: José Olympio, 11.ed., 1978.
SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. In: – The Complete Works. Oxford: The Clarendon Press, 1986, pp.
335-366.
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MARIA PATRÍCIA DA COSTA MOREIRA (MESTRANDA UFRJ)
Resumo:
O presente trabalho será um cotejo entre Grande Sertão: Veredas e ”A terceira margem do rio”, a partir das
relações de proximidade entre personagens das duas obras, analisando o sertão e a terceira margem do rio como
espaços simbólicos, tendo como ponto de partida o Rio São Francisco, local determinante na vida de Riobaldo.
Pretendemos abordar o destino do “homem humano” nas duas obras de Guimarães Rosa, traçando um paralelo
entre Riobaldo e Diadorim com o pai e o filho do conto. Abordaremos a travessia do pai pelo rio e a travessia de
Riobaldo pelo sertão, analisando simbolicamente os espaços das duas viagens que convergem no mesmo objetivo,
que é o de tentar descobrir o sentido da vida.
A TERCEIRA MARGEM DO GRANDE SERTÃO
O presente trabalho será um breve cotejo entre Grande Sertão: Veredas e “A Terceira margem do rio”,
duas obras de Guimarães Rosa. Estabeleceremos relações de proximidade entre personagens das obras,
analisando o sertão e a terceira margem do rio como espaços simbólicos, até mesmo porque um rio possui duas
margens, sendo que na obra de Guimarães Rosa a terceira margem é o espaço do questionamento, da dúvida,
de algo não esclarecido ou por se esclarecer, o “terceiro pensamento” que devemos esperar.
Ao abordarmos o significado da palavra veredas, temos: caminhos que nos levam a algum lugar, trilhas
com as quais o homem se depara, ramificações, trilhas que margeiam os rios e o próprio curso das águas. O
sertão contemplado em Grande Sertão: Veredas surge no seu aspecto físico e no seu aspecto simbólico, como
podemos observar:
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O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a
dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e o de Curvelo,
então, o aqui não é dito o sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de
fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu
cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade (...) O sertão está em toda a parte.1
Na passagem citada do romance somos transportados ao espaço simbólico, visto que não há restrição
a uma determinada região. O sertão de Guimarães Rosa vai além do espaço geográfico, pois há a preocupação
com a condição humana, a busca pela transcendência. Guimarães Rosa inaugura o sertão como símbolo dinâmico
do mundo, já que o mundo é composto por valores que norteiam a experiência humana. O sertão é o espaço
em que se trava a batalha de Deus e do diabo dentro do ser-humano.
No decorrer da narrativa o espaço “sertão” vai sendo gradativamente ampliado, tomando novas
proporções. Faz-se referência ao espaço físico a todo momento, até mesmo porque nas lembranças de Riobaldo
as características locais são sempre relatadas, porém na sua definição de sertão, na qual novas nuances são
acrescentadas, é como se estivéssemos descobrindo o espaço com o narrador, “o sertão é o sozinho” 2, ou seja,
é a travessia do homem para a solidão, quando o diabo pode ser vencido e o homem consegue assumir seu
próprio destino. A cada momento um novo dado é acrescentado na definição de sertão, assim como nas
caracterizações das personagens, principalmente no mistério que ronda Diadorim.
É como se a descoberta do espaço “sertão” fosse a descoberta do próprio ser, visto que “Sertão: é
dentro da gente”3, o sertão é a metáfora do mundo, do interior humano, da aventura moral, existencial do
homem.
A vida de Riobaldo é a síntese da vida do “homem humano”, pois ele encarna os conflitos pertinentes
a qualquer homem, não se limitando ao sertanejo, até mesmo porque o sertanejo de Guimarães Rosa não é um
sertanejo comum, é um sertanejo com vocação poética. O elemento local (sertão) adquire proporção universal
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com a natureza humana sendo abordada.
Grande Sertão: Veredas aborda, entre outros temas, a travessia do homem pela vida, o sertão é o espaço
da vida, retratando a travessia de Riobaldo, mediante várias veredas e suas escolhas diante de seus conflitos,
seus dilemas. O espaço sertanejo é um microcosmo, é a trajetória das personagens. Há uma tentativa de definir
o sertão, porém percebemos, ao longo da narrativa, que nada está definido, tudo está em constante mutação
“É, ou não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...”4, por isso o homem encontra-se impossibilitado de
conhecer o seu destino, ele apenas supõe o que pode ocorrer. “No sertão, cada homem pode se encontrar ou se
perder. As duas coisas são possíveis. Como critério apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar.
Nada mais.”5 Sendo o sertão o espaço da vida e suas veredas os caminhos que podemos escolher mediante os
nossos dilemas, resta-nos a sabedoria ou a sorte ao arriscarmos nas trilhas do sertão, dada a nossa impossibilidade
de conhecer o destino.
O rio São Franciso adquire uma simbologia dividindo o Grande Sertão: Veredas em duas margens, em
dois mundos, o mundo do Hermógenes (mal) e o mundo dos guerreiros de Joca Ramiro (bem). Riobaldo vai
além das margens, visto que ele se filia ao bando de Joca Ramiro, até mesmo por amizade a Diadorim, e faz um
pacto com o demo para ter poder e conseqüentemente vencer o mal, sendo assim, Riobaldo transcende as
margens esquerda e direita. O rio é símbolo da transcendência do existir, o importante é ir além das margens.
A travessia de Riobaldo com o menino Reinaldo pelo rio São Francisco “O São Francisco partiu minha
vida em duas partes”6, foi uma das veredas do sertão da sua vida, poderia também ser considerada “A terceira
margem do rio”. Reinaldo ou Diadorim poderia exercer o papel do pai, que ao mesmo tempo que é uma figura
próxima do filho, torna-se distante, inacessível no decorrer da estória.
O rio deixa de ser um signo para ser um símbolo, as duas margens são renegadas, o que se busca é a
terceira margem, a margem que excede, sendo que a terceira margem é o próprio rio, é o pai do conto que se
funde ao rio, “o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre...”7 “Sem alegria nem cuidado,
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nosso pai encalçou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e
trouxa, não fez a alguma recomendação.”8 visto que o próprio silêncio os aproxima.
O silêncio de Diadorim em relação a sua condição sexual, já que o motivo da vingança impedia o seu
amor, assemelha-se ao silêncio do pai ao deixar a família. Riobaldo poderia exercer o papel do filho “Soubesse
– se as coisas fossem outras...”9 , “Que se fosse hoje ... Sei como sei.”10 já que ele nunca pôde assumir o amor
que sentia por Diadorim quando ela estava viva, por desconhecer a verdade, assim como o filho desconhece
o motivo que fez o pai sair de casa. O “rio Urucúia é o meu rio – sempre querendo fugir, às voltas, do sertão,
quando e quando; mas ele vira e recai claro no São Francisco”11, Riobaldo não consegue se desvencilhar do
sertão, da lembrança de Diadorim, assim como o filho não se desvincula da lembrança do pai. Não podemos
deixar de ressaltar que em determinado momento do romance a personagem Reinaldo cede o lugar para
Diadorim, ou seja, é a aproximação máxima que Deodorina consegue alcançar diante de Riobaldo, sem revelar
a sua verdadeira identidade. A aproximação máxima do pai com o filho, após a sua partida, ocorre no final do
conto, quando o filho propõe a troca de lugar
Ele me escutou. Ficou de pé. Manejou remo n’ água, proava para cá, concordando. E eu tremi (...) E eu não podia...
Por favor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me
pareceu vir: da parte do além.12
Ou seja, “O passado é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas não estou
sabendo decifrá-lo.”13 Por não saber decifrar o mistério que ronda o pai e o passado é que o filho foge, evitando,
assim, uma provável aproximação.
Diadorim pode ser visto como a terceira margem da vida de Riobaldo, “Ele fosse uma mulher, e à-alta
e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía ela no meio de
meus braços!”14, pois as outras duas margens seriam Otacília e Nhorinhá, as margens convencionais, porque
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Riobaldo sabe que são mulheres, embora tenham estilos de vida distintos (Nhorinhá é uma prostituta e Otacília
“moça para casar”), e por isso a água as separa. Diadorim seria uma margem não convencional, não reconhecida,
ou melhor, não tão aceita pela sociedade patriarcal, porém a terceira margem é aquela que detém o mistério, o
segredo que pode ou não ser revelado.
Segundo o Dicionário de símbolos “/.../ o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida
/.../”15, cabendo a Riobaldo a travessia das margens do rio, sendo que “/.../ a travessia é a de um obstáculo
que separa dois domínios, dois estados /.../”16 “o curso das suas águas é a corrente da vida e da morte.”17
Quem faz a travessia do rio no romance de Guimarães Rosa é Diadorim, deixando de ser com a sua morte a
terceira margem, visto que a verdade aparece e todos ficam sabendo que se tratava de uma mulher, e já que “/
.../ o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida /.../”18, Diadorim deixa de ser a terceira
margem para ser a própria água do rio, a vereda da vida, vida esta simbolizada pelo sertão de Riobaldo, a água
é a essência da vida e conseqüentemente Diadorim é a essência da vida de Riobaldo, já que há a junção de Rio
e Baldo no seu nome, Diadorim é a água do rio Baldo. O filho revela que deseja fazer parte da água do pai
“Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de
nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”19, ou seja, ele
quer fazer parte do curso da vida, que deságua na morte.
Em “A terceira margem do rio” podemos perceber a dependência existente entre as personagens, pois
todos fazem parte de uma família, ninguém possui uma identidade, um nome. O filho para existir depende dos
seus pais, ele não consegue cortar o cordão que o prende ao pai, tentando recuperar tudo, assim como Riobaldo,
ao escrever. Ambos procuram um sentido para tudo o que viveram ao tentarem reconstruir o passado por meio
da memória, mas “Como vivi e mudei, o passado mudou também. Se eu conseguir retomá-lo.”20, ou seja, há a
reconstrução dos velhos “eus”, há uma reinterpretação da existência.
Tanto Riobaldo quanto o filho tentam preencher um vazio existencial e criar uma memória, ambos
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narram para encontrar a si mesmo, e ao narrarem recriam suas estórias, visto que eles mudaram a maneira de
enxergar a vida, e, conseqüentemente, os seus passados “Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até
ache mais do que eu, a minha verdade...”21, Riobaldo tenta encontrar nele o sentido da vida.
O pai de “A terceira margem do rio” é o sujeito que se nega a transitividade, assim como Diadorim, a
terceira margem assume um sentido não traduzido, para além das palavras, do dizível, é a terceira margem que
mobiliza o sujeito e desnorteia a todos, como observamos a reação de Riobaldo ao descobrir que Diadorim era
mulher
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para
me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim!
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol acende a água do rio Urucúia,
como eu solucei meu desespero.22
A família de “A terceira margem do rio” também coloca o pai num “encanto terrível”, no momento em
que ele decide morar no rio, várias hipóteses surgem para justificar a ação não assimilada do pai.
A viagem do pai não é traduzida nem para o filho, o ser mais próximo, assim como o segredo de
Diadorim não é revelado a Riobaldo, também o ser mais próximo. Diadorim tem o seu segredo revelado pelo
destino, pela “vida embrejada”23, pelo mundo à revelia. Assim como o afeto familiar não remove o pai da
viagem, o afeto de Riobaldo não remove Diadorim da vingança, visto que Diadorim abdica da sua vida para se
vingar de Hermógenes, assemelhando-se ao gesto do pai com a viagem, gesto irrecuperável.
Riobaldo narra a sua travessia no sertão, a travessia da sua vida, procurando compreender o que
ocorreu com ele, assim como o filho do conto, a vereda que ele trilhou “Ao que eu digo ao senhor, pergunto:
em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que
se conseguiram – pelo pulo fino de sem ver se dar – a sorte momenteira...”24, analisando se tudo foi escolhido
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“Quem diz que na vida tudo se escolhe?”25. É esse um dos motivos para o narrar de Riobaldo, a tentativa de
entender a vida e de se entender diante dela, mas é só algum tempo depois da jagunçagem que ele consegue
compreender alguns fatos ocorridos na sua travessia.
A ironia do destino na vida de Riobaldo é explicitada quando o vemos sempre ao lado do seu grande
amor, correspondido de maneira velada, e impossibilitado de ser concretizado “Este é nome apelativo, inventado
por necessidade minha, carece de você não me perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete
voltas – se diz. A vida nem é da gente...”26 Diadorim nos revela que não tem como comandar o seu destino,
pois nem a vida que ela usufrui, a pertence, pois ela estava totalmente envolvida na vingança da morte do pai,
ou seja, vivendo para isso, sem poder viver a vida que poderia ser dela.
Em “A terceira margem do rio” a família e o pai se anulam, restando somente o filho “Sou o que não
foi, o que vai ficar calado”27, o filho será o que chegou perto da hipótese de ser, ele falhou no momento em que
poderia realizar uma permuta com o pai, mas a falta de coragem o impediu de agir no momento adequado. A
ironia do filho é que ele foi quem mais se aproximou do pai, porém quando ele está perto de conseguir algo
inédito, de alcançar o limite de trânsito, a mínima comunicação com o pai, ele falha.
Após a morte de Diadorim, Riobaldo compreende que “a vida é cheia de passagens emendadas”28,
quando é revelado que o seu amor sempre esteve tão perto e ao mesmo tempo tão longe, devido as circunstâncias
impostas pela vida. A vida nos aparece como uma estrada a ser percorrida cheia de veredas e em cada vereda
não nos é dado conhecer previamente o que ela contém, o que seria o destino, “-Não podendo entender a
razão da vida, é só assim que se pode ser de vero bom jagunço...”29. Cabe a nós tentarmos fazer as escolhas
certas e continuar a caminhada, atuando no grande palco montado para todos. Hermógenes e Diadorim se
anulam (mal e bem), restando apenas Riobaldo, o homem humano.
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BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números). 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1995.
COUTINHO, Eduardo, org. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984 (Fortuna
Crítica, 6). P. 63-97.
ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In.: Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
_______ Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
NOTAS
1
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p 23-4.
2
Ibidem, p 325.
3
Ibid. p. 325.
4
Ibid. p. 27.
5
COUTINHO, Eduardo, org. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984 (Fortuna Crítica, 6). p. 94.
6
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 326.
7
———. “A terceira margem do rio”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 80.
8
Ibidem p. 80
9
Idem p. 84
10
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 592-3.
11
Ibidem, p. 590.
12
ROSA, João Guimarães . “A terceira margem do rio”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 85.
13
———. “Nenhum, nenhuma”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 101.
14
———. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 592-3.
15
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 9ª
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ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1995. p 781
16
Ibidem. p. 780.
17
Ibid, p.780.
18
Ibid, p. 781.
19
ROSA, João Guimarães . “A terceira margem do rio”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 85.
20
———. “Nenhum, nenhuma”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 102.
21
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 616.
22
Ibidem. p. 615.
23
Ibid. p. 162.
24
Ibid, p. 142.
25
Ibid, p. 232.
26
Ibid, p. 171.
27
ROSA, João Guimarães . “A terceira margem do rio”. In.: — Primeiras Estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 85.
28
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 235.
29
Ibidem p. 586.
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MARTA RODRIGUES (MESTRANDA –UFRJ)
Resumo:
A presente comunicação pretende ser uma proposta de leitura do conto “Partida do audaz navegante” tendo
em vista as observações que, mais leitores apaixonados do que propriamente críticos, fomos fazendo durante
nosso convívio com o texto. Não proporemos uma linha de leitura, não elegeremos um aspecto único, mas,
recolhendo várias impressões, tentaremos associá-las entre si, buscando aí alguma unidade. Para alcançar esse
objetivo, buscamos dividir nosso estudo em duas partes: a primeira viria dar conta dos aspectos genéricos que se
podem depreender não só no conto em questão como também em outros textos do livro “Primeiras estórias”; a
segunda visa a rastrear o texto, vasculhando-o em seus detalhes, a fim de recolher um panorama global do conto.
VIAJANDO COM O “AUDAZ NAVEGANTE”
Lendo Guimarães Rosa, podemos perceber que, normalmente, a impressão que os seus textos causam
no leitor é a de estranhamento. Além da sua linguagem experimental, do uso de neologismos e de estrutura
lingüística de cunho popular, outro recurso vastamente utilizado e que ‘desconcerta’ em uma primeira leitura
é o uso da simbologia das palavras. Se tivéssemos que definir os seus textos através de uma figura de pensamento
seria a metáfora; tudo em sua escritura converge para o metafórico e, conseqüentemente, para o simbólico.
No conto que nos propusemos a analisar, “Partida do audaz navegante”, as metáforas se instauram a
partir do próprio título, que, de certo modo, condensa o sentido do texto. No conto, a partida do audaz
navegante se manifesta de três formas: a primeira, na ‘estória’ que Brejeirinha conta, onde a palavra navegante
é compreendida de forma denotativa; a segunda, na brincadeira das crianças, que atualiza essa estória contada;
e uma última, a simbólica por excelência, à qual o leitor chega através da identificação entre a estória e a
situação vivida por Zito e Ciganinha.
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O personagem que processa a passagem da metáfora partida do audaz navegante pelos três estágios
que citamos é Brejeirinha. E não é à toa que Guimarães Rosa se utiliza de personagens infantis com essa
função de catalisadores do real. Como nos diz Paulo Rónai [RÓNAI, P. 33]: “Os protagonistas de Primeira estórias
farejam os acontecimentos, adivinham os milagres. São todos, em grau maior ou menor, videntes [...]”.
Brejeirinha substancia essa apreensão do não visível, do que ainda está latente e o faz vir à tona. Para
que o leitor pudesse percorrer o caminho da metáfora partida do audaz navegante, a “personagente”1, antes
disso, fez o percurso contrário. É no momento em que Zito, magoado por sua briga com Ciganinha, pensa em
ir embora, que Brejeirinha começa a narrar a sua estória. E nisso o narrador nos faz essa reveladora afirmação
[ROSA, 1972, p. 117]: “Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas aproximava-se e refleti-as em si –
a coisa das coisas e a pessoa das pessoas”.
