INSS 2177 - 4633 Periódico Científico dos
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INSS 2177 - 4633 Periódico Científico dos
INSS 2177 - 4633 alhqhj Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF Nº4 - jANEIRO/JUNHO 2012 Alethes Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF Alethes Periódico Científico dos Graduandos em Direito Conselho Editorial Dr. Alexandre Travessoni Gomes - UFMG Dr. Anditydas Soares de Moura Costa Matos - UFMG Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães - PUC-SP Dra. Cláudia Toledo - UFJF Dr. Denis Franco Silva - UFJF Dr. Marcos Vinício Chein Feres - UFJF Dr. Noel Struchiner - PUC-RIO Mestre Renato Chaves Ferreira - UFJF Dr. Thomas da Rosa de Bustamante - UFMG Editores Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes Victor Freitas Lopes Nunes Alethes Periódico Científico dos Graduandos em Direito UFJF Nº4 - Ano 3 Diagramação: Ana Carla Fagundes Capa: Don Quixote Autor: Honoré Daumier Data: 1868 Museu: Neue Pinakothek (nova pinacoteca, Munique, Alemanha) ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF.n.4.Vol. 3. (Janeiro/Junho 2012) - Juiz de Fora: DABC, 2012. Semestral. 1. Direito - Periódicos. ISSN 2177-4633 Normas para publicação da revista online: www.periodicoalethes.com.br Sumário Editorial_______________________________________________ 09 Artigos Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias Aplicadas ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito na UFJF Ângelo Amorim Medeiros___________________________________________ 11 Nulidade da sentença arbitral: o juízo arbitral e o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional Ariel de Abreu Cunha ____________________________________________ 35 A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário internacional Kalline Carvalho________________________________________________ 61 Sócrates e a ideia de lei no século V a.C. Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ________________________________ 77 O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de constitucionalidade Lucas Oliveira Lopes da Motta ______________________________________ 97 Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade contemporânea Mariana Salimena Pires __________________________________________ 119 Editorial com grande satisfação que a Alethes chega ao seu quarto número, resistindo às turbulências externas e até mesmo à displicência dos editores que aproveitam esse momento para se desculparem pelo atraso na periodicidade. Pela primeira vez o periódico traz apenas artigos de alunos da UFJF, devendo-se tal fato à fraca divulgação da chamada de artigos desta edição, de modo que a Alethes se orgulha de ter recebido as contribuições para este número mesmo diante de tantas adversidades. Coincidindo esta edição com um momento de greve dos professores em aproximadamente 95% das universidades federais, aproveito este editorial para relembrar as raízes deste periódico, expostas nos editoriais de seu primeiro número. Raízes que crescem e se multiplicam juntamente com a insatisfação perante o atual modelo de produção acadêmica do conhecimento. Que às justas reivindicações docentes se some o desejo de uma academia mais crítica, criativa e, consequentemente, menos conformista e reprodutora. Rogo que a universidade não se renda à verdade dada, mas assuma seu posto na batalha pela construção de uma humanidade consciente de sua capacidade de recriar a verdade e a realidade. É evidente que essa batalha se trava também dentro dos muros acadêmicos, havendo ainda grande clamor pela rendição do saber, da criatividade e da crítica. A promessa do conformismo é de que se aceitarmos a realidade como está, assimilando seus conteúdos para perpetuá-los, receberemos seu prêmio mais elevado, a autonomia financeira. Tal prêmio está longe de ser irrelevante, principalmente em uma realidade na qual a pobreza parece nos caçar como lobos ferozes, entretanto, tal promessa é falsa. A rendição não garante o sucesso econômico, garante apenas que o sujeito buscará tal sucesso em detrimento das infinitas possibilidades da existência, possibilidades que aos rendidos não passarão de utopias e devaneios. Cultivar as crenças utópicas e a realização dos devaneios parece-me o verdadeiro fim do Ensino Superior, e não matar os homens, fazendo-os renascer profissionais sem alma, sem arte, sem crítica. Neste contexto, dentre os ilustres artigos desta edição, ofereço destaque ao trabalho de Ângelo Amorim Medeiros, o graduando se debruçou sobre o universo educacional no qual se insere, lançando reflexões sobre o ensino jurídico na Faculdade de Direito da UFJF. Torçamos para que tal esforço estimule mais e mais estudantes a (re)pensarem não somente o que é a educação, mas o que ela pode e deve ser. Deste modo, creio que este periódico seja um pequeno elemento na construção de um mundo no qual profissionalismo não esteja desvencilhado das utopias, das artes e da crítica. Só assim poderemos garantir que as profissões sirvam aos homens e não os homens às profissões. É Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes Editor da Alethes - Aluno do Curso de Direito da UFJF ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 9 Artigos Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias Aplicadas ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito na UFJF Ângelo Amorim Medeiros¹ Resumo: O trabalho demonstra a crise atual do sistema de ensino jurídico brasileiro e aponta uma alternativa pedagógica testada no curso de Instituições de Direito da UFJF, baseada na teoria da sistematização coletiva do conhecimento, aliada a utilização de novas tecnologias aplicadas ao ensino. Palavras-chave: ensino jurídico, técnicas de ensino, novas tecnologias, sistematização coletiva do conhecimento. ¹Graduando em Direito pela UFJF. Foi monitor da matéria instituições de direito na Universidade Federal de Juiz de Fora no ano de 2011. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 11 Abstract: The work demonstrates the current crisis in the brazilian law education system and show a pedagogical alternative tested in a course of Institutions of Law in UFJF, based on the theory of collective systematization of the knowledge, coupled with the use of new technologies applied to education. Keywords: juridical teaching; teaching techniques; news technologies, collective systematization of knowledge. 12 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 1 .Advertências iniciais “A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original”. Albert Einsten. 1879-1955. Um artigo sobre técnicas de ensino do direito pode gerar estranheza ao leitor mais desavisado, pois apesar de a educação ser apontada como um dos principais pilares de desenvolvimento de uma sociedade, muito pouco se discute sobre como a tal educação ocorre, sobretudo, no campo jurídico. Existem inúmeros congressos sobre direito civil, direito penal, etc, mas quase não se tem notícia de congressos sobre pedagogia jurídica. Para muitos (inclusive professores) é como se o tema nem existisse. Mas ele existe e é tão relevante quanto as discussões relativas ao conteúdo, afinal, como se espera que se possa melhorar o direito, se não se educa de forma adequada os seus futuros profissionais? Pode parecer estranho também que numa revista destinada à publicação de artigos de graduandos de direito, apareça um trabalho sobre pedagogia jurídica. Para muitos pode parecer que está tentando se ensinar um padre a rezar missa (como no ditado popular); acontece, no entanto, que esse artigo trata-se de um relato de uma experiência pedagógica ocorrida na Faculdade de Direito da UFJF escrito por um monitor da matéria, o que propiciou enxergar a questão tanto sobre o prisma do professor, quanto do aluno, pois, tal monitor, assistiu às aulas e tinha maior liberdade de conversar com os alunos. Assim, se a imparcialidade é algo inatingível, pelo menos se pode dizer que esse trabalho possui uma visão bilateral sobre o tema, diferente da maioria dos artigos tradicionais. Por fim, como última advertência, é necessário que fique claro que esse trabalho não pretende dar uma resposta pronta e acabada sobre a questão. E também não visa ofender ninguém e nem faz alusão direta a nenhum professor de forma pejorativa. Este é um trabalho científico e, como tal, destina-se a aquecer o debate sobre qual a melhor forma de ensinar o direito, dando uma nova visão sobre o tema, tentando desconstruir mitos, abrindo as mentes de todos que se importam com o futuro do nosso sistema jurídico. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 13 2 . Aspectos históricos “Não se conhece completamente uma ciência enquanto não se souber da sua história”. Auguste Comte. 1798-1857. Segundo Sérgio Rodriguez Martinez (MARTINEZ, 2003, pág. 1) a evolução histórica do ensino jurídico no Brasil pode ser dividida em três fases. A primeira fase, denominada liberal, é aquela na qual o ensino jurídico se inicia no país. Situa-se no período do Brasil Império, na formação do Estado brasileiro. Os filhos de fazendeiros que haviam estudado direito em Coimbra pressionavam o governo que, em 1827, instituiu os primeiros cursos de direito do país (Olinda e São Paulo). Como a elite intelectual brasileira havia se formado em Coimbra, nossos primeiros cursos foram extremamente influenciados pelo liberalismo português, que dava especial ênfase aos conteúdos privatísticos filiando-se aos ideais do iluminismo. Quanto à forma, predominava o método dedutivo expositivo caracterizado pela exposição oral dos conteúdos pelo professor. Com a proclamação da república e com o fortalecimento dos cafeicultores, o país passou por intensas transformações que, no meio jurídico, se traduziu em uma quebra do monopólio do ensino das duas faculdades criadas em 1827. Ocorria no Brasil um processo de industrialização tardia que demandava um maior número de profissionais jurídicos. Influenciado pelo discurso liberal, o Estado não interviu e foram criadas inúmeras faculdades nesse período, gerando um excesso de profissionais e cunhando a expressão “fábrica de bacharéis”. Houve também um maior afastamento do direito eclesiástico e uma formação mais voltada para a prática, tendo em vista o excesso de profissionais e a crença na seleção natural do mercado. Na década de 30, com a ascensão do Welfare Estate e da burguesia, o país experimentou uma industrialização mais efetiva, iniciando assim a fase social. Do ponto de vista do ensino, havia o movimento da Escola Nova que pregava mudanças metodológicas. Porém o modelo tradicional de ensino prevaleceu também nesse período, apesar do movimento da Escola Nova ter gerado certa repercussão social. Do ponto de 14 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 vista do conteúdo, houve uma modificação em virtude da intensa codificação experimentada pelo Brasil no período. Com a ditadura militar, a tudo isso se acrescentou uma tendência tecnicista aniquiladora de qualquer pensamento crítico no interior das salas de aula. A terceira fase, chamada neoliberal, tem como marco a promulgação da Constituição de 1988. Nossa Magna Carta trouxe uma série de modificações estruturais ao direito nacional, como a implantação de um Estado Democrático de Direito, trazendo a tona diversas demandas inexistentes no período ditatorial, o que passou a exigir profissionais do direito diferenciados. Dessa maneira, a questão da formação do jurista começou a ser levada mais a sério. A OAB iniciou um estudo nacional sobre o tema por meio de sua comissão de ensino jurídico. Nessa esteira, surgiu também a comissão de especialistas em ensino jurídico da Sesu/MEC. De todos esses estudos resultou a portaria 1886/94 do MEC revogando a resolução CFE n.03/72 que desde 1972 estabelecia as diretrizes curriculares mínimas dos cursos de Direito no Brasil. Nessa fase criou-se também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9394/96) Exame Nacional dos Cursos (lei 9131/95). Houve uma mudança de paradigma. Enfim o intervencionismo estatal chegava nessa seara (MARTINEZ, pág. 12, 2003). Com tais mudanças houve uma tentativa de equilibrar o tripé ensino/pesquisa/extensão passando-se a exigir das faculdades de direito: um acervo literário de no mínimo dez mil volumes de obras jurídicas, criação do núcleo de prática jurídica, obrigatoriedade de monografia ao final do curso e de cumprimento de estágio de prática jurídica. Apesar de todas essas modificações um ponto continuou inalterado: a metodologia de ensino. A pedagogia tradicional continuou amplamente dominante nas cátedras jurídicas. 3. Situação atual do ensino jurídico do Brasil e análise da pedagogia tradicional “Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e progressivo”.Franz Kafka. 1883-1924. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 15 Verifica-se atualmente uma proliferação desenfreada de cursos de direito formando-se uma massa de profissionais através da utilização de uma metodologia de ensino que queda-se inalterada desde o nosso primeiro curso de direito em 1827. Tal metodologia consiste em uma exposição oral do conteúdo por parte do professor na qual é passada a regra geral acerca do conteúdo nos moldes dos manuais jurídicos. Aos alunos é permitido ouvir, anotar e eventualmente fazerem algumas perguntas. As avaliações consistem em provas escritas, na qual exige se do aluno que ele repita o conteúdo exposto em sala de aula pelo professor. A nota varia de acordo com o grau de espelhamento da matéria. Quanto mais a resposta se aproxima do conteúdo exposto, maior a nota e vice-versa. É claro que existem variantes desse modelo, mas em geral é esse o tipo tradicional. A aplicação do modelo tradicional de ensino do direito traz conseqüências nefastas. O aluno que chega a universidade animado após assistir inúmeros filmes de advogados, em que os personagens fazem intensas reflexões para ao fim chegar a uma tese inovadora e inteligente, logo se depara com uma realidade alienante, na qual o professor faz uma pregação em que não há espaço para críticas. Quando o aluno enfim toma coragem de intervir na aula é desestimulado pelo professor que, ou reclama que não vai conseguir terminar o conteúdo, ou se utiliza de algum subterfúgio como respostas irônicas, desrespeitosas, etc. Não há espaço para o diálogo em sala de aula entre professores e alunos. Ocorre o que Paulo Freire chama de educação bancária: “Eis aí a concepção 'bancária' da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção 'bancaria' da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também”. (FREIRE, pág. 33, 1987). 16 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Frustrado em sala de aula o aluno então foge para os livros e lá descobre um mundo em que ainda há espaço para o pensamento. Estuda a matéria e chega à prova com um grande arcabouço teórico. Faz a prova com tranqüilidade, mas quando vem o resultado, se decepciona mais uma vez. Após uma dissertação bem fundamentada, bem redigida sobre um assunto objeto de análise no teste, recebe uma péssima nota. Ao perguntar para os colegas sobre o que aconteceu, obtém respostas do tipo: “Você não podia ter feito dessa maneira. Não é a posição do professor. Você não leu o caderno?”. Esse aluno começa então a anotar a matéria de forma sucinta para confrontar com o arcabouço teórico estudado, o que resulta em nova frustração. Não adianta apenas aludir ao que foi dito em aula para se obter uma boa nota, mas deve-se repetir “ipsi literis” o conteúdo, ou melhor, não importa o quanto o aluno domine a matéria, o que importa é o quanto consegue repetir o que foi dito em sala de aula. Pouco a pouco, o aluno vai sendo desestimulado a pesquisar sobre os temas tratados em aula na doutrina, ou melhor, na doutrina oficial. Como existem poucas pessoas que têm a capacidade de colocar no caderno algo muito próximo de uma transcrição da aula, logo os alunos recorrem à chamada “doutrina do caderno”. Tal doutrina consiste em xerocar um caderno de um colega de classe que possui grande habilidade de copiar. Assim, indivíduos vão se tornando famosos por seus cadernos. Renomados juristas brasileiros e internacionais vão sendo abandonados para que o aluno se dedique ao estudo do caderno do João, da Maria, etc. Alguns desses cadernos são tão bem feitos que são xerocopiados por alunos de outras salas. Outros são usados todo período pelos novos alunos, que fazem a mesma matéria com o mesmo professor. O conteúdo passado não é alterado, por mais que pareça estranho, apesar da mutabilidade constante do direito. A situação chegou a tal ponto que ao lado das pastas de determinados professores que disponibilizam textos, há também pastas compostas exclusivamente de cadernos de um determinado aluno. Há casos em que o indivíduo já deixou a faculdade há muito tempo e mesmo assim seu caderno ainda é objeto de estudos. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 17 Ao final de todo esse processo, a faculdade, que deveria ser um centro de difusão do conhecimento, acaba sendo um centro formador de memorizadores de caderno, afinal, não havendo estímulo para estudar em outras fontes e até desencorajamento em tal empreitada, o que ocorre é que os livros vão sendo esquecidos em detrimento do caderno. No futuro, os alunos percebem que não dominam o conteúdo, apenas decoraram o caderno e precisam aprender o que não aprenderam em cinco anos para conseguir a aprovação na OAB e em concursos públicos ou para ser um bom profissional. Outros ainda conseguem entender isso antes de se formar e estudam a matéria paralelamente ao estudo do caderno para se prepararem para os concursos, principalmente. Os alunos que conseguem vislumbrar que existe algo além das notas da faculdade, logo começam a refletir sobre a própria função da faculdade. Afinal, se estudam uma coisa para passar nas provas e outra para ter êxito profissional, não seria então a dita faculdade um entrave para o seu pleno desenvolvimento? Essa pergunta vai ecoando dentro da cabeça do indivíduo e, aos poucos, vai gerando uma má vontade com as aulas. Pois, basta ler o caderno que a aprovação está garantida. Quanto ao conhecimento, esse deve ser obtido por conta própria do aluno. Assim, são criados bordões como: “A faculdade é uma grande chamada”. É triste, mas é assim que muitos alunos vêem a faculdade. E ao fim e ao cabo, acaba sendo a obrigatoriedade do percentual mínimo de freqüência, o único motivo do aluno estar em sala de aula. Porém tal aluno, insatisfeito com o ensino ofertado, acaba estando em aula apenas corporalmente, pois sua atenção está voltada para outro plano. Assim, forma-se uma representação teatral, na qual o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende (WERNECK, pág. 15, 1992). Outro fenômeno interessante que ocorre atualmente e também têm uma grande influência sobre a crise hodierna do ensino jurídico é o paradoxo do monopólio do conhecimento não monopolizado. Isso ocorre da seguinte forma. Os professores chegam à classe e lecionam a matéria como se fossem as maiores autoridades no assunto, os donos da verdade. É o que Paulo Freire chama de alienação da ignorância: 18 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 “Na visão 'bancária' da educação, o 'saber' é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro”. (FREIRE, pág. 33, 1987). Isso provavelmente se deve ao fato de que na época em que tais professores eram alunos, realmente, o conhecimento e a informação era algo de difícil acesso. Os livros eram mais caros, mais escassos, não circulavam com a facilidade que circulam hoje, não havia a rede mundial de computadores, não era comum que jovens fizessem viagens ao exterior, entre outros motivos. Mas os tempos são outros. Vivemos na era digital. Quem está sentada nas cadeiras universitárias é a geração internet, a geração tablet. Os professores só ainda não se conscientizaram disso. Não há mais o monopólio do conhecimento por parte dos professores. Existem muito mais bibliotecas e livrarias que antigamente. Pode-se ter acesso a um livro de outro país sem sair de casa, através de uma compra pela internet. A rede mundial de computadores, aliás, acabou definitivamente com esse monopólio. O aluno de qualquer faculdade de direito do país pode ter acesso a uma imensa gama de materiais para o estudo do direito. Pode assistir aulas, de renomados juristas, através de portais como o “Saber Direito”. Pode, inclusive, assistir palestras de especialistas de outros países como ocorre com algumas aulas de Harvard que estão disponíveis no “You Tube”. Além disso, ainda é possível fazer o download de inúmeros livros e vídeos, de forma lícita e ilícita. Essa ampliação não se deu apenas no que tange a informação jurídica. Enquanto o professor discute sobre um determinado assunto em sala de aula, os alunos podem saber as últimas notícias ocorridas no mundo com poucos toques na tela de seus tablets e smartphones. Professores que tiveram contato com o computador aos 30, 40, 50 anos agora se deparam com alunos que foram alfabetizados por programas de computador. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 19 Professores que viajaram uma vez para o exterior, alguns apenas a título de aperfeiçoamento acadêmico em um país vizinho, em toda sua vida, agora têm contato com alunos poliglotas que fazem cerca de uma viagem internacional por ano. Tudo isso aumenta mais ainda o sentimento do aluno da prejudicialidade da faculdade no seu desenvolvimento profissional. Além disso, fica claro outro problema: o descompasso entre professor e aluno no que tange a utilização dos recursos tecnológicos. Enquanto o segundo se vale de todas as tecnologias acima mencionadas, o primeiro continua desempenhando suas atividades nos moldes medievais. Essa questão se assemelha a um episódio da segunda guerra mundial: a invasão da Polônia por parte da Alemanha. Enquanto os alemães dispunham dos recursos bélicos mais atuais da época, com a utilização de potentes armas de fogo, tanques de guerra, aviões; os poloneses ainda se valiam de cavalos e sabres. A única diferença é que agora o opressor é que está com os recursos ultrapassados e o oprimido com as armas avançadas. Nesse capítulo, nos parágrafos acima, foram analisados os problemas da aplicação do método tradicional de ensino no que se refere a sua característica expositiva. Primeiro, foi colocado a questão da doutrina do caderno e do ensino bancário como causadores da sensação de inutilidade dos professores. No segundo, a abordagem se deu em torno da questão da dificuldade de se aceitar um ensino que não abre espaço para o diálogo entre alunos e professores, baseando na idéia paradoxal do monopólio do conhecimento não monopolizado e na alienação da ignorância. Porém há outro problema na metodologia tradicional de ensino. É que ela é em sua essência dedutiva. O professor passa as regras gerais aos alunos e deixa com que esses deduzam o restante. O grande problema disso é que no direito tal característica se traduz na exposição do teor das leis e das doutrinas iluminadoras de tal teor, ficando para os alunos a tarefa de aplicação da lei ao caso (na realidade a aplicação do direito, pois nem sempre há uma disposição legal expressa reguladora do caso). Acontece, no entanto, que a aplicação do direito é o momento mais complexo do fenômeno jurídico. É nessa hora que o jurista volta os olhos para disposições legais de 20 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 pouca mutabilidade, para resolver problemas de uma realidade social que se modifica a todo tempo e que a cada hora nos desafia com seu repertório interminável. Dessa maneira, o aluno fica sozinho exatamente no momento em que mais precisaria de ajuda, reforçando mais uma vez a idéia de inutilidade do professor e da faculdade. Há outro problema, a exposição tradicional dedutiva da matéria gera um afastamento da realidade comprometendo inclusive a discussão sobre as questões legais, tendo em vista que as modernas teorias interpretativas do direito preconizam que as modificações do substrato fático, que embasa as disposições legais, operam alterações na construção do sentido de tais disposições, isto é, uma mudança social pode acarretar em uma mudança normativa, mesmo sem qualquer alteração formal legal. Esse terceiro problema é um dos maiores motivos para a distinção comum feita pelos alunos entre teoria e prática. Distinção que não passa de ideologia que é alimentada tanto pelos ditos teóricos (cientistas afastados da realidade) quanto pelos práticos (operadores do direito que possuem pouco conhecimento jurídico e só conseguem desempenhar tarefas repetitivas). Não faz nenhum sentido tal distinção na ciência jurídica, afinal, é uma ciência voltada para a prática, para a realidade social. Sem tal realidade não vive, é estéril. Mas tal distinção continua ecoando e com isso outro bordão comum da faculdade é: “Eu só aprendo direito civil no estágio”. É bastante compreensível isso, afinal, o direito civil é o que regula a vida privada do cidadão, onde as mudanças são comuns e, por isso, as explanações teóricas afastadas da realidade não são suficientes para ensinar ao aluno a sua correta aplicação. Aprender é mais que decorar conceitos, é saber que tais conceitos têm uma funcionalidade intrínseca e saber qual é tal funcionalidade. Aprender é ter a capacidade de contextualizar o arcabouço teórico armazenado. Recorrendo-se mais uma vez ao ilustre pedagogo e filósofo brasileiro: “Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bemcomportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 21 inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é 'encher' os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la”. (FREIRE, pág. 33, 1987). 4 . A teoria da construção coletiva do conhecimento “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Paulo Freire. 1921-1927. Considerando esse quadro de crise do ensino jurídico, seria possível alguma alternativa para um revigoramento das faculdades de direito? Tentando dar uma resposta a essa pergunta, em 2008, num artigo escrito na revista brasileira de estudos políticos, Marcos Vinícius Chein Feres propôs uma nova metodologia de ensino jurídico: a sistematização coletiva do conhecimento. Tal teoria parte do pressuposto de que há no modelo atual de ensino uma lógica de opressão, na qual o professor oprime e o aluno é oprimido, nos moldes descritos no capítulo anterior. Considera ainda a questão do ensino descontextualizado transmitido tradicionalmente e que há uma relação de verticalidade impositiva do conhecimento na relação professor-aluno (FERES, pág. 209, 2008). Como solução propõe a teoria da sistematização coletiva do conhecimento, baseando-se nas tendências da escola sociopolítica de pedagogia, especificamente na teoria como expressão da ação prática. A teoria da sistematização coletiva do conhecimento propõe uma reestruturação do processo de ensino, em que o aluno deixa de ser visto como um mero receptáculo de 22 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 informações e passa a ser visto como um sujeito ativo do processo de aprendizagem. É interessante como tal teoria ataca os três grandes problemas apresentados no capítulo anterior de forma direta. No que tange a doutrina do caderno e o ensino bancário, a metodologia exposta propõe um ensino dialógico em que o aluno tem voz para expressar suas opiniões sobre o conteúdo, pois “a sistematização coletiva do conhecimento importa-se muito mais em incitar a discussão, a reflexão, tomando-se por norte e por fim a prática” (FERES, pág. 215, 2008). Como há um incentivo a argumentação, o aluno não é levado a procurar respostas fáceis encontradas na doutrina do caderno, pois sabe que não é isso que a matéria exige dele. Em relação ao paradoxo do conhecimento não monopolizado e na alienação da ignorância, há uma reformulação do papel da escola que passa a ser “entendida não como veículo de informação, mas como meio a atingir os conteúdos” (FERES, pág. 215, 2008). Ocorre uma quebra da verticalidade impositiva e cabe ao professor transformar a sala de aula no ambiente mais propício possível a circulação do conhecimento, tornando possível a sua coletivização. Não compete mais ao professor o monopólio da exposição da matéria, todos terão oportunidade na construção do conhecimento, mas ao educador lhe é conferido o poder diretivo sobre a aula, viabilizando assim o processo argumentativo. Daí vem à comparação entre a sistematização coletiva do conhecimento e a teoria do agir comunicativa habermasiana (FERES, pág. 216, 2008). No que se refere ao problema do afastamento da realidade e da descontextualização da matéria, a sistematização coletiva do conhecimento propõe que “o conhecimento fundamenta-se e ocorre na prática, havendo, pois, verdadeira unidade entre prática e teoria” (FERES, pág. 215, 2008), afinal: “Os alunos, assim como os professores, trazem para a discussão as suas visões de mundo, os diversos problemas práticos de vida que devem ser abordados a partir do paradigma da teoria como expressão da ação prática. A teoria, neste ponto, encontra-se totalmente dependente da ação prática de maneira que ambas estarão ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 23 sempre numa constante interação e num infindável processo de retroalimentação”. (FERES, pág. 218, 2008). A sistematização coletiva do conhecimento propõe uma verdadeira horizontalização da relação aluno-professor visando à emancipação do aluno, em detrimento da alienação perpetrada pela forma pedagógica. Busca formar mais que simples “operadores do direito”, mas sim, sujeitos pensantes, críticos, reflexivos que sejam capazes de criar quando se depararem com uma nova situação, que sejam mais que meros reprodutores de dogmas irrefletidos. Mais que isso, a sistematização coletiva do conhecimento respeita o aluno, não o idiotiza, acredita em seu potencial para enriquecer a discussão, o que transforma a aula em um verdadeiro exemplo de como uma democracia deve funcionar. Afinal, cumpre salientar que, como diria Sêneca, no ato de educar “os progressos obtidos por meio do ensino são lentos; já os obtidos por meio de exemplos são mais imediatos e eficazes”. 