Volume 13, Ano 2006 - Faculdades Milton Campos

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Volume 13, Ano 2006 - Faculdades Milton Campos
REVISTA DA
FACULDADE DE DIREITO
MILTON CAMPOS
2006
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Lucia Massara
e
Carlos Alberto Rohrmann
Coordenadores
REVISTA DA
FACULDADE DE DIREITO
MILTON CAMPOS
Volume 13
Belo Horizonte – 2006
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Revista da Faculdade de Direito Milton Campos – v. 13 (2006). – Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
Anual.
Revista da Faculdade de Direito Milton Campos
Descrição baseada em: ano 1, n. 1, 1994.
ISSN 1415-0778.
1. Direito – Periódicos – Faculdade de Direito Milton Campos.
CDU – 34
CDU – 340
Toda correspondência deverá ser endereçada à:
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
Caixa Postal 3268 – Belo Horizonte – MG – 30140-970
Copyright © 2006 by: REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
Produção Editorial:
EDITORA MANDAMENTOS
Rua Espírito Santo, 1025 – Loja H – Centro
Belo Horizonte – MG – CEP 30160-031
Tel.: (31) 3226 -7717
E-mail: [email protected]
Nenhuma parte deste periódico poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a permissão, por escrito, da FDMC.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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Apresentação
A Revista da Faculdade de Direito Milton Campos chega agora ao
seu décimo terceiro ano. É a idade, nos seres humanos, de transição entre
a infância e a adolescência, em que nos preparamos para a idade adulta.
Aproveitando-se dessa coincidência e, por analogia, o Conselho Editorial
da Revista decidiu dedicar a maior parte deste número à publicação de
artigos dos alunos do Mestrado, seja isoladamente, seja em co-autoria.
Com isto, a Revista reconhece e atesta que eles estão prontos para o ingresso
na “vida adulta acadêmica”, seja no magistério, seja na pesquisa.
Simultaneamente, a Revista comemora e compartilha com a
comunidade acadêmica sua própria maturidade, pois, aos treze anos, já é
reconhecida, aceita e registrada em algumas das mais respeitadas bibliotecas
de referência, no Brasil e no exterior. Como exemplo, vale citar que a
Revista, desde seu primeiro número até o último, encontra-se aceita e
disponibilizada nas bibliotecas da Universidade da Califórnia em Los
Angeles, da Universidade da Califórnia em Berkeley, do Instituto Max Planck
em Hamburgo, da Faculdade de Direito Bucerius na Alemanha, da
Faculdade de Direito de Porto Rico, da própria Biblioteca do Congresso
Norte-Americano, sem falar, é claro, das bibliotecas das tradicionais escolas
de direito brasileiras.
Como atestado dessa maturidade, convém citar, ainda, a presença
em nossas páginas de alguns importantíssimos autores estrangeiros, de
diversas nacionalidades e de vários continentes.
Lucia Massara
Diretora da FDMC e da Revista
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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO
MILTON CAMPOS
FUNDADA EM JUNHO DE 1993
Caixa Postal 3268 – Cep 30140-970
Belo Horizonte
Minas Gerais
Brasil
DIREÇÃO DA REVISTA
Professora Lucia Massara
DIRETORA
Professor Adauto Junqueira Rebouças
SECRETÁRIO
COMISSÃO EDITORIAL
Adauto Junqueira Rebouças
Carlos Alberto Rohrmann
Humberto Theodoro Júnior
Jorge Miranda
Lucia Massara
Miriam de Abreu Machado Campos
Misabel de Abreu Machado Derzi
Osmar Brina Corrêa Lima
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza
Sálvio de Figueiredo Teixeira
Sidney F. Safe Silveira
Sônia Diniz Viana
Sylvia Mercado Kierkegaard
Wenio Balbino de Castro
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CENTRO EDUCACIONAL DE FORMAÇÃO SUPERIOR
Entidade Mantenedora
Prof. Sidney Safe F. Silveira
Presidente
Prof. José Barcelos de Souza
Vice – Presidente
Prof. Osmar Brina Corrêa Lima
Diretor Financeiro
Prof. Haroldo da Costa Andrade
Secretário geral
Faculdade de Direito Milton Campos
Prof. Lucia Massara
Diretora
Prof. Marcos Afonso de Souza
Vice – Diretor e Coordenador Didático - Pedagógico
Faculdade de Administração e Ciências Contábeis/
Pós - Graduação em Direito Empresarial
Prof. Wille Duarte Costa
Diretor
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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
FUNDADA EM JUNHO DE 1993
Caixa Postal 3268 – CEP 30140-970
Belo Horizonte
NORMAS EDITORIAIS
1. A Revista da Faculdade de Direito Milton Campos divulga trabalhos elaborados
pela Diretoria da Faculdade, seus professores e artigos de colaboração de
terceiros, limitados à área do Direito e ciências afins, que se relacionem com a
Ciência do Direito.
2. Serão publicadas, de preferência, colaborações inéditas.
3. Os originais recebidos não serão devolvidos.
4. O recebimento do artigo enviado à Revista não implica a obrigatoriedade de sua
publicação.
5. A Direção da Revista poderá reapresentar os originais ao autor para que os
adapte às normas editoriais ou esclareça dúvidas.
6. Os originais deverão ser digitados em computador, de preferência usando-se o
programa Word 2000 da Microsoft e impressos em papel de formato A4, ou não
sendo possível, datilografados em espaço simples, em papel branco, de um só
lado da folha, de preferência com margens superior 2,4 cm e inferior de 2 cm.
7. Resumo e abstract (em língua inglesa), com até 200 palavras.
7. Junto do trabalho, deve ser enviado de disquete contento a gravação do texto,
o qual deverá ser feito em editor Microsoft Word ou compatível. Também poderá
o texto ser enviado via e-mail para o seguinte endereço: [email protected]
, com os esclarecimentos necessários. No texto do e-mail deverá constar os
títulos do autor do artigo.
8. Para evitar esquecimentos, o artigo deverá conter, após o título, o nome completo
do autor, principais títulos e endereço para comunicação ou retorno de
correspondência.
9. Os desenhos, gráficos, ilustrações, tabelas etc. (estritamente necessários à clareza
do texto), com respectivas legendas, serão apresentados à parte, em papel branco
ou vegetal, sem dobras, indicando-se no texto o lugar onde deverão ser incluídos.
10. As referências bibliográficas deverão ser completas e numeradas seguidamente,
obedecendo às normas da ABNT, observando-se o seguinte:
- Publicações avulsas (livro, folheto, tese, etc.) sobrenome do autor seguido de
vírgula; prenome(s) seguido de ponto; título seguido de ponto; edição e local
seguido de dois pontos; nome do editor, seguido de vírgula; ano da publicação
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seguido de vírgula; se for o caso indicar o volume ou tomo e finalmente a página da
fonte. O nome da publicação deve estar em itálico.
- Artigo periódico – autor(es) seguido de ponto; título do artigo seguido de
ponto. Título do periódico em itálico, seguido de ponto. Indicação do volume,
mês e ano da publicação, página de referência ou, na bibliografia, indicar página
inicial e final.
11. Os originais que não puderem ser entregues pessoalmente deverão ser enviados
para a Caixa Postal 3.268 - Belo Horizonte - MG - CEP 30140-970, Belo
Horizonte(MG)-Brasil, aos cuidados da Professora Lucia Massara.
As provas tipográficas não serão enviadas para o autor mas, a não ser para
correção do texto, se for o caso. Publicado o artigo, o autor receberá , no mínimo,
dois exemplares da Revista.
