INSS 2177 - 4633 Periódico Científico dos

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INSS 2177 - 4633 Periódico Científico dos
INSS 2177 - 4633
alhqhj
Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF
Nº4 - jANEIRO/JUNHO 2012
Alethes
Periódico Científico dos Graduandos em
Direito da UFJF
Alethes
Periódico Científico dos Graduandos em Direito
Conselho Editorial
Dr. Alexandre Travessoni Gomes - UFMG
Dr. Anditydas Soares de Moura Costa Matos - UFMG
Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães - PUC-SP
Dra. Cláudia Toledo - UFJF
Dr. Denis Franco Silva - UFJF
Dr. Marcos Vinício Chein Feres - UFJF
Dr. Noel Struchiner - PUC-RIO
Mestre Renato Chaves Ferreira - UFJF
Dr. Thomas da Rosa de Bustamante - UFMG
Editores
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes
Victor Freitas Lopes Nunes
Alethes
Periódico Científico dos Graduandos em Direito
UFJF Nº4 - Ano 3
Diagramação: Ana Carla Fagundes
Capa: Don Quixote
Autor: Honoré Daumier
Data: 1868
Museu: Neue Pinakothek (nova pinacoteca, Munique,
Alemanha)
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em
Direito da UFJF.n.4.Vol. 3. (Janeiro/Junho 2012) - Juiz de
Fora: DABC, 2012. Semestral. 1. Direito - Periódicos. ISSN
2177-4633
Normas para publicação da revista online:
www.periodicoalethes.com.br
Sumário
Editorial_______________________________________________ 09
Artigos
Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias Aplicadas
ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito na UFJF
Ângelo Amorim Medeiros___________________________________________ 11
Nulidade da sentença arbitral: o juízo arbitral e o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional
Ariel de Abreu Cunha ____________________________________________ 35
A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário internacional
Kalline Carvalho________________________________________________ 61
Sócrates e a ideia de lei no século V a.C.
Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ________________________________ 77
O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de
constitucionalidade
Lucas Oliveira Lopes da Motta ______________________________________ 97
Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade contemporânea
Mariana Salimena Pires __________________________________________ 119
Editorial
com grande satisfação que a Alethes chega ao seu quarto número, resistindo às turbulências
externas e até mesmo à displicência dos editores que aproveitam esse momento para se
desculparem pelo atraso na periodicidade.
Pela primeira vez o periódico traz apenas artigos de alunos da UFJF, devendo-se tal fato à
fraca divulgação da chamada de artigos desta edição, de modo que a Alethes se orgulha de ter
recebido as contribuições para este número mesmo diante de tantas adversidades.
Coincidindo esta edição com um momento de greve dos professores em
aproximadamente 95% das universidades federais, aproveito este editorial para relembrar as
raízes deste periódico, expostas nos editoriais de seu primeiro número. Raízes que crescem e se
multiplicam juntamente com a insatisfação perante o atual modelo de produção acadêmica do
conhecimento. Que às justas reivindicações docentes se some o desejo de uma academia mais
crítica, criativa e, consequentemente, menos conformista e reprodutora. Rogo que a universidade
não se renda à verdade dada, mas assuma seu posto na batalha pela construção de uma
humanidade consciente de sua capacidade de recriar a verdade e a realidade.
É evidente que essa batalha se trava também dentro dos muros acadêmicos, havendo
ainda grande clamor pela rendição do saber, da criatividade e da crítica. A promessa do
conformismo é de que se aceitarmos a realidade como está, assimilando seus conteúdos para
perpetuá-los, receberemos seu prêmio mais elevado, a autonomia financeira. Tal prêmio está
longe de ser irrelevante, principalmente em uma realidade na qual a pobreza parece nos caçar
como lobos ferozes, entretanto, tal promessa é falsa. A rendição não garante o sucesso econômico,
garante apenas que o sujeito buscará tal sucesso em detrimento das infinitas possibilidades da
existência, possibilidades que aos rendidos não passarão de utopias e devaneios. Cultivar as
crenças utópicas e a realização dos devaneios parece-me o verdadeiro fim do Ensino Superior, e
não matar os homens, fazendo-os renascer profissionais sem alma, sem arte, sem crítica.
Neste contexto, dentre os ilustres artigos desta edição, ofereço destaque ao trabalho de
Ângelo Amorim Medeiros, o graduando se debruçou sobre o universo educacional no qual se
insere, lançando reflexões sobre o ensino jurídico na Faculdade de Direito da UFJF. Torçamos
para que tal esforço estimule mais e mais estudantes a (re)pensarem não somente o que é a
educação, mas o que ela pode e deve ser.
Deste modo, creio que este periódico seja um pequeno elemento na construção de um mundo no
qual profissionalismo não esteja desvencilhado das utopias, das artes e da crítica. Só assim
poderemos garantir que as profissões sirvam aos homens e não os homens às profissões.
É
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes
Editor da Alethes - Aluno do Curso de Direito da UFJF
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Artigos
Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias
Aplicadas ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito
na UFJF
Ângelo Amorim Medeiros¹
Resumo:
O trabalho demonstra a crise atual do sistema de ensino jurídico brasileiro e aponta uma
alternativa pedagógica testada no curso de Instituições de Direito da UFJF, baseada na
teoria da sistematização coletiva do conhecimento, aliada a utilização de novas
tecnologias aplicadas ao ensino.
Palavras-chave: ensino jurídico, técnicas de ensino, novas tecnologias, sistematização
coletiva do conhecimento.
¹Graduando em Direito pela UFJF. Foi monitor da matéria instituições de direito na Universidade Federal
de Juiz de Fora no ano de 2011.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Abstract:
The work demonstrates the current crisis in the brazilian law education system and
show a pedagogical alternative tested in a course of Institutions of Law in UFJF, based on
the theory of collective systematization of the knowledge, coupled with the use of new
technologies applied to education.
Keywords: juridical teaching; teaching techniques; news technologies, collective
systematization of knowledge.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
1 .Advertências iniciais
“A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original”.
Albert Einsten. 1879-1955.
Um artigo sobre técnicas de ensino do direito pode gerar estranheza ao leitor mais
desavisado, pois apesar de a educação ser apontada como um dos principais pilares de
desenvolvimento de uma sociedade, muito pouco se discute sobre como a tal educação
ocorre, sobretudo, no campo jurídico. Existem inúmeros congressos sobre direito civil,
direito penal, etc, mas quase não se tem notícia de congressos sobre pedagogia jurídica.
Para muitos (inclusive professores) é como se o tema nem existisse. Mas ele existe e é tão
relevante quanto as discussões relativas ao conteúdo, afinal, como se espera que se possa
melhorar o direito, se não se educa de forma adequada os seus futuros profissionais?
Pode parecer estranho também que numa revista destinada à publicação de artigos de
graduandos de direito, apareça um trabalho sobre pedagogia jurídica. Para muitos pode
parecer que está tentando se ensinar um padre a rezar missa (como no ditado popular);
acontece, no entanto, que esse artigo trata-se de um relato de uma experiência pedagógica
ocorrida na Faculdade de Direito da UFJF escrito por um monitor da matéria, o que
propiciou enxergar a questão tanto sobre o prisma do professor, quanto do aluno, pois, tal
monitor, assistiu às aulas e tinha maior liberdade de conversar com os alunos. Assim, se a
imparcialidade é algo inatingível, pelo menos se pode dizer que esse trabalho possui uma
visão bilateral sobre o tema, diferente da maioria dos artigos tradicionais.
Por fim, como última advertência, é necessário que fique claro que esse trabalho
não pretende dar uma resposta pronta e acabada sobre a questão. E também não visa
ofender ninguém e nem faz alusão direta a nenhum professor de forma pejorativa. Este é
um trabalho científico e, como tal, destina-se a aquecer o debate sobre qual a melhor
forma de ensinar o direito, dando uma nova visão sobre o tema, tentando desconstruir
mitos, abrindo as mentes de todos que se importam com o futuro do nosso sistema
jurídico.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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2 . Aspectos históricos
“Não se conhece completamente uma ciência enquanto não se souber da sua história”.
Auguste Comte. 1798-1857.
Segundo Sérgio Rodriguez Martinez (MARTINEZ, 2003, pág. 1) a evolução
histórica do ensino jurídico no Brasil pode ser dividida em três fases.
A primeira fase, denominada liberal, é aquela na qual o ensino jurídico se inicia no
país. Situa-se no período do Brasil Império, na formação do Estado brasileiro. Os filhos de
fazendeiros que haviam estudado direito em Coimbra pressionavam o governo que, em
1827, instituiu os primeiros cursos de direito do país (Olinda e São Paulo). Como a elite
intelectual brasileira havia se formado em Coimbra, nossos primeiros cursos foram
extremamente influenciados pelo liberalismo português, que dava especial ênfase aos
conteúdos privatísticos filiando-se aos ideais do iluminismo. Quanto à forma,
predominava o método dedutivo expositivo caracterizado pela exposição oral dos
conteúdos pelo professor.
Com a proclamação da república e com o fortalecimento dos cafeicultores, o país
passou por intensas transformações que, no meio jurídico, se traduziu em uma quebra do
monopólio do ensino das duas faculdades criadas em 1827. Ocorria no Brasil um processo
de industrialização tardia que demandava um maior número de profissionais jurídicos.
Influenciado pelo discurso liberal, o Estado não interviu e foram criadas inúmeras
faculdades nesse período, gerando um excesso de profissionais e cunhando a expressão
“fábrica de bacharéis”. Houve também um maior afastamento do direito eclesiástico e
uma formação mais voltada para a prática, tendo em vista o excesso de profissionais e a
crença na seleção natural do mercado.
Na década de 30, com a ascensão do Welfare Estate e da burguesia, o país
experimentou uma industrialização mais efetiva, iniciando assim a fase social. Do ponto
de vista do ensino, havia o movimento da Escola Nova que pregava mudanças
metodológicas. Porém o modelo tradicional de ensino prevaleceu também nesse período,
apesar do movimento da Escola Nova ter gerado certa repercussão social. Do ponto de
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
vista do conteúdo, houve uma modificação em virtude da intensa codificação
experimentada pelo Brasil no período. Com a ditadura militar, a tudo isso se acrescentou
uma tendência tecnicista aniquiladora de qualquer pensamento crítico no interior das
salas de aula.
A terceira fase, chamada neoliberal, tem como marco a promulgação da
Constituição de 1988. Nossa Magna Carta trouxe uma série de modificações estruturais
ao direito nacional, como a implantação de um Estado Democrático de Direito, trazendo a
tona diversas demandas inexistentes no período ditatorial, o que passou a exigir
profissionais do direito diferenciados. Dessa maneira, a questão da formação do jurista
começou a ser levada mais a sério.
A OAB iniciou um estudo nacional sobre o tema por meio de sua comissão de
ensino jurídico. Nessa esteira, surgiu também a comissão de especialistas em ensino
jurídico da Sesu/MEC. De todos esses estudos resultou a portaria 1886/94 do MEC
revogando a resolução CFE n.03/72 que desde 1972 estabelecia as diretrizes curriculares
mínimas dos cursos de Direito no Brasil. Nessa fase criou-se também a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (lei 9394/96) Exame Nacional dos Cursos (lei 9131/95).
Houve uma mudança de paradigma. Enfim o intervencionismo estatal chegava
nessa seara (MARTINEZ, pág. 12, 2003). Com tais mudanças houve uma tentativa de
equilibrar o tripé ensino/pesquisa/extensão passando-se a exigir das faculdades de
direito: um acervo literário de no mínimo dez mil volumes de obras jurídicas, criação do
núcleo de prática jurídica, obrigatoriedade de monografia ao final do curso e de
cumprimento de estágio de prática jurídica. Apesar de todas essas modificações um ponto
continuou inalterado: a metodologia de ensino. A pedagogia tradicional continuou
amplamente dominante nas cátedras jurídicas.
3. Situação atual do ensino jurídico do Brasil e análise da pedagogia tradicional
“Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças
ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e
progressivo”.Franz Kafka. 1883-1924.
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Verifica-se atualmente uma proliferação desenfreada de cursos de direito
formando-se uma massa de profissionais através da utilização de uma metodologia de
ensino que queda-se inalterada desde o nosso primeiro curso de direito em 1827.
Tal metodologia consiste em uma exposição oral do conteúdo por parte do
professor na qual é passada a regra geral acerca do conteúdo nos moldes dos manuais
jurídicos. Aos alunos é permitido ouvir, anotar e eventualmente fazerem algumas
perguntas. As avaliações consistem em provas escritas, na qual exige se do aluno que ele
repita o conteúdo exposto em sala de aula pelo professor. A nota varia de acordo com o
grau de espelhamento da matéria. Quanto mais a resposta se aproxima do conteúdo
exposto, maior a nota e vice-versa. É claro que existem variantes desse modelo, mas em
geral é esse o tipo tradicional.
A aplicação do modelo tradicional de ensino do direito traz conseqüências
nefastas. O aluno que chega a universidade animado após assistir inúmeros filmes de
advogados, em que os personagens fazem intensas reflexões para ao fim chegar a uma tese
inovadora e inteligente, logo se depara com uma realidade alienante, na qual o professor
faz uma pregação em que não há espaço para críticas. Quando o aluno enfim toma
coragem de intervir na aula é desestimulado pelo professor que, ou reclama que não vai
conseguir terminar o conteúdo, ou se utiliza de algum subterfúgio como respostas
irônicas, desrespeitosas, etc. Não há espaço para o diálogo em sala de aula entre
professores e alunos. Ocorre o que Paulo Freire chama de educação bancária:
“Eis aí a concepção 'bancária' da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem
colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados
são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção 'bancaria' da educação.
Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e
educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade,
não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta,
impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca
esperançosa também”.
(FREIRE, pág. 33, 1987).
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Frustrado em sala de aula o aluno então foge para os livros e lá descobre um mundo
em que ainda há espaço para o pensamento. Estuda a matéria e chega à prova com um
grande arcabouço teórico. Faz a prova com tranqüilidade, mas quando vem o resultado, se
decepciona mais uma vez. Após uma dissertação bem fundamentada, bem redigida sobre
um assunto objeto de análise no teste, recebe uma péssima nota. Ao perguntar para os
colegas sobre o que aconteceu, obtém respostas do tipo: “Você não podia ter feito dessa
maneira. Não é a posição do professor. Você não leu o caderno?”.
Esse aluno começa então a anotar a matéria de forma sucinta para confrontar com
o arcabouço teórico estudado, o que resulta em nova frustração. Não adianta apenas
aludir ao que foi dito em aula para se obter uma boa nota, mas deve-se repetir “ipsi literis” o
conteúdo, ou melhor, não importa o quanto o aluno domine a matéria, o que importa é o
quanto consegue repetir o que foi dito em sala de aula.
Pouco a pouco, o aluno vai sendo desestimulado a pesquisar sobre os temas
tratados em aula na doutrina, ou melhor, na doutrina oficial. Como existem poucas
pessoas que têm a capacidade de colocar no caderno algo muito próximo de uma
transcrição da aula, logo os alunos recorrem à chamada “doutrina do caderno”. Tal
doutrina consiste em xerocar um caderno de um colega de classe que possui grande
habilidade de copiar. Assim, indivíduos vão se tornando famosos por seus cadernos.
Renomados juristas brasileiros e internacionais vão sendo abandonados para que o aluno
se dedique ao estudo do caderno do João, da Maria, etc.
Alguns desses cadernos são tão bem feitos que são xerocopiados por alunos de
outras salas. Outros são usados todo período pelos novos alunos, que fazem a mesma
matéria com o mesmo professor. O conteúdo passado não é alterado, por mais que pareça
estranho, apesar da mutabilidade constante do direito. A situação chegou a tal ponto que
ao lado das pastas de determinados professores que disponibilizam textos, há também
pastas compostas exclusivamente de cadernos de um determinado aluno. Há casos em
que o indivíduo já deixou a faculdade há muito tempo e mesmo assim seu caderno ainda é
objeto de estudos.
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Ao final de todo esse processo, a faculdade, que deveria ser um centro de difusão
do conhecimento, acaba sendo um centro formador de memorizadores de caderno, afinal,
não havendo estímulo para estudar em outras fontes e até desencorajamento em tal
empreitada, o que ocorre é que os livros vão sendo esquecidos em detrimento do caderno.
No futuro, os alunos percebem que não dominam o conteúdo, apenas decoraram o
caderno e precisam aprender o que não aprenderam em cinco anos para conseguir a
aprovação na OAB e em concursos públicos ou para ser um bom profissional. Outros
ainda conseguem entender isso antes de se formar e estudam a matéria paralelamente ao
estudo do caderno para se prepararem para os concursos, principalmente.
Os alunos que conseguem vislumbrar que existe algo além das notas da faculdade,
logo começam a refletir sobre a própria função da faculdade. Afinal, se estudam uma coisa
para passar nas provas e outra para ter êxito profissional, não seria então a dita faculdade
um entrave para o seu pleno desenvolvimento? Essa pergunta vai ecoando dentro da
cabeça do indivíduo e, aos poucos, vai gerando uma má vontade com as aulas. Pois, basta
ler o caderno que a aprovação está garantida. Quanto ao conhecimento, esse deve ser
obtido por conta própria do aluno.
Assim, são criados bordões como: “A faculdade é uma grande chamada”. É triste,
mas é assim que muitos alunos vêem a faculdade. E ao fim e ao cabo, acaba sendo a
obrigatoriedade do percentual mínimo de freqüência, o único motivo do aluno estar em
sala de aula. Porém tal aluno, insatisfeito com o ensino ofertado, acaba estando em aula
apenas corporalmente, pois sua atenção está voltada para outro plano. Assim, forma-se
uma representação teatral, na qual o professor finge que ensina e o aluno finge que
aprende (WERNECK, pág. 15, 1992).
Outro fenômeno interessante que ocorre atualmente e também têm uma grande
influência sobre a crise hodierna do ensino jurídico é o paradoxo do monopólio do
conhecimento não monopolizado. Isso ocorre da seguinte forma. Os professores chegam à
classe e lecionam a matéria como se fossem as maiores autoridades no assunto, os donos
da verdade. É o que Paulo Freire chama de alienação da ignorância:
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
“Na visão 'bancária' da educação, o 'saber' é uma doação dos que se julgam sábios
aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações
instrumentais da ideologia da opressão a absolutização da ignorância, que
constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se
encontra sempre no outro”.
(FREIRE, pág. 33, 1987).
Isso provavelmente se deve ao fato de que na época em que tais professores eram
alunos, realmente, o conhecimento e a informação era algo de difícil acesso. Os livros eram
mais caros, mais escassos, não circulavam com a facilidade que circulam hoje, não havia a
rede mundial de computadores, não era comum que jovens fizessem viagens ao exterior,
entre outros motivos. Mas os tempos são outros. Vivemos na era digital. Quem está
sentada nas cadeiras universitárias é a geração internet, a geração tablet. Os professores só
ainda não se conscientizaram disso.
Não há mais o monopólio do conhecimento por parte dos professores. Existem
muito mais bibliotecas e livrarias que antigamente. Pode-se ter acesso a um livro de outro
país sem sair de casa, através de uma compra pela internet. A rede mundial de
computadores, aliás, acabou definitivamente com esse monopólio. O aluno de qualquer
faculdade de direito do país pode ter acesso a uma imensa gama de materiais para o estudo
do direito. Pode assistir aulas, de renomados juristas, através de portais como o “Saber
Direito”. Pode, inclusive, assistir palestras de especialistas de outros países como ocorre
com algumas aulas de Harvard que estão disponíveis no “You Tube”.
Além disso, ainda é possível fazer o download de inúmeros livros e vídeos, de forma
lícita e ilícita. Essa ampliação não se deu apenas no que tange a informação jurídica.
Enquanto o professor discute sobre um determinado assunto em sala de aula, os alunos
podem saber as últimas notícias ocorridas no mundo com poucos toques na tela de seus
tablets e smartphones.
Professores que tiveram contato com o computador aos 30, 40, 50 anos agora se
deparam com alunos que foram alfabetizados por programas de computador.
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Professores que viajaram uma vez para o exterior, alguns apenas a título de
aperfeiçoamento acadêmico em um país vizinho, em toda sua vida, agora têm contato com
alunos poliglotas que fazem cerca de uma viagem internacional por ano. Tudo isso
aumenta mais ainda o sentimento do aluno da prejudicialidade da faculdade no seu
desenvolvimento profissional.
Além disso, fica claro outro problema: o descompasso entre professor e aluno no
que tange a utilização dos recursos tecnológicos. Enquanto o segundo se vale de todas as
tecnologias acima mencionadas, o primeiro continua desempenhando suas atividades
nos moldes medievais. Essa questão se assemelha a um episódio da segunda guerra
mundial: a invasão da Polônia por parte da Alemanha. Enquanto os alemães dispunham
dos recursos bélicos mais atuais da época, com a utilização de potentes armas de fogo,
tanques de guerra, aviões; os poloneses ainda se valiam de cavalos e sabres. A única
diferença é que agora o opressor é que está com os recursos ultrapassados e o oprimido
com as armas avançadas.
Nesse capítulo, nos parágrafos acima, foram analisados os problemas da aplicação
do método tradicional de ensino no que se refere a sua característica expositiva. Primeiro,
foi colocado a questão da doutrina do caderno e do ensino bancário como causadores da
sensação de inutilidade dos professores. No segundo, a abordagem se deu em torno da
questão da dificuldade de se aceitar um ensino que não abre espaço para o diálogo entre
alunos e professores, baseando na idéia paradoxal do monopólio do conhecimento não
monopolizado e na alienação da ignorância.
Porém há outro problema na metodologia tradicional de ensino. É que ela é em sua
essência dedutiva. O professor passa as regras gerais aos alunos e deixa com que esses
deduzam o restante. O grande problema disso é que no direito tal característica se traduz
na exposição do teor das leis e das doutrinas iluminadoras de tal teor, ficando para os
alunos a tarefa de aplicação da lei ao caso (na realidade a aplicação do direito, pois nem
sempre há uma disposição legal expressa reguladora do caso).
Acontece, no entanto, que a aplicação do direito é o momento mais complexo do
fenômeno jurídico. É nessa hora que o jurista volta os olhos para disposições legais de
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
pouca mutabilidade, para resolver problemas de uma realidade social que se modifica a
todo tempo e que a cada hora nos desafia com seu repertório interminável. Dessa maneira,
o aluno fica sozinho exatamente no momento em que mais precisaria de ajuda, reforçando
mais uma vez a idéia de inutilidade do professor e da faculdade.
Há outro problema, a exposição tradicional dedutiva da matéria gera um afastamento da
realidade comprometendo inclusive a discussão sobre as questões legais, tendo em vista
que as modernas teorias interpretativas do direito preconizam que as modificações do
substrato fático, que embasa as disposições legais, operam alterações na construção do
sentido de tais disposições, isto é, uma mudança social pode acarretar em uma mudança
normativa, mesmo sem qualquer alteração formal legal.
Esse terceiro problema é um dos maiores motivos para a distinção comum feita pelos
alunos entre teoria e prática. Distinção que não passa de ideologia que é alimentada tanto
pelos ditos teóricos (cientistas afastados da realidade) quanto pelos práticos (operadores
do direito que possuem pouco conhecimento jurídico e só conseguem desempenhar
tarefas repetitivas). Não faz nenhum sentido tal distinção na ciência jurídica, afinal, é uma
ciência voltada para a prática, para a realidade social. Sem tal realidade não vive, é estéril.
Mas tal distinção continua ecoando e com isso outro bordão comum da faculdade é: “Eu
só aprendo direito civil no estágio”. É bastante compreensível isso, afinal, o direito civil é o
que regula a vida privada do cidadão, onde as mudanças são comuns e, por isso, as
explanações teóricas afastadas da realidade não são suficientes para ensinar ao aluno a
sua correta aplicação.
Aprender é mais que decorar conceitos, é saber que tais conceitos têm uma
funcionalidade intrínseca e saber qual é tal funcionalidade. Aprender é ter a capacidade
de contextualizar o arcabouço teórico armazenado. Recorrendo-se mais uma vez ao
ilustre pedagogo e filósofo brasileiro:
“Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bemcomportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à
experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador
aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é
'encher' os educandos dos conteúdos de sua narração.
Conteúdos que são retalhos
da realidade desconectados da totalidade em
que se engendram e em cuja visão
ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão
concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e
alienante. Daí que
seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la”.
(FREIRE, pág. 33, 1987).
4 . A teoria da construção coletiva do conhecimento
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre
si, mediatizados pelo mundo”.
Paulo Freire. 1921-1927.
Considerando esse quadro de crise do ensino jurídico, seria possível alguma
alternativa para um revigoramento das faculdades de direito? Tentando dar uma resposta
a essa pergunta, em 2008, num artigo escrito na revista brasileira de estudos políticos,
Marcos Vinícius Chein Feres propôs uma nova metodologia de ensino jurídico: a
sistematização coletiva do conhecimento.
Tal teoria parte do pressuposto de que há no modelo atual de ensino uma lógica de
opressão, na qual o professor oprime e o aluno é oprimido, nos moldes descritos no
capítulo anterior. Considera ainda a questão do ensino descontextualizado transmitido
tradicionalmente e que há uma relação de verticalidade impositiva do conhecimento na
relação professor-aluno (FERES, pág. 209, 2008). Como solução propõe a teoria da
sistematização coletiva do conhecimento, baseando-se nas tendências da escola
sociopolítica de pedagogia, especificamente na teoria como expressão da ação prática.
A teoria da sistematização coletiva do conhecimento propõe uma reestruturação
do processo de ensino, em que o aluno deixa de ser visto como um mero receptáculo de
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
informações e passa a ser visto como um sujeito ativo do processo de aprendizagem. É
interessante como tal teoria ataca os três grandes problemas apresentados no capítulo
anterior de forma direta.
No que tange a doutrina do caderno e o ensino bancário, a metodologia exposta
propõe um ensino dialógico em que o aluno tem voz para expressar suas opiniões sobre o
conteúdo, pois “a sistematização coletiva do conhecimento importa-se muito mais em
incitar a discussão, a reflexão, tomando-se por norte e por fim a prática” (FERES, pág. 215,
2008). Como há um incentivo a argumentação, o aluno não é levado a procurar respostas
fáceis encontradas na doutrina do caderno, pois sabe que não é isso que a matéria exige
dele.
Em relação ao paradoxo do conhecimento não monopolizado e na alienação da
ignorância, há uma reformulação do papel da escola que passa a ser “entendida não como
veículo de informação, mas como meio a atingir os conteúdos” (FERES, pág. 215, 2008).
Ocorre uma quebra da verticalidade impositiva e cabe ao professor transformar a sala de
aula no ambiente mais propício possível a circulação do conhecimento, tornando possível
a sua coletivização. Não compete mais ao professor o monopólio da exposição da matéria,
todos terão oportunidade na construção do conhecimento, mas ao educador lhe é
conferido o poder diretivo sobre a aula, viabilizando assim o processo argumentativo. Daí
vem à comparação entre a sistematização coletiva do conhecimento e a teoria do agir
comunicativa habermasiana (FERES, pág. 216, 2008).
No que se refere ao problema do afastamento da realidade e da
descontextualização da matéria, a sistematização coletiva do conhecimento propõe que
“o conhecimento fundamenta-se e ocorre na prática, havendo, pois, verdadeira unidade
entre prática e teoria” (FERES, pág. 215, 2008), afinal:
“Os alunos, assim como os professores, trazem para a discussão as suas visões de
mundo, os diversos problemas práticos de vida que devem ser abordados a partir
do paradigma da teoria como expressão da ação prática. A teoria, neste ponto,
encontra-se totalmente dependente da ação prática de maneira que ambas estarão
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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sempre numa constante interação e num infindável processo de
retroalimentação”.