5 .Novas tecnologias aplicadas ao contexto educacional “Se você acha que educação é cara, experimente a ignorância”. Derek Bok. 1930-?. Baseando-se em Larry Cungan, Paulo Gileno Cysneiros (CYSNEIROS, pág. 15, 1999) defende que a história da aplicação de novas tecnologias em sala de aula é uma história de demagogia e insucessos. Tal história é marcada por ciclos de quatro ou cinco fases. A primeira fase se dá logo que se tem notícia de uma nova tecnologia que pode ser aplicada ao ensino. Os educadores, através de pesquisas, decretam, sem pestanejar, que em breve nenhuma escola viverá sem tal tecnologia. Assim, se inicia um processo de massificação de tais tecnologias no contexto escolar por meio de políticas públicas, 24 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 caracterizando a segunda fase. Na terceira fase, os professores, extremamente apegados a maneira tradicional de lecionar o conteúdo, não utilizam a nova tecnologia que cai no esquecimento no que se refere ao contexto educacional. A quarta fase é caracterizada por novas pesquisas tentando descobrir por que a adoção de tais tecnologias não se deu de forma adequada. A aplicação de novas tecnologias no contexto educacional é marcada também pelo fenômeno que Paulo Gileno Cysneiros denomina inovação conservadora (CYSNEIROS, pág. 15, 1999), que é caracterizado pela utilização de uma nova ferramenta tecnológica em uma tarefa que se poderia fazer facilmente sem esse recurso. Como explica o referido educador: “São aplicações da tecnologia que não exploram os recursos únicos da ferramenta e não mexem qualitativamente com a rotina da escola, do professor ou do aluno, aparentando mudanças substantivas, quando na realidade apenas mudam-se aparências”. (CYSNEIROS, pág. 16, 1999). Tais tecnologias são utilizadas de forma irrefletida, sem melhorar a qualidade da aula, contribuindo como mais um argumento para aqueles professores tradicionais que se mostram resistentes a adoção de tais tecnologias. A título de exemplo, podemos colocar a utilização de computadores para tarefas que poderiam ser desempenhadas pelo caderno, pela lousa, etc. Porém, isto é um grande equívoco, pois a educação mediada pela tecnologia pode ser muito mais eficaz do que a tradicional, basta que a tecnologia encontre-se em boas mãos. Afinal: ²Um exemplo ocorrido na Universidade Federal de Juiz de Fora mostra como a participação dos alunos melhora significativamente à aula. Na matéria de Introdução ao Estudo do Direito, a professora Claudia Toledo propôs um trabalho em que os alunos deveriam se organizar em grupos para fazerem o papel de advogados ou de promotores de um caso fictício (o caso dos exploradores de caverna). Foi um dos poucos momentos na faculdade em que a turma realmente se empolgou com o curso, discutindo fora de sala de aula, envolvendo familiares, pesquisando, etc. No momento da discussão, o debate ficou tão acalorado que os alunos poderiam até ter ofendido uns aos outros caso não fosse a presença da professora. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 25 “Um bisturi a laser não transforma um médico em bom cirurgião, embora um bom cirurgião possa fazer muito mais se dispuser da melhor tecnologia médica, em contextos apropriados”. (CYSNEIROS, pág. 18, 1999). 7 . A experiência da matéria Instituições de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora “A boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor”. Antônio Vieira. 1608- 1697. Sempre que uma nova teoria pedagógica surge, logo se levantam questionamentos acerca da possibilidade de implementação desta. No caso da sistematização coletiva do conhecimento não poderia ser diferente. Ocorre, entretanto, que tal metodologia já havia sido aplicada antes pelo professor Marcos Vinícius Chein Feres, como é relatado no em seu trabalho sobre o tema (FERES, nota nº 6, pág. 220, 2008). Porém ainda não havia sido testada combinada com a utilização de novas tecnologias educacionais. Tal se deu em 2011, na disciplina Instituições de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, por um grupo de professores sobre a coordenação do educador acima referido. A disciplina foi lecionada a alunos dos cursos de direito e de diversos outros cursos como administração e turismo. Apesar de não ser objeto do presente estudo, o conteúdo da disciplina caracterizava-se em transmitir ao aluno conceitos centrais da teoria do direito. Porém, é do ponto de vista da forma, da metodologia empregada, que tal disciplina mostra-se realmente inovadora. A sistematização coletiva do conhecimento foi efetivamente empregada e houve uma utilização inteligente da tecnologia (não uma inovação conservadora) na facilitação da aprendizagem. 26 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 As aulas eram ministradas em três horas por semana presenciais e em torno de duas horas não presenciais. O conteúdo não presencial era passado através de uma plataforma denominada moodle, disponível a todos os alunos da graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora através da internet. A aula seguia um planejamento que garantia ao aluno o conhecimento das regras do jogo desde o início. O estruturamento das aulas se dava da seguinte forma. Primeiro, era disponibilizado na plataforma moodle o texto base da aula. Os alunos liam o texto antes de vir à aula presencial. Dentro de sala, na primeira metade da aula, era transmitido aos alunos algum filme que tivesse uma relação com o conteúdo do texto disponibilizado na plataforma. Após, os professores faziam questionamentos aos alunos acerca de possíveis relações entre filme e texto. Essas respostas dos alunos eram avaliadas, o que funcionava como um mecanismo de motivação para os alunos efetivamente lerem o conteúdo da plataforma. Na seqüência, os professores faziam uma síntese daquilo que foi discutido, traziam novos argumentos a discussão e respondiam perguntas. Após o término da aula presencial, iniciava na plataforma moodle a segunda parte da aula não presencial (a primeira era a leitura do texto base). Os alunos deveriam fazer fóruns, ou seja, postar considerações acerca do discutido em sala de aula e wikis, dissertações coletivas acerca do tema discutido na aula. Tais atividades também eram avaliadas. A avaliação dos alunos se dava por quatro formas. Primeiro: avaliação da participação em sala de aula. Segundo: avaliação da participação em wikis e fóruns. Terceiro: avaliação através de uma auto-avaliação ao fim do curso. Quarto: avaliação através de prova final. A estruturação da aula presencial vai ao encontro de tudo o que foi exposto neste trabalho. Em primeiro lugar é colocado para o aluno um texto-base. Não é um texto extenso sobre o assunto, mas apenas algo que dará um norte a discussão. Isso é bastante interessante, pois permite que o aluno que queira alçar vôos mais altos na matéria tenha liberdade de fazê-lo da forma que preferir, pois a base já foi alcançada. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 27 Em segundo lugar, a transmissão do filme na aula é fundamental. Já existem vários trabalhos sobre direito e cinema, mas a maioria defende a criação de uma matéria específica para tal ou um congresso com essa finalidade. Mas na disciplina sob análise, o filme faz parte da aula, tendo a importantíssima função de contextualização do conteúdo estudado no texto base, superando assim aquela dificuldade apontada no capítulo 3 referente ao distanciamento da realidade. Mas essa não é a única vantagem. O filme quebra a monotonia das aulas e, em muitos momentos, toca o aluno sentimentalmente, facilitando extremamente o aprendizado, pois, nas palavras do cineasta sueco Ingmar Bergman: “Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz; vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos escuros de nossa alma.” Assim, prepara-se o terreno para a discussão logo após. Quanto ao momento em que os alunos são questionados, não é preciso dissertar muito para mostrar como o mesmo é valioso didaticamente. É a aplicação mais direta da teoria da sistematização coletiva do conhecimento. Os alunos contribuem ativamente no processo de ensino, trazendo informações que os professores desconheciam e, em muitos momentos, fazem questionamentos provocadores transformando à aula num terreno fértil para o crescimento do conhecimento. Mas não só isso. É uma atividade importante para o desenvolvimento do aluno. Percebe-se nas primeiras aulas certa vergonha dos alunos ao serem questionados. Mas com o tempo, isso diminui sensivelmente mostrando que a aula, além de ter transmitido o conhecimento técnico, contribuiu no desenvolvimento da habilidade de exposição oral, que é extremamente valiosa no ambiente de trabalho e em outros campos. Quanto ao momento final, em que o professor faz uma síntese do conteúdo, mostra-se que tal expediente dá um norte ao aluno e que contribui para a sua auto-estima, tendo em vista que este percebe que a parte central do conteúdo já foi exposta no momento anterior pelo próprio aluno. Vale lembrar ainda, que muitas vezes os professores colocam novos questionamentos sem, contudo, oferecerem respostas, fazendo com que a discussão 28 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 extrapole as paredes da sala de aula. A aula não presencial também tem uma grande importância. Funciona ao mesmo tempo como momento de aprendizagem e de avaliação. Os alunos, ao fazerem os fóruns, normalmente lêem os comentários dos seus colegas de mesmo grupo (a sala é dividida em grupos para facilitar o processo), o que contribui para o aprendizado. Há também nos fóruns uma preocupação em desenvolver a capacidade de exposição escrita. No que toca as wikis, observa-se uma preocupação com o desenvolvimento da habilidade de trabalhar em grupo, além das habilidades já mencionadas no fórum. O mais relevante dessa é que substitui de forma muito inteligente o tradicional trabalho em grupo a ser feito em casa e posteriormente apresentado em sala. Os alunos podem fazer o trabalho em grupo sem se reunir e principalmente não há como burlar a atividade delegando todas as funções a apenas um membro, pois, a plataforma moddle permite que o avaliador individualize a contribuição de cada um no trabalho em grupo, excluindo aqueles que não participaram ou aqueles que tiveram participações irrisórias. Do ponto de vista da avaliação, além do maior controle acima mencionado, essa forma diluída, após cada aula, naturaliza o processo avaliativo, transformando-o em uma extensão da aula e num momento de fixação e aplicação do conteúdo. Em relação ao processo avaliativo, além dos comentários feitos anteriormente, pode-se colocar também a questão referente à auto-avaliação. Com esta atividade o aluno é colocado frente a si mesmo, tendo que se avaliar de forma motivada, o que transforma tal avaliação em um momento de reflexão, autoconhecimento e crescimento (mesmo que o aluno não seja sincero na atividade, internamente ele fará um julgamento de si mesmo). No que tange à prova final, foge-se também da tradição de suplício ao aluno e de repetição do conteúdo do caderno, colocando-se um filme antes da prova (ou na prova dependendo do referencial) que servirá de base desta avaliação. Ao avaliado é exigido uma dissertação que demonstre a sua capacidade de contextualização do conteúdo aprendido ao longo do curso, fazendo relações entre este e a mídia apresentada. ³Isso pode ser observado facilmente pela leitura dos fóruns. Em vários momentos fazem uma expressa alusão ao comentário do colega. Alguns manifestam, inclusive, a sua concordância ou discordância. Em alguns momentos ocorrem até pequenos debates. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 29 Ao final, observa-se uma grande diferença na maioria dos alunos. Muitos se mostram pessoas mais seguras ao falar. Muitos demonstram um grau muito maior de politização4 . Outros ficam extremamente agradecidos 5 aos professores afirmando que pela primeira vez foram realmente respeitados na faculdade 6. Alunos de cursos não jurídicos admitem que perderam o preconceito que tinham em relação ao direito, pois o viam, anteriormente, como um curso extremamente monótono. Enfim, aqueles que participam da aula (aqueles que são aprovados pela freqüência, pois basta estar em aula para participar) sofrem algum tipo de modificação. Todos se envolvem, mesmo aqueles, aparentemente a minoria, que dizem não ter aprovado a metodologia utilizada. 8 . Conclusão “Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito”. William Blake. 1757-1827. Se a metodologia tradicional apresenta-se tão defasada, e a sistematização coletiva do conhecimento mostra-se como uma alternativa extremamente viável, como demonstrado no capítulo precedente, existe o risco de que tal metodologia caia no esquecimento? Muitas discussões em sala de aula acabam ficando tão inflamadas que em alguns alunos é despertado um lado político até então desconhecido. Assim, uma discussão sobre cotas raciais, por exemplo, acaba levando alunos a se envolverem em movimentos pela defesa da igualdade racial, como ocorreu nessa experiência relatada. Quando acaba o horário, os alunos sempre querem prorrogar a aula fazendo perguntas aos professores. 5 Na turma de Instituições do segundo semestre de 2011 havia um aluno americano que estava fazendo intercâmbio no Brasil. Ao fim do curso, o rapaz agradeceu aos professores afirmando que foi a primeira aula brasileira que ele gostou. 6 Vários alunos de outros cursos agradecem por não terem sido tratados como alunos inferiores, afirmando que essa é uma prática muito comum quando um professor é obrigado a lecionar a outro departamento. 4 30 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 “Perguntaram a um viajante que havia percorrido muitas regiões e nações, além de vários continentes, qual era a qualidade que havia encontrado em toda parte nos homens; respondeu: certa propensão à preguiça”. (Nietzsche, Pág. 15, 2008) Infelizmente a preguiça pode ser um grande entrave a evolução do ensino jurídico. Professores que há anos lecionam suas aulas da mesma forma, não vão sair da zona de conforto que atualmente se encontram, mesmo que o modelo vigente seja inútil. Um segundo motivo para tal, é o medo do novo. É também muito comum as pessoas temerem o desconhecido. Ás vezes, tal medo é disfarçado sobre argumentos falaciosos que nada mais são que tentativas desesperadas de desqualificar aqueles que têm coragem de mudar, de evoluir. Mas o motivo mais forte talvez seja a resistência dos carismáticos e inteligentes. Existem pessoas absurdamente carismáticas que poderiam ser grandes políticos, pastores, padres, telecomunicadores, mas optaram por ser professor. Esses indivíduos conseguem dar aulas engraçadas, prazerosas e conseguem obter um nível interessante de aprendizado. Pessoas assim são sempre apontados como exemplo de sucesso da metodologia tradicional, tanto pelos preguiçosos, quantos pelos medrosos, sendo a principal arma destes. Ocorre, todavia, que tais indivíduos carismáticos são a exceção, a minoria. Tais professores realmente conseguem dar uma boa aula independentemente do método adotado. Mas e quanto à grande maioria que não possui tal dom? Uma das grandes vantagens da sistematização coletiva do conhecimento é que ela não exige qualquer habilidade específica do professor. O indivíduo que acabou de formar na faculdade, sem grandes conhecimentos sobre a matéria, sem carisma, pode conseguir dar uma excelente aula basta que seja esforçado, basta que tenha bastante zelo na preparação da aula, buscando filmes e casos interessantes para chamar a atenção do aluno, facilitando o processo de coletivização do conhecimento. Enfim, a única exigência que se faz do professor é que esse respeite o aluno e tenha ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 31 responsabilidade no desempenho de sua função. Não é isto o mínimo que se deva esperar de um professor? Deve-se lembrar ainda que a estruturação da aula utilizada conforme a experiência relatada neste artigo, não é a única forma de aplicação da sistematização coletiva do conhecimento e nem a única forma de utilização de tecnologia no contexto educacional, sem cair no perigo da dita inovação conservadora. É apenas um exemplo de sucesso, mas cada professor pode fazer as suas determinadas adaptações para ajustar tal metodologia com o tipo de matéria lecionada. O que não pode mais ocorrer é a insistência em uma forma de ensino totalmente defasada e que não cumpre minimamente a sua função. Será visto nos próximos anos suntuosos investimentos na preparação da infra-estrutura do país para as olimpíadas. Mas, infelizmente, faltará ao nosso país o mais importante: atletas. Pois, apesar de inúmeras escolas públicas possuírem quadras e professores de educação física, verifica-se que o Brasil não forma grandes atletas em suas escolas. Aqueles que conseguem se tornar atletas de elite, o fazem através do esforço pessoal. A explicação pode ser encontrada facilmente, basta que se questione um menino que freqüenta o ensino fundamental acerca da sua aula de educação física. Provavelmente, ele responderá que a aula é dentro da sala, jogando futebol de prego ou jogando “bafinho” com figuras de chiclete. Na melhor das hipóteses, o menino dirá que até vai à quadra, mas o professor nada ensina, simplesmente deixa os alunos se dividirem e jogarem a tradicional “pelada”. Depois muitos se admiram com os péssimos resultados do país nas olimpíadas... O ensino jurídico vivencia um fenômeno semelhante. Apesar de ter havido uma melhoria considerável da estrutura das faculdades nos últimos anos, especialmente nas faculdades federais, a cada ano as pessoas se alarmam com o número de reprovados no exame da OAB. Na Universidade Federal de Juiz de Fora, por exemplo, todas as salas possuem datashow, há um grande infocentro, existe a já mencionada plataforma moodle, mas os professores não utilizam desses inúmeros recursos. Os alunos que se destacam, o fazem através do esforço pessoal. Mas, como há um método de ensino que abre novos caminhos, existe uma 32 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 esperança de que não falte às nossas faculdades de direito o mais importante. Referências Bibliográficas CYSNEIROS, Paulo Gileno. Novas tecnologias na sala de aula: melhoria do ensino ou inovação conservadora? Informática Educativa Vol. 12, No, 1. 1999. FERES, Marcos Vinícius Chein. Proposta para uma nova metodologia do ensino jurídico: A sistematização coletiva do conhecimento. Revista brasileira de estudos políticos [RBEP]. Nº 98. Belo Horizonte. 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17a. ed. Rio de Janeiro : Paz e terra, 1987. MARTINEZ, Sérgio Rodriguez. 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Seu objetivo se pauta em correlacionar os casos de nulidade da sentença arbitral com o dizer constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional conjugado com o novo enfoque de acesso à justiça teorizado por Mauro Cappelletti e princípios consagrados na área jurídica, confirmando o caráter principiológico deste estudo. Do presente trabalho, concluiu-se pela plena aceitação do juízo arbitral em nosso sistema jurídico através da efetiva participação do Poder Judiciário no zelo do processo arbitral pautado pela observância do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, em especial, ao longo dos casos de nulidade da sentença em sede de arbitragem. Palavras-chave: Arbitragem. Nulidade. Princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Acesso à justiça. ¹Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 35 Abstract: This paper consists in the proposition constitutionally accepted to guide the arbitration in the Brazilian legal order. Your objective aims to link cases of nullity of the arbitral award with the constitutional mean of the non-obviation of jurisdiction conjunction with the new approach to access to justice theorized by Mauro Cappelletti and principles enshrined in the legal field, confirming the principled character of this study. From this study, it was concluded by the full acceptance of arbitration in our legal system through the effective participation of the Judiciary in the zeal of the arbitration proceedings guided by the principle of non-obviation of jurisdiction, in particular, over the cases of nullity of sentence in the seat of arbitration. Keywords: Arbitration. Nullity. Principle of non-obviation of jurisdiction. Access to justice. 36 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 1 . Introdução Há uma intrínseca relação entre o Direito e a sociedade, com notável dependência entre ambos. O Direito vem à tona com o intuito de regular o ambiente da sociedade, buscando assim a efetiva promoção da pacificação social. Mais do que um instrumento de reparação de conflitos, ele se torna um meio de prevenção destes, o que é o grande corolário da atuação jurídica. Todavia, a função preventiva é insuficiente para coibir todos os conflitos que vêm a existir no meio social, sendo necessária a ação do Direito como reparador das diversas insatisfações geradas. Dessa forma, o Estado, com o intuito de administrar tais conflitos, visa promover a justiça através do exercício da jurisdição. Assim, vem a campo o Poder Judiciário, exercido por juízes e tribunais vinculados ao aparato estatal, objetivando o cumprimento do Direito nas diversas lides a que lhes são apresentadas. Entretanto, o progresso social demanda uma evolução no sistema jurídico. Hoje, a sociedade atingiu níveis elevadíssimos de demanda e especialização, o que requer um melhor atendimento por parte do Direito, seja em seu caráter preventivo ou reparador. Dentre as possíveis formas de melhoria, se encontram os meios alternativos de resolução de conflitos, que fogem da exclusiva atuação do Estado na busca pela pacificação social. Encontra-se neste meio a arbitragem, modo paraestatal de composição de litígios resolvido por um terceiro, estranho à lide, escolhido pelas partes. Portanto, prima-se pela facilitação do acesso à justiça em uma ordem jurídica justa², independente do meio que se utiliza. Há que se atentar, entretanto, que os preceitos constitucionais devem ser respeitados e observados em todo tipo de processo que venha a ser institucionalizado com o fim de pacificação social. Destaca-se o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, insculpido no texto constitucional brasileiro, como grande garantidor do acesso ao Poder Judiciário por parte do portador de direito lesado ou ameaçado. Todavia, como proceder a sua observância diante da arbitragem, um meio alternativo ao Poder Judiciário que impede, através da sentença arbitral, a imposição de demanda judicial perante o Estado? ² Veja-se como exemplo desse tipo de abordagem o estudo de Mauro Cappelletti (1988) com perspectiva compartilhada por Alexandre Freitas Câmara (2009). ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 37 Assim, para solucionar este tipo de questionamento, o Direito Arbitral brasileiro tem em sua lei a previsão de nulidades que podem ser atribuídas à sentença proferida em sede de arbitragem, buscando a garantia do acesso à justiça, extremamente fundamental em um Estado Democrático de Direito como o Brasil. Tal problemática merece um estudo aprofundando, relacionando a sentença arbitral com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, destacando-se nesta análise as ocasiões de invalidade do juízo arbitral. 2. O Poder jurisdicional do estado e a arbitragem como meio alternativo de pacificação social:o novo enfoque de acesso à justiça A função jurisdicional é definida no art. 2º da Constituição Federal com a previsão do Poder Judiciário entre os Poderes da União. A jurisdição é, portanto, função indispensável do Estado, “mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça”³. É de se salientar que traço marcante da jurisdição é o monopólio estatal, caracterizando-se “a capacidade, que o Estado tem, de decidir imperativamente e impor decisões”4. Assim, tal tarefa é tomada pelas rédeas por parte do Estado em virtude de seu cunho fundamental para a manutenção e a busca da pacificação social, sendo o principal instrumento para imposição de decisões diante da sociedade. Entretanto, tem-se buscado meios alternativos de pacificação social. Tal intenção advém da necessidade de superar diversos óbices encontrados no exercício da jurisdição típica, minimizando o tempo e o custo característicos do processo tradicional. Para afastá-los, tem-se buscado alternativas que visem adequar celeridade e gratuidade ao ao processo, estabelecendo o fator do acesso à justiça a todos. Assim, ganha campo a desformalização, que, promovendo o princípio da instrumentalidade das formas, prima ³ GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 149. 4 GRINOVER et alii, op. cit., p. 30. 38 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 máximo da pacificação social em detrimento do ato processual em si mesmo5. O ordenamento jurídico pátrio “atende como poucos a este objetivo de desformalização do processo e das controvérsias” 6, pois o direito processual brasileiro possibilitou um aumento capital no combate ao excesso de formas com a Lei n. 9.099/95, que, promovendo instituto definido constitucionalmente 7, regula os Juizados Especiais Cíveis, fundamentais na ampliação da celeridade e diminuição dos custos no processo. Além disso, o Código de Processo Civil abarca artigos que prevêem este objetivo. Destacase o art. 154, em que os atos processuais que, embora realizados de forma que não a prevista em lei, reputam-se válidos se preenchem a sua finalidade essencial. Todavia, apesar da jurisdição ser privilégio exclusivo do Estado, é de se afirmar que este “não tem o monopólio da realização da justiça”8. É de grande valia tal constatação, afinal possibilita-nos promover a busca por meios alternativos de se fazer justiça sem ferir preceitos indispensáveis à administração da jurisdição pelo Estado. Destaca-se a posição de Mauro Cappelletti a respeito do novo enfoque de acesso à justiça: Esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações 5 Neste sentido, GRINOVER et alii, 2011, p. 32-33, 372. 6 CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem: Lei nº 9.307/96. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 2. 7 O inciso I do art. 98 da Constituição Federal prevê a criação: “de juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”. 8 CÂMARA, op. cit., p. 4. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 39 no direito substantivo (rectius, substancial) destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios 9. Mauro Cappelletti, defendendo a existência de três ondas renovatórias no Direito Processual atual, prevê como terceira onda o referido novo enfoque de acesso à justiça, posterior à garantia da assistência judiciária gratuita, correspondente à primeira onda, e ao atendimento à tutela dos interesses metaindividuais, este que constitui o objeto da segunda. As duas primeiras fases encontram-se, ao menos formalmente, consolidadas no ordenamento brasileiro, sendo necessário, portanto, focar no ingresso à representação em juízo uma concepção mais ampla de acesso à justiça. A terceira onda pode ser “traduzida em múltiplas tentativas com vistas à obtenção de fins diversos, ligados ao modo-de-ser do processo”10, com simplificação dos procedimentos por meio de justiça mais acessível e participativa, por exemplo. Tal perspectiva torna possível a busca por “meios mais adequados de tutela dos consumidores do serviço de prestação de justiça (...) e a valorização dos meios paraestatais de solução de conflitos”11. É necessário, em suma, verificar o papel e importância dos diversos fatores e barreiras envolvidos, de modo a desenvolver instituições efetivas para enfrentá-los. O enfoque de acesso à Justiça pretende levar em conta todos esses fatores. Há um crescente reconhecimento da utilidade e mesmo da necessidade de tal enfoque no mundo atual12. 9 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. trad. bras. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 71. 10 GRINOVER et alii, 2011, p. 49. 11 CÂMARA, 2009, p. 2. 12 CAPPELLETTI, op. cit., p. 73. 40 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Assim, verifica-se neste novo enfoque de acesso à justiça um forte empenho na administração de meios alternativos de pacificação social, encaixando-se a arbitragem como promotora ativa desse fim, trazendo para o ambiente privado a resolução de conflitos a priori limitados ao poder jurisdicional estatal. 