Há dois tipos de protagonistas típicos (mas não únicos) nos textos de Guimarães Rosa: os loucos, ou
os assim considerados, que são definidos a partir de uma patologia individual ou coletiva, e as crianças e
adolescentes. Essas crianças têm a função de mediadoras de uma situação determinada, de desveladoras do
mundo. Simbolicamente, a criança é aquela que se encontra em “estado anterior ao do pecado e, portanto, em estado
edênico” [CHEVALIER, 1988], sendo símbolo de espontaneidade e de simplicidade naturais, o que faz com
que elas tenham uma percepção aguda e diferenciada da realidade. Dentro dessa perspectiva, a da visão plural
das crianças, de sua visão mágica, entra, estabelecendo uma relação, a obra artística propriamente dita, e em
especial a poesia. A criança é a que se encontra mais próxima da poesia original da vida, que foge da rotina
estabelecida (uma vez que para ela tudo é novo); em última análise, é o ser desviante e, por isso, desperta os
olhares e atenções a sua volta:
Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino. Da Brejeirnha menor,muito mais. Porque
Brejerinha, às vezes, formava muitas artes. (grifos nossos) (p. 115)
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Brejeirinha, enquanto “criança primordial”, se encontra próxima do estado originário, vendo tudo com
um olhar inaugural. É esta aproximação com a origem caótica, numa relação mítica, que lhe confere poder de
criação.
A partir desse poder de criação, torna-se possível a estruturação do conto como dois enredos paralelos,
do audaz navegante feita por Brejeirinha e o que esta estória desencadeia, a aproximação entre Ciganinha e
Zito.
Ao estabelecer um contato inicial com o mundo, a criança apreende pela primeira vez, também, o
instrumento que o traduz: a linguagem. Essa capacidade que a criança tem de se utilizar das palavras de uma
maneira sempre nova e inusitada é o que a aproxima do escritor, do criador literário. Se tomarmos o conceito
formulado por Roland Barthes em O grau zero da escritura, a identificação entre criança e escritor torna-se clara.
Segundo esse conceito, o escritor é aquele que retira as palavras do seu grau zero – o da sua utilização na
coloquialidade – e as lança ao seu grau cem: o grau das palavras ouvidas pela primeira vez. E é justamente a
esse jogo lúdico entre as palavras conhecidas e as não conhecidas, que reativa as velhas através das novas, que
Brejeirinha se entrega, quando diz:
Zito, tubarão é devairado, ou é explícito ou demagogo? (p. 116)
O Audaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. (p.
117) (grifos nossos)
Nos exemplos citados, além de ficar explícita a idéia da identidade entre escritor e criança na relação
inaugural com a palavra, podemos observar o quanto a linguagem infantil influenciou no próprio estilo de
Guimarães Rosa. Para ele, que se propunha a uma reestruturação lingüística,a linguagem infantil é um verdadeiro
laboratório de onde tira os exemplos mais contundentes de inovação.
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Se fôssemos fazer um levantamento de alguns semas que caracterizam Brejeirinha no decorrer do
conto, teríamos um importante indício do seu papel na narrativa. Observemos alguns exemplos:
Aos tantos, não parava, andorinhava. (p. 115)
Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. (p. 118)
Ela andava pés-para-dentro, feito um periquitinho impávido. (p. 118) (grifos nossos)
Todas as palavras grifadas remetem ao campo semântico de pássaro, com o qual Brejerinha é identificada.
Indo ao dicionário de símbolos, encontramos os seguintes significados para a palavra pássaro [CHEVALIER,
1988]: 1) “serve de símbolo às relações entre céu e terra”; 2) “sinônimo de presságio e de mensagem do céu”;
3) “símbolo das funções intelectuais”; 4) “os estados superiores do ser”. Os significados 1 e 2 associados são
reveladores do papel de Brejeirinha, de sua percepção do íntimo dos que o rodeiam. Esse papel se manifesta
no fato de ser Brejeirnha a única que percebe o sentimento que se manifesta entre Zito e Ciganinha.
Os significados 3 e 4 reiteram a proposta feita por nós sobre ser Brejeirinha um persoangem desviante,
sendo esse desvio considerado pela modernidade como um traço altamente positivo, uma vez que é a
extrapolação do estado rotineiro.
Iniciando a leitura do conto, o que se pode notar é uma atmosfera de rotina, comprovada através de
uma série de sintagmas que denotam uma situação de estabilidade aparente: “Na manhã de um dia em que
brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar” (p.115 – grifos nossos).
Conjugando os sintagmas “parecia não acontecer coisa nenhuma” e “fogo familiar” estabelece-se uma
aura de tranqüilidade e segurança nas quais os personagens se inserem. Podemos depreender desse momento
que há, inclusive, uma dicotomia entre os espaços interno e externo da casa: enquanto o interior da casa é
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marcado pelo signo calor (“fogo familiar”), o exterior se caracteriza pelo frio(“Tanto chove, que me gela!” – p.
115). No primeiro parágrafo, tudo converge para o espaço interno, funcionado com uma espécie de descrição
do familiar que, no entanto, carrega em si, já, o germe da mudança (como podemos observar pelo uso do
auxiliar parecer como atenuador em “parecia não acontecer coisa nenhuma”).
Essa mudança também é responsabilidade de Brejeirinha, uma vez que é sempre ela quem funciona
como mediadora entre dois estados de coisa. Quando todos os personagens estão completamente integrados
no espaço da casa, Brejeirinha desvia seu olhar para o “longe”, desencadeando os acontecimentos do conto.
Do primeiro parágrafo ao início do segundo, ela, como os outros, se encontra em aparente quietude, voltada
para as coisas da casa: “Brejeirinha se instituíra um azougue [...] ocupava-se com a caixa de fósforo.” (p. 15).
Dá-se nesse momento o primeiro índice de mudança: a agitação que se apodera de Brejeirinha: “Aos
tantos, não parava, andorinhava, espeiava agora – o xixixi e o empapar-se da paisagem – as pestanas til-til.” (p. 115)
Podemos considerar essa passagem o estopim da narrativa e das mudanças que estão por vir: do espaço
interno passa-se ao espaço externo; da tranqüilidade passa-se à inquietude, expressa até mesmo pelos fenômenos
naturais (a tempestade).
A intranqüilidade que passa a tomar conta da narrativa é espelho do interior de Zito e Ciganinha.
Brejeirinha é quem percebe a turbulência dos sentimentos que unem/desunem sua irmã e seu primo, este em
visita de férias. No texto, o narrador vai nos deixando pistas desses acontecimentos: “Ciganinha lia um livro:
para ler ela não precisava virar a página.” (p. 16).
Para entendermos a amplitude desse trecho, é necessário que Brejerinha nos ilumine, quando pergunta:
“- Sem saber o amor a gente pode ler os romances grandes?” (p. 116); e mais à frente, quando Brejeirinha identifica
Zito a um pirata, aludindo ao fato de ser ele um visitante em férias que um dia irá embora, Ciganinha reage da
seguinte maneira: “Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada.” (livro = amor) (p. 117).
Brejeirinha detectara a briga entre os dois meninos e, com sua estória de separação, a do audaz navegante,
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vai unindo-os.
Também podemos retirar do texto vários exemplos desse percurso de união cumprido por Zito e
Ciganinha. Logo no início do texto, encontramos um exemplo que demonstra o estágio de separação: “Zito e
Ciganinha nem muito um do outro se aproximavam, antes paravam meio brigados [...]” (p. 116).
Com o decorrer do texto e a intervenção de Brejeirinha vai se processando, aos poucos, a aproximação
de ambos: “Ciganinha e Zito se suspiravam” / “No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha calavam-se, muito às tortas,
nos comovidos não-falares” (p. 118).
Esse caminho paralelo vai seguindo a estória do audaz navegante. Brejeirinha vai seguindo a estória
do audaz navegante. Brejeirinha modifica a versão da partida do audaz navegante em conformidade com as
mudanças que vão ocorrendo no relacionamento de Zito e Ciganinha, caminhando também para a união. Na
primeira versão, quando Zito e Ciganinha se encontravam afastados, a estória simboliza o próprio afastamento
dos seres que se amam, com o navegante partindo solitário. Já na última versão, em sintonia com a união de
Zito e Ciganinha, o audaz navegante parte com sua amada.
Essa integração entre a estória que Brejeirinha conta e o relacionamento da irmã e do primo também
é indiciada no texto. Quando Brejeirinha fala da separação entre o audaz navegante e sua amada, se utiliza da
seguinte imagem: “A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada inclusive, eles dois estavam nas suas pontinhas da
saudade.” (grifos nossos – p. 120).
Mais à frente, numa evidente alusão à estória contada (ficção), o narrador diz: “Segredando-se, Ciganinha
e Zito se consideravam, nas pontinhas da realidade.” (grifos nossos – p. 121).
Esse paralelismo estrutural vem corroborar a integração entre ficção e realidade, evidenciando que a
ficção, no caso de Brejeirinha, ao mesmo tempo em que retrata o real, o resolve, buscando o equilíbrio.
Aproveitamos aqui para fazer uma breve enumeração de algumas observações levantadas ao longo da
leitura do conto “Partida do audaz navegante”, que ficam como proposta para estudos posteriores.
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A primeira delas se relaciona coma presença fundamental da figura materna enquanto sustentáculo,
segurança. Nos momentos de perigo, é sempre a mãe quem aparece como salvadora:
Antes, porém, outra, fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor./
- Mamãe!
(grifos nossos – p. 122)
Um outro ponto que poderia ser abordado com mais acuidade é o audaz navegante feito com o
“bovino” na brincadeira das crianças. Nesse momento da narrativa é quando se dá a total comunhão entre
os personagens:
Vamos mandar, por ele, um recado?
[...] Isso, todos querem.
(grifos nossos – p. 122)
E é após esse momento de comunhão, de integração e equilíbrio que Brejeirinha reconta a
“verdadeira estória” do audaz navegante: “O Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas embarcou com a moça
que ele amavam-se [...]” (p. 122).
Outro aspecto é o que diz respeito ao espaço em que se realiza esta união. Esse espaço se encontra
em total harmonia com os fatos que ocorreram:
[...] era a pequena angra, onde o riachinho faz foz [...] Porque, o rio, grossoso, se descomporta, e o riachinho
porém também [...] pororoqueja. (p. 119)
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E os rios se encontram assim como as almas irão se encontrar.
“Partida do Audaz Navegante” é, antes de mais nada, um conto de amor. Brejeirinha se encarrega de
ser a grande condutora dessa descoberta, mediando, fazendo a ponte, entre o estado de separação e o
estado de união, cume da narrativa.
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1972.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
NUNES, Benedito. “O amor na obra de Guimarães Rosa”, “A viagem”. In: O dorso do tigre. Rio de Janeiro:
Perspectiva, 1986.
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, INL, 1972.
VELHO, Gilberto. Desvio e divergência – uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
NOTAS
1
Termo utilizado por Paulo Rónai no texto “Os vastos espaços” e que compreendemos abranger a idéia que os protagonistas de
Guimarães Rosa incorporam: o de personagens e de agentes de mudanças, de transformações, de afloramento.
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MAYARA RIBEIRO GUIMARÃES (DOUTORANDA – UFRJ)
Resumo:
Sob a perspectiva do homo religiosus, para quem o mundo e as relações com a Natureza, o espaço e o tempo
encontram-se carregadas de sacralidade, buscaremos mostrar como homem e cosmos interagem entre si, exercendo
suas forças mutuamente, e como essa dinâmica impulsiona a travessia de Riobaldo, revelando-o como ser em
movimento e constante brotação.
O HOMEM HIEROFÂNICO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
A perspectiva do homem hierofânico é a mesma do homo religiosus, para quem a experiência do mundo,
do homem e das relações procedentes da interação desses dois elementos, tais como as relações com a Natureza,
o espaço e o tempo, manifestam o sagrado como a revelação do que é grandioso, que devasta e esmaga o
homem, sem qualquer semelhança com a experiência da realidade natural vivida pelo ser humano. O homem
prova da nulidade e bebe da anonimidade diante do mistério e qualquer tentativa de exprimir tal experiência
poderia apenas sugerir o que se passa na realidade natural do homem. (pag. 15/6).
O sagrado, portanto, revela-se ao homem por meio de uma manifestação, isto é, de uma hierofania que
ocorre como “ato misterioso”, manifestando uma realidade não pertencente ao mundo humano em objetos do
mundo natural e profano. A diferença entre o homem moderno e o primitivo, portanto, reside no fato de que
para o último o objeto adorado terá não mais a forma e o sentido de um objeto do mundo natural, mas como
objeto hierofânico, sem perder seu significado profano porque continua fazendo parte do mundo em que se
encontra. Assim, para os olhos do homo religiosus, não só o objeto, mas todo o cosmo pode tornar-se uma
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hierofania por revelar algo de sobrenatural (pg. 18). Para o homem arcaico essa é uma forma de vida que não
dissocia do sagrado o espaço de morada e constituição humana, a experiência do tempo, as relações com a
physis e a consagração da vida humana, tornando tudo um “sacramento”. Precisamente é essa a condição do
homem do sertão em Grande sertão: veredas e, especificamente, de Riobaldo, representante do homem hierofânico,
para quem o espaço em que transita e habita, o tempo que revisita, as relações com a physis que o cerca e o
transforma bem como os outros personagens com quem interage, revelam-se como manifestações do sagrado.
Exige-se do neófito uma iniciação nos mistérios que só será atingida por Riobaldo no fim de sua
trajetória, após o mergulho catabático na total despersonalização de si mesmo, ponto máximo vivido após o
pacto e, principalmente, através da palavra. Até esse momento, Riobaldo afirma o desejo de não ter sua vida
comandada por ninguém, sem que consiga dar rumo próprio a ela. Sem dúvida, como já foi apontado antes, o
símbolo central do romance é o pacto entre Riobaldo e o Diabo, realizado nas Veredas Mortas (que depois
revelam-se como sendo as Veredas Altas) uma vez que é precisamente a dúvida sobre a existência ou não
existência do ato que atua como núcleo gerador de uma “dinâmica de ambigüidade”, o que permite a instauração
de um princípio regulador do início ao fim do romance: o princípio geral de reversibilidade. As ambigüidades
da obra repousam nas representações do espaço, do tempo, dos personagens, das relações estabelecidas entre
os personagens e da própria linguagem. O sertão situado geograficamente é delineado na primeira página: “é
por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia” (p. 7), e logo
em seguida situado ontologicamente a partir do olhar do ser: “o sertão está em toda a parte” (p. 8) e como
contraste “”Sertão: é dentro da gente” (p. 289). Assim como o jagunço deixa de ser uma representação do tipo
humano do sertão para ganhar caráter universal, o sertão é apresentado como espaço de realização ontológica,
tornando-se dessa forma um espaço sacralizado.
Junto ao espaço, o tempo de realização do homem ultrapassa os limites entre passado, presente e
futuro, uma vez que ao refazer seu processo de retorno ao passado, Riobaldo afasta-se temporalmente para
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poder narrar suas máscaras personativas e ontologicamente reconhecer que a identidade recôndita somente é
desvelada pela narrativa, o recontar que é refazer, quando se cumpre a travessia. Diz, no último parágrafo do
romance:
“Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia.
Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem
e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”
(p. 568).
Com respeito aos personagens (Souza), Diadorim atua como ser completo, dono de si e de seu destino
(o que em determinado ponto levará à sua ruína e à de Riobaldo), e iniciado nos mistérios da Natureza e da
vida, justamente por encarnar em si os contrários de Deus e do Diabo, de homem e mulher, do amor e do ódio,
criança e guerreiro, máscara e presença. Enquanto Menino,desperta Riobaldo para a epifania da Natureza e
para o conhecimento da vida e, principalmente, de que a coragem é o fator decisivo para a afirmação da vida
em matéria vertente. É o sujeito que faz o seu próprio destino e não se deixa reger por um demo ou um deus.
Riobaldo, por sua vez, é o personagem que, no centro da encruzilhada, na concruz da vida e da morte, habita
o próprio conflito. É o ser que se caracteriza pela dúvida do pacto e, na ambigüidade metafísica, divide-se em
retratar relatos que consagrem ou destronem a existência divina e diabólica, mas que mostrem a natureza
ambígua e movente do homem. Na mesma dialética, é ator do amor que impele à auto-descoberta e
interiorização, uma vez que a potencia feminina de geração de vida, ao sublimar o sexo, realiza-se na forma
espiritual, com Diadorim, e do amor diário e externável com Otacília. Ambos os amores sempre em contraponto.
Diadorim, na dramática cena de sua morte, aparece para Riobaldo na forma de Nossa Senhora, virgem imaculada
retalhada como um porco, crucificada pela lâmina do próprio ódio.
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Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou – no vão –
e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um
socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios dos
arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa Senhora assentada no meio da igreja...
Qual daimon socrático, Diadorim é o gênio mensageiro que revela a Riobaldo a verdade sobre a vida e
se torna o guia para o caminho do auto-conhecimento, de atualização de si mesmo, e ainda para a destruição
de ambos. Porque viver conduz à morte. Viver é perigoso.
Instaura-se uma dialética do ser ou não ser e o princípio de reversibilidade que se estabelece tem como
símbolo o pacto com o demônio, uma vez que assume a dupla função de simbolizar a corrupção humana e ser
também instrumento iniciático através do qual Riobaldo pode dar cabo de sua missão ou tarefa qual seja
iniciar sua travessia para além de si mesmo e para além do bem e do mal, apesar de falhar enquanto assassino
de Hermógenes.
O pacto, como esclarece Walnice Nogueira Galvão, é a busca de uma certeza de si e da existência para
que se possa ser alguém. A imagem do certo no incerto. Riobaldo cria a verdade no falso, como se para poder
consagrar a sua própria existência e consciência de homem precisasse comprovar a existência de deus ou do
demo. O diabo é a falsa garantia de alguma coisa no meio da mobililidade do redemunho. “Ele tinha de vir, se
existisse”. Caso não viesse, como não vem, o que existiria então? “Mas, em que formas?” O demo vem na
forma humana mesmo. Na forma da própria consciência de Riobaldo. Deposita na falsa identidade a verdade
de ser, quando não entende que o ser e a vida são matéria vertente, fazem-se e refazem-se no fluxo da existência
e a tentativa de fixar tal movência só causa destruição. O que desejava era “ficar sendo”, ser ele mesmo e não
aquele provisório ser que, no entanto, é necessário. O desejo da subjetividade é tamanho que ultrapassa a si e
vira desejo de poder. “Eu queria ser mais do que eu”. O homem deseja a divindade e cai no mais profundo
inferno quando exige para si a potência divina. Ou diabólica. O desejo de poder de Riobaldo é tão grande que
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deseja para si a presença de Deus e do Demo. Movido por razões egoístas e subjetivas, pelo juramento feito a
Diadorim de que vingaria a morte de Joca Ramiro com a execução de Hermógenes. Entretanto, o que desconhece
é que o pacto (que implica igualar-se ao Demo ou ter a força do Demo em si para poder matar Hermógenes,
muitas vezes referido como o próprio Demo), a partir do qual Riobaldo sela seu destino, é pacto de morte, a de
Diadorim e a sua morte em vida. Riobaldo embebeda-se de seu próprio desejo de potencia e rapina, a humanidade
sufocando o próprio homem e se torna instrumento do Demo, uma vez que este vige dentro de cada ser
humano e pode fazer com que os crespos do homem o controlem. “Digo direi, de verdade: eu estava bêbado
de meu”. O pronunciamento no cume da meia-noite é o falar consigo mesmo. O silencio “é a gente mesmo,
demais”. A subjetividade em excesso e transbordamento. O demo é, portanto, “um falso imaginado”, bem
como o ser que procura será um falso ser e que o abandonará no momento de confronto com Hermógenes,
este sim, o demo em pessoa, pois que o diabo não há, existe é homem humano, mandioca que mata e alimenta,
sujeito que, pela própria existência, contem em si o bem e o mal, o deus e o demo.