(FERES, pág. 218, 2008).
A sistematização coletiva do conhecimento propõe uma verdadeira
horizontalização da relação aluno-professor visando à emancipação do aluno, em
detrimento da alienação perpetrada pela forma pedagógica. Busca formar mais que
simples “operadores do direito”, mas sim, sujeitos pensantes, críticos, reflexivos que
sejam capazes de criar quando se depararem com uma nova situação, que sejam mais que
meros reprodutores de dogmas irrefletidos.
Mais que isso, a sistematização coletiva do conhecimento respeita o aluno, não o
idiotiza, acredita em seu potencial para enriquecer a discussão, o que transforma a aula
em um verdadeiro exemplo de como uma democracia deve funcionar. Afinal, cumpre
salientar que, como diria Sêneca, no ato de educar “os progressos obtidos por meio do
ensino são lentos; já os obtidos por meio de exemplos são mais imediatos e eficazes”.
5 .Novas tecnologias aplicadas ao contexto educacional
“Se você acha que educação é cara, experimente a ignorância”.
Derek Bok. 1930-?.
Baseando-se em Larry Cungan, Paulo Gileno Cysneiros (CYSNEIROS, pág. 15,
1999) defende que a história da aplicação de novas tecnologias em sala de aula é uma
história de demagogia e insucessos. Tal história é marcada por ciclos de quatro ou cinco
fases.
A primeira fase se dá logo que se tem notícia de uma nova tecnologia que pode ser
aplicada ao ensino. Os educadores, através de pesquisas, decretam, sem pestanejar, que
em breve nenhuma escola viverá sem tal tecnologia. Assim, se inicia um processo de
massificação de tais tecnologias no contexto escolar por meio de políticas públicas,
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
caracterizando a segunda fase. Na terceira fase, os professores, extremamente apegados a
maneira tradicional de lecionar o conteúdo, não utilizam a nova tecnologia que cai no
esquecimento no que se refere ao contexto educacional. A quarta fase é caracterizada por
novas pesquisas tentando descobrir por que a adoção de tais tecnologias não se deu de
forma adequada.
A aplicação de novas tecnologias no contexto educacional é marcada também pelo
fenômeno que Paulo Gileno Cysneiros denomina inovação conservadora (CYSNEIROS,
pág. 15, 1999), que é caracterizado pela utilização de uma nova ferramenta tecnológica em
uma tarefa que se poderia fazer facilmente sem esse recurso. Como explica o referido
educador:
“São aplicações da tecnologia que não exploram os recursos únicos da ferramenta
e não mexem qualitativamente com a rotina da escola, do professor ou do aluno,
aparentando mudanças substantivas, quando na realidade apenas mudam-se
aparências”.
(CYSNEIROS, pág. 16, 1999).
Tais tecnologias são utilizadas de forma irrefletida, sem melhorar a qualidade da
aula, contribuindo como mais um argumento para aqueles professores tradicionais que se
mostram resistentes a adoção de tais tecnologias.
A título de exemplo, podemos colocar a utilização de computadores para tarefas
que poderiam ser desempenhadas pelo caderno, pela lousa, etc. Porém, isto é um grande
equívoco, pois a educação mediada pela tecnologia pode ser muito mais eficaz do que a
tradicional, basta que a tecnologia encontre-se em boas mãos. Afinal:
²Um exemplo ocorrido na Universidade Federal de Juiz de Fora mostra como a participação dos alunos
melhora significativamente à aula. Na matéria de Introdução ao Estudo do Direito, a professora Claudia
Toledo propôs um trabalho em que os alunos deveriam se organizar em grupos para fazerem o papel de
advogados ou de promotores de um caso fictício (o caso dos exploradores de caverna). Foi um dos poucos
momentos na faculdade em que a turma realmente se empolgou com o curso, discutindo fora de sala de aula,
envolvendo familiares, pesquisando, etc. No momento da discussão, o debate ficou tão acalorado que os
alunos poderiam até ter ofendido uns aos outros caso não fosse a presença da professora.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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“Um bisturi a laser não transforma um médico em bom cirurgião, embora um bom
cirurgião possa fazer muito mais se dispuser da melhor tecnologia médica, em
contextos apropriados”.
(CYSNEIROS, pág. 18, 1999).
7 . A experiência da matéria Instituições de Direito na Universidade Federal de Juiz
de Fora
“A boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor”.
Antônio Vieira. 1608- 1697.
Sempre que uma nova teoria pedagógica surge, logo se levantam questionamentos
acerca da possibilidade de implementação desta. No caso da sistematização coletiva do
conhecimento não poderia ser diferente. Ocorre, entretanto, que tal metodologia já havia
sido aplicada antes pelo professor Marcos Vinícius Chein Feres, como é relatado no em
seu trabalho sobre o tema (FERES, nota nº 6, pág. 220, 2008). Porém ainda não havia sido
testada combinada com a utilização de novas tecnologias educacionais. Tal se deu em
2011, na disciplina Instituições de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, por um
grupo de professores sobre a coordenação do educador acima referido.
A disciplina foi lecionada a alunos dos cursos de direito e de diversos outros cursos
como administração e turismo. Apesar de não ser objeto do presente estudo, o conteúdo
da disciplina caracterizava-se em transmitir ao aluno conceitos centrais da teoria do
direito.
Porém, é do ponto de vista da forma, da metodologia empregada, que tal disciplina
mostra-se realmente inovadora. A sistematização coletiva do conhecimento foi
efetivamente empregada e houve uma utilização inteligente da tecnologia (não uma
inovação conservadora) na facilitação da aprendizagem.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
As aulas eram ministradas em três horas por semana presenciais e em torno de
duas horas não presenciais. O conteúdo não presencial era passado através de uma
plataforma denominada moodle, disponível a todos os alunos da graduação da
Universidade Federal de Juiz de Fora através da internet. A aula seguia um planejamento
que garantia ao aluno o conhecimento das regras do jogo desde o início.
O estruturamento das aulas se dava da seguinte forma. Primeiro, era
disponibilizado na plataforma moodle o texto base da aula. Os alunos liam o texto antes de
vir à aula presencial. Dentro de sala, na primeira metade da aula, era transmitido aos
alunos algum filme que tivesse uma relação com o conteúdo do texto disponibilizado na
plataforma. Após, os professores faziam questionamentos aos alunos acerca de possíveis
relações entre filme e texto. Essas respostas dos alunos eram avaliadas, o que funcionava
como um mecanismo de motivação para os alunos efetivamente lerem o conteúdo da
plataforma. Na seqüência, os professores faziam uma síntese daquilo que foi discutido,
traziam novos argumentos a discussão e respondiam perguntas.
Após o término da aula presencial, iniciava na plataforma moodle a segunda parte
da aula não presencial (a primeira era a leitura do texto base). Os alunos deveriam fazer
fóruns, ou seja, postar considerações acerca do discutido em sala de aula e wikis,
dissertações coletivas acerca do tema discutido na aula. Tais atividades também eram
avaliadas.
A avaliação dos alunos se dava por quatro formas. Primeiro: avaliação da
participação em sala de aula. Segundo: avaliação da participação em wikis e fóruns.
Terceiro: avaliação através de uma auto-avaliação ao fim do curso. Quarto: avaliação
através de prova final.
A estruturação da aula presencial vai ao encontro de tudo o que foi exposto neste
trabalho.
Em primeiro lugar é colocado para o aluno um texto-base. Não é um texto extenso
sobre o assunto, mas apenas algo que dará um norte a discussão. Isso é bastante
interessante, pois permite que o aluno que queira alçar vôos mais altos na matéria tenha
liberdade de fazê-lo da forma que preferir, pois a base já foi alcançada.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
27
Em segundo lugar, a transmissão do filme na aula é fundamental. Já existem vários
trabalhos sobre direito e cinema, mas a maioria defende a criação de uma matéria
específica para tal ou um congresso com essa finalidade. Mas na disciplina sob análise, o
filme faz parte da aula, tendo a importantíssima função de contextualização do conteúdo
estudado no texto base, superando assim aquela dificuldade apontada no capítulo 3
referente ao distanciamento da realidade.
Mas essa não é a única vantagem. O filme quebra a monotonia das aulas e, em
muitos momentos, toca o aluno sentimentalmente, facilitando extremamente o
aprendizado, pois, nas palavras do cineasta sueco Ingmar Bergman: “Nenhuma arte
perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz; vai diretamente até nossos
sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos escuros de nossa alma.” Assim,
prepara-se o terreno para a discussão logo após.
Quanto ao momento em que os alunos são questionados, não é preciso dissertar
muito para mostrar como o mesmo é valioso didaticamente. É a aplicação mais direta da
teoria da sistematização coletiva do conhecimento. Os alunos contribuem ativamente no
processo de ensino, trazendo informações que os professores desconheciam e, em muitos
momentos, fazem questionamentos provocadores transformando à aula num terreno
fértil para o crescimento do conhecimento.
Mas não só isso. É uma atividade importante para o desenvolvimento do aluno.
Percebe-se nas primeiras aulas certa vergonha dos alunos ao serem questionados. Mas
com o tempo, isso diminui sensivelmente mostrando que a aula, além de ter transmitido o
conhecimento técnico, contribuiu no desenvolvimento da habilidade de exposição oral,
que é extremamente valiosa no ambiente de trabalho e em outros campos.
Quanto ao momento final, em que o professor faz uma síntese do conteúdo,
mostra-se que tal expediente dá um norte ao aluno e que contribui para a sua auto-estima,
tendo em vista que este percebe que a parte central do conteúdo já foi exposta no
momento anterior pelo próprio aluno.
Vale lembrar ainda, que muitas vezes os professores colocam novos
questionamentos sem, contudo, oferecerem respostas, fazendo com que a discussão
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
extrapole as paredes da sala de aula.
A aula não presencial também tem uma grande importância. Funciona ao mesmo
tempo como momento de aprendizagem e de avaliação. Os alunos, ao fazerem os fóruns,
normalmente lêem os comentários dos seus colegas de mesmo grupo (a sala é dividida em
grupos para facilitar o processo), o que contribui para o aprendizado. Há também nos
fóruns uma preocupação em desenvolver a capacidade de exposição escrita.
No que toca as wikis, observa-se uma preocupação com o desenvolvimento da
habilidade de trabalhar em grupo, além das habilidades já mencionadas no fórum. O mais
relevante dessa é que substitui de forma muito inteligente o tradicional trabalho em
grupo a ser feito em casa e posteriormente apresentado em sala. Os alunos podem fazer o
trabalho em grupo sem se reunir e principalmente não há como burlar a atividade
delegando todas as funções a apenas um membro, pois, a plataforma moddle permite que o
avaliador individualize a contribuição de cada um no trabalho em grupo, excluindo
aqueles que não participaram ou aqueles que tiveram participações irrisórias.
Do ponto de vista da avaliação, além do maior controle acima mencionado, essa
forma diluída, após cada aula, naturaliza o processo avaliativo, transformando-o em uma
extensão da aula e num momento de fixação e aplicação do conteúdo.
Em relação ao processo avaliativo, além dos comentários feitos anteriormente,
pode-se colocar também a questão referente à auto-avaliação. Com esta atividade o aluno
é colocado frente a si mesmo, tendo que se avaliar de forma motivada, o que transforma tal
avaliação em um momento de reflexão, autoconhecimento e crescimento (mesmo que o
aluno não seja sincero na atividade, internamente ele fará um julgamento de si mesmo).
No que tange à prova final, foge-se também da tradição de suplício ao aluno e de
repetição do conteúdo do caderno, colocando-se um filme antes da prova (ou na prova
dependendo do referencial) que servirá de base desta avaliação. Ao avaliado é exigido uma
dissertação que demonstre a sua capacidade de contextualização do conteúdo aprendido
ao longo do curso, fazendo relações entre este e a mídia apresentada.
³Isso pode ser observado facilmente pela leitura dos fóruns. Em vários momentos fazem uma expressa
alusão ao comentário do colega. Alguns manifestam, inclusive, a sua concordância ou discordância. Em
alguns momentos ocorrem até pequenos debates.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Ao final, observa-se uma grande diferença na maioria dos alunos. Muitos se
mostram pessoas mais seguras ao falar. Muitos demonstram um grau muito maior de
politização4 . Outros ficam extremamente agradecidos 5 aos professores afirmando que
pela primeira vez foram realmente respeitados na faculdade 6. Alunos de cursos não
jurídicos admitem que perderam o preconceito que tinham em relação ao direito, pois o
viam, anteriormente, como um curso extremamente monótono.
Enfim, aqueles que participam da aula (aqueles que são aprovados pela
freqüência, pois basta estar em aula para participar) sofrem algum tipo de modificação.
Todos se envolvem, mesmo aqueles, aparentemente a minoria, que dizem não ter
aprovado a metodologia utilizada.
8 . Conclusão
“Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no
espírito”.
William Blake. 1757-1827.
Se a metodologia tradicional apresenta-se tão defasada, e a sistematização
coletiva do conhecimento mostra-se como uma alternativa extremamente viável, como
demonstrado no capítulo precedente, existe o risco de que tal metodologia caia no
esquecimento?
Muitas discussões em sala de aula acabam ficando tão inflamadas que em alguns alunos é despertado um
lado político até então desconhecido. Assim, uma discussão sobre cotas raciais, por exemplo, acaba levando
alunos a se envolverem em movimentos pela defesa da igualdade racial, como ocorreu nessa experiência
relatada. Quando acaba o horário, os alunos sempre querem prorrogar a aula fazendo perguntas aos
professores.
5
Na turma de Instituições do segundo semestre de 2011 havia um aluno americano que estava fazendo
intercâmbio no Brasil. Ao fim do curso, o rapaz agradeceu aos professores afirmando que foi a primeira aula
brasileira que ele gostou.
6
Vários alunos de outros cursos agradecem por não terem sido tratados como alunos inferiores, afirmando
que essa é uma prática muito comum quando um professor é obrigado a lecionar a outro departamento.
4
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“Perguntaram a um viajante que havia percorrido muitas regiões e nações,
além de vários continentes, qual era a qualidade que havia encontrado em
toda parte nos homens; respondeu: certa propensão à preguiça”.
(Nietzsche, Pág. 15, 2008)
Infelizmente a preguiça pode ser um grande entrave a evolução do ensino jurídico.
Professores que há anos lecionam suas aulas da mesma forma, não vão sair da zona de
conforto que atualmente se encontram, mesmo que o modelo vigente seja inútil.
Um segundo motivo para tal, é o medo do novo. É também muito comum as
pessoas temerem o desconhecido. Ás vezes, tal medo é disfarçado sobre argumentos
falaciosos que nada mais são que tentativas desesperadas de desqualificar aqueles que
têm coragem de mudar, de evoluir.
Mas o motivo mais forte talvez seja a resistência dos carismáticos e inteligentes.
Existem pessoas absurdamente carismáticas que poderiam ser grandes políticos,
pastores, padres, telecomunicadores, mas optaram por ser professor. Esses indivíduos
conseguem dar aulas engraçadas, prazerosas e conseguem obter um nível interessante de
aprendizado. Pessoas assim são sempre apontados como exemplo de sucesso da
metodologia tradicional, tanto pelos preguiçosos, quantos pelos medrosos, sendo a
principal arma destes.
Ocorre, todavia, que tais indivíduos carismáticos são a exceção, a minoria. Tais
professores realmente conseguem dar uma boa aula independentemente do método
adotado. Mas e quanto à grande maioria que não possui tal dom?
Uma das grandes vantagens da sistematização coletiva do conhecimento é que ela
não exige qualquer habilidade específica do professor. O indivíduo que acabou de formar
na faculdade, sem grandes conhecimentos sobre a matéria, sem carisma, pode conseguir
dar uma excelente aula basta que seja esforçado, basta que tenha bastante zelo na
preparação da aula, buscando filmes e casos interessantes para chamar a atenção do
aluno, facilitando o processo de coletivização do conhecimento.
Enfim, a única exigência que se faz do professor é que esse respeite o aluno e tenha
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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responsabilidade no desempenho de sua função. Não é isto o mínimo que se deva esperar
de um professor?
Deve-se lembrar ainda que a estruturação da aula utilizada conforme a
experiência relatada neste artigo, não é a única forma de aplicação da sistematização
coletiva do conhecimento e nem a única forma de utilização de tecnologia no contexto
educacional, sem cair no perigo da dita inovação conservadora. É apenas um exemplo de
sucesso, mas cada professor pode fazer as suas determinadas adaptações para ajustar tal
metodologia com o tipo de matéria lecionada.
O que não pode mais ocorrer é a insistência em uma forma de ensino totalmente
defasada e que não cumpre minimamente a sua função.
Será visto nos próximos anos suntuosos investimentos na preparação da infra-estrutura
do país para as olimpíadas. Mas, infelizmente, faltará ao nosso país o mais importante:
atletas. Pois, apesar de inúmeras escolas públicas possuírem quadras e professores de
educação física, verifica-se que o Brasil não forma grandes atletas em suas escolas.
Aqueles que conseguem se tornar atletas de elite, o fazem através do esforço pessoal.
A explicação pode ser encontrada facilmente, basta que se questione um menino
que freqüenta o ensino fundamental acerca da sua aula de educação física. Provavelmente,
ele responderá que a aula é dentro da sala, jogando futebol de prego ou jogando “bafinho”
com figuras de chiclete. Na melhor das hipóteses, o menino dirá que até vai à quadra, mas o
professor nada ensina, simplesmente deixa os alunos se dividirem e jogarem a tradicional
“pelada”. Depois muitos se admiram com os péssimos resultados do país nas olimpíadas...
O ensino jurídico vivencia um fenômeno semelhante. Apesar de ter havido uma
melhoria considerável da estrutura das faculdades nos últimos anos, especialmente nas
faculdades federais, a cada ano as pessoas se alarmam com o número de reprovados no
exame da OAB. Na Universidade Federal de Juiz de Fora, por exemplo, todas as salas
possuem datashow, há um grande infocentro, existe a já mencionada plataforma moodle,
mas os professores não utilizam desses inúmeros recursos. Os alunos que se destacam, o
fazem através do esforço pessoal.
Mas, como há um método de ensino que abre novos caminhos, existe uma
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esperança de que não falte às nossas faculdades de direito o mais importante.
Referências Bibliográficas
CYSNEIROS, Paulo Gileno. Novas tecnologias na sala de aula: melhoria do ensino ou
inovação conservadora? Informática Educativa Vol. 12, No, 1. 1999.
FERES, Marcos Vinícius Chein. Proposta para uma nova metodologia do ensino
jurídico: A sistematização coletiva do conhecimento. Revista brasileira de estudos
políticos [RBEP]. Nº 98. Belo Horizonte. 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17a. ed. Rio de Janeiro : Paz e terra, 1987.
MARTINEZ, Sérgio Rodriguez. A evolução do ensino jurídico no brasil. Trecho
adaptado da obra Manual da Educação Jurídica (Juruá, 2003). Disponível em:
http://www.ensinojuridico.com.br/dmdocuments/Artigo-Ensino-PDF.pdf. Acessado
em: 20/11/2011.
NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Schopenhauer Educador. Coleção Grandes Obras do
Pensamento Universal - Vol. 90. São Paulo: Escala, 2008.
WERNECK, Hamilton. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo. Petrópolis:
Vozes, 1992.
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Nulidade da sentença arbitral: o juizo arbitral e o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional
Ariel de Abreu Cunha¹
Resumo:
Este artigo consiste na proposição de adequação constitucionalmente aceita para guiar a
arbitragem no ordenamento brasileiro. Seu objetivo se pauta em correlacionar os casos de
nulidade da sentença arbitral com o dizer constitucional da inafastabilidade da tutela
jurisdicional conjugado com o novo enfoque de acesso à justiça teorizado por Mauro
Cappelletti e princípios consagrados na área jurídica, confirmando o caráter
principiológico deste estudo. Do presente trabalho, concluiu-se pela plena aceitação do
juízo arbitral em nosso sistema jurídico através da efetiva participação do Poder
Judiciário no zelo do processo arbitral pautado pela observância do princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional, em especial, ao longo dos casos de nulidade da
sentença em sede de arbitragem.
Palavras-chave: Arbitragem. Nulidade. Princípio da inafastabilidade da tutela
jurisdicional. Acesso à justiça.
¹Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG.
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Abstract:
This paper consists in the proposition constitutionally accepted to guide the arbitration
in the Brazilian legal order. Your objective aims to link cases of nullity of the arbitral
award with the constitutional mean of the non-obviation of jurisdiction conjunction
with the new approach to access to justice theorized by Mauro Cappelletti and
principles enshrined in the legal field, confirming the principled character of this study.
From this study, it was concluded by the full acceptance of arbitration in our legal system
through the effective participation of the Judiciary in the zeal of the arbitration
proceedings guided by the principle of non-obviation of jurisdiction, in particular, over
the cases of nullity of sentence in the seat of arbitration.
Keywords: Arbitration. Nullity. Principle of non-obviation of jurisdiction. Access to
justice.
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1 . Introdução
Há uma intrínseca relação entre o Direito e a sociedade, com notável dependência
entre ambos. O Direito vem à tona com o intuito de regular o ambiente da sociedade,
buscando assim a efetiva promoção da pacificação social. Mais do que um instrumento de
reparação de conflitos, ele se torna um meio de prevenção destes, o que é o grande
corolário da atuação jurídica.
Todavia, a função preventiva é insuficiente para coibir todos os conflitos que vêm
a existir no meio social, sendo necessária a ação do Direito como reparador das diversas
insatisfações geradas. Dessa forma, o Estado, com o intuito de administrar tais conflitos,
visa promover a justiça através do exercício da jurisdição. Assim, vem a campo o Poder
Judiciário, exercido por juízes e tribunais vinculados ao aparato estatal, objetivando o
cumprimento do Direito nas diversas lides a que lhes são apresentadas.
Entretanto, o progresso social demanda uma evolução no sistema jurídico. Hoje, a
sociedade atingiu níveis elevadíssimos de demanda e especialização, o que requer um
melhor atendimento por parte do Direito, seja em seu caráter preventivo ou reparador.
Dentre as possíveis formas de melhoria, se encontram os meios alternativos de resolução
de conflitos, que fogem da exclusiva atuação do Estado na busca pela pacificação social.
Encontra-se neste meio a arbitragem, modo paraestatal de composição de litígios
resolvido por um terceiro, estranho à lide, escolhido pelas partes.
Portanto, prima-se pela facilitação do acesso à justiça em uma ordem jurídica
justa², independente do meio que se utiliza. Há que se atentar, entretanto, que os
preceitos constitucionais devem ser respeitados e observados em todo tipo de processo
que venha a ser institucionalizado com o fim de pacificação social. Destaca-se o princípio
da inafastabilidade da tutela jurisdicional, insculpido no texto constitucional brasileiro,
como grande garantidor do acesso ao Poder Judiciário por parte do portador de direito
lesado ou ameaçado. Todavia, como proceder a sua observância diante da arbitragem, um
meio alternativo ao Poder Judiciário que impede, através da sentença arbitral, a
imposição de demanda judicial perante o Estado?
² Veja-se como exemplo desse tipo de abordagem o estudo de Mauro Cappelletti (1988) com perspectiva
compartilhada por Alexandre Freitas Câmara (2009).
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Assim, para solucionar este tipo de questionamento, o Direito Arbitral brasileiro
tem em sua lei a previsão de nulidades que podem ser atribuídas à sentença proferida em
sede de arbitragem, buscando a garantia do acesso à justiça, extremamente fundamental
em um Estado Democrático de Direito como o Brasil. Tal problemática merece um estudo
aprofundando, relacionando a sentença arbitral com o princípio da inafastabilidade da
tutela jurisdicional, destacando-se nesta análise as ocasiões de invalidade do juízo
arbitral.
2. O Poder jurisdicional do estado e a arbitragem como meio alternativo de
pacificação social:o novo enfoque de acesso à justiça
A função jurisdicional é definida no art. 2º da Constituição Federal com a previsão
do Poder Judiciário entre os Poderes da União. A jurisdição é, portanto, função
indispensável do Estado, “mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em
conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com
justiça”³. É de se salientar que traço marcante da jurisdição é o monopólio estatal,
caracterizando-se “a capacidade, que o Estado tem, de decidir imperativamente e impor
decisões”4. Assim, tal tarefa é tomada pelas rédeas por parte do Estado em virtude de seu
cunho fundamental para a manutenção e a busca da pacificação social, sendo o principal
instrumento para imposição de decisões diante da sociedade.
Entretanto, tem-se buscado meios alternativos de pacificação social. Tal intenção
advém da necessidade de superar diversos óbices encontrados no exercício da jurisdição
típica, minimizando o tempo e o custo característicos do processo tradicional. Para
afastá-los, tem-se buscado alternativas que visem adequar celeridade e gratuidade ao ao
processo, estabelecendo o fator do acesso à justiça a todos. Assim, ganha campo a
desformalização, que, promovendo o princípio da instrumentalidade das formas, prima
³ GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 149.
4 GRINOVER et alii, op. cit., p. 30.
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máximo da pacificação social em detrimento do ato processual em si mesmo5.
O ordenamento jurídico pátrio “atende como poucos a este objetivo de
desformalização do processo e das controvérsias” 6, pois o direito processual brasileiro
possibilitou um aumento capital no combate ao excesso de formas com a Lei n. 9.099/95,
que, promovendo instituto definido constitucionalmente 7, regula os Juizados Especiais
Cíveis, fundamentais na ampliação da celeridade e diminuição dos custos no processo.
Além disso, o Código de Processo Civil abarca artigos que prevêem este objetivo. Destacase o art. 154, em que os atos processuais que, embora realizados de forma que não a
prevista em lei, reputam-se válidos se preenchem a sua finalidade essencial.
Todavia, apesar da jurisdição ser privilégio exclusivo do Estado, é de se afirmar
que este “não tem o monopólio da realização da justiça”8. É de grande valia tal constatação,
afinal possibilita-nos promover a busca por meios alternativos de se fazer justiça sem ferir
preceitos indispensáveis à administração da jurisdição pelo Estado.
Destaca-se a posição de Mauro Cappelletti a respeito do novo enfoque de acesso à
justiça:
Esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas,
incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos
tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou
paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações
5
Neste sentido, GRINOVER et alii, 2011, p. 32-33, 372.
6
CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem: Lei nº 9.307/96. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 2.
7
O inciso I do art. 98 da Constituição Federal prevê a criação: “de juizados especiais, providos por juízes
togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de
menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas
de juízes de primeiro grau”.
8
CÂMARA, op. cit., p. 4.
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no direito substantivo (rectius, substancial) destinadas a evitar litígios ou
facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de
solução dos litígios 9.
Mauro Cappelletti, defendendo a existência de três ondas renovatórias no Direito
Processual atual, prevê como terceira onda o referido novo enfoque de acesso à justiça,
posterior à garantia da assistência judiciária gratuita, correspondente à primeira onda, e
ao atendimento à tutela dos interesses metaindividuais, este que constitui o objeto da
segunda. As duas primeiras fases encontram-se, ao menos formalmente, consolidadas no
ordenamento brasileiro, sendo necessário, portanto, focar no ingresso à representação em
juízo uma concepção mais ampla de acesso à justiça. A terceira onda pode ser “traduzida
em múltiplas tentativas com vistas à obtenção de fins diversos, ligados ao modo-de-ser do
processo”10, com simplificação dos procedimentos por meio de justiça mais acessível e
participativa, por exemplo. Tal perspectiva torna possível a busca por “meios mais
adequados de tutela dos consumidores do serviço de prestação de justiça (...) e a
valorização dos meios paraestatais de solução de conflitos”11.