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Escreveram neste número:
ADRIANO AUGUSTO PEREIRA DE CASTRO
Advogado; mestrando em Direito de Empresas na Faculdade
Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
ANALUCIA COUTINHO MALTA
Mestranda em Direito Empresarial na Faculdade de Direito
Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
ANDRÉ RENNÓ LIMA GUIMARÃES DE ANDRADE
Professor da Faculdade de Direito Milton Campos, Mestre em
Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos
...................................................
47
BERNARDO PRADO DA CAMARA
Advogado em Belo Horizonte (MG); mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos; mestre em
Direito Comercial e Empresarial Internacional; ex-estagiário da
UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade
Law), em Viena, Áustria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
CRISTIANO RENNÓ SOMMER
Advogado integrante do escritório de advocacia Décio Freire e
Associados; pós-graduado em Administração do Comércio Exterior pela Faculdade União de Negócios Administrativos –
UNA (1996); mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de
Direito Milton Campos; mestrando em Direito Internacional e
Comunitário no Europa Institut, Universidade de Saarbrücken,
Alemanha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
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DANIEL ALMEIDA RODRIGUES
Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito
Milton Campos; professor universitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
DANIEL SECCHES SILVA LEITE
Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-Minas; mestrando
em Direito Empresarial na Faculdade Milton Campos; professor no Centro Universitário UNA; assessor judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
EDEN MATTAR
Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos; coordenadora do Núcleo Jurídico e professora universitária na Universidade Fumec – FACE; membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família e de sua Comissão de Bioética;
advogada militante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
EDUARDO SILVA BITTI
Advogado; professor da Uniaracruz – Faculdade de Aracruz
(ES); especialista em Direito Civil pela Unesc – Centro Universitário do Espírito Santo; mestrando em Direito Empresarial
pela Faculdade de Direito Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
FABIO GUIMARÃES BENSOUSSAN
Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade Milton Campos
(2006); professor da Escola Superior Dom Helder Câmara; procurador da Fazenda Nacional de primeira categoria . . . . . . . . . . 135
FABÍOLA MOREIRA GONTIJO
Advogada; mestranda em Direito Empresarial na Faculdade de
Direito Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
FABRÍCIO DE SOUZA OLIVEIRA
Mestrando em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton
Campos; professor de Direito Empresarial; coordenador do Núcleo de Prática Jurídica das Faculdades Doctum – Campus
Leopoldina; professor de Direito Empresarial da Faculdade
Sudamérica; advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
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FERNANDA UCHÔA COSTA CAMBRAIA
Advogada; consultora; mestre em Direito Empresarial . . . . . . . . 175
HENRIQUE VILAÇA BELO
Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos; advogado . 189
JÚLIO DE CARVALHO PAULA LIMA
Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito
Milton Campos; advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
MARCELO CALONGE
Mestrando em Direito Empresarial; advogado; contador . . . . . . 209
MARCELO MORAES TAVARES
Advogado, pós-graduado em Direito de Empresa e Direito Processual pelo IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais; mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de
Direito Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
MARCO AURELIO FERENZINI
Professor Universitário, Advogado, Mestre em Direito Empresarial pela FDMC . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
RICARDO GUIMARÃES BOTELHO
Delegado de Polícia Civil; mestrando em Direito Empresarial
pela Faculdade de Direito Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
RICARDO DOS SANTOS VIANNA
Bacharel em Direito e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mestre em Direito
Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos; professor de Direito Comercial e Empresarial do Centro Universitário
UNA, do Ibmec e da Faculdade de Minas (FAMINAS-BH);
membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo; membro
do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Hípica de Minas Gerais; e-mail: [email protected] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
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RENATA SILVA SOUZA
Professora de Prática Forense na Faculdade de Direito Milton
Campos, Advogada e Mestra em Direito Empresarial pela FDMC . 269
SÉRGIO ADOLFO ELIAZAR DE CARVALHO
Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos; procurador do Estado de Minas Gerais; advogado
e professor de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
VINICIUS MOREIRA MITRE
Professor Universitário, Advogado, Mestrando em Direito Empresarial pela FDMC . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
LYSSANDRO NORTON SIQUEIRA
Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito
Milton Campos; procurador do Estado; advogado . . . . . . . . . . . . 313
NANCI DE MELO E SILVA
Juíza federal do trabalho aposentada; especialista, mestre e doutora em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais; professora de cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade Milton Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
LUIZ FERNANDO DA SILVEIRA GOMES
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais;
professor das Faculdades Milton Campos nos cursos de Direito
e mestrado; professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica; ex-assessor de gabinete do TRT da 3ª região; advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
Professor do curso de mestrado na Faculdade de Direito Milton
Campos; professor titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal de Minas Gerais (aposentado); juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (aposentado); advogado 357
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RICARDO ADRIANO MASSARA BRASILEIRO
Especialista, mestre e doutor em Direito pela UFMG; professor dos cursos de graduação e mestrado na Faculdade de Direito Milton Campos; procurador do Estado de Minas Gerais;
advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais;
diretor do Departamento de Teoria do Direito do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais (IAMG); professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (bacharelado, mestrado
e doutorado) e da Faculdade de Direito Milton Campos (mestrado e pós-graduação lato sensu) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
PATRÍCIA DUARTE COSTA MENTA
Professora universitária. Advogada e Administradora de Empresas. Mestranda em Direito Empresarial. Mestranda em Direito Internacional. Especialista em Gestão Cultural . . . . . . . . . . 387
JULIANA FERREIRA MORAIS
Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos; professora das Faculdades Milton Campos e da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – Contagem; advogada
do escritório Wille Duarte Costa Advocacia Empresarial . . . . . . 409
FELIPE FALCONE PERRUCI
Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito
Miltom Campos. Professor de Direito Comercial na Universidade de Itaúna e UNIFENAS/BH nos cursos de Direito e Administração de Empressas. Membros da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/MG. Advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 421
MARCÍLIA DUARTE COSTA DE AVELAR
Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos. Professora de Introdução ao Direito e Direito Empresarial
das Faculdades Milton Campos. Advogada . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437
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ARUN SASI
Advogado, Mestre em direito pela University of Glasgow . . . . . 449
JANET MWUESE ASAGH
Research Fellow. Nigerian Institute of Advanced Legal Studies
Supreme Court Complex, Abuja, Nigéria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463
GABRIELA NEVES DELGADO
Doutora em Filosofia do Direito pela UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Professora Adjunta de Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho da UFMG. Foi Professora
da FDMC. Advogada Trabalhista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 477
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SUMÁRIO
ADRIANO AUGUSTO PEREIRA DE CASTRO
O valor da informação e o processo de capitalização da companhia
aberta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
23
ANALUCIA COUTINHO MALTA
Poder do acionista controlador e a transformação na sociedade anônima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
37
ANDRÉ RENNÓ LIMA GUIMARÃES DE ANDRADE
A independência das garantias internacionais sob demanda . . . . . . .