SegundoWalnice Nogueira Galvão, o pacto é uma tentativa de garantir a certeza mediante a desordem
e o caos em que submerge a vida do homem, como se a certeza da existência só pudesse se concretizar
mediante a certeza do pacto. Entretanto, ao contrário de vender sua alma em troca de conhecimento, Riobaldo
conhece a esterilidade e paralisação no momento em que mais necessita de interferência externa. Se o diabo
representa algo de concreto que se corporifica em Riobaldo paralisando-o e tomando-o, a epígrafe do romance
pode ser explicada da seguinte maneira: “corporificado na mobilidade envolvente do redemoinho, o diabo
é a imagem do certo no incerto, ou seja, da certeza na incerteza do viver” Isso significa que o mal
paralisa o movimento das coisas, ou seja, em meio a um caos natural, de uma desordem natural do curso das
coisas encontra-se a estagnação. Após o pacto, Riobaldo muda. Passa a ser chefe dos jagunços, passa a comandar
e ser comandado por uma força oculta, perde o controle voluntário de suas ações (suas mãos matam sem
controle). O pacto serve como imobilizador do movimento, da desordem natural das coisas e Riobaldo se
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distancia da dinâmica de seu ser porque ser chefe significaria servir às exigências de tal posição e ainda servir
ao que é oculto pois que este é o papel do pactário. De acordo com a autora, a vitória do pacto é como uma
derrota pois por ter sido tomado por esse Outro, Riobaldo não foi capaz de derrotar o Hermógenes, morto
pelas mãos de Diadorim, que também sucumbe à morte nas lâminas do judas.
Para o homem hierofânico o espaço que habita não é homogêneo, mas amorfo, a partir de cujas
rupturas despontam outras rupturas, opondo-se um espaço sagrado a outro não-sagrado. A experiência do
amorfo é primordial uma vez que a partir do disforme pode-se fundar o mundo, constituindo-se um espaço de
existência que apresenta um “ponto fixo”, um eixo central. Diante da hierofania do/no espaço este passa a ser
diferente, apresentando uma realidade agora absoluta ao lado de outra não-absoluta, ou seja, que não é realidade.
A manifestação do sagrado, portanto, funda ontologicamente o mundo, isto é, cria um mundo repleto de “ser”
que se opõe à sua outra parte homogênea, formando um universo que é e não é simultaneamente; cheio e
vazio de ser. Em outras palavras, instaura-se um novo mundo a partir de um caos, estabelecendo-se assim uma
cosmogonia do espaço sagrado em oposição à experiência de um espaço profano, destituído de significado. A
revelação de um espaço sagrado permite que se instaure uma “orientação”, a mesma que guiará o novo homem
pela travessia de sua existência e que difere de uma “ordem” que comanda a vida humana ditando as máscaras
sociais e subjetivas.
O tema da cosmogonia se faz presente, portanto, para o ser e para o espaço em que habita porque a
geração de um novo mundo implica a geração de um novo homem, e vice-versa. E como o mundo de Grande
sertão: veredas é o sertão, nota-se a instauração de um novo sertão, sacralizado e diverso daquele encontrado no
sertanismo literário brasileiro. Não há semelhança alguma entre o sertão de Rosa e o de Afonso Arinos, ou de
Coelho Neto, ou de Euclides da Cunha, entre outros porque nele Riobaldo vive experiências iniciáticas e
experimenta a travessia de sua existência, além de ser esse o espaço em que vive o jagunço. Como aponta
Candido, o sertão é, ali, um “mundo especial” que permite uma vida cheia de perigos ao jagunço, uma vez que
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aí ele está exposto mais fortemente a extremos e contradições como, por exemplo, às situações de guerra,
violência, à busca de valores entre o bem e o mal, ao confronto com uma lei ou ética específica que rege o
sertão e os jagunços.
Assim como o homem é novo na medida que ele gera a si mesmo, o espaço do sertão se cria a si
mesmo porque a natureza é apresentada como uma realidade germinativa, procriativa e criativa. O mundo
novo de Rosa é o mundo em gestação, no qual a narrativa se torna ato genesíaco de forma que o narrador e o
ato em si de narrar são criados pela própria narrativa. Portanto, citando Candido: “há em Guimarães Rosa um
‘ser jagunço’ como forma de existência , como realização ontológica no mundo do sertão” (pg. 149). Ademais,
considerando que “o sertão é o mundo”, como diz o narrador em Grande sertão: veredas, pode-se dizer que o
jagunço é o personagem que encerra o drama da humanidade, daí a universalidade de Riobaldo.
Trata-se portanto de um lugar de passagem, considerando-se ainda que é o espaço que instaura a
existência de dois mundos, um regido pelo Demo e outro por Deus. Lugar em que a metáfora do rio deseja
apontar para a divisão de dois mundos, cujas frações encerram a luta entre o bem e o mal, dividindo inclusive
a existência humana entre a banda da direita, onde se encontram Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, Medeiro
Vaz, e os da banda esquerda, servidores do Demo, como Hermógenes, Ricardão e os outros tantos jagunços.
O Liso do Suçuarão, por exemplo, é determinado por duas grandes características que indicam ser este
um espaço simbólico. Nele não existe água, fonte da vida, constituindo um lugar de travessia maléfica que
manifesta a presença do Demo e que só aceita a entrada de pactários. O Liso é descrito por imagens que o
associam ao reino ínfero das trevas no qual só resistem aqueles iniciados no conhecimento do bem e do mal.
A descrição da entrada no Liso relata a marcha pelo reino dos infernos liderada por Riobaldo, com especial
atenção na imagem que assemelha o grupo de jagunços a um pelotão de soldados, qual épico homérico:
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Aí, se estava, se esbarrava, frente a frente com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu. Sol sem glória. Eu
pensei em Otacília; pensei como se um beijo mandasse. Soltando rédeas, entre nos horizontes. Aonde entrei, na
areia cinzenta, todos me acompanhando. E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro de um mar. (474).
E mais adiante, o próprio Liso é descrito da seguinte maneira:
O que era, no cujo interior, o Liso do Suçuarão? – era um feio mundo, por si, exagerado. O chão sem se vestir, que
quase sem seus tufos de capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até não-onde a vista não se achava e se perdia.
Com tudo, que tinha de tudo. Os trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas – cavalo repisa em pedra azul.
Depois o frouxo, palmo de areia de cinza em-sobre pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava encostada
no sol. (474)
Ou antes, quando Medeiro Vaz tenta a travessia mal-sucedida e que só Riobaldo consegue:
O Liso do Suçuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. (...)
Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si
mesmo. Água, não há. (32)
O Liso associa-se ainda às Veredas-Mortas, que somente depois serão reveladas como as VeredasAltas, espaço que simboliza a viagem catabática de Riobaldo, que é também preparação para a descida aos
infernos representada pela travessia do Liso do Suçuarão. O sertão constitui-se, portanto, como o espaço cuja
verticalidade, simbolizada pelas Veredas-Altas, permite o confronto e a co-existência entre mundos diversos,
nos quais a ligação entre céu e terra apresenta-se como condição para a realização ininterrupta de viagens
ascencionais e descencionais, ou de catábases e anábases pelas quais os personagens pactários passam. Nas
Veredas-Mortas, desenrola-se a cena do pacto.
Se nesse local ocorre o contato com o Demo e a compreensão da existência de dois mundos, é também
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aí que ocorre a mudança, vivida por Riobaldo, de um modo de ser a outro. O desejo de confirmar a existência
do demo por meio de um pacto é o desejo de confirmar também que há um mundo regido por Deus, ou, como
aponta Galvão, a confirmação de uma certeza dentro da incerteza. Ocorre, porém, o oposto de uma confirmação.
Em vez da existência de um mundo em que as fronteiras de bem e mal são bem delimitadas, de que o mal
existe na figura do Demo e o bem na figura de Deus, de uma distinção entre Cosmos e Caos, de modo que se
possa escolher uma das margens, Riobaldo obtém apenas a confirmação de que o que há são mais perguntas.
Para realizar sua travessia, Riobaldo precisa ultrapassar a existência de bem e mal e buscar a terceira
margem, isto é, buscar o além dos limites do ser, habitar o mundo movente, encontrando o estado de constante
brotação, de reatualização de si. Quando não obtém resposta ao pacto, ocorre uma inversão de sentidos na
qual caos e cosmos começam a atuar ao mesmo tempo e o sertão torna-se um espaço que está “movimentante
o tempo todo”. Eliminam-se as certezas, e a única que permanece é a de que ser governado pelo Demo ou por
Deus é o mesmo que ser governado pela figura de um “outro”, seja uma figura mítica, social ou política.
Para além da dicotomia das coisas e dos termos regional e universal, Rosa trabalha no universo do
poético, onde o paradoxo e as contradições coexistem em tensão harmônica. Riobaldo é, portanto, aquele está
além do bem e do mal, além do ato de comandar ou de ser comandado. Deseja ser comandante de sua própria
vida, como o rio. Depois que se torna chefe dos jagunços, descobre que não adianta ser líder de outros se não
pode comandar a si. Depois que faz o pacto e assume o poder que a ele se dispõe, passa a ser cavalgado pela
figura do Outro mítico, tornando-se mais escravo desse Outro, perdendo o domínio de seus gestos. Se dentro
daquela sociedade ou se comandava ou se era comandado, para não se ver dominado vende sua alma ao
Diabo. Entretanto, descobre que, ao se tornar rei dos homens, encontra-se mais vendido do que antes, uma
vez que passa a seguir as regras da comunidade sob a pena de não sustentar seu poder.
O espaço que habita ou em que transita também sofre mudança; já não é mais apenas sertão, ele “está
em toda parte”; ele é “do tamanho do mundo”. Mas só adquire essa forma após iniciar-se a travessia do ser que
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passa pela revisão de si mesmo e portanto pela descida ao mundo terrível de si mesmo, suas profundezas. “O
sertão é o sozinho, dentro da gente” . E para se sair dele, “só tomando conta dele mesmo”. Em outras palavras,
para iniciar sua travessia só tomando conta de si mesmo, percorrendo espaços nunca antes percorridos. Em
suma, para iniciar sua viagem, Riobaldo precisa criar um novo mundo, e em consequencia criar seu próprio
mundo. Daí o sertão ter um novo significado para que a própria existência possa ter um novo significado.
Porque só se está pronto para assumir uma nova existência em um novo universo se criarmos uma nova
existência e um novo universo. Dessa forma, sacraliza-se o espaço para se sacralizar a vida. Nas palavras de
Mircea Eliade: “Uma criação implica uma irrupção do sagrado no mundo”(pg. 44). O sertão reflete o mundo.
Nesta segunda parte, deseja-se mostrar que o homem hierofânico aprende a reconhecer o sagrado
através da natureza, que atua como guia para fazendo-o enxergar nela o sagrado que há no homem. Ler a
mensagem do sagrado impressa no mundo é também contemplar a existência. Por ser um organismo real e
vivo, o mundo revela o ser e a natureza torna-se algo mais além daquilo que já é, uma hierofania. Para Riobaldo,
portanto, nada é apenas aquilo que está ali ou que aparenta porque os internos são duplos.
Dentro dessa perspectiva, alguns elementos da natureza sobressaem como guias de Riobaldo e da
presente leitura. O rio (e a água, por extensão), o buriti, os pássaros, o vento, a chuva e os trovões são parte
importante no romance porque todos antecipam ou representam acontecimentos de ruptura na vida de Riobaldo,
na maioria das vezes indicando alguma transformação radical. A natureza possui uma linguagem própria e
quando o real se apresenta como algo por demais grandioso ela indica por imagens o que não pode ser dito em
palavras.
O rio, por exemplo, marca a narrativa do início ao fim, ora na forma do de-Janeiro, ora na forma do
Urucuia, ou do São Francisco. O rio em, sua nascente, é anterior às águas porque dá origem a elas e produz
suas próprias margens no seu decurso, colocando-as à esquerda ou direita. “O rio não quer ir a lugar nenhum,
quer se tornar cada vez mais”, profere o narrador. A infinitude potencial do rio, concebido mítica (porque
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origina) e simbolicamente (porque une as duas margens) indica que ele não cessa em seguir adiante, servindo
como metáfora à infinitude potencial do espirito humano, que se desenvolve e progride incessantemente.
Assim, o rio é símbolo que pertence e descreve Riobaldo, não só por estar contido em seu nome (e nunca é
demais repetir que os nomes têm fundamental importância na narrativa rosiana) pelo potencial que lhe possibilita
construir seu próprio leito, definir as margens da vida, rompê-las adiante, constituindo e habitando a terceira
margem que antecede e excede todas as margens.
O nome na obra de Rosa é dado que possui fundamental valor simbólico. O próprio narrador de Grande
sertão... oferece a indicação de que o nome designa algo de sagrado porque o nome designa o ser. Não é à-toa
que é para Riobaldo unicamente que Diadorim revela seu verdadeiro nome. Nessa passagem do romance Riobaldo
questiona o valor e a significação de um nome:
“Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele - foi como dissesse notícia de que em
terras longe se passava. Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. (...) Mas
havendo o ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele
valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me
dava. E amizade dada é amor.” (p. 146-7).
Vale lembrar que o processo de alteração de nomes é dado comum porém não menos digno de atenção.
Diadorim é nome recebido e achado, uma vez que sofreu processo de alteração a partir de seu nome de registro
e é o único que contém em si os contrários, os dois dês de Deus e do Demo e que prescinde de um reconhecimento
de gênero. Diadorim é homem e/ou mulher. Diadorim foi Menino, Reinaldo, Diadorim e, por fim, Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Morais. Por sua vez, Riobaldo recebe também diferentes alcunhas para cada
uma de suas máscaras narrativas, sendo chamado de professor, Tatarana e Urutu-Branco. Riobaldo é o próprio
ser em transformação e a mudança de alcunha só faz acentuar o processo de transformação. “Todos os nomes
eles vão alterando. (...) Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.” (p. 39). Assim, a
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travessia de Riobaldo está também indicada pela mudança de nome.
Como já foi dito, os momentos mais importantes das experiências de Riobaldo são marcados pela
presença da physis. As travessias benéficas de Riobaldo acontecem onde há água, veredas, onde o rio está
presente. A água do riacho está fortemente ligada ao símbolo da palmeira, pois é nas margens do rio que o
buriti nasce. A imagem da palmeira, presente não apenas em Grande sertão..., mas ao longo de sua obra, é a
própria imagem do renascimento, o sagrado e ratifica o valor que têm as águas do rio. Vale lembrar que na
mitologia antiga, as epifanias das divindades eram animais e vegetais. Daí a importância simbólica do buriti na
cena em que Diadorim morre. Diante da morte a significação se torna impossível, de modo que a palavra cede
espaço para a imagem: “Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verde...”(p. 559).
Diadorim revive como o próprio buriti, que renasce com as águas, porque é aquele que comunga com
a natureza e inicia Riobaldo-menino nos mistérios da Natureza. Na travessia pelo rio de-Janeiro, onde a natureza
entra em eclosão, o Menino desperta a visão de Riobaldo para as flores, os pássaros, os rios, o mato enfim, a
physis, constituindo um percurso iniciático. Ao longo de toda a sua jornada, Riobaldo encontrará na natureza a
linguagem necessária para guiar seus instintos. “Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas
quisquihas da natureza. Sei como sei.” (p. 27).
Assim é com Riobaldo. Precisa seguir seu destino, tal como faz o rio, despojando-se de suas falsas
identidades e buscando ouvir o som das águas internas, que rolam abaixo da terra, para que uma nova vida, um
novo homem renasça. “Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno
novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor.” (GSV, p. 296) Mergulhado nas águas que
desintegram para reintegrar, Riobaldo, em estado de latência, abole suas formas ao longo da vida e ao recontar
sua história, busca a sua forma que precede à todas as formas porque está em gestação, em brotação.
Se as aventuras vividas por Riobaldo-personagem apontam para as viagens espaciais que encerram o
embate entre as forças divinas e as diabólicas, a narrativa de Riobaldo-narrador implica numa viagem interna
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que é também temporal. Grande sertão... organiza-se como uma narrativa catabática uma vez que o protagonista
só se torna protagonista quando realiza o que ninguém jamais realizou: a passagem pelo reino dos infernos, no
Liso do Suçuarão, proporcionada pelo pacto nas Veredas-Mortas e que possibilita a morte de Hermógenes. Se
essa se apresenta como a travessia espacial, realizada por Riobaldo-personagem, a travessia temporal ocorre a
partir de Riobaldo-narrador, que, ao narrar, mergulha dentro de si em viagem às origens de sua identidade, de
forma a abandonar o que foi em busca de um ser que ainda não é.
Do início ao fim, narra-se a mudança das máscaras narrativas de Riobaldo, mas o que é uma máscara
narrativa para Guimarães Rosa? O personagem, que é também a imagem do homem livre, só conquista tal
condição quando dispuser de si mesmo em livre doação e desempenho, uma vez que deixa de ser subordinado
à ação ditada pelos outros, sejam eles personagens ou o Outro mítico. Riobaldo narra para retirar essas marcas
e realizar sua conversão existencial, uma vez que já não é o que foi e ainda não é o que tem que ser. Sua
catábase consiste em ir além do universo humano porque quanto mais se hipertrofia a subjetividade, mais se
instrumentaliza e coisifica a personalidade dos outros e de si mesmo.