É necessário, em suma, verificar o papel e importância dos diversos fatores e
barreiras envolvidos, de modo a desenvolver instituições efetivas para
enfrentá-los. O enfoque de acesso à Justiça pretende levar em conta todos esses
fatores. Há um crescente reconhecimento da utilidade e mesmo da
necessidade de tal enfoque no mundo atual12.
9
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. trad. bras. de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 71.
10
GRINOVER et alii, 2011, p. 49.
11
CÂMARA, 2009, p. 2.
12
CAPPELLETTI, op. cit., p. 73.
40
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Assim, verifica-se neste novo enfoque de acesso à justiça um forte empenho na
administração de meios alternativos de pacificação social, encaixando-se a arbitragem
como promotora ativa desse fim, trazendo para o ambiente privado a resolução de
conflitos a priori limitados ao poder jurisdicional estatal.
3. A arbitragem o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional
A arbitragem decorre diretamente do novo enfoque de acesso à justiça,
permitindo que um meio paraestatal de pacificação social seja legitimamente constituído
para a resolução de conflitos. Segundo a teoria de Cappelletti, tal abordagem é necessária,
in verbis:
Originando-se, talvez, da ruptura da crença tradicional na confiabilidade de
nossas instituições jurídicas e inspirando-se no desejo de tornar efetivos — e
não meramente simbólicos — os direitos do cidadão comum, ela exige
13
reformas de mais amplo alcance e uma nova criatividade .
Entretanto, prevê o art. 18 da Lei n. 9.307/96, a Lei de Arbitragem, que o árbitro é
juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a
homologação pelo Poder Judiciário. Além disso, fortalecendo as bases do juízo arbitral, a
referida lei permite que a sentença arbitral produza, entre as partes e seus sucessores, os
mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário, conforme
preceituado no art. 31. Há que se analisar, portanto, qual a extensão de uma via de
resolução alternativa de conflitos de cunho privado, que substitui a jurisdição estatal,
com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional insculpido no art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal, que afirma não poder a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito.
13
CAPPELLETTI, 1988, p. 8.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
41
Assim, a fim de compatibilizar-se com o referido preceito constitucional, a Lei de
Arbitragem conclama dois fundamentais princípios, os quais se referem à autonomia
privada e à disponibilidade. Faz-se mister ressaltar que prima-se, portanto, por
argumentos de princípio, e não argumentos meramente políticos. Segundo Ronald
Dworkin, “os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um
direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um
objetivo coletivo” 14. Assim, a instituição da arbitragem não se dá através de argumentos
políticos, e sim por fundamentação principiológica, prevalecendo a tese do eminente
jurista segundo a qual os argumentos de princípio devem sempre preponderar. Somente
assim poderá ser realizado um juízo de proporcionalidade diante da inafastabilidade da
tutela jurisdicional.
Através do princípio da autonomia privada, apenas as partes que desejarem o
juízo arbitral dele se valerão, sendo este acordado pela convenção de arbitragem15. Desta
forma, não é a ninguém imposto a solução de conflitos perante o meio paraestatal aqui
abordado. Aos indivíduos não interessados neste tipo de realização de pacificação social,
o acesso à justiça por meio da jurisdição estatal permanece íntegro. Assim, cabe
exclusivamente às partes a utilização ou não da arbitragem nas divergências que venham
a enfrentar. Ressalta-se, inclusive, que em contratos de adesão a cláusula compromissória
para a instituição de arbitragem apenas é válida se esta for instituída pelo aderente ou se
este houver concordado expressamente com a imposição deste meio alternativo de
16
realização de justiça . São, portanto, as partes os responsáveis pela submissão de ambas ao
juízo arbitral.
14
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. bras. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 141.
15
“Art. 3º. As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante
convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral” (Lei n.
9.307/96).
CÂMARA, 2009, p. 25.
16
42
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Além da autonomia privada das partes na efetuação da convenção de arbitragem, a
Lei n. 9.307/96 limita enfaticamente o que pode vir a ser objeto e quem pode ser sujeito do
17
processo diante do juízo arbitral, com a estipulação do art. 1º, em que apenas as pessoas
capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a
direitos patrimoniais disponíveis.
Ora, tal sujeição imposta à arbitragem salienta fortemente a preocupação do
legislador em não permitir que uma convenção entre partes venha decidir demanda a
respeito de direitos de caráter indisponível e/ou não-patrimonial, limitando densamente
a competência a que está investido qualquer árbitro submetido à jurisdição brasileira. O
aspecto da disponibilidade permite às pessoas a liberdade de exercer ou não seus direitos,
18
19
constituindo o chamado poder dispositivo , o que não ocorre com direitos indisponíveis,
delineados como exclusividade da jurisdição estatal. Inclusive, prevê a Lei de Arbitragem
que, sobrevindo no curso da arbitragem controvérsia acerca de direitos indisponíveis e
verificando-se que de sua existência, ou não, dependerá o julgamento, o árbitro ou o
tribunal arbitral remeterá as partes à autoridade competente do Poder Judiciário,
20
suspendendo o procedimento arbitral , que só será retomado após o trânsito em julgado
da decisão que acolha ou não a existência de direito indisponível.
17
A terminologia processo arbitral ganha respaldo dentro do estudo de Alexandre Freitas Câmara (op. cit.,
p. 10-11), que afirma: “Mais modernamente, encontra-se em doutrina a afirmação de que deve considerar-se
processo todo procedimento realizado em contraditório.” Prossegue o jurista: “Assim, sendo, pode-se falar
em processo administrativo, em processo legislativo e, até mesmo, em processo arbitral, ao lado do
tradicionalmente reconhecido processo jurisdicional.” Por sua vez, o § 2º do art. 21 da Lei de Arbitragem
ratifica o respeito ao princípio do contraditório no procedimento arbitral.
GRINOVER et alii, 2011, p. 66.
18
19
“Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam resguardar a vida biológica – sem o qual não há
substrato para o conceito de dignidade – ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e
mental bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa.” (MENDES, Gilmar Ferreira;
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 319).
20
Art. 25 (Lei n. 9.307/96).
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
43
Segundo o art. 1º da Lei n. 9.307/96, é também fundamental a exigência da
capacidade civil das partes para a instituição de uma convenção de arbitragem,
blindando, novamente, o trato com princípio da disponibilidade diante do juízo arbitral,
resguardando, assim, os incapazes, com regulação do regime das capacidades no Código
21
Civil.
Assim, a arbitragem “só se admite em matéria civil (não-penal), na medida da
disponibilidade dos interesses substancias em conflito”,22limitando a possibilidade de um
juízo arbitral diante apenas de conflitos em que o Estado e o Direito permitem a liberdade
das partes pelo concessão do poder dispositivo. Os árbitros, portanto, carecem de
competência objetiva quando a questão submetida à arbitragem se refere a matéria não
23
disponível. Focado na limitação do juízo arbitral, prescreve Alexandre Freitas Câmara:
O Judiciário poderá exercer suas funções (...) naquelas hipóteses em que a
solução por via arbitral se mostre inviável, em razão da natureza da demanda
(que verse sobre direitos indisponíveis), ou por não terem as partes optado
24
pela submissão de seu conflito à arbitragem.
Vindo a complementar a limitação jurídica da Lei de Arbitragem, o art. 32 prevê os
diversos casos em que a sentença arbitral é considerada nula, podendo a parte interessada
pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença
25
arbitral, nos casos previstos na lei citada.
21
Sobre capacidade civil, consulte-se GONÇALVES, Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. vol. I.
8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 110 e seguintes.
22
GRINOVER et alii, op. cit., p. 35.
23
NAVARRO, María de José Mascarell et alii. Comentario breve a la Ley de Arbitraje. Madrid: Civitas, 1990, p.
130.
CÂMARA, 2009, p. 50.
Art. 33 (Lei n. 9.307/96).
24
25
44
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Dessa forma, as disposições do sistema brasileiro de arbitragem são
categoricamente compatibilizadas com o princípio da inafastabilidade da tutela
jurisdicional, preceito constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, não tornando o juízo
arbitral alheio à jurisdição estatal. O que ocorre, portanto, é exatamente o oposto, em que
cabe ao Poder Judiciário coibir quaisquer condutas que visem lesar as disposições de
admissibilidade, processualização e validade da arbitragem, sendo o responsável direto
pela condução da demanda de decretação de nulidade da sentença arbitral.
4. Casos de nulidade da sentença arbitral
A fim de resguardar o acesso à justiça através da arbitragem, a Lei n. 9.307/96
comina as hipóteses em que a sentença arbitral é nula, tornando inválido o juízo arbitral
no qual incidem tais situações. Um ato “é nulo quando ofende preceitos de ordem pública,
que interessam à sociedade. Assim, quando o interesse público é lesado, a sociedade o
26
repele, fulminando-o de nulidade”. Prescreve o art. 32 da referida lei, sobre os casos de
nulidade da sentença arbitral:
Art. 32. É nula a sentença arbitral se:
I - for nulo o compromisso;
II - emanou de quem não podia ser árbitro;
III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei;
IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem;
V - não decidir todo o litígio submetido à arbitragem;
VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou
corrupção passiva;
VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III,
desta Lei; e
VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta
Lei.
26
GONÇALVES, 2010, p. 472
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
45
O primeiro caso de nulidade se refere à invalidade do compromisso arbitral, que é a
convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais
27
pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. Sendo assim, é por meio do compromisso
arbitral que se institui a possibilidade jurídica de submissão das partes a um juízo arbitral
e, consequentemente, a uma sentença oriunda da arbitragem. Caso o compromisso
arbitral seja eivado de nulidade, a sentença é também nula, pois não há legitimidade para o
juízo arbitral em um litígio não estabelecido legalmente.
Portanto, resguarda-se aqui a necessidade de as partes interessadas em submeter
um litígio a juízo arbitral instituir o compromisso de maneira íntegra e voluntária. Não
havendo validade do compromisso ou ausência deste, cabe apenas a jurisdição estatal,
enfatizando o aspecto subsidiário da arbitragem, estabelecida como uma faculdade
processual do indivíduo, não podendo ser imposta sem um compromisso arbitral válido.
“O compromisso arbitral é, pois, um contrato de direito privado, cujo efeito é a
instauração de um processo arbitral, no qual haverá a heterocomposição do conflito de
interesses que originou o compromisso”.28Desta forma, cabe anular um compromisso
arbitral pelas mesmas causas de nulidade do negócio jurídico em geral, regras constantes
no art. 166 do Código Civil:
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua
validade;
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem
cominar sanção.
27
Art. 9º (Lei n. 9.307/96).
28 CÂMARA, 2009, p. 34.
46
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
O compromisso arbitral pode também ser anulável,29dependendo, portanto, da
anulação do compromisso a decretação de nulidade da sentença arbitral. Com previsão no
art. 171 do Código Civil, a anulabilidade é imposta aos atos realizados por relativamente
incapazes ou cometidos de algum vício do consentimento ou vício social.
Há ainda que se destacar a obrigatoriedade de constar no compromisso arbitral as
cláusulas insculpidas nos incisos do art. 10 da Lei de Arbitragem, determinando a
presença de dados das partes (I), de informações do árbitro, dos árbitros ou da entidade
incumbida da indicação de árbitros (II), da matéria objeto da arbitragem (III) e do lugar
da sentença arbitral (IV).
A seguir, a Lei de Arbitragem torna nula a sentença arbitral emanada de quem não
podia ser árbitro. Segundo o art. 13 da lei, pode ser árbitro qualquer pessoa civilmente
capaz e que tenha a confiança das partes. Assim, é delimitado o grau da medida da
personalidade do árbitro, que deve ser pleno, aliado à obrigação de ter sido o árbitro
nomeado e autorizado pelas partes em conflito. Há ainda, apesar do silêncio da lei, a
necessidade do árbitro ser alfabetizado e conhecedor do idioma pátrio,30afinal, não se pode
admitir um julgador incapacitado de apresentar por escrito sua decisão, o que é essencial
de acordo com o art. 24 da Lei de Arbitragem, segundo o qual deve ser escrita a sentença.
Além disso, deve o árbitro proceder com imparcialidade, independência,
competência, diligência e discrição,31norteadores da atividade arbitral. A lei, inclusive,
impede de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio
que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento
“ Quando a ofensa atinge o interesse particular de pessoas que o legislador pretendeu proteger, em estar
29
em jogo interesses sociais, faculta-se a estas se o desejarem, promover a anulação do ato. Trata-se de negócio
anulável, que será considerado válido se o interessado se conformar com os seus efeitos e não o atacar, nos
prazos legais, ou o confirmar.” (GONÇALVES, 2010, p. 475).
30
31
CÂMARA, 2009, p. 43-44.
Art. 13, § 6º (Lei n. 9.307/96).
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
47
ou suspeição de juízes32. Tende-se, portanto, a uma equiparação dos árbitros aos juízes, de
maneira que o juízo arbitral fique mais comprometido a um acesso à justiça em uma
ordem jurídica justa.
A lei visa resguardar a imparcialidade do árbitro conciliando-a com a
inafastabilidade da tutela jurisdicional, ao prever no §2º do art. 20 que, caso a arguição de
impedimento ou suspeição seja rejeitada no curso do processo arbitral por parte do
árbitro, pode a parte interessada demandar a questão perante órgão do Poder Judiciário.
Ressalva-se, entretanto, que podem as partes convencionar, pela autonomia privada, a
escolha de árbitros com incidência de causas de impedimento ou suspeição, desde que,
obviamente, seja a seleção feita de maneira consciente.
O árbitro é ainda civilmente responsável por seus atos, quando, “cometendo falta
grave, causar dano indevido a uma das partes (ou a ambas). É certo que caberá ao
Judiciário estabelecer na hipótese concreta se houve ou não responsabilidade civil do
árbitro”33. Há também a previsão da responsabilidade penal diferenciada, pela qual o
árbitro fica equiparado a funcionário público, podendo ser autor e vítima de delitos
referentes a este tipo de sujeito, os chamados crimes funcionais, conforme previsão no art.
17 da Lei de Arbitragem.
O caso seguinte de nulidade é atribuído à sentença arbitral que não contenha os
requisitos do art. 26 da Lei de Arbitragem:
Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes e um resumo do litígio;
32
Art. 14 (Lei n. 9.307/96). Há que se pautar pelo disposto no Código de Processo Civil, nos art. 134 e 135, a
respeito das causas de impedimento e de suspeição de juízes.
33
CÂMARA, op. cit., p. 62. O autor afirma ainda que deve se entender falta grave, termo decorrente de
lacuna legal a respeito da responsabilidade civil arbitral, como um conceito jurídico indeterminado,
devendo o juiz, no caso concreto, averiguar a sua presença ou não.
48
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e
de direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por
eqüidade;
III - o dispositivo, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem
submetidas e estabelecerão o prazo para o cumprimento da decisão, se for o
caso; e
IV - a data e o lugar em que foi proferida.
Parágrafo único. A sentença arbitral será assinada pelo árbitro ou por
todos os árbitros. Caberá ao presidente do tribunal arbitral, na hipótese de um
ou alguns dos árbitros não poder ou não querer assinar a sentença, certificar tal
fato.
A previsão deste tipo de exigência decorre da regra do art. 458 do Código de
Processo Civil, que determina os requisitos essenciais da sentença judicial, adequando,
portanto, a sentença arbitral à exposição da decisão pelo Poder Judiciário. Entretanto,
faz-se a ressalva de que tais preceitos do art. 26 da Lei n. 9.307/96 e do art. 458 do Código
de Processo Civil não são requisitos, e sim elementos, já que integram a própria sentença.34
Tais elementos são fundamentais para a existência da sentença arbitral, tornando-a,
somente assim, aceita no mundo jurídico.
Em relação ao disposto no Código de Processo Civil, difere a Lei de Arbitragem
apenas por acrescentar a obrigatoriedade da data e do lugar em que a sentença é proferida.
Tal exigência é fundamental, pois permite verificar o respeito ao prazo35 para prolação da
sentença e a qualificação da arbitragem em nacional ou internacional.36Além disso, é
exigido que o árbitro assine a sentença.
34
CÂMARA, 2009, p. 111-112.
35
Art. 23 (Lei n. 9.307/96). Se não estipulado pelas partes, é de seis meses o prazo para apresentação da
sentença, contados da instituição da arbitragem ou substituição do árbitro.
36
Art. 34, Parágrafo único (Lei n. 9.307/96). É estrangeira a sentença arbitral proferida fora do território
nacional.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
49
Os demais elementos do art. 26 da Lei n. 9.307/96 são comuns à sentença judicial.
O relatório é a síntese do processo arbitral, através do qual são apresentadas as partes em
conflito e os termos do litígio. Os fundamentos da decisão, por sua vez, apresentam as
razões da decisão do árbitro, permitindo a verificação da análise crítica dos fatos da lide. O
último elemento é o dispositivo, que atribui à causa o conteúdo decisório em si. Caso seja
necessário, deve o árbitro, na parte dispositiva, estabelecer o prazo para o cumprimento
da decisão.
Outro caso de nulidade da sentença arbitral é aferido quando esta é proferida fora
dos limites da convenção de arbitragem (sentença ultra e extra petita) ou quando não é
decidido todo o litígio submetido ao juízo arbitral (sentença citra petita). Em tais
hipóteses ocorre a inobservância do princípio da adstrição, pelo qual a concessão do
árbitro fica adstrita ao objeto da arbitragem.
Através da convenção de arbitragem é instituído o objeto do litígio, cabendo ao
árbitro decidir a questão dentro de seus limites.
Em outras palavras, o laudo arbitral não pode decidir sobre questão estranha
ao objeto da arbitragem (sentença extra petita), nem pode exceder os limites
impostos pelas partes na delimitação deste objeto (sentença ultra petita), nem
pode deixar de decidir questão submetida à apreciação do árbitro ou do
colégio de árbitros (sentença citra petita).37
Da mesma forma acontece na jurisdição estatal, em que o juiz deve restringir sua
decisão ao pedido da parte. O Código de Processo Civil prevê, no art. 128, que o juiz
decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões,
37
CÂMARA, 2009, p. 119. O jurista, em sua obra, prefere a denominação laudo arbitral ao invés de sentença
arbitral, afirmando ser esta exclusiva do meio jurisdicional estatal, com respaldo no direito comparado.
Todavia, a Lei n. 9.307/96 utiliza o conceito sentença arbitral.
50
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. Há ainda o art. 460, pelo
qual é defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida,
bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi
demandado. Há, portanto, mais uma aproximação da sentença arbitral com a sentença
judicial, permitindo que a arbitragem, apesar de meio paraestatal de pacificação social,
tenha o mesmo fim de acesso à justiça.
O próximo caso de nulidade é apenas possível pela previsão do já mencionado art.
17 da Lei de Arbitragem, que equipara os árbitros, quando no exercício de suas funções ou
em razão delas, aos funcionários públicos para efeitos de legislação penal. Assim, é nula a
sentença arbitral se comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou
corrupção passiva. Tal hipótese, no caso da sentença judicial, gera rescindibilidade, sendo
objeto de ação rescisória, conforme art. 458 do Código de Processo Civil.
Os crimes de prevaricação e de corrupção passiva, constantes nos arts. 319 e 317 do
Código Penal, respectivamente, são praticados por funcionário público contra a
Administração em geral. No primeiro, o árbitro viola sua função para atender a objetivos
pessoais e, no segundo, negocia seus atos visando uma vantagem indevida. A corrupção
ativa, previsto no art. 333 do Código Penal, é delito praticado por particular contra a
Administração em geral. Correlata da corrupção passiva, ocorre quando um indivíduo
oferece ou promete vantagem indevida ao árbitro a fim de que este lhe favoreça no
processo arbitral.
Todavia, vale ressaltar que “não é preciso, para se invalidar o laudo, que o árbitro
tenha sido condenado em processo penal pela prática do crime, sendo possível que se
demonstre que o ilícito foi praticado no próprio processo civil”.38
É também nula a sentença proferida fora do prazo. Como visto, este prazo,
segundo o art. 23 da Lei n. 9.307/96, via de regra, é convencionado pelas partes na
convenção de arbitragem. Caso nada seja acordado, pois o prazo é elemento facultativo do
38
CÃMARA, 2009, p. 133.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
51
compromisso arbitral,39 a lei determina que é de seis meses o prazo para a apresentação da
sentença, que se inicia a partir da aceitação do encargo pelo árbitro, seja na instauração da
arbitragem em si ou a partir da substituição do árbitro.
Tal prazo é fundamental para a busca da celeridade processual, uma das vantagens
do juízo arbitral em relação ao Poder Judiciário, que, geralmente, tende a ser mais moroso,
apesar de buscar a razoável duração do processo.40Na arbitragem ainda é possível às partes
e aos árbitros, de comum acordo, prorrogar o prazo estipulado, conforme disposição do
parágrafo único do referido art. 23, ressaltando, mais uma vez, a autonomia privada
presente na arbitragem.
Entretanto, deve ser respeitado o disposto no inciso III do art. 12 da Lei de
Arbitragem, que concede ao árbitro o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da
sentença arbitral caso tenha expirado o prazo inicialmente convencionado, desde que a
parte interessada notifique o árbitro, judicial ou extrajudicialmente. Sendo assim, apenas
após o decurso deste prazo pode a sentença arbitral ser declarada nula.
Por fim, a sentença arbitral apenas pode ser válida se primar pela observância dos
princípios de que trata o art. 21, § 2º, da Lei n. 9.307/96:
Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na
convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão
arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às
partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o
procedimento.
§ 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do
contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu
livre convencimento.
Art. 11, III (Lei n. 9.307/96).
39
40
“Art. 5º LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (Constituição Federal).
52
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
O primeiro princípio é o do contraditório, garantia constitucional insculpida no
inciso LV do art. 5º da Carta Magna. Urge destacar o módulo processual, pensado por Elio
Fazzalari,41 que representa o procedimento realizado em contraditório, em que a abertura
à participação é considerada como elemento do processo. Deve ser entendido o princípio
do contraditório como, “de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência
da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes
reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis”.42
Assim, o juízo arbitral é instituído com a possibilidade das partes assumirem
posições ativas e passivas no processo, praticando atos na defesa de seus interesses e
sujeitando-se às práticas por parte do adversário. O contraditório ainda garante o direito
à prova, promovendo a participação efetiva das partes. “Em virtude da natureza
constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas
sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas
que não o respeitem”.43
A igualdade das partes é garantida pelo princípio da isonomia inscrito no art. 5º,
caput, da Constituição Federal, não se tratando, porém, “de mera garantia de igualdade
formal, mas sim de igualdade substancial, ou seja, há que se assegurar no processo arbitral
a paridade de armas”.44Assim, busca-se “tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, na medida da sua desigualdade.”45Deve-se, portanto, evitar que a parte mais
forte no processo obtenha êxito pelo fato de ser mais poderosa, seja econômica, jurídica
ou politicamente.
41
GRINOVER et alii, 2011, p. 309-310.
42
NERY JÚNIOR, Nelson et alii. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 1992, p. 122-
123.
43
GRINOVER et alii, 2011, p. 63.
CÂMARA, 2009, p. 78.
44
45
MENDES et alii, 2010, p. 221.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
53
O livre convencimento do árbitro é marcado pelo princípio da persuasão racional,
pelo qual o julgador forma livremente sua convicção a respeito das provas constantes no
processo. “O árbitro deve decidir com base nos elementos existentes no processo, mas os
avalia segundo critérios críticos e racionais”.46
Como corolário da persuasão racional, verifica-se como imperativo a necessidade
de motivação das decisões arbitrais. A fundamentação das sentenças permite às partes
aferir qual o sistema de provas avaliado pelo árbitro, possibilitando a análise de acordo
com os princípios expostos.
Por sua vez, a imparcialidade do árbitro denota a primeira condição para que
possa exercer sua função dentro do processo, colocando-se entre as partes e acima delas,
primando por um juízo não apenas técnico, mas também ético.47 Compete salientar,
conforme exposto, que, para manter a imparcialidade do árbitro, o art. 14 da Lei de
Arbitragem impede de funcionar como árbitros as pessoas que tenham relações que
caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes. Ressalta-se novamente,
porém, que podem as partes convencionar, conscientemente, a presença de árbitro em
caso de impedimento ou suspeição. De qualquer forma, tal aceitação não afasta de
maneira alguma a necessidade do julgador de proceder com imparcialidade no decorrer
do processo arbitral.
Dessa forma, prima-se pela observância de princípios típicos do processo
jurisdicional como parâmetros obrigatórios ao longo do processo arbitral. A arbitragem,
portanto, foca-se em um acesso à justiça delineado por preceitos de uma base
principiológica que possibilita uma tendência à equiparação com a jurisdição estatal,
enfatizando a compatibilização da arbitragem com o princípio da inafastabilidade da
tutela jurisdicional, ampliando o âmbito de incidência do inciso XXXV do art. 5º da Lei
Maior na sociedade brasileira.
46
47
GRINOVER et alii, op. cit., p. 74.
GRINOVER et alii, 2011, p. 59.
54
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Havendo, portanto, algum caso de nulidade da sentença arbitral, cabe à parte
interessada pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da
sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei, conforme art. 33 da Lei n. 9.307/96. Assim,
a parte prejudicada propõe a ação de anulação de sentença arbitral, sujeita a um prazo
decadencial de noventa dias.48
O direito ao reconhecimento da invalidade do laudo arbitral não corresponde a
nenhum dever jurídico. Ao contrário, se ocorreu alguma das causas de
invalidade daquela decisão, a parte prejudicada tem o direito à declaração de
nulidade do ato, enquanto a outra parte simplesmente deve sujeitar-se ao
exercício daquele direito, suportando os efeitos da declaração de nulidade. (...)
O direito ao reconhecimento da invalidade do laudo arbitral é potestativo,
sendo, portanto, decadencial o prazo de noventa dias a que se refere a Lei de
Arbitragem.49
Se a demanda judicial do art. 33 for decidida procedente, deverá a sentença arbitral
ser anulada nos casos de ser nulo o compromisso arbitral (inciso I), ter sido a sentença
emanada de quem não podia ser árbitro (inciso II), ser comprovado que foi proferida a
sentença por prevaricação, concussão ou corrupção passiva (inciso VI), ter sido proferida
fora do prazo (inciso VII) e se forem desrespeitados os princípios do art. 21, § 2º da lei
(inciso VIII). Nos casos em que a sentença não contiver os requisitos do art. 26 (inciso III),
for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem (inciso IV) ou não decidir todo o
litígio submetido à arbitragem (inciso V), deverá o árbitro proferir nova sentença, em
prazo definido pelo órgão do Poder Judiciário.
48
Art. 33, § 1º (Lei n. 9.307/96).
CÂMARA, 2009, p. 138.
49
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
55
A ação de anulação da sentença arbitral visa, portanto, coibir atos que tornem o
juízo arbitral incompatível com a prestação de justiça em uma ordem jurídica justa.
Assim, os casos de nulidade, se verificados, devem ensejar o atendimento do Poder
Judiciário a fim de que o meio paraestatal da arbitragem acolha os preceitos do acesso à
justiça e da inafastabilidade da tutela jurisdicional.
5 . Conclusão
A arbitragem, conforme discutido ao longo do exposto, é vista, portanto, como um
meio paraestatal de busca da pacificação social tendente ao ajuste com o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional, do qual se deduz o direito de acesso à justiça, de
cunho constitucional.