47
BERNARDO PRADO DA CAMARA
O reconhecimento e a execução de cláusulas compromissórias e de
laudos arbitrais estrangeiros no brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
61
CRISTIANO RENNÓ SOMMER
A lesão no código civil brasileiro e o equilíbrio subjetivo das partes
75
DANIEL ALMEIDA RODRIGUES
Por uma empresa mais bem compreendida . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
87
DANIEL SECCHES SILVA LEITE
O novo código civil, o contrato social da sociedade limitada e o ato
jurídico perfeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
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EDEN MATTAR
Breves considerações sobre a dissolução parcial de sociedades limitadas no código civil de 2002 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
EDUARDO SILVA BITTI
Desistência e renúncia ao pedido de recuperação judicial . . . . . . . . 125
FABIO GUIMARÃES BENSOUSSAN
As golden shares – breves considerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
FABÍOLA MOREIRA GONTIJO
A concessão de patentes de produtos farmacêuticos no direito brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
FABRÍCIO DE SOUZA OLIVEIRA
Anotações sobre a função social da “empresa” . . . . . . . . . . . . . . . 161
FERNANDA UCHÔA COSTA CAMBRAIA
A defesa da concorrência no setor bancário . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
HENRIQUE VILAÇA BELO
Rompimento do vínculo societário na sociedade limitada . . . . . . . . 189
JÚLIO DE CARVALHO PAULA LIMA
Considerações atuais sobre a coisa julgada material . . . . . . . . . . . . 203
MARCELO CALONGE
Acordo de cotistas em sociedade limitada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
MARCELO MORAES TAVARES
Reflexões sobre peculiaridades e aspectos polêmicos das sociedades simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
MARCO AURELIO FERENZINI
Os embargos do terceiro-credor – uma nova via no processo falimentar? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
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RICARDO GUIMARÃES BOTELHO
Natureza jurídica do fundo de empresa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
RICARDO DOS SANTOS VIANNA
Desafios do direito desportivo frente à modernização das relações
jurídico-desportivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
RENATA SILVA SOUZA
Do contrato com pessoa e declarar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
SÉRGIO ADOLFO ELIAZAR DE CARVALHO
A crise da coisa julgada tributária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
VINICIUS MOREIRA MITRE
Comentários sobre as inovações introduzidas pela lei 10.406, de 10
de janeiro de 2002 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
LYSSANDRO NORTON SIQUEIRA
Conhecimento tradicional associado à biodiversidade e à propriedade intelectual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
NANCI DE MELO E SILVA
Responsabilidade e culpa – fundamentos e implicações jurídicas . . . 335
LUIZ FERNANDO DA SILVEIRA GOMES
Ações possessórias e petitórias no direito brasileiro – cabimento e
distinções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
Integração de ex-empregado como sócio em distinta sociedade do
mesmo grupo econômico, com manutenção de atribuições na antiga
sociedade de que era empregado: fraude ou ruptura do contrato de
trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
RICARDO ADRIANO MASSARA BRASILEIRO
Integração de ex-empregado como sócio em distinta sociedade do
mesmo grupo econômico, com manutenção de atribuições na antiga
sociedade de que era empregado: fraude ou ruptura do contrato de
trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
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FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
Direito e estado na perspectiva dos grandes contratualistas modernos 367
PATRÍCIA DUARTE COSTA MENTA
Direitos culturais: um braço dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . 387
JULIANA FERREIRA MORAIS
Hermenêutica do artigo 122 da lei de falências e recuperação de
empresas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
FELIPE FALCONE PERRUCI
Existe um estabelecimento empresarial virtual? . . . . . . . . . . . . . . . . 421
MARCÍLIA DUARTE COSTA DE AVELAR
O aval no código civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437
ARUN SASI
Delineating Contract and Treaty Claims in International Investment
Arbitration . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449
JANET MWUESE ASAGH
An Appraisal of the Dispute Resolution Mechanisms under the
Nigerian Telecommunication Act . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463
GABRIELA NEVES DELGADO
Trabalho digno: Valor-fonte do estado democrático de direito . . . . 477
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1
O VALOR DA INFORMAÇÃO E O PROCESSO
DE CAPITALIZAÇÃO DA COMPANHIAABERTA
ADRIANO AUGUSTO PEREIRA DE CASTRO
“Disclosure, again disclosure and still more disclosure.”
Richard B. Smith
Sumário
1. Introdução. 2. Capitalização e Financiamento em longo prazo. 3. Destruição do valor de mercado e governança corporativa. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.
Resumo
A informação é o principal parâmetro na formação do valor de mercado das companhias abertas. A assimetria de informações entre companhia e mercado estará sempre presente, mas poderá ser significativamente
reduzida por boas políticas de divulgação de informações. O SarbanesOxley Act de 2002 foi apenas uma das muitas respostas aos escândalos
corporativos que ocorreram nos Estados Unidos entre o final de 2001 e a
primeira metade de 2002. A crescente adoção de regras de governança
corporativa pelas companhias abertas foi outra. Entretanto, ainda não há
bastantes evidências empíricas para garantir que a informação apresentada
aos acionistas seja realmente merecedora da confiança nela depositada.
Abstract
Information is the main parameter when evaluating public companies’
market value. The information asymmetry between the company and the
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 23-35
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2006
ADRIANO AUGUSTO PEREIRA DE CASTRO
market will be always present, but it may be significantly reduced by good
disclosure policies. The Sarbanes-Oxley Act of 2002 was only one of many
responses presented to the corporative scandals occurrences in the United
States between the end of the 2001 and first half of 2002. The increasing
adoption of rules of corporative governance for the public company is another
one. But there are still not sufficient empirical evidences to guarantee that
the information presented to the shareholders is really up to the confidence
deposited on it.
1
INTRODUÇÃO
As companhias abertas, principal forma de organização dos empreendimentos de capital intensivo, são fruto de longo processo de desenvolvimento histórico que lhes atribuiu duas características jurídicas que se revelaram fundamentais: a limitação da responsabilidade dos acionistas e a
possibilidade de livre negociação da participação societária representada
em ações (COELHO, 2005, p. 59). Nessa evolução, verificou-se que a
máxima eficiência na captação de recursos junto ao mercado se atrelava
à manutenção de registros contábeis públicos, confiáveis e claros para a
eficaz transmissão das informações entendidas relevantes pelo mercado.
Boas expectativas sobre o empreendimento atreladas a informações
contábeis de qualidade geralmente resultam em maior valor de mercado
das companhias abertas, mais riqueza para seus acionistas e em facilidades para a obtenção de crédito e outros recursos para o desenvolvimento de suas atividades.
A existência de um mercado de capitais eficiente1 está diretamente
ligada à credibilidade que as companhias gozam entre os investidores e
essa credibilidade é maior ou menor em função da qualidade e do número
de informações disponíveis sobre tais companhias. Se é verdade que a
assimetria de informações entre companhia e mercado estará sempre presente, é também verdade que ela poderá ser reduzida significativamente
por meio do desenvolvimento de uma boa política de divulgação de infor-
1
Segundo Ross (2000, p. 265), mercado eficiente é aquele no qual os preços dos valores
mobiliários refletem as informações disponíveis em sua completude.
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mações. A garantia de acesso a informações necessárias para que o investidor tenha conhecimento de todos os riscos existentes ao fazer seu investimento funciona como um incentivo à aplicação e ao conseqüente desenvolvimento do mercado de capitais e do país.
A importância atribuída pelo mercado às informações contábeis
publicadas não pode ser subestimada, principalmente quando ele aceita
resultados econômicos pífios ou negativos da companhia enquanto aguarda a maturação do negócio ou dos investimentos; ou, por exemplo, quando
pune severamente empresas que não honraram suas obrigações de prestar
informações.
Nesse contexto, não causa espécie o nível de apreensão causado
pela súbita explosão de escândalos contábeis e pelo relato de irregularidades financeiras praticadas por administradores de companhias abertas que
reverberou pelo mercado dos Estados Unidos entre o final de 2001 e a
primeira metade de 2002. Várias explicações foram elaboradas, outras
tantas medidas foram tomadas para evitar sua repetição, seja nos Estados
Unidos, seja em outros países.