3. A arbitragem o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional A arbitragem decorre diretamente do novo enfoque de acesso à justiça, permitindo que um meio paraestatal de pacificação social seja legitimamente constituído para a resolução de conflitos. Segundo a teoria de Cappelletti, tal abordagem é necessária, in verbis: Originando-se, talvez, da ruptura da crença tradicional na confiabilidade de nossas instituições jurídicas e inspirando-se no desejo de tornar efetivos — e não meramente simbólicos — os direitos do cidadão comum, ela exige 13 reformas de mais amplo alcance e uma nova criatividade . Entretanto, prevê o art. 18 da Lei n. 9.307/96, a Lei de Arbitragem, que o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. Além disso, fortalecendo as bases do juízo arbitral, a referida lei permite que a sentença arbitral produza, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário, conforme preceituado no art. 31. Há que se analisar, portanto, qual a extensão de uma via de resolução alternativa de conflitos de cunho privado, que substitui a jurisdição estatal, com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional insculpido no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que afirma não poder a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 13 CAPPELLETTI, 1988, p. 8. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 41 Assim, a fim de compatibilizar-se com o referido preceito constitucional, a Lei de Arbitragem conclama dois fundamentais princípios, os quais se referem à autonomia privada e à disponibilidade. Faz-se mister ressaltar que prima-se, portanto, por argumentos de princípio, e não argumentos meramente políticos. Segundo Ronald Dworkin, “os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo” 14. Assim, a instituição da arbitragem não se dá através de argumentos políticos, e sim por fundamentação principiológica, prevalecendo a tese do eminente jurista segundo a qual os argumentos de princípio devem sempre preponderar. Somente assim poderá ser realizado um juízo de proporcionalidade diante da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Através do princípio da autonomia privada, apenas as partes que desejarem o juízo arbitral dele se valerão, sendo este acordado pela convenção de arbitragem15. Desta forma, não é a ninguém imposto a solução de conflitos perante o meio paraestatal aqui abordado. Aos indivíduos não interessados neste tipo de realização de pacificação social, o acesso à justiça por meio da jurisdição estatal permanece íntegro. Assim, cabe exclusivamente às partes a utilização ou não da arbitragem nas divergências que venham a enfrentar. Ressalta-se, inclusive, que em contratos de adesão a cláusula compromissória para a instituição de arbitragem apenas é válida se esta for instituída pelo aderente ou se este houver concordado expressamente com a imposição deste meio alternativo de 16 realização de justiça . São, portanto, as partes os responsáveis pela submissão de ambas ao juízo arbitral. 14 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. bras. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 141. 15 “Art. 3º. As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral” (Lei n. 9.307/96). CÂMARA, 2009, p. 25. 16 42 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Além da autonomia privada das partes na efetuação da convenção de arbitragem, a Lei n. 9.307/96 limita enfaticamente o que pode vir a ser objeto e quem pode ser sujeito do 17 processo diante do juízo arbitral, com a estipulação do art. 1º, em que apenas as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Ora, tal sujeição imposta à arbitragem salienta fortemente a preocupação do legislador em não permitir que uma convenção entre partes venha decidir demanda a respeito de direitos de caráter indisponível e/ou não-patrimonial, limitando densamente a competência a que está investido qualquer árbitro submetido à jurisdição brasileira. O aspecto da disponibilidade permite às pessoas a liberdade de exercer ou não seus direitos, 18 19 constituindo o chamado poder dispositivo , o que não ocorre com direitos indisponíveis, delineados como exclusividade da jurisdição estatal. Inclusive, prevê a Lei de Arbitragem que, sobrevindo no curso da arbitragem controvérsia acerca de direitos indisponíveis e verificando-se que de sua existência, ou não, dependerá o julgamento, o árbitro ou o tribunal arbitral remeterá as partes à autoridade competente do Poder Judiciário, 20 suspendendo o procedimento arbitral , que só será retomado após o trânsito em julgado da decisão que acolha ou não a existência de direito indisponível. 17 A terminologia processo arbitral ganha respaldo dentro do estudo de Alexandre Freitas Câmara (op. cit., p. 10-11), que afirma: “Mais modernamente, encontra-se em doutrina a afirmação de que deve considerar-se processo todo procedimento realizado em contraditório.” Prossegue o jurista: “Assim, sendo, pode-se falar em processo administrativo, em processo legislativo e, até mesmo, em processo arbitral, ao lado do tradicionalmente reconhecido processo jurisdicional.” Por sua vez, o § 2º do art. 21 da Lei de Arbitragem ratifica o respeito ao princípio do contraditório no procedimento arbitral. GRINOVER et alii, 2011, p. 66. 18 19 “Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam resguardar a vida biológica – sem o qual não há substrato para o conceito de dignidade – ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e mental bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa.” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 319). 20 Art. 25 (Lei n. 9.307/96). ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 43 Segundo o art. 1º da Lei n. 9.307/96, é também fundamental a exigência da capacidade civil das partes para a instituição de uma convenção de arbitragem, blindando, novamente, o trato com princípio da disponibilidade diante do juízo arbitral, resguardando, assim, os incapazes, com regulação do regime das capacidades no Código 21 Civil. Assim, a arbitragem “só se admite em matéria civil (não-penal), na medida da disponibilidade dos interesses substancias em conflito”,22limitando a possibilidade de um juízo arbitral diante apenas de conflitos em que o Estado e o Direito permitem a liberdade das partes pelo concessão do poder dispositivo. Os árbitros, portanto, carecem de competência objetiva quando a questão submetida à arbitragem se refere a matéria não 23 disponível. Focado na limitação do juízo arbitral, prescreve Alexandre Freitas Câmara: O Judiciário poderá exercer suas funções (...) naquelas hipóteses em que a solução por via arbitral se mostre inviável, em razão da natureza da demanda (que verse sobre direitos indisponíveis), ou por não terem as partes optado 24 pela submissão de seu conflito à arbitragem. Vindo a complementar a limitação jurídica da Lei de Arbitragem, o art. 32 prevê os diversos casos em que a sentença arbitral é considerada nula, podendo a parte interessada pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença 25 arbitral, nos casos previstos na lei citada. 21 Sobre capacidade civil, consulte-se GONÇALVES, Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. vol. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 110 e seguintes. 22 GRINOVER et alii, op. cit., p. 35. 23 NAVARRO, María de José Mascarell et alii. Comentario breve a la Ley de Arbitraje. Madrid: Civitas, 1990, p. 130. CÂMARA, 2009, p. 50. Art. 33 (Lei n. 9.307/96). 24 25 44 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Dessa forma, as disposições do sistema brasileiro de arbitragem são categoricamente compatibilizadas com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, preceito constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, não tornando o juízo arbitral alheio à jurisdição estatal. O que ocorre, portanto, é exatamente o oposto, em que cabe ao Poder Judiciário coibir quaisquer condutas que visem lesar as disposições de admissibilidade, processualização e validade da arbitragem, sendo o responsável direto pela condução da demanda de decretação de nulidade da sentença arbitral. 4. Casos de nulidade da sentença arbitral A fim de resguardar o acesso à justiça através da arbitragem, a Lei n. 9.307/96 comina as hipóteses em que a sentença arbitral é nula, tornando inválido o juízo arbitral no qual incidem tais situações. Um ato “é nulo quando ofende preceitos de ordem pública, que interessam à sociedade. Assim, quando o interesse público é lesado, a sociedade o 26 repele, fulminando-o de nulidade”. Prescreve o art. 32 da referida lei, sobre os casos de nulidade da sentença arbitral: Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I - for nulo o compromisso; II - emanou de quem não podia ser árbitro; III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei; IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; V - não decidir todo o litígio submetido à arbitragem; VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta Lei; e VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei. 26 GONÇALVES, 2010, p. 472 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 45 O primeiro caso de nulidade se refere à invalidade do compromisso arbitral, que é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais 27 pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. Sendo assim, é por meio do compromisso arbitral que se institui a possibilidade jurídica de submissão das partes a um juízo arbitral e, consequentemente, a uma sentença oriunda da arbitragem. Caso o compromisso arbitral seja eivado de nulidade, a sentença é também nula, pois não há legitimidade para o juízo arbitral em um litígio não estabelecido legalmente. Portanto, resguarda-se aqui a necessidade de as partes interessadas em submeter um litígio a juízo arbitral instituir o compromisso de maneira íntegra e voluntária. Não havendo validade do compromisso ou ausência deste, cabe apenas a jurisdição estatal, enfatizando o aspecto subsidiário da arbitragem, estabelecida como uma faculdade processual do indivíduo, não podendo ser imposta sem um compromisso arbitral válido. “O compromisso arbitral é, pois, um contrato de direito privado, cujo efeito é a instauração de um processo arbitral, no qual haverá a heterocomposição do conflito de interesses que originou o compromisso”.28Desta forma, cabe anular um compromisso arbitral pelas mesmas causas de nulidade do negócio jurídico em geral, regras constantes no art. 166 do Código Civil: Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. 27 Art. 9º (Lei n. 9.307/96). 28 CÂMARA, 2009, p. 34. 46 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 O compromisso arbitral pode também ser anulável,29dependendo, portanto, da anulação do compromisso a decretação de nulidade da sentença arbitral. Com previsão no art. 171 do Código Civil, a anulabilidade é imposta aos atos realizados por relativamente incapazes ou cometidos de algum vício do consentimento ou vício social. Há ainda que se destacar a obrigatoriedade de constar no compromisso arbitral as cláusulas insculpidas nos incisos do art. 10 da Lei de Arbitragem, determinando a presença de dados das partes (I), de informações do árbitro, dos árbitros ou da entidade incumbida da indicação de árbitros (II), da matéria objeto da arbitragem (III) e do lugar da sentença arbitral (IV). A seguir, a Lei de Arbitragem torna nula a sentença arbitral emanada de quem não podia ser árbitro. Segundo o art. 13 da lei, pode ser árbitro qualquer pessoa civilmente capaz e que tenha a confiança das partes. Assim, é delimitado o grau da medida da personalidade do árbitro, que deve ser pleno, aliado à obrigação de ter sido o árbitro nomeado e autorizado pelas partes em conflito. Há ainda, apesar do silêncio da lei, a necessidade do árbitro ser alfabetizado e conhecedor do idioma pátrio,30afinal, não se pode admitir um julgador incapacitado de apresentar por escrito sua decisão, o que é essencial de acordo com o art. 24 da Lei de Arbitragem, segundo o qual deve ser escrita a sentença. Além disso, deve o árbitro proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição,31norteadores da atividade arbitral. A lei, inclusive, impede de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento “ Quando a ofensa atinge o interesse particular de pessoas que o legislador pretendeu proteger, em estar 29 em jogo interesses sociais, faculta-se a estas se o desejarem, promover a anulação do ato. Trata-se de negócio anulável, que será considerado válido se o interessado se conformar com os seus efeitos e não o atacar, nos prazos legais, ou o confirmar.” (GONÇALVES, 2010, p. 475). 30 31 CÂMARA, 2009, p. 43-44. Art. 13, § 6º (Lei n. 9.307/96). ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 47 ou suspeição de juízes32. Tende-se, portanto, a uma equiparação dos árbitros aos juízes, de maneira que o juízo arbitral fique mais comprometido a um acesso à justiça em uma ordem jurídica justa. A lei visa resguardar a imparcialidade do árbitro conciliando-a com a inafastabilidade da tutela jurisdicional, ao prever no §2º do art. 20 que, caso a arguição de impedimento ou suspeição seja rejeitada no curso do processo arbitral por parte do árbitro, pode a parte interessada demandar a questão perante órgão do Poder Judiciário. Ressalva-se, entretanto, que podem as partes convencionar, pela autonomia privada, a escolha de árbitros com incidência de causas de impedimento ou suspeição, desde que, obviamente, seja a seleção feita de maneira consciente. O árbitro é ainda civilmente responsável por seus atos, quando, “cometendo falta grave, causar dano indevido a uma das partes (ou a ambas). É certo que caberá ao Judiciário estabelecer na hipótese concreta se houve ou não responsabilidade civil do árbitro”33. Há também a previsão da responsabilidade penal diferenciada, pela qual o árbitro fica equiparado a funcionário público, podendo ser autor e vítima de delitos referentes a este tipo de sujeito, os chamados crimes funcionais, conforme previsão no art. 17 da Lei de Arbitragem. O caso seguinte de nulidade é atribuído à sentença arbitral que não contenha os requisitos do art. 26 da Lei de Arbitragem: Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: I - o relatório, que conterá os nomes das partes e um resumo do litígio; 32 Art. 14 (Lei n. 9.307/96). Há que se pautar pelo disposto no Código de Processo Civil, nos art. 134 e 135, a respeito das causas de impedimento e de suspeição de juízes. 33 CÂMARA, op. cit., p. 62. O autor afirma ainda que deve se entender falta grave, termo decorrente de lacuna legal a respeito da responsabilidade civil arbitral, como um conceito jurídico indeterminado, devendo o juiz, no caso concreto, averiguar a sua presença ou não. 48 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por eqüidade; III - o dispositivo, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas e estabelecerão o prazo para o cumprimento da decisão, se for o caso; e IV - a data e o lugar em que foi proferida. Parágrafo único. A sentença arbitral será assinada pelo árbitro ou por todos os árbitros. Caberá ao presidente do tribunal arbitral, na hipótese de um ou alguns dos árbitros não poder ou não querer assinar a sentença, certificar tal fato. A previsão deste tipo de exigência decorre da regra do art. 458 do Código de Processo Civil, que determina os requisitos essenciais da sentença judicial, adequando, portanto, a sentença arbitral à exposição da decisão pelo Poder Judiciário. Entretanto, faz-se a ressalva de que tais preceitos do art. 26 da Lei n. 9.307/96 e do art. 458 do Código de Processo Civil não são requisitos, e sim elementos, já que integram a própria sentença.34 Tais elementos são fundamentais para a existência da sentença arbitral, tornando-a, somente assim, aceita no mundo jurídico. Em relação ao disposto no Código de Processo Civil, difere a Lei de Arbitragem apenas por acrescentar a obrigatoriedade da data e do lugar em que a sentença é proferida. Tal exigência é fundamental, pois permite verificar o respeito ao prazo35 para prolação da sentença e a qualificação da arbitragem em nacional ou internacional.36Além disso, é exigido que o árbitro assine a sentença. 34 CÂMARA, 2009, p. 111-112. 35 Art. 23 (Lei n. 9.307/96). Se não estipulado pelas partes, é de seis meses o prazo para apresentação da sentença, contados da instituição da arbitragem ou substituição do árbitro. 36 Art. 34, Parágrafo único (Lei n. 9.307/96). É estrangeira a sentença arbitral proferida fora do território nacional. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 49 Os demais elementos do art. 26 da Lei n. 9.307/96 são comuns à sentença judicial. O relatório é a síntese do processo arbitral, através do qual são apresentadas as partes em conflito e os termos do litígio. Os fundamentos da decisão, por sua vez, apresentam as razões da decisão do árbitro, permitindo a verificação da análise crítica dos fatos da lide. O último elemento é o dispositivo, que atribui à causa o conteúdo decisório em si. Caso seja necessário, deve o árbitro, na parte dispositiva, estabelecer o prazo para o cumprimento da decisão. Outro caso de nulidade da sentença arbitral é aferido quando esta é proferida fora dos limites da convenção de arbitragem (sentença ultra e extra petita) ou quando não é decidido todo o litígio submetido ao juízo arbitral (sentença citra petita). Em tais hipóteses ocorre a inobservância do princípio da adstrição, pelo qual a concessão do árbitro fica adstrita ao objeto da arbitragem. Através da convenção de arbitragem é instituído o objeto do litígio, cabendo ao árbitro decidir a questão dentro de seus limites. Em outras palavras, o laudo arbitral não pode decidir sobre questão estranha ao objeto da arbitragem (sentença extra petita), nem pode exceder os limites impostos pelas partes na delimitação deste objeto (sentença ultra petita), nem pode deixar de decidir questão submetida à apreciação do árbitro ou do colégio de árbitros (sentença citra petita).37 Da mesma forma acontece na jurisdição estatal, em que o juiz deve restringir sua decisão ao pedido da parte. O Código de Processo Civil prevê, no art. 128, que o juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, 37 CÂMARA, 2009, p. 119. O jurista, em sua obra, prefere a denominação laudo arbitral ao invés de sentença arbitral, afirmando ser esta exclusiva do meio jurisdicional estatal, com respaldo no direito comparado. Todavia, a Lei n. 9.307/96 utiliza o conceito sentença arbitral. 50 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. Há ainda o art. 460, pelo qual é defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi demandado. Há, portanto, mais uma aproximação da sentença arbitral com a sentença judicial, permitindo que a arbitragem, apesar de meio paraestatal de pacificação social, tenha o mesmo fim de acesso à justiça. O próximo caso de nulidade é apenas possível pela previsão do já mencionado art. 17 da Lei de Arbitragem, que equipara os árbitros, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, aos funcionários públicos para efeitos de legislação penal. Assim, é nula a sentença arbitral se comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva. Tal hipótese, no caso da sentença judicial, gera rescindibilidade, sendo objeto de ação rescisória, conforme art. 458 do Código de Processo Civil. Os crimes de prevaricação e de corrupção passiva, constantes nos arts. 319 e 317 do Código Penal, respectivamente, são praticados por funcionário público contra a Administração em geral. No primeiro, o árbitro viola sua função para atender a objetivos pessoais e, no segundo, negocia seus atos visando uma vantagem indevida. A corrupção ativa, previsto no art. 333 do Código Penal, é delito praticado por particular contra a Administração em geral. Correlata da corrupção passiva, ocorre quando um indivíduo oferece ou promete vantagem indevida ao árbitro a fim de que este lhe favoreça no processo arbitral. Todavia, vale ressaltar que “não é preciso, para se invalidar o laudo, que o árbitro tenha sido condenado em processo penal pela prática do crime, sendo possível que se demonstre que o ilícito foi praticado no próprio processo civil”.38 É também nula a sentença proferida fora do prazo. Como visto, este prazo, segundo o art. 23 da Lei n. 9.307/96, via de regra, é convencionado pelas partes na convenção de arbitragem. Caso nada seja acordado, pois o prazo é elemento facultativo do 38 CÃMARA, 2009, p. 133. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 51 compromisso arbitral,39 a lei determina que é de seis meses o prazo para a apresentação da sentença, que se inicia a partir da aceitação do encargo pelo árbitro, seja na instauração da arbitragem em si ou a partir da substituição do árbitro. Tal prazo é fundamental para a busca da celeridade processual, uma das vantagens do juízo arbitral em relação ao Poder Judiciário, que, geralmente, tende a ser mais moroso, apesar de buscar a razoável duração do processo.40Na arbitragem ainda é possível às partes e aos árbitros, de comum acordo, prorrogar o prazo estipulado, conforme disposição do parágrafo único do referido art. 23, ressaltando, mais uma vez, a autonomia privada presente na arbitragem. Entretanto, deve ser respeitado o disposto no inciso III do art. 12 da Lei de Arbitragem, que concede ao árbitro o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da sentença arbitral caso tenha expirado o prazo inicialmente convencionado, desde que a parte interessada notifique o árbitro, judicial ou extrajudicialmente. Sendo assim, apenas após o decurso deste prazo pode a sentença arbitral ser declarada nula. Por fim, a sentença arbitral apenas pode ser válida se primar pela observância dos princípios de que trata o art. 21, § 2º, da Lei n. 9.307/96: Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. § 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Art. 11, III (Lei n. 9.307/96). 39 40 “Art. 5º LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (Constituição Federal). 52 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 O primeiro princípio é o do contraditório, garantia constitucional insculpida no inciso LV do art. 5º da Carta Magna. Urge destacar o módulo processual, pensado por Elio Fazzalari,41 que representa o procedimento realizado em contraditório, em que a abertura à participação é considerada como elemento do processo. Deve ser entendido o princípio do contraditório como, “de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis”.42 Assim, o juízo arbitral é instituído com a possibilidade das partes assumirem posições ativas e passivas no processo, praticando atos na defesa de seus interesses e sujeitando-se às práticas por parte do adversário. O contraditório ainda garante o direito à prova, promovendo a participação efetiva das partes. “Em virtude da natureza constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem”.43 A igualdade das partes é garantida pelo princípio da isonomia inscrito no art. 5º, caput, da Constituição Federal, não se tratando, porém, “de mera garantia de igualdade formal, mas sim de igualdade substancial, ou seja, há que se assegurar no processo arbitral a paridade de armas”.44Assim, busca-se “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.”45Deve-se, portanto, evitar que a parte mais forte no processo obtenha êxito pelo fato de ser mais poderosa, seja econômica, jurídica ou politicamente. 41 GRINOVER et alii, 2011, p. 309-310. 42 NERY JÚNIOR, Nelson et alii. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 1992, p. 122- 123. 43 GRINOVER et alii, 2011, p. 63. CÂMARA, 2009, p. 78. 44 45 MENDES et alii, 2010, p. 221. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 53 O livre convencimento do árbitro é marcado pelo princípio da persuasão racional, pelo qual o julgador forma livremente sua convicção a respeito das provas constantes no processo. “O árbitro deve decidir com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais”.46 Como corolário da persuasão racional, verifica-se como imperativo a necessidade de motivação das decisões arbitrais. A fundamentação das sentenças permite às partes aferir qual o sistema de provas avaliado pelo árbitro, possibilitando a análise de acordo com os princípios expostos. Por sua vez, a imparcialidade do árbitro denota a primeira condição para que possa exercer sua função dentro do processo, colocando-se entre as partes e acima delas, primando por um juízo não apenas técnico, mas também ético.47 Compete salientar, conforme exposto, que, para manter a imparcialidade do árbitro, o art. 14 da Lei de Arbitragem impede de funcionar como árbitros as pessoas que tenham relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes. Ressalta-se novamente, porém, que podem as partes convencionar, conscientemente, a presença de árbitro em caso de impedimento ou suspeição. De qualquer forma, tal aceitação não afasta de maneira alguma a necessidade do julgador de proceder com imparcialidade no decorrer do processo arbitral. Dessa forma, prima-se pela observância de princípios típicos do processo jurisdicional como parâmetros obrigatórios ao longo do processo arbitral. A arbitragem, portanto, foca-se em um acesso à justiça delineado por preceitos de uma base principiológica que possibilita uma tendência à equiparação com a jurisdição estatal, enfatizando a compatibilização da arbitragem com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, ampliando o âmbito de incidência do inciso XXXV do art. 5º da Lei Maior na sociedade brasileira. 46 47 GRINOVER et alii, op. cit., p. 74. GRINOVER et alii, 2011, p. 59. 54 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Havendo, portanto, algum caso de nulidade da sentença arbitral, cabe à parte interessada pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei, conforme art. 33 da Lei n. 9.307/96. Assim, a parte prejudicada propõe a ação de anulação de sentença arbitral, sujeita a um prazo decadencial de noventa dias.48 O direito ao reconhecimento da invalidade do laudo arbitral não corresponde a nenhum dever jurídico. Ao contrário, se ocorreu alguma das causas de invalidade daquela decisão, a parte prejudicada tem o direito à declaração de nulidade do ato, enquanto a outra parte simplesmente deve sujeitar-se ao exercício daquele direito, suportando os efeitos da declaração de nulidade. (...) O direito ao reconhecimento da invalidade do laudo arbitral é potestativo, sendo, portanto, decadencial o prazo de noventa dias a que se refere a Lei de Arbitragem.49 Se a demanda judicial do art. 33 for decidida procedente, deverá a sentença arbitral ser anulada nos casos de ser nulo o compromisso arbitral (inciso I), ter sido a sentença emanada de quem não podia ser árbitro (inciso II), ser comprovado que foi proferida a sentença por prevaricação, concussão ou corrupção passiva (inciso VI), ter sido proferida fora do prazo (inciso VII) e se forem desrespeitados os princípios do art. 21, § 2º da lei (inciso VIII). Nos casos em que a sentença não contiver os requisitos do art. 26 (inciso III), for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem (inciso IV) ou não decidir todo o litígio submetido à arbitragem (inciso V), deverá o árbitro proferir nova sentença, em prazo definido pelo órgão do Poder Judiciário. 48 Art. 33, § 1º (Lei n. 9.307/96). CÂMARA, 2009, p. 138. 49 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 55 A ação de anulação da sentença arbitral visa, portanto, coibir atos que tornem o juízo arbitral incompatível com a prestação de justiça em uma ordem jurídica justa. Assim, os casos de nulidade, se verificados, devem ensejar o atendimento do Poder Judiciário a fim de que o meio paraestatal da arbitragem acolha os preceitos do acesso à justiça e da inafastabilidade da tutela jurisdicional. 5 . Conclusão A arbitragem, conforme discutido ao longo do exposto, é vista, portanto, como um meio paraestatal de busca da pacificação social tendente ao ajuste com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do qual se deduz o direito de acesso à justiça, de cunho constitucional. A fim de afastar a suposta crítica de que o juízo arbitral tende a causar uma substituição da jurisdição estatal, a Lei n. 9.307/96 é firme ao prever extenso rol de casos de nulidade da sentença arbitral, confirmados exclusivamente por órgão do Poder Judiciário através da ação de anulação de sentença arbitral, corroborando a tese de que a justiça pode ser feita por particulares, mas a supremacia da jurisdição encontra-se nas mãos do Estado. As previsões legais para anular a sentença arbitral funcionam, portanto, como inibidoras de casos que venham a deturpar a ordem normativa do instituto da arbitragem, fortalecendo o novo enfoque de acesso à justiça. Aceitar as limitações das reformas dos tribunais regulares (...) envolvem a criação de alternativas, utilizando procedimentos mais simples e/ou julgadores mais informais. Os reformadores estão utilizando, cada vez mais, o juízo arbitral, a conciliação e os incentivos econômicos para a solução dos litígios fora dos tribunais.50 50 CAPPELLETTI, 1988, p. 80. 56 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Assim, o trabalho dos árbitros vem valorizar o Poder Judiciário, propiciando diminuição da imensa carga processual para os juízes com consequente aumento da rapidez da tramitação dos processos perante a jurisdição estatal. Desta forma, ao Judiciário cabem funções relativas aos processos com natureza impedida por lei para a arbitragem e nos casos em que as partes não optarem pelo juízo arbitral. Destaca-se, portanto, mais uma vez, a importância dos princípios da disponibilidade e da autonomia privada, que sopesam com a inafastabilidade da tutela jurisdicional. Ainda cabe ressaltar outros aspectos da valorização do Poder Judiciário pela arbitragem, esta que é limitada em sua atuação para não ferir o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Casos que preveem a necessidade do uso da coação enfatizam a exclusividade do poder de império por parte do Estado, tais como na condução de testemunhas e na adoção de medidas coercitivas ou cautelares. Discorre sobre o tema Gilmar Mendes, em que a jurisdição estatal tem sua participação: nas hipóteses de descumprimento de cláusula compromissória, desacordo entre as partes quanto à nomeação do árbitro e fixação de seus honorários, execução e decretação de nulidade de sentença arbitral, quando no curso da arbitragem surja controvérsia acerca de direitos indisponíveis (...) etc.51 Apesar de sua grande importância para as causas de natureza empresarial, não se busca aqui facilitar somente o acesso à justiça pela arbitragem a fim de promover este tipo de demanda. Muito pelo contrário, a abordagem principiológica desenvolvida nesta ocasião prima pelo defendido novo enfoque de acesso à justiça, com vistas a aumentar a abrangência de utilização da arbitragem a todos que buscam a solução de suas lides em meios paraestatais mais céleres e menos desgastantes, mas não menos justos. “A arbitragem, que em alguns países é praticada mais intensamente e também no plano 51 MENDES, 2010, p. 596. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 57 internacional, é praticamente desconhecida no Brasil, quando se trata de conflitos entre nacionais”.52 Destarte, o juízo arbitral prima pelo seu caráter de não-beligerância, pois a solução dos litígios é convencionada pelas próprias partes, enfatizando o trabalho de busca por justiça por parte dos árbitros. Mais interessante ainda, é poder contar com um julgador capaz de identificar quesitos de caráter técnico não identificáveis por um profissional exclusivo da área de Direito, como o juiz estatal, através da arbitragem de equidade, que permite maior especialização do árbitro e, por conseguinte, da própria sentença. Ademais, deve-se ter em mente o intuito de estimar este meio alternativo para a solução de lides, promovendo a pacificação social, fim máximo do processo. Valorizar este instituto vislumbra, assim, aumentar a incidência do acesso à justiça constitucionalmente garantido no Brasil, que “com a lei de arbitragem (...), ganhou nova força e vigor e, em alguma medida, vai passando a ser utilizada efetivamente como meio alternativo para a pacificação de pessoas em conflito”.53 52 GRINOVER, 2011, p. 31. 53 GRINOVER, 2011, p. 35. 58 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Referências Bibliográficas CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem: Lei nº 9.307/96. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. trad. bras. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. bras. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GONÇALVES, Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. vol. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. NAVARRO, María de José Mascarell et alii. Comentario breve a la Ley de Arbitraje. Madrid: Civitas, 1990. NERY JÚNIOR, Nelson et alii. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 1992. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 59 60 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário internacional Kalline Carvalho¹ Resumo O presente trabalho elabora uma análise sobre a Organização das Nações Unidas. Na parte inicial, faz-se um breve histórico mostrando-se sua origem e fundamentos. A segunda parte traz uma análise sobre as propostas de reforma das Nações Unidas. Finalmente, a terceira parte apresenta o centro do debate: A democratização, o que inclui principalmente o problema da representatividade do Conselho de Segurança e a possibilidade de se introduzir atores não governamentais no processo decisório. Palavras-Chave: Organização das Nações Unidas – Origens e Fundamentos – Reforma – Democratização ¹Acadêmica do 9º período de Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 61 Abstract The present work makes an analysis of the United Nations Organization. At the beginning, it shows a brief history of the UN´s origins and its fundamentals. The second part brings an analysis of the UN´s reform proposals. Finally, the third part shows the center of this debate: The democratization, which mainly includes the problem of Security Council's representativeness and the possibility to introduce non-governmental actors in the decision making process. Keywords: United Nation Organization - Origins and Fundamentals - Reform Democratization 62 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 1. Introdução O presente trabalho não busca retratar a ONU por um lado de idealismo e pelas boas intenções que muitas pessoas lhe imputam, nem tampouco, como muitas vezes se fez, pelos resultados frustrados obtidos por essa Organização. A abordagem do trabalho é no sentido de avaliar a instituição à luz das transformações ocorridas na realidade nacional e internacional, demonstrando o relevante papel que a ONU assume no atual contexto internacional visto como um sistema global pós-nacional. Analisa-se, inicialmente, a missão que a comunidade das nações conferiu, originalmente, à organização mundial e, em seguida, fazendo uma análise mais profunda, avança-se na discussão quanto a uma possível reforma democrática de suas instituições. Entretanto, antes de adentrar, especificamente, no tema é preciso identificar a sociedade sobre a qual a ONU pretende regular e representar. A sociedade internacional, na visão de Manuel Dies de Velasco (1997. Pg. 62 a 63.), pode ser caracterizada como sendo: Dinâmica, pela intensidade e importância das mudanças que constantemente ocorrem; Heterogênea, diante da grande desigualdade de poder politico e econômico existente entre os Estados, este último, resultado da revolução industrial tardia nos Estados em desenvolvimento e, ainda, das diferenças políticas e culturais; Pouco Integrada, porque seu grau de institucionalização segue sendo relativo apesar do extraordinário número de Organizações Internacionais de âmbito universal; Interdependente, porque os Estados nunca foram sequer relativamente autossuficientes, pois que, antes, todos, incluindo as grandes potências, se encontravam em situações de dependência. A Sociedade Internacional Contemporânea, assim, é, ao mesmo tempo, descentralizada, basicamente interestatal e apenas parcialmente organizada. Observa-se que, historicamente, a partir do processo de descolonização da década de 60, há uma mudança na sociedade internacional, mas apesar disso, o padrão de Direito Internacional Clássico ainda é aplicado nessa nova sociedade heterogênea, o que traz uma série de problemas porque os paradigmas de hoje são outros: direitos humanos / democracia. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 63 Em razão da mudança do padrão de conflito, a tutela internacional se estende para outros campos e a grande questão que precisa ser respondida remete à compatibilização das novas pretensões da ONU com as exigências de democratização das suas instituições a fim de que haja uma maior representatividade e, por conseguinte, maior legitimidade das suas ações. A constituição de novos locus de autoridade é, indubitavelmente, uma questão que perpassa toda discussão sobre a reforma da ONU. 2. ONU: origens e fundamentos O reconhecimento da necessidade de um ator neutro para equilibrar os conflitos internacionais só foi alcançado em 1945, a despeito de tentativas anteriores. A Liga das Nações (1919), por exemplo, criada após a 1ª Guerra Mundial não foi reconhecida como um espaço de deliberação em virtude, principalmente, de oposições dos Estados Unidos. Existem, assim, fatos emblemáticos que impulsionam a criação de um organismo internacional cujo pressuposto é justamente a aceitação da relativização de soberanias. A ONU, ao tempo de sua concepção, tinha como objetivo a manutenção da ordem estabelecida no imediato pós-Segunda Guerra; o seu Conselho de Segurança era basicamente um condomínio das potências aliadas vitoriosas, as quais se incumbiam de manter o resto do mundo em ordem. A Assembleia Geral, por sua vez, podia sediar discussões e fazer recomendações, despida, todavia, da capacidade institucional para decidir. A ONU inovou na ordem internacional ao trazer o Sistema Coletivo de Segurança. Por se atingir o interesse nacional, a criação deste organismo demonstrou ser um movimento drástico. Sob a égide do voluntarismo, o corolário inicial era a nãointervenção. Enquanto ator de regimentação, a ONU demonstrou ser, ao longo dos anos, um órgão importante para reunir os países e, consequentemente, as diversas ideologias na tentativa de se conciliar interesses de uma sociedade tão desigual. A primeira preocupação foi com a segurança que está intimamente ligada a defesa 64 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 dos elementos constitutivos do Estado. Na Sociedade Internacional, os Estados têm diversas lógicas condutoras de suas relações, mas, a despeito disso, há um interesse comum de todos os Estados que é garantir a sua própria existência enquanto Estado. Nesse viés, Mônica Herz (1999) explica que a ONU foi pensada para ser uma organização intergovernamental não estando, no momento de sua criação, a representação democrática dentre as suas principais preocupações. A criação da ONU foi, então, motivada pela necessidade de se impedir um novo conflito, logo após a Segunda Guerra Mundial e, seguindo a essa lógica, foi conferido ao Conselho de Segurança o “poder de veto”. O veto, uma vez proferido por uma das grandes potências integrantes do Conselho, evitaria a instauração do conflito. Contudo, se em um primeiro momento, a ONU assumiu a função de manutenção da paz, verifica-se também, em uma apreciação das funções políticas, econômicas e sociais, atribuídas às Nações Unidas em sua formação; outra função fundamental, relacionada à cooperação para o desenvolvimento econômico e social das nações. Tomassini (1995) sustenta que, mesmo com esses objetivos, a ONU não conseguiu ser uma organização autenticamente internacional -menos ainda supranacional- sequer uma "terceira parte" nos conflitos entre as nações. A verdade é que jamais puderam ir mais longe do que as nações desejaram, pois a condução da organização tem sido balizada pelas grandes potências. Estas acabam por desempenhar o processo de criação e alteração das normas de Direito Internacional em todos os domínios que interessam o conjunto da Sociedade Internacional. Diante dessa constatação, o autor, ora citado, sugere que a ONU adote uma nova forma de apreciação pelos países-membros ao invés de tomar a história de suas vitórias e fracassos e suas formas de encaminhamento como cânones a serem seguidos. Propõe, ainda, que se busque uma melhor forma de representação e participação das sociedades civis nos trabalhos da Organização, acompanhando desta forma a mudança que se testemunha nas relações entre Estado e sociedade. Finalmente, sugere que as Nações Unidas adotem um novo desenho organizacional com vistas a atuar em esferas diferenciadas, com pessoal próprio e dos países que a integram, tema que agora passa a ser ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 65 analisado. 3. Reforma da ONU A ONU, como já demonstrado, surgiu em um contexto de reformulação do cenário internacional sob a perspectiva de um tipo de tutela, qual seja a segurança. Na medida em que se confere uma interpretação extensiva ao conceito de segurança para abarcar a ideia de “segurança humana”, temas que eram tradicionalmente tratados pela Assembleia Geral, como a questão dos direitos humanos, migram para a jurisdição do Conselho, impedindo, como enfatiza Marta Moreno (2001), a abordagem mais democrática e pluralista dessas questões. Em razão disso, torna-se imprescindível uma reformulação democrática da própria ONU. Mônica Herz (1999, pg.277) observa a grande preocupação que existe, hoje, com a legitimidade dos Estados e dos regimes políticos, razão pela qual a redefinição de parâmetros de intervenção da comunidade internacional é necessária. Marta Moreno (2001, pg.217), sobre o tema, denuncia que as operações empreendidas em nome da democracia são efetivadas por um órgão (o Conselho de Segurança) que apresenta um déficit democrático tanto na sua estrutura quanto no seu modus operandi. Paradoxalmente, aqueles países que mais insistem na democratização dos regimes políticos dos Estados como meio para se alcançar uma ordem internacional mais pacifista, são justamente os que mais resistem à democratização do Conselho de Segurança. O discurso da promoção da democracia e da aplicação de valores morais no campo das Relações Internacionais, assim, acaba por esconder os reais interesses dos Estados que se utilizam desse argumento para legitimar as intervenções em conflitos estatais internos. Atrás da faceta humanitária, as ingerências militares objetivam um jogo político-econômico que interfere na luta dos povos contra os regimes opressores de que faziam parte e se constituíam. Cogita-se, contemporaneamente, a possibilidade da ONU reconstruir instituições democráticas de países considerados falidos pela guerra, sob a justificativa de 66 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 que a expansão da área democrática do mundo conduz a um sistema internacional mais pacífico. Esse pensamento remonta ao Liberalismo Cosmopolita, em especial à vertente do Cosmopolitismo cujos autores são chamados de neo-kantianos, porque trazem a ideia de uma paz perpétua. Os Estados, por serem agentes racionais, difundem a racionalidade pelo mundo de modo que outros Estados passam a desejar a Democracia, algo que gera estabilidade e paz. Enfatiza-se a relação entre democracia e paz internacional sob o argumento kantiano de que o estabelecimento da democracia e da paz internacional seria decorrência lógica da consolidação democrática dentro de uma comunidade política. Entretanto, Mônica Herz (1999, pg.271), fazendo uma leitura mais crítica de A Paz Perpétua, elucida que, em verdade, Kant não era um pacifista, mas um legalista, pois acreditava ser possível a formulação de um direito cosmopolita composto por deveres e obrigações inerentes à humanidade, possíveis de serem recepcionados pelos países, i.e, seria possível a extensão das fronteiras das comunidades moral e política. Em semelhança ao pensamento liberal econômico, os cosmopolitas acreditam que há uma tendência natural de se chegar à paz pelo processo de cooperação de livre interação, daí seus defensores serem contrários a qualquer tipo de intervenção, tida sempre como dominação. Nesse ponto, a ideia da imposição de um modelo político ou socioeconômico para as diversas regiões do globo opõe-se à filosofia kantiana, segundo a qual a democracia não deve ser desenvolvida por agentes externos, mas sim construída por cada comunidade conforme suas peculiaridades históricas. Marta Moreno (2001, pg.117) explica que os Estados liberais partem do pressuposto de que os Estados não-liberais não representam o direito de seus indivíduos e, portanto, não podem desfrutar dos princípios da não-intervenção e da independência política, invioláveis para os Estados que representam seus cidadãos democraticamente. As novas intervenções da ONU, dessa forma, são justificadas pela “paz democrática”. O papel da ONU, como constatado em diversas ocasiões, tem² ² Cita-se, a título de exemplo, as intervenções humanitárias no Iraque (1991), na antiga Iugoslávia, na Somália, Libia, Haiti, Ruanda, dentre tantas outras. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 67 ultrapassado a sua função de peacekeeping para a de nation bulding, havendo, como já mencionado, uma progressiva ampliação das competências do Conselho de Segurança. 3.1 Democratização As propostas de reforma da ONU apresentam relação direta com seu funcionamento, na medida em que este é marcado por alguns problemas operacionais. Da forma como apresentadas, com propriedade, por Mônica Herz (1999, pg.264), as propostas abordam os seguintes pontos: equilíbrio de poder entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança; o estabelecimento de critérios mais claros sobre a jurisdição do Conselho de Segurança e o papel da Corte Internacional de Justiça nesse contexto; a necessidade de se ampliar o Conselho de Segurança e mudar o sistema de voto; e a criação de uma terceira Assembléia. Como apontado por Herz (1999, pg.270), existe uma grande distância entre o modelo institucional da ONU e a proposta de sua democratização, algo que se torna mais perceptível quando comparado o Conselho de Segurança com a Assembleia Geral. As duas primeiras propostas, assim, derivam do desnível existente entre Assembléia e Conselho. No tocante à representatividade e ao espectro de competências, a Assembléia Geral é o órgão mais importante da ONU, pois é o único órgão que pode deliberar sobre qualquer questão posta na Carta das Nações Unidas³. Entretanto, se o critério for a cogência de suas deliberações, o órgão mais relevante é o Conselho de Segurança, pois é o único que emite normas vinculantes e que se ocupa com o fundamento inicial da ONU (paz e segurança). Nessas matérias, o Conselho tem prerrogativas sobre a Assembléia Geral, visto que apenas ele pode emitir resoluções autorizando o uso da força. Dessa forma, simbolicamente, a Assembléia tem maior ³ Art.10: “A Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de qualquer dos órgãos nela previstos, e, com exceção do estipulado no artigo 12, poderá fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles, conjuntamente, com a referência a quaisquer daquelas questões ou assuntos.” 68 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 representatividade, mas as questões essenciais são tratadas pelo Conselho. Essa dissonância e a expansão das atividades da ONU, principalmente nos conflitos intraestatais, que até então não se enquadravam no rol de competências do Conselho de Segurança, tem levado os críticos a repensarem o papel da ONU e a possibilidade de sua democratização. Questiona-se veemente uma grande maioria das suas decisões diante da prevalência dos interesses das grandes potências, em especial dos Estados Unidos. Urge, portanto, a necessidade de uma maior comunicação entre o Conselho e a Assembleia que venha a permitir uma participação efetiva dessa última, a despeito da limitação de suas competências impostas pela própria Carta. No que diz respeito à jurisdição do Conselho de Segurança, nota-se uma série de deliberações sobre conflitos internos, algo que inicialmente era impensável. Tais conflitos assumiram caráter transnacional e se tornaram objeto das resoluções fundadas no Capítulo VII da Carta, sendo alvo de inúmeras criticas, justamente em razão do caráter não democrático do Conselho de Segurança e da falta de instrumentos da Organização para limitar a influência das relações de poder entre os países. Vislumbra-se, por outro lado, como alternativa, uma renovação no interesse do papel desempenhado pela Corte Internacional de Justiça, a fim de suprir esse déficit democrático do Conselho. Quanto à sua representatividade, é evidente que países do “sul” estão subrepresentados, o que torna imprescindível uma modificação substancial desse órgão para incluir países da Ásia, África e América Latina - em suma, países em desenvolvimento e, ainda, a Alemanha e o Japão. Marta Moreno (2001), contudo, assevera que a inclusão da Alemanha e do Japão, apesar de emancipar o Conselho de Segurança da configuração de poder existente ao término da Segunda Guerra Mundial, divorciando o status de membros permanentes da condição de potências nucleares, acabaria por refletir um novo critério de poder baseado nos recursos econômicos e tecnológicos, o que reforçaria ainda mais a natureza antidemocrática do Conselho. Os países dos Sul rechaçam o argumento de que os maiores contribuintes da ONU ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 69 devem ter direito a um maior poder decisório na organização, vez que a situação de subdesenvolvimento na qual se encontram os países do terceiro mundo é resultado do colonialismo implementado pelas grandes potências. A influência financeira é, então, parâmetro que contraria o caráter democrático das Nações Unidas. A ideia de se criar uma nova categoria de membros permanentes que participassem do Conselho sem os privilégios especiais de veto também é insuficiente para conferir maior representatividade ao órgão, vez que permaneceria a dominação exercida pelas grandes potências através do “voto de cabresto”. Em relação ao sistema de votação, nos termos do art.27,4 o voto negativo pode ser usado por qualquer membro permanente do Conselho de Segurança da ONU para impedir a adoção de uma resolução, estando todos os membros das Nações Unidas de acordo em aceitar e cumprir as decisões do Conselho de Segurança, pois assim assentiram no momento em que se tornaram membros da Organização. No que concerne a esse sistema, como ressalta Mônica Herz (2001, pg.281), há a importação do modelo liberal-democrático, ou seja, leva-se para o cenário internacional um sistema político doméstico que faz com que, paulatinamente, a ideia de unanimidade passe a ser substituída pela vontade da maioria, o que reflete na própria flexibilização do conceito de soberania. A mesma autora também adverte que, ao mesmo tempo em que o voto da maioria se consagra como mecanismo decisório, surge o principio do voto proporcional. Neste caso, com base na responsabilidade ou no interesse especial dos atores envolvidos, distribui-se o poder de voto de forma proporcional. A autora argumenta que a aplicação do principio da maioria não resolve o déficit Art.27. “Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto. As decisões do Conselho de Segurança, em questões de procedimento, serão tomadas por um voto afirmativo de nove membros. As decisões do Conselho de Segurança sobre quaisquer outros assuntos serão tomadas por voto favorável de nove membros, incluindo os votos de todos os membros permanentes, ficando entendido que, no que se refere às decisões tomadas nos termos do capítulo VI e do nº 3 do artigo 52º, aquele que for parte numa controvérsia se absterá de votar”. 4 70 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 democrático da ONU, pois, esse princípio não expressa a vontade dos indivíduos (já que os atores do processo decisório são os Estados) e não respeita o direito das minorias. A inclusão de atores não-estatais e a proteção dos direitos das minorias contra a "tirania da maioria" na ordem internacional torna-se, então, o foco dos debates atuais . 4. O reconhecimento do indivíduo no cenário internacional e o seu papel na reforma da ONU A Sociedade Internacional Clássica se reduzia a um grupo quase cerrado de Estados ocidentais, na sua grande maioria europeus, que expressavam um Direito Internacional liberal, radicalmente decentralizado e oligárquico. Liberal porque suas normas atendiam quase exclusivamente à distribuição de competência entre os Estados e a regulação da relação entre eles, havendo sempre o respeito absoluto da soberania nacional. Não se proibia, aqui, o uso da força e o recurso à guerra. Decentralizado, porque não havia instituições ou organismos para servir como instâncias de moderação de poder dos Estados. Oligárquico, porque era uma ordem concebida essencialmente para satisfazer os interesses de um grupo reduzido de Estados. (DIES DE VELASCO, 1997) Nesse contexto, o Direito Internacional que se tornou hegemônico foi o Direito estabelecido para regular os Estados Nações, trazendo em si um discurso civilizatório que serviu de justificativa para a expansão e dominação. Os Estados tidos como civilizados estavam em um patamar diferenciado porque se reconheciam como mutuamente soberanos, afastando-se do estado de natureza de Hobbes. O Direito Internacional legitimo e hegemônico era representado pelos interesses dos Estados dominantes. A “nação civilizada” passa a servir de padrão para a criação das normas do Direito Internacional.5 Essa idéia de Estados civilizados perdura até hoje como se verifica no art.38 da Carta da ONU: “A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: c) os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas.” 5 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 71 Em virtude da predominância do modelo inaugurado pelo Estado Nação, não havia espaço para atuação do indivíduo, haja vista que este não era sequer reconhecido como sujeito de Direito Internacional. Entretanto, com a 2ª Guerra Mundial e em virtude de uma série de fatores que se sucederam cronologicamente, o Direito Internacional Clássico entra em crise, dando lugar ao chamado Direito Internacional Contemporâneo. Sob esse foco, novas funções são conferidas ao Direito Internacional, a saber, a promoção dos direitos humanos e do desenvolvimento socioeconômico dos novos Estados. Com o pós-segunda-guerra-mundial, constata-se uma Sociedade internacional heterogênea e pouco integrada, surgindo a necessidade de ser dado um novo enfoque às funções do Direito Internacional, o que ocorreu graças ao desenvolvimento das organizações internacionais. Substitui-se aos poucos a idéia de coexistência pela idéia de cooperação por uma questão de necessidade. Surgem, então, as Organizações Internacionais e as normas para regular esse tipo de organização bem como a própria comunicação entre os países, instrumento fundamental para a cooperação e para o comércio. Nessa nova conjuntura, a melhor doutrina enxerga o indivíduo como sujeito de Direito Internacional. Na perspectiva dos Direitos Humanos, o individuo é, sem maiores discussões, aceito como sujeito de Direito Internacional e, no tocante a esse tema, sua subjetividade é exercida de forma mais explicita. Sobre essa questão, Flávia Piovesam afirma que: “Na medida em que guardam relação direta com os instrumentos internacionais de direitos humanos - que lhes atribuem direitos fundamentais imediatamente aplicáveis -, os indivíduos passam a ser concebidos como sujeitos de direito internacional. (...) Manuel Diez de Velasco cita como exemplos: a Revolução Soviética, a Revolução Colonial, a Revolução Científica e Técnica, a Degradação Ecológica. 7 Mister ressaltar que a história não é construída por rupturas. Diversas questões históricas e estruturais contribuíram para o desenvolvimento do Direito Internacional Contemporâneo, como as já anteriormente citadas. 6 72 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 No entanto, ainda é necessário democratizar determinados instrumentos e instituições internacionais, a fim de que possam prover um espaço participativo mais eficaz, que permita maior atuação de indivíduos e de entidades não governamentais mediante legitimação ampliada nos procedimentos e instâncias internacionais”. (PIOVESAM, Flavia. Direitos Humanos Globais, Justiça Internacional e o Brasil, p.7 e 8) A partir da noção de estrutura comunitária construída por Diez de Velasco (1997, pg.67), defende-se a necessidade da proteção solidária de certos interesses coletivos fundamentais. Vislumbra-se, nessa estrutura, uma Sociedade Internacional interdependente e, ao mesmo tempo, vulnerável que reclama restrições objetivas à vontade particular dos Estados para proteger os interesses coletivos fundamentais que apontam para a Dignidade da Pessoa Humana e para o Meio Ambiente. Pode-se concluir que a enumeração de obrigações erga omnes vai evidenciando a crescente importância do individuo no ordenamento internacional, de modo que, ele passa a ser também sujeito de direitos e não apenas o Estado, conforme o Direito Internacional Clássico. O reconhecimento progressivo do individuo como sujeito de Direito Internacional insere-se inquestionavelmente na temática da reforma da ONU. A Teoria Democrática, nesse ponto, traz o indivíduo para o cenário internacional como cidadão dessa comunidade política na medida em que é afetado por normas de caráter transnacional. Entende-se que o individuo é sujeito do Direito Internacional e, independentemente da sua nacionalidade, tem direitos perante essa comunidade. Propõe-se, aqui, a criação de uma Terceira Assembleia que permitiria a representação com base no individuo e, consequentemente, haveria maior participação das diferentes sociedades civis nos debates sobre a atuação da ONU, o que conferiria maior legitimidade para essa atuação. De fato, a ONU é o espaço privilegiado para o desenvolvimento das relações multilaterais e, por isso, o caminho da sua democratização deve considerar a participação de outros atores não-estatais. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 73 O Comitê por uma ONU Democrática (Komitee für eine Demokratische UNO, KDUN) criado em 2003, com sede em Berlim, tem empregado esforços para criar uma Assembléia Parlamentar nas Nações Unidas (APNU). O Comitê é não-partidário e visto como organização independente que apóia o fortalecimento da democracia na governança global. Sua principal estratégia consiste em agregar a APNU à Assembleia Geral da ONU como um corpo ou organização especial secundário com funções consultivas. Isso significa que a assembleia teria poder para delinear e aprovar resoluções de recomendação sem poder vinculativo e para submetê-las oficialmente à Assembleia Geral para informação e futura consideração. O Comitê para uma ONU Democrática reputa o estabelecimento de uma Assembleia Parlamentar nas Nações Unidas um passo decisivo para a introdução de uma nova forma de representação no cenário internacional, que prima pela inserção dos cidadãos nesse sistema. Uma Assembleia Parlamentar nas Nações Unidas não seria simplesmente uma nova instituição. Como voz dos cidadãos, tomando um ponto de vista global no interesse comum internacional, a Assembleia seria a manifestação e veículo de uma mudança de consciência e de compreensão das políticas internacionais. (BUMMEL, 2010, pg. 16) Resta, pois, evidenciado que a reforma da ONU remete, em linhas gerais, aos mecanismos de deliberação que tragam maior legitimidade para as suas próprias manifestações, uma vez que, a legitimidade da representação dos Estados, em suma, legitima o próprio Direito Internacional; daí, como já dito, a necessidade de promover a criação de organismos civis8 para expressar melhor a vontade da sociedade, pois afinal o 8 Dentre esses organismos, destaca-se, a Soka Gakkai Internacional (SGI), uma das maiores organizações não governamentais das Nações Unidas, com mais de 12 milhões de associados em 190 países e territórios. A SGI é oficialmente registrada como organização não-governamental (ONG) no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc), no Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), no Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas (UNDPI), na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e também é membra da Federação Mundial das Associações das Nações Unidas (WFUNA). No Brasil, merece destaque o instituto Humanitare que busca aproximar a sociedade civil das Nações Unidas. Nos termos do seu institucional, o Humanitare propõe um projeto de mobilização da sociedade em torno dos valores, princípios e propósitos das Nações Unidas, e promove as ações da ONU. A vinculação à ONU aproxima a sociedade às causas civilizatórias que afetam o conjunto da humanidade a partir do indivíduo e à coletividade: “O Humanitare”. O Humanitare (humanitas + habitare) sintetiza a essência dessa legitimidade: indivíduos interconectados e com visão compartilhada gerando consciência da interdependência para a sobrevivência das gerações vindouras. Humanitare é a união de solidariedade entre iguais. 74 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Estado é uma comunidade política juridicamente organizada. 5. Conclusão A reforma das instituições, como sustentado nessa análise, tem que ser guiada por um processo democrático inclusivo para viabilizar a participação das grandes potências, dos Estados em desenvolvimento, dos atores não-governamentais e dos acadêmicos. A reforma, além disso, precisa considerar questões como a justiça social. Não há como negar o surgimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional que prima pelo equilíbrio entre os direitos e interesses econômicos dos Estados detentores do Capital e da Tecnologia (Estados Desenvolvidos), de um lado, e, de outro, dos direitos e interesses dos Estados receptores dessas tecnologias (Estados em desenvolvimento). As Nações Unidas, por mais insuficientes que sejam, se fundam na idéia de pacifismo ativo. O pacifismo ativo promove a cultura da cooperação, do diálogo, da reciprocidade, do “contrato social”, obrigando o respeito às normas comuns e a “horizontalidade”, por oposição à lógica hierárquica do poder. O pacifismo ativo também exige pluralismo midiático para garantir a expressão de pontos de vista de oposição, bem como um distanciamento histórico. Afastando-se da lógica individual e utilitarista, cabe a ONU, vista como uma organização democrática, a promoção dos direitos humanos e do desenvolvimento socioeconômico dos novos Estados, o que conjuga a atuação mais incisiva do Conselho Econômico e Social com a autonomia dos povos. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 75 Referências Bibliográficas BUMMEL, Andreas. Developing International Democracy. For a Parliamentary Assembly at the United Nations. 2ª edição, Berlim: Committee for a Democratic U.N, 2010. DIEZ DE VELASCO, Manuel. Instituiciones de Derecho Internacional Publico, 11ª edição, Madri: Editoria Tecnos, 1997. HERZ, Mônica. A Internacionalização da Política: A Perspectiva Cosmopolita em face do Debate sobre a Democratização da ONU. Contexto Internacional, vol. 21, nº 2, julho/dezembro 1999. MORENO, Marta Fernández. Propostas de Democratização das Nações Unidas, Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 23, nº 1, janeiro/junho 2001. PIOVESAM, Flavia. Direitos Humanos Globais, Justiça Internacional e o Brasil, Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, vol.15, ano 8, janeiro/junho 2000. TOMASSINI, Luciano. As nações unidas em um mundo pós-nacional. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 17, nº 2, julho/dezembro 1995. 76 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Sócrates e a ideia de lei no século V a.C. Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho¹ Orientador: Bruno Amaro Lacerda Resumo Este artigo tem como objetivo resgatar o conceito grego de lei do século VIII a.C. ao V a.C. com enfoque no pensamento socrático. Palavras-chave: Platão. Sócrates. Lei. Justiça. Desconstrução ¹Graduando em Direito pela UFJF e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. [email protected] ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 77 Abstract This article aims to rescue the Greek concept of law of the eighth century BC to BC with a focus on Socratic thought. Keywords: Plato. Socrates. Law. Justice. Deconstruction 78 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 1. Introdução A busca pela atualização, uma necessidade permanente dos estudiosos e aplicadores do direito, vem se tornando uma espécie de fetiche. A mais recente súmula vinculante, o mais novo entendimento dominante da turma do tribunal, a última lei publicada no Diário Oficial deixam certos juristas fascinados. Para estes, pode parecer no mínimo inusitado uma análise sobre a lei na Grécia no século V a.C.. Tal empreitada seria mais adequada para a História ou a Arqueologia, mas não para o Direito. No entanto, o objetivo desta incursão na Antiguidade não é o passado, e sim o presente. O estudo aqui realizado se aproxima do que o filósofo argelino Jacques Derrida chamou de desconstrução (DERRIDA, 2010, p. 36-39). Trata-se de um duplo movimento que em um primeiro momento cria uma responsabilidade sem limites diante da memória. Busca-se “lembrar a história, a origem, o sentido, isto é, os limites dos conceitos de justiça, de lei e de direito, dos valores, normas, prescrições que ali se impuseram e se sedimentaram, permanecendo, desde então, mais ou menos legíveis ou pressupostos” (DERRIDA, 2010, p. 36). Deve-se ouvir estes conceitos, tentar compreender de onde eles vêm, o que querem de nós, entender como se relacionam com a natureza da realidade e qual papel ocupam na constituição do ser. Assim, esta postura crítica diante do passado, que mantêm o questionamento sempre vivo, acaba por romper com uma série de axiomas, pondo em suspenso toda uma rede de conceitos. No momento desta desconstrução não passa a vigorar um vazio. Nesta segunda etapa, na qual os axiomas estão suspensos, é que ocorrem as transformações. Estas são motivadas por uma insatisfação com o que temos diante dos olhos, um descontentamento com que nos é dado, e convergem para uma reformulação destes conceitos, uma reconstrução na qual eles são ampliados e almejam que a lei, o direito e justiça possam realizar uma ordem ideal de valores. Dito de outra forma, o que aqui se busca não se esgota no passado, é mais do que um conhecer a origem; ao voltar-se para o mundo antigo, no ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 79 presente caso, para a lei, quer-se romper com o presente, dada a sua debilidade, para que a partir daí o ser humano possa ser em sua totalidade. Neste artigo se fará uma análise da posição de Sócrates sobre a lei, especificamente a adotada no diálogo Críton, de Platão. Para tanto, será preciso que se inicie por uma apresentação do contexto conjuntural em que se insere a obra, só depois passando para o estudo desta e para as contribuições que ela poderá dar para o debate jurídico presente. 2. De Thémis a Nómos A primeira parte deste trabalho consiste em um estudo geral do pensamento grego a respeito da lei. Infelizmente não será possível abordar de forma profunda as reflexões feitas na Antiguidade, tampouco apresentar a obra de todos os autores deste período, sendo assim, tratar-se-á apenas de um panorama das investigações feitas sobre este tema dentre os séculos VIII a V a.C. na Grécia. Antes do início, faz-se necessário uma pequena consideração. Como lembrado oportunamente por Martin Heidegger em sua Introdução à filosofia todo ente se situa em um determinado contexto conjuntural, dentro de um todo, e “tudo sempre [está] respectivamente relacionado ao todo, mostrando uma referência a ele e devendo o seu si 'mesmo' a essa referencialidade. Todo indivíduo acolheu em si o todo”(HEIDEGGER, 2009, p.80). Deste modo, só é possível apreender um ente em sua totalidade se o contexto conjuntural, o todo no qual ele estiver inserido também for apreendido, pois “o objeto singular que visualizamos é justamente esse objeto individual apenas no todo do contexto” (HEIDEGGER, 2009, p.81). A realidade grega daqueles séculos passados era essencialmente diversa da realidade atual. Os conceitos que vigiam na época a respeito das leis, Estado e cidadão, além da forma como estes se relacionavam, diferem, e muito dos de hoje. Assim, a última coisa que pode ser feita ao se estudar a Antiguidade é enxergá-la com os óculos da 80 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Modernidade. Se tentarmos apreender o período clássico com o olhar do presente, esta visão míope não apenas estará impossibilitada de conhecer o que ele de fato era, mas resultará em uma percepção totalmente distorcida e equivocada. Só será possível conhecer o que de fato era a lei para os gregos se compreendermos que eles estavam inseridos em um contexto conjuntural que não é o mesmo do contemporâneo, e que ele determinava o que estes conceitos eram. 2.1 A justiça arcaica em Homero e Hesíodo No início do livro primeiro de A política de Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão resume em um parágrafo a idéia que os gregos tinham a respeito do homem e da sua relação com a sociedade: “É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil e superior ao homem. Tal indivíduo merece como disse Homero, a censura cruel de ser sem família, sem leis, sem lar” (ARISTÓTELES, 2009, 1253a). O ser humano é um ser que está destinado a viver em sociedade, sendo somente possível uma existência fora dela para os deuses e os animais. Da mesma forma, é inconcebível uma sociedade sem regras. Estas são essenciais para formação e manutenção de toda e qualquer vida social. Assim, desde os primeiros documentos sobre a civilização grega, os poemas homéricos, a justiça e as normas já estão presentes, e ocupam um papel fundamental nestas obras. A palavra que Homero utilizava para designar as regras que regulavam a vida em sociedade era θέμις (thémis). A utilização deste vocábulo é muito significativa para entender a forma específica como a sociedade se organizava neste período, e o modo como se enxergavam as “leis” e a justiça. Primeiramente deve-se ressaltar que não é possível falar em leis durante este período, ao menos não como as leis positivas que possuímos. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 81 Thémistes, que significa algo próximo de “regulações”, se referia a costumes que eram transmitidos oralmente e ligados a uma tradição religiosa. O caráter religioso é o ponto mais importante destas normas, é dele que elas retiram toda a sua legitimidade. As thémistes não eram produto dos homens, elas provinham dos deuses. Os reis as recebiam, conjuntamente com seu cetro, símbolo da autoridade do monarca, de Zeus, rei dos deuses e fonte divina de toda justiça na terra. Segundo Werner Jaeger “a conclusão que desta concepção da divindade suprema se depreende, é que o aspecto jurídico era o predominante na idéia que Homero tinha da autoridade real na terra, refletida em sua idéia dos deuses” (JAEGER, 1982, p. 7). Pode-se dizer que o aspecto jurídico era o determinante não somente na questão real, mas também para a organização da vida em sociedade. Ainda segundo Jaeger, era a justiça a linha de demarcação entre a barbárie e a civilização, e a garantia de segurança e proteção ao homem e aos seus bens. A concepção homérica de sociedade se fundava na justiça. (JAEGER, 1982, p. 8). Desta forma, mesmo sendo uma ordem jurídica arcaica e rudimentar, na qual o poder estava nas mãos dos reis, e as regras não passavam de costumes transmitidos oralmente que eram extraídos da boca dos oráculos, o direito já possuía um papel central na Grécia de Homero. Também no século VIII a.C. outro poeta escreveu duas obras que muito contribuíram para as reflexões sobre a lei e justiça. Os poemas de Hesíodo são de uma época próxima aos de Homero (provavelmente foram escritos no início do século VIII a.C.), e assim guardam com ele alguns pontos em comum, no entanto existem diferenças entre os relatos, demonstrando o surgimento de uma mudança na percepção da ordem jurídica e da sua relação com o homem. Na sua Teogonia, Hesíodo conta por meio de um mito a formação dos deuses do Olimpo, na qual ocorreram diversas sucessões, e que terminou com o estabelecimento do reinado de Zeus. Este ao vencer seu pai Cronos em uma batalha, estabeleceu a ordem atual do mundo, que é fundada no respeito e na justiça. Esta ordem divina que governa todo o Cosmos alcançava também o homem. Com isso, Zeus impôs ao ser humano uma norma (nómos) segundo a qual todos deveriam tratar-se com justiça (díke). Era esta norma que dava ao ser humano uma posição superior na hierarquia das demais criaturas, e que impedia que os homens, assim como os animais, se devorassem uns aos outros. Aqui já é 82 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 possível notar uma distinção entre o poeta do início do século VIII e o do final desta época. Enquanto para Homero as regras estavam exclusivamente nas mãos dos reis, que as recebiam de Zeus, Hesíodo se refere a elas como algo que é dado a todos os homens. Nesta mudança o direito vai deixando de ser algo autoritário, submetido ao poder de um só, para ir se transformando em uma ordem mais democrática, na qual se começa a existir uma igualdade diante da lei. Outra diferença entre Homero e Hesíodo é que se em ambos a justiça era o suporte da vida em sociedade e o maior de todos os bens, sendo ainda obra direta de Zeus, na visão deste último poeta o homem pode escolher se irá ou não cumprir as ordens divinas, definindo qual comportamento irá adotar. Esse pode ser justo, que é a concretização do governo unitário estabelecido por Zeus, e que resulta nos maiores bens para a cidade; ou o injusto, que resulta em um mal para toda a sociedade, e torna necessária uma compensação divina para o restabelecimento da ordem do mundo. Como bem sintetiza Bruno Lacerda: “a justiça dos homens continua baseada nas thémistes de Zeus (...) Mas a diferença é que Hesíodo sente que é capaz de escolher racionalmente se cumprirá ou não as ordenanças divinas” (LACERDA, 2009, p.35). A ordem jurídica continua atrelada aos deuses, mas o homem já tem uma autonomia com relação a ela. 2.2. O surgimento da lei Se os poemas de Hesíodo sinalizam um movimento de mudança no olhar sobre a lei e a justiça, as transformações sociais que se iniciaram no século VIII a.C. resultaram em uma ordem jurídica radicalmente nova. No começo daquele século se organizaram as primeiras cidades gregas, desaparecendo a ordem feudal fundada na autoridade dos reis. Nestas novas cidades os regimes monárquicos, nos quais o poder político e a administração da justiça e das leis estavam nas mãos do soberano, foram substituídos por regimes aristocráticos, possibilitando a existência de uma vida política social. Outra alteração ocorreu na esfera econômica. Esta época testemunhou um grande crescimento das transações comercias, produto do expansionismo marítimo e da ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 83 fundação de colônias, da proliferação dos portos e do estabelecimento do uso da moeda. No entanto, como é comum até nos dias de hoje, este crescimento da economia não foi revertido em benefício de toda a população; ao contrário, ele acentuou a desigualdade já existente entre aristocratas e camponeses. A situação desses só piorou com o novo cenário econômico, em que eles cada vez se endividavam mais e se tornavam servos em função destas dívidas. Esta significativa piora na vida da população gerou o clamor por uma mudança social, pela implantação de uma ordem que fosse realmente justa. “Diante dessa situação, percebe-se que aqueles novos tempos não comportavam mais somente lamentos e esperanças em uma justiça divina” (LACERDA, 2009, p.38). De fato, a ordem do cosmos estabelecida por Zeus baseada na justiça não parecia mais ser tão justa. Nesta época mais um fator foi determinante para que se surgissem transformações nas normas gregas vigentes, a difusão da escrita. Datam do meio do século VIII a.C. os primeiros testemunhos da utilização de um alfabeto grego derivado do fenício – existem relatos anteriores de um silabário micênico que desapareceu. Jacqueline de Romilly afirma que por meio da escrita “era fácil estabelecer, de uma vez por todas e a disposição de todos, as regras que até então somente representavam tradições incertas submetidas, seja ao segredo, seja ao arbítrio das interpretações. A lei política só podia tomar forma no dia que ela pudesse ser consignada por escrito” (ROMILLY, 2004, p.14). As leis escritas supriram uma necessidade advinda da formação das cidades e do início da vida política nestas, já que a nova forma de organização social demandava normas que fossem do conhecimento de todos, que tivessem uma validade na totalidade do território da cidade, que não variassem conforme a ocasião, e que não estivessem submetidas às vontades de um só, ou seja, leis objetivas. Além disso, da codificação resultaram benefícios, como a igualdade diante da lei (isonomía), pois a partir do momento em que as leis foram escritas elas não podiam mais variar de acordo com a pessoa a quem elas seriam aplicadas, deixando de serem benéficas somente para alguns e passando a serem iguais para todos. Produto deste contexto conjuntural emergente foi, então, a era dos grandes legisladores. Um dos primeiros e também um dos mais notáveis foi Sólon, que assumiu 84 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 a função de fazer leis para Atenas após tal tarefa ter sido desempenhada por Drácon. Nesta época, início do século VI a.C., os atenienses viviam uma situação instável, de conflitos sociais acirrados pela profunda desigualdade social, e necessitavam de uma reforma da ordem vigente. As transformações implantadas por Sólon não resultaram na formação de uma democracia, mas somente de uma isonomía (igualdade diante da lei). Suas leis não almejavam uma revolução social, tão pouco favorecer uma classe determinada, mas sim criar um equilíbrio na sociedade; elas tentavam restabelecer a paz entre os cidadãos através de medidas para promover o bem comum e a justiça. O que as leis de Sólon buscavam era a consonância com a ordem natural do mundo estabelecida pelas divindades, queriam alcançar a eunomia, que significa algo como a boa ordem, ou ordem natural, unitária e verdadeira do universo baseada na justiça. Assim, a justiça humana em Sólon não se confunde com a mera obediência das leis, mas significa observar leis que concretizem esta harmonia ordenada do universo. Neste ponto do estudo faz-se necessário a apropriação da conclusão brilhante que Werner Jaeger faz em seu livro Alabanza de la ley: “Temos seguido o desenvolvimento do conceito grego de justiça desde Homero até Sólon, e este breve olhar tem chamado nossa atenção sobre um traço que, segundo comprovaremos, é essencial ao pensamento jurídico grego em todas suas fases: o nexo que une a justiça e o direito com a natureza da realidade” (JAEGER, 1982, p. 21). Sólon e os gregos não tinham aquilo que é um sintoma da modernidade, a visão curta. O olhar dos gregos sempre alcançou a totalidade. Muito antes de existir uma Filosofia do Direito, e talvez por isso, os gregos, ao refletirem sobre a lei e justiça, não se detinham em pormenores da legislação; suas investigações almejavam sempre que estes conceitos estivessem alinhados com a compreensão do ser, da realidade como um todo. Seu saber não era o saber especializado de hoje, que esconde uma incapacidade para lidar com a totalidade; era um conhecimento que ia em direção de uma formação efetiva, que queria compreender e alcançar uma ordem ideal fundada na virtude. No entanto, mesmo tendo os esforços convergidos para este objetivo, até a época, ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 85 eles não alcançaram sucesso. A Grécia, mesmo com os progressos atingidos, continuava uma sociedade injusta. Quando Sólon morreu, Atenas estava sobre o domínio do governo tirânico de Pisístrato. Um horizonte melhor somente desponta quando surge um novo legislador, Clístenes, o grande responsável pela existência de um regime democrático em Atenas. Sob suas ordens estabeleceu-se uma nova constituição, que deu fim ao regime de castas familiares, detendo assim o poder advindo das grandes famílias, que segregava por meio do sangue, e se criaram os démos, circunscrições territoriais dentro das quais todos, ricos e pobres, passavam a ser tratados igualmente de forma efetiva. Foi então, com a instituição da democracia e consequentemente das leis democráticas, que surgiram os primeiros relatos da utilização da palavra νόμος (nómos) para designar a lei positiva. Na época de legisladores como Drácon e Sólon o vocábulo utilizado para designar a lei escrita era thésmos. Esta mudança é muito expressiva, pois quando as leis deixam de ser obra de um indivíduo iluminado, seja pelas divindades, seja pela sabedoria, que está acima da sociedade, e passam a ser fruto da vontade democrática, o termo utilizado para se referir a estas leis também se modifica. Nas palavras de Jacqueline de Rommily “a partir desse momento a lei, fundamento e emanação da democracia, se torna lei política, se torna nómos” (ROMILLY, 2004, p.15). Além de lei política, nómos possuía vários outros usos, dentre os quais estavam costume, princípio moral e rito religioso. O fato de todas estas significações se darem por uma mesma palavra não é um acaso; ele revela a existência de uma ligação, de um vínculo determinante para se entender a lei neste período. Com o surgimento da ordem democrática e com o processo de codificação das normas, os gregos viram que eles mesmos, através da vontade própria e do acordo, poderiam criar suas leis, mas isso não fez com que a lei se tornasse apenas um ajuste. Muito mais do que uma simples convenção, a lei política da época juntava em um mesmo comando as regras criadas pelo consenso dos cidadãos; os costumes imemoriais que regiam a conduta cotidiana das pessoas; e a boa ordem, pautada pela justiça, que os deuses impuseram aos homens. De tal modo, a força da lei grega não repousa unicamente na sua codificação, mas está no encontro de todas as 86 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 noções citadas. Por fim, vale lembrar mais um fator que contribuiu para a formação deste juízo acerca da lei tão entusiástico. Neste momento de consolidação da sua democracia a Grécia foi invadida pelos persas, o que fez com que sua população se unisse contra o regime bárbaro e tirânico em defesa da sua ordem civilizada e democrática. O nómos, então, foi tido como símbolo da resistência grega, ele representava o ideal de soberania popular em oposição à submissão do povo às vontades de um déspota. Assim, por meio de elogios à lei, se buscou reafirmar o valor da pólis. Os relatos de Heródoto são o melhor testemunho deste comportamento. O historiador relata uma conversa entre Dário e Demarato na qual o primeiro desdenha do povo grego por serem livres e não se submeterem ao governo de um só, ao que o segundo responde que eles não são totalmente livres, pois tem um senhor, que é a lei, a quem temem ainda mais do que os vassalos do rei Persa o temem. A subordinação à lei é fruto, além dos elementos já citados, da visão que se tinha dela como garantidora da igualdade e da liberdade. A lei positiva comanda o Estado de forma soberana, não existindo ninguém acima dela, e assegura uma isonomia legal a todos. Além disso, era devido às leis políticas que se vivia em uma democracia e não em uma tirania, pois apenas onde as leis eram escritas os cidadãos tinham a possibilidade de se dirigir, não estando subjugados pelos arbítrios de um tirano. O governo das leis era, por assim dizer, o governo do povo, e somente onde existe o autogoverno, existe liberdade. É possível concluir, então concordando com Jacqueline de Rommily: “a lei é, por sua vez, o complemento da liberdade e sua garantia; e esta combinação caracteriza a Grécia” (ROMILLY, 2004, p.19). 3. A defesa da lei Após esse discurso caloroso sobre o nómos pode parecer despropositado o título ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 87 deste tópico. Com tantos elogios é de fato necessário realizar uma defesa da lei? A questão é que o discurso eufórico sobre a lei positiva não foi unânime e tampouco perpétuo no pensamento grego. Concomitantemente ao surgimento da lei democrática e da sua exaltação, também foram ouvidas diversas críticas às regras que eram produto de um acordo entre homens. As primeiras censuras às leis escritas são devidas ao seu caráter débil. Variáveis com o tempo, restritas a uma determinada localidade, impossibilitadas de abrangerem todas as condutas e muitas vezes distantes da justiça, logo se percebeu que a lei política estava cheia de deficiências, o que fez com que se buscasse mais acima uma forma de complementa-lá e supera-lá; apelou-se, então, para as leis divinas. Estas representavam o ideal de lei perfeita que os gregos buscavam: seguras, pautadas pela moralidade, universais, eternas, poderosas e inquebráveis. O amparo nestas leis não escritas é fruto de uma época em que a visão de mundo ainda está permeada pelas divindades. Na medida em que o pensamento evoluiu o caráter religioso se fez cada vez menos presente dando lugar a uma postura mais racional, que gerou novas críticas à lei e também novas soluções para seus problemas. Dentre os novos juízos produzidos, os mais severos foram os de Cálicles e Trasímaco. Não interessa aqui se eles existiram ou não, ou se foram verdadeiramente filósofos ou meros oradores raivosos, mas apenas as avaliações que produziram acerca da lei. Segundo Trasímaco, as leis e justiça não são nada mais que os desígnios de um grupo dominante: “Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram e cometeram uma injustiça” (PLATÃO, A República, 338e). Cálicles segue o mesmo raciocínio de Trasímaco, porém afirma que as leis são, na verdade, produto dos indivíduos fracos, que por estarem em maior número podem impor 88 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 sua vontade em um regime democrático: “No meu modo de pensar, as leis foram instituídas pelos fracos e pelas maiorias. É para eles e no interesse próprio que são feitas as leis e distribuídos os elogios, onde haja o que elogiar, ou censuras, sempre que houver algo para censurar” (PLATÃO, Górgias, 483b). O que Cálicles e Trasímaco vêem é que sendo a lei escrita um produto da vontade humana, ela pode ser cooptada por um determinado grupo e passar a servir aos interesses próprios destes, afastando-se do ideal de justiça que a ordem jurídica deveria perseguir. Tentar colocar juntos o legal e o verdadeiramente justo é o que Sócrates se propõe a fazer no diálogo Críton. 3.1. O diálogo Críton é um pequeno diálogo platônico cujos personagens são Sócrates e seu amigo Críton. A conversa entre os dois se passa na prisão, após o mestre de Platão ter sido condenado à morte pelos crimes de corrupção dos jovens e de invenção de novos deuses. Críton foi procurar o amigo com a intenção de aconselhá-lo a fugir para salvar sua vida. Ele inicia a conversa lhe dizendo que o cumprimento da sentença, além de privá-lo da convivência com Sócrates para sempre, também iria macular sua imagem perante a sociedade, pois aqueles que não o conhecem acharão que tendo a oportunidade de salvá-lo pagando o que fosse necessário, escolheu poupar seu dinheiro. Além disso, afirma que não se importará em enfrentar os piores perigos para salvá-lo e que ao ficar na prisão e se sujeitar à pena, Sócrates deixará seus filhos abandonados e estará cometendo uma ação injusta, pois trabalhará para facilitar sua morte, como querem seus inimigos. Após ouvir a exposição Sócrates diz que os empenhos de Críton serão louváveis se estiverem de acordo com as normas da justiça, sendo tão merecedores de desonra quanto mais distante dela estiver. Deste modo, manterá seu antigo hábito de não se sujeitar a outras razões que não à única que lhe pareça mais justa, após analisar todas as que são apresentadas. Ele afirma que mesmo estando o destino contra ele não abandonará os princípios básicos que sempre professou, pois sempre lhe afiguraram os mesmos e foram estimados de igual maneira. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 89 Assim, inicia a análise questionando se são todas as opiniões de todos dos homens devem ser levadas em conta, ou somente algumas de alguns homens, concluindo juntamente com seu amigo que não se deve ocupar daquilo que o povo e os ignorantes dirão, pois das suas más opiniões só poderá sobrevir o mal; devendo-se apenas observar os bons julgamentos, que são os dos homens sensatos. Portanto, não é preciso se preocupar com o que disser a multidão, mas somente com o que dirá o único que sabe o que é justo e o injusto, e este único juiz é a verdade. O segundo argumento apresentado é o de que jamais devemos cometer injustiças. Todas as injustiças são indignas e maléficas para aqueles que as cometem, diga o que disser a multidão, decorra delas o bem ou o mal. Deste modo, não se deve praticar injustiças em momento algum, mesmo que se seja vítima dela, e nem pagar o mal com o mal. Por fim, Sócrates e Críton afirmam que o homem que prometeu uma coisa justa deve cumpri-la, não faltando com a promessa. A análise apresentada por Sócrates não deixa dúvidas. Sua conduta é claramente pautada pela justiça e somente por ela. A fuga só ocorrerá se for justa; se não for, não há muito o que raciocinar, deve-se ficar e morrer ao invés de cometer um ato injusto. Porque então deste diálogo de Platão surgem tantas interpretações distintas, que variam desde a apresentação de Sócrates como o primeiro dos positivistas, passando por precursor do contrato social, até sua caracterização como um servo obediente da lei? Parte desta confusão se deve à segunda parte da exposição feita por Sócrates. Nela, usando-se de um recurso estranho a todas às outras obras platônicas, Sócrates abre mão de falar por si, e dá lugar ao que foi chamado de prosopopéia das leis. Aqui as leis da pólis são personificadas, e dão sequencia a conversa com Críton. No entanto, esta continuação não segue o estilo socrático, no qual os argumentos são desenvolvidos de maneira dialética. O discurso das leis foi feito através de uma oratória extremamente potente, digna de um sofista, que parece ter deixado os leitores da obra embriagados. As leis da República começam com o lógos de que a fuga as aniquilaria, pois sua sobrevivência, e também a do Estado, depende da observância das sentenças legais. Se 90 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 elas não tem poder, toda a ordem estatal será destruída advindo o mal a todos os cidadãos da pólis, ou seja, justamente àqueles que não merecem. Outra afirmação é a de a obediência às leis foi um ato voluntário. Sócrates as aceitou livremente por não ter nenhuma crítica a elas, concordar com as mesmas, e principalmente achar que são justas e boas. Ele, mais do que qualquer um, tendo a oportunidade de se retirar de Atenas caso suas leis não fossem do seu agrado, raramente saiu da ilha, tendo lá seus filhos, testemunho de seu amor pela ordem jurídica. Sua submissão foi um ato livre, decorrente da reflexão, que revelou o caráter justo e bom da convenção, e que ocorreu não por meio de palavras, mas de fato e de forma irrestrita. Por fim, tem-se o argumento arrebatador. Foi através das leis da pólis que se permitiu o nascimento, o sustento, a educação e o acesso aos bens a todos os cidadãos. Desta feita, a pátria se afigura mais digna de respeito que todos os parentes juntos; sendo preciso honrar a pátria, humilhar-se diante dela e obedecê-la mais que a um pai irado; devendo convencê-la por persuasão de que suas leis são injustas ou obedecê-las e sofrer sem refutar tudo aquilo que ela ordena. A eloquência deste último argumento é muito forte. Fixando-se o olhar apenas sobre ele, talvez, seja possível até chegar uma conclusão parecida com a de Kelsen, para quem o Críton é a mais verdadeira apologia do direito positivo, sendo sua ideia central a de que o cidadão não tem a capacidade de decidir se as leis existentes servem ao bem comum, ou são justas, devendo, por isso, obedecê-las em qualquer circunstância. (KELSEN, 1998, p. 516-518). Esta visão se ajusta muito bem a outra que vê no diálogo um viés totalitário, no qual o absoluto é o Estado, sendo o indivíduo apenas uma parte desse todo. O cidadão estaria submerso dentro da pólis, permanecendo esta acima de todos os valores. Juntandose ainda ao raciocínio partes de pensamentos produzidos pelos gregos, como “o Estado está na ordem da natureza e antes do indivíduo; porque se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo” (ARISTÓTELES, 2009, 1253a), este se torna completo. Como dito, é preciso para a correta compreensão do diálogo a visão dele com ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 91 todo, conjugando-se os argumentos desenvolvidos por Sócrates com os das leis da República, sempre levando em consideração o contexto conjuntural no qual ele está inserido. A pólis de forma nenhuma, tanto no texto de Platão quanto no pensamento grego, possui um valor absoluto, é um fim em si mesmo. Do mesmo modo ocorre com as leis. Assim como Sócrates afirma que não é ao viver que devemos dar o máximo valor, mas ao viver bem, não se deve dar o máximo valor às leis, mas sim às leis boas. Werner Jaeger lembra que a alta estima gozada pela pólis advinha da sua confusão com a ordem legal pela qual o povo havia lutado durante séculos. O Estado representava para os gregos a garantia de seus principais princípios: a igualdade de todos perante a lei, isonomia; e a proteção da autonomia dos indivíduos frente aos grupos poderosos, liberdade. A ordem citadina não era imposta mecanicamente pela autoridade estatal, não sendo as leis um simples decreto, mas sim nómos, conjunto do que os cidadãos respeitavam como um costume vivo acerca do que era justo ou injusto; norma consignada pelas mais antigas codificações e modificada gradualmente por meio do comum acordo acerca das mudanças que a reta razão parecia aconselhar. A pólis, enquanto ordem legal, era o molde da virtude de todo verdadeiro cidadão, assim a virtude cívica era a educação no espírito das leis (JAEGER, 1982, p. 34-36). Pode-se então dizer que a preeminência do Estado grego se devia, além do fato dele possibilitar a existência da vida humana, principalmente por ser nele que o homem desenvolve sua virtude, tornando-se o mais excelente de todos os animais (ARISTÓTELES, 2009, 1253a). O mesmo ocorre com as leis, que como visto estão fundidas à noção de pólis. O cidadão as aceita, concorda com elas, o que lhes confere autoridade, mas somente o faz porque estas normas estão de acordo com justiça e assim podem promover a boa ordem que resulta no bem-estar social. As leis na Grécia não são justas em si mesmas, a justiça não é uma característica intrínseca a elas, e não é apenas o fato de ser democrática ou de os cidadãos concordarem com elas que a justiça passa ser um atributo seu. Se existia a afirmação de que o justo era cumprir as leis, isto se deve ao fato das leis gregas sempre buscarem estar de acordo com a justiça, procurarem refletir aquilo 92 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 que a sociedade considerava ser o justo, e deste modo possibilitarem a promoção da virtude humana. No diálogo de Platão sob análise pode dizer que o justo e o legal se identificam, só que não pelo fato de Sócrates ter sido alguém que não conseguiu ver na justiça algo independente das leis citadinas, o que o torna um convencionalista (LACERDA, 2009, p.78), mas pelo fato das leis positivas se adequarem a noção prévia do que o cidadão tinha como sendo justo, e somente por isso aceitar tais leis. É claro que a vontade humana tem um papel primordial na ordem jurídica grega, seja criando as leis por meio de acordos, ou dando seu aceite àquelas já existentes após uma análise racional destas, pois é esta vontade autônoma que impede a imposição, seja por quem for, de uma noção de justiça e bem que o cidadão não concorde. Mas a convenção não pode retirar seu valor somente de si mesma, ela deve se basear em algo anterior, maior e mais elevado. Após tudo o que foi exposto é acertado concordar com Gregory Vlastos em seu ensaio Socrates on political obedience and desobedience, quando ele afirma que a lógica da posição de Sócrates no diálogo o deixa com “a obrigação de obedecer à autoridade do Estado em todos os lugares, mas sem expurgar outras obrigações em consequência das quais haverá tempos e lugares onde ele não deverá obedecer” (VLASTOS, 1995, p. 42). Pois, como dito, se o homem pode fazer suas leis e estas o obrigam, na medida em que ele concorda com elas, as leis escritas não podem ir de encontro às normas da justiça. 4. Conclusão A proposta deste artigo era desconstruir o conceito vigente de lei em sua debilidade, para que a partir do rompimento deste axioma fosse possível construir uma realidade nova e melhor. Aqueles que tiveram a paciência de chegar até aqui devem ter percebido que apenas se conseguiu tangenciar tal objetivo. Essa tarefa é muito complexa para um pesquisador iniciante, sendo possível no momento apenas dar um primeiro passo ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 93 na direção dessa meta. Ao longo do texto se mostrou, ainda que de forma superficial, que o saber grego não era especializado, ele abarcava a totalidade da realidade, e com isso as reflexões sobre lei não se detinham somente a ela, mas eram feitas em conjunto com os conceitos que se possuía sobre o homem, a sociedade, o Estado, a ordem jurídica, os costumes, a religião, os princípios morais e a ordem do cosmos, ou seja, com o todo. Com isso, acredita-se que caso o nosso conhecimento seja desenvolvido como faziam os gregos é possível sair de estudo detalhado e hermético sobre e a lei, romper com a visão não critica da lei, e assim conseguir alcançar uma nova compreensão da lei positiva, uma que mostre o que ela de fato é, qual papel ela ocupa na constituição do ser, qual sua relação com a natureza da realidade, e principalmente como ela pode auxiliar no alcance de uma ordem boa e harmoniosa. Ao voltar-se o olhar para o passado um outro conceito de lei se revelou; um que não atribui a justiça a lei em si mesma, e no qual sua autoridade não repouse sobre um fundamento místico ou em argumentos circulares, que afirmam a legitimidade de uma norma pelo cumprimento de certos procedimentos estabelecidos por outras regras. A nova realidade possível é aquela na qual o cidadão tem uma participação efetiva na ordem jurídica, que cada indivíduo tem um envolvimento direto com o corpo de normas do Estado, seja auxiliando na criação das leis, reformulando as já existentes ou simplesmente as livremente aceitando. A partir desta aproximação entre sociedade e leis, é possível que essas passem a ser verdadeiramente justas; não apenas por serem fruto de um acordo, mas por espelharem as noções de justiça compartilhadas pela comunidade. Este pode ser o primeiro movimento em direção à παιδεία (paidéia). 94 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Edipro, 2009. DERRIDA, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009. JAEGER, Werner. Alabanza de la ley. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1982. KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LACERDA, Bruno Amaro. Direito Natural em Platão. Curitiba: Juruá, 2009. PLATÃO. Górgias. In: Diálogos vol. III. Paraná: Universidade federal do Paraná, 1980 _______. Críton. In: Diálogos Socráticos vol. III. São Paulo: Edipro, 2008. _______. Críton. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. _______. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1949. ROMILLY, Jacqueline de. La ley en la Grecia clásica. Buenos Aires: Biblos, 2004. VLASTOS, Gregory. Studies in Greek Philosophy. New Jersey: Princeton University Press, 1995. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 95 96 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de constitucionalidade¹ Lucas Oliveira Lopes da Motta² Resumo Este artigo visa promover uma reflexão crítica acerca da conformação dada à ação no controle jurisdicional de constitucionalidade pátrio, indagando seus pressupostos históricos e políticos, cotejando posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema e demonstrando a relevância do papel da doutrina de precisar conceitos jurídicos. Palavras-chave: Sistema; Validade; Controle de Constitucionalidade; Ação Declaratória. ¹ Agradeço a Bruna Moura da Silva Guércio pelas críticas sempre construtivas e pelo imenso apoio. ² Aluno do 5º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 97 Abstract This article intends to promote a critical reflection on the configuration given to the lawsuit in the local judicial review, questioning its historical and political assumptions, comparing theoretical and jurisprudential positions on the issue and demonstrating the important role of the legal theory in specifying legal concepts. Keywords: System; Validity; Judicial Review; Declaratory Judgment. 98 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 1 Introdução O mito do legislador cem por cento racional desde há muito não angaria novos prosélitos. É cediço, hoje, que a produção normativa constitui-se num processo dialeticamente complexo, condicionada por (e condicionante de) vários fatores, dentre estes, a história de vida, as deficiências e a ideologia de cada legislador, bem como de cada órgão legiferante. Esta descrença em um poder legislativo perfeito, todavia, não é justificativa plausível para o comportamento passivo e positivista que muitos adotam em relação ao ordenamento jurídico vigente – sob o argumento de que este “é o melhor que se pode ter no momento”. De fato, inúmeros juristas limitam-se a descrever o que já está posto nos diplomas normativos, buscando soluções meramente pragmáticas, reduzindo, destarte, a doutrina jurídica – idealmente teórica – a uma doutrina puramente dogmática, que não se atreve a perscrutar as razões escusas dos textos normativos. A consciência de que a normatização perfeita é um parâmetro que nunca será alcançado não põe fim à busca por essa perfeição, busca esta que deve ser incessante. O homem, como animal político, animal racional que é, tem o dever-poder³ de produzir – enquanto produtor de normas – e de exigir – enquanto destinatário das normas – um ordenamento jurídico o mais coerente possível, livre não somente das antinomias clássicas (relações de contradição e contrariedade),4 mas também de quaisquer incongruências no trato com os fatos e com os próprios institutos jurídicos. Neste mister, a doutrina pode (e deve) atuar como um importante instrumento, como se infere do esclarecimento de Marcelo Neves em sua distinta obra “Teoria da inconstitucionalidade das leis”, in verbis: O problema do sistema global do Direito complica-se sobremaneira quando nele se integra o subsistema científico-jurídico [...]. Inegavelmente a Ciência do ³ Utilizamos a expressão “dever-poder”, cunhada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, pp. 71-72) em contraposição ao “poder-dever” de Santi Romano. Não obstante se refira originariamente aos atos administrativos, entendemos que, por analogia, tal expressão pode ser aplicada no presente estudo, embora o dever da sociedade de exigir uma prestação normativa racional não seja um dever funcional, mas um compromisso ético. 4 Sobre antinomias, cf. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, Brasília, Universidade de Brasília, 1999, pp. 81-86. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 99 Direito, enquanto subsistema nomoempírico teorético, é sempre condicionada pelo contexto fático-normativo-ideológico; e, reciprocamente, ela influi na mutação semântica das conexões de sentido normativo-jurídicas, atingindo assim os valores jurídicos e a prática jurídica. (NEVES, 1988, p. 15) Afastando-se da fastidiosa discussão sobre ter ou não ter o direito uma ciência stricto sensu própria,5 o que este estudo propugna é a exigência de cientificidade no elaborar, no interpretar, no aplicar e, principalmente, no estudar o ordenamento jurídico, para que o fenômeno dinâmico da construção normativa esteja embasado em um substrato teórico que lhe proporcione, no maior grau possível, coerência sistêmica. Este estudo busca, portanto, prestar uma pequena contribuição neste sentido, promovendo uma análise crítica da configuração normativa e jurisprudencial dada à natureza da ação no controle jurisdicional de constitucionalidade. 2. A perspectiva do direito positivo sobre a ação no controle de constitucionalidade De acordo com o hodierno direito positivo nacional, não há que se falar em dúvidas quanto à natureza da decisão ou acórdão judicial que “declara” a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo; como o próprio termo “declaração” – utilizado correntemente – já denuncia, atribui-se natureza precipuamente declaratória. Com efeito, a Lei 9868/99, que disciplina a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, utiliza-se, reiteradamente, da expressão “declaração de inconstitucionalidade”, como se vê em seus artigos seguintes (sublinhado nosso): art. 23, parágrafo único: Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade [...]; art. 26: A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei [...]; art. 27: Ao declarar a inconstitucionalidade Sobre a questão do direito enquanto ciência, cf. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, São Paulo, Saraiva, 2002, pp. 86-88; Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 175176. 5 100 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo [...]; e art. 28, parágrafo único: A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto [...]. No mesmo sentido se apresenta a Lei 9882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental, dispondo, em seu artigo 11 (sublinhado nosso): Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental [...]. No Judiciário, não é diferente. Uma breve busca na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que nossa Corte Constitucional segue a linha do padrão normativo supracitado, valendo-se da mesma expressão, como se observa nas seguintes ementas, dentre inúmeras outras: EMENTA6 : [...] CONSTITUCIONAL. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO TEMPORAL DA DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. A orientação do Supremo Tribunal Federal admite, em situações extremas, o reconhecimento de efeitos meramente prospectivos à declaração incidental de inconstitucionalidade. [...]. sublinhado nosso. EMENTA 7 : DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. [...] 3. A declaração de inconstitucionalidade das alíquotas progressivas do IPTU atinge apenas o sistema da progressividade, o que não impede a cobrança do tributo na totalidade. [...]. sublinhado nosso. Igualmente se dá em relação à ação judicial propriamente dita, que propugna pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Exemplo disto é o nome que o constituinte deu à ação – criada pela Emenda Constitucional 3/93 – designada à arguição direta de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal: “ação declaratória de constitucionalidade”.8 Assim, as ações deste teor são classificadas, quiçá 6 Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 550.734/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe-203 de 21-10-2011, p. 24, n. 258. 7 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 466.400/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe-196 de 13-10-2011, p. 20, n. 230. 8 V. art. 1º da Emenda Constitucional 3/93 c/c art. 102, I a, da Constituição Federal. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 101 unanimemente, como ações declaratórias. Inobstante, tal pacificidade legal, doutrinária e jurisprudencial carece, a nosso ver, de aprofundamento teórico, não sendo, portanto, suficiente para envolver o tema numa indenidade de fato. Através do clareamento dos conceitos de ordenamento jurídico, pertinência, validade e eficácia, bem como da natureza jurídica da lei inconstitucional e da ação declaratória, procurar-se-á demonstrar que a questão apresenta arestas ainda não devidamente aparadas. 3. O ordenamento jurídico enquanto sistema nomoempírico prescritivo Um grande complicador no estudo das ciências normativas, bem como das ciências sociais e humanas, diz respeito à plurivocidade de seus termos. Por isso, impende esclarecer, preliminarmente, o significado que será dado ao termo “sistema” neste estudo. De acordo com Norberto Bobbio, sistema significa uma totalidade de elementos num relacionamento de coerência com o todo e também entre si (BOBBIO, 1999, p. 71). Daí se deduz que um sistema é formado por: elementos, relação, coerência e unidade. Não obstante, Marcelo Neves demonstra, em sua teoria semiótica da inconstitucionalidade das leis, que a coerência é condição lógica necessária tão-somente para os sistemas proposicionais com função teorética. O insigne jusfilósofo distingue, com precisão terminológica, os diferentes tipos de sistemas (NEVES, 1988, pp. 1-8): Sistema empírico (ou real) versus sistema proposicional: Sistema empírico é aquele constituído de fenômenos físicos, psíquicos ou sociais em suas relações causais, cuja unidade se dá pelo modo como seus elementos se apresentam ao sujeito cognoscente. Sistema proposicional, por sua vez, constitui-se não de elementos reais, mas de elementos culturais, isto é, de produção humana orientada a um fim. Neste, a unidade do sistema é assegurada pela fundamentação comum. Sistema proposicional lógico (ou sistema nomológico) versus sistema proposicional empírico (ou sistema nomoempírico) 9 : Sistema nomológico é 9 Sobre o significado de nómos, cf. Henrique Cairus, Quando o nómos não é a lei. Disponível em <http://www.gtantiga.net/textos/quando%20o%20n%F3mos.pdf > Acesso em 01-12-2011. 102 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 formado por proposições analíticas de fundamento axiomático, sendo-lhe irrelevante os dados empíricos. Já o sistema nomoempírico compõe-se de proposições sintéticas, condicionadas fundamentalmente pela experiência. Sistema nomoempírico descritivo versus sistema nomoempírico prescritivo: O sistema nomoempírico descritivo constitui-se por proposições que pretendem representar de maneira fiel como se relacionam ou como devem se relacionar os dados reais. Tem função eminentemente teorética, sendo exemplos de sistemas nomoempíricos descritivos as ciências causais e as normativas. Aqui, conforme mencionado supra, aplica-se perfeitamente o conceito de sistema de Bobbio, no qual a unidade é condicionada pela existência de coerência entre seus elementos. Pode-se dizer que seus elementos têm pretensão de verdade.10 Finalmente, tem-se os sistemas nomoempíricos prescritivos (e, dentre estes, os de caráter jurídico). Estes não estão, como os descritivos, no mundo da gnose, mas no mundo da práxis, dado que não visam descrever a conduta humana, mas sim controlá-la e dirigi-la. A unidade, aqui, é um conceito puramente formal, e, em vez da pretensão de verdade, seus elementos têm pretensão de validade.11 Não se pode olvidar que o direito é um sistema pluridimensional, assimétrico e dialético (NEVES, 1988, p. 8). Há, deste modo, uma pluralidade de subsistemas que compõem o complexo fenômeno jurídico. O ordenamento jurídico, então, pode ser A ofensa à pretensão de verdade implica na automática expulsão do elemento, pois os sistemas nomoempíricos de função teorética não suportam antinomias. 11 Marcelo Neves anota que “em relação aos sistemas proposicionais prescritivos, a coerência é tão-só um ideal racional, fundado na exigência de segurança” (Teoria da inconstitucionalidade das leis, cit., p. 3). Inobstante, achamos por bem frisar que a busca por tal ideal se impõe como dever ético e jurídico ao legislador, pois a incoerência, isto é, a incompatibilidade material de uma proposição normativa em relação ao ordenamento, pode resultar na invalidade da norma. Contudo, a ofensa à pretensão de validade, apesar de minar a força unitária do ordenamento, não resulta na imediata expulsão do elemento inválido, pois esta depende dos critérios de admissão e expulsão do sistema. 10 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 103 definido como um subsistema nomoempírico prescritivo, o que importa dizer que seus elementos – as normas – têm pretensão de validade e estão insertas numa relação de unidade formal entre si e com o todo. Cumpre, todavia, distinguir validade de pertinência, para que passemos à análise da lei inconstitucional e da ação declaratória no controle de constitucionalidade. 4 . Pertinência, validade e eficácia Uma vez que nos sistemas nomoempíricos prescritivos a unidade não é consequência lógica da coerência, faz-se necessário encontrar qual mecanismo a garante, pois a sistematicidade do ordenamento jurídico só se configura em torno da unidade normativa (NEVES, 1988, p. 23). Kelsen e Hart se ocuparam deste problema, desenvolvendo, respectivamente, os conceitos de constituição em sentido material e regra de reconhecimento.12 Não obstante o relevante legado de tais construções à teoria constitucional, ambos os autores confundiram os conceitos de pertinência e validade, no sentido de que só pertenceriam ao sistema (seriam válidas) as normas que fossem produzidas conforme disposto na constituição material, ou que satisfizessem a todos os requisitos da regra de reconhecimento (NEVES, 1988, p. 40). Kelsen chegou a afirmar, em sua monografia Über Staatsunrecht 13 (1914), que a lei inconstitucional, isto é, inválida, não se tratava de um injusto e nem de um ato estatal viciado, mas de um nada jurídico (MENDES, 1990, p. 19). Marcelo Neves, tratando especificamente da questão, precisou a diferença entre pertinência e validade. Partindo da ideia de complexo normativo originário – “a totalidade das normas postas pelo poder constituinte (originário) ou por fatos costumeiros constituintes” 14 –, esclarece que são pertencentes ao ordenamento jurídico todas as 12 O primeiro diz respeito às normas constitucionais que versam sobre processo legislativo e competência; o segundo, à aprovação da norma pelo Parlamento inglês. 13 Nesse estudo, Kelsen assentara os pressupostos que embasariam sua teoria pura do direito. 14“O complexo normativo originário nem sempre corresponde à constituição em vigor, seja porque ela pode ter derivado de constituição anterior, conforme processo de mutação nesta previsto, isto é, sem descontinuidade jurídica interna, ou simplesmente porque tenham sido realizadas reformas parciais” (v. Marcelo Neves, Teoria da Inconstitucionalidade das leis, cit., p. 28, nota n. 48). 104 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 normas que retroagem (regular ou irregularmente) ao núcleo normativo originário – “conjunto de normas que instituem os órgãos e/ou fatos costumeiros básicos de produção normativo-jurídica no interior do sistema” (NEVES, 1988, pp. 24-25). Destarte, conclui que “uma norma pertence ao ordenamento jurídico quando emana de um ato formal de órgão do sistema, isto é, de órgão previsto direta ou indiretamente no núcleo normativo originário, e ainda não foi desconstituída por invalidade ou revogada” (NEVES, 1988, p. 43). A validade, por sua vez, refere-se não à pertinência da norma ao sistema, mas à sua regularidade, ou seja, às condições formais e materiais que a norma jurídica deve preencher para se ver isenta de defeitos. Assim sendo, será válida aquela que regressar, de modo perfeito, através dos processos de derivação-fundamentação formal e material ao complexo normativo originário. Isto significa que invalidade implica na nulidade ou anulabilidade da norma, e não na sua “inexistência jurídica” (NEVES, 1988, pp. 43-44). A questão se põe, também, como um problema lógico: para se atribuir a qualidade da nulidade ou da anulabilidade a algo, é preciso, antes, que algo exista. Nas palavras de Pontes de Miranda: “Defeituosidade não é inexistência. Para ter defeito, ou defeitos, é preciso existir”; “Nulo e anulável entram; o que não entra é o que não existe e, por isso mesmo, se diz inexistente” 15(NEVES, 1988, pp. 41-42). No mesmo sentido é o magistério de Miguel Reale sobre os atos jurídicos, o qual trazemos à colação: O ato inexistente, na realidade, carece de algum elemento constitutivo, permanecendo juridicamente embrionário, ainda em formação, devendo ser declarada a sua não-significação jurídica, se alguém o invocar como base de uma pretensão. Os atos nulos ou anuláveis, ao contrário, já reúnem todos os elementos constitutivos, mas de maneira aparente ou inidônea a produzir efeitos válidos, em 15 Embora Pontes de Miranda tenha se referido originariamente aos atos jurídicos, a ideia é perfeitamente aplicável às normas jurídicas. O termo “existência”, entretanto, não se mostra ideal, pois a norma jurídica não tem existência em si mesma, mas somente enquanto elemento pertencente a um ordenamento jurídico, detentor de um mínimo de eficácia (v. Marcelo Neves, Teoria da Inconstitucionalidade das leis, cit., p. 41, nota n. 7, e p. 42). ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 105 virtude de vícios inerentes a um ou mais de seus elementos constitutivos. (REALE, 2002, pp. 206-208) Por último, mas não menos importante, há a eficácia. Esta se divide em eficácia real e eficácia jurídica. A eficácia real corresponde aos efeitos fáticos irradiados da norma (válida ou inválida). Deste modo, ineficaz é, por exemplo, aquela norma ignorada (consciente ou inconscientemente) pela sociedade, incapaz, por isto, de dirigir de modo efetivo a conduta humana. A eficácia jurídica, por sua vez, diz respeito à aplicabilidade ou executoriedade da norma. Os dois tipos de eficácia têm importância fundamental para o funcionamento do ordenamento jurídico, sobretudo quando figuram como condição de pertinência e validade (condição reconhecida por Kelsen e Hart), conforme resume Marcelo Neves: Mas, como a validade pressupõe a pertinência, a efetividade global do ordenamento é condição de validade das normas, e um mínimo de eficácia de cada norma é condição de sua validade específica. (NEVES, 1988, p.51) 5. Considerações sobre a natureza jurídica da lei inconstitucional Diante de todo o exposto, não traz maiores dificuldades o reconhecimento da lei inconstitucional como lei inválida, isto é: lei que pertence ao ordenamento, mas que apresenta defeitos em seus pressupostos formais e/ou materiais; em suma, lei que não regressa de modo perfeito ao complexo normativo originário. Seus defeitos podem variar em quantidade e qualidade, o que importa afirmar que algumas restarão anuladas, enquanto outras, nulas. Entretanto, uma vez que a norma tenha sido produzida por ato formal de órgão legiferante previsto direta ou indiretamente no núcleo normativo originário, por mais numerosos e graves sejam seus vícios, estes nunca terão o condão de lhe negar existência jurídica, ou melhor, pertinência ao ordenamento jurídico. A norma somente será expulsa do sistema se for revogada ou desconstituída de acordo com procedimentos preestabelecidos no ordenamento. 106 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Inegavelmente, porém, a inserção da qualidade da inconstitucionalidade no âmbito exclusivo da validade, e não no da pertinência, não se coaduna perfeitamente com a disposição conferida à ação no atual sistema nacional de controle jurisdicional de constitucionalidade. A razão fulcral deste descompasso está, a nosso ver, na influência do direito alienígena e na consequente tradição político-jurídica que foi se firmando em solo brasileiro, que pode ser apercebida através de uma perfunctória análise da origem do controle de constitucionalidade pátrio. 5.1 Origem do controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil Sob a vigência da Constituição Imperial16(1824), o Brasil não conheceu do controle jurisdicional de constitucionalidade. A influência francesa ensejou um controle exclusivamente político, cabendo, pois, aos Poderes Legislativo e Executivo (este através do Poder Moderador) velar na guarda da Constituição (MENDES, 2010, pp. 1193-1194). Com a instauração da República, este panorama mudou. É inquestionável a influência do direito estadunidense sobre personalidades da época, juristas e entusiastas do modelo republicano – máxime Rui Barbosa –, influência esta que resultou na consagração (e posterior consolidação) do modelo difuso do controle jurisdicional na Constituição de 1891 17(MENDES, 2010, pp. 1194-1196). Cientes da influência norteamericana, teceremos, desde já, algumas considerações acerca do tratamento conferido à lei inconstitucional pela doutrina estadunidense. Não obstante a Supreme Court se limitasse a um controle incidenter tantum, isto é, à desaplicação da lei questionada ao caso sub judice – pois era a regra do stare decisis (ou regra do precedente) que objetivava as decisões judiciais –, o dogma da nulidade da lei inconstitucional imperava como princípio básico do modelo de controle norte-americano (MENDES, 1990, pp. 10-12). E lei nula era tida como lei inexistente (ou, como preferimos, 16 17 V. arts. 15, VIII e IX, e 98 da Constituição de 1824. V. arts. 59, §1º, a e b, e 60, a, da Constituição de 1891, e art. 13, §10, da Lei 221 de 20-11-1894. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 107 lei impertinente),18 como se depreende da lição de John Marshall, transcrita por Rui Barbosa: Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de legislação usual e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de natureza ilimitável. (MENDES, 1990, p. 11) negrito nosso. Westel W. Willoughby foi ainda mais enfático: There are not and cannot be degrees of legal validity. Any given rule of conduct or definition of a right either is or is not law. [...] Thus when any particular so-called law is declared unconstitutional by a competent court of last resort, the measure in question is not vetoed or annulled, but simply declared never to have been law at all, never to have been, in fact, anything more than a futile attempt at legislation on the part of the legislature enacting it. (MENDES, 1990, pp. 12-13) Os juristas brasileiros, na época, sem adentrarem no mérito dos fundamentos da teoria da nulidade, limitaram-se a reproduzir a prática e o magistério norte-americanos, numa autêntica adaptação dogmática, como se depreende da afirmação de Carlos Alberto Lúcio Bittencourt: Os nossos tratadistas [...] repetem a doutrina dos escritores americanos e as afirmações dos tribunais sem buscar-lhes o motivo, a causa, ou o fundamento. (MENDES, 1990, p. 13) Dessarte, a nulidade – confundida com impertinência – foi alçada à posição de consequência lógica necessária da inconstitucionalidade. A Constituição de 1934 19, apesar de sua curtíssima duração, buscou romper com a tradição da velha democracia liberal, instituindo uma democracia social, cujo maior 18 19 V. nota n. 15 supra. V. arts. 91, IV, 96, e 179 da Constituição de 1934. 108 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 paradigma era a Constituição de Weimar (BASTOS, 1997, p. 113). O Brasil, portanto, deixava de direcionar seus olhos exclusivamente para a América do Norte, para observar mais de perto a experiência política europeia. Foi então que a doutrina de Kelsen passou a influenciar sobremaneira legisladores e juristas brasileiros.20Sem dúvida, se é autorizado dizer que nosso controle difuso de constitucionalidade é de origem marshalliana, pode-se afirmar, no mesmo diapasão, que nosso controle concentrado tem origem kelseniana. Nesse sentido, ao modelo de controle difuso já consolidado, acrescentou-se, além da regra do full bench (ou cláusula de reserva de plenário), a competência do Senado Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”. Assim, num autêntico passo em direção à objetivação do controle de normas, buscava-se emprestar eficácia erga omnes às decisões do Excelso Pretório. Contudo, a maior inovação prevista na Carta de 34 foi a representação interventiva 21 – um primitivo controle de constitucionalidade concentrado, cuja representação estava confiada ao Procurador-Geral da República e condicionada à violação de princípios constitucionais sensíveis por alguma lei estadual. Pode-se dizer que era um protótipo do controle abstrato hodierno. Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, “não ocorreu, ainda, aqui, introdução da verdadeira, cabal, juridicamente perfeita e acabada ação de inconstitucionalidade”22 (BASTOS, 1997, p. 397). Dada a grande influência do mestre de Viena, não é demais relembrar sua posição quanto à lei inconstitucional. De maneira semelhante à doutrina estadunidense neste aspecto, Kelsen afirmava que a lei inconstitucional, antes de um injusto, era um nada jurídico.23 É bem verdade, porém, que, após a Constituição austríaca prever a 20 O então Deputado Nilo Alvarenga chegou a propor, na Constituinte de 34, a criação de um Tribunal Constitucional no molde kelseniano, com competência para julgar pedido de arguição de inconstitucionalidade formulado por qualquer sujeito de direito (v. Curso de direito constitucional, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco, São Paulo, Saraiva, 2010, pp. 1197, nota n. 15). 21 V. arts. 12 §2º, e 41, §3º, da Constituição de 1934. 22 Nesta mesma linha, Gilmar Ferreira Mendes, ao tratar da evolução do controle de constitucionalidade, só se utiliza do termo “controle abstrato de normas” ao se referir à representação de inconstitucionalidade inaugurada pela Emenda Constitucional 16/65 (cf. Curso de direito constitucional, cit., p. 1202). 23 V. tópico 4 supra. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 109 possibilidade da anulação da lei inconstitucional (e não somente a nulidade), Kelsen reformulou sua teoria neste ponto, distinguindo lei inconstitucional de contradição lógica, e dizendo que leis inconstitucionais são passíveis de serem simplesmente anuladas. Contudo, Ipsen revela que tal formulação kelseniana não tem natureza teórica, mas puramente dogmática, por tratar-se “de um projeto de solução para um problema concreto e, por seguinte, de uma assertiva dogmática” (MENDES, 1990, pp. 19-21). A plenitude do sistema de controle de normas no Brasil se deu, então, com a Constituição de 1946 24– mais especificamente, com a Emenda Constitucional 16/65 –, através da representação de inconstitucionalidade. Desde então, a estrutura do controle não teve suas bases alteradas; pelo contrário, este foi ampliado significativamente – mormente o controle concentrado – pela Constituição de 1988,25 que, além de prever expressamente a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e o controle abstrato da omissão legislativa, ampliou significativamente o rol de legitimados para a propositura da ação direta (MENDES, 1990, pp. 1212-1214). Percebe-se, portanto, que, tanto na origem do controle difuso, quanto na do controle concentrado, a ciência jurídica brasileira absorveu o dogma da nulidade (hoje já superado),26 bem como a confusão entre pertinência e validade. 6 .A ação declaratória e o controle de constitucionalidade Como já visto, leis, juízes e doutrinadores proclamam, tradicionalmente, o caráter declaratório da ação que objetiva a pronúncia judicial sobre a constitucionalidade de determinada norma.27 No entanto, o que define uma ação declaratória? Antes de se buscar uma resposta para esta pergunta, há de se esclarecer que V. art. 101 da Constituição de 1946 c/c art. 2º da Emenda Constitucional 16/65. V. arts. 102, I, a, §1º, e 103, I a IX, §2º, da Constituição Federal de 1988. 26 V. art. 27 da Lei 9868/99 e art. 11 da Lei 9882/99. 27 V. tópico 2 supra. 24 25 110 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 nenhuma ação é pura; isto é, nenhuma ação é exclusivamente declaratória, constitutiva ou condenatória, por exemplo. Por outro lado, embora estes caracteres ordinariamente se imiscuam, a ação não deixa de ter uma índole essencial que se sobreleva sobre as outras. Assim leciona Pontes de Miranda: Não há nenhuma sentença que seja pura. Nenhuma é somente declarativa. Nenhuma é somente constitutiva. Nenhuma é somente condenatória. Nenhuma é somente mandamental. Nenhuma é somente executiva. A ação somente é declaratória porque a sua eficácia maior é a de declarar. A ação declaratória é a ação predominantemente declaratória. Mais se quer que se declare do que se mande, do que se constitua, do que se condene, do que se execute. (LOPES, 2009, p. 48) Posto isto, pode-se dizer que a ação declaratória – também chamada de ação meramente declaratória – é uma das espécies do gênero “ação de conhecimento”, e “visa apenas à declaração da existência ou inexistência da relação jurídica; excepcionalmente, a lei pode prever a declaração de meros fatos” (CINTRA, 2011, p. 329). De fato, seu objeto é delimitado pelo Código de Processo Civil, que prevê: Art. 4.º O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência ou da inexistência de relação jurídica; II – da autenticidade ou falsidade de documento. Portanto, conceitua-se, em poucas palavras, a ação declaratória como aquela ação em que se busca precipuamente a declaração da existência ou da inexistência de relação jurídica, e, excepcionalmente, da autenticidade ou falsidade de documento. Deste modo, seu âmbito de atuação se circunscreve a uma relação jurídica, sendo incabível a declaração de mero fato (senão excepcionalmente) ou de pura questão de direito, por mais intrincada que seja. Exemplo lapidar de cabimento desta ação é aquele em que se pede a declaração de existência de casamento, cujo registro se perdeu (LOPES, 2009, p. 76-78). Seu escopo principal é atingir, através da autoridade da coisa julgada da decisão judicial, o valor segurança (LOPES, 2009, pp. 31-32). A ação denominada constitutiva, por sua vez, é aquela que traz consigo a ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 111 peculiaridade da modificação de uma situação jurídica anterior, podendo constituí-la, modificá-la ou extingui-la (CINTRA, 2011, p. 331). Diferentemente da declaratória, que se encontra no plano da existência, a ação constitutiva se encontra no plano da validade, perquirindo se é válida ou não uma situação ou ato jurídico – ou, no nosso caso específico, ato normativo – que já possui existência anterior. João Batista Lopes procede a uma distinção entre estes dois tipos de ação, que reputamos crucial para este estudo: Esclareça-se que a sentença será declaratória (e não constitutiva) porque sua eficácia preponderante não é a criação ou constituição de ato jurídico já existente, mas sim o reconhecimento judicial de sua existência. Quanto à validade ou invalidade de contrato de compra e venda – incluam-se, também, os demais contratos –, a declaratória se mostra incabível, por isso que a sentença colimada terá caráter preponderantemente constitutivo. Com efeito, só impropriamente se poderá falar em declaração de validade ou invalidade de contrato, já que inquestionável será a alteração no mundo jurídico provocada pelo pronunciamento judicial da invalidade. [...] Assim sendo, a decretação da nulidade implicará desconstituição do negócio jurídico com efeito ex tunc. É o bastante para inadmitir-se a tutela declaratória, porque, na lapidar expressão de Pontes de Miranda, “quem desconstitui, não declara, desfaz”. (LOPES, 2009, pp. 79-80) negrito nosso. Mutatis mutandis, a formulação acima é perfeitamente aplicável aos atos normativos; isto é, a invalidade (leia-se: inconstitucionalidade) de uma lei, inegavelmente, altera o mundo jurídico, pois tal lei acaba por ter sua eficácia suspensa – objetivamente (em controle concentrado) ou no caso concreto (em controle difuso). Ora, de acordo com os conceitos desenvolvidos ao longo deste artigo, tem-se que a lei denominada inconstitucional é, antes de tudo, pertencente ao ordenamento jurídico, uma vez emanada de ato de vontade de órgão previsto direta ou indiretamente no núcleo normativo originário, e ainda não desconstituída por invalidade ou revogada. É 112 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 justamente esta compreensão que obstaculiza o reconhecimento da ação de controle de constitucionalidade como declaratória. Em primeiro lugar, a ação de índole declaratória não se mostra adequada para atuar no plano da validade, mas sim no da existência. E, como já demonstrado, no controle de constitucionalidade não se discute a existência (pertinência) da lei, mas sim sua adequação formal e material ao complexo normativo originário. Além disso, o controle abstrato de normas é uma questão exclusivamente de direito, o que também não se coaduna com a limitação a “relação jurídica” imposta no artigo 4º do Código de Processo Civil. Por fim e principalmente, a pronúncia judicial sobre a constitucionalidade de uma lei – aqui nos referimos apenas ao controle concentrado e em abstrato – não tem o condão de declarar, concomitantemente à declaração da inconstitucionalidade da lei, que esta, por ser inconstitucional, não pertence ou nunca pertenceu ao ordenamento jurídico. Na verdade, a pronúncia da Corte Constitucional limita-se à verificação da validade ou da invalidade da lei. A expulsão da norma do ordenamento jurídico é uma consequência indireta da pronúncia da invalidade, de modo que: primeiramente, o Tribunal decide sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei; ao decidir pela inconstitucionalidade, o efeito imediato desta decisão é a perda da eficácia28 da lei tida como inconstitucional 29 ; só então, como efeito mediato, verifica-se a expulsão da lei inconstitucional do ordenamento jurídico. Essa expulsão ocorre porque a eficácia é condição de “existência” da norma jurídica 30. Aqui, sim, pode-se falar que a norma que não possui um mínimo de eficácia é um nada jurídico. Marcelo Neves não pôde ser mais claro: “[...] a perda definitiva da eficácia em sentido jurídico implica a desconstituição da norma, ou melhor, a sua expulsão do sistema jurídico” (NEVES, 1988, p.52). Pode-se contra-argumentar dizendo que este raciocínio só tem fundamento quando da declaração de inconstitucionalidade, uma vez que, confirmada a 28 Utilizamos aqui o termo “eficácia” sob a perspectiva semântica da eficácia jurídica, isto é, da exigibilidade da norma jurídica. 29 V. art. 102, §2º, da Constituição Federal. 30 Condição esta abonada por Kelsen e Hart (v. tópico 4 supra). ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 113 constitucionalidade, não ocorre nenhuma modificação lato sensu no mundo jurídico. Esta é, ao que parece, a posição de João Batista Lopes: Ação direta de inconstitucionalidade – [...] Em rigor técnico, não se cuida de ação declaratória, mas sim constitutiva, porquanto tem por finalidade pronunciamento judicial sobre a nulidade da lei contrária à Constituição. A decretação da inconstitucionalidade implicará na exclusão ou eliminação da norma ou ato conflitantes com a Constituição. [...] Ação declaratória de constitucionalidade – [...] Trata-se de ação declaratória porque a eficácia declaratória é preponderante. Em caso de improcedência, porém, a decisão se reveste de caráter constitutivo: a lei será declarada inconstitucional e, assim, banida do sistema. (LOPES, 2009, pp. 129-131) negrito nosso. Discordamos, neste ponto, do referido autor. Não nos afigura plausível condicionar a característica principal do processo à positividade ou negatividade da pronúncia judicial. Ou seja, não é porque o Tribunal confirmou a constitucionalidade que se estará diante de uma ação declaratória, bem como não é a declaração de inconstitucionalidade propriamente dita que configurará a ação constitutiva. A natureza jurídica da ação é vinculada à natureza do provimento que constitui o pedido, e não à decisão judicial. E, nestes casos, o pedido é sempre o mesmo: a análise judicial sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo. Este provimento, independentemente de sua decisão de mérito, está no plano exclusivo da validade, e não no da existência/pertinência. E mais: pode-se afirmar, com segurança, que ambas as ações (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) são, em suma, uma ação só, dada a natureza dúplice e objetiva do processo. Ao afirmar que se a decisão for pela constitucionalidade, estar-se-á diante de uma ação declaratória, então teria que se admitir o mesmo em relação à declaração de validade de um contrato: declarando-se o contrato válido, estar-se-ia diante de uma sentença declaratória. Todavia, neste 114 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 particular, João Batista Lopes, como visto em transcrição acima, limita-se a ressaltar o caráter constitutivo desta sentença, sem lhe atribuir naturezas distintas de acordo com seu dispositivo – no que concordamos com o autor. 7 Conclusão Infirma-se, portanto, o caráter predominantemente declaratório da ação no controle de constitucionalidade, atribuindo, tanto à ação quanto à pronúncia judicial, por ser uma característica inerente ao pedido formulado, caráter eminentemente constitutivo. Primeiro, porque o controle abstrato de normas trata de questões de direito, e não de relações jurídicas; segundo, porque o controle limita-se ao plano da validade; e, terceiro, porque não se “declara” que a norma não pertence ao sistema; na verdade, atribui-se à norma a qualidade da inconstitucionalidade. E não é esta inconstitucionalidade propriamente dita que expulsa a norma do sistema. O que a expulsa é o efeito da decisão judicial, a saber: a perda da eficácia jurídica da lei considerada inconstitucional. Esta especificação da ação no controle de constitucionalidade, da distinção entre ação declaratória e ação constitutiva, bem como dos vários conceitos distinguidos (como o de pertinência, de validade e de eficácia), se não tem, à primeira vista, importância prática, mostra-se fundamental para conferir maior rigor teórico no trato com o direito, o que acaba refletindo, invariavelmente, no mundo do ser, conferindo maior segurança à sociedade. Assim é, porque a falta de cientificidade político-jurídica tende ao estabelecimento natural de um cipoal burocrático e normativo que acaba por lesar o princípio da segurança jurídica. Sobre o valor deste princípio, transcrevemos brilhante passagem de Celso Antônio Bandeira de Mello: Esta “segurança jurídica” coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente – e não ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 115 aleatoriamente, ao mero sabor do acaso –, comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas. (MELLO, 2011, p. 124) Por fim, deve-se ressaltar que refoge aos limites deste artigo a pretensão de veicular uma verdade inexorável. O objetivo é muito mais modesto, e estará alcançado se este estudo lograr êxito em provocar uma reflexão crítica acerca dos conceitos jurídicos aqui trabalhados, bem como do modo com que vêm sendo tratados pelos aplicadores do direito. 116 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Referências bibliográficas BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. BOBBIO, Norberto; Teoria do ordenamento jurídico. trad. Maria Celeste C. J. Santos. 10. ed. Brasília: UnB, 1999. CAIRUS, Henrique. Quando o nómos não é a lei. Disponível em < http://www.gtantiga.net/textos/quando%20o%20n%F3mos.pdf > Acesso em 01-12-2011. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; CÂNDIDO, Rangel Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. LOPES, João Batista. Ação Declaratória. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. 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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 117 118 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade contemporânea Mariana Salimena Pires ¹ Resumo Este artigo tem como objetivo analisar as implicações da recente decisão do Supremo Tribunal Federal que estende aos casais homoafetivos a condição de entidade familiar, reconhecendo, destarte, a união estável homossexual. A adoção homoafetiva é o problema específico abordado, sendo examinado à luz da Lei, especialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei da adoção e a Constituição Federal; e das questões fáticas e filosóficas relacionadas, principalmente no que tange o desenvolvimento da criança e a atual jurisprudência sobre o tema. Palavras chave: adoção, união estável, direitos homossexuais, adoção homoafetiva. ¹Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 119 Abstract This paper aims to analyze the implications of the recent ruling of the Supreme Court that extends to homosexual couples the condition legal status of family entity, recognizing, therefore, the stable union to homosexuals. The problem of homoaffective adoption is the specific issue of an investigation guided by a critic of approach law and the recent jurisprudence of this subject, without disregard to the empirical and philosophical question related, specially the children's development and best interests. Key words: adoption, homosexual rights, homoaffective adoption, same- sex union 120 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 "O Amor, que não ousa dizer seu nome" Bateu-lhe à porta, ao acaso, um dia. E ele, inebriado pela cotovia (que paira à janela, mas depois some...), Sentiu crescer, súbito, na alma, u'a fome De algo que, até então, desconhecia. Desejo... estranheza... culpa... agonia...! Desce aos umbrais, na angústia que o consome! ... porém, depois das lágrimas enxutas, Chamou a cotovia, deu-lhe frutas, E sorveram, um no outro, a própria essência. E ambos, nessa atração de semelhantes, Num cingir de músculos, os amantes Ergueram-se aos portais da transcendência. -Oscar Wilde, 1876. 1.Introdução Com essa epígrafe o advogado Luis Roberto Barroso inicia sua defesa acerca dos direitos dos homossexuais em sessão histórica do STF: “Em 1521 era estabelecido que os homossexuais deviam ser condenados à morte na fogueira, seus bens confiscados e suas famílias consideradas infames por duas gerações.”. Tal prática parece tão surreal quanto as execuções em praças públicas; a idéia de que, até o século XIX, mulheres só podiam sair de casa acompanhadas e apenas para ir à Igreja, ou a proibição estrita do casamento interracial, que só se legalizou no século XX. A vida em sociedade manifesta uma consciência popular que, como na dialética hegeliana (HEGEL, 1807), está em constante movimento de afirmação, negação e ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 121 superação. Daí pode-se aferir que esse ethos² está em constante mudança, refletindo a aceitação da sociedade relativa ao contexto em que se insere. Assim, há por trás das práticas acima citadas, um juízo popular que delimita se são certas ou erradas, se quem as pratica é socialmente aceito ou marginalizado. No entanto, como a própria teoria hegeliana prega, a realidade do Espírito é movimento (op. Cit.). E, no movimento, se inserem valores do tímido avanço e modificação dessas práticas, culminando em um momento de êxito representado pela sua transformação dicotômica, de um âmbito a outro que é seu completo oposto, em que se fundamenta até representar um direito constitucionalmente previsto. O caso dos direitos homossexuais se insere no raciocínio apresentado acima: no momento da TESE, apresenta-se o fato inquestionável que é a evidente existência de casais homossexuais (segundo dados do Censo de 2010, já são mais de 60 mil casais no Brasil) acompanhada do lapso constitucional, já que não existe legislação que aborde especificamente esse objeto; No momento da negação (ANTÍTESE), podemos observar o tratamento moroso que é dado pela Justiça quanto ao assunto em questão, que há anos se mostra inerente à sociedade moderna mas é ignorado como um assunto proibido e preterido nas pautas jurídicas, além de um comportamento também estabelecido no seio da sociedade como um todo, em que há o novo que rompe com a estabilidade (SÍNTESE) anterior e o tradicional ; Um terceiro momento, a SÍNTESE, em que nós nos encontramos e é representado pela progressiva aceitação e atenção ao assunto, firmando as diretrizes que acompanham a inflexão do tema desde o momento da negação até o momento do seu conhecimento, pontualmente evidenciada pela decisão em que, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal vota a favor do reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar. A incompatibilidade que o STF elimina só pode ser compreendida à luz do contexto em que nos inserimos, retomando a noção do ethos temporal e espacial abordada ² Ethos aqui considerado como costume, forma de vida, susceptível tanto ao lugar onde se examina quanto à conjuntura temporal. 122 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 acima. O artigo 1723 do Código Civil traz, em sua redação que: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. (BRASIL, Art. 1723/CC) À primeira vista, nada há de inconstitucional no artigo em questão, mas através de uma análise contextual, observando os paradigmas da sociedade moderna, o dilema se mostra na definição arbitrária de entidade familiar como união do HOMEM e da MULHER. O legislador de 2002 não observa a negação explícita do núcleo familiar tradicional sendo manifestada socialmente com o crescente número de casais homossexuais e culmina por refletir no código uma postura que, hoje, se torna inadequada e até mesmo retrógrada, já que não é mais capaz de suportar uma realidade evidente. Destarte, o legislador moderno trata de compatibilizar a questão com a realidade histórica, como versa Savigny na Escola Histórica. “O povo é um ser vivo marcado por forças interiores e silenciosas que segrega uma espécie de consciência popular, o espírito do povo (Volksgeist). O povo é anterior e superior ao Estado e é do espírito do povo que brota tanto a língua como o direito”. (MALTEZ, 2009, p. XX) Essa decisão se trata de uma sentença aditiva, na qual se manipula uma norma para que esta seja plenamente compatível e coerente com a Constituição. Combinam-se na atividade do legislador tanto o dever de traduzir a realidade social quanto a necessidade e permissão de buscar a transformação da própria realidade. O Supremo Tribunal se atém à colisão normativa que se dá entre o dispositivo do Código Civil e o princípio da igualdade celebrado no Art. 5º /CF: (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”); e no preâmbulo da Carta Magna: ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 123 “Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias.”