A fim de afastar a suposta crítica de que o juízo arbitral tende a causar uma
substituição da jurisdição estatal, a Lei n. 9.307/96 é firme ao prever extenso rol de casos
de nulidade da sentença arbitral, confirmados exclusivamente por órgão do Poder
Judiciário através da ação de anulação de sentença arbitral, corroborando a tese de que a
justiça pode ser feita por particulares, mas a supremacia da jurisdição encontra-se nas
mãos do Estado. As previsões legais para anular a sentença arbitral funcionam, portanto,
como inibidoras de casos que venham a deturpar a ordem normativa do instituto da
arbitragem, fortalecendo o novo enfoque de acesso à justiça.
Aceitar as limitações das reformas dos tribunais regulares (...) envolvem a
criação de alternativas, utilizando procedimentos mais simples e/ou
julgadores mais informais. Os reformadores estão utilizando, cada vez mais, o
juízo arbitral, a conciliação e os incentivos econômicos para a solução dos
litígios fora dos tribunais.50
50
CAPPELLETTI, 1988, p. 80.
56
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Assim, o trabalho dos árbitros vem valorizar o Poder Judiciário, propiciando
diminuição da imensa carga processual para os juízes com consequente aumento da
rapidez da tramitação dos processos perante a jurisdição estatal. Desta forma, ao
Judiciário cabem funções relativas aos processos com natureza impedida por lei para a
arbitragem e nos casos em que as partes não optarem pelo juízo arbitral. Destaca-se,
portanto, mais uma vez, a importância dos princípios da disponibilidade e da autonomia
privada, que sopesam com a inafastabilidade da tutela jurisdicional.
Ainda cabe ressaltar outros aspectos da valorização do Poder Judiciário pela
arbitragem, esta que é limitada em sua atuação para não ferir o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional. Casos que preveem a necessidade do uso da
coação enfatizam a exclusividade do poder de império por parte do Estado, tais como na
condução de testemunhas e na adoção de medidas coercitivas ou cautelares. Discorre
sobre o tema Gilmar Mendes, em que a jurisdição estatal tem sua participação:
nas hipóteses de descumprimento de cláusula compromissória, desacordo
entre as partes quanto à nomeação do árbitro e fixação de seus honorários,
execução e decretação de nulidade de sentença arbitral, quando no curso da
arbitragem surja controvérsia acerca de direitos indisponíveis (...) etc.51
Apesar de sua grande importância para as causas de natureza empresarial, não se
busca aqui facilitar somente o acesso à justiça pela arbitragem a fim de promover este tipo
de demanda. Muito pelo contrário, a abordagem principiológica desenvolvida nesta
ocasião prima pelo defendido novo enfoque de acesso à justiça, com vistas a aumentar a
abrangência de utilização da arbitragem a todos que buscam a solução de suas lides em
meios paraestatais mais céleres e menos desgastantes, mas não menos justos. “A
arbitragem, que em alguns países é praticada mais intensamente e também no plano
51
MENDES, 2010, p. 596.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
57
internacional, é praticamente desconhecida no Brasil, quando se trata de conflitos entre
nacionais”.52
Destarte, o juízo arbitral prima pelo seu caráter de não-beligerância, pois a
solução dos litígios é convencionada pelas próprias partes, enfatizando o trabalho de
busca por justiça por parte dos árbitros. Mais interessante ainda, é poder contar com um
julgador capaz de identificar quesitos de caráter técnico não identificáveis por um
profissional exclusivo da área de Direito, como o juiz estatal, através da arbitragem de
equidade, que permite maior especialização do árbitro e, por conseguinte, da própria
sentença.
Ademais, deve-se ter em mente o intuito de estimar este meio alternativo para a
solução de lides, promovendo a pacificação social, fim máximo do processo. Valorizar este
instituto vislumbra, assim, aumentar a incidência do acesso à justiça
constitucionalmente garantido no Brasil, que “com a lei de arbitragem (...), ganhou nova
força e vigor e, em alguma medida, vai passando a ser utilizada efetivamente como meio
alternativo para a pacificação de pessoas em conflito”.53
52
GRINOVER, 2011, p. 31.
53
GRINOVER, 2011, p. 35.
58
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Referências Bibliográficas
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A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário
internacional
Kalline Carvalho¹
Resumo
O presente trabalho elabora uma análise sobre a Organização das Nações Unidas. Na
parte inicial, faz-se um breve histórico mostrando-se sua origem e fundamentos. A
segunda parte traz uma análise sobre as propostas de reforma das Nações Unidas.
Finalmente, a terceira parte apresenta o centro do debate: A democratização, o que inclui
principalmente o problema da representatividade do Conselho de Segurança e a
possibilidade de se introduzir atores não governamentais no processo decisório.
Palavras-Chave: Organização das Nações Unidas – Origens e Fundamentos – Reforma –
Democratização
¹Acadêmica do 9º período de Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Abstract
The present work makes an analysis of the United Nations Organization. At the
beginning, it shows a brief history of the UN´s origins and its fundamentals. The second
part brings an analysis of the UN´s reform proposals. Finally, the third part shows the
center of this debate: The democratization, which mainly includes the problem of
Security Council's representativeness and the possibility to introduce non-governmental
actors in the decision making process.
Keywords: United Nation Organization - Origins and Fundamentals - Reform Democratization
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1. Introdução
O presente trabalho não busca retratar a ONU por um lado de idealismo e pelas
boas intenções que muitas pessoas lhe imputam, nem tampouco, como muitas vezes se
fez, pelos resultados frustrados obtidos por essa Organização. A abordagem do trabalho é
no sentido de avaliar a instituição à luz das transformações ocorridas na realidade
nacional e internacional, demonstrando o relevante papel que a ONU assume no atual
contexto internacional visto como um sistema global pós-nacional.
Analisa-se, inicialmente, a missão que a comunidade das nações conferiu,
originalmente, à organização mundial e, em seguida, fazendo uma análise mais profunda,
avança-se na discussão quanto a uma possível reforma democrática de suas instituições.
Entretanto, antes de adentrar, especificamente, no tema é preciso identificar a
sociedade sobre a qual a ONU pretende regular e representar. A sociedade internacional,
na visão de Manuel Dies de Velasco (1997. Pg. 62 a 63.), pode ser caracterizada como
sendo: Dinâmica, pela intensidade e importância das mudanças que constantemente
ocorrem; Heterogênea, diante da grande desigualdade de poder politico e econômico
existente entre os Estados, este último, resultado da revolução industrial tardia nos
Estados em desenvolvimento e, ainda, das diferenças políticas e culturais; Pouco Integrada,
porque seu grau de institucionalização segue sendo relativo apesar do extraordinário
número de Organizações Internacionais de âmbito universal; Interdependente, porque os
Estados nunca foram sequer relativamente autossuficientes, pois que, antes, todos,
incluindo as grandes potências, se encontravam em situações de dependência. A
Sociedade Internacional Contemporânea, assim, é, ao mesmo tempo, descentralizada,
basicamente interestatal e apenas parcialmente organizada.
Observa-se que, historicamente, a partir do processo de descolonização da década
de 60, há uma mudança na sociedade internacional, mas apesar disso, o padrão de Direito
Internacional Clássico ainda é aplicado nessa nova sociedade heterogênea, o que traz uma
série de problemas porque os paradigmas de hoje são outros: direitos humanos /
democracia.
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Em razão da mudança do padrão de conflito, a tutela internacional se estende para
outros campos e a grande questão que precisa ser respondida remete à compatibilização
das novas pretensões da ONU com as exigências de democratização das suas instituições
a fim de que haja uma maior representatividade e, por conseguinte, maior legitimidade
das suas ações. A constituição de novos locus de autoridade é, indubitavelmente, uma
questão que perpassa toda discussão sobre a reforma da ONU.
2. ONU: origens e fundamentos
O reconhecimento da necessidade de um ator neutro para equilibrar os conflitos
internacionais só foi alcançado em 1945, a despeito de tentativas anteriores. A Liga das
Nações (1919), por exemplo, criada após a 1ª Guerra Mundial não foi reconhecida como
um espaço de deliberação em virtude, principalmente, de oposições dos Estados Unidos.
Existem, assim, fatos emblemáticos que impulsionam a criação de um organismo
internacional cujo pressuposto é justamente a aceitação da relativização de soberanias.
A ONU, ao tempo de sua concepção, tinha como objetivo a manutenção da ordem
estabelecida no imediato pós-Segunda Guerra; o seu Conselho de Segurança era
basicamente um condomínio das potências aliadas vitoriosas, as quais se incumbiam de
manter o resto do mundo em ordem. A Assembleia Geral, por sua vez, podia sediar
discussões e fazer recomendações, despida, todavia, da capacidade institucional para
decidir.
A ONU inovou na ordem internacional ao trazer o Sistema Coletivo de Segurança.
Por se atingir o interesse nacional, a criação deste organismo demonstrou ser um
movimento drástico. Sob a égide do voluntarismo, o corolário inicial era a nãointervenção.
Enquanto ator de regimentação, a ONU demonstrou ser, ao longo dos anos, um
órgão importante para reunir os países e, consequentemente, as diversas ideologias na
tentativa de se conciliar interesses de uma sociedade tão desigual.
A primeira preocupação foi com a segurança que está intimamente ligada a defesa
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
dos elementos constitutivos do Estado. Na Sociedade Internacional, os Estados têm
diversas lógicas condutoras de suas relações, mas, a despeito disso, há um interesse
comum de todos os Estados que é garantir a sua própria existência enquanto Estado.
Nesse viés, Mônica Herz (1999) explica que a ONU foi pensada para ser uma
organização intergovernamental não estando, no momento de sua criação, a
representação democrática dentre as suas principais preocupações.
A criação da ONU foi, então, motivada pela necessidade de se impedir um novo
conflito, logo após a Segunda Guerra Mundial e, seguindo a essa lógica, foi conferido ao
Conselho de Segurança o “poder de veto”. O veto, uma vez proferido por uma das grandes
potências integrantes do Conselho, evitaria a instauração do conflito.
Contudo, se em um primeiro momento, a ONU assumiu a função de manutenção
da paz, verifica-se também, em uma apreciação das funções políticas, econômicas e
sociais, atribuídas às Nações Unidas em sua formação; outra função fundamental,
relacionada à cooperação para o desenvolvimento econômico e social das nações.
Tomassini (1995) sustenta que, mesmo com esses objetivos, a ONU não conseguiu
ser uma organização autenticamente internacional -menos ainda supranacional- sequer
uma "terceira parte" nos conflitos entre as nações. A verdade é que jamais puderam ir mais
longe do que as nações desejaram, pois a condução da organização tem sido balizada pelas
grandes potências. Estas acabam por desempenhar o processo de criação e alteração das
normas de Direito Internacional em todos os domínios que interessam o conjunto da
Sociedade Internacional.
Diante dessa constatação, o autor, ora citado, sugere que a ONU adote uma nova forma
de apreciação pelos países-membros ao invés de tomar a história de suas vitórias e
fracassos e suas formas de encaminhamento como cânones a serem seguidos. Propõe,
ainda, que se busque uma melhor forma de representação e participação das sociedades
civis nos trabalhos da Organização, acompanhando desta forma a mudança que se
testemunha nas relações entre Estado e sociedade. Finalmente, sugere que as Nações
Unidas adotem um novo desenho organizacional com vistas a atuar em esferas
diferenciadas, com pessoal próprio e dos países que a integram, tema que agora passa a ser
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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analisado.
3. Reforma da ONU
A ONU, como já demonstrado, surgiu em um contexto de reformulação do cenário
internacional sob a perspectiva de um tipo de tutela, qual seja a segurança.
Na medida em que se confere uma interpretação extensiva ao conceito de
segurança para abarcar a ideia de “segurança humana”, temas que eram tradicionalmente
tratados pela Assembleia Geral, como a questão dos direitos humanos, migram para a
jurisdição do Conselho, impedindo, como enfatiza Marta Moreno (2001), a abordagem
mais democrática e pluralista dessas questões. Em razão disso, torna-se imprescindível
uma reformulação democrática da própria ONU.
Mônica Herz (1999, pg.277) observa a grande preocupação que existe, hoje, com a
legitimidade dos Estados e dos regimes políticos, razão pela qual a redefinição de
parâmetros de intervenção da comunidade internacional é necessária. Marta Moreno
(2001, pg.217), sobre o tema, denuncia que as operações empreendidas em nome da
democracia são efetivadas por um órgão (o Conselho de Segurança) que apresenta um
déficit democrático tanto na sua estrutura quanto no seu modus operandi.
Paradoxalmente, aqueles países que mais insistem na democratização dos
regimes políticos dos Estados como meio para se alcançar uma ordem internacional mais
pacifista, são justamente os que mais resistem à democratização do Conselho de
Segurança. O discurso da promoção da democracia e da aplicação de valores morais no
campo das Relações Internacionais, assim, acaba por esconder os reais interesses dos
Estados que se utilizam desse argumento para legitimar as intervenções em conflitos
estatais internos. Atrás da faceta humanitária, as ingerências militares objetivam um jogo
político-econômico que interfere na luta dos povos contra os regimes opressores de que
faziam parte e se constituíam.
Cogita-se, contemporaneamente, a possibilidade da ONU reconstruir
instituições democráticas de países considerados falidos pela guerra, sob a justificativa de
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que a expansão da área democrática do mundo conduz a um sistema internacional mais
pacífico.
Esse pensamento remonta ao Liberalismo Cosmopolita, em especial à vertente do
Cosmopolitismo cujos autores são chamados de neo-kantianos, porque trazem a ideia de
uma paz perpétua. Os Estados, por serem agentes racionais, difundem a racionalidade
pelo mundo de modo que outros Estados passam a desejar a Democracia, algo que gera
estabilidade e paz.
Enfatiza-se a relação entre democracia e paz internacional sob o argumento
kantiano de que o estabelecimento da democracia e da paz internacional seria
decorrência lógica da consolidação democrática dentro de uma comunidade política.
Entretanto, Mônica Herz (1999, pg.271), fazendo uma leitura mais crítica de A Paz
Perpétua, elucida que, em verdade, Kant não era um pacifista, mas um legalista, pois
acreditava ser possível a formulação de um direito cosmopolita composto por deveres e
obrigações inerentes à humanidade, possíveis de serem recepcionados pelos países, i.e,
seria possível a extensão das fronteiras das comunidades moral e política.
Em semelhança ao pensamento liberal econômico, os cosmopolitas acreditam que
há uma tendência natural de se chegar à paz pelo processo de cooperação de livre
interação, daí seus defensores serem contrários a qualquer tipo de intervenção, tida
sempre como dominação. Nesse ponto, a ideia da imposição de um modelo político ou
socioeconômico para as diversas regiões do globo opõe-se à filosofia kantiana, segundo a
qual a democracia não deve ser desenvolvida por agentes externos, mas sim construída
por cada comunidade conforme suas peculiaridades históricas.
Marta Moreno (2001, pg.117) explica que os Estados liberais partem do
pressuposto de que os Estados não-liberais não representam o direito de seus indivíduos
e, portanto, não podem desfrutar dos princípios da não-intervenção e da independência
política, invioláveis para os Estados que representam seus cidadãos democraticamente.
As novas intervenções da ONU, dessa forma, são justificadas pela “paz
democrática”. O papel da ONU, como constatado em diversas ocasiões, tem²
² Cita-se, a título de exemplo, as intervenções humanitárias no Iraque (1991), na antiga Iugoslávia, na
Somália, Libia, Haiti, Ruanda, dentre tantas outras.
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ultrapassado a sua função de peacekeeping para a de nation bulding, havendo, como já
mencionado, uma progressiva ampliação das competências do Conselho de Segurança.
3.1 Democratização
As propostas de reforma da ONU apresentam relação direta com seu
funcionamento, na medida em que este é marcado por alguns problemas operacionais. Da
forma como apresentadas, com propriedade, por Mônica Herz (1999, pg.264), as
propostas abordam os seguintes pontos: equilíbrio de poder entre a Assembleia Geral e o
Conselho de Segurança; o estabelecimento de critérios mais claros sobre a jurisdição do
Conselho de Segurança e o papel da Corte Internacional de Justiça nesse contexto; a
necessidade de se ampliar o Conselho de Segurança e mudar o sistema de voto; e a criação
de uma terceira Assembléia.
Como apontado por Herz (1999, pg.270), existe uma grande distância entre o
modelo institucional da ONU e a proposta de sua democratização, algo que se torna mais
perceptível quando comparado o Conselho de Segurança com a Assembleia Geral.
As duas primeiras propostas, assim, derivam do desnível existente entre
Assembléia e Conselho. No tocante à representatividade e ao espectro de competências, a
Assembléia Geral é o órgão mais importante da ONU, pois é o único órgão que pode
deliberar sobre qualquer questão posta na Carta das Nações Unidas³.
Entretanto, se o critério for a cogência de suas deliberações, o órgão mais relevante
é o Conselho de Segurança, pois é o único que emite normas vinculantes e que se ocupa
com o fundamento inicial da ONU (paz e segurança). Nessas matérias, o Conselho tem
prerrogativas sobre a Assembléia Geral, visto que apenas ele pode emitir resoluções
autorizando o uso da força. Dessa forma, simbolicamente, a Assembléia tem maior
³ Art.10: “A Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da
presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de qualquer dos órgãos nela previstos, e, com exceção do
estipulado no artigo 12, poderá fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou a este e
àqueles, conjuntamente, com a referência a quaisquer daquelas questões ou assuntos.”
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representatividade, mas as questões essenciais são tratadas pelo Conselho.
Essa dissonância e a expansão das atividades da ONU, principalmente nos
conflitos intraestatais, que até então não se enquadravam no rol de competências do
Conselho de Segurança, tem levado os críticos a repensarem o papel da ONU e a
possibilidade de sua democratização.
Questiona-se veemente uma grande maioria das suas decisões diante da
prevalência dos interesses das grandes potências, em especial dos Estados Unidos. Urge,
portanto, a necessidade de uma maior comunicação entre o Conselho e a Assembleia
que venha a permitir uma participação efetiva dessa última, a despeito da limitação de
suas competências impostas pela própria Carta.
No que diz respeito à jurisdição do Conselho de Segurança, nota-se uma série de
deliberações sobre conflitos internos, algo que inicialmente era impensável. Tais conflitos
assumiram caráter transnacional e se tornaram objeto das resoluções fundadas no
Capítulo VII da Carta, sendo alvo de inúmeras criticas, justamente em razão do caráter
não democrático do Conselho de Segurança e da falta de instrumentos da Organização
para limitar a influência das relações de poder entre os países. Vislumbra-se, por outro
lado, como alternativa, uma renovação no interesse do papel desempenhado pela Corte
Internacional de Justiça, a fim de suprir esse déficit democrático do Conselho.
Quanto à sua representatividade, é evidente que países do “sul” estão subrepresentados, o que torna imprescindível uma modificação substancial desse órgão para
incluir países da Ásia, África e América Latina - em suma, países em desenvolvimento e,
ainda, a Alemanha e o Japão.
Marta Moreno (2001), contudo, assevera que a inclusão da Alemanha e do Japão,
apesar de emancipar o Conselho de Segurança da configuração de poder existente ao
término da Segunda Guerra Mundial, divorciando o status de membros permanentes da
condição de potências nucleares, acabaria por refletir um novo critério de poder baseado
nos recursos econômicos e tecnológicos, o que reforçaria ainda mais a natureza
antidemocrática do Conselho.
Os países dos Sul rechaçam o argumento de que os maiores contribuintes da ONU
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devem ter direito a um maior poder decisório na organização, vez que a situação de
subdesenvolvimento na qual se encontram os países do terceiro mundo é resultado do
colonialismo implementado pelas grandes potências. A influência financeira é, então,
parâmetro que contraria o caráter democrático das Nações Unidas.
A ideia de se criar uma nova categoria de membros permanentes que
participassem do Conselho sem os privilégios especiais de veto também é insuficiente
para conferir maior representatividade ao órgão, vez que permaneceria a dominação
exercida pelas grandes potências através do “voto de cabresto”.
Em relação ao sistema de votação, nos termos do art.27,4 o voto negativo pode ser
usado por qualquer membro permanente do Conselho de Segurança da ONU para
impedir a adoção de uma resolução, estando todos os membros das Nações Unidas de
acordo em aceitar e cumprir as decisões do Conselho de Segurança, pois assim assentiram
no momento em que se tornaram membros da Organização.
No que concerne a esse sistema, como ressalta Mônica Herz (2001, pg.281), há a
importação do modelo liberal-democrático, ou seja, leva-se para o cenário internacional
um sistema político doméstico que faz com que, paulatinamente, a ideia de unanimidade
passe a ser substituída pela vontade da maioria, o que reflete na própria flexibilização do
conceito de soberania. A mesma autora também adverte que, ao mesmo tempo em que o
voto da maioria se consagra como mecanismo decisório, surge o principio do voto
proporcional. Neste caso, com base na responsabilidade ou no interesse especial dos
atores envolvidos, distribui-se o poder de voto de forma proporcional.
A autora argumenta que a aplicação do principio da maioria não resolve o déficit
Art.27. “Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto.
As decisões do Conselho de Segurança, em questões de procedimento, serão tomadas por um voto
afirmativo de nove membros.
As decisões do Conselho de Segurança sobre quaisquer outros assuntos serão tomadas por voto
favorável de nove membros, incluindo os votos de todos os membros permanentes, ficando entendido que,
no que se refere às decisões tomadas nos termos do capítulo VI e do nº 3 do artigo 52º, aquele que for parte
numa controvérsia se absterá de votar”.
4
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democrático da ONU, pois, esse princípio não expressa a vontade dos indivíduos (já que
os atores do processo decisório são os Estados) e não respeita o direito das minorias. A
inclusão de atores não-estatais e a proteção dos direitos das minorias contra a "tirania da
maioria" na ordem internacional torna-se, então, o foco dos debates atuais .
4. O reconhecimento do indivíduo no cenário internacional e o seu papel na reforma
da ONU
A Sociedade Internacional Clássica se reduzia a um grupo quase cerrado de
Estados ocidentais, na sua grande maioria europeus, que expressavam um Direito
Internacional liberal, radicalmente decentralizado e oligárquico. Liberal porque suas
normas atendiam quase exclusivamente à distribuição de competência entre os Estados e
a regulação da relação entre eles, havendo sempre o respeito absoluto da soberania
nacional. Não se proibia, aqui, o uso da força e o recurso à guerra. Decentralizado, porque
não havia instituições ou organismos para servir como instâncias de moderação de poder
dos Estados. Oligárquico, porque era uma ordem concebida essencialmente para satisfazer
os interesses de um grupo reduzido de Estados. (DIES DE VELASCO, 1997)
Nesse contexto, o Direito Internacional que se tornou hegemônico foi o Direito
estabelecido para regular os Estados Nações, trazendo em si um discurso civilizatório que
serviu de justificativa para a expansão e dominação. Os Estados tidos como civilizados
estavam em um patamar diferenciado porque se reconheciam como mutuamente
soberanos, afastando-se do estado de natureza de Hobbes.
O Direito Internacional legitimo e hegemônico era representado pelos interesses
dos Estados dominantes. A “nação civilizada” passa a servir de padrão para a criação das
normas do Direito Internacional.5
Essa idéia de Estados civilizados perdura até hoje como se verifica no art.38 da Carta da ONU: “A Corte,
cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas,
aplicará: c) os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas.”
5
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Em virtude da predominância do modelo inaugurado pelo Estado Nação, não
havia espaço para atuação do indivíduo, haja vista que este não era sequer reconhecido
como sujeito de Direito Internacional. Entretanto, com a 2ª Guerra Mundial e em virtude
de uma série de fatores que se sucederam cronologicamente, o Direito Internacional
Clássico entra em crise, dando lugar ao chamado Direito Internacional Contemporâneo.
Sob esse foco, novas funções são conferidas ao Direito Internacional, a saber, a promoção
dos direitos humanos e do desenvolvimento socioeconômico dos novos Estados.
Com o pós-segunda-guerra-mundial, constata-se uma Sociedade internacional
heterogênea e pouco integrada, surgindo a necessidade de ser dado um novo enfoque às
funções do Direito Internacional, o que ocorreu graças ao desenvolvimento das
organizações internacionais.
Substitui-se aos poucos a idéia de coexistência pela idéia de cooperação por uma
questão de necessidade. Surgem, então, as Organizações Internacionais e as normas para
regular esse tipo de organização bem como a própria comunicação entre os países,
instrumento fundamental para a cooperação e para o comércio.
Nessa nova conjuntura, a melhor doutrina enxerga o indivíduo como sujeito de
Direito Internacional. Na perspectiva dos Direitos Humanos, o individuo é, sem maiores
discussões, aceito como sujeito de Direito Internacional e, no tocante a esse tema, sua
subjetividade é exercida de forma mais explicita.
Sobre essa questão, Flávia Piovesam afirma que:
“Na medida em que guardam relação direta com os instrumentos
internacionais de direitos humanos - que lhes atribuem direitos
fundamentais imediatamente aplicáveis -, os indivíduos passam a
ser concebidos como sujeitos de direito internacional. (...)
Manuel Diez de Velasco cita como exemplos: a Revolução Soviética, a Revolução Colonial, a Revolução
Científica e Técnica, a Degradação Ecológica.
7 Mister ressaltar que a história não é construída por rupturas. Diversas questões históricas e estruturais
contribuíram para o desenvolvimento do Direito Internacional Contemporâneo, como as já anteriormente
citadas.
6
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
No entanto, ainda é necessário democratizar determinados
instrumentos e instituições internacionais, a fim de que possam
prover um espaço participativo mais eficaz, que permita maior
atuação de indivíduos e de entidades não governamentais mediante
legitimação ampliada nos procedimentos e instâncias
internacionais”. (PIOVESAM, Flavia. Direitos Humanos Globais,
Justiça Internacional e o Brasil, p.7 e 8)
A partir da noção de estrutura comunitária construída por Diez de Velasco (1997,
pg.67), defende-se a necessidade da proteção solidária de certos interesses coletivos
fundamentais. Vislumbra-se, nessa estrutura, uma Sociedade Internacional
interdependente e, ao mesmo tempo, vulnerável que reclama restrições objetivas à
vontade particular dos Estados para proteger os interesses coletivos fundamentais que
apontam para a Dignidade da Pessoa Humana e para o Meio Ambiente.
Pode-se concluir que a enumeração de obrigações erga omnes vai evidenciando a
crescente importância do individuo no ordenamento internacional, de modo que, ele
passa a ser também sujeito de direitos e não apenas o Estado, conforme o Direito
Internacional Clássico.
O reconhecimento progressivo do individuo como sujeito de Direito
Internacional insere-se inquestionavelmente na temática da reforma da ONU. A Teoria
Democrática, nesse ponto, traz o indivíduo para o cenário internacional como cidadão
dessa comunidade política na medida em que é afetado por normas de caráter
transnacional. Entende-se que o individuo é sujeito do Direito Internacional e,
independentemente da sua nacionalidade, tem direitos perante essa comunidade.
Propõe-se, aqui, a criação de uma Terceira Assembleia que permitiria a
representação com base no individuo e, consequentemente, haveria maior participação
das diferentes sociedades civis nos debates sobre a atuação da ONU, o que conferiria
maior legitimidade para essa atuação. De fato, a ONU é o espaço privilegiado para o
desenvolvimento das relações multilaterais e, por isso, o caminho da sua democratização
deve considerar a participação de outros atores não-estatais.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
73
O Comitê por uma ONU Democrática (Komitee für eine Demokratische UNO,
KDUN) criado em 2003, com sede em Berlim, tem empregado esforços para criar uma
Assembléia Parlamentar nas Nações Unidas (APNU).