O reforço dos controles internos das corporações e a imposição de
limites à prestação conjunta a serviços de auditagem e consultoria foram
algumas das respostas apresentadas nos Estados Unidos pelo SarbanesOxley Act de 2002. O súbito recrudescimento de incentivos à adoção de
novas práticas de gestão (“governança corporativa”) é mais uma dessas
manifestações, apesar de ainda não positivada nas principais economias ou
no Brasil.
A positivação de normas expressas sobre governança corporativa
talvez não seja necessária, bastando criar o arcabouço jurídico que permita
e induza seu desenvolvimento. O mercado, se perceber valor na governança,
retribuirá por meio de valor de mercado.
No Brasil, a Natura, empresa que recentemente concluiu processo
de oferta pública de abertura de capital, foi premiada pelos investidores
com a excelente valorização de 157% do preço de suas ações em menos
de seis meses após a abertura do capital, contra um desempenho de +67%
do Ibovespa, índice composto pelas ações mais negociadas na Bolsa de
Valores de São Paulo (REBOUÇAS, 2005, A1). Analistas creditam esse
excepcional desempenho, mesmo em período de forte alta do preço das
ações, à preocupação da empresa em ser transparente para os investidores que se tornariam seus parceiros (REBOUÇAS, 2005, p. B-3).
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Como extrair do mercado o máximo de recursos possível, ao menor
preço, e de maneira juridicamente válida são questões fundamentais a enfrentar por quem estuda a capitalização da sociedade anônima aberta. Talvez a melhor forma de fazê-lo seja oferecer aos investidores informações
de qualidade.
2
CAPITALIZAÇÃO E FINANCIAMENTO EM LONGO
PRAZO
Todos os empreendimentos precisam de capital. Ao estudarmos o
processo de capitalização das companhias abertas, na verdade perquirimos as origens do capital que movimenta a sociedade empresária. Entretanto, o capital não é gratuito e cada alternativa para consegui-lo está associada a decisões gerenciais sobre quais custos se devem suportar e qual a
combinação de capital próprio e de terceiros será a ideal para a consecução dos objetivos sociais.
Os investidores exigem patamar mínimo de rentabilidade de seu dinheiro para aplicá-lo em uma companhia além, evidentemente, de segurança para conseguir recuperá-lo futuramente. “Chamamos esse retorno mínimo exigido de custo de capital associado ao projeto [de investimento]”, na lição de Ross, Westerfield e Jordan (2000, p. 320). A taxa de
retorno mínima exigida depende, essencialmente, de elementos macro e
microeconômicos, cujo estudo ultrapassa os limites deste trabalho. Contudo, o objetivo é destacar a complexidade e a quantidade de parâmetros
que administradores de companhias abertas devem conhecer quando desejarem ter acesso aquilo que o mercado de capitais tem a oferecer, bem
como calcular o custo de capital para seus projetos.
Pois bem: cada alternativa de obtenção de capital apresenta vantagens e desvantagens peculiares. Em seu conjunto, podemos chamá-las de
mecanismos de captação de recursos no mercado. Fossem as companhias abertas pessoas naturais, o método mais comum para a captação de
recursos seria ir ao banco e solicitar um empréstimo. Mesmo dispondo de
vários outros mecanismos para captar recursos, as companhias abertas
freqüentemente fazem uso desse expediente graças à facilidade e celeridade
de contratação. Entretanto, a relação jurídica que se manteria com a instituição financeira seria, em essência, a mesma daquela que manteria uma
pessoa natural, e não se trata de tema específico do direito societário.
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Pelos demais instrumentos jurídicos que são oferecidos às companhias
abertas, elas podem se oferecer no mercado como uma alternativa de investimento para aqueles que detêm o capital desejado. Trata-se do chamado
autofinanciamento, que ocorre quando a companhia emite os chamados
valores mobiliários. Na síntese de Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 166):
Dependendo do valor mobiliário emitido, tem-se autofinanciamento
por securitização ou capitalização. No primeiro caso, a sociedade
se autofinancia pela emissão de debêntures ou commercial papers e
obriga-se, perante o investidor, pelo pagamento, no futuro, de determinada importância, ou seja, pela restituição dos recursos prestados
com acréscimos remuneratórios. No segundo, o autofinanciamento
se dá pela emissão de novas ações, caso em que não assume obrigação de restituir aos investidores os recursos prestados.
A capitalização das companhias abertas se dá pelo aumento do capital social por meio da emissão de novas ações e deve atender a uma série
de requisitos procedimentais previstos em lei e resoluções da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), além das exigências apresentadas pelo mercado, caso a companhia deseje aumentar seu valor. Modesto Carvalhosa
(2002, p. 34) discorre sobre a divulgação das informações como meio de
proteger os investidores:
As normas legais e regulamentares, editadas pela CVM, que
condicionam a realização da distribuição pública ao prévio registro,
apresentam nítida feição instrumental; o registro diante da agência
reguladora constitui o meio de proceder-se à prestação de informações com vistas à sua divulgação aos investidores.
O registro da distribuição pública, portanto, insere-se no princípio
maior do disclosure, que consiste na divulgação ampla e completa
de informações sobre a companhia e os valores mobiliários por ela
publicamente distribuídos.
Independente da parte meramente procedimental, o objetivo processo
de capitalização das companhias abertas é um só: captar o máximo de recursos possíveis ao menor custo. A emissão pública de títulos não é gratuita. Ao se considerarem os custos de lançamento associados a uma oferta
pública, verifica-se a complexidade da tarefa posta aos administradores.
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Os custos de lançamento são vários: (1) spread, ou comissões diretas pagas pela companhia emitente aos agentes de subscrição; (2) despesas
diretas, como taxas de registro, honorários advocatícios e contábeis, que não
fazem parte da remuneração dos agentes de subscrição; (3) despesas indiretas incorridas no tempo gasto pelos administradores na preparação do
novo lançamento; (4) retornos anormais, nome que se dá ao fenômeno da
desvalorização média de 3% do preço das ações das companhias abertas
à época do anúncio da emissão; (5.) subavaliação, que ocorre nas ofertas
públicas iniciais quando as ações lançadas são vendidas a um preço inferior
ao seu valor verdadeiro; entre outros (ROSS et al., 2000, p. 399).
A despeito de todos os componentes envolvidos no processo de
tomada de escolhas sobre a estrutura de capital das companhias abertas,
não é essencialmente a forma de financiamento – capitalização, securitização
ou empréstimos bancários – que será o elemento fundamental do custo de
capital da companhia. Ao contrário, a experiência do mercado de capitais
induz à conclusão de que essas opções têm impacto relativamente pequeno
(Jensen; Long Jr, 1972, p. 38).
O principal elemento para se apurar o custo de capital de uma companhia refere-se às informações disponibilizadas sobre o que se pretende fazer
com os recursos. O custo será tão menor quanto menor o risco do investimento
ao qual se destina a capitalização. “O custo do capital depende principalmente
do uso dos fundos, e não de suas fontes” (ROSS et al., 2000, p. 321).
Essa lição de finanças de empresas é muito anterior à erupção dos
escândalos contábeis da Enron, Tyco e outras, bem como ao surgimento
dos conceitos de governança corporativa. Além da precificação do mercado sobre o valor das ações lançadas, a estrutura de capital ainda sofre
profunda influência das informações prestadas e, sobretudo, da confiança
depositada pelo mercado na qualidade dessas informações.
3
DESTRUIÇÃO DO VALOR DE MERCADO E
GOVERNANÇA CORPORATIVA
Nossa performance e diferenciais competitivos não podem ser
comparados à concorrência no setor de energia (…) Tomados
no seu conjunto, os mercados [nos quais competimos] são uma
oportunidade de US$ 3,9 trilhões para a Enron, e nós somente
arranhamos a superfície.