A essência do homem é tão mais diabólica quanto mais humano ele for e o ser original é representado
pelo “personagente”, vocábulo forjado por Rosa para representar o ser que não se parece com nenhum outro
porque passa a atuar de acordo com sua própria mundividência, tornando-se criador de seu próprio destino.
Como as crianças do conto “Pirlimpsiquice”, o narrador de Grande sertão... não quer desempenhar mais papéis
ditados por ninguém. Tomando o pacto em seu valor universal, Riobaldo passa toda a narrativa tentando
desfazê-lo, uma vez que este desvela a verdade de que todo personagem é, de algum modo, pactário, vendendo
ou não a alma ao diabo, já que desempenham uma função condicionada por outros. Qualquer pessoa que vista
uma máscara seja religiosa, política, familiar, social, na mundividência da obra rosiana, já é pactário. Assim,
Riobaldo narra para nadificar os personagens que foi e para fazer emergir o personagente que quer se em ato
genesíaco que dá início a uma antropogênese.
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Em Grande sertão: veredas, Rosa edifica sua obra sobre três pilares básico, que fundamentam e estruturam
o texto. As três constantes estruturais para o romance em primeira pessoa inventado por Rosa consistem na
elaboração de um eu-narrante e um eu-narrado que são um e o mesmo, de forma a proporcionar o desdobramento
do sujeito em vários eu-objetos. Assim, quando narra sua vida, o sujeito passa a realizar um processo de autoreflexão, no qual se debruça sobre si mesmo, sendo ao mesmo tempo sujeito que experimenta a situação e as
sensações dela decorrentes e consciência crítica, uma vez que se distancia enquanto narrador. A segunda
condição consiste em haver uma distância temporal entre o sujeito e os seus desdobramentos, de modo que tal
condição proporcione a terceira: uma metamorfose existencial, que reflete o abandono do eu de outrora e a
travessia até o limiar de um eu que está por vir. Uma modalidade de ser se transforma em outra de forma que
a identidade original do ser possa ser encontrada ou esperada. Assim, Guimarães Rosa apresenta Grande sertão...
como obra cosmogônica, uma vez que não se limita a narrar o vivido, mas sobretudo submete ao vivido uma
repercussão crítica que o elimina de forma a gerar uma nova vida. Isso é cosmogonia.
BIBLIOGRAFIA
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio: José Olympio, 7.ed., 1970.
_______. Primeiras estórias. Rio: José Olympio, 11.ed., 1978.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio: Nova Fronteira, 2.ed., 1986.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1986.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1970.
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MÔNICA GAMA (MESTRANDA – USP)
Resumo:
Propomos o apontamento de algumas questões relativas à construção da imagem do leitor nas tramas de
Guimarães Rosa. Partiremos da percepção de que o texto ficcional é composto por uma série de preorientações para
sua recepção e também de que na obra de Guimarães Rosa temos como marca constitutiva a ficção de um leitor no
texto. Essa ficção apresenta-se desde Sagarana até Ave, Palavra e Estas Estórias, livros publicados postumamente.
Para entender como se dá essa ficcionalização do leitor, ou seja, como o leitor é colocado dentro da narrativa como
uma ficção, partiremos aqui da análise desse aspecto em passagens de Grande Sertão: Veredas, sem perder de vista
obras como Sagarana e Tutaméia.
Diálogo e obediência - ficção de leitor em Sagarana
e Grande Sertão: Veredas
Propomos aqui o apontamento de algumas questões relativas à construção da imagem do leitor nas
tramas de Guimarães Rosa. Partiremos da percepção de que o texto ficcional é composto por uma série de
preorientações para sua recepção e também de que na obra de Guimarães Rosa temos como marca constitutiva
a ficção de um leitor no texto.
Essa ficção apresenta-se desde Sagarana até Ave, Palavra e Estas Estórias, livros publicados postumamente.
Para entender como se dá essa ficcionalização do leitor, ou seja, como o leitor é colocado dentro da narrativa
como uma ficção, partiremos aqui da análise desse aspecto de Sagarana, restando tempo apenas para levantar
alguns pontos em passagens de Grande Sertão: Veredas.
O primeiro aspecto que gostaríamos de apontar é que por confundir-se o produto com as formas de
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produção no modernismo e graças ao mito da espontaneidade presente na recepção e na produção literária
brasileira (por motivos que a história literária no Brasil talvez possa explicar), Guimarães é também colocado
nessas diversas abordagens teóricas como um escritor que dá vazão a um processo espontâneo de escrita. Por
ser um homem nascido no sertão, consegue facilmente falar sobre ele e retratá-lo. Entretanto, o que gostaríamos
de acentuar é que essa espontaneidade é, em si, uma das construções ficcionais de Rosa. Dito de outra forma:
sua literatura é da linhagem da produção cerebral, esquematizada, que mimetiza o espontâneo - lembremos da
colcha de retalhos de narrativas inseridas em Grande Sertão: Veredas que são postas e retiradas por narradores
simulacros dos contadores de estórias sertanejos. Eles aparecem e desaparecem com a facilidade de um encontro
ao redor de uma fogueira.
Podemos rastrear essa preocupação do autor com o leitor desde Sagarana, de 1946, até Tutaméia, de 1967.
Durante todo seu percurso ficcional, Rosa construirá diversas imagens de interlocutores-leitores, indo do
doutor que toma notas, para o crítico literário que observa sua construção.
Assim, partiremos do seguinte ponto: há um projeto literário roseano que vai se construindo, revendo e
projetando elementos.
O diálogo em Sagarana
Acreditando ser necessário o rastreamento da imagem do leitor em sua obra, procuramos algumas de suas
especificidades. A primeira é: na maior parte dessas narrativas, a ficção do receptor se dá como ouvinte e não
como leitor - não podemos esquecer que a oralidade é um dos grandes instrumentos de Guimarães para nos
levar ao sertão.
Motivada por essa questão da oralidade é que gostaria agora de tentar identificar o narrador roseano. Para
tanto farei o esboço de uma análise do conto “Corpo Fechado” de Sagarana.
Escolhi esse texto porque a interlocução entre narrador e ouvinte se dá de maneira exemplar. O conto
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apresenta-se estruturalmente em três movimentos. O primeiro limita-se até o final de uma pequena narração
sobre a morte do valentão José Boi, dando a impressão de que se trata de uma narrativa em terceira pessoa.
Contudo, logo se inicia um diálogo entre esse primeiro narrador e Manuel Fulô sobre os valentões da cidade e
também sobre algumas de suas aventuras. Por último, temos a retomada da voz do primeiro narrador contando
como chegou na cidade e a última e maior aventura de Manuel.
A maior parte do conto é constituída por esse segundo movimento, caracterizado pela forma dialogal.
Trata-se de um narrador em primeira pessoa que dialoga com uma personagem que narra muitas estórias, ou
seja, trata-se de dois personagens que desempenham o papel de narradores.
O narrador efetivo em primeira pessoa é quem questiona e organiza as idéias, proporcionando logo de
início uma identificação direta com o leitor: parece que somos nós os questionadores de Manuel Fulô:
“ - Você o conheceu, Manuel Fulô?
- Mas muito!... Bom homem... Muito amigo meu. Só que ele andava sempre coçando a cabeça, e eu tenho um
medo danado de piolho...
- Podia ser sinal de indecisão...
- Eu acompanhei até o enterro. Nunca vi defunto tão esticado de comprido... caixão especial no tamanho: acho
que levou mais de peça e meia de galão...
- E quem tomou o lugar dele?
- Lugar? O sujeito não tinha cobre nem p´ra um bom animal de sela... o que ganhava ia na pinga... mão aberta...
- Mas, quem ficou sendo o valentão, depois que ele morreu?
- Ah, isso teve muitos: o Desidério...”1
Esse questionador é caracterizado como “gente da cidade”, usa gravata e é chamado de “seu doutor”.
Ora, pensamos diretamente em Guimarães Rosa que durante algum tempo foi médico em Itaguara, uma
cidadezinha de Minas Gerais. Ele era esse elemento externo, estranho dentro daquele meio, ou seja, o homem
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letrado que ocupava uma posição de destaque, ansioso e curioso por conhecer aquelas histórias.
Logo após esse trecho, conta que certa vez desconfiou de uma das estórias de Manuel, mas logo percebeu
que havia errado e que seria preciso ter confiança em seus causos. A característica desse contador é o gosto pela
conversa fiada e, nelas, Fulô sempre se coloca como um valentão, contradizendo totalmente sua condição de
bêbado e relaxado, ou como afirma “seu doutor”, vivia na “mais concreta abstração”. Podemos até afirmar
que sua única preocupação era com sua mula Beija-Fulô que “era seu complemento: juntos, centaurizavam
gloriosamente”.
Assim como esse primeiro narrador, o “doutor”, nós também desconfiamos das narrativas de Manuel,
mas ele tem o talento de contar estórias, é o próprio narrador descrito por Benjamin - perceberemos então que
o narrador roseano está na interface entre o narrador tradicional e o do romance moderno.
Benjamin descreve a arte de narrar em oposição ao romance, trabalhando sempre a tese de que aquela
está tornando-se extinta e suplantada por esta. O narrador retira seu contar da experiência (dele mesmo ou de
outros) e sempre procede da tradição oral. Além disso, ele incorpora o narrado às experiências de seus ouvintes.
Já o romance “nem procede da tradição oral, nem a alimenta (...) [sua] origem é o indivíduo isolado”2.
Afirma também que a narrativa desse contador tem uma ‘dimensão utilitária’ já que “é o homem que
sabe dar conselhos”. Mas acusa a falta de comunicabilidade moderna para anunciar a morte do fornecimento
de conselhos. Entenda-se que “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada (...) a arte de narrar está definhando porque a sabedoria –
o lado épico da verdade – está em extinção”3.
Encontramos em Rosa outra característica descrita por Benjamin, a presença da narração do saber que
vem de longe em oposição ao acúmulo de informações; em nosso caso, temos o sertão como esse longe
desconhecido e o homem urbano como representante de uma literatura que aspira as informações e organiza
as idéias para um leitor que não é mais aquele preparado para todo tipo de narração.
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Mas é claro que também não estamos identificando o narrador roseano totalmente com esse narrador de
Benjamin. Trata-se de um escritor contemporâneo que tem sua produção literária imantada pelo código artístico
atual.
Em “Corpo Fechado” percebemos que há uma tematização da diferença narrativa e também da atitude
da leitura, ou seja, trata-se da ficção de um leitor que permanece na tensão entre esses dois registros narratários
- vale dizer que ao mesmo tempo em que acompanhamos os questionamentos do doutor e nos identificamos
com ele, também somos levados pelas estórias de Manuel Fulô.
Essa duplicidade de percepções na recepção do texto é resultado de uma dupla ficcionalização do narrador
operada pelo autor: por um lado temos o narrador efetivo, o doutor, como uma ficção do próprio Rosa, um
indivíduo que age a partir de um método – ele anota desejando recuperar essa tradição oral que sente estar em
decadência, se não, porque anotar e preservar?
Por outro lado, sabendo que está em extinção a sabedoria do contador, ficcionaliza um outro narrador
que entrará na narrativa sempre em diálogo com outrem que o possibilite. É como se admitisse que Fulô não
pode mais fazer saber-se por si, pois se ele tem competência para narrar, não há mais a coletividade que o
escute.
Daí entendermos que o procedimento de Rosa baseia-se na tentativa de recuperação desse narrador
tradicional, mas que, na impossibilidade de sua autonomia, só pode fazê-lo por sua ficcionalização.
A partir desse limite de existência que a idéia ficcionalização será importante para entendermos o narrador
de Grande Sertão: Veredas.
Grande Sertão: Veredas
Novamente encontramos uma ficção do receptor como ouvinte e não como leitor. Vimos rapidamente o
caso de um conto de Sagarana, mas podemos citar ainda outros casos, como Grande Sertão: Veredas. Este
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encena um grande diálogo, uma vez que existe a imagem do outro que escuta (marcada por intervenções
como: “o senhor ri certas risadas”), e um enorme monólogo - já que só temos acesso à voz de Riobaldo.
O mesmo doutor está presente em Grande Sertão: Veredas ouvindo as histórias desse narrador simulacro
de “sertanejo”. Mais uma vez é preciso apontar que mesmo sendo um diálogo, temos apenas a voz do narrador
e tudo que sabemos desse ouvinte é por ele. É interessante notar que esse narrador também quer se mostrar
confiável: diz lembrar de tudo, além de estar na velhice - afirmação posta como marca de sabedoria e não de
esmorecimento.
O narrador caracteriza o ouvinte como sendo alguém superior socialmente a ele:
“Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta
opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem
de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum”4.
O começo da narração é muito marcado por essa interlocução, sendo diminuída com o correr da narrativa
– parece que o narrador está comprando seu ouvinte, pois assim como o leitor de Machado não quer ser
colocado ao lado dos que nada entende, aqui todos querem ser esse doutor. Entramos assim no jogo ficcional,
onde pensando sermos superiores ao narrador; temos, assim, a obrigação de ouvir e entender tudo o que ele
diz.
Mas essa tarefa é muito difícil. Riobaldo não é um narrador tranqüilo, que se utiliza de uma progressão
narrativa comum e muito menos conta fatos comuns através de enredos simples – e ele mesmo admite essa
dificuldade em diversas passagens:
“Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é
a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes”(p. 78,79)
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Entretanto um dispositivo encontrado por Guimarães Rosa para problematizar ainda mais essa
relação é a construção de um leitor que obedece seu narrador. Isso porque a interlocução se dá pelo uso do
imperativo:
Diga o senhor, sobre mim diga5.
O senhor vá pondo seu perceber6.
O senhor represente7.
O senhor pense outra vez, repense o bem pensado8.
Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita9.
O senhor entenderá, agora ainda não me entende10.
Há ainda o exemplo mais forte: uma repetição que percorre todo o livro, servindo quase como uma
nota musical, a expressão “mire e veja”.
Instaura-se a ambigüidade. O leitor é o doutor, superior ao narrador, mas é posto durante toda a
narrativa como aquele que deve obedecer a Riobaldo.
Fazendo uma distinção entre a ficção e a dicção Gérard Genette tenta caracterizar o ato da ficção. Ele
insere em sua argumentação uma afirmação de Coleridge sobre a reação geral dos leitores; segundo o poeta, o
público “renuncia voluntariamente ao uso de seu direito de contestação”. Isso porque o ato de ficção não é um
pedido, uma demanda, mas sim uma declaração – ou seja, “atos de linguagem pelos quais o enunciador, em
virtude do poder que a ele é investido, exerce uma ação sobre a realidade”. Assim, “era uma vez” “descreve
um estado mental provocado no espírito de seu destinatário pela sua enunciação” 11. Assumindo tratar-se de
uma conceituação muito vasta, ele afirma que podemos definir que “os enunciados de ficção seriam
simplesmente descrições de seu próprio efeito mental”12.
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Logo, a formulação diretiva (“imagine que”) difere da declaração (“seja”) pois segunda presume seu
efeito perlocutório – ou seja, que exerce um efeito sob o ouvinte.
Acentuando esse imperativo temos ainda a repetição da seguinte uma fórmula enunciativa “o senhor
sabe”:
“Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”13.
“Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário. Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor
já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice”14.
“Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera...15”
“O senhor mesmo sabe”.
Esse uso repetitivo tem um efeito perlocutório, exercendo um efeito no leitor muito interessante: há
um constrangimento do leitor para a postura de anterioridade, pois instaura o saber como anterior à própria
fala – não sabíamos que “Deus é definitivamente” ou que “viver é etcétera” (pelo menos não concebíamos
esses problemas filosóficos com essa configuração), mas somos postos em uma condição de aceitação imediata:
assim como o narrador machadiano, este também nos faz jurar que sabemos do que se fala.
Assim, o jogo temporal entre o presente da leitura e o passado do saber filosófico provoca um leitor
mentiroso, falso. E o mesmo acontece numa segunda leitura do texto: já sabemos do mistério fundamental (ou
seja, o sexo de Diadorim, possibilitador de uma narrativa de amor ainda por vir), mas pouco importa, pois,
tentando estabelecer novos sentidos para passagens enigmáticas, vamos nos enredando mais na profundidade
psicológica do narrador e em problemas filosóficos propostos desde o nascimento da disciplina.
Por esses exemplos, quis mostrar o quanto o leitor é construído dentro do texto roseano segundo um
projeto literário de desestabilização. Outros aspectos dessa desestabilização podem ser levantados, mas o
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tempo já se esgota e paramos por aqui.
NOTAS
1
ROSA, J. G. Sagarana, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, pp. 256, 257.
2
BENJAMIN, Walter. “O narrador” In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993, p. 201.
3
Idem, p. 200.
4
ROSA, J. G. Grande sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio, 1970, p.11.
5
Idem, p. 33.
6
Idem, p. 51.
7
Idem, p. 82.
8
Idem, p. 86.
9
Idem, p. 114.
10
Idem, p. 116.
11
Genette, Gérard. Ficcion et diction, Paris: Seuil, 1991, p. 53.
12
Idem, p. 57.
13
ROSA, J. G., Idem, p. 22.
14
Idem, p. 35.
15
Idem, p. 74.
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PATRICIA CARMELLO (DOUTORANDA – UFRJ)
Resumo:
Pretendo traçar, neste artigo, algumas observações sobre a memória no romance Grande Sertão: veredas de
Guimarães Rosa. A escolha da obra se deve por condensar, com grande intensidade e clareza, um grande número
de questões relacionadas ao tema, pois o texto consiste na narração de Riobaldo sobre sua história, a partir de uma
trama infindável de pequenos contos, os chamados casos de caipira; pequenas narrativas do universo do sertão que
antecedem e se misturamm no texto à história de vida individual e o questionamento filosófico do personagemnarrador. Torna-se relevante pesquisar como o romance se constrói a partir de uma noção bastante complexa da
memória.
CONTAR ESTÓRIAS, DAR SENTIDO AO MUNDO:
NOTAS SOBRE A MEMÓRIA NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Após cinqüenta anos de sua publicação,o Grande Sertão: veredas1 ainda parece nos evocar a memória.
Diferentes e até opostas abordagens, desde os estudos que defendem o regionalismo e um resgate do nacional,
até as diversas análises que apontam uma memória mítica, universal, mística, têm como centro ou ponto de
partida o tema da memória, confirmando, talvez, a teoria de Octavio Paz de que o verdadeiro poeta nos
coloca diante de uma voz perdida, recuperável somente através da poesia. Neste artigo, seguindo a trilha de
trabalhos mais recentes2, tentarei abordar a memória tendo como matéria a linguagem, isto é, tomando o
discurso em primeiro lugar, mais precisamente o discurso de Riobaldo, seu personagem-narrador, na medida
em que este discurso condensa um número infinito de questões dentro de sua obra.
O texto do Grande Sertão: veredas3 é constituído pela narrativa de Riobaldo, personagem central
que rememora e conta a um silencioso hóspede de passagem por sua fazenda, as histórias da vida e da guerra
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como jagunço pelo sertão nordestino, bem como seu amor impossível por Diadorim, vividos num tempo bem
anterior ao suposto diálogo com o visitante.
Duas dimensões de memória já foram apontadas por Davi Arrigucci4 no importante artigo intitulado
“O Mundo Misturado”. Em primeiro lugar, - não em ordem cronológica, apenas a título de categorização que
facilite o pensamento, - se apresenta a memória individual, constituída pelas recordações de Riobaldo, em sua
procura incessante pelo sentido do que se passou, na tentativa de encontrar uma explicação para o passado
que lhe escapa que justifique o presente igualmente vazio de significação: “pela astúcia que têm certas coisas
passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”5. Todo o texto é permeado por esta volta ao passado, em
busca de um sentido oculto, “não visível” na expressão rosiana, encontrável talvez somente no próprio ato de
rememorar.
A volta ao passado estaria, neste contexto, centrada na figura individual do herói, na vida jagunça e no
amor por Diadorim; sendo desencadeada sobretudo pelo trauma e violência das guerras através do sertão e
pelo choque e saudade diante da perda do(a) amado(a). Recordação que o personagem Riobaldo dirige a seu
suposto interlocutor, e que consiste, durante seu próprio ato de fala, numa interrogação constante sobre o
sentido dos fatos que viveu:
O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco carôço, querendo
esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar idéia, achar o rumozinho forte das
coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil.6
A rememoração de Riobaldo deságua - para retomar a metáfora do rio como travessia, sempre presente
no texto rosiano – numa indagação maior sobre a existência, sobre a vida, a morte e a condição humana; o que
o reaproxima da memória-aprendizado à maneira de Proust, na série Em Busca do Tempo Perdido, na qual o
mergulho no passado representa um percurso, uma aprendizagem através da qual o narrador encontra na
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memória algo diverso do esperado, e tem como conseqüência o fato de que o herói já não retorna o mesmo, mas
se redescobre outro, através de um passado igualmente diverso que provoca efeitos no presente. Assim como
na recordação de Proust há um deslocamento constante das questões relativas à memória individual para as
questões ligadas à arte, que levam o narrador a se propor reescrever em livro sua história; Riobaldo também
retorna ao passado de maneira diferente, por fim descobrindo-se um homem apaixonado por uma mulher, e
não por outro homem, como pensava no decorrer da experiência.
A morte de Diadorim constitui para Riobaldo uma dupla perda: a perda do ser amado e a perda do
amor evitado no tempo passado e só no presente revelado como possível. É desse modo que Riobaldo, motivado
pela perda de Diadorim, - como afirma Susana Lages7 em estudo recente, a saudade de Riobaldo por Diadorim
seria o grande motivo do romance – pela angústia diante do amor duplamente perdido, conta, não uma, mas
duas vezes sua história: primeiro ao compadre Quelemém, logo após a morte do amigo, o que aparece registrado
no final do livro. E, no presente, reconta sua vida ao suposto visitante, no diálogo com este interlocutor
silencioso, que forma a estrutura do texto. Tal construção multiplica ao infinito, através da publicação do
livro, o número de vezes em que a estória é contada-lida novamente. A repetição encontraria justificativa na
tentativa de elaboração psíquica do trauma vivido pelo narrador-personagem, que reconta o vivido na ânsia
por encontrar sentidos para sua experiência.
Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.8
Mas também aponta para uma relação com a escrita, pois tal diálogo é o que compõe o texto escrito.
Entretanto, a dor e o sofrimento, motivos da rememoração, desde sua origem, estariam ancorados ou
misturados indissoluvelmente à vida no sertão. Isto é, mesmo a dor responsável pela busca ao passado não
seria um sentimento puramente individualizado. Pois muito do sem-sentido da existência para Riobaldo se
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deve ao sem-sentido da violência da terra- sem-lei do sertão, que configuram determinantes sociais e portanto
coletivos. Um exemplo seria o episódio da morte de Diadorim, no qual todos os jagunços choram diante da
revelação de que Diadorim era mulher, uma mulher em meio à brutalidade da guerra, que evocaria o semsentido da vida de todos eles. Em última instância, o sem-sentido da vida de todos nós, leitores.
Ao se deparar com a realidade do corpo de mulher de Diadorim, Riobaldo e os jagunços choram, e ele
se abraça com a mulher que a preparava para o enterro, mas esta mulher aparece aí com letra maiúscula,
apontando possivelmente para A Mulher, o feminino e toda a diferença a que ela pode remeter: “Recaí no
marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços
decididos choravam.”9 Riobaldo, ainda diante do corpo da amada, lamenta os cabelos de Diadorim: “...Adivinhava
os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura”.10 Lê-se
aí, implícito, o lamento do personagem-narrador, após o relato de memórias, por um (im)possível presente
melhorado, pela diferença que o feminino poderia fazer não só na vida de Riobaldo, mas numa vida menos
violenta, onde a mulher ou a diferença pudessem se revelar como tais.
Mas para essa universalidade da obra se fazer compreensível ela tem de ser pautada na experiência
particular que é a vida no Sertão, e que, para o leitor brasileiro tem o poder de evocar algo de sua própria
experiência, ou de uma memória mítica do país. Algo como um apelo a uma origem do país a partir do seu
interior, nesse lugar utópico, o nenhum lugar tantas vezes mencionado por Rosa.11
A busca do sentido da vida do herói problemático no tempo seria o traço definidor do romance moderno,
segundo Lukács12. Para ele, a forma autobiográfica, de um sujeito inadaptado que busca no passado de sua
história individual o sentido de um mundo cada vez mais fragmentado e veloz - sentido antes assegurado de
forma incontestável pela tradição transmitida através das gerações - seria o diferencial do romance moderno
em relação à forma literária anterior, a narrativa. No Grande Sertão, Riobaldo representa, sem dúvida, um
herói problemático em dissonância com seu tempo, que busca na memória restabelecer o sentido do mundo
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perdido com a Modernidade.
Inúmeros são os discursos, sempre insuficientes, aos quais ele tenta se agarrar quando recorre ao
passado: a religião, a política, a própria sabedoria popular, um a um estes discursos são subvertidos ou
desconstruídos pela precariedade da condição humana. É como se nenhum deles “colasse” diante de uma
realidade extremamente complexa, hostil e caótica, daí o dito de Riobaldo, “viver é muito perigoso”, reiterado ao
longo do texto. A política, por exemplo, ou o governo, são ironizados em diversas passagens, enquanto a
sabedoria popular é contradita nos seus provérbios, frequentemente invertidos ou modificados, e uma religião,
para o personagem, não basta, é preciso que ele se apegue a todas. Contudo, haveria aqui uma matriz de
memória coletiva misturada ao individual em sua forma, como veremos a seguir.
A segunda dimensão da memória destacada por Arriguccci13 emerge logo nas primeiras páginas do
romance, quando Riobaldo inicia sua narrativa sobre o passado; são estórias sobre o meio coletivo que surgem
misturadas à recordação individual. Uma memória que se constitui por estórias menores, (e não uma grande
história): são os chamados “casos de caipira”, que num primeiro momento falam sobre a existência de um Mal
absoluto, inexpurgável, sem limites ou redenção, como os causos do Aleixo, “o homem de maiores ruindades que já
se viu”14, do Pedro Pindó e do filho Valtêi, “gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza”15. Esta
trama de estórias segue-se à indagação de Riobaldo sobre a existência do Demo, marcando desde um primeiro
momento a vinculação do questionamento individual à história coletiva, e ao longo do texto permanece como
uma sabedoria ou memória “coletiva” sobre as pessoas, a vida ou a natureza do sertão. Os casos surgem numa
sucessão infindável, onde uma estória leva à outra, e todas parecem conter uma “moral da história”, nem
sempre condizentes entre si. Sua origem remete à narrativa oral, falada nas rodas de sertanejos e de onde o
escritor mineiro provavelmente retira seu material, recriando-o, pois como se verá adiante, na escrita de Rosa
esta verdade já se encontra perdida, indizível, e talvez mesmo esse caráter de irrecuperável seja responsável
pelo efeito nostálgico no leitor, o lamento diante de um mundo em extinção, que é precisamente o mundo rural
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pré-urbano e pré-industrial contextualizado pelo romance.
A memória ou sabedoria de origem coletiva forma uma trama infinita de pequenas histórias do sertão,
e é tecida a partir mesmo da interrogação de Riobaldo sobre a existência do Demo, do Mal, da vida e morte, já
que ele os relembra, na tentativa sempre frustrada de compreender algo. Eis porque, no GSV, a memória
coletiva está indissociavelmente atrelada à memória subjetiva (assim denominada para evitar o termo pouco
adequado a Guimarães Rosa, o “individual” 16; bem como o “coletivo”, escritos entre aspas para salientar a
inadequação do par de opostos à escrita rosiana). É do trabalho de rememoração iniciado na primeira frase do
livro, “-Nonada!...”, neste parágrafo que introduz o curioso diálogo, é que emerge a teia inesgotável de estórias
de fundo coletivo, de onde partem diversos elementos que dão consistência à história, e que terminam por
formar um retrato da vida no Sertão, a vida que vai se configurar no decorrer da estória como vida jagunça.
Tais elementos funcionam no texto como ícones de uma vida real, como a geografia do sertão, que mistura
vários elementos geográficos existentes no mapa brasileiro com determinados locais imaginários.
É também a partir destes fragmentos de pequenas estórias que se constrói o questionamento subjetivo
sobre o sentido da vida, sentido que aqui não pode ser tomado simplesmente na acepção da “vida em geral”,
enquanto algo abstrato; e sim daquilo que só pode ser indagado quando ancorado na vida do sertão, calcado nos
elementos da vida que surgem em cada passagem, ou ainda no entrelaçamento desses diversos contos. Sentido,
ainda, que encerra uma verdade entretanto uma verdade que vai se tornando indizível e inapreensível à medida
que o trabalho de memória avança, e o herói se dá conta da complexidade do narrado: “pão ou pães é questão de
opiniães.”17
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e
vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era; que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito,
de cada uma pessoa viver [...] Ah, porque aquela outra é lei, escondida e vivível, mas não achável, do verdadeiro
viver...18
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A mistura explícita entre o coletivo e o “individual” seria um traço próprio do romance brasileiro em
contraste com o europeu. A ausência de fronteiras nítidas entre as esferas do individual e coletivo presente no
Grande Sertão estaria em consonância com a história e a cultura brasileiras, portadoras de um dilema ou uma
coexistência entre o individualismo moderno e a ordem arcaica de origem coletiva, já apontada por diferentes
autores da sociologia e história, dentre os quais têm destaque Sérgio Buarque de Holanda19.
É possível ainda uma segunda leitura, que não contradiz a anterior, mas a acrescenta, a saber a de que
a escrita de Rosa torna aparente a complexidade da memória e a insuficiência da oposição conceitual entre o
coletivo e o individual, visto que, via de regra, o escritor opta por um terceiro termo, à margem dos dualismos
e que poderia ser designado como uma memória subjetiva, no sentido em que o sujeito não é nem o indivíduo
nem o coletivo, mas um terceiro, um efeito dessas produções da linguagem que só pode se manifestar no
trabalho estético com a mesma. Aqui, a psicanálise pode ter muito a oferecer a quem se propor a explorar sua
concepção de memória; por ora fiquemos apenas com a proposição de que a memória assim considerada seria
efeito de construções imaginárias e simbólicas sobre o real. E que o sujeito pode “herdar” algumas construções
de caráter coletivo, social; porém, algo de uma produção subjetiva ocorre no processo mesmo de apropriação
dos discursos que é a construção de uma história de si através da memória. O sujeito para a psicanálise seria
este efeito de traços ou fragmentos coletivos que se representam num determinado momento numa cadeia de
significantes.
Outra temática pouco esclarecida seria em que medida uma complexa noção de memória articula-se,
numa noção mais ampla, com o caráter documental do texto rosiano, ou seja, em que medida ao contar a
história de um jagunço que nos conta estórias do sertão, o texto nos apresenta algo do clima ou das tensões
históricas vigentes à época. Dito de outra forma, como essas dimensões ou camadas de memória se articulam
na ficção.
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Memória, história, ficção
Ao contrário das concepções mais tradicionais, que opõem de um lado, a memória, tomada então
como registro individual repleto de lacunas e imprecisões, movida pelo calor dos afetos, de outro, a concepção
mais fria da história, suposta apreciação neutra dos fatos no tempo; a análise literária freqüentemente tem
aproximado os dois campos, tornando mais fluidas as fronteiras entre ambos. A noção de documento, numa
perspectiva ampla e relacionada ao literário, tem sido utilizada como uma noção-chave neste sentido, pois
quando se toma o texto literário enquanto documento histórico, além da idéia de que o texto é atravessado por
sua época, há a aceitação da subjetividade do autor como possível fonte de historicização de um fato, contexto
ou hábito, entrelaçando assim, num primeiro ponto, memória e história.
O tempo da produção do romance são os anos 50 (o lançamento data de 1956): período marcado pelo
projeto desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, cujo lema era “50 anos em 5”. Momento em
que a modernização tornou-se meta no país, com os processos de industrialização e migração em massa da
população rural para as cidades, assim como o avanço do poder das cidades sobre o campo. É ainda a época
da construção de Brasília, provável referência dos contos “As Margens da Alegria” e “Os Cimos”, no livro
Primeiras Estórias20, publicado em 1962, nos quais está presente o do choque entre a cidade e o campo no
enredo do menino da cidade que vai passar as férias com os tios, no local onde se construía a cidade e onde
uma natureza exuberante é ameaçada de destruição.
Willi Bolle21 considera o Grande Sertão: veredas como fazendo parte da série retratos do Brasil, ao
lado de obras como Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Os Sertões , de Euclides da Cunha, por
serem muito reveladoras da cultura brasileira. Retrato ou documento serão entendidos aqui não como cópia
ou registro fiel, mas como o negativo de uma época. Se o que caracterizava o momento era a acelerada
urbanização e a implementação de um projeto desenvolvimentista pouco debatido, Guimarães insiste, ao
longo de sua obra, como para “escovar a história a contrapelo”22, - utilizando a expressão benjaminiana, - no
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universo rural, numa escrita composta basicamente de personagens e contextos rurais, coletivos, dos excluídos
deste processo; o campo é justamente o meio onde em alguns momentos ocorre a experiência de choque com o
avanço do progresso, das cidades, da subjetividade individualizada das camadas médias urbanas. A figura de
Riobaldo, o jagunço-letrado, bandido e filósofo, expressa por si só esta contradição. A ausência de lei ou lei-domais-forte vigente no sertão e as várias alusões irônicas ao governo, a estradas que abrirão em meio à natureza
exuberante, à terra ignota, configuram sinais do olhar crítico do escritor em relação a seu tempo. Desta forma,
seu texto pode ser lido como documento de uma época, e seu personagem-narrador como testemunha; pois,
numa visão ampliada, o testemunho pode conotar o sobrevivente que busca recuperar uma história esquecida,
dos vencidos, segundo a concepção benjaminiana.
A atualidade da obra pode ser compreendida através da analogia com as contradições acima, além de
outras - como a existente entre o individualismo da sociedade moderna e a ordem coletiva das chamadas
sociedades tradicionais. Ou, ainda, entre a lei do mais forte e a lei civilizada e excludente que se impõe com a
modernização dos anos 50, tentando nos trópicos receber as luzes da razão, mas recaindo sempre na ausência
de fundamento, que torna ainda hoje atual a citação: “Aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”- e
persiste como uma das marcas fundadoras da cultura brasileira.
Entretanto, além dos aspectos ligados à cultura brasileira, haveria algo que dimensiona a obra rosiana
num plano universal e ultrapassa, partindo dele, o próprio particular. Pois talvez a força do testemunho consista
no fato de que, em certa medida, todos suspeitamos possuir o caráter de sobreviventes, seja da violência das
grandes e pequenas cidades; ou, num sentido mais amplo, porque nos assemelhamos a este sujeito desgarrado
da tradição, no dizer de Riobaldo, “com pouco caroço”, que tenta, com o recurso que lhe sobrou, sua parca
memória, dar sentido ao mundo, um mundo onde viver é mesmo “muito perigoso”.
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, Memória, Literatura: o testemunho na Era das Catástrofes.(Org.).Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2003.
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STARLING, Heloisa. O Sentido do Moderno no Brasil de João Guimarães Rosa – veredas de política e ficção.
SCRIPTA. Revista de Literatura do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da Puc Minas, v.2, n.3,
Belo Horizonte, 2ºsemestre de 1998, p.138-145.
WISNIK, José Miguel. O Famigerado. SCRIPTA. Revista de Literatura do Centro de Estudos Luso-afrobrasileiros da Puc Minas, v.5, n.10, Belo Horizonte, 1ºsemestre de 2002, p.177-197.
NOTAS
1
ROSA, J. G.(2001).
2
Refiro-me sobretudo aos trabalhos de Davi Arrigucci Jr., Willi Bolle e Susana Kampff Lages listados nesta bibliografia.
3
Op. Cit.
4
ARRIGUCCI JR. (1994).
5
ROSA, J.G.(2001) p. 200.
6
Ibidem, p. 192.
7
LAGES, S.K. (2002).
8
ROSA, J.G. (2001) p.616.
9
ROSA, (2001) p.616.
10
Ibidem, p.615.
11
Sobre a questão da utopia, ver Finazzi- Agro, listado na bibliografia final deste artigo.
12
LUKÁCS, G. (1962).
13
ARRIGUCCI, D. JR. Op. cit.
14
ROSA, J.G. (2001) p.28.
15
Ibidem, p29.
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CARMELLO, P. (2004).
ROSA, J.G. (2001) p. 24.
18
Ibidem, p.500.
19
HOLANDA, S.B. (1995).