O Comitê é não-partidário e visto como organização independente que apóia o
fortalecimento da democracia na governança global. Sua principal estratégia consiste em
agregar a APNU à Assembleia Geral da ONU como um corpo ou organização especial
secundário com funções consultivas. Isso significa que a assembleia teria poder para
delinear e aprovar resoluções de recomendação sem poder vinculativo e para submetê-las
oficialmente à Assembleia Geral para informação e futura consideração.
O Comitê para uma ONU Democrática reputa o estabelecimento de uma
Assembleia Parlamentar nas Nações Unidas um passo decisivo para a introdução de uma
nova forma de representação no cenário internacional, que prima pela inserção dos
cidadãos nesse sistema.
Uma Assembleia Parlamentar nas Nações Unidas não seria simplesmente uma
nova instituição. Como voz dos cidadãos, tomando um ponto de vista global no interesse
comum internacional, a Assembleia seria a manifestação e veículo de uma mudança de
consciência e de compreensão das políticas internacionais. (BUMMEL, 2010, pg. 16)
Resta, pois, evidenciado que a reforma da ONU remete, em linhas gerais, aos
mecanismos de deliberação que tragam maior legitimidade para as suas próprias
manifestações, uma vez que, a legitimidade da representação dos Estados, em suma,
legitima o próprio Direito Internacional; daí, como já dito, a necessidade de promover a
criação de organismos civis8 para expressar melhor a vontade da sociedade, pois afinal o
8 Dentre esses organismos, destaca-se, a Soka Gakkai Internacional (SGI), uma das maiores organizações não governamentais das
Nações Unidas, com mais de 12 milhões de associados em 190 países e territórios. A SGI é oficialmente registrada como organização
não-governamental (ONG) no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc), no Alto-Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (Acnur), no Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas (UNDPI), na Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e também é membra da Federação Mundial das Associações das Nações
Unidas (WFUNA).
No Brasil, merece destaque o instituto Humanitare que busca aproximar a sociedade civil das Nações Unidas. Nos termos
do seu institucional, o Humanitare propõe um projeto de mobilização da sociedade em torno dos valores, princípios e propósitos das Nações Unidas, e
promove as ações da ONU. A vinculação à ONU aproxima a sociedade às causas civilizatórias que afetam o conjunto da humanidade a partir do indivíduo e à
coletividade: “O Humanitare”. O Humanitare (humanitas + habitare) sintetiza a essência dessa legitimidade: indivíduos interconectados e com visão
compartilhada gerando consciência da interdependência para a sobrevivência das gerações vindouras. Humanitare é a união de solidariedade entre iguais.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Estado é uma comunidade política juridicamente organizada.
5. Conclusão
A reforma das instituições, como sustentado nessa análise, tem que ser guiada por
um processo democrático inclusivo para viabilizar a participação das grandes potências,
dos Estados em desenvolvimento, dos atores não-governamentais e dos acadêmicos.
A reforma, além disso, precisa considerar questões como a justiça social. Não há
como negar o surgimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional que prima pelo
equilíbrio entre os direitos e interesses econômicos dos Estados detentores do Capital e da
Tecnologia (Estados Desenvolvidos), de um lado, e, de outro, dos direitos e interesses dos
Estados receptores dessas tecnologias (Estados em desenvolvimento).
As Nações Unidas, por mais insuficientes que sejam, se fundam na idéia de
pacifismo ativo. O pacifismo ativo promove a cultura da cooperação, do diálogo, da
reciprocidade, do “contrato social”, obrigando o respeito às normas comuns e a
“horizontalidade”, por oposição à lógica hierárquica do poder. O pacifismo ativo também
exige pluralismo midiático para garantir a expressão de pontos de vista de oposição, bem
como um distanciamento histórico.
Afastando-se da lógica individual e utilitarista, cabe a ONU, vista como uma
organização democrática, a promoção dos direitos humanos e do desenvolvimento
socioeconômico dos novos Estados, o que conjuga a atuação mais incisiva do Conselho
Econômico e Social com a autonomia dos povos.
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Referências Bibliográficas
BUMMEL, Andreas. Developing International Democracy. For a Parliamentary Assembly at the
United Nations. 2ª edição, Berlim: Committee for a Democratic U.N, 2010.
DIEZ DE VELASCO, Manuel. Instituiciones de Derecho Internacional Publico, 11ª edição,
Madri: Editoria Tecnos, 1997.
HERZ, Mônica. A Internacionalização da Política: A Perspectiva Cosmopolita em face do Debate
sobre a Democratização da ONU. Contexto Internacional, vol. 21, nº 2, julho/dezembro 1999.
MORENO, Marta Fernández. Propostas de Democratização das Nações Unidas, Contexto
Internacional. Rio de Janeiro, vol. 23, nº 1, janeiro/junho 2001.
PIOVESAM, Flavia. Direitos Humanos Globais, Justiça Internacional e o Brasil, Rev. Fund. Esc.
Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, vol.15, ano 8, janeiro/junho 2000.
TOMASSINI, Luciano. As nações unidas em um mundo pós-nacional. Contexto Internacional.
Rio de Janeiro, vol. 17, nº 2, julho/dezembro 1995.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Sócrates e a ideia de lei no século V a.C.
Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho¹
Orientador: Bruno Amaro Lacerda
Resumo
Este artigo tem como objetivo resgatar o conceito grego de lei do século VIII a.C. ao V a.C.
com enfoque no pensamento socrático.
Palavras-chave: Platão. Sócrates. Lei. Justiça. Desconstrução
¹Graduando em Direito pela UFJF e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq.
[email protected]
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Abstract
This article aims to rescue the Greek concept of law of the eighth century BC to BC with a
focus on Socratic thought.
Keywords: Plato. Socrates. Law. Justice. Deconstruction
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1. Introdução
A busca pela atualização, uma necessidade permanente dos estudiosos e
aplicadores do direito, vem se tornando uma espécie de fetiche. A mais recente súmula
vinculante, o mais novo entendimento dominante da turma do tribunal, a última lei
publicada no Diário Oficial deixam certos juristas fascinados. Para estes, pode parecer no
mínimo inusitado uma análise sobre a lei na Grécia no século V a.C.. Tal empreitada seria
mais adequada para a História ou a Arqueologia, mas não para o Direito. No entanto, o
objetivo desta incursão na Antiguidade não é o passado, e sim o presente.
O estudo aqui realizado se aproxima do que o filósofo argelino Jacques Derrida
chamou de desconstrução (DERRIDA, 2010, p. 36-39). Trata-se de um duplo movimento
que em um primeiro momento cria uma responsabilidade sem limites diante da memória.
Busca-se “lembrar a história, a origem, o sentido, isto é, os limites dos conceitos de justiça, de lei e de
direito, dos valores, normas, prescrições que ali se impuseram e se sedimentaram, permanecendo, desde
então, mais ou menos legíveis ou pressupostos” (DERRIDA, 2010, p. 36). Deve-se ouvir estes
conceitos, tentar compreender de onde eles vêm, o que querem de nós, entender como se
relacionam com a natureza da realidade e qual papel ocupam na constituição do ser.
Assim, esta postura crítica diante do passado, que mantêm o questionamento sempre
vivo, acaba por romper com uma série de axiomas, pondo em suspenso toda uma rede de
conceitos.
No momento desta desconstrução não passa a vigorar um vazio. Nesta segunda
etapa, na qual os axiomas estão suspensos, é que ocorrem as transformações. Estas são
motivadas por uma insatisfação com o que temos diante dos olhos, um descontentamento
com que nos é dado, e convergem para uma reformulação destes conceitos, uma
reconstrução na qual eles são ampliados e almejam que a lei, o direito e justiça possam
realizar uma ordem ideal de valores. Dito de outra forma, o que aqui se busca não se esgota
no passado, é mais do que um conhecer a origem; ao voltar-se para o mundo antigo, no
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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presente caso, para a lei, quer-se romper com o presente, dada a sua debilidade, para que a
partir daí o ser humano possa ser em sua totalidade.
Neste artigo se fará uma análise da posição de Sócrates sobre a lei, especificamente a
adotada no diálogo Críton, de Platão. Para tanto, será preciso que se inicie por uma
apresentação do contexto conjuntural em que se insere a obra, só depois passando para o
estudo desta e para as contribuições que ela poderá dar para o debate jurídico presente.
2. De Thémis a Nómos
A primeira parte deste trabalho consiste em um estudo geral do pensamento grego
a respeito da lei. Infelizmente não será possível abordar de forma profunda as reflexões
feitas na Antiguidade, tampouco apresentar a obra de todos os autores deste período,
sendo assim, tratar-se-á apenas de um panorama das investigações feitas sobre este tema
dentre os séculos VIII a V a.C. na Grécia. Antes do início, faz-se necessário uma pequena
consideração.
Como lembrado oportunamente por Martin Heidegger em sua Introdução à filosofia
todo ente se situa em um determinado contexto conjuntural, dentro de um todo, e “tudo
sempre [está] respectivamente relacionado ao todo, mostrando uma referência a ele e devendo o seu si
'mesmo' a essa referencialidade. Todo indivíduo acolheu em si o todo”(HEIDEGGER, 2009, p.80).
Deste modo, só é possível apreender um ente em sua totalidade se o contexto conjuntural,
o todo no qual ele estiver inserido também for apreendido, pois “o objeto singular que
visualizamos é justamente esse objeto individual apenas no todo do contexto” (HEIDEGGER, 2009,
p.81).
A realidade grega daqueles séculos passados era essencialmente diversa da
realidade atual. Os conceitos que vigiam na época a respeito das leis, Estado e cidadão,
além da forma como estes se relacionavam, diferem, e muito dos de hoje. Assim, a última
coisa que pode ser feita ao se estudar a Antiguidade é enxergá-la com os óculos da
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Modernidade. Se tentarmos apreender o período clássico com o olhar do
presente, esta visão míope não apenas estará impossibilitada de conhecer o que ele de fato
era, mas resultará em uma percepção totalmente distorcida e equivocada. Só será
possível conhecer o que de fato era a lei para os gregos se compreendermos que eles
estavam inseridos em um contexto conjuntural que não é o mesmo do contemporâneo, e
que ele determinava o que estes conceitos eram.
2.1 A justiça arcaica em Homero e Hesíodo
No início do livro primeiro de A política de Aristóteles, o mais famoso discípulo de
Platão resume em um parágrafo a idéia que os gregos tinham a respeito do homem e da sua
relação com a sociedade:
“É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente
um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não
porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil e
superior ao homem. Tal indivíduo merece como disse Homero, a censura cruel de ser sem
família, sem leis, sem lar” (ARISTÓTELES, 2009, 1253a).
O ser humano é um ser que está destinado a viver em sociedade, sendo somente
possível uma existência fora dela para os deuses e os animais. Da mesma forma, é
inconcebível uma sociedade sem regras. Estas são essenciais para formação e manutenção
de toda e qualquer vida social. Assim, desde os primeiros documentos sobre a civilização
grega, os poemas homéricos, a justiça e as normas já estão presentes, e ocupam um papel
fundamental nestas obras.
A palavra que Homero utilizava para designar as regras que regulavam a vida em
sociedade era θέμις (thémis). A utilização deste vocábulo é muito significativa para
entender a forma específica como a sociedade se organizava neste período, e o modo como
se enxergavam as “leis” e a justiça. Primeiramente deve-se ressaltar que não é possível falar
em leis durante este período, ao menos não como as leis positivas que possuímos.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Thémistes, que significa algo próximo de “regulações”, se referia a costumes que eram
transmitidos oralmente e ligados a uma tradição religiosa. O caráter religioso é o ponto
mais importante destas normas, é dele que elas retiram toda a sua legitimidade.
As thémistes não eram produto dos homens, elas provinham dos deuses. Os reis as
recebiam, conjuntamente com seu cetro, símbolo da autoridade do monarca, de Zeus, rei
dos deuses e fonte divina de toda justiça na terra. Segundo Werner Jaeger “a conclusão que
desta concepção da divindade suprema se depreende, é que o aspecto jurídico era o predominante na idéia
que Homero tinha da autoridade real na terra, refletida em sua idéia dos deuses” (JAEGER, 1982, p. 7).
Pode-se dizer que o aspecto jurídico era o determinante não somente na questão real, mas
também para a organização da vida em sociedade. Ainda segundo Jaeger, era a justiça a
linha de demarcação entre a barbárie e a civilização, e a garantia de segurança e proteção
ao homem e aos seus bens. A concepção homérica de sociedade se fundava na justiça.
(JAEGER, 1982, p. 8). Desta forma, mesmo sendo uma ordem jurídica arcaica e
rudimentar, na qual o poder estava nas mãos dos reis, e as regras não passavam de
costumes transmitidos oralmente que eram extraídos da boca dos oráculos, o direito já
possuía um papel central na Grécia de Homero.
Também no século VIII a.C. outro poeta escreveu duas obras que muito
contribuíram para as reflexões sobre a lei e justiça. Os poemas de Hesíodo são de uma
época próxima aos de Homero (provavelmente foram escritos no início do século VIII
a.C.), e assim guardam com ele alguns pontos em comum, no entanto existem diferenças
entre os relatos, demonstrando o surgimento de uma mudança na percepção da ordem
jurídica e da sua relação com o homem.
Na sua Teogonia, Hesíodo conta por meio de um mito a formação dos deuses do
Olimpo, na qual ocorreram diversas sucessões, e que terminou com o estabelecimento do
reinado de Zeus. Este ao vencer seu pai Cronos em uma batalha, estabeleceu a ordem
atual do mundo, que é fundada no respeito e na justiça. Esta ordem divina que governa
todo o Cosmos alcançava também o homem. Com isso, Zeus impôs ao ser humano uma
norma (nómos) segundo a qual todos deveriam tratar-se com justiça (díke). Era esta norma
que dava ao ser humano uma posição superior na hierarquia das demais criaturas, e que
impedia que os homens, assim como os animais, se devorassem uns aos outros. Aqui já é
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
possível notar uma distinção entre o poeta do início do século VIII e o do final desta época.
Enquanto para Homero as regras estavam exclusivamente nas mãos dos reis, que as
recebiam de Zeus, Hesíodo se refere a elas como algo que é dado a todos os homens. Nesta
mudança o direito vai deixando de ser algo autoritário, submetido ao poder de um só, para
ir se transformando em uma ordem mais democrática, na qual se começa a existir uma
igualdade diante da lei.
Outra diferença entre Homero e Hesíodo é que se em ambos a justiça era o suporte
da vida em sociedade e o maior de todos os bens, sendo ainda obra direta de Zeus, na visão
deste último poeta o homem pode escolher se irá ou não cumprir as ordens divinas,
definindo qual comportamento irá adotar. Esse pode ser justo, que é a concretização do
governo unitário estabelecido por Zeus, e que resulta nos maiores bens para a cidade; ou o
injusto, que resulta em um mal para toda a sociedade, e torna necessária uma
compensação divina para o restabelecimento da ordem do mundo. Como bem sintetiza
Bruno Lacerda: “a justiça dos homens continua baseada nas thémistes de Zeus (...) Mas a diferença é
que Hesíodo sente que é capaz de escolher racionalmente se cumprirá ou não as ordenanças divinas”
(LACERDA, 2009, p.35). A ordem jurídica continua atrelada aos deuses, mas o homem já
tem uma autonomia com relação a ela.
2.2. O surgimento da lei
Se os poemas de Hesíodo sinalizam um movimento de mudança no olhar sobre a
lei e a justiça, as transformações sociais que se iniciaram no século VIII a.C. resultaram em
uma ordem jurídica radicalmente nova. No começo daquele século se organizaram as
primeiras cidades gregas, desaparecendo a ordem feudal fundada na autoridade dos reis.
Nestas novas cidades os regimes monárquicos, nos quais o poder político e a
administração da justiça e das leis estavam nas mãos do soberano, foram substituídos por
regimes aristocráticos, possibilitando a existência de uma vida política social.
Outra alteração ocorreu na esfera econômica. Esta época testemunhou um grande
crescimento das transações comercias, produto do expansionismo marítimo e da
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fundação de colônias, da proliferação dos portos e do estabelecimento do uso da moeda.
No entanto, como é comum até nos dias de hoje, este crescimento da economia não foi
revertido em benefício de toda a população; ao contrário, ele acentuou a desigualdade já
existente entre aristocratas e camponeses. A situação desses só piorou com o novo
cenário econômico, em que eles cada vez se endividavam mais e se tornavam servos em
função destas dívidas. Esta significativa piora na vida da população gerou o clamor por
uma mudança social, pela implantação de uma ordem que fosse realmente justa. “Diante
dessa situação, percebe-se que aqueles novos tempos não comportavam mais somente lamentos e
esperanças em uma justiça divina” (LACERDA, 2009, p.38). De fato, a ordem do cosmos
estabelecida por Zeus baseada na justiça não parecia mais ser tão justa.
Nesta época mais um fator foi determinante para que se surgissem transformações
nas normas gregas vigentes, a difusão da escrita. Datam do meio do século VIII a.C. os
primeiros testemunhos da utilização de um alfabeto grego derivado do fenício – existem
relatos anteriores de um silabário micênico que desapareceu. Jacqueline de Romilly
afirma que por meio da escrita “era fácil estabelecer, de uma vez por todas e a disposição de todos, as
regras que até então somente representavam tradições incertas submetidas, seja ao segredo, seja ao
arbítrio das interpretações. A lei política só podia tomar forma no dia que ela pudesse ser consignada por
escrito” (ROMILLY, 2004, p.14).
As leis escritas supriram uma necessidade advinda da formação das cidades e do
início da vida política nestas, já que a nova forma de organização social demandava
normas que fossem do conhecimento de todos, que tivessem uma validade na totalidade
do território da cidade, que não variassem conforme a ocasião, e que não estivessem
submetidas às vontades de um só, ou seja, leis objetivas. Além disso, da codificação
resultaram benefícios, como a igualdade diante da lei (isonomía), pois a partir do momento
em que as leis foram escritas elas não podiam mais variar de acordo com a pessoa a quem
elas seriam aplicadas, deixando de serem benéficas somente para alguns e passando a
serem iguais para todos.
Produto deste contexto conjuntural emergente foi, então, a era dos grandes
legisladores. Um dos primeiros e também um dos mais notáveis foi Sólon, que assumiu
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
a função de fazer leis para Atenas após tal tarefa ter sido desempenhada por Drácon. Nesta
época, início do século VI a.C., os atenienses viviam uma situação instável, de conflitos
sociais acirrados pela profunda desigualdade social, e necessitavam de uma reforma da
ordem vigente. As transformações implantadas por Sólon não resultaram na formação de
uma democracia, mas somente de uma isonomía (igualdade diante da lei). Suas leis não
almejavam uma revolução social, tão pouco favorecer uma classe determinada, mas sim
criar um equilíbrio na sociedade; elas tentavam restabelecer a paz entre os cidadãos
através de medidas para promover o bem comum e a justiça.
O que as leis de Sólon buscavam era a consonância com a ordem natural do mundo
estabelecida pelas divindades, queriam alcançar a eunomia, que significa algo como a boa
ordem, ou ordem natural, unitária e verdadeira do universo baseada na justiça. Assim, a
justiça humana em Sólon não se confunde com a mera obediência das leis, mas significa
observar leis que concretizem esta harmonia ordenada do universo.
Neste ponto do estudo faz-se necessário a apropriação da conclusão brilhante que
Werner Jaeger faz em seu livro Alabanza de la ley:
“Temos seguido o desenvolvimento do conceito grego de justiça desde Homero até Sólon, e
este breve olhar tem chamado nossa atenção sobre um traço que, segundo comprovaremos,
é essencial ao pensamento jurídico grego em todas suas fases: o nexo que une a justiça e o
direito com a natureza da realidade” (JAEGER, 1982, p. 21).
Sólon e os gregos não tinham aquilo que é um sintoma da modernidade, a visão
curta. O olhar dos gregos sempre alcançou a totalidade. Muito antes de existir uma
Filosofia do Direito, e talvez por isso, os gregos, ao refletirem sobre a lei e justiça, não se
detinham em pormenores da legislação; suas investigações almejavam sempre que estes
conceitos estivessem alinhados com a compreensão do ser, da realidade como um todo.
Seu saber não era o saber especializado de hoje, que esconde uma incapacidade para lidar
com a totalidade; era um conhecimento que ia em direção de uma formação efetiva, que
queria compreender e alcançar uma ordem ideal fundada na virtude.
No entanto, mesmo tendo os esforços convergidos para este objetivo, até a época,
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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eles não alcançaram sucesso. A Grécia, mesmo com os progressos atingidos, continuava
uma sociedade injusta. Quando Sólon morreu, Atenas estava sobre o domínio do governo
tirânico de Pisístrato. Um horizonte melhor somente desponta quando surge um novo
legislador, Clístenes, o grande responsável pela existência de um regime democrático em
Atenas. Sob suas ordens estabeleceu-se uma nova constituição, que deu fim ao regime de
castas familiares, detendo assim o poder advindo das grandes famílias, que segregava por
meio do sangue, e se criaram os démos, circunscrições territoriais dentro das quais todos,
ricos e pobres, passavam a ser tratados igualmente de forma efetiva.
Foi então, com a instituição da democracia e consequentemente das leis
democráticas, que surgiram os primeiros relatos da utilização da palavra νόμος (nómos)
para designar a lei positiva. Na época de legisladores como Drácon e Sólon o vocábulo
utilizado para designar a lei escrita era thésmos. Esta mudança é muito expressiva, pois
quando as leis deixam de ser obra de um indivíduo iluminado, seja pelas divindades, seja
pela sabedoria, que está acima da sociedade, e passam a ser fruto da vontade democrática,
o termo utilizado para se referir a estas leis também se modifica. Nas palavras de
Jacqueline de Rommily “a partir desse momento a lei, fundamento e emanação da democracia, se
torna lei política, se torna nómos” (ROMILLY, 2004, p.15).
Além de lei política, nómos possuía vários outros usos, dentre os quais estavam
costume, princípio moral e rito religioso. O fato de todas estas significações se darem por
uma mesma palavra não é um acaso; ele revela a existência de uma ligação, de um vínculo
determinante para se entender a lei neste período. Com o surgimento da ordem
democrática e com o processo de codificação das normas, os gregos viram que eles
mesmos, através da vontade própria e do acordo, poderiam criar suas leis, mas isso não fez
com que a lei se tornasse apenas um ajuste. Muito mais do que uma simples convenção, a lei
política da época juntava em um mesmo comando as regras criadas pelo consenso dos
cidadãos; os costumes imemoriais que regiam a conduta cotidiana das pessoas; e a boa
ordem, pautada pela justiça, que os deuses impuseram aos homens. De tal modo, a força da
lei grega não repousa unicamente na sua codificação, mas está no encontro de todas as
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
noções citadas.
Por fim, vale lembrar mais um fator que contribuiu para a formação deste juízo
acerca da lei tão entusiástico. Neste momento de consolidação da sua democracia a
Grécia foi invadida pelos persas, o que fez com que sua população se unisse contra o
regime bárbaro e tirânico em defesa da sua ordem civilizada e democrática. O nómos,
então, foi tido como símbolo da resistência grega, ele representava o ideal de soberania
popular em oposição à submissão do povo às vontades de um déspota. Assim, por meio de
elogios à lei, se buscou reafirmar o valor da pólis. Os relatos de Heródoto são o melhor
testemunho deste comportamento. O historiador relata uma conversa entre Dário e
Demarato na qual o primeiro desdenha do povo grego por serem livres e não se
submeterem ao governo de um só, ao que o segundo responde que eles não são totalmente
livres, pois tem um senhor, que é a lei, a quem temem ainda mais do que os vassalos do rei
Persa o temem.
A subordinação à lei é fruto, além dos elementos já citados, da visão que se tinha
dela como garantidora da igualdade e da liberdade. A lei positiva comanda o Estado de
forma soberana, não existindo ninguém acima dela, e assegura uma isonomia legal a
todos. Além disso, era devido às leis políticas que se vivia em uma democracia e não em
uma tirania, pois apenas onde as leis eram escritas os cidadãos tinham a possibilidade de
se dirigir, não estando subjugados pelos arbítrios de um tirano. O governo das leis era, por
assim dizer, o governo do povo, e somente onde existe o autogoverno, existe liberdade. É
possível concluir, então concordando com Jacqueline de Rommily: “a lei é, por sua vez, o
complemento da liberdade e sua garantia; e esta combinação caracteriza a Grécia” (ROMILLY, 2004,
p.19).
3. A defesa da lei
Após esse discurso caloroso sobre o nómos pode parecer despropositado o título
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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deste tópico. Com tantos elogios é de fato necessário realizar uma defesa da lei? A questão
é que o discurso eufórico sobre a lei positiva não foi unânime e tampouco perpétuo no
pensamento grego. Concomitantemente ao surgimento da lei democrática e da sua
exaltação, também foram ouvidas diversas críticas às regras que eram produto de um
acordo entre homens.
As primeiras censuras às leis escritas são devidas ao seu caráter débil. Variáveis
com o tempo, restritas a uma determinada localidade, impossibilitadas de abrangerem
todas as condutas e muitas vezes distantes da justiça, logo se percebeu que a lei política
estava cheia de deficiências, o que fez com que se buscasse mais acima uma forma de
complementa-lá e supera-lá; apelou-se, então, para as leis divinas. Estas representavam o
ideal de lei perfeita que os gregos buscavam: seguras, pautadas pela moralidade,
universais, eternas, poderosas e inquebráveis. O amparo nestas leis não escritas é fruto de
uma época em que a visão de mundo ainda está permeada pelas divindades. Na medida em
que o pensamento evoluiu o caráter religioso se fez cada vez menos presente dando lugar a
uma postura mais racional, que gerou novas críticas à lei e também novas soluções para
seus problemas.
Dentre os novos juízos produzidos, os mais severos foram os de Cálicles e
Trasímaco. Não interessa aqui se eles existiram ou não, ou se foram verdadeiramente
filósofos ou meros oradores raivosos, mas apenas as avaliações que produziram acerca da
lei. Segundo Trasímaco, as leis e justiça não são nada mais que os desígnios de um grupo
dominante:
“Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a
democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira.
Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes
convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram e cometeram uma injustiça”
(PLATÃO, A República, 338e).
Cálicles segue o mesmo raciocínio de Trasímaco, porém afirma que as leis são, na
verdade, produto dos indivíduos fracos, que por estarem em maior número podem impor
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sua vontade em um regime democrático: “No meu modo de pensar, as leis foram instituídas
pelos fracos e pelas maiorias. É para eles e no interesse próprio que são feitas as leis e distribuídos os
elogios, onde haja o que elogiar, ou censuras, sempre que houver algo para censurar” (PLATÃO,
Górgias, 483b).
O que Cálicles e Trasímaco vêem é que sendo a lei escrita um produto da vontade
humana, ela pode ser cooptada por um determinado grupo e passar a servir aos interesses
próprios destes, afastando-se do ideal de justiça que a ordem jurídica deveria perseguir.
Tentar colocar juntos o legal e o verdadeiramente justo é o que Sócrates se propõe a fazer
no diálogo Críton.
3.1. O diálogo
Críton é um pequeno diálogo platônico cujos personagens são Sócrates e seu amigo
Críton. A conversa entre os dois se passa na prisão, após o mestre de Platão ter sido
condenado à morte pelos crimes de corrupção dos jovens e de invenção de novos deuses.
Críton foi procurar o amigo com a intenção de aconselhá-lo a fugir para salvar sua vida. Ele
inicia a conversa lhe dizendo que o cumprimento da sentença, além de privá-lo da
convivência com Sócrates para sempre, também iria macular sua imagem perante a
sociedade, pois aqueles que não o conhecem acharão que tendo a oportunidade de salvá-lo
pagando o que fosse necessário, escolheu poupar seu dinheiro. Além disso, afirma que não
se importará em enfrentar os piores perigos para salvá-lo e que ao ficar na prisão e se
sujeitar à pena, Sócrates deixará seus filhos abandonados e estará cometendo uma ação
injusta, pois trabalhará para facilitar sua morte, como querem seus inimigos.