Enron – Relatório Anual aos Acionistas de 2000
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Em vívida metáfora, James Krohe Jr. (2005, p. 04) compara as fraudes contábeis perpetradas pelos executivos da Enron a atos tão vilanescos
quanto lançar bombas incendiárias em alvos civis. De fato, assim narra
John Coffee Jr, (2003, p. 19):
Entre janeiro de 1997 e junho de 2002, aproximadamente 10% de
todas companhias americanas anunciaram pelo menos uma revisão
de seus demonstrativos financeiros. Os preços das ações das companhias que revisaram seus demonstrativos caíram 10% em média
na ocasião do anúncio, com as empresas perdendo mais de US$
100 bilhões em valor de mercado no curto período de três dias após
os anúncios. Tais irregularidades financeiras generalizadas requerem
explicações mais genéricas do que as aplicadas aos casos da Enron,
WorldCom ou outros casos específicos.
Ao analisar o caso da Enron, Baird e Rasmussen (2002, p. 106) comentam que ela se apresentava aos investidores como uma “criadora de
mercados”, com capacidade que parecia infinita em descobrir demandas até
então ignoradas e em, sucessivamente, obter taxas de retorno excepcionais.
Inovadora é adjetivo que várias empresas buscam, pois inovação é
característica valorizada pelos investidores. Criar novos mercados é empreitada valiosa. Os “criadores de mercados”, entretanto, raramente usufruem retornos espetaculares em longo prazo. Criar e organizar mercados
permite aos compradores e vendedores transacionarem a custos de transação3 reduzidos.
O empreendedor que cria ou descobre um novo mercado poderá
capturar retornos elevados, por meio da apropriação de parte do benefício, que inicialmente auferirão compradores e vendedores ao se encontrarem sob custos de transação diminuídos no novo mercado. Criar um novo
mercado, portanto, oferece a promessa de se encontrar grande e única
oportunidade de se ganhar muito dinheiro.
3
Desenvolvido por Ronald Coase, entende-se em Economia e demais disciplinas relacionadas que custos de transação são os custos efetuados no processo de troca econômico. Por
exemplo, muitas pessoas, ao adquirir imóveis ou ações, pagam comissões a corretores
especializados. Quando se estuda efetuar determinada operação econômica, é necessário
avaliar os custos de transação relevantes envolvidos.
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A Enron não era de todo mentirosa, ela de fato criou vários mercados; e auferiu bilhões de dólares de lucros nesses mercados de energia que
efetivamente criou (BAIRD; RASMUSSEN, 2002, p. 107).
No longo prazo, entretanto, mesmo os “criadores de mercado” terão que se satisfazer em auferir lucros menores em cada transação. Não se
pode criar um mercado e mantê-lo secreto. Uma vez criado o mercado,
concorrentes poderão seguir o exemplo e criar ou copiar a fórmula a custo
reduzido. Estabelecida a multiplicidade de oferta desses “mercados”, seus
usuários utilizarão, se não houver outros critérios relevantes para a escolha
o menor preço como critério para seleção. A Economia identifica forte
correlação entre a redução dos preços em mercados competitivos e a redução das taxas de retorno dos operadores desses mercados, logo, não se
pode esperar, em mercados maduros, que taxas de retorno excepcionais
se mantenham de maneira indefinida.
Ciente disso, a Enron não convenceu os investidores ao lhes dizer que
conseguiria manter taxas de retorno incomuns nos mesmos mercados de
sempre. Afinal, princípios básicos de economia induzem à conclusão contrária. No entanto, a Enron vendeu a noção que conseguiria, sempre, transplantar o sucesso obtido nos novos mercados que já criara aos demais ainda não
explorados. Após cultivar um mercado, o norte-americano, por exemplo, a
fórmula poderia ser empregada na Europa, na Ásia e na América do Sul de
maneira igualmente bem-sucedida: o que funcionou com gás e eletricidade
funcionaria com carvão, hidroelétricas, tecnologia e serviços4.
Esse conceito, embora plausível em teoria, não funcionou na prática.
A Enron escondeu a verdade dos investidores e, talvez, até de si mesma,
pois o valor de suas ações e dos benefícios auferidos pelos seus administradores dependia do êxito desse plano. No início de outubro de 2001,
pouco antes de descobertas as fraudes contábeis, suas ações estavam bastante valorizadas no mercado acionário. Menos de dois meses depois, após
as fraudes se tornarem públicas, a Enron requereu falência. Teve início,
então, o processo de revisões dos demonstrativos financeiros que ocasio4
“O que nós aprendemos sobre gasodutos nos Estados Unidos nos ajuda a construir novos
mercados na América do Sul e Índia. Nosso conhecimento em aperfeiçoar a capacidade de
redes de energia nos permite revolucionar o mercado de transmissão” (Relatório Anual aos
Acionistas de 1999); “Nós provamos a viabilidade de um conceito de negócios que é
eminentemente escalonável nos atuais negócios e adaptável o bastante para estendê-lo aos
novos mercados” (Relatório Anual aos Acionistas de 2000).
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nou a gigantesca e rápida destruição de aproximadamente US$ 100 bilhões em valor de mercado.
Responsabilizar administradores gananciosos e auditores relapsos
como únicos culpados por essa imensa destruição de riqueza não responde
à verdadeira questão que se põe diante de problema de tal magnitude. John
Coffee Jr, (2003, p. 35) apresenta série de fatores que, conjuntamente
alinhados, permitiram tamanho descalabro.
Até a década de 1980, dinheiro em espécie era a principal forma de
remuneração dos executivos das companhias americanas. Mudanças da
legislação limitaram a remuneração direta dos executivos, o que foi compensado pela adoção das chamadas stock options, ou opções de ações,
como principal mecanismo remuneratório.
As stock options pareciam reunir o melhor dos mundos: conciliava
interesses dos acionistas, que desejavam máxima valorização das ações, e
dos executivos, que tinham metas claras para atingir. As stock options
também se constituíram em certa forma de proteção contra o hostile
takeover, ou tomada hostil, o que aparentemente reforçava a adequação
desse mecanismo remuneratório.
Nesse contexto, há três importantes detalhes críticos da realidade da
década de 1990: 1) o ativismo dos acionistas não era a regra, e as companhias abertas pecavam pela falta de accountability; e os acionistas tinham
pouca atuação no comando das companhias; 2) as empresas de auditoria
independente também podiam vender aos seus clientes outros e mais rentáveis serviços além da auditoria, como consultoria e assessoria, o que
induzia à utilização da auditoria obrigatória como mecanismo de venda de
produtos mais rentáveis; 3) as stock options poderiam ser exercidas ad
nutum, a qualquer momento.
Embora cada um desses três elementos não fosse capaz de, isoladamente, produzir tamanho dano ao valor de mercado das empresas, ao se
articularem, todo seu potencial ofensivo se revelou. Os executivos
fraudadores receberam oito vezes mais opções de ações do que seus pares em outras empresas; e a possibilidade de exercício ad nutum das stock
options não lhes dava incentivos para elevação sustentável do preço das
ações: bastava-lhes conseguir um pico de valorização artificial quando da
publicação dos balanços trimestrais para ampliar bastante seus lucros.
Esses “picos de valorização” não eram sustentáveis, mas em um
ambiente de baixo nível de accountability, isso não parecia problema para
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os executivos. Em sinergia danosa aos interesses dos acionistas, as empresas de auditoria “independente” acabaram se tornando coniventes com essa
prática, pois corriam o risco de perder, se exercessem auditoria com rigor,
clientes rentáveis para os serviços de consultoria e assessoria.