20
ROSA, J. G. (1988).
21
BOLLE, W.(2004).
22
BENJAMIN, W.( 1987) p.225.
16
17
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RENATA ANIGER (GRADUAÇÃO – UFRJ)
Resumo:
O livro Corpo de Baile (1956) de João Guimarães Rosa reune romances, contos e parábases mostrando que
a obra é uma mistura de vários gêneros, estilos, enredos e culturas, compondo assim, uma unidade na multiplicidade.
Apartir disso, mostrarei a função da parábase em Corpo de Baile, destacando o poder das estórias na parábase “uma
estória de amor”, ressaltando a situação narrativa personativa e o psicodrama de Manuelzão.
SEDUÇÃO E FASCÍNIO EM “UMA ESTÓRIA DE AMOR”
Corpo de Baile (1956) de João Guimarães Rosa reúne romances, contos e parábases mostrando que a
obra é uma mistura de vários gêneros, estilos, enredos e culturas, compondo assim, uma unidade na
multiplicidade.
As obras de Guimarães Rosa possuem como temática o sertão. Diferente dos autores regionalistas,
que narram o sertão de forma mimética, ou seja, em conformidade com algumas categorias: geológicas,
geográficas, folclóricas, etc; o narrador roseano é poético, já que descerra um novo horizonte de sentido para
sertão.
Dessa forma, a saga do sertão é original, a natureza como um todo é o personagem mais importante,
sendo considerada como o corpo de todos os corpos, concebendo o sertanejo como um organismo vivo, com
todos os seus sentidos: tato, olfato, audição, visão e paladar.
Para narrar esse mundo, Rosa transforma a palavra enquanto signo lingüístico, que é convencional,
para a palavra enquanto símbolo, que instaura um sentido completamente original, com isso, observa-se que o
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autor utiliza para cada personagem uma linguagem, além de manter uma politropía estilística. Acerca da
linguagem roseana, Benedito Nunes afirma em artigo intitulado “A Rosa o que é de Rosa” que
O romancista brasileiro utiliza a língua não como um instrumento exterior, apto a traduzir um mundo de antemão
dimensionado, e sim como uma espécie de linguagem em estado nascente, que retoma a poiesis da língua portuguesa,
incidindo sobre as estruturas efetivas e as possibilidades latentes do idioma, do realismo poético...”
O livro Corpo de Baile pode ser dividido em duas partes: A primeira centrada no contador de estórias e
a segunda no erotismo, unidas pela parábase central “O recado do Morro”. Entende-se por parábase a ação de
submeter os acontecimentos ao processo crítico de reflexão, logo temos nesse livro três parábases: “Uma
estória de amor”, presente na primeira parte, que demonstra o poder das estórias, com qual esse trabalho
pretende se ocupar, a segunda, já citada, “O recado do morro”, que retrata a gênese das estórias e por último,
na segunda parte, “Cara de Bronze”, em que se observa a conquista através da palavra poética. Dessa forma,
as parábases são sumas narrativas de cada conto.
A cerca desse assunto Ronaldes de Melo e Souza em estudo intitulado “Introdução à poética da ironia”
diz que “a contribuição decisiva para elaboração de uma poética da ironia é de Friedrich Schlegel” pois ele
“enuncia a tese de que a ironia é uma parábase permanente”.
A revolução crítica de F. Schlegel consiste em elevar a parábase ao estatuto privilegiado de princípio supremo da
composição artística. Axiomaticamente se considera que a grandeza da poesia do verso e da prosa é pendente da
intensidade constante do movimento parabático. A obra literária é considerada superior se apresentar um movimento
parabático contínuo. Postula-se que a literatura, além de representar acontecimentos, tem de ser uma forma de
conhecimento. O primado artístico da parábase intensifica a força cognitiva do discurso literário. Uma parábase
permanente, eis o ideal da obra de arte. (Pg. 30)
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A narrativa “Uma estória de amor” fala do poder das estórias, pois através da personagem Joana
Xaviel, uma contadora de estórias, observa-se que elas têm a capacidade de transmutar a realidade, pois a
personagem era feia e ao contar as estórias ela se transforma:
Joana Xaviel virava outra. No clarão da lamparina, tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara
demudava, desatava os traços, antecipava as belezas, ficava semblante. Homem se distraía, airado, do abarcável do
vulto – dela aquela: que era uma capiôa barranqueira, grossa roxa, demão um ressalto de papo no pescoço, mulher
praceada nos quarenta, às todas unhas, sem trato. Mas que ardia ardor, se fazia. Os olhos tiravam mais, sortiam
sujos brilhos, enviavam. (Pg. 183)
A transformação da personagem se dá devido à forma entusiasmada com que conta as estórias “Joana
Xaviel fogueava um entusiasmo. Uma valia, que ninguém governava, tomava conta dela” (Pg. 183). Acima do
conteúdo, percebe-se que as estórias seduzem por si só.
As estórias de Joana xaviel criam uma atmosfera festiva “Crente que a gente já estava no meio da festa
festejada. Amanhã, raiava o diazinho, a festa recomeçava mais...” (Pg. 185). Por isso, elas antecipam a festa
que o vaqueiro Manuelzão irá dar para sair da inércia, já que se preocupou sempre mais em trabalhar e “agora,
com perto de sessenta anos” (Pg.158) começa a refletir sobre sua vida e percebe que fez mais pelos outros do
que por si.
Nessa narrativa, observa-se que o narrador está preocupado em narrar o psicodrama de Manuelzão,
para isso há dois procedimentos: a refletorização e o monólogo narrado, que acontecem dentro da situação
narrativa chamada de personativa, em que o narrador se despersonaliza e personaliza um novo “eu” humano
ou não, com todas as suas potencialidades. O que irá diferir o monólogo narrado da refletorização é que no
monólogo os eventos são transmitidos no nível do pensamento e na refletorização os eventos são filtrados a
partir dos sentidos do corpo da personagem.
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Tanto no monólogo quanto na refletorização ocorre uma parceria narrativa, pois quem vivencia é um
personagem refletor e quem narra é o narrador, a fim de passar com veracidade as emoções da personagem.
Na narrativa “Uma estória de amor”, ocorre essa parceria, já que o narrador transmite ao leitor o
conflito psicológico vivido por Manuelzão. O objetivo da psiconarrativa é proporcionar um conhecimento
maior da existência humana.
O maçarico, mesmo, causava uma trabalhação, do baticum do lundu. A música, o inteirado da música, às vezes
cativava: bonito como dinheiro... A música derretia o demorado das realidades. Mas dava receio. Assim, a música
amolecia a sustância de um homem para as lidas, dessorava o rijo de se sobresser. Talvez ela merecesse para se ouvir
de noite, em cama deitado – quando as coisas da vida, um pouco da feiúra do corriqueiro, se descascavam, e o
pensamento da gente tinha mais licença. Agora, agora, porém, a festa era bobagem: a festa era impossível... Agora,
aquela confiança que federico Freyre, pelo melhor, aumentava na gente o dever de dobrar esforços, de puxar quatral.
Soante que a Samarra carecia de todo avanço, reproduzindo e rendendo, forte, até tomar conta da faixa do Baixio...
(Pg. 227)
Através do monólogo narrado, essa passagem mostra o psicodrama do personagem, que mesmo se
sentindo atraído pela música está dividido entre entrar em contato com a festa ou ficar distante, havendo um
confronto em sua consciência entre o dever e o prazer.
Em meio o drama de Manuelzão, o velho Camilo levanta-se para contar uma estória, que começa
assim “Nos pastos mais de longe da fazenda, vevia um boi, que era o Boi Bonito, vaqueiro nenhum não
agüentava trazer do curral...”. o boi, personagem central dessa estória vai ganhando um caráter cada vez mais
místico, a começar pela caracterização que o velho Camilo faz dele:
- Tento. Esse boi que hei, é um Boi Bonito: muito branco é ele, fubá da alma do milho; do corvo o mais diferente,
o mais perto do polvilho. Dos chifres, ele é pinheiro, quase nada torquesado. O berro é uma lindeza, o rasto bem
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encalcado. Nos verdes onde ele pasta, cantam muitos passarinhos. Das aguadas onde bebe, só se bebe com carinho.
Muito bom vaqueiro é morto, por ter ele frenteado. Tantos que chegaram perto, tantos desaparecidos. Ele fica em
pé e fala, melhor não ter se ouvido... (Pg. 252)
Por fim, a festa de Manuelzão que começa, como foi visto com as estórias de Joana Xaviel, termina
com as do velho Camilo reforçando a sedução e fascínio que elas exercem, além do poder que têm em transmutar
a realidade.
BIBLIOGRAFIA
NUNES, Benedito. “A rosa o que é de Rosa”. O Estado de São Paulo, 22 de Março 1969.
ROSA, João Guimarães. “Uma estória de amor”. In. Manuelzão e Miguilim: (Corpo de Baile). Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 2001.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. Linha de pesquisa, Rio de Janeiro, Vol. 1, n. 1
– 27/48- Outubro 2000.
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SUSANA KAMPFF LAGES (PROFESSORA DE LITERATURA ALEMÃ DA UFF)
Resumo:
Pretendo discorrer sobre a relação entre a cultura brasileira e a cultura portuguesa, a partir da obra de
Guimarães Rosa. Rosa re-elaborou temas importantes de ambas as culturas, construindo uma imagem singular da
Europa e do Brasil a partir de uma combinação muito pessoal de referências populares e locais, por um lado, e
alusões, entre outras, à tradição literária européia e portuguesa, por outro. Um desses temas privilegiados é a
saudade, tema lusitano por excelência, que Guimarães Rosa retoma em nova chave.
A EUROPA DE GUIMARÃES ROSA E DE EDUARDO LOURENÇO –
PORTUGAL, EUROPA E OS NÃO-LUGARES DA SAUDADE
Para todo escritor, conta a geografia da imaginação. Ela pode ou não deixar transparecer as linhas que
desenham a cartografia oficial dos continentes e das nações, resultado de séculos de uma história eivada de
conflitos, disputas de território e movimentação de fronteiras. Também na literatura territórios são marcados,
disputados, perdidos, conquistados ou reconquistados ao longo da história. Os movimentos dessas cartografias
da História e das histórias são fixados pela escrita, suplemento necessário e desde sempre testemunho de
nossa perda de memória, de nosso pendor para o esquecimento, como nos lembra o lamento quase condenação
de Platão no Fedro, fonte primeira de nossa tradição ocidental Mas a História escrita, território de demarcação
do real e da verdade, sancionada pelos fatos ‘assim como eles realmente aconteceram’ ( ‘wie es eigentlich
gewesen ist’, segundo a famosa expressão de Leopold von Rank, que criou o paradigma do historicismo do
século XIX) jamais, desde sua origem em Heródoto, conseguiu prescindir totalmente de sua contraparte
dinâmica, mais propriamente ficcional, assim como transmitida oralmente pelas manifestações narrativas
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populares (o folclore, os contos de fada, as lendas, os mitos).
Num dos quatro prefácios do livro de estórias, Tutaméia, Guimarães Rosa apresenta com seu estilo
todo pessoal o programa de escritor que se quer também contador de estórias, resgatando a dimensão da
narrativa que Walter Benjamin percebeu estar-se perdendo na modernidade que vivenciou a Primeira Guerra
Mundial: a da experiência passível de ser transmitida diretamente de uma pessoa para outra:
A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes,
quer-se um pouco parecida à anedota. A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer
fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas
sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento
de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra ‘graça’ guarde
os sentidos de g r a c e j o, de d o m s o b r e n a t u r a l, e de a t r a t i vo. No terreno do h u m o
u r, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática da
arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizadores ao alegórico espiritual
e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em
Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos
da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de
pensamento.
Mas mais do que uma defesa da narrativa tradicional, que as próprias estórias de Tutaméia contradizem
o libelo aparentemente anti-histórico de Rosa atesta a permanência de vertentes importantes da cultura européia,
em especial da literatura européia, dentro do seu próprio ‘sistema de pensamento’ Disse libelo ‘aparentemente’
anti-histórico, porque ao remeter à forma literária da “anedota” (do grego, aquilo que não foi publicado,
inédito), Rosa subterraneamente alude ao campo da história (como discurso lógico sobre fatos do passado,
inaugurado na Antigüidade helênica por Tucídides), uma vez que o significado dessa forma inclui entre seus
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aspectos distintivos uma dimensão de historicidade, pois servia para a representação de uma personalidade
conhecida, histórica, inserida no contexto de seu tempo. A anedota é forma que realiza, portanto, uma mediação
entre registro histórico escrito e narrativa oral (que aliás tb permeava o relato de outro patriarca, Heródoto, pai
da História), pois sua proto-figura é a narrativa, brevíssima, contada apenas oralmente e cuja eficácia depende
sobretudo do efeito de significação/ interpretação causado sobre o ouvinte. Esse efeito é muitas vezes de
caráter humorístico, como acentua G Rosa, remetendo com isso ao tema do humor na tradição literária
européia enquanto tradição anti-racionalista, anti-iluminista, isto é, romântica, do Witz (que ele traduz como
graça, gracejo, chiste), inserindo-se numa linhagem que o coloca ao lado de outros teorizadores (e praticantes)
do humor da modernidade pós-romântica, como Sigmund Freud, Henri Bergson e Luigi Pirandello.
Sendo assim, pensar numa Europa de Guimarães Rosa significa necessariamente pensar num outro
mapa, recortado pelas referências da cultura européia assim como elas foram absorvidas pelo leitor Guimarães
Rosa e reconstruídas intertextualmente no desenho de sua escrita, e em permanente diálogo com elementos
da cultura não-européia (índigena, afro-americana, asiática); a reflexão de Guimarães Rosa sobre a Europa
passa sempre pelo crivo da literatura enquanto rede intertextual e inter-cultural. Guimarães Rosa era
particularmente sensível à forma com que os dados culturais penetram na(s) língua(s ) e propunha uma
compreensão do Brasil e da literatura brasileira que passasse por uma dupla determinação: pela reflexão crítica
sobre a língua vernácula, o português do Brasil, e por uma visão do outro, do estrangeiro ( ‘Eu gosto muito de
estrangeiro’):
“Existem elementos da língua que não são captados pela razão; para eles são
necessárias outras antenas. Mas, apesar de tudo, digamos também [que] a
‘brasilidade’ é a língua de algo indizível. (...) Ou digamos, para salientar a
importância irracional, inconcebível, intimamente poética, que a palavra em si
contém uma definição que tem valor para nós, para nosso caráter, para nossa
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maneira de viver e de sentir: ‘brasilidade’ é talvez um sentir-pensar. Sim, creio que
se pode dizer isto.”(LORENZ in COUTINHO, 1983:.91)
Ao referir-se a um sentir–pensar como definição de ‘brasilidade’ Guimarães Rosa está explicitamente
(re)ligando a tradição cultural brasileira a seu passado cultural português, tantas vezes rechaçado em nome da
busca de uma identidade cultural própria, brasileira, independente de modelos vindos da metrópole colonial,
ou da Europa como cultura hegemônica. Ele aponta para a necessidade de refletirmos sobre nossa relação
com a cultura portuguesa, que é simultaneamente a fonte de nossa língua e de nossa cultura, sendo ao mesmo
tempo também um ‘outro’ no qual precisamos nos espelhar, e que não podemos ignorar sob pena de nos
tornarmos cegos a/de nós mesmos.
Um dos caminhos para repensarmos a cultura e a literatura brasileiras pode justamente ser o de repensar
nossa relação presente com a cultura portuguesa, com a qual temos tanto em comum no passado e tão pouco
diálogo no presente, como enfatizou há pouco tempo Boaventura de Sousa Santos em entrevista ao Jornal do
Brasil. Portugal para o Brasil ocupa o ambíguo lugar de pai, mãe e irmão. Essa ambigüidade em situar as nossas
relações de parentesco com Portugal, ou nosso ‘romance familiar’ aponta para uma intensificação dos
sentimentos ambivalentes (de amor e ódio) presentes em qualquer relação de caráter cultural entre povos ou
nações. Nesse sentido a obra de Eduardo Lourenço, ensaísta português, hoje residente na França, é um ponto
de partida crítico dos mais instigantes, pois foi ele que com maior contundência e propriedade decifrou Portugal
em termos de uma cultura da modernidade (e da pós-modernidade) dentro do contexto europeu. Evidência de
nosso parco diálogo intelectual com a cultura portuguesa (a qual comparece no nosso dia a dia na maior parte
das vezes apenas como aquele outro a ser ridicularizado e rebaixado – das piadas sobre portugueses, que
denunciam o caráter problemático de nossa relação com esse outro cultural esquecido), evidência pois desse
parco diálogo é o fato de que apenas dois dos inúmeros livros de autoria de Eduardo Lourenço foi editado no
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Brasil, e com muito atraso.
A produção ensaística de Eduardo Lourenço se caracteriza, por um lado, por uma problematização
radical do lugar ocupado pela cultura portuguesa na Europa, e por outro, por um reexame crítico dos mitos
culturais portugueses, centrado, sobretudo, na “mitologia da saudade” (título justamente de obra publicada no
Brasil). Essa problematização é realizada por meio de uma releitura da história cultural portuguesa e européia
que toma a literatura como palco privilegiado, onde diferentes atores da cultura européia se apresentam no
drama, ou melhor, na tragédia, de sua constituição histórica. O tom polêmico recupera a verve e trai o gesto
apaixonado de seu precursor barroco Antonio Vieira, e banha sua prosa, de metódico, cartesiano, andamento
dubitativo, questionador, com o sangue vivo do desilusionamento do olhar, herança de outro ibérico barroco,
irmão de sangue, Baltasar Gracián. Depois da simbólica cena sacrificial, Lourenço passa a realizar um
desnudamento das entranhas do ser português, de Portugal - esse retângulo recortado da carne de Espanha,
que compõe o desenho de uma Europa outra, aquém-Pirineus, à margem daquele nó geográfico chamado
Mitteleuropa, Europa Central. No ensaio que dá nome ao livro Nós e a Europa ou as Duas Razões, Eduardo
Lourenço procura identificar a origem de duas diferentes tradições européias, duas Europas: uma, a católica,
da Península Ibérica (mas tb da Europa Oriental, sobretudo, da Rússia) e a protestante, mitteleuropéia, de
tradição iluminista e idealista. A partir da grande ruptura ideológica operada pela Reforma protestante, que
por reação gerou a Contra-Reforma católica e a perseguição inquisitorial, duas razões passam a se confrontar
no palco da história européia: uma razão ilustrada, sustentada por avanços na investigação científica e na
laicização do mundo; a outra, uma razão barroca, sustentada pela fé católica, mas profundamente dramática e
que no seu movimento de desilusionamento desvelou os monstros que sonho da razão pode produzir (Goya).