. (BRASIL, Constituição Federal de 1988) Na resolução da colisão, a solução praticada é a modificação de uma das normas em conflito, como versa Norberto Bobbio(2003), que no caso, foi uma modificação substancial, conteudística, não havendo modificação formal da letra da lei. Foi alterada a ratio legis, apesar de ter sido mantida a mens legis. Assim, podemos aqui compreender a decisão como estendendo os direitos que requerem união estável para a entidade familiar homoafetiva, fato que só foi possível porque a decisão foi norteada pelos princípios consignados na Constituição, principalmente no art. 5º, que proíbe a discriminação por gênero. A partir disso, intenciona-se expor as especificidades da adoção. A adoção é o ato de tornar parte da dinâmica familiar uma pessoa proveniente de uma história de vida distinta, podendo ser realizada por várias motivações, a impossibilidade de ter filhos ao auxílio de uma criança em dificuldades. Esse instituto é abordado em um código próprio, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990, doravante, ECA), na subseção IV, que estabelece que para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. Quanto ao adotando, são crianças e adolescentes de até 18 anos, órfãos de pais falecidos ou desconhecidos, ou cujos pais tenham perdido o pátrio poder ou que tenham concordado com a adoção de seu filho. É importante dizer que em relação aos adotandos acima de 12 anos, necessário é seu consentimento com a adoção. Ainda sobre a adoção, o ECA estabelece as diretrizes formais do processo: 124 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 “estágio de convivência acompanhado por equipe interprofissional a serviço da Justiça, com apoio de técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida”, “inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar”, Além de que: “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. No artigo 227, caput, CF/88 é estabelecida a função da família, tais quais: “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” Intenciona-se, destarte, mostrar que o processo da adoção é burocrático e minucioso, o Estado exerce um papel positivo face ao adotando ao estipular tal preparação psicológica, tanto do mesmo quanto da família que irá adotá-lo de modo a assegurar um convívio familiar saudável e desenvolvimento normal ao titular desse direito. Dessa forma, é possível refutar o temor infundado de que a criança poderia ser destinada a uma família desestruturada que prejudicaria sua evolução, haja vista que a o Poder Judiciário, através da Lei, age de maneira interventiva na pesquisa das condições para a adoção, tanto para casais tradicionais quanto para as novas modalidades de família. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 125 Ao prever as funções da família, o legislador cria uma categoria de requisitos mínimos para todos aqueles que vêm à vida nessa sociedade, se propondo a garantir esse mínimo como um direito fundamental. Assim, o Estado assume uma função positiva com essa prestação de garantir uma vida familiar saudável e, baseando-se na lógica da equidade que consiste base principiológica constitucional, estende esse direito também aos adotados. Para concretizar essa pretensão, cria análises tanto procedimentais quanto substanciais para o processo de adoção. Dessa maneira, age examinando o núcleo familiar que se propõe à adoção, sua dinâmica, seus componentes, assim como a aptidão psicológica desses, deliberando sobre a aptidão de receberem um novo ente familiar; atua também estabelecendo uma série de requisitos formais de burocracia, para que haja analogamente um grande controle e precisão no ato, não admitindo falhas e erros que poderiam causar eventuais danos aos participantes do processo. O processo evidencia tais requisitos formais: Inicialmente, deve-se procurar o Juizado da Infância e Juventude para que se possa solicitar uma entrevista com os técnicos para se informar sobre o pedido de inscrição (atendendo ao que se estabelece na lei, como idade mínima para se habilitar como adotante); depois, os técnicos, psicólogos e assistentes sociais conduzem entrevistas, buscam informações, analisam dados e visitam as residências dos pretensos adotantes; o pedido então segue para o promotor e para o juiz, que irá deferir sobre a habilitação dos adotantes, que em caso afirmativo os torna aptos a se inscreverem em um cadastro nacional de possíveis adotantes (momento no qual os adotantes informam suas preferências relativas à criança, tais como sexo e idade). Entretanto a adoção não se formaliza imediatamente com a chegada da criança, pois há um estágio de convivência, ou seja, um prazo em que se experimenta a inserção desse novo ente, em que se analisa se tem sido benéfica e salutar para o mesmo, podendo a adoção então ser deferida e formalizada ou não. É importante ressaltar que, uma vez formalizada, a adoção é irrevogável. Após uma análise à luz da Lei e da decisão do Supremo Tribunal Federal, chega-se à conclusão de que formalmente o direito de se aplicar para uma adoção conjunta é, de fato, estendido aos casais homossexuais. Pelo fato de consistirem, agora, núcleo familiar reconhecido pelo precedente, podem se inserir no processo de adoção pela lista nacional 126 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 ao lado dos casais tradicionais, ficando à mercê do mesmo exame e análise a que estes serão submetidos. No entanto, intenciona-se abordar alguns aspectos substanciais que são inerentes a essa nova modalidade de adoção, como a questão de aceitação social e desenvolvimento da criança. Tais facetas serão abordadas adiante. 2. O estado da arte: como o tema tem sido visto ultimamente No dia 6 de maio de 2011 a manchete da Folha de São Paulo declama: “União estável já vale para gays”; e o conteúdo da reportagem continua: “Em um julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal decidiu ontem que não há qualquer diferença entre as relações de homossexuais e heterossexuais. Pelo menos 7 dos 11 ministros consideraram que casais gays formam uma família e que possuem os mesmos direitos e deveres[...] Apesar de não ter tratado de questões específicas e polêmicas, como adoção, o voto majoritário permite isso aos gays, exatamente por igualá-los, sem qualquer restrição, aos heterossexuais”.(SELIGMAN, 2011) Em uma análise, o professor Joaquim Falcão aborda a questão procedimental da decisão levantada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pois, estritamente, iria requerer uma emenda constitucional para mudar o texto da lei, prática de reserva legal do Congresso e não do Judiciário. Porém “o argumento dos católicos é jurídico, a estratégia é política e o resultado, religioso. Se fosse necessária uma emenda à Constituição, seria preciso o voto favorável de pelo menos 357 congressistas. Evangélicos, católicos e outros grupos pressionaram os congressistas. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 127 Provavelmente não mudaria a Constituição [...] Há sempre um espaço para mudar a aplicação da Constituição sem precisar emendar seu texto”. (FALCÃO, 2011) Ainda na mesma reportagem, contrário ao resultado da sessão, se pronuncia o deputado federal Jair Bolsonaro: “O Judiciário era o último poder que faltava para ficar de costas para a família, a religião e os bons costumes”(BOLSONARO, J. 2011. Folha de S. Paulo), num derradeiro conflito com o que dispõe o Art. 5º /CF: (“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”) e com a noção laica de Estado em que vivemos. Sobre isso se manifesta também o Ministro do Supremo, Luiz Fux: “Por que o homossexual não pode constituir uma família? Por força de duas questões que são abominadas pela Constituição: a intolerância e o preconceito”. (FUX, L. 2011) Em pesquisas do IBGE (Censo 2010) relacionadas ao tema, a tendência da opinião pública se mostra evoluindo em direção a uma favorabilidade aos homossexuais: “De maneira geral, a pesquisa identifica que as pessoas menos incomodadas com o tema estão mais presentes entre as mulheres, os mais jovens, os mais escolarizados e as classes mais altas[...]Sobre a decisão do STF, 63% dos homens são contra, enquanto apenas 48% das mulheres são da mesma opinião. Entre os jovens de 16 a 24 anos, 60% são favoráveis. Já os maiores de 50 anos são majoritariamente contrários (73%). Entre as pessoas com formação até a quarta série do fundamental, 68% são contrários. Na parcela da população com nível superior, apenas 40% não são favoráveis à medida”(IBGE, 2010). 128 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 A pesquisa ilustra uma sociedade onde predomina o machismo e a homofobia³, apesar das exaustivas especificações constitucionais contra essa ideologia e as tentativas de conscientização da população. Mostra, também, que a resistência cai de uma geração para outra, o que evidencia a coerência da tese de Hegel de que a realidade e o movimento do espírito criam um novo momento de SÍNTESE, que se refletiria na consciência popular. Assim, vemos coligados dois aspectos antitéticos na opinião popular: por um lado, uma crescente aceitação, principalmente dos estratos sociais apontados na pesquisa, cujo futuro é otimista, já que penetra nas gerações mais jovens que contêm os formadores de opinião do amanhã; por outro lado, certa resistência em alguns outros grupos sociais, fruto principalmente do conhecimento vulgar, da cultura tradicionalista e católica, de uma sociedade onde o preconceito é enraizado e cultuado. Esses dois pólos convivem pela convivência entre várias gerações, que dividem não só opiniões como valores, e a própria tensão entre ambos gera progressos em temas que são examinados como “tabus” 3. O contra-argumento O principal ponto que se contrapõe à idéia da adoção homoafetiva é criado pelas condições sociais em que as formas contemporâneas de família se inserem, como apresentado acima, uma sociedade rígida enraizada na tradição e com temor aos novos rumos que segue, mas que no momento encontra espaços de evolução e crescente maleabilidade, o que evidencia um panorama otimista para o futuro. As questões da adoção e do casamento não foram abordadas diretamente pelo Supremo na sessão que estendeu a união estável aos casais homossexuais, então ainda permanecem nebulosas e dependentes de cada caso concreto e da interpretação do juiz. É certo, no entanto, que os caminhos para a permissão dessas práticas foi facilitado pelo ³O termo homofobia está sendo usado neste artigo com o sentido de aversão irreprimível a homossexuais. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 129 voto dos ministros do Supremo. A questão do casamento se mostra delicada, pois envolve uma crença religiosa, permeado de tradição e valores que, claramente, não são favoráveis a essa nova configuração que lhes é proposta. Quanto à adoção, os principais temores de alguns segmentos sociais abordam a inserção social e o desenvolvimento da criança adotada, pois se acredita que é primordial a referência materna e paterna na formação da personalidade, e uma criança criada na modalidade familiar homoparental careceria desses referenciais e até mesmo traria conseqüências na sua preferência sexual futura. Além disso, há manifesta preocupação quanto ao convívio social da criança adotada, que seria alvo de repúdio e escárnio no meio em que freqüenta. Essas ressalvas podem ser confrontadas com uma pesquisa sobre o processo de formação da criança relacionada com as configurações familiares. “Em tempos de fluidez e fragmentação das relações humanas, isso significa que a família tem sido recriada não mais segundo padrões hegemônicos do patriarcado, mas conforme demandas dos sujeitos e das possibilidades oferecidas pela sociedadeatualmente mais aberta e igualitária [...] Vivemos contextos sociais mais democráticos, que promovem expressões afetivas e sexuais mais livres. Em alguns países a flexibilização tem sido muito visível, bem como suas claras repercussões no que concerne à produção de novas conjugalidades e modos de viver as parentalidades. Embora o Brasil acompanhe essa tendência, nem sempre as novas formas de família são assimiladas sem preconceitos, as escolhas parecem ainda envergonhadas e, muitas vezes, procura-se escondê-las sob o manto normativo do patriarcado”(PASSOS, 2008) A jurista esclarece o progresso das novas configurações familiares, que se originam na sociedade contemporânea e na sua tendência de liberdade de expressão e, por extensão, de afeto, nas mais diversas modalidades em que este se apresenta. O 130 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 crescimento expressivo dos casais homossexuais (apontados aqui como FATO inegável e inerente à nossa sociedade) pode ser observado em todo o mundo, mas passa por juízos desiguais, dependente da cultura em que se examina. Sabemos que as diferenças culturais entre nações são consideráveis, então é compreensível que sejam aceitos sem resistência em umas e sejam condenados em outras. No caso do Brasil, presenciamos um progresso na aceitação desse fato, que encontra as maiores resistências no preconceito tão característico da nossa sociedade (uma antítese a uma nação tão mista), impedindo que se quebre a hegemonia segura das configurações tradicionais para conceder um direito de fato a um segmento ao qual só o que se destina a aversão e o medo. Os órgãos judiciários, detentores do controle de constitucionalidade, exame de colisões entre leis e ações práticas, são, na maioria das vezes, relacionados diretamente com interpretações mais tradicionais, primazia da Lei, salvaguarda dos costumes arraigados no seio social. O STF, órgão de última instância do Judiciário no Brasil, surpreendeu a muitos ao tomar a primeira atitude para enfrentar essa cultura do preconceito e do medo do diferente e conceder aos casais homossexuais tal direito. A faceta mais importante do amadurecimento da criança é a segurança que lhe é gerada pelas figuras paternais, conforme podemos perceber no excerto a seguir: “É essencial compreender que a criança, para não correr o risco de problemas psíquicos, tem necessidade, durante seu desenvolvimento, de dois adultos que possam se constituir como pais, ou seja, possam cumprir o trabalho psíquico da parentalidade.”. (DUBREUIL, 1998). Como podemos ver, essa função é representada pelas figuras adultas que a envolvem, não sendo estritamente relacionada aos gêneros. A noção comum de mãe e pai é uma construção tradicional, mas a essência da parentalidade é a relação entre a criança e o adulto, mitigada de aceitação, amor, afeto, etc. Isso evidencia que a crença de que o desenvolvimento infantil seria prejudicado pela ausência das referências tradicionais se ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 131 baseia em uma instituição tradicional e no “medo” de outros modos de criação, apoiados no preconceito já citado como característico de nossa sociedade. Outra faceta do desenvolvimento infantil se mostra na noção e conhecimento da origem da criança por ela mesma, haja vista que representa uma referência fundamental para o autoconhecimento, aceitação e relação familiar salutar. Por essa razão, um histórico transparente da vida do adotando leva ao desenvolvimento de uma criança bem resolvida com suas origens e situação. Com a noção da própria origem, a criança passa por um amadurecimento amparado pelo acolhimento parental, podendo assim estar preparada para as transições e mudanças dentro do grupo familiar e, posteriormente, com os ciclos sociais externos. Análogo às novas composições familiares é a própria dinâmica familiar. “Paradoxalmente, descarta o velho e mantém parte dele.”. (PASSOS, 2008). Novamente podemos ver o movimento dialético, neste momento na estrutura familiar, que confronta a todo tempo o velho e o novo, a tradição e as novas formações, culminando num momento de SÍNTESE que traz elementos dos dois momentos precedentes (TESE-ANTÍTESE). O núcleo familiar é dotado de uma inegável tradição, interferindo diretamente na psique infantil do terceiro elemento na vida parental (a própria criança) como elementos de referenciação e segurança. Entretanto, as novas estruturas familiares modernas confrontam essa tradição, não de modo a destruí-la, mas sim a recriando com elementos distintos, mantendo o seu núcleo essencial. Assim são concebidas as formas contemporâneas de família, tais quais o monoparentalismo, o homoparentalismo e a recomposição familiar (no caso de irmãos de outros casamentos inseridos na mesma realidade). Assim, percebemos que: “O que conta para o bebê é a qualidade do acolhimento afetivo e simbólico por meio do qual os adultos lhe garantem um lugar seguro e de reconhecimento”. (PASSOS, 2008). E, na mesma linha de pensamento, temos: “Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais 132 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 homossexuais4, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal)” ( EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMAO, RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 RS 2006/0209137-4) Quanto ao segundo temor abordado pela sociedade e citado acima, relativo ao provável escárnio e exclusão social pelo qual passaria o adotando de pais homoafetivos, não se sustenta como um argumento válido. Trata-se, invariavelmente, de um sofisma moderno fundado nas bases de um indisfarçável preconceito. Podemos comprovar isso exemplificando os direitos da mulher: inicialmente era inconcebível, por exemplo, uma mulher trabalhar fora de casa, pois iria sofrer preconceito no ambiente de trabalho e em todo seu ciclo social, vizinhos, amigos, familiares. Uma vez declarados seus direitos, foram se inserindo com cada vez mais força no mercado de trabalho, até que se tornou um fato inegável e progrediu até a total aceitação que se tem hoje em dia, estando equiparadas com o sexo masculino integralmente (ao menos no que tange o aspecto formal). O preconceito e deslocamento social de uma situação inédita para a época não constituiu um impedimento para o progresso dos direitos da mulher, e da mesma forma deve ocorrer com os direitos homossexuais. Os primeiros casos provavelmente sofrerão com o choque social que estão a promover, mas isso abrirá portas para a plena efetivação desses direitos e será dirimido pelo bom ambiente familiar, acolhedor, que será garantido pela exaustiva revisão estatal no chamado “melhor interesse da criança”. 4 Estudos realizados na Universidade da Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia americana de psicologia ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 133 4. Práxis Como dito por Guilherme Strenger, "a conjunção homossexualidade e família não está longe de se tornar um fato concreto a desafiar a criatividade da jurisprudência, no afrontamento desses novos impactos que reclamam jurisdição". (STRENGER ,G. 2006) Após a análise dos aspectos formais e substanciais que concernem à questão, nos dedicamos a um exame da prática atual em torno do assunto. Para isso, utilizaremos as mais recentes jurisprudências coletadas sobre o tema. No Processo 0582499-9/02, apreciado pela 2ª Vara da Infância da Juventude e Adoção, do Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba, consistiu uma apelação para adoção emanada por casal homossexual, tendo em vista habilitação para a adoção de crianças do sexo masculino maiores de 10 anos. No entanto, houve uma grande divergência no julgamento, cingindo à questão da idade mínima do adotando, a qual se desejou que fosse formalmente 12 anos, quando o adotando (à luz do ECA) tem o direito de expressar seu consentimento pela adoção. Munindo-se da decisão do STF, e de que: “seu estoque normativo não abre distinção entre adotante 'homo ou heteroafetivo'. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito e da regra do inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, combinadamente com o inciso IV do artigo 3º e o § 1º do artigo 5º da Carta Magna.Mas é óbvio que o mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de defesa e proteção do adotando, todo o conteúdo do artigo 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental” Ainda nesse processo, apreciou-se o conteúdo consagrado pela jurista Maria 134 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Berenice Dias: "A dificuldade de deferir adoções em face da orientação sexual dos pretendentes acaba impedindo que expressivo número de crianças seja subtraído de situações de vulnerabilidade. Não se pode olvidar a realidade social brasileira, com enorme contingente de crianças abandonadas, quando poderiam ter uma vida cercada de afeto e atenção. A adoção é o meio mais legítimo para assegurar respeito ao interesse superior da criança abrigada. É um direito fundamental de todo indivíduo usufruir de uma vida familiar e comunitária, contrapondo-se ao habitual sistema de institucionalizações, que mantém crianças e adolescentes, abandonados moral e materialmente pelos pais, em regime fechado, privando-os da colocação em família substituta. (Dias, Maria Berenice. União homoafetiva : o preconceito & a justiça / Maria Berenice Dias. 4. Ed. Ver. E atual. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009.)" Assim sendo, a decisão favoreceu às apelantes, concedendo-lhes a habilitação para a adoção. No Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4) intencionou-se a adoção de dois menores por casal homossexual, entre os quais já havia fortes vínculos afetivos e comprovada estabilidade da família. Na fundamentação do julgamento, aparecem novamente os conceitos de “melhor interesse da criança”, dever positivo do legislador frente a uma realidade metamórfica, constatação de estabilidade familiar e análise do caso concreto, no qual se constata: “10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da "realidade", são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 135 11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações.” Como se mostra perceptível nos casos analisados acima, todas as questões relativas a menores, como no critério de atribuição de guarda e na adoção, culminam no princípio do melhor interesse da criança, critério norteador das decisões que concernem menores, dentro do Direito de Família. Mas esse conceito abstrato: “não conseguiria capturar o fenômeno da família na sua vasta variedade e complexidade infindável [...] pode-se tentar delinear o interesse do menor como sendo todos os critérios de avaliação e resolução que possam conduzir à certeza de que estão sendo atendidos todos os propósitos, que levam ao esperado desenvolvimento educacional, ético e de saúde da criança, de acordo com os cânones vigentes” (CHAVES, MARIANNA. 2009) No caso do Recurso especial, exemplifica-se com maestria a noção empírica de melhor interesse da criança, haja vista que havia um relacionamento já estabelecido com fortes vínculos emocionais entre o casal e os adotandos, como dito, que já as chamavam de “mães” e estavam de certa forma, acostumadas com o homoparentalismo. Além disso, o casal até então se responsabilizava pela saúde, educação, lazer, bem-estar das crianças, como requer o artigo 227/CF citado acima. Processo:0648257-5 APELAÇÃO CÍVEL Nº. 648257-5 DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA 2ª VARA DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E 136 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 ADOÇÃO APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ APELADO : J. S. B. J. RELATOR : DES. COSTA BARROS Nesse processo, surge novamente a intenção de se estipular a idade mínima de 12 anos para o adotando no caso de casal homossexual, visto que, dessa forma, a criança poderia expressar seu consentimento ou não. No entanto, foi apontada uma falha nesse argumento: “Certo é que, quanto mais idade tem a criança, mais difícil é a sua adaptação num ambiente familiar diverso do modelo tradicional, posto que ela já tenha conceitos e preconceitos formados, muitas vezes estigmatizados pela sociedade.” (BARROS ,C. 2010). A imposição da idade mínima apenas para adoção homossexual claramente fere o princípio da isonomia (aqui entendido como “todos são iguais perante a lei”), já que impõe uma restrição fática, não prevista na lei, que poderia ser interpretada como um empecilho artificial imposto para a adoção homoafetiva. Além disso, novamente é apresentado um argumento de autoridade que clarifica a questão do desenvolvimento da criança: “Acerca do tema, ANA CARLA HARMATIUK MATOS, leciona: 'O que deve importar são as características pessoais dos pais (ou dos candidatos à adoção), sua capacitação, sua habilidade nos âmbitos emocional e patrimonial quanto às questões tão peculiares exigidas pelo universo da paternidade e maternidade.' E, mais adiante, observa: '(...) pesquisas realizadas pela Associação Americana de Psicologia indicam que"não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais heterossexuais. (...) o ambiente promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento 'psicológico das crianças'. A maioria das crianças em todos os estudos funcionou bem intelectualmente e 'não demonstrou comportamentos ego ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 137 destrutivo prejudiciais à comunidade'. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, autoestima, habilidade de liderança, ego-confiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais, que não demonstravam diferenças daqueles encontrados com seus pais heterossexuais" (MATOS, A. C. H. 2006) Dessa forma, durante o presente julgamento apreciou-se o pedido, constatando “inadmissível” a imposição de idade mínima do adotando, já que não encontra previsão legal: “Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê.” (BARROS, C. 2010) E também, a primazia dos princípios constitucionais: “Agora, impor aos apelantes crianças com estas características porque capazes de manifestar os seus preconceitos e aceitar ou não as intempéries de ter como pais um casal homossexual, é contrariar todo o discurso sobre igualdade e isonomia, princípios primordiais de garantia e direitos fundamentais.” (BARROS, C. 2010) 5. Conclusão A questão abordada neste artigo toca numa área sensível do Direito, contrapondo de maneira explícita a importância que presta à tradição e seu viés científico, que demanda renovação, pesquisa e evolução em um processo cíclico. Com a decisão do STF que reconhece a união estável homossexual, levando em conta seu status de última ratio, podemos conduzir uma análise acurada nas leis relativas à adoção e união estável. Concentrando primeiramente na letra fria da lei, temos uma 138 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 construção fundamentada de permissão da prática da adoção homoafetiva, haja vista que os requisitos para a adoção conjunta são a existência de união estável e um conjunto de condições sócio-psicológicas relacionadas à união familiar como ambiente de inserção de um novo componente. Em um segundo momento, a análise recai sobre as questões alheias à lei, tais como o desenvolvimento da criança e a inserção social dessa. Através das pesquisas e dados utilizados temos um panorama favorável para a nova composição familiar, pois comprovado está que não há malefícios na criação dessas crianças adotadas por famílias homoafetivas e também não há interferência fatal na sua escolha sexual e desenvolvimento psicológico. Em um terceiro momento, foca-se no exame fático da questão, como tem sido vista pela sociedade e como tem sido praticada nos Tribunais. As pesquisas do Censo 2010 e do Ibope apontam um tímido avanço no que tange a aceitação dos homossexuais como fato inegável do mundo contemporâneo e um considerável número de núcleos familiares homoafetivos. Como apontado por Paulo Nader, “a atividade dos juízes é fecunda e, sob certo ponto de vista, criadora” (NADER, P. 2010). Assim, a análise da jurisprudência aponta para um futuro otimista no que diz respeito à adoção homoafetiva, com a prevalência dos princípios enraizados na Constituição, tais quais os princípios da legalidade, da isonomia e do melhor interesse da criança, principalmente. É importante também apontar o Direito como ciência viva, fenômeno sóciocultural que consegue cada vez mais vincular os valores orgânicos da sociedade com sua função essencial, retora da vida comunal, e ainda alcançar uma postura vanguardista e adequada com a Modernidade, quebrando e caminhando lado a lado com os paradigmas do mundo contemporâneo. ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 139 Agradecimentos Dedico este artigo aos professores doutores Denis Franco Silva e Nathalie Barbosa de La Cadena, pela leitura crítica, e ao professor e mestre Roberto Perobelli de Oliveira, pela orientação, contribuição e ajuda imprescindíveis para a realização deste projeto. 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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 143 144 ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2 Sumário Editorial_______________________________________________ 09 Artigos Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias Aplicadas ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito na UFJF Ângelo Amorim Medeiros___________________________________________ 11 Nulidade da sentença arbitral: o juízo arbitral e o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional Ariel de Abreu Cunha ____________________________________________ 35 A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário internacional Kalline Carvalho________________________________________________ 61 Sócrates e a ideia de lei no século V a.C. Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ________________________________ 77 O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de constitucionalidade Lucas Oliveira Lopes da Motta ______________________________________ 97 Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade contemporânea Mariana Salimena Pires __________________________________________ 119