A resposta do governo americano às fraudes contábeis, em certo
grau copiado por quase todas as principais economias, veio com a edição
do Public Company Accouting Reform and Investor Protection Act of
2002, conhecido como Sarbanes-Oxley Act. Essa lei, em essência, proíbe
a venda casada de serviços de auditoria, consultoria e assessoria ao mesmo cliente, e impõe a obrigatoriedade do rodízio entre auditorias.
O Sarbanes-Oxley Act também obriga os presidentes e principais
executivos financeiros a assinarem os demonstrativos publicados e a se
responsabilizarem pessoalmente por sua veracidade (na legislação americana até então havia brechas que isentavam os presidentes dessa obrigação). Entretanto, somente parte do problema fora atingido, pois não atacou o incentivo perverso das stock options.
Acredita-se que a principal virtude do Sarbanes-Oxley Act é criar
um ambiente institucional favorável à boa governança corporativa, que seria verdadeiramente a solução do problema. A divulgação de informações
confiáveis, combinada com o ativismo dos acionistas seria a solução de
mercado sustentável para o problema das fraudes contábeis.
Um dos pilares nos quais se sustenta a governança corporativa é a
informação ampla (full disclosure)5. “Uma boa política de divulgação de
informações gerará um clima de confiança em torno da companhia que
levará, possivelmente, ao aumento do seu valor” (MARTINEZ, p. 02).
Já foi dito que o mercado aprecia e valoriza informações confiáveis e
boas práticas de gestão. No entanto, há dúvidas se a governança corporativa
é essa panacéia que alguns desejam apresentar. Em recente estudo, foram
identificados aspectos comuns das companhias que provocaram alguns dos
principais escândalos dos últimos tempos (KEES COOLS apud HERZOG,
2006):
• As estruturas de governança corporativa eram semelhantes às de
suas principais concorrentes;
5
Ver, entre outros, OCDE, OECD Principles of corporate governance. Disponível em:
<http://www.oecd.org>, 2004. A primeira edição desse trabalho foi divulgada em 1999 e
tornou-se referência no tema.
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• Os executivos receberam oito vezes mais opções de ações do
que seus pares em outras empresas;
• As metas anuais eram quatro vezes mais agressivas; e
• As expectativas de crescimento dos analistas para algumas dessas empresas chegavam a 55% ao ano.
Pelo já exposto, apesar de o Sarbanes-Oxley Act indicar solução
para alguns problemas, verifica-se que não é, per si, a estrutura de
governança corporativa suficiente para garantir a confiabilidade das informações divulgadas.
A principal conclusão foi que, ao menos no que diz respeito a indicadores formais, essas empresas eram adeptas de práticas de governança corporativa semelhantes ou até mais avançadas que as de seus
pares.
Em 2002, meses antes de tornar pública uma fraude contábil de 2,7
bilhões de dólares, a companhia de serviços médicos HealthSouth
foi elogiada publicamente pelo Institutional Shareholders Services,
conhecida agência que monitora a qualidade da governança das
empresas americanas” (HERZOG, 2006).
Essa desconcertante constatação indica que ainda há muito a se
pesquisar para a criação de um ambiente de investimento seguro.
4
CONCLUSÕES
A ampla divulgação de informações, além de trazer benefícios a investidores, analistas e à sociedade, traz benefícios à própria companhia.
Isso porque quanto maior a qualidade e a transparência das informações
prestadas ao mercado, maiores serão as chances de atrair investimentos
com baixo custo de capital.
O mercado valoriza informações contábeis e financeiras de qualidade e tende a valorizar empresas que adotam boas práticas de governança
corporativa. Acredita-se que uma das causas para as fraudes contábeis
constatadas em 2001 no mercado de ações americano se deve exatamente
ao baixo grau de disclosure das informações.
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A orientação das expectativas dos agentes econômicos por meio do
acesso às informações corporativas assume tanta importância econômica
que se pode afirmar que o principal elemento do custo de capital não se
refere às suas fontes, mas ao uso que se pretende fazer dos recursos. Esse
aspecto é intangível e meramente informacional até a real consecução do
plano, que poderá ocorrer somente anos depois do investimento.
Acredita-se simplista creditar somente a questões éticas dos administradores os escândalos corporativos. Diversos fatores, adequadamente
alinhados, criaram o contexto que permitiu fraudes contábeis: 1) falta de
accountability e de ativismo acionário; 2) estímulos pecuniários divergentes oferecidos às empresas de auditoria independente, que acabaram prestando outros serviços, tais como consultoria e assessoria aos clientes
auditados; 3) remuneração dos executivos baseada em stock options
exercíveis ad nutum.
O Sarbanes-Oxley Act apresenta respostas pontuais adequadas às
causas de algumas das fraudes contábeis que abalaram a economia americana, mas não a todas. O mercado acredita ser a governança corporativa
alternativa válida para preencher as lacunas legais, mas estudos recentes
não permitem chegar validamente a essa conclusão.
Ainda há muito a estudar para aperfeiçoar a segurança do mercado
de ações, em particular ao acesso e à qualidade das informações financeiras divulgadas.
5
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O VALOR DA INFORMAÇÃO E O PROCESSO DE CAPITALIZAÇÃO DA ...
HERZOG, Ana Luiza. Ganância e vaidade: estudo mostra que a razão das
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PODER DO ACIONISTA CONTROLADOR E
A TRANSFORMAÇÃO NA SOCIEDADE ANÔNIMA
ANALUCIA COUTINHO MALTA
Sumário
1. Poder do acionista controlador na sociedade anônima. 2. Deliberação sobre transformação na sociedade
anônima – requisito da unanimidade e alteração estatutária. 3. Conclusão. 4. Referências bibliográficas.
Resumo
Este artigo tem o objetivo de perquirir os limites do poder do acionista controlador na transformação da sociedade anônima fechada em sociedade limitada. Especificamente, procura-se verificar se a realização de
reforma no estatuto da companhia para fazer nele constar a possibilidade
de aprovação de transformação da companhia em outro tipo societário,
por maioria, e não apenas pela unanimidade dos acionistas, pode ser considerada válida e eficaz ou se configuraria abuso de poder do acionista
controlador, tornando a deliberação passível de anulação.
PALAVRAS E EXPRESSÕES-CHAVE: sociedade anônima; sociedade limitada; transformação; estatuto; alteração estatutária; acionista
controlador; abuso de poder; acionista minoritário; direito de recesso.
Abstract
This article aims to investigate the limits of the powers of the controlling
shareholder in the transformation of a open corporation into a closed
corporation. The article verifies if the amendment in the by-laws of the
corporation no insert the possibility of the approval of the transformation of
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 37-46
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2006
ANALUCIA COUTINHO MALTA
a open corporation into a closed corporation, by the majority of the votes,
and not only by unanimous voting, can be valid or if that would be an abuse
of power by the controlling shareholder with the possibility of voiding.
KEY-WORDS: corporation – llc – by-laws – changing – controlling
shareholder – abuse of power
1
PODER DO ACIONISTA CONTROLADOR NA
SOCIEDADE ANÔNIMA
Segundo a definição do artigo 116 da Lei nº 6.404/76 – Lei das
Sociedades Anônimas – acionista controlador é a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob
controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da
assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores
da companhia e; b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Pois bem, como titular dos votos necessários à aprovação de quase
todas as deliberações societárias, o acionista controlador tem extenso poder na companhia: é legítimo o ato de tomar importantes decisões, como
escolher os administradores, reformar o estatuto em quase todos os seus
ditames, deliberar sobre a destinação dos lucros (após as afetações legais),
entre outros poderes. Essa vantajosa posição do acionista controlador, que
lhe permite efetivamente decidir os rumos da companhia, não representa
nenhuma irregularidade ou distorção, mas tão-somente o exercício de prerrogativas legítimas outorgadas a quem seja detentor da maior parte das
ações com direito de voto em uma companhia1.