Entre essas duas Europas, sobretudo entre Portugal e a Europa, vão se interpor nos séculos seguintes dois
sentimentos: ressentimento e fascínio. Produtos complementares de um histórico complexo de inferioridade
português (que tem seu reverso na megalomania de sua visão como povo de glórias imperiais), tais sentimentos
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deram sustentação a um discurso cultural baseado numa comparação obsessiva de portugueses e espanhóis
com a realidade cultural de além-Pirineus, discurso este que hoje começa a mudar de perspectiva, derivando –
como mostra a inteira obra de Lourenço - para uma reflexão sobre a cultura peninsular não apenas numa
relação de especularidade com as outras culturas européias, mas centrada na sua relação consigo mesma, com
sua própria história e seus próprios mitos identitários.
E é sobre um desses mitos, talvez, o mito da identidade lusitana por excelência – a saudade - que
Lourenço realizará uma de suas mais incisivas críticas de sua própria cultura, num movimento de auto-crítica
cultural único no panorama da cultura portuguesa deste século. Eduardo Lourenço investe contra a imagem
estereotipada do português como um povo sentimental sempre saudoso de glórias passadas. Desmontando
com ironia os grandes mitos portugueses: “Portugal-menino-jesus-das-nações, éon histórico predestinado à
regeneração espiritual do universo”; “povo de sonhadores”, Lourenço aponta para uma imagem, desprovida
de lastro na realidade, que os portugueses fizeram de si mesmos ao longo da história, pendendo ora para uma
exacerbação do ser português como predestinado a grandes feitos, ora para um complexo de inferioridade,
pelo qual se reconhecem como naturalmente subalternos em relação às nações “civilizadas”. Em seu auxílio
na empresa de crítica cultural vem a crítica poética, sua leitura sensível e sempre problematizadora da literatura:
No limiar da modernidade, na poesia de um Teixeira de Pascoaes, por ex, como salienta Lourenço, a saudade
não vem eivada do “ressentimento cultural”, nem do “complexo de inferioridade”, nem da “obsessão do
comparativismo” de que se ressentem em geral os estudos sobre o tema. Nele, a saudade é algo como um
fantasma que opera a reversão do sentimento de povo fracassado, inferior, “não-ser imaginário” em “ser
supremo, mítica e mística saudade - corpo-sombra de existência lusíada”. Essa operação não se dá como
exaltação obsessiva do passado melhor, nem como recusa de um presente pequeno, mas como afirmação de
uma “futuridade” que se afirma pelo negativo, pelas sombras, pela noite como ausência-presença criadora.
Essa dimensão de futuro da saudade de Pascoaes será re-elaborada por Fernando Pessoa. Pascoaes diz: “o
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futuro é a aurora do passado”; Pessoa condensa essa dimensão de futuro na expressão “outrora agora”. A
modernidade radical de ambos os poetas - que em Pascoaes apenas emerge, adquirindo feição radical em
Pessoa – está nessa reversão do saudosismo e do imaginário que através dele vinha-se manifestando
historicamente. Não por acaso, as obras de Pascoaes e de Pessoa simultaneamente concentram, levam ao
paroxismo e dissolvem os grandes mitos da lusitanidade: em Pascoaes, o sentimentalismo do homem português,
a fé cristã, a paisagem brumosa, conjugados numa concepção de povo humilde; em Pessoa, a aventura dos
descobrimentos, o messianismo sebastianista, o mito Camões, a fantasia histórica do Quinto Império – todos
os mitos da predestinação dos portugueses se encarnam e se dispersam numa subjetividade cindida, aliás,
pulverizada em diferentes eus, os singulares heterônimos pessoanos Todos eles se representam por meio da
saudade, mito condutor que recupera o passado, não apenas como restauração de um prazer localizado numa
anterioridade irrecuperável, mas como busca de um gozo possível, projetado num futuro criador: “criadora
saudade, desejo de um Desejo”, nas palavras de Eduardo Lourenço. Com Pascoaes e com Pessoa, a saudade
é assim problematizada de tal forma a deixar de constituir, ora apenas o significante, a palavra saudade carregada
pelo enigma de sua evolução fonética e etimológica, ora somente significado, enquanto conjunção contraditória
entre sentimento e idéia, inefável, imperscrutável, e se torna um operador cultural que põe em conflito diferentes
dimensões temporais, recompondo em nova chave os mitos da tradição. Nesse sentido, a saudade pode ser
vista também como motor da ação do poeta por excelência, poiesis, criação.
Mais de meio século depois da morte de Fernando Pessoa, outro poeta, um poeta mitteleuropeu, Hans
Magnus Enzensberger, identifica na cultura portuguesa essa dimensão desejante, potencialmente criadora,
que poderia tornar Portugal ‘invejável’ diante das outras nações européias, revertando o seu padrão de assimilador
de culturas estrangeiras para um padrão que se poderia chamar de ‘exportador’ de cultura:
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“O que os portugueses defendem, às vezes vaga e indistintamente, sempre com tenacidade, não é
sua propriedade, mas seus desejos – isto é, coisas que não sou propriedade de ninguém. A crítica da
razão tomou uma forma material nesse país. Suponhamos que política signifique mais do que
armamentos e produção; suponhamos que exista uma Europa de desejos. Nesta Europa, Portugal
não seria mais um apêndice periférico mas uma grande potência, e como todas as grandes potências,
ele não só enfraqueceria seus vizinhos mas os encheria de inveja.”( ENZENSBERGER, 1988: 162)
Poderíamos nos perguntar se ao se tornar invejável para as demais culturas européias, a cultura portuguesa
não estaria apenas de novo invertendo o sinal de uma relação que permanece em termos hierarquizados,
dividida entre boas e más práticas culturais. De qualquer forma, o que importa aqui é que o poeta alemão
aproxima-se da cultura portuguesa, num plano de igualdade, sem um olhar condescendente nem apologético
em relação a ela. De fato, Enzensberger tem estabelecido um diálogo com as diferentes culturas européias que
honra grandemente a memória de seu precursor ilustre, Goethe, que com sua idéia de uma Weltliteratur
estabeleceu as bases de uma perspectiva dialógica para as relações culturais dentro da Europa e da Europa
com mundos extra-europeus.
Entre nós, como vimos no início, Guimarães Rosa faz uma apropriação oblíqua desse grande mito da
tradição portuguesa que é a saudade, trazendo-o para dentro de sua própria definição de uma identidade
brasileira, como algo de fundamentalmente ambivalente. Somente quando retomarmos em termos críticos
nosso diálogo intelectual com a cultura portuguesa, estaremos aptos a nos repensar enquanto cultura, deixando
de lado nossa próprias concepções estereotipadas sobre o que seja a brasilidade ou o brasileiro. Rastreando as
origens históricas de aspectos estereotipados de nossa identidade e identificando os momentos em que tais
estereótipos foram questionados por escritores, filósofos, historiadores, poderemos tal.vez colocá-los sob
uma luz mais problematizadora, uma luz que evidencie também as sombras projetadas pelo romance familiar
da cultura brasileira com seus parentes europeus.
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BIBLIOGRAFIA
ENZENSBERGER, H.M. “Cismas portuguesas” In:____. A outra Europa. Impressões de sete países europeus, com
um epílogo do ano de 2006. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 127-63.
LORENZ, G. “Diálogo com Guimarães Rosa.” In: COUTINHO, E. de F. (org.) et allii. Guimarães Rosa. Rio de
Janeiro/Brasília, Civilização Brasileira/INL, 1983. (Coleção Fortuna Crítica, nº 6). P.
LOURENÇO, E. Mitologia da saudade. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
____. A nau de ícaro. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
ROSA, J.G. Tutaméia. Terceiras estórias. 6ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
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TATIANA ALVES SOARES CALDAS (UNIV. ESTÁCIO DE SÁ / UNIVERCIDADE )
Resumo:
Grande Sertão: Veredas, narrativa que apresenta a viagem do jagunço Riobaldo pelos sertões, metaforiza uma
travessia de caráter existencial, em que a jornada se reveste de aspectos iniciáticos, sendo a busca por equilíbrio e
autoconhecimento sua grande finalidade. Estruturada a partir de um entrelaçamento entre passado e presente –
por meio de uma narração que revive, à medida que se desenvolve, a história já vivida pelo protagonista-narrador
–, a narrativa trabalha simultaneamente com o passado, ao abordar as experiências e aventuras de Riobaldo em
seus tempos de jagunço, e com o presente, no narrar de tais experiências. À travessia literal, que abrange toda a
evolução de Riobaldo como jagunço, une-se uma espécie de travessia interior, em que o narrar permite o (re)viver,
sendo esse novo olhar em direção ao passado uma tentativa de resgate e de entendimento do mesmo. Ao narrar,
Riobaldo revive sua história, contando-a no mesmo ritmo e ordem em que os fatos se deram, e aprendendo com
isso. Nessa travessia interior, surgem os mais variados comentários, assertivas e glosas acerca de aspectos e valores
fundamentais da humanidade, e cada personagem parece ter um papel determinante no processo de aperfeiçoamento
vivenciado pelo protagonista. Dessa forma, o presente trabalho tem por objetivo uma análise dos personagens
Borromeu e Guirigó – o cego e o menino que Riobaldo decide levar consigo, respectivamente –, destacando sua
relevância na trajetória evolutiva do protagonista
O CEGO E A CRIANÇA NO MEIO DO REDEMOINHO
“Acho que eu não era capaz
de ser uma coisa só o tempo todo”.1
Grande Sertão: Veredas, narrativa que apresenta a viagem do jagunço Riobaldo pelos sertões, metaforiza
uma travessia de caráter existencial, em que a jornada se reveste de aspectos iniciáticos, sendo a busca por
equilíbrio e autoconhecimento sua grande finalidade, muito embora isso só seja descoberto pelo narradorAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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protagonista ao final. Estruturada a partir de um entrelaçamento entre passado e presente – por meio de uma
narração que revive, à medida que se desenvolve, a história já vivida pelo protagonista-narrador –, a narrativa
trabalha simultaneamente com o passado, ao abordar as experiências e aventuras de Riobaldo em seus tempos
de jagunço, e com o presente, no narrar de tais experiências a um interlocutor.
À travessia literal, que abrange toda a evolução de Riobaldo como jagunço, une-se uma espécie de
travessia interior, em que o narrar permite o (re)viver, sendo esse novo olhar em direção ao passado uma
tentativa de resgate e de entendimento do mesmo. Ao narrar, Riobaldo revive sua história, contando-a no
mesmo ritmo e ordem em que os fatos se deram, e repensando sua vida a partir disso. Curiosamente, há uma
frase que permeia o discurso do narrador, e que evidencia a sua perplexidade diante dos mistérios que a vida
lhe apresenta o tempo todo. A máxima “Viver é muito perigoso” pauta a narrativa, e sintetiza a grande angústia
do narrador-protagonista: a necessidade de compreender os mistérios da existência humana.Entretanto, o
hiato entre o tempo da narração e o tempo da história permite que Riobaldo, voluntariamente ou não, deixe
pistas daquilo que ele já conhece no momento em que narra, mas que desconhecia na época em que a história
se passou. Permite, ainda, que esse narrador reelabore determinadas situações que não eram claras no momento
em que foram vividas, numa oportunidade ímpar de passar a vida a limpo, nas palavras de Walnice Galvão:
A oportunidade de atender à solicitação do interlocutor, que conhece sua fama de jagunço, se transforma numa
verdadeira ocasião, aliás bem aproveitada, de passar a vida a limpo. Ou seja, construindo, com o auxílio do
interlocutor, um texto de autobiografia que o ajude a compreender sua vida, segundo ele mesmo caótica,
desnorteante.2
Nessa travessia interior, surgem os mais variados comentários, assertivas e glosas acerca de aspectos e
valores fundamentais da humanidade, e cada personagem que surge na história parece ter um papel determinante
no processo de aperfeiçoamento vivenciado pelo protagonista. Walnice Nogueira Galvão, em outro dos mais
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célebres estudos sobre Grande Sertão:Veredas, destaca a ambigüidade como o eixo norteador do romance,
constituindo uma espécie de fio condutor, ao qual todos os demais aspectos estão subordinados:
Se o princípio organizador é a ambigüidade, a estrutura do romance é também definida por um padrão dual
recorrente. A coisa dentro da outra, como o batizei, é um padrão que comporta dois elementos de natureza
diversa, sendo um o continente e outro o conteúdo. A chave para a descoberta desse padrão é um conto que se
encontra no meio do romance, aparentemente como peça solta, mas na verdade como matriz estrutural. Esse
conto, que relata o duplo crime de Maria Mutema, estabelece o padrão que se repete em todos os níveis de
composição do romance, constituindo sua estrutura: no enredo, nas personagens, nas imagens, na concepção
metafísica, nos comentários marginais. Nas linhas mais gerais tem-se o conto no meio do romance, assim como
o diálogo dentro do monólogo, a personagem dentro do narrador, o letrado dentro do jagunço, a mulher dentro
do homem, o Diabo dentro de Deus.3
E, nesse eixo de ambigüidades, contrapontos e antinomias que, a nosso ver, traduzem a ambígua e
contraditória condição humana, deparamo-nos com as tensões entre passado / presente, Deus / Diabo, homem
/ mulher, amor / ódio, entre outros, metaforizando a precária compreensão humana em relação à complexidade
do mundo. Uma vez que cada personagem, como dissemos, parece exercer um papel relevante na vida de
Riobaldo, o presente estudo tem por objetivo uma análise dos personagens Borromeu e Guirigó – o cego e o
menino, respectivamente, que o jagunço decide levar consigo –, destacando a relevância daqueles na trajetória
evolutiva do protagonista.
Um aspecto que chama a atenção é o fato de os referidos personagens se apresentarem quase como se
um fosse uma espécie de oposto do outro: um é cego, o outro vive de olhos arregalados para perceber o
mundo; um é marcado pela espontaneidade e pela curiosidade, enquanto o outro demonstra sensatez e uma
quase resignação diante da vida. Tal contraste, a nosso ver, metaforiza os opostos que a todo momento
parecem se entrelaçar no romance, evidenciando a ambigüidade que estrutura a narrativa. No processo epifânico
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vivenciado por Riobaldo, significativo é o comentário por ele feito, quando tudo ainda lhe parecia caótico e
desordenado, e ele afirmava a necessidade de perceber o mundo de um modo quase maniqueísta, numa visão
marcada pelo dualismo e pela angústia:
Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom
seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito
e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é
ingrata no macio de si: mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é
muito misturado... 4
Ao pontear opostos, segundo suas palavras, Riobaldo tenta esquematizar a vida a partir de uma perspectiva
dualista, ainda sem atingir a síntese da natureza humana, por si ambígua e contraditória. Imediatamente após
a passagem citada, surge o episódio de Maria Mutema, considerado o divisor de águas da obra, como vimos em
Galvão(acima).
Curiosamente, à medida que vai evoluindo e avançando em sua travessia, Riobaldo parece vivenciar
essa ambigüidade, até que decide levar consigo um cego e um menino, que ele encontra no bando de catrumanos,
grupo de quase selvagens que o fazem reconhecer a própria selvageria. Um cego e um menino, em meio a um
bando de jagunços, são elementos que ficam à margem da micro-sociedade que ali se delineia, uma vez que se
revelam inúteis ao combate, dadas as limitações decorrentes de sua deficiência e infância, respectivamente.
Na passagem abaixo, vê-se a decisão de Riobaldo em levar o cego consigo, junto ao bando de jagunços:
Convoquei todos nas armas. – “E o Borromeu? E o Borromeu?” – ainda perguntavam. Quem era que esse
Borromeu? Mandei vir. Um cego: ele era muito amarelo, escreiento, transformado. – “Responde, tu velho, Borromeu:
que é que tu faz?” – Estou no meu canto, cá, meu senhor... Estou me acostumando com o momentozinho de
minha morte...” Cego, por ser cego, ele tinha direito de não tremer. – “Tu é devoto?” –”pecador pior. Pecador sem
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o que fazer, pede preto, pede padre...” Apontou com o dedo. Levei os olhos. Não vi nada. É assim, a esmo, que
os cegos fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. – “Ah, meu senhor, eu sei é pedir muitas esmolas...” Pois
então, que viesse também o Borromeu, viesse. Mandei que montassem o dito num cavalo manso, que da banda
da minha mão direita devia sempre de se emparelhar. Alguns riram. E, pelo que riram, de certo não sabiam – que
um desses, viajando parceiro com agente, adivinha a vinda das pragas que outros rogam, e vão defastando o mau
poder delas; conforme aprendi dos antigos. 5
As palavras de Borromeu são marcadas por uma quase contemplação da vida, bem como por uma
atitude de resignação diante da morte. Além de aparecer dotado de uma sabedoria possivelmente decorrente
de sua velhice, Borromeu é ainda cego, o que reforça seu simbolismo arquetípico. A humildade também marca
seu discurso, e Riobaldo decide levá-lo consigo como uma espécie de amuleto. A crença numa suposta visão
espiritual por parte dos cegos remonta à Antigüidade Clássica, e muitos videntes tinham a cegueira como
característica comum. No que se refere ao aspecto arquetípico contido no simbolismo do cego, diz Chevalier
em seu Dicionário de símbolos:
O cego é aquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua
realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais. O cego participa do divino, é o inspirado, o poeta,
o taumaturgo, o Vidente. (...)A cegueira nos velhos simboliza a sabedoria do ancião. Os adivinhos são geralmente
cegos, como se fosse preciso ter os olhos fechados à luz física a fim de perceber a luz divina. (...) o cego evoca a
imagem daquele que vê outra coisa, com outros olhos, de um outro mundo. 6
Como que assinalando o oposto do cego Borromeu, surge Guirigó, pequeno ladrãozinho encontrado
pelo bando de Riobaldo, menino que chama a atenção pela malandragem e pela irreverência:
E, por nada, mais me lembrei, de repentinamente, do menino pretozinho, que na casa do Valado a gente tinha
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surpreendido, que furtando num saco o que achava fácil de carregar. E tiveram de campear esse menino. Ele estava
amoitado, o tempo todo, com a boca no chão, no meio do mandiocal.Quando foi pego, xingava, mordia e
perneava. Ele se chamava Guirigó; com olhares demais, muito espertos. – “Guirigó, tu vem vestido, ou nu?”