Após ouvir a exposição Sócrates diz que os empenhos de Críton serão louváveis se
estiverem de acordo com as normas da justiça, sendo tão merecedores de desonra quanto mais
distante dela estiver. Deste modo, manterá seu antigo hábito de não se sujeitar a outras razões
que não à única que lhe pareça mais justa, após analisar todas as que são apresentadas. Ele afirma
que mesmo estando o destino contra ele não abandonará os princípios básicos que sempre
professou, pois sempre lhe afiguraram os mesmos e foram estimados de igual maneira.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Assim, inicia a análise questionando se são todas as opiniões de todos dos homens devem
ser levadas em conta, ou somente algumas de alguns homens, concluindo juntamente com
seu amigo que não se deve ocupar daquilo que o povo e os ignorantes dirão, pois das suas
más opiniões só poderá sobrevir o mal; devendo-se apenas observar os bons julgamentos,
que são os dos homens sensatos. Portanto, não é preciso se preocupar com o que disser a
multidão, mas somente com o que dirá o único que sabe o que é justo e o injusto, e este único juiz é a
verdade.
O segundo argumento apresentado é o de que jamais devemos cometer injustiças.
Todas as injustiças são indignas e maléficas para aqueles que as cometem, diga o que
disser a multidão, decorra delas o bem ou o mal. Deste modo, não se deve praticar
injustiças em momento algum, mesmo que se seja vítima dela, e nem pagar o mal com o mal. Por
fim, Sócrates e Críton afirmam que o homem que prometeu uma coisa justa deve cumpri-la,
não faltando com a promessa.
A análise apresentada por Sócrates não deixa dúvidas. Sua conduta é claramente
pautada pela justiça e somente por ela. A fuga só ocorrerá se for justa; se não for, não há
muito o que raciocinar, deve-se ficar e morrer ao invés de cometer um ato injusto.
Porque então deste diálogo de Platão surgem tantas interpretações distintas, que
variam desde a apresentação de Sócrates como o primeiro dos positivistas, passando por
precursor do contrato social, até sua caracterização como um servo obediente da lei?
Parte desta confusão se deve à segunda parte da exposição feita por Sócrates. Nela,
usando-se de um recurso estranho a todas às outras obras platônicas, Sócrates abre mão
de falar por si, e dá lugar ao que foi chamado de prosopopéia das leis. Aqui as leis da pólis são
personificadas, e dão sequencia a conversa com Críton. No entanto, esta continuação não
segue o estilo socrático, no qual os argumentos são desenvolvidos de maneira dialética. O
discurso das leis foi feito através de uma oratória extremamente potente, digna de um
sofista, que parece ter deixado os leitores da obra embriagados.
As leis da República começam com o lógos de que a fuga as aniquilaria, pois sua
sobrevivência, e também a do Estado, depende da observância das sentenças legais. Se
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elas não tem poder, toda a ordem estatal será destruída advindo o mal a todos os cidadãos
da pólis, ou seja, justamente àqueles que não merecem. Outra afirmação é a de a obediência
às leis foi um ato voluntário. Sócrates as aceitou livremente por não ter nenhuma crítica a
elas, concordar com as mesmas, e principalmente achar que são justas e boas. Ele, mais do
que qualquer um, tendo a oportunidade de se retirar de Atenas caso suas leis não fossem
do seu agrado, raramente saiu da ilha, tendo lá seus filhos, testemunho de seu amor pela
ordem jurídica. Sua submissão foi um ato livre, decorrente da reflexão, que revelou o
caráter justo e bom da convenção, e que ocorreu não por meio de palavras, mas de fato e de
forma irrestrita.
Por fim, tem-se o argumento arrebatador. Foi através das leis da pólis que se
permitiu o nascimento, o sustento, a educação e o acesso aos bens a todos os cidadãos.
Desta feita, a pátria se afigura mais digna de respeito que todos os parentes juntos; sendo
preciso honrar a pátria, humilhar-se diante dela e obedecê-la mais que a um pai irado;
devendo convencê-la por persuasão de que suas leis são injustas ou obedecê-las e sofrer
sem refutar tudo aquilo que ela ordena.
A eloquência deste último argumento é muito forte. Fixando-se o olhar apenas
sobre ele, talvez, seja possível até chegar uma conclusão parecida com a de Kelsen, para
quem o Críton é a mais verdadeira apologia do direito positivo, sendo sua ideia central a de
que o cidadão não tem a capacidade de decidir se as leis existentes servem ao bem comum,
ou são justas, devendo, por isso, obedecê-las em qualquer circunstância. (KELSEN, 1998,
p. 516-518). Esta visão se ajusta muito bem a outra que vê no diálogo um viés totalitário, no
qual o absoluto é o Estado, sendo o indivíduo apenas uma parte desse todo. O cidadão
estaria submerso dentro da pólis, permanecendo esta acima de todos os valores. Juntandose ainda ao raciocínio partes de pensamentos produzidos pelos gregos, como “o Estado está
na ordem da natureza e antes do indivíduo; porque se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo,
assim também se dará com as partes em relação ao todo” (ARISTÓTELES, 2009, 1253a), este se
torna completo.
Como dito, é preciso para a correta compreensão do diálogo a visão dele com
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todo, conjugando-se os argumentos desenvolvidos por Sócrates com os das leis da
República, sempre levando em consideração o contexto conjuntural no qual ele está
inserido. A pólis de forma nenhuma, tanto no texto de Platão quanto no pensamento grego,
possui um valor absoluto, é um fim em si mesmo.
Do mesmo modo ocorre com as leis.
Assim como Sócrates afirma que não é ao viver que devemos dar o máximo valor, mas ao
viver bem, não se deve dar o máximo valor às leis, mas sim às leis boas.
Werner Jaeger lembra que a alta estima gozada pela pólis advinha da sua confusão
com a ordem legal pela qual o povo havia lutado durante séculos. O Estado representava
para os gregos a garantia de seus principais princípios: a igualdade de todos perante a lei,
isonomia; e a proteção da autonomia dos indivíduos frente aos grupos poderosos,
liberdade. A ordem citadina não era imposta mecanicamente pela autoridade estatal, não
sendo as leis um simples decreto, mas sim nómos, conjunto do que os cidadãos respeitavam
como um costume vivo acerca do que era justo ou injusto; norma consignada pelas mais
antigas codificações e modificada gradualmente por meio do comum acordo acerca das
mudanças que a reta razão parecia aconselhar. A pólis, enquanto ordem legal, era o molde
da virtude de todo verdadeiro cidadão, assim a virtude cívica era a educação no espírito
das leis (JAEGER, 1982, p. 34-36).
Pode-se então dizer que a preeminência do Estado grego se devia, além do fato
dele possibilitar a existência da vida humana, principalmente por ser nele que o homem
desenvolve sua virtude, tornando-se o mais excelente de todos os animais
(ARISTÓTELES, 2009, 1253a). O mesmo ocorre com as leis, que como visto estão
fundidas à noção de pólis. O cidadão as aceita, concorda com elas, o que lhes confere
autoridade, mas somente o faz porque estas normas estão de acordo com justiça e assim
podem promover a boa ordem que resulta no bem-estar social. As leis na Grécia não são
justas em si mesmas, a justiça não é uma característica intrínseca a elas, e não é apenas o
fato de ser democrática ou de os cidadãos concordarem com elas que a justiça passa ser um
atributo seu. Se existia a afirmação de que o justo era cumprir as leis, isto se deve ao fato
das leis gregas sempre buscarem estar de acordo com a justiça, procurarem refletir aquilo
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que a sociedade considerava ser o justo, e deste modo possibilitarem a promoção da
virtude humana.
No diálogo de Platão sob análise pode dizer que o justo e o legal se identificam, só
que não pelo fato de Sócrates ter sido alguém que não conseguiu ver na justiça algo
independente das leis citadinas, o que o torna um convencionalista (LACERDA, 2009,
p.78), mas pelo fato das leis positivas se adequarem a noção prévia do que o cidadão tinha
como sendo justo, e somente por isso aceitar tais leis. É claro que a vontade humana tem um
papel primordial na ordem jurídica grega, seja criando as leis por meio de acordos, ou
dando seu aceite àquelas já existentes após uma análise racional destas, pois é esta
vontade autônoma que impede a imposição, seja por quem for, de uma noção de justiça e
bem que o cidadão não concorde. Mas a convenção não pode retirar seu valor somente de si
mesma, ela deve se basear em algo anterior, maior e mais elevado.
Após tudo o que foi exposto é acertado concordar com Gregory Vlastos em seu
ensaio Socrates on political obedience and desobedience, quando ele afirma que a lógica da
posição de Sócrates no diálogo o deixa com “a obrigação de obedecer à autoridade do
Estado em todos os lugares, mas sem expurgar outras obrigações em consequência das quais
haverá tempos e lugares onde ele não deverá obedecer” (VLASTOS, 1995, p. 42). Pois,
como dito, se o homem pode fazer suas leis e estas o obrigam, na medida em que ele
concorda com elas, as leis escritas não podem ir de encontro às normas da justiça.
4. Conclusão
A proposta deste artigo era desconstruir o conceito vigente de lei em sua
debilidade, para que a partir do rompimento deste axioma fosse possível construir uma
realidade nova e melhor. Aqueles que tiveram a paciência de chegar até aqui devem ter
percebido que apenas se conseguiu tangenciar tal objetivo. Essa tarefa é muito complexa
para um pesquisador iniciante, sendo possível no momento apenas dar um primeiro passo
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na direção dessa meta.
Ao longo do texto se mostrou, ainda que de forma superficial, que o saber grego
não era especializado, ele abarcava a totalidade da realidade, e com isso as reflexões sobre
lei não se detinham somente a ela, mas eram feitas em conjunto com os conceitos que se
possuía sobre o homem, a sociedade, o Estado, a ordem jurídica, os costumes, a religião, os
princípios morais e a ordem do cosmos, ou seja, com o todo. Com isso, acredita-se que caso
o nosso conhecimento seja desenvolvido como faziam os gregos é possível sair de estudo
detalhado e hermético sobre e a lei, romper com a visão não critica da lei, e assim conseguir
alcançar uma nova compreensão da lei positiva, uma que mostre o que ela de fato é, qual
papel ela ocupa na constituição do ser, qual sua relação com a natureza da realidade, e
principalmente como ela pode auxiliar no alcance de uma ordem boa e harmoniosa.
Ao voltar-se o olhar para o passado um outro conceito de lei se revelou; um que não
atribui a justiça a lei em si mesma, e no qual sua autoridade não repouse sobre um
fundamento místico ou em argumentos circulares, que afirmam a legitimidade de uma
norma pelo cumprimento de certos procedimentos estabelecidos por outras regras. A
nova realidade possível é aquela na qual o cidadão tem uma participação efetiva na ordem
jurídica, que cada indivíduo tem um envolvimento direto com o corpo de normas do
Estado, seja auxiliando na criação das leis, reformulando as já existentes ou simplesmente
as livremente aceitando. A partir desta aproximação entre sociedade e leis, é possível que
essas passem a ser verdadeiramente justas; não apenas por serem fruto de um acordo, mas
por espelharem as noções de justiça compartilhadas pela comunidade. Este pode ser o
primeiro movimento em direção à παιδεία (paidéia).
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O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de
constitucionalidade¹
Lucas Oliveira Lopes da Motta²
Resumo
Este artigo visa promover uma reflexão crítica acerca da conformação dada à ação no
controle jurisdicional de constitucionalidade pátrio, indagando seus pressupostos
históricos e políticos, cotejando posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema e
demonstrando a relevância do papel da doutrina de precisar conceitos jurídicos.
Palavras-chave: Sistema; Validade; Controle de Constitucionalidade; Ação Declaratória.
¹ Agradeço a Bruna Moura da Silva Guércio pelas críticas sempre construtivas e pelo imenso apoio.
² Aluno do 5º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Abstract
This article intends to promote a critical reflection on the configuration given to the
lawsuit in the local judicial review, questioning its historical and political assumptions,
comparing theoretical and jurisprudential positions on the issue and demonstrating the
important role of the legal theory in specifying legal concepts.
Keywords: System; Validity; Judicial Review; Declaratory Judgment.
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1 Introdução
O mito do legislador cem por cento racional desde há muito não angaria novos
prosélitos. É cediço, hoje, que a produção normativa constitui-se num processo
dialeticamente complexo, condicionada por (e condicionante de) vários fatores, dentre
estes, a história de vida, as deficiências e a ideologia de cada legislador, bem como de cada
órgão legiferante. Esta descrença em um poder legislativo perfeito, todavia, não é
justificativa plausível para o comportamento passivo e positivista que muitos adotam em
relação ao ordenamento jurídico vigente – sob o argumento de que este “é o melhor que se
pode ter no momento”. De fato, inúmeros juristas limitam-se a descrever o que já está
posto nos diplomas normativos, buscando soluções meramente pragmáticas, reduzindo,
destarte, a doutrina jurídica – idealmente teórica – a uma doutrina puramente dogmática,
que não se atreve a perscrutar as razões escusas dos textos normativos.
A consciência de que a normatização perfeita é um parâmetro que nunca será
alcançado não põe fim à busca por essa perfeição, busca esta que deve ser incessante. O
homem, como animal político, animal racional que é, tem o dever-poder³ de produzir –
enquanto produtor de normas – e de exigir – enquanto destinatário das normas – um
ordenamento jurídico o mais coerente possível, livre não somente das antinomias
clássicas (relações de contradição e contrariedade),4 mas também de quaisquer
incongruências no trato com os fatos e com os próprios institutos jurídicos. Neste mister,
a doutrina pode (e deve) atuar como um importante instrumento, como se infere do
esclarecimento de Marcelo Neves em sua distinta obra “Teoria da inconstitucionalidade das
leis”, in verbis:
O problema do sistema global do Direito complica-se sobremaneira quando nele
se integra o subsistema científico-jurídico [...]. Inegavelmente a Ciência do
³ Utilizamos a expressão “dever-poder”, cunhada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, pp. 71-72) em
contraposição ao “poder-dever” de Santi Romano. Não obstante se refira originariamente aos atos
administrativos, entendemos que, por analogia, tal expressão pode ser aplicada no presente estudo, embora
o dever da sociedade de exigir uma prestação normativa racional não seja um dever funcional, mas um
compromisso ético.
4 Sobre antinomias, cf. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, Brasília, Universidade de Brasília,
1999, pp. 81-86.
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Direito, enquanto subsistema nomoempírico teorético, é sempre condicionada
pelo contexto fático-normativo-ideológico; e, reciprocamente, ela influi na
mutação semântica das conexões de sentido normativo-jurídicas, atingindo
assim os valores jurídicos e a prática jurídica. (NEVES, 1988, p. 15)
Afastando-se da fastidiosa discussão sobre ter ou não ter o direito uma ciência
stricto sensu própria,5 o que este estudo propugna é a exigência de cientificidade no
elaborar, no interpretar, no aplicar e, principalmente, no estudar o ordenamento jurídico,
para que o fenômeno dinâmico da construção normativa esteja embasado em um
substrato teórico que lhe proporcione, no maior grau possível, coerência sistêmica. Este
estudo busca, portanto, prestar uma pequena contribuição neste sentido, promovendo
uma análise crítica da configuração normativa e jurisprudencial dada à natureza da ação
no controle jurisdicional de constitucionalidade.
2. A perspectiva do direito positivo sobre a ação no controle de constitucionalidade
De acordo com o hodierno direito positivo nacional, não há que se falar em dúvidas
quanto à natureza da decisão ou acórdão judicial que “declara” a constitucionalidade ou a
inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo; como o próprio termo
“declaração” – utilizado correntemente – já denuncia, atribui-se natureza precipuamente
declaratória.
Com efeito, a Lei 9868/99, que disciplina a ação direta de inconstitucionalidade e a
ação declaratória de constitucionalidade, utiliza-se, reiteradamente, da expressão
“declaração de inconstitucionalidade”, como se vê em seus artigos seguintes (sublinhado
nosso): art. 23, parágrafo único: Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de
constitucionalidade ou de inconstitucionalidade [...]; art. 26: A decisão que declara a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei [...]; art. 27: Ao declarar a inconstitucionalidade
Sobre a questão do direito enquanto ciência, cf. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, São Paulo,
Saraiva, 2002, pp. 86-88; Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 175176.
5
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a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo [...]; e art. 28, parágrafo único: A
declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de
texto [...]. No mesmo sentido se apresenta a Lei 9882/99, que regula a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, dispondo, em seu artigo 11 (sublinhado
nosso): Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de
arguição de descumprimento de preceito fundamental [...].
No Judiciário, não é diferente. Uma breve busca na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal revela que nossa Corte Constitucional segue a linha do padrão
normativo supracitado, valendo-se da mesma expressão, como se observa nas seguintes
ementas, dentre inúmeras outras:
EMENTA6 : [...] CONSTITUCIONAL. CONTROLE DIFUSO DE
CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO TEMPORAL DA
DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. A
orientação do Supremo Tribunal Federal admite, em situações extremas, o
reconhecimento de efeitos meramente prospectivos à declaração
incidental de inconstitucionalidade. [...]. sublinhado nosso.
EMENTA 7 : DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. [...] 3. A
declaração de inconstitucionalidade das alíquotas progressivas do IPTU
atinge apenas o sistema da progressividade, o que não impede a cobrança
do tributo na totalidade. [...]. sublinhado nosso.
Igualmente se dá em relação à ação judicial propriamente dita, que propugna pela
constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Exemplo disto é o
nome que o constituinte deu à ação – criada pela Emenda Constitucional 3/93 – designada
à arguição direta de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal: “ação
declaratória de constitucionalidade”.8 Assim, as ações deste teor são classificadas, quiçá
6 Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 550.734/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe-203 de 21-10-2011, p. 24,
n. 258.
7 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 466.400/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe-196 de 13-10-2011, p. 20, n. 230.
8 V. art. 1º da Emenda Constitucional 3/93 c/c art. 102, I a, da Constituição Federal.
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unanimemente, como ações declaratórias.
Inobstante, tal pacificidade legal, doutrinária e jurisprudencial carece, a nosso ver,
de aprofundamento teórico, não sendo, portanto, suficiente para envolver o tema numa
indenidade de fato. Através do clareamento dos conceitos de ordenamento jurídico,
pertinência, validade e eficácia, bem como da natureza jurídica da lei inconstitucional e
da ação declaratória, procurar-se-á demonstrar que a questão apresenta arestas ainda não
devidamente aparadas.
3. O ordenamento jurídico enquanto sistema nomoempírico prescritivo
Um grande complicador no estudo das ciências normativas, bem como das ciências
sociais e humanas, diz respeito à plurivocidade de seus termos. Por isso, impende
esclarecer, preliminarmente, o significado que será dado ao termo “sistema” neste estudo.
De acordo com Norberto Bobbio, sistema significa uma totalidade de elementos num
relacionamento de coerência com o todo e também entre si (BOBBIO, 1999, p. 71). Daí se
deduz que um sistema é formado por: elementos, relação, coerência e unidade. Não
obstante, Marcelo Neves demonstra, em sua teoria semiótica da inconstitucionalidade
das leis, que a coerência é condição lógica necessária tão-somente para os sistemas
proposicionais com função teorética. O insigne jusfilósofo distingue, com precisão
terminológica, os diferentes tipos de sistemas (NEVES, 1988, pp. 1-8):
Sistema empírico (ou real) versus sistema proposicional: Sistema empírico é aquele
constituído de fenômenos físicos, psíquicos ou sociais em suas relações causais, cuja
unidade se dá pelo modo como seus elementos se apresentam ao sujeito cognoscente.
Sistema proposicional, por sua vez, constitui-se não de elementos reais, mas de
elementos culturais, isto é, de produção humana orientada a um fim. Neste, a unidade
do sistema é assegurada pela fundamentação comum.
Sistema proposicional lógico (ou sistema nomológico) versus sistema
proposicional empírico (ou sistema nomoempírico) 9 : Sistema nomológico é
9
Sobre o significado de nómos, cf. Henrique Cairus, Quando o nómos não é a lei. Disponível em
<http://www.gtantiga.net/textos/quando%20o%20n%F3mos.pdf > Acesso em 01-12-2011.
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formado por proposições analíticas de fundamento axiomático, sendo-lhe
irrelevante os dados empíricos. Já o sistema nomoempírico compõe-se de
proposições sintéticas, condicionadas fundamentalmente pela experiência.
Sistema nomoempírico descritivo versus sistema nomoempírico prescritivo:
O sistema nomoempírico descritivo constitui-se por proposições que
pretendem representar de maneira fiel como se relacionam ou como devem
se relacionar os dados reais. Tem função eminentemente teorética, sendo
exemplos de sistemas nomoempíricos descritivos as ciências causais e as
normativas. Aqui, conforme mencionado supra, aplica-se perfeitamente o
conceito de sistema de Bobbio, no qual a unidade é condicionada pela
existência de coerência entre seus elementos. Pode-se dizer que seus
elementos têm pretensão de verdade.10 Finalmente, tem-se os sistemas
nomoempíricos prescritivos (e, dentre estes, os de caráter jurídico). Estes
não estão, como os descritivos, no mundo da gnose, mas no mundo da práxis,
dado que não visam descrever a conduta humana, mas sim controlá-la e
dirigi-la. A unidade, aqui, é um conceito puramente formal, e, em vez da
pretensão de verdade, seus elementos têm pretensão de validade.11
Não se pode olvidar que o direito é um sistema pluridimensional, assimétrico e
dialético (NEVES, 1988, p. 8). Há, deste modo, uma pluralidade de subsistemas que
compõem o complexo fenômeno jurídico. O ordenamento jurídico, então, pode ser
A ofensa à pretensão de verdade implica na automática expulsão do elemento, pois os sistemas
nomoempíricos de função teorética não suportam antinomias.
11
Marcelo Neves anota que “em relação aos sistemas proposicionais prescritivos, a coerência é tão-só um
ideal racional, fundado na exigência de segurança” (Teoria da inconstitucionalidade das leis, cit., p. 3).
Inobstante, achamos por bem frisar que a busca por tal ideal se impõe como dever ético e jurídico ao
legislador, pois a incoerência, isto é, a incompatibilidade material de uma proposição normativa em relação
ao ordenamento, pode resultar na invalidade da norma. Contudo, a ofensa à pretensão de validade, apesar de
minar a força unitária do ordenamento, não resulta na imediata expulsão do elemento inválido, pois esta
depende dos critérios de admissão e expulsão do sistema.
10
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definido como um subsistema nomoempírico prescritivo, o que importa dizer que seus
elementos – as normas – têm pretensão de validade e estão insertas numa relação de
unidade formal entre si e com o todo. Cumpre, todavia, distinguir validade de pertinência,
para que passemos à análise da lei inconstitucional e da ação declaratória no controle de
constitucionalidade.
4 . Pertinência, validade e eficácia
Uma vez que nos sistemas nomoempíricos prescritivos a unidade não é
consequência lógica da coerência, faz-se necessário encontrar qual mecanismo a garante,
pois a sistematicidade do ordenamento jurídico só se configura em torno da unidade
normativa (NEVES, 1988, p. 23). Kelsen e Hart se ocuparam deste problema,
desenvolvendo, respectivamente, os conceitos de constituição em sentido material e regra de
reconhecimento.12 Não obstante o relevante legado de tais construções à teoria
constitucional, ambos os autores confundiram os conceitos de pertinência e validade, no
sentido de que só pertenceriam ao sistema (seriam válidas) as normas que fossem
produzidas conforme disposto na constituição material, ou que satisfizessem a todos os
requisitos da regra de reconhecimento (NEVES, 1988, p. 40). Kelsen chegou a afirmar, em
sua monografia Über Staatsunrecht 13 (1914), que a lei inconstitucional, isto é, inválida, não se
tratava de um injusto e nem de um ato estatal viciado, mas de um nada jurídico (MENDES,
1990, p. 19).
Marcelo Neves, tratando especificamente da questão, precisou a diferença entre
pertinência e validade. Partindo da ideia de complexo normativo originário – “a totalidade das
normas postas pelo poder constituinte (originário) ou por fatos costumeiros
constituintes” 14 –, esclarece que são pertencentes ao ordenamento jurídico todas as
12 O primeiro diz respeito às normas constitucionais que versam sobre processo legislativo e competência; o segundo, à
aprovação da norma pelo Parlamento inglês.
13 Nesse estudo, Kelsen assentara os pressupostos que embasariam sua teoria pura do direito.
14“O complexo normativo originário nem sempre corresponde à constituição em vigor, seja porque ela pode ter derivado
de constituição anterior, conforme processo de mutação nesta previsto, isto é, sem descontinuidade jurídica interna, ou
simplesmente porque tenham sido realizadas reformas parciais” (v. Marcelo Neves, Teoria da Inconstitucionalidade das leis,
cit., p. 28, nota n. 48).
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
normas que retroagem (regular ou irregularmente) ao núcleo normativo originário –
“conjunto de normas que instituem os órgãos e/ou fatos costumeiros básicos de produção
normativo-jurídica no interior do sistema” (NEVES, 1988, pp. 24-25). Destarte, conclui
que “uma norma pertence ao ordenamento jurídico quando emana de um ato formal de
órgão do sistema, isto é, de órgão previsto direta ou indiretamente no núcleo normativo
originário, e ainda não foi desconstituída por invalidade ou revogada” (NEVES, 1988, p.
43).
A validade, por sua vez, refere-se não à pertinência da norma ao sistema, mas à sua
regularidade, ou seja, às condições formais e materiais que a norma jurídica deve
preencher para se ver isenta de defeitos. Assim sendo, será válida aquela que regressar, de
modo perfeito, através dos processos de derivação-fundamentação formal e material ao
complexo normativo originário. Isto significa que invalidade implica na nulidade ou
anulabilidade da norma, e não na sua “inexistência jurídica” (NEVES, 1988, pp. 43-44).
A questão se põe, também, como um problema lógico: para se atribuir a qualidade
da nulidade ou da anulabilidade a algo, é preciso, antes, que algo exista. Nas palavras de
Pontes de Miranda: “Defeituosidade não é inexistência. Para ter defeito, ou defeitos, é
preciso existir”; “Nulo e anulável entram; o que não entra é o que não existe e, por isso
mesmo, se diz inexistente” 15(NEVES, 1988, pp. 41-42). No mesmo sentido é o magistério
de Miguel Reale sobre os atos jurídicos, o qual trazemos à colação:
O ato inexistente, na realidade, carece de algum elemento constitutivo,
permanecendo juridicamente embrionário, ainda em formação, devendo ser
declarada a sua não-significação jurídica, se alguém o invocar como base de uma
pretensão. Os atos nulos ou anuláveis, ao contrário, já reúnem todos os elementos
constitutivos, mas de maneira aparente ou inidônea a produzir efeitos válidos, em
15 Embora Pontes de Miranda tenha se referido originariamente aos atos jurídicos, a ideia é perfeitamente
aplicável às normas jurídicas. O termo “existência”, entretanto, não se mostra ideal, pois a norma jurídica
não tem existência em si mesma, mas somente enquanto elemento pertencente a um ordenamento jurídico,
detentor de um mínimo de eficácia (v. Marcelo Neves, Teoria da Inconstitucionalidade das leis, cit., p. 41, nota n.
7, e p. 42).
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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virtude de vícios inerentes a um ou mais de seus elementos constitutivos.