Ademais, essa extensão do poder do acionista controlador tampouco
é indesejável ou maléfica para a sociedade, eis que, dada a necessidade de
dinamismo da empresa, é mesmo bom que as decisões a ela pertinentes
não fiquem sujeitas, em qualquer momento, ao consenso de todos os sócios (o que, aliás, tornaria inviável o negócio).
1
Nesse sentido, ver as considerações do professor Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de
direito comercial, vol. 2, p. 283.
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E mesmo no que tange aos acionistas minoritários, a possibilidade de
o controlador decidir amplamente sobre a sociedade nem sempre é contrária aos interesses daqueles. Isso ocorre quando os minoritários não estão preocupados em exercer o poder de mando na sociedade, mas em
receber o retorno financeiro do seu investimento (situação não rara, na
prática).
Em face dos diferentes propósitos que inspiram os acionistas de uma
companhia, as relações entre o controlador e os minoritários podem se dar
sem maiores divergências se os acionistas minoritários não estiverem interessados no status ou nas prerrogativas de administrador (e, especialmente, se a empresa apresenta bons resultados e distribui dividendos de forma
regular).
Todavia, em determinadas situações pode haver discordância entre
os acionistas minoritários e o controlador, seja porque aqueles têm ou passaram a ter o intuito de exercer poder de decisão, seja porque não estão
satisfeitos com os resultados ou com a política de destinação dos resultados da empresa, ou por qualquer outro motivo. Pode ocorrer, ainda, que o
acionista controlador passe a agir com abuso de poder, sobrepondo os
seus interesses pessoais aos interesses da companhia e causando prejuízo
aos demais acionistas. Daí, a necessidade de se disciplinar a relação entre
os acionistas na companhia.
Como bem destaca o professor Fábio Konder Comparato2, se o
poder não pode ser confiado, indistintamente, a todos os membros do
corpo social, ele deve, em qualquer hipótese, ser exercido em benefício de todos, e não apenas de alguns; muito menos em proveito exclusivo dos detentores do poder.
Nesse propósito, a Lei das S.A. apresenta dispositivos que revelam
o seu objetivo de atingir o equilíbrio da atuação e dos interesses dos diferentes acionistas, de forma que o controlador possa desempenhar o seu
papel com a desenvoltura e a liberdade necessárias ao dinamismo dos negócios da companhia, mas não utilize o poder que detém para atingir fins
estranhos aos objetivos sociais, tampouco para subjugar os acionistas
minoritários.
2
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na
sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 65.
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Exemplo da manifestação desse objetivo está no parágrafo único do
artigo 116 da Lei nº 6.404/76, o qual impõe limites à atuação do acionista
controlador ao estabelecer que ele deve usar o poder com o fim de fazer
a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua,
cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
E como conseqüência dessa limitação, a Lei das S.A. imputa responsabilidade ao controlador pelos atos praticados com abuso de poder,
exemplificando situações entendidas como tal, em seu artigo 117.
Embora o rol de atos classificados na lei como configuradores de
abuso de poder seja meramente exemplificativo, já se observa que o legislador preocupou-se sobremaneira com o exercício do poder do acionista
controlador na realização de alterações estatutárias (alínea c do parágrafo
primeiro do art. 117), bem como na deliberação de transformação da companhia em outro tipo societário (alínea b do mesmo dispositivo). Não
obstante, fez constar que o abuso de poder só ocorrerá quando o ato
praticado pelo controlador não tiver como fim a realização dos objetivos
da companhia e/ou for praticado com o intuito de prejudicar acionistas
minoritários, trabalhadores e investidores.
Destarte, as diretrizes para a averiguação da validade de reforma no
estatuto da companhia para fazer nele constar a possibilidade de aprovação de transformação por maioria, e não apenas pela unanimidade dos
acionistas, seriam o interesse social e a inexistência de prejuízos aos
minoritários, trabalhadores e investidores.
2
DELIBERAÇÃO SOBRE TRANSFORMAÇÃO NA
SOCIEDADE ANÔNIMA – REQUISITO DA
UNANIMIDADE E ALTERAÇÃO ESTATUTÁRIA
Dispõe o caput do artigo 221 da Lei nº 6.404/76 que a transformação exige o consentimento unânime dos sócios ou acionistas, salvo
se prevista no estatuto ou no contrato social, caso em que o sócio
dissidente terá o direito de retirar-se da sociedade.
Como se depreende do artigo transcrito, a lei foi clara ao estabelecer a necessidade de consentimento de todos os acionistas para a deliberação relativa à transformação, a menos que o estatuto contenha disposição
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expressa em outro sentido. Não obstante, discute-se se tal disposição autorizando a operação sem a necessidade de votação unânime deve constar
no estatuto de origem ou se pode ser incluída, posteriormente, por deliberação da maioria.
Modesto Carvalhosa3, em sua interpretação do artigo 221 da Lei nº
6.404/76, afirma que, na transformação, a vontade dos acionistas manifesta-se em conformidade com o estatuto de origem; ou seja, para o referido
autor, se não houver disposição no estatuto firmado pelos fundadores da
companhia autorizando a transformação por quorum inferior, haverá sempre a necessidade de consentimento unânime. E ao discorrer sobre o requisito da unanimidade, acrescenta que o seu fundamento está no fato de a
transformação acarretar uma alteração substancial nas responsabilidades e no poder de decisão dos sócios ou acionistas.
Fran Martins4, por outro lado, apresenta entendimento diferente. Em
sua publicação de estudos e pareceres sobre direito societário, defende a
possibilidade de inclusão de cláusula reduzindo o quórum necessário à aprovação de transformação da companhia, por meio de alteração no estatuto:
A alteração do estatuto para a inclusão da cláusula permissiva da
transformação é possível, apesar da oposição ou restrições a esse
ponto de vista feitas esporadicamente (ver Félix Ruiz Alonso, “Sobre a transformação de sociedades”; ver também Rev. de Direito
Comercial, ano II, nº 4, jan.-mar. 1978, p. 72 e segs.). Trata-se
de mera reforma estatutária requerendo, apenas, a presença de
acionistas que representem 2/3 das ações votantes (ordinárias
nominativas ou preferenciais nominativas com direito a voto) para
reunir-se a assembléia em 1ª convocação, podendo, em 2ª convocação, a assembléia reunir-se com qualquer número de acionistas possuidores de ações votantes (Lei das S.A., art. 165). A
decisão será tomada por maioria simples (metade mais um dos
votos de acionistas presentes, na forma do art. 129), já que a
introdução dessa permissão no estatuto não consta do elenco de
3
4
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002; Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 501.
MARTINS, Fran. Direito societário: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1984,
p. 289.
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restrições estabelecidas no art. 136. Contrariamente à opinião de
Ruiz Alonso, a introdução dessa cláusula no estatuto não necessita da aprovação da unanimidade dos acionistas, que não é
exigida em nenhuma passagem da lei das sociedades anônimas
em relação a esse fato.