Como que não vinha? Aprontaram um cavalo para ele só, que devia de se emparelhar com o meu, da banda da
minha mão esquerda. 7
Riobaldo decide levar os dois junto ao bando, deixando expressa a orientação de que um deveria
sempre seguir pela banda de sua mão direita e outro pela esquerda. Apesar da aparente inutilidade de ambos,
os personagens em questão parecem ter o poder de liberar uma outra faceta de Riobaldo, destoante da seriedade
do código jagunço. Representantes de uma identidade que nega o paradigma do homem de armas, permitem o
aflorar do lado não-racional de Riobaldo, como se verifica na passagem a seguir:
Dada a mais cachaça ao menino Guirigó e ao cego Borromeu: para eles falarem coisas diferentes do que certas, por
em si desencontradas, diversas de tudo. 8
Ambos representam a fala da alteridade, num discurso que nega a racionalidade e o comportamento
esperados por parte dos jagunços. O extremo bom-senso manifestado pelo cego e a espontaneidade irresponsável
do menino conduzem a uma síntese que Riobaldo só entenderá ao final, uma vez que nesse momento ele ainda
necessita representar o mundo a partir de opostos para compreendê-lo. A percepção da ambigüidade, fundamental
para a sua evolução, somente será atingida após a morte de Diadorim. Nesse momento, o equilíbrio buscado
ainda prescinde de uma divisão estruturada, em que juízo e vontade estejam em bandas separadas. Nessa
linha, cumpre citar o estudo de Heloísa Vilhena de Araújo, intitulado O Roteiro de Deus – dois estudos sobre
Guimarães Rosa. Nele, a autora analisa Grande Sertão: Veredas à luz do ritual iniciático e evolutivo por que passa
Riobaldo, vendo no cego e no menino uma remissão ao texto bíblico, alegorizando duas formas de conduta.
Invocando o Evangelho de Mateus (25, 33), que pregava o posicionamentos dos carneiros à direita e o dos
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bodes à esquerda, ela explica a estratégia de Riobaldo, que delimita as posições dos dois como uma espécie de
diretriz. Cada um a seu modo, traduzem aspectos relevantes da psique do jagunço:
Agora, à sua direita, o cego é constante memento para Riobaldo de que sua inteligência, diante da sabedoria de
Deus – da lux sapientiae -, é cega. O pretinho, por sua vez, recorda-lhe que, sem a ajuda da graça divina, a vontade
humana reverte à infância – ao estado de desejo primitivo, instintivo. 9
A primeira impressão que Riobaldo tem de Borromeu é a de um velho, escreiento, transformado, numa
adjetivação que parece traduzir algum tipo de evolução espiritual por parte do personagem. Curiosamente, a
primeira referência a Guirigó fala de um rapazola mal aperfeiçoado, marcando, por oposição, um estágio ainda
anterior à evolução sugerida pelo outro. Esta oposição – ou complementaridade – constitui apenas uma dentre
as diversas simetrias que pautarão a dicotomia simbolizada por Borromeu e Guirigó. Kathrin Rosenfield, em
sua proposta de leitura de Grande Sertão: Veredas, pensa a imagem dos guerreiros míticos e a dos seniores como
traduções simbólicas da ambigüidade humana:
Os guerreiros míticos (...) formam um grupo de seres à parte da humanidade normal. Além da juventude, eles
portam as marcas do animalesco e do mágico, da natureza bestial. Eles representam o aspecto da destruição
fertilizante, isto é, da violência inovadora e conquistadora. A eles se contrapõe a categoria dos “seniores” (dos mais
velhos, portanto, ponderados e graves), encarregados de institucionalizar os costumes e de conservar os bens
conquistados. Cabe aos seniores a exata observação das obrigações e promessas, da justiça e da eqüidade, que
exigem a contenção dos reflexos impulsivos e a limitação dos excessos juvenis. No sistema mítico, é o equilíbrio
destas duas categorias que assegura a harmonia social. 10
É, portanto, de equilíbrio que se trata, e que Riobaldo tenta atingir ao delimitar opostos. Simbolicamente,
é como se buscasse o meio-termo entre aquilo que ele percebe como os extremos. Significativamente, as
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passagens em que o pretinho aparecem colocam-no como uma representação do que há de mais primitivo e
impulsivo no homem, como se verifica no trecho a seguir:
E eu bem que já estava tomando afeição àquele diabrim. Pois, com o Guirigó, as senhoras e moças conversavam
e brejeiravam, como que só com ele, por criança, elas perdessem o acanhamento de falar. Mas o seu Ornelas
permanecia sisudo, faço que ele afetava de propósito não reparar no menino. 11
Observe-se que Riobaldo refere-se a Guirigó como diabrim. Não por acaso, em diversos momentos, o
jagunço utilizar-se-á de termos ligados ao demo para se referir / dirigir ao menino, numa espécie de antecipação
da grande conclusão a que o narrador-protagonista chega ao final da narrativa: a de que o Diabo não existe,
estando o Mal presente nas atitudes humanas, como veremos adiante. Guirigó alegoriza, para Riobaldo, a
imagem do diabinho que traz as tentações, a vontade de praticar a crueldade gratuita. Novamente, a figura do
menino surge aos olhos do jagunço semelhante à de um capetinha, que o incita a praticar coisas ruins:
Até que, um certo momento, o pretinho Guirigó se chegou sorrateiro, e emitiu em minha orelha. – “Iô chefe...”
– arenga do menino Guirigó, que às vezes bem não regulava. O capeta – ele falou no capeta? Ou então, só de olhar
para ele, eu pensei no capeta, eu entendi. Daí, de repente, quem mandava em mim já eram os meus avessos. Aquele
homem tinha quantia consigo: tinha consciência ruim e dinheiro em caixa... – assim eu defini. Aquele homem
merecia punições de morte, eu vislumbrei, adivinhado. Com o poder de quê: luz de Lúcifer? E era, somente sei. A
porque, sem prazo, se esquentou em mim o doido afã de matar aquele homem, tresmatado.
(...) Mas, aquilo de ruim-querer carecia de dividimento – e não tinha; o demo então era eu mesmo? Desordenei,
quase, de minhas idéias.
(...) – “Senhor mata? Senhor vai matar?” – o pretinho só se saiu pelos olhos. 12
Digna de destaque é a quase alegria com que o menino vislumbra a perspectiva de assistir à morte de
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alguém pelas mãos de Riobaldo. Nos momentos em que Guirigó o provoca, numa espécie de tentação, Riobaldo
nota que há um lado ruim no homem, que ganha vida em ações e pensamentos maléficos. O contraste entre
ambos fica evidente, por exemplo, na situação em que o bando se depara com um indivíduo acompanhado de
sua cadelinha e, enquanto Borromeu teme os uivos do animal, Guirigó se empolga diante da sugestão de
enforcá-la. Outro momento em que tal contraste se evidencia se dá no episódio da morte do Treciziano:
enquanto Borromeu sente a hora exata da morte e põe-se a rezar, o menino vibra com os detalhes mórbidos da
ocasião:
Não turveei. Morte daquele cabra era em ramo de suicídios. – “A modo que morreu? Ele foi para os infernos?” –
indagou em verdade o menino Guirigó. Antes o que era que eu tinha com isso, como todos me louvaram? Sendo
minha a culpa – a morte, isto sei; mas o senhor me diga, meussenhor: a horinha em que foi, a horinha? Como que
o cego Borromeu garrou um fanhoso recitar, pelos terços e responsos.13
Para se desvencilhar do ímpeto de matar gratuitamente – aos poucos, Riobaldo constata que o menino
tem a capacidade de lhe despertar os avessos –, o jagunço busca orientação no cego, que, ao contrário do
menino, tem um discurso que mostra um indivíduo dotado de bom-senso, e que aconselha o jagunço a proceder
de forma ética e sensata:
E foi então para retardar os momentos, que ao cego Borromeu eu indaguei:
- “Seja o que, companheiro velho? E eh lá isso?...”
Atabafado. Até porque, de pedir avisos a um cego, assim, em públicas varas, eu tivesse de me vexar.
- Se é se é, Chefe? A-hem? Se é o que mecê sumeteu, enhém? Senhor quer que seja que se mate um tal?” – semtermo do cego me respondeu, sem-razão. Ao que eu tinha trazido aquele comigo, para a nenhuma utilidade. –
“Senhor mesmo é que vai matar?” - o menino Guirigó suputou, o diabo falou com uma flauta. –” Te acanha,
dioguim, não-sei-que-diga! Vai sebo...” – eu ralhei. 14
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Guirigó simboliza a face capeta, diabrim, dioguim de Riobaldo, enquanto Borromeu traduz o que há de
ajuizado no ser humano, atuando como uma espécie de consciência do protagonista. Em termos psicanalíticos,
um poderia representar o Superego, com sua censura e seu senso de responsabilidade, enquanto o outro assinala
um Id irreprimido e voluntarioso. Note-se que as palavras do cego soam, a princípio, desconexas para Riobaldo,
evidenciando a sua imaturidade no que refere à compreensão da vida: é que Borromeu se utiliza de perguntas
para fazer com que o jagunço pense as questões que lhe são colocadas pelo caminho. Numa técnica muito
semelhante à maiêutica clássica, o cego do sertão vale-se de um artifício filosófico que consiste em lançar
perguntas ao interlocutor que, a partir das respostas, reflete e chega às suas próprias conclusões. Nos momentos
em que Riobaldo mais pensa a vida e embarca em questões existenciais, mais a figura de Borromeu se lhe
mostra sábia. Ao narrar sua travessia, anos mais tarde, Riobaldo percebe a sabedoria do cego, chegando mesmo
a constatar que já aquele já possuía as respostas para muitas das indagações que propunha. A esse respeito, é
expressivo o fato de a sapiência do cego ser ressaltada logo após algumas digressões acerca dos mistérios e
descaminhos da vida, inquietação que persegue Riobaldo ao longo da trama. Note-se como Borromeu, Tirésias
do sertão, tenta fazer com que ele enxergue a verdade sobre a natureza ambígua de Diadorim:
(...) Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá estou encaixado morando, no futuro? Homem
anda como anta: viver vida. Anta é o bicho mais boçal... e eu, soberbo exato, de minha vitória! Conforme prazia
o dito do cego Borromeu, que não se entristecia: - “Ah, eu nunca botei em antes o nariz nestes campos...”
Soscrevo. Mas,ele, o que carecia de querer saber, às vezes perguntava. Desses lugares, o divulgado natural, pedia
pergunta. Aí, glosava:
Macambira das estrelas,
quem te deu tantos espinhos?
Tibes! Eu, não. ia demandar de outros o que eu mesmo não soubesse, a ser: nestes meus Gerais, onde eu era o
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sumo tenente? Não me respondiam. Ninguém mesmo ninguém. A gente vive não é caminhando de costas?(...)
Agora eu cismo que o cego Borromeu também só do que já sabia era que indagava. Se não, se não, o senhor verse,
como bula santa; a cita não é revelável:?
Macambira das estrelas,
Xiquexique resolveu:
- Quixabeira, bem me queira,
quem te ama, bem, sou eu... 15
Novamente valendo-se da maiêutica, Borromeu, conhecedor da verdade em detrimento das aparências,
revela, por meio de uma linguagem cifrada, a natureza andrógina de Diadorim. À semelhança de um oráculo,
tenta em vão mostrar a Riobaldo a verdade, o que só ocorrerá após a morte de Diadorim,momento em que sua
identidade feminina será finalmente revelada. Curiosamente, as três imagens utilizadas na canção entoada por
Borromeu referem-se a plantas típicas do sertão: a macambira, o xiquexique e a quixabeira correspondem a
plantas ou árvores revestidas de espinhos, e que apresentam em seu interior frutas ou bagas doces e comestíveis.
O fato de tais imagens aparecerem em uma canção popular que fala de um amor que aos poucos se revela
sugere, de forma cifrada, o indício da verdadeira natureza de Diadorim, que só tardiamente será conhecida: a
donzela guerreira de identidade misteriosa; por fora, agressiva, firme e bruta; por dentro, doce e feminina,
adequada ao amor. Significativamente, é justamente por se travestir de jagunço que ela reencontra Riobaldo.
Na primeira parte da canção, indaga-se o porquê de tantos espinhos ocultando a doçura interior, em uma
metáfora que dispensa explicações. Na segunda parte, em que surgem diferentes espécimes de plantas, há um
amor correspondido que se mostra no diálogo presente na canção. Por meio da linguagem cifrada e simbólica
da canção – um dos traços de Grande Sertão: Veredas - , o cego mostra a resposta a Riobaldo. O amor oculto e
protegido sob uma falsa aparência é desvendado por Borromeu, mas ainda escapa à percepção de Riobaldo. O
disfarce não revelado de Diadorim impossibilita-a de amar, num antagonismo em que sua face guerreira impede
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que a face feminina venha à luz, num amor jamais realizado. Justamente ao meter-se em armas, Diadorim
reencontra Riobaldo; paradoxalmente, contudo, é sua condição guerreira – com a ocultação de sua verdadeira
identidade – o que a incompatibiliza para sempre com o amor, em mais uma das ambigüidades que estruturam
a narrativa:
De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para
muito amar, sem gozo de amor... 16
O cerco começa a se fechar e Riobaldo decide afastar todos aqueles que aparentemente seriam inúteis
– no caso, o cego, o menino, e a mulher do Hermógenes – por não serem mãos-d’armas. Significativamente,
aqueles que não teriam utilidade imediata são justamente aqueles que se revelarão fundamentais para a evolução
de Riobaldo, pois os dois primeiros mostrarão ao jagunço a síntese necessária ao equilíbrio, numa lição de
vida, e a mulher do inimigo será a responsável pela decifração do segredo de Diadorim. Perto do paredão e
daquilo que viria a constituir o confronto final, o jagunço isola deliberadamente os três representantes da
exceção (mulher, cego e menino) diante de um código em que o matar e o morrer eram vistos com naturalidade.
Numa passagem repleta de símbolos, Riobaldo aproxima-se do momento crucial da obra – o confronto entre
Diadorim e Hermógenes:
O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho,
para ele davam tantas portas, por detrás delas tinham fechado a mulher, num cômodo. A chave estava na mão do
cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de entregar; rejeitei. – “Tem talha d’água, por
aqui?” – eu disse, eu tinha uma pressa desordenada, de certo. – “Diz que lá embaixo tem...” – foi o que o menino
Guirigó me deu resposta. Entendi que ele curtia sede, igualmente e querendo comigo ir – por seguro temia descer
sozinho a escada. E o cego Borromeu, também, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, mole, fazendo
desse rumor de quem termina de mastigar rapadura. Me enjoou. Mas ele não tinha comido alguma coisa. Não tive
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comigo: - “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me dá respeito e me agradece interesses de ter tomado
conta de você, e trazido em companhia minha, por todas as partes?!” Eu disse. Ele disse: - “Deus vos proteja, Chefe,
dê ademão por nós todos... E de tudo peço perdão...” Ele se ajoelhou. (...) porque esse homem, sem visão carnal, de valia
nenhuma, maldade minha era que tinha sido a trazida dele, de em desde o começo de lugar onde ele cumpria sua
vida.17
No fragmento acima, de forma ainda mais flagrante do que nos demais, há a presença de um discurso
modalizante que assinala o desnorteamento de Riobaldo em relação às questões mais prosaicas: tudo são
sugestões, especulações, e frases sem sentido. Borromeu, contudo, tem uma chave-mestra, que tenta entregar
a Riobaldo, que a rejeita, numa recusa coerente com a sua ignorância acerca das coisas que lhe são realmente
importantes. No plano da história, ele ainda não está pronto para determinadas revelações, que só farão
sentido posteriormente. Sobre a chave, diz Chevalier:
O simbolismo da chave está, evidentemente, relacionado com o seu duplo papel de abertura
e de fechamento. (...) No plano esotérico, possuir a chave significa ter sido iniciado. Indica não
só a entrada num lugar, cidade ou casa, mas acesso a um estado, morada espiritual, ou grau
iniciático. 18
Note-se que a chave, símbolo do conhecimento iniciático por excelência, é oferecida a Riobaldo pelo
cego, sem que ele aceite, metaforizando o seu despreparo para as respostas que deveria ter. Num lugar cheio
de portas, Borromeu tem uma chave-mestra – ou seja, aquela que abriria todas as portas –, oferecendo a
Riobaldo as respostas de que ele necessitava. Entretanto, este a recusa, numa sugestão simbólica de que ele
não estaria pronto para abrir as portas da consciência ou fazer suas escolhas, e enxergar a verdade.
Após a morte de Diadorim, Riobaldo, que havia desmaiado, volta a si com o cego e o menino esfregandoAnais do Congresso Nacional do Cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile
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lhe as mãos, ajudando-o a recobrar a consciência. A reação de ambos aos crespos do homem é expressiva, pois
sentem a dor de uma perda que poderia ter sido evitada, caso Riobaldo conhecesse a verdade. No que se refere
à apreensão do sentido da vida, talvez seja a passagem abaixo a mais elucidativa do romance, pois Borromeu
diz, textualmente, algo que Riobaldo só entenderá tempos mais tarde: o Diabo está dentro do homem, e o
sertão é cada um, pois as armadilhas e experiências são vivenciadas a cada dia, e é por meio de suas atitudes
que o homem transforma sua vida:
(...) O menino Guirigó – uma mão apertando as costas da outra, seguidos esses estremecimentos, repuxava a cara,
mas com os beiços abertos em dor, tudo uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os olhos.
(...) Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e, então,
eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo!... e dele disse somentes – S ... – Sertão ... Sertão...
Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os
braços e as mãos; feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal que perguntei:
- “Você é o Sertão?!”
- “Ossenhor perfeitamém, ossenhorperfeitamém... que sou é o cego Borromeu... Ossenhor meussenhor...” – ele
retorquiu.
- “Vôxe, uai! Não entendo...”, tartamelei.
Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual
assim todas as partes da minha cara, que tremiam(...). Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele estava no
aparvoado; mas não se abancando no banco; que melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nojo. Mas
nojo medo é, é não? 19
Após passar a narrativa inteira a repassar a própria vida para entender-lhe o sentido, Riobaldo conclui
que o sertão, lugar mítico de mistérios e revelações, encontra-se d