(REALE, 2002, pp. 206-208)
Por último, mas não menos importante, há a eficácia. Esta se divide em eficácia real
e eficácia jurídica. A eficácia real corresponde aos efeitos fáticos irradiados da norma
(válida ou inválida). Deste modo, ineficaz é, por exemplo, aquela norma ignorada
(consciente ou inconscientemente) pela sociedade, incapaz, por isto, de dirigir de modo
efetivo a conduta humana. A eficácia jurídica, por sua vez, diz respeito à aplicabilidade ou
executoriedade da norma. Os dois tipos de eficácia têm importância fundamental para o
funcionamento do ordenamento jurídico, sobretudo quando figuram como condição de
pertinência e validade (condição reconhecida por Kelsen e Hart), conforme resume
Marcelo Neves:
Mas, como a validade pressupõe a pertinência, a efetividade global do
ordenamento é condição de validade das normas, e um mínimo de eficácia de cada
norma é condição de sua validade específica. (NEVES, 1988, p.51)
5. Considerações sobre a natureza jurídica da lei inconstitucional
Diante de todo o exposto, não traz maiores dificuldades o reconhecimento da lei
inconstitucional como lei inválida, isto é: lei que pertence ao ordenamento, mas que
apresenta defeitos em seus pressupostos formais e/ou materiais; em suma, lei que não
regressa de modo perfeito ao complexo normativo originário. Seus defeitos podem variar
em quantidade e qualidade, o que importa afirmar que algumas restarão anuladas,
enquanto outras, nulas.
Entretanto, uma vez que a norma tenha sido produzida por ato formal de órgão
legiferante previsto direta ou indiretamente no núcleo normativo originário, por mais
numerosos e graves sejam seus vícios, estes nunca terão o condão de lhe negar existência
jurídica, ou melhor, pertinência ao ordenamento jurídico. A norma somente será expulsa
do sistema se for revogada ou desconstituída de acordo com procedimentos
preestabelecidos no ordenamento.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Inegavelmente, porém, a inserção da qualidade da inconstitucionalidade no
âmbito exclusivo da validade, e não no da pertinência, não se coaduna perfeitamente com
a disposição conferida à ação no atual sistema nacional de controle jurisdicional de
constitucionalidade. A razão fulcral deste descompasso está, a nosso ver, na influência do
direito alienígena e na consequente tradição político-jurídica que foi se firmando em solo
brasileiro, que pode ser apercebida através de uma perfunctória análise da origem do
controle de constitucionalidade pátrio.
5.1 Origem do controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil
Sob a vigência da Constituição Imperial16(1824), o Brasil não conheceu do controle
jurisdicional de constitucionalidade. A influência francesa ensejou um controle
exclusivamente político, cabendo, pois, aos Poderes Legislativo e Executivo (este através
do Poder Moderador) velar na guarda da Constituição (MENDES, 2010, pp. 1193-1194).
Com a instauração da República, este panorama mudou. É inquestionável a
influência do direito estadunidense sobre personalidades da época, juristas e entusiastas
do modelo republicano – máxime Rui Barbosa –, influência esta que resultou na
consagração (e posterior consolidação) do modelo difuso do controle jurisdicional na
Constituição de 1891 17(MENDES, 2010, pp. 1194-1196). Cientes da influência norteamericana, teceremos, desde já, algumas considerações acerca do tratamento conferido à
lei inconstitucional pela doutrina estadunidense.
Não obstante a Supreme Court se limitasse a um controle incidenter tantum, isto é, à
desaplicação da lei questionada ao caso sub judice – pois era a regra do stare decisis (ou regra
do precedente) que objetivava as decisões judiciais –, o dogma da nulidade da lei
inconstitucional imperava como princípio básico do modelo de controle norte-americano
(MENDES, 1990, pp. 10-12). E lei nula era tida como lei inexistente (ou, como preferimos,
16
17
V. arts. 15, VIII e IX, e 98 da Constituição de 1824.
V. arts. 59, §1º, a e b, e 60, a, da Constituição de 1891, e art. 13, §10, da Lei 221 de 20-11-1894.
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lei impertinente),18 como se depreende da lição de John Marshall, transcrita por Rui
Barbosa:
Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns;
ou se nivela com os atos de legislação usual e, como estes, é reformável ao sabor da
legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo,
contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as
constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de
natureza ilimitável. (MENDES, 1990, p. 11) negrito nosso.
Westel W. Willoughby foi ainda mais enfático:
There are not and cannot be degrees of legal validity. Any given rule of conduct or definition of a
right either is or is not law. [...] Thus when any particular so-called law is declared
unconstitutional by a competent court of last resort, the measure in question is not vetoed or
annulled, but simply declared never to have been law at all, never to have been, in fact, anything
more than a futile attempt at legislation on the part of the legislature enacting it. (MENDES,
1990, pp. 12-13)
Os juristas brasileiros, na época, sem adentrarem no mérito dos fundamentos da
teoria da nulidade, limitaram-se a reproduzir a prática e o magistério norte-americanos,
numa autêntica adaptação dogmática, como se depreende da afirmação de Carlos Alberto
Lúcio Bittencourt:
Os nossos tratadistas [...] repetem a doutrina dos escritores americanos e as
afirmações dos tribunais sem buscar-lhes o motivo, a causa, ou o fundamento.
(MENDES, 1990, p. 13)
Dessarte, a nulidade – confundida com impertinência – foi alçada à posição de
consequência lógica necessária da inconstitucionalidade.
A Constituição de 1934 19, apesar de sua curtíssima duração, buscou romper com a
tradição da velha democracia liberal, instituindo uma democracia social, cujo maior
18
19
V. nota n. 15 supra.
V. arts. 91, IV, 96, e 179 da Constituição de 1934.
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paradigma era a Constituição de Weimar (BASTOS, 1997, p. 113). O Brasil, portanto,
deixava de direcionar seus olhos exclusivamente para a América do Norte, para observar
mais de perto a experiência política europeia. Foi então que a doutrina de Kelsen passou a
influenciar sobremaneira legisladores e juristas brasileiros.20Sem dúvida, se é autorizado
dizer que nosso controle difuso de constitucionalidade é de origem marshalliana, pode-se
afirmar, no mesmo diapasão, que nosso controle concentrado tem origem kelseniana.
Nesse sentido, ao modelo de controle difuso já consolidado, acrescentou-se, além
da regra do full bench (ou cláusula de reserva de plenário), a competência do Senado
Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato,
deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder
Judiciário”. Assim, num autêntico passo em direção à objetivação do controle de normas,
buscava-se emprestar eficácia erga omnes às decisões do Excelso Pretório.
Contudo, a maior inovação prevista na Carta de 34 foi a representação
interventiva 21 – um primitivo controle de constitucionalidade concentrado, cuja
representação estava confiada ao Procurador-Geral da República e condicionada à
violação de princípios constitucionais sensíveis por alguma lei estadual. Pode-se dizer
que era um protótipo do controle abstrato hodierno. Nas palavras de Celso Ribeiro
Bastos, “não ocorreu, ainda, aqui, introdução da verdadeira, cabal, juridicamente perfeita
e acabada ação de inconstitucionalidade”22 (BASTOS, 1997, p. 397).
Dada a grande influência do mestre de Viena, não é demais relembrar sua posição
quanto à lei inconstitucional. De maneira semelhante à doutrina estadunidense neste
aspecto, Kelsen afirmava que a lei inconstitucional, antes de um injusto, era um nada
jurídico.23 É bem verdade, porém, que, após a Constituição austríaca prever a
20 O então Deputado Nilo Alvarenga chegou a propor, na Constituinte de 34, a criação de um Tribunal
Constitucional no molde kelseniano, com competência para julgar pedido de arguição de
inconstitucionalidade formulado por qualquer sujeito de direito (v. Curso de direito constitucional, Gilmar
Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco, São Paulo, Saraiva, 2010, pp.
1197, nota n. 15).
21 V. arts. 12 §2º, e 41, §3º, da Constituição de 1934.
22 Nesta mesma linha, Gilmar Ferreira Mendes, ao tratar da evolução do controle de constitucionalidade, só
se utiliza do termo “controle abstrato de normas” ao se referir à representação de inconstitucionalidade
inaugurada pela Emenda Constitucional 16/65 (cf. Curso de direito constitucional, cit., p. 1202).
23 V. tópico 4 supra.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
109
possibilidade da anulação da lei inconstitucional (e não somente a nulidade), Kelsen
reformulou sua teoria neste ponto, distinguindo lei inconstitucional de contradição
lógica, e dizendo que leis inconstitucionais são passíveis de serem simplesmente
anuladas. Contudo, Ipsen revela que tal formulação kelseniana não tem natureza teórica,
mas puramente dogmática, por tratar-se “de um projeto de solução para um problema
concreto e, por seguinte, de uma assertiva dogmática” (MENDES, 1990, pp. 19-21).
A plenitude do sistema de controle de normas no Brasil se deu, então, com a
Constituição de 1946 24– mais especificamente, com a Emenda Constitucional 16/65 –,
através da representação de inconstitucionalidade. Desde então, a estrutura do controle
não teve suas bases alteradas; pelo contrário, este foi ampliado significativamente –
mormente o controle concentrado – pela Constituição de 1988,25 que, além de prever
expressamente a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de
constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e o controle
abstrato da omissão legislativa, ampliou significativamente o rol de legitimados para a
propositura da ação direta (MENDES, 1990, pp. 1212-1214).
Percebe-se, portanto, que, tanto na origem do controle difuso, quanto na do
controle concentrado, a ciência jurídica brasileira absorveu o dogma da nulidade (hoje já
superado),26 bem como a confusão entre pertinência e validade.
6 .A ação declaratória e o controle de constitucionalidade
Como já visto, leis, juízes e doutrinadores proclamam, tradicionalmente, o caráter
declaratório da ação que objetiva a pronúncia judicial sobre a constitucionalidade de
determinada norma.27 No entanto, o que define uma ação declaratória?
Antes de se buscar uma resposta para esta pergunta, há de se esclarecer que
V. art. 101 da Constituição de 1946 c/c art. 2º da Emenda Constitucional 16/65.
V. arts. 102, I, a, §1º, e 103, I a IX, §2º, da Constituição Federal de 1988.
26 V. art. 27 da Lei 9868/99 e art. 11 da Lei 9882/99.
27 V. tópico 2 supra.
24
25
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
nenhuma ação é pura; isto é, nenhuma ação é exclusivamente declaratória, constitutiva ou
condenatória, por exemplo. Por outro lado, embora estes caracteres ordinariamente se
imiscuam, a ação não deixa de ter uma índole essencial que se sobreleva sobre as outras.
Assim leciona Pontes de Miranda:
Não há nenhuma sentença que seja pura. Nenhuma é somente declarativa.
Nenhuma é somente constitutiva. Nenhuma é somente condenatória. Nenhuma
é somente mandamental. Nenhuma é somente executiva. A ação somente é
declaratória porque a sua eficácia maior é a de declarar. A ação declaratória é a
ação predominantemente declaratória. Mais se quer que se declare do que se
mande, do que se constitua, do que se condene, do que se execute. (LOPES, 2009,
p. 48)
Posto isto, pode-se dizer que a ação declaratória – também chamada de ação
meramente declaratória – é uma das espécies do gênero “ação de conhecimento”, e “visa
apenas à declaração da existência ou inexistência da relação jurídica; excepcionalmente, a
lei pode prever a declaração de meros fatos” (CINTRA, 2011, p. 329). De fato, seu objeto é
delimitado pelo Código de Processo Civil, que prevê:
Art. 4.º O interesse do autor pode limitar-se à declaração:
I – da existência ou da inexistência de relação jurídica;
II – da autenticidade ou falsidade de documento.
Portanto, conceitua-se, em poucas palavras, a ação declaratória como aquela ação
em que se busca precipuamente a declaração da existência ou da inexistência de relação
jurídica, e, excepcionalmente, da autenticidade ou falsidade de documento. Deste modo,
seu âmbito de atuação se circunscreve a uma relação jurídica, sendo incabível a declaração
de mero fato (senão excepcionalmente) ou de pura questão de direito, por mais intrincada
que seja. Exemplo lapidar de cabimento desta ação é aquele em que se pede a declaração
de existência de casamento, cujo registro se perdeu (LOPES, 2009, p. 76-78). Seu escopo
principal é atingir, através da autoridade da coisa julgada da decisão judicial, o valor
segurança (LOPES, 2009, pp. 31-32).
A ação denominada constitutiva, por sua vez, é aquela que traz consigo a
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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peculiaridade da modificação de uma situação jurídica anterior, podendo constituí-la,
modificá-la ou extingui-la (CINTRA, 2011, p. 331). Diferentemente da declaratória, que
se encontra no plano da existência, a ação constitutiva se encontra no plano da validade,
perquirindo se é válida ou não uma situação ou ato jurídico – ou, no nosso caso específico,
ato normativo – que já possui existência anterior. João Batista Lopes procede a uma
distinção entre estes dois tipos de ação, que reputamos crucial para este estudo:
Esclareça-se que a sentença será declaratória (e não constitutiva) porque sua
eficácia preponderante não é a criação ou constituição de ato jurídico já
existente, mas sim o reconhecimento judicial de sua existência.
Quanto à validade ou invalidade de contrato de compra e venda – incluam-se,
também, os demais contratos –, a declaratória se mostra incabível, por isso que a
sentença colimada terá caráter preponderantemente constitutivo.
Com efeito, só impropriamente se poderá falar em declaração de validade ou
invalidade de contrato, já que inquestionável será a alteração no mundo
jurídico provocada pelo pronunciamento judicial da invalidade.
[...]
Assim sendo, a decretação da nulidade implicará desconstituição do negócio
jurídico com efeito ex tunc.
É o bastante para inadmitir-se a tutela declaratória, porque, na lapidar expressão
de Pontes de Miranda, “quem desconstitui, não declara, desfaz”. (LOPES, 2009,
pp. 79-80) negrito nosso.
Mutatis mutandis, a formulação acima é perfeitamente aplicável aos atos
normativos; isto é, a invalidade (leia-se: inconstitucionalidade) de uma lei,
inegavelmente, altera o mundo jurídico, pois tal lei acaba por ter sua eficácia suspensa –
objetivamente (em controle concentrado) ou no caso concreto (em controle difuso).
Ora, de acordo com os conceitos desenvolvidos ao longo deste artigo, tem-se que a
lei denominada inconstitucional é, antes de tudo, pertencente ao ordenamento jurídico,
uma vez emanada de ato de vontade de órgão previsto direta ou indiretamente no núcleo
normativo originário, e ainda não desconstituída por invalidade ou revogada. É
112
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
justamente esta compreensão que obstaculiza o reconhecimento da ação de controle de
constitucionalidade como declaratória.
Em primeiro lugar, a ação de índole declaratória não se mostra adequada para
atuar no plano da validade, mas sim no da existência. E, como já demonstrado, no controle
de constitucionalidade não se discute a existência (pertinência) da lei, mas sim sua
adequação formal e material ao complexo normativo originário. Além disso, o controle
abstrato de normas é uma questão exclusivamente de direito, o que também não se
coaduna com a limitação a “relação jurídica” imposta no artigo 4º do Código de Processo
Civil. Por fim e principalmente, a pronúncia judicial sobre a constitucionalidade de uma
lei – aqui nos referimos apenas ao controle concentrado e em abstrato – não tem o condão
de declarar, concomitantemente à declaração da inconstitucionalidade da lei, que esta,
por ser inconstitucional, não pertence ou nunca pertenceu ao ordenamento jurídico. Na
verdade, a pronúncia da Corte Constitucional limita-se à verificação da validade ou da
invalidade da lei. A expulsão da norma do ordenamento jurídico é uma consequência
indireta da pronúncia da invalidade, de modo que: primeiramente, o Tribunal decide
sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei; ao decidir pela
inconstitucionalidade, o efeito imediato desta decisão é a perda da eficácia28 da lei tida
como inconstitucional 29 ; só então, como efeito mediato, verifica-se a expulsão da lei
inconstitucional do ordenamento jurídico. Essa expulsão ocorre porque a eficácia é
condição de “existência” da norma jurídica 30. Aqui, sim, pode-se falar que a norma que não
possui um mínimo de eficácia é um nada jurídico. Marcelo Neves não pôde ser mais claro:
“[...] a perda definitiva da eficácia em sentido jurídico implica a desconstituição da norma,
ou melhor, a sua expulsão do sistema jurídico” (NEVES, 1988, p.52).
Pode-se contra-argumentar dizendo que este raciocínio só tem fundamento
quando da declaração de inconstitucionalidade, uma vez que, confirmada a
28 Utilizamos aqui o termo “eficácia” sob a perspectiva semântica da eficácia jurídica, isto é, da exigibilidade
da norma jurídica.
29 V. art. 102, §2º, da Constituição Federal.
30 Condição esta abonada por Kelsen e Hart (v. tópico 4 supra).
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
113
constitucionalidade, não ocorre nenhuma modificação lato sensu no mundo jurídico. Esta
é, ao que parece, a posição de João Batista Lopes:
Ação direta de inconstitucionalidade – [...]
Em rigor técnico, não se cuida de ação declaratória, mas sim constitutiva,
porquanto tem por finalidade pronunciamento judicial sobre a nulidade da lei
contrária à Constituição.
A decretação da inconstitucionalidade implicará na exclusão ou eliminação da
norma ou ato conflitantes com a Constituição.
[...]
Ação declaratória de constitucionalidade – [...]
Trata-se de ação declaratória porque a eficácia declaratória é preponderante.
Em caso de improcedência, porém, a decisão se reveste de caráter constitutivo: a
lei será declarada inconstitucional e, assim, banida do sistema. (LOPES, 2009, pp.
129-131) negrito nosso.
Discordamos, neste ponto, do referido autor. Não nos afigura plausível
condicionar a característica principal do processo à positividade ou negatividade da
pronúncia judicial. Ou seja, não é porque o Tribunal confirmou a constitucionalidade que
se estará diante de uma ação declaratória, bem como não é a declaração de
inconstitucionalidade propriamente dita que configurará a ação constitutiva. A natureza
jurídica da ação é vinculada à natureza do provimento que constitui o pedido, e não à
decisão judicial. E, nestes casos, o pedido é sempre o mesmo: a análise judicial sobre a
constitucionalidade de lei ou ato normativo. Este provimento, independentemente de sua
decisão de mérito, está no plano exclusivo da validade, e não no da existência/pertinência.
E mais: pode-se afirmar, com segurança, que ambas as ações (ação direta de
inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) são, em suma, uma
ação só, dada a natureza dúplice e objetiva do processo. Ao afirmar que se a decisão for
pela constitucionalidade, estar-se-á diante de uma ação declaratória, então teria que se
admitir o mesmo em relação à declaração de validade de um contrato: declarando-se o
contrato válido, estar-se-ia diante de uma sentença declaratória. Todavia, neste
114
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particular, João Batista Lopes, como visto em transcrição acima, limita-se a ressaltar o
caráter constitutivo desta sentença, sem lhe atribuir naturezas distintas de acordo com
seu dispositivo – no que concordamos com o autor.
7 Conclusão
Infirma-se, portanto, o caráter predominantemente declaratório da ação no
controle de constitucionalidade, atribuindo, tanto à ação quanto à pronúncia judicial, por
ser uma característica inerente ao pedido formulado, caráter eminentemente
constitutivo. Primeiro, porque o controle abstrato de normas trata de questões de direito,
e não de relações jurídicas; segundo, porque o controle limita-se ao plano da validade; e,
terceiro, porque não se “declara” que a norma não pertence ao sistema; na verdade,
atribui-se à norma a qualidade da inconstitucionalidade. E não é esta
inconstitucionalidade propriamente dita que expulsa a norma do sistema. O que a
expulsa é o efeito da decisão judicial, a saber: a perda da eficácia jurídica da lei considerada
inconstitucional.
Esta especificação da ação no controle de constitucionalidade, da distinção entre
ação declaratória e ação constitutiva, bem como dos vários conceitos distinguidos (como
o de pertinência, de validade e de eficácia), se não tem, à primeira vista, importância
prática, mostra-se fundamental para conferir maior rigor teórico no trato com o direito, o
que acaba refletindo, invariavelmente, no mundo do ser, conferindo maior segurança à
sociedade. Assim é, porque a falta de cientificidade político-jurídica tende ao
estabelecimento natural de um cipoal burocrático e normativo que acaba por lesar o
princípio da segurança jurídica. Sobre o valor deste princípio, transcrevemos brilhante
passagem de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Esta “segurança jurídica” coincide com uma das mais profundas aspirações do
Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o
cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável
necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou
relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o
futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente – e não
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aleatoriamente, ao mero sabor do acaso –, comportamentos cujos frutos são
esperáveis a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que
condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas. (MELLO, 2011, p.
124)
Por fim, deve-se ressaltar que refoge aos limites deste artigo a pretensão de
veicular uma verdade inexorável. O objetivo é muito mais modesto, e estará alcançado se
este estudo lograr êxito em provocar uma reflexão crítica acerca dos conceitos jurídicos
aqui trabalhados, bem como do modo com que vêm sendo tratados pelos aplicadores do
direito.
116
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Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade
contemporânea
Mariana Salimena Pires ¹
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar as implicações da recente decisão do Supremo
Tribunal Federal que estende aos casais homoafetivos a condição de entidade familiar,
reconhecendo, destarte, a união estável homossexual. A adoção homoafetiva é o problema
específico abordado, sendo examinado à luz da Lei, especialmente o Estatuto da Criança e
do Adolescente, a Lei da adoção e a Constituição Federal; e das questões fáticas e
filosóficas relacionadas, principalmente no que tange o desenvolvimento da criança e a
atual jurisprudência sobre o tema.
Palavras chave: adoção, união estável, direitos homossexuais, adoção homoafetiva.
¹Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
119
Abstract
This paper aims to analyze the implications of the recent ruling of the Supreme Court that
extends to homosexual couples the condition legal status of family entity, recognizing,
therefore, the stable union to homosexuals. The problem of homoaffective adoption is the
specific issue of an investigation guided by a critic of approach law and the recent
jurisprudence of this subject, without disregard to the empirical and philosophical
question related, specially the children's development and best interests.
Key words: adoption, homosexual rights, homoaffective adoption, same- sex union
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
"O Amor, que não ousa dizer seu nome"
Bateu-lhe à porta, ao acaso, um dia.
E ele, inebriado pela cotovia
(que paira à janela, mas depois some...),
Sentiu crescer, súbito, na alma, u'a fome
De algo que, até então, desconhecia.
Desejo... estranheza... culpa... agonia...!
Desce aos umbrais, na angústia que o consome!
... porém, depois das lágrimas enxutas,
Chamou a cotovia, deu-lhe frutas,
E sorveram, um no outro, a própria essência.
E ambos, nessa atração de semelhantes,
Num cingir de músculos, os amantes
Ergueram-se aos portais da transcendência.
-Oscar Wilde, 1876.
1.Introdução
Com essa epígrafe o advogado Luis Roberto Barroso inicia sua defesa acerca dos
direitos dos homossexuais em sessão histórica do STF: “Em 1521 era estabelecido que os
homossexuais deviam ser condenados à morte na fogueira, seus bens confiscados e suas famílias
consideradas infames por duas gerações.”. Tal prática parece tão surreal quanto as execuções
em praças públicas; a idéia de que, até o século XIX, mulheres só podiam sair de casa
acompanhadas e apenas para ir à Igreja, ou a proibição estrita do casamento interracial,
que só se legalizou no século XX.
A vida em sociedade manifesta uma consciência popular que, como na dialética
hegeliana (HEGEL, 1807), está em constante movimento de afirmação, negação e
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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superação. Daí pode-se aferir que esse ethos² está em constante mudança, refletindo a
aceitação da sociedade relativa ao contexto em que se insere. Assim, há por trás das
práticas acima citadas, um juízo popular que delimita se são certas ou erradas, se quem as
pratica é socialmente aceito ou marginalizado. No entanto, como a própria teoria
hegeliana prega, a realidade do Espírito é movimento (op. Cit.). E, no movimento, se
inserem valores do tímido avanço e modificação dessas práticas, culminando em um
momento de êxito representado pela sua transformação dicotômica, de um âmbito a
outro que é seu completo oposto, em que se fundamenta até representar um direito
constitucionalmente previsto.
O caso dos direitos homossexuais se insere no raciocínio apresentado acima: no
momento da TESE, apresenta-se o fato inquestionável que é a evidente existência de
casais homossexuais (segundo dados do Censo de 2010, já são mais de 60 mil casais no
Brasil) acompanhada do lapso constitucional, já que não existe legislação que aborde
especificamente esse objeto; No momento da negação (ANTÍTESE), podemos observar o
tratamento moroso que é dado pela Justiça quanto ao assunto em questão, que há anos se
mostra inerente à sociedade moderna mas é ignorado como um assunto proibido e
preterido nas pautas jurídicas, além de um comportamento também estabelecido no seio
da sociedade como um todo, em que há o novo que rompe com a estabilidade (SÍNTESE)
anterior e o tradicional ; Um terceiro momento, a SÍNTESE, em que nós nos encontramos
e é representado pela progressiva aceitação e atenção ao assunto, firmando as diretrizes
que acompanham a inflexão do tema desde o momento da negação até o momento do seu
conhecimento, pontualmente evidenciada pela decisão em que, por unanimidade, o
Supremo Tribunal Federal vota a favor do reconhecimento da união estável homoafetiva
como entidade familiar.
A incompatibilidade que o STF elimina só pode ser compreendida à luz do
contexto em que nos inserimos, retomando a noção do ethos temporal e espacial abordada
² Ethos aqui considerado como costume, forma de vida, susceptível tanto ao lugar onde se examina quanto à
conjuntura temporal.
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
acima. O artigo 1723 do Código Civil traz, em sua redação que:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem
e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. (BRASIL,
Art. 1723/CC)
À primeira vista, nada há de inconstitucional no artigo em questão, mas através de
uma análise contextual, observando os paradigmas da sociedade moderna, o dilema se
mostra na definição arbitrária de entidade familiar como união do HOMEM e da
MULHER. O legislador de 2002 não observa a negação explícita do núcleo familiar
tradicional sendo manifestada socialmente com o crescente número de casais
homossexuais e culmina por refletir no código uma postura que, hoje, se torna
inadequada e até mesmo retrógrada, já que não é mais capaz de suportar uma realidade
evidente. Destarte, o legislador moderno trata de compatibilizar a questão com a
realidade histórica, como versa Savigny na Escola Histórica.
“O povo é um ser vivo marcado por forças interiores e silenciosas que
segrega uma espécie de consciência popular, o espírito do povo
(Volksgeist). O povo é anterior e superior ao Estado e é do espírito do
povo que brota tanto a língua como o direito”. (MALTEZ, 2009, p.
XX)
Essa decisão se trata de uma sentença aditiva, na qual se manipula uma norma
para que esta seja plenamente compatível e coerente com a Constituição. Combinam-se
na atividade do legislador tanto o dever de traduzir a realidade social quanto a
necessidade e permissão de buscar a transformação da própria realidade. O Supremo
Tribunal se atém à colisão normativa que se dá entre o dispositivo do Código Civil e o
princípio da igualdade celebrado no Art. 5º /CF: (“Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza”); e no preâmbulo da Carta Magna:
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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“Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica de controvérsias.”. (BRASIL, Constituição
Federal de 1988)
Na resolução da colisão, a solução praticada é a modificação de uma das normas
em conflito, como versa Norberto Bobbio(2003), que no caso, foi uma modificação
substancial, conteudística, não havendo modificação formal da letra da lei. Foi alterada a
ratio legis, apesar de ter sido mantida a mens legis. Assim, podemos aqui compreender a
decisão como estendendo os direitos que requerem união estável para a entidade familiar
homoafetiva, fato que só foi possível porque a decisão foi norteada pelos princípios
consignados na Constituição, principalmente no art. 5º, que proíbe a discriminação por
gênero.
A partir disso, intenciona-se expor as especificidades da adoção. A adoção é o ato
de tornar parte da dinâmica familiar uma pessoa proveniente de uma história de vida
distinta, podendo ser realizada por várias motivações, a impossibilidade de ter filhos ao
auxílio de uma criança em dificuldades. Esse instituto é abordado em um código próprio,
o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990, doravante,
ECA), na subseção IV, que estabelece que para adoção conjunta, é indispensável que os
adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a
estabilidade da família. Quanto ao adotando, são crianças e adolescentes de até 18 anos,
órfãos de pais falecidos ou desconhecidos, ou cujos pais tenham perdido o pátrio poder ou
que tenham concordado com a adoção de seu filho. É importante dizer que em relação aos
adotandos acima de 12 anos, necessário é seu consentimento com a adoção.
Ainda sobre a adoção, o ECA estabelece as diretrizes formais do processo:
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
“estágio de convivência acompanhado por equipe interprofissional a
serviço da Justiça, com apoio de técnicos responsáveis pela execução
da política de garantia do direito à convivência familiar, que
apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do
deferimento da medida”,
“inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de
preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da
Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos
técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia
do direito à convivência familiar”,
Além de que: “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e
fundar-se em motivos legítimos”.
No artigo 227, caput, CF/88 é estabelecida a função da família, tais quais:
“assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
Intenciona-se, destarte, mostrar que o processo da adoção é burocrático e
minucioso, o Estado exerce um papel positivo face ao adotando ao estipular tal
preparação psicológica, tanto do mesmo quanto da família que irá adotá-lo de modo a
assegurar um convívio familiar saudável e desenvolvimento normal ao titular desse
direito. Dessa forma, é possível refutar o temor infundado de que a criança poderia ser
destinada a uma família desestruturada que prejudicaria sua evolução, haja vista que a o
Poder Judiciário, através da Lei, age de maneira interventiva na pesquisa das condições
para a adoção, tanto para casais tradicionais quanto para as novas modalidades de família.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Ao prever as funções da família, o legislador cria uma categoria de requisitos mínimos
para todos aqueles que vêm à vida nessa sociedade, se propondo a garantir esse mínimo
como um direito fundamental. Assim, o Estado assume uma função positiva com essa
prestação de garantir uma vida familiar saudável e, baseando-se na lógica da equidade que
consiste base principiológica constitucional, estende esse direito também aos adotados.
Para concretizar essa pretensão, cria análises tanto procedimentais quanto
substanciais para o processo de adoção. Dessa maneira, age examinando o núcleo familiar
que se propõe à adoção, sua dinâmica, seus componentes, assim como a aptidão
psicológica desses, deliberando sobre a aptidão de receberem um novo ente familiar; atua
também estabelecendo uma série de requisitos formais de burocracia, para que haja
analogamente um grande controle e precisão no ato, não admitindo falhas e erros que
poderiam causar eventuais danos aos participantes do processo. O processo evidencia
tais requisitos formais: Inicialmente, deve-se procurar o Juizado da Infância e Juventude
para que se possa solicitar uma entrevista com os técnicos para se informar sobre o pedido
de inscrição (atendendo ao que se estabelece na lei, como idade mínima para se habilitar
como adotante); depois, os técnicos, psicólogos e assistentes sociais conduzem
entrevistas, buscam informações, analisam dados e visitam as residências dos pretensos
adotantes; o pedido então segue para o promotor e para o juiz, que irá deferir sobre a
habilitação dos adotantes, que em caso afirmativo os torna aptos a se inscreverem em um
cadastro nacional de possíveis adotantes (momento no qual os adotantes informam suas
preferências relativas à criança, tais como sexo e idade). Entretanto a adoção não se
formaliza imediatamente com a chegada da criança, pois há um estágio de convivência, ou
seja, um prazo em que se experimenta a inserção desse novo ente, em que se analisa se tem
sido benéfica e salutar para o mesmo, podendo a adoção então ser deferida e formalizada
ou não. É importante ressaltar que, uma vez formalizada, a adoção é irrevogável.
Após uma análise à luz da Lei e da decisão do Supremo Tribunal Federal, chega-se
à conclusão de que formalmente o direito de se aplicar para uma adoção conjunta é, de
fato, estendido aos casais homossexuais. Pelo fato de consistirem, agora, núcleo familiar
reconhecido pelo precedente, podem se inserir no processo de adoção pela lista nacional
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
ao lado dos casais tradicionais, ficando à mercê do mesmo exame e análise a que estes
serão submetidos.
No entanto, intenciona-se abordar alguns aspectos substanciais que são inerentes
a essa nova modalidade de adoção, como a questão de aceitação social e desenvolvimento
da criança. Tais facetas serão abordadas adiante.
2. O estado da arte: como o tema tem sido visto ultimamente
No dia 6 de maio de 2011 a manchete da Folha de São Paulo declama: “União estável
já vale para gays”; e o conteúdo da reportagem continua:
“Em um julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal decidiu
ontem que não há qualquer diferença entre as relações de
homossexuais e heterossexuais. Pelo menos 7 dos 11 ministros
consideraram que casais gays formam uma família e que possuem os
mesmos direitos e deveres[...] Apesar de não ter tratado de questões
específicas e polêmicas, como adoção, o voto majoritário permite isso
aos gays, exatamente por igualá-los, sem qualquer restrição, aos
heterossexuais”.(SELIGMAN, 2011)
Em uma análise, o professor Joaquim Falcão aborda a questão procedimental da
decisão levantada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pois,
estritamente, iria requerer uma emenda constitucional para mudar o texto da lei, prática
de reserva legal do Congresso e não do Judiciário. Porém
“o argumento dos católicos é jurídico, a estratégia é política e o
resultado, religioso. Se fosse necessária uma emenda à Constituição,
seria preciso o voto favorável de pelo menos 357 congressistas.
Evangélicos, católicos e outros grupos pressionaram os congressistas.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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Provavelmente não mudaria a Constituição [...] Há sempre um espaço
para mudar a aplicação da Constituição sem precisar emendar seu
texto”. (FALCÃO, 2011)
Ainda na mesma reportagem, contrário ao resultado da sessão, se pronuncia o
deputado federal Jair Bolsonaro: “O Judiciário era o último poder que faltava para ficar de
costas para a família, a religião e os bons costumes”(BOLSONARO, J. 2011. Folha de S.
Paulo), num derradeiro conflito com o que dispõe o Art. 5º /CF: (“ninguém será privado de
direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”) e com a
noção laica de Estado em que vivemos.
Sobre isso se manifesta também o Ministro do Supremo, Luiz Fux: “Por que o
homossexual não pode constituir uma família? Por força de duas questões que são
abominadas pela Constituição: a intolerância e o preconceito”. (FUX, L. 2011)
Em pesquisas do IBGE (Censo 2010) relacionadas ao tema, a tendência da opinião
pública se mostra evoluindo em direção a uma favorabilidade aos homossexuais:
“De maneira geral, a pesquisa identifica que as pessoas
menos incomodadas com o tema estão mais presentes entre as
mulheres, os mais jovens, os mais escolarizados e as classes mais
altas[...]Sobre a decisão do STF, 63% dos homens são contra,
enquanto apenas 48% das mulheres são da mesma opinião. Entre os
jovens de 16 a 24 anos, 60% são favoráveis. Já os maiores de 50 anos
são majoritariamente contrários (73%). Entre as pessoas com
formação até a quarta série do fundamental, 68% são contrários. Na
parcela da população com nível superior, apenas 40% não são
favoráveis à medida”(IBGE, 2010).
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
A pesquisa ilustra uma sociedade onde predomina o machismo e a homofobia³,
apesar das exaustivas especificações constitucionais contra essa ideologia e as tentativas
de conscientização da população. Mostra, também, que a resistência cai de uma geração
para outra, o que evidencia a coerência da tese de Hegel de que a realidade e o movimento
do espírito criam um novo momento de SÍNTESE, que se refletiria na consciência
popular.
Assim, vemos coligados dois aspectos antitéticos na opinião popular: por
um lado, uma crescente aceitação, principalmente dos estratos sociais apontados na
pesquisa, cujo futuro é otimista, já que penetra nas gerações mais jovens que contêm os
formadores de opinião do amanhã; por outro lado, certa resistência em alguns outros
grupos sociais, fruto principalmente do conhecimento vulgar, da cultura tradicionalista e
católica, de uma sociedade onde o preconceito é enraizado e cultuado. Esses dois pólos
convivem pela convivência entre várias gerações, que dividem não só opiniões como
valores, e a própria tensão entre ambos gera progressos em temas que são examinados
como “tabus”
3. O contra-argumento
O principal ponto que se contrapõe à idéia da adoção homoafetiva é criado pelas
condições sociais em que as formas contemporâneas de família se inserem, como
apresentado acima, uma sociedade rígida enraizada na tradição e com temor aos novos
rumos que segue, mas que no momento encontra espaços de evolução e crescente
maleabilidade, o que evidencia um panorama otimista para o futuro.
As questões da adoção e do casamento não foram abordadas diretamente pelo
Supremo na sessão que estendeu a união estável aos casais homossexuais, então ainda
permanecem nebulosas e dependentes de cada caso concreto e da interpretação do juiz. É
certo, no entanto, que os caminhos para a permissão dessas práticas foi facilitado pelo
³O termo homofobia está sendo usado neste artigo com o sentido de aversão irreprimível a homossexuais.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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voto dos ministros do Supremo. A questão do casamento se mostra delicada, pois envolve
uma crença religiosa, permeado de tradição e valores que, claramente, não são favoráveis a
essa nova configuração que lhes é proposta. Quanto à adoção, os principais temores de
alguns segmentos sociais abordam a inserção social e o desenvolvimento da criança
adotada, pois se acredita que é primordial a referência materna e paterna na formação da
personalidade, e uma criança criada na modalidade familiar homoparental careceria
desses referenciais e até mesmo traria conseqüências na sua preferência sexual futura.
Além disso, há manifesta preocupação quanto ao convívio social da criança adotada, que
seria alvo de repúdio e escárnio no meio em que freqüenta.
Essas ressalvas podem ser confrontadas com uma pesquisa sobre o processo de
formação da criança relacionada com as configurações familiares.
“Em tempos de fluidez e fragmentação das relações humanas, isso
significa que a família tem sido recriada não mais segundo padrões
hegemônicos do patriarcado, mas conforme demandas dos sujeitos e
das possibilidades oferecidas pela sociedadeatualmente mais aberta e igualitária [...] Vivemos contextos sociais
mais democráticos, que promovem expressões afetivas e sexuais mais
livres. Em alguns países a flexibilização tem sido muito visível, bem
como suas claras repercussões no que concerne à produção de novas
conjugalidades e modos de viver as parentalidades. Embora o Brasil
acompanhe essa tendência, nem sempre as novas formas de família são
assimiladas sem preconceitos, as escolhas parecem ainda
envergonhadas e, muitas vezes, procura-se escondê-las sob o manto
normativo do patriarcado”(PASSOS, 2008)
A jurista esclarece o progresso das novas configurações familiares, que se originam
na sociedade contemporânea e na sua tendência de liberdade de expressão e, por
extensão, de afeto, nas mais diversas modalidades em que este se apresenta. O
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
crescimento expressivo dos casais homossexuais (apontados aqui como FATO inegável e
inerente à nossa sociedade) pode ser observado em todo o mundo, mas passa por juízos
desiguais, dependente da cultura em que se examina. Sabemos que as diferenças culturais
entre nações são consideráveis, então é compreensível que sejam aceitos sem resistência
em umas e sejam condenados em outras. No caso do Brasil, presenciamos um progresso na
aceitação desse fato, que encontra as maiores resistências no preconceito tão
característico da nossa sociedade (uma antítese a uma nação tão mista), impedindo que se
quebre a hegemonia segura das configurações tradicionais para conceder um direito de
fato a um segmento ao qual só o que se destina a aversão e o medo.
Os órgãos judiciários, detentores do controle de constitucionalidade, exame de
colisões entre leis e ações práticas, são, na maioria das vezes, relacionados diretamente
com interpretações mais tradicionais, primazia da Lei, salvaguarda dos costumes
arraigados no seio social. O STF, órgão de última instância do Judiciário no Brasil,
surpreendeu a muitos ao tomar a primeira atitude para enfrentar essa cultura do
preconceito e do medo do diferente e conceder aos casais homossexuais tal direito.
A faceta mais importante do amadurecimento da criança é a segurança que lhe é
gerada pelas figuras paternais, conforme podemos perceber no excerto a seguir:
“É essencial compreender que a criança, para não correr o risco de
problemas psíquicos, tem necessidade, durante seu desenvolvimento,
de dois adultos que possam se constituir como pais, ou seja, possam
cumprir o trabalho psíquico da parentalidade.”. (DUBREUIL,
1998).
Como podemos ver, essa função é representada pelas figuras adultas que a
envolvem, não sendo estritamente relacionada aos gêneros. A noção comum de mãe e pai é
uma construção tradicional, mas a essência da parentalidade é a relação entre a criança e o
adulto, mitigada de aceitação, amor, afeto, etc. Isso evidencia que a crença de que o
desenvolvimento infantil seria prejudicado pela ausência das referências tradicionais se
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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baseia em uma instituição tradicional e no “medo” de outros modos de criação, apoiados
no preconceito já citado como característico de nossa sociedade.
Outra faceta do desenvolvimento infantil se mostra na noção e conhecimento da
origem da criança por ela mesma, haja vista que representa uma referência fundamental
para o autoconhecimento, aceitação e relação familiar salutar. Por essa razão, um
histórico transparente da vida do adotando leva ao desenvolvimento de uma criança bem
resolvida com suas origens e situação. Com a noção da própria origem, a criança passa por
um amadurecimento amparado pelo acolhimento parental, podendo assim estar
preparada para as transições e mudanças dentro do grupo familiar e, posteriormente, com
os ciclos sociais externos.
Análogo às novas composições familiares é a própria dinâmica familiar.
“Paradoxalmente, descarta o velho e mantém parte dele.”. (PASSOS, 2008). Novamente podemos
ver o movimento dialético, neste momento na estrutura familiar, que confronta a todo
tempo o velho e o novo, a tradição e as novas formações, culminando num momento de
SÍNTESE que traz elementos dos dois momentos precedentes (TESE-ANTÍTESE). O
núcleo familiar é dotado de uma inegável tradição, interferindo diretamente na psique
infantil do terceiro elemento na vida parental (a própria criança) como elementos de
referenciação e segurança. Entretanto, as novas estruturas familiares modernas
confrontam essa tradição, não de modo a destruí-la, mas sim a recriando com elementos
distintos, mantendo o seu núcleo essencial. Assim são concebidas as formas
contemporâneas de família, tais quais o monoparentalismo, o homoparentalismo e a
recomposição familiar (no caso de irmãos de outros casamentos inseridos na mesma
realidade).
Assim, percebemos que: “O que conta para o bebê é a qualidade do acolhimento afetivo e
simbólico por meio do qual os adultos lhe garantem um lugar seguro e de reconhecimento”. (PASSOS,
2008). E, na mesma linha de pensamento, temos:
“Os estudos especializados não apontam qualquer
inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
homossexuais4, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que
permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus
cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes
hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura
de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é
assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da
Constituição Federal)” ( EXMO. SR. MINISTRO LUIS
FELIPE SALOMAO, RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 RS 2006/0209137-4)
Quanto ao segundo temor abordado pela sociedade e citado acima, relativo ao
provável escárnio e exclusão social pelo qual passaria o adotando de pais homoafetivos,
não se sustenta como um argumento válido. Trata-se, invariavelmente, de um sofisma
moderno fundado nas bases de um indisfarçável preconceito. Podemos comprovar isso
exemplificando os direitos da mulher: inicialmente era inconcebível, por exemplo, uma
mulher trabalhar fora de casa, pois iria sofrer preconceito no ambiente de trabalho e em
todo seu ciclo social, vizinhos, amigos, familiares. Uma vez declarados seus direitos,
foram se inserindo com cada vez mais força no mercado de trabalho, até que se tornou um
fato inegável e progrediu até a total aceitação que se tem hoje em dia, estando equiparadas
com o sexo masculino integralmente (ao menos no que tange o aspecto formal). O
preconceito e deslocamento social de uma situação inédita para a época não constituiu
um impedimento para o progresso dos direitos da mulher, e da mesma forma deve ocorrer
com os direitos homossexuais. Os primeiros casos provavelmente sofrerão com o choque
social que estão a promover, mas isso abrirá portas para a plena efetivação desses direitos
e será dirimido pelo bom ambiente familiar, acolhedor, que será garantido pela exaustiva
revisão estatal no chamado “melhor interesse da criança”.
4 Estudos realizados na Universidade da Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia americana
de psicologia
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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4. Práxis
Como dito por Guilherme Strenger, "a conjunção homossexualidade e família não está
longe de se tornar um fato concreto a desafiar a criatividade da jurisprudência, no afrontamento desses
novos impactos que reclamam jurisdição". (STRENGER ,G. 2006)
Após a análise dos aspectos formais e substanciais que concernem à questão, nos
dedicamos a um exame da prática atual em torno do assunto. Para isso, utilizaremos as
mais recentes jurisprudências coletadas sobre o tema.
No Processo 0582499-9/02, apreciado pela 2ª Vara da Infância da Juventude e
Adoção, do Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba, consistiu uma apelação
para adoção emanada por casal homossexual, tendo em vista habilitação para a adoção de
crianças do sexo masculino maiores de 10 anos. No entanto, houve uma grande
divergência no julgamento, cingindo à questão da idade mínima do adotando, a qual se
desejou que fosse formalmente 12 anos, quando o adotando (à luz do ECA) tem o direito
de expressar seu consentimento pela adoção. Munindo-se da decisão do STF, e de que:
“seu estoque normativo não abre distinção entre adotante
'homo ou heteroafetivo'. E como possibilita a adoção por uma
só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e
o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso
aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de
proibição do preconceito e da regra do inciso II do artigo 5º da
Constituição Federal, combinadamente com o inciso IV do artigo
3º e o § 1º do artigo 5º da Carta Magna.Mas é óbvio que o
mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de
defesa e proteção do adotando, todo o conteúdo do artigo 227,
cabeça, da nossa Lei Fundamental”
Ainda nesse processo, apreciou-se o conteúdo consagrado pela jurista Maria
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
Berenice Dias:
"A dificuldade de deferir adoções em face da orientação sexual dos
pretendentes acaba impedindo que expressivo número de crianças seja
subtraído de situações de vulnerabilidade. Não se pode olvidar a realidade
social brasileira, com enorme contingente de crianças abandonadas, quando
poderiam ter uma vida cercada de afeto e atenção. A adoção é o meio mais
legítimo para assegurar respeito ao interesse superior da criança abrigada. É
um direito fundamental de todo indivíduo usufruir de uma vida familiar e
comunitária, contrapondo-se ao habitual sistema de institucionalizações, que
mantém crianças e adolescentes, abandonados moral e materialmente pelos
pais, em regime fechado, privando-os da colocação em família substituta.
(Dias, Maria Berenice. União homoafetiva : o preconceito & a justiça / Maria
Berenice Dias. 4. Ed. Ver. E atual. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais,
2009.)"
Assim sendo, a decisão favoreceu às apelantes, concedendo-lhes a habilitação para
a adoção.
No Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4) intencionou-se a adoção
de dois menores por casal homossexual, entre os quais já havia fortes vínculos afetivos e
comprovada estabilidade da família. Na fundamentação do julgamento, aparecem
novamente os conceitos de “melhor interesse da criança”, dever positivo do legislador
frente a uma realidade metamórfica, constatação de estabilidade familiar e análise do caso
concreto, no qual se constata:
“10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade
fenomênica. Vale dizer, no plano da "realidade", são ambas, a requerente e sua
companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo
que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
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11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada,
pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por ambas
como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não
houve qualquer prejuízo em suas criações.”
Como se mostra perceptível nos casos analisados acima, todas as questões
relativas a menores, como no critério de atribuição de guarda e na adoção, culminam no
princípio do melhor interesse da criança, critério norteador das decisões que concernem
menores, dentro do Direito de Família. Mas esse conceito abstrato:
“não conseguiria capturar o fenômeno da família na sua
vasta variedade e complexidade infindável [...] pode-se tentar delinear
o interesse do menor como sendo todos os critérios de avaliação e
resolução que possam conduzir à certeza de que estão sendo atendidos
todos os propósitos, que levam ao esperado desenvolvimento
educacional, ético e de saúde da criança, de acordo com os cânones
vigentes” (CHAVES, MARIANNA. 2009)
No caso do Recurso especial, exemplifica-se com maestria a noção empírica de
melhor interesse da criança, haja vista que havia um relacionamento já estabelecido com
fortes vínculos emocionais entre o casal e os adotandos, como dito, que já as chamavam de
“mães” e estavam de certa forma, acostumadas com o homoparentalismo. Além disso, o
casal até então se responsabilizava pela saúde, educação, lazer, bem-estar das crianças,
como requer o artigo 227/CF citado acima.
Processo:0648257-5
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 648257-5 DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO
METROPOLITANA DE CURITIBA 2ª VARA DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E
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ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
ADOÇÃO APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ
APELADO : J. S. B. J. RELATOR : DES. COSTA BARROS
Nesse processo, surge novamente a intenção de se estipular a idade mínima de 12
anos para o adotando no caso de casal homossexual, visto que, dessa forma, a criança
poderia expressar seu consentimento ou não. No entanto, foi apontada uma falha nesse
argumento: “Certo é que, quanto mais idade tem a criança, mais difícil é a sua adaptação num ambiente
familiar diverso do modelo tradicional, posto que ela já tenha conceitos e preconceitos formados, muitas
vezes estigmatizados pela sociedade.” (BARROS ,C. 2010). A imposição da idade mínima
apenas para adoção homossexual claramente fere o princípio da isonomia (aqui
entendido como “todos são iguais perante a lei”), já que impõe uma restrição fática, não
prevista na lei, que poderia ser interpretada como um empecilho artificial imposto para a
adoção homoafetiva.
Além disso, novamente é apresentado um argumento de autoridade que clarifica a
questão do desenvolvimento da criança:
“Acerca do tema, ANA CARLA HARMATIUK MATOS,
leciona: 'O que deve importar são as características pessoais dos pais
(ou dos candidatos à adoção), sua capacitação, sua habilidade nos
âmbitos emocional e patrimonial quanto às questões tão peculiares
exigidas pelo universo da paternidade e maternidade.'
E, mais adiante, observa: '(...) pesquisas realizadas pela
Associação Americana de Psicologia indicam que"não há um único
estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de
lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças
de pais heterossexuais. (...) o ambiente promovido por pais
homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por
pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento 'psicológico
das crianças'. A maioria das crianças em todos os estudos funcionou
bem intelectualmente e 'não demonstrou comportamentos ego
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
137
destrutivo prejudiciais à comunidade'. Os estudos também revelam
isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, autoestima, habilidade de liderança, ego-confiança, flexibilidade
interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças
que vivem com pais homossexuais, que não demonstravam diferenças
daqueles encontrados com seus pais heterossexuais" (MATOS, A.
C. H. 2006)
Dessa forma, durante o presente julgamento apreciou-se o pedido, constatando
“inadmissível” a imposição de idade mínima do adotando, já que não encontra previsão
legal: “Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo
afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não
prevê.” (BARROS, C. 2010)
E também, a primazia dos princípios constitucionais:
“Agora, impor aos apelantes crianças com estas características
porque capazes de manifestar os seus preconceitos e aceitar ou não as
intempéries de ter como pais um casal homossexual, é contrariar todo
o discurso sobre igualdade e isonomia, princípios primordiais de
garantia e direitos fundamentais.” (BARROS, C. 2010)
5. Conclusão
A questão abordada neste artigo toca numa área sensível do Direito, contrapondo
de maneira explícita a importância que presta à tradição e seu viés científico, que
demanda renovação, pesquisa e evolução em um processo cíclico.
Com a decisão do STF que reconhece a união estável homossexual, levando em
conta seu status de última ratio, podemos conduzir uma análise acurada nas leis relativas à
adoção e união estável. Concentrando primeiramente na letra fria da lei, temos uma
138
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº4 - Ano2
construção fundamentada de permissão da prática da adoção homoafetiva, haja vista que
os requisitos para a adoção conjunta são a existência de união estável e um conjunto de
condições sócio-psicológicas relacionadas à união familiar como ambiente de inserção de
um novo componente.
Em um segundo momento, a análise recai sobre as questões alheias à lei, tais como
o desenvolvimento da criança e a inserção social dessa. Através das pesquisas e dados
utilizados temos um panorama favorável para a nova composição familiar, pois
comprovado está que não há malefícios na criação dessas crianças adotadas por famílias
homoafetivas e também não há interferência fatal na sua escolha sexual e
desenvolvimento psicológico.
Em um terceiro momento, foca-se no exame fático da questão, como tem sido vista
pela sociedade e como tem sido praticada nos Tribunais. As pesquisas do Censo 2010 e do
Ibope apontam um tímido avanço no que tange a aceitação dos homossexuais como fato
inegável do mundo contemporâneo e um considerável número de núcleos familiares
homoafetivos.
Como apontado por Paulo Nader, “a atividade dos juízes é fecunda e, sob certo
ponto de vista, criadora” (NADER, P. 2010). Assim, a análise da jurisprudência aponta
para um futuro otimista no que diz respeito à adoção homoafetiva, com a prevalência dos
princípios enraizados na Constituição, tais quais os princípios da legalidade, da isonomia
e do melhor interesse da criança, principalmente.
É importante também apontar o Direito como ciência viva, fenômeno sóciocultural que consegue cada vez mais vincular os valores orgânicos da sociedade com sua
função essencial, retora da vida comunal, e ainda alcançar uma postura vanguardista e
adequada com a Modernidade, quebrando e caminhando lado a lado com os paradigmas
do mundo contemporâneo.
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Agradecimentos
Dedico este artigo aos professores doutores Denis Franco Silva e Nathalie Barbosa de
La Cadena, pela leitura crítica, e ao professor e mestre Roberto Perobelli de Oliveira,
pela orientação, contribuição e ajuda imprescindíveis para a realização deste projeto.
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Processos e Recursos:
RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 - RS 2006/0209137-4
PROCESSO 0582499-9/02 2ª Vara da Infância e Juventude e Adoção (Foro Central da
Região Metropolitana de Curitiba).
APELAÇÃO CÍVEL Nº 648257-5. Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de
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Sumário
Editorial_______________________________________________ 09
Artigos
Sistematização Coletiva do Conhecimento e Novas Tecnologias Aplicadas
ao Ensino: a Experiência da Matéria Instituições de Direito na UFJF
Ângelo Amorim Medeiros___________________________________________ 11
Nulidade da sentença arbitral: o juízo arbitral e o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional
Ariel de Abreu Cunha ____________________________________________ 35
A reforma da ONU e o papel do indivíduo no cenário internacional
Kalline Carvalho________________________________________________ 61
Sócrates e a ideia de lei no século V a.C.
Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ________________________________ 77
O caráter eminentemente constitutivo da ação no controle de
constitucionalidade
Lucas Oliveira Lopes da Motta ______________________________________ 97
Adoção homoafetiva e os paradigmas da sociedade contemporânea
Mariana Salimena Pires __________________________________________ 119