Em princípio, a interpretação dada pelo primeiro autor mostra-se
mais correta. De fato, deve-se entender que a lei quis referir-se ao estatuto de origem quando estabeleceu exceção à unanimidade exigida para a
transformação da companhia em outro tipo societário, pois, do contrário,
bastaria que a maioria promovesse reforma do estatuto e, em seguida, aprovasse a transformação da companhia, ainda que com a discordância de
acionistas minoritários, ignorando os direitos desses, para que o artigo 221
da Lei das S.A. ficasse sem qualquer efeito. Fosse assim, a proteção aos
minoritários e a segurança jurídica quanto aos princípios sobre os quais foi
constituída a sociedade, que são objetivos da lei com a instituição da regra
da unanimidade, restariam completamente frustrados.
Corroborando a tese do Professor Modesto Carvalhosa, o Tribunal
de Justiça de São Paulo anulou deliberação tomada em assembléia geral
extraordinária que consistia em introduzir nos estatutos sociais a permissão
de transformação da sociedade anônima em limitada, na Apelação Cível nº
98.810-1 – São Bernardo do Campo, Relator Des. Marco César, 19 maio
1988.
Ocorre que se por um lado a tese de que a transformação da companhia só seria possível por unanimidade ou conforme regra estabelecida
no estatuto de origem mostra-se mais condizente com os objetivos da lei
no que tange à proteção dos minoritários, por outro lado, o completo
engessamento do estatuto no ponto em questão, independentemente do
quadro fático que se apresente, também não se mostra o mais adequado.
De fato, não se pode ignorar que, com o decurso do tempo, as circunstâncias sobre as quais a companhia foi constituída podem mudar substancialmente, seja pela eventual retração dos negócios, seja pela alteração
do quadro societário (pode ocorrer, aliás, que todos os fundadores deixem
de figurar como acionistas após certo tempo) ou por quaisquer outras situações fáticas que modifiquem o perfil da companhia ou o entendimento dos
seus sócios. Assim, é possível que, em determinado momento, a transfor42
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mação da sociedade anônima em limitada mostre-se mais conveniente aos
sócios e à própria empresa.
A motivação que leva os sócios a deliberarem acerca da transformação do tipo societário é também abordada por Modesto Carvalhosa em
Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Diz o autor:
Com efeito, a transformação é instituto que visa atender aos critérios
de conveniência dos sócios, na esfera estritamente contratual, no
âmbito interno e externo de suas relações. Trata-se de negócio voluntário que objetiva, no plano interno, a composição dos interesses
dos sócios que não mais se coadunam com o tipo atual. No plano
externo, visa atender aos critérios de conveniência, com respeito,
notadamente, a questões de maior ou menor publicidade e de acesso ao mercado de capitais. Assim, algumas sociedades se retraem
para fugir às publicações periódicas que a lei societária impõe, que
representam uma exposure das operações e do patrimônio da companhia, o que passou a ser considerado inconveniente ou desnecessário (...)5
Pois bem, constatando, os sócios, em determinada situação concreta, que a composição como sociedade anônima não mais coaduna com o
perfil e com os propósitos da empresa e que a transformação em limitada
não traria prejuízo a ninguém, não é razoável que, diante da dissidência de
uma minoria, desprovida de fundamento, a sociedade se veja peremptoriamente impedida de reverter um procedimento oriundo do estatuto original. A prevalecer o raciocínio da impossibilidade de qualquer mudança, a
única opção que se colocaria àqueles sócios, na prática, seria a própria
dissolução da sociedade para que, posteriormente, fosse constituída uma
nova, segundo o tipo mais conveniente. Não resta dúvida de que, essa sim,
seria uma opção prejudicial a todos os interessados na companhia.
Destarte, diante de uma situação nos moldes relatados, defende-se
que é válida a alteração estatutária para autorizar a transformação da companhia em sociedade limitada por deliberação da maioria, detentora do
5
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 4, tomo I, p. 184.
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poder de controle na sociedade. E, como mencionado anteriormente, as
balizas para a verificação da legalidade dos atos praticados nesse intuito
seriam o interesse social e a inexistência de prejuízos aos minoritários,
trabalhadores e investidores.
Neste momento, é oportuno esclarecer que a questão relativa aos
interesses dos credores da companhia não é incluída entre os princípios
norteadores da investigação proposta, haja vista que a Lei nº 6.404/76
estabelece expressamente, em seu artigo 222, que a transformação não
prejudicará, em caso algum, os direitos dos credores, que continuarão,
até o pagamento integral de seus créditos, com as mesmas garantias
que o tipo anterior de sociedade lhes oferecia. Também o Código Civil
de 2002 apresenta disposição nesse sentido, em seu artigo 1.115, não restando, portanto, qualquer dúvida sobre a matéria.
Retomando a análise dos possíveis efeitos da operação, é pertinente
ressaltar que, com as novas disposições introduzidas pelo Código Civil de
2002, acerca das sociedades limitadas, os direitos dos minoritários nesse
tipo societário foi reforçado e, em certos aspectos, pode-se dizer que a
proteção aos minoritários tornou-se até mais acentuada do que na disciplina própria das S.A. Exemplo disso é o quórum mais rigoroso exigido para
a realização de alterações contratuais (votos correspondentes a 3/4 do
capital social, conforme o art. 1.076 do Código Civil).
Quanto à responsabilidade do sócio, não se pode dizer que a transformação da companhia em sociedade limitada implicaria algum agravamento da sua situação (considerando-se, importante deixar claro, que o
capital social esteja totalmente integralizado). Nesse caso, a responsabilidade dos sócios permaneceria a mesma, “limitada ao preço de emissão
das ações subscritas ou adquiridas” na companhia (art. 1º da Lei nº 6.404/
76) e “restrita ao valor de suas quotas”, na sociedade limitada (art. 1.052
do Código Civil).
Com relação aos objetivos da sociedade e dos demais agentes interessados na companhia, caso a transformação vise mesmo atender aos fins
sociais (motivada, por exemplo, pela necessidade de se cortar custos, simplificar os órgãos administrativos e evitar exposição indesejada dos resultados por meio de publicações), sem qualquer prejuízo aos trabalhadores,
investidores e demais acionistas, defende-se a validade da operação. Acrescente-se, ademais, que, no panorama descrito, uma eventual oposição do
acionista minoritário, sem qualquer razão (ou pela simples vontade de afrontar
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o controlador por uma divergência particular) não será suficiente para obstar ou anular a deliberação.
Lado outro, caso, no contexto fático, vislumbre-se efetivo ou potencial prejuízo para o acionista dissidente, prevalece o entendimento de que a
alteração estatutária para posterior transformação não poderá ser realizada e, se levada a efeito, poderá ser anulada. Ainda, constatando-se que se
quer a transformação para atender aos interesses particulares do controlador,
postos acima dos objetivos da companhia, também não será válida a alteração introduzida no estatuto, cabendo aos acionistas dissidentes e à companhia a reparação de todos os danos sofridos em razão da operação
praticada com abuso de poder pelo acionista controlador.
Finalmente, não se pode deixar de abordar a questão relativa ao
direito de retirada do acionista dissidente das deliberações relativas à
reforma estatutária e à transformação da sociedade. De fato, mesmo
nas situações em que se entender que o minoritário não poderá impedir
a alteração estatutária e a transformação da sociedade, ainda assim
terá ele o direito indiscutível de discordar da deliberação. É importante
deixar claro que o acionista não pode ser obrigado a submeter-se à
mudança de tipo societário, tornando-se sócio de uma sociedade limitada, se ele não quiser. Assim, deverá ser-lhe garantido, sempre, o exercício do direito de retirada, mediante o reembolso do valor de suas
ações.
3
CONCLUSÃO
Diante do exposto, entende-se que, em regra, é necessário o voto
unânime de todos os acionistas da companhia para que seja aprovada a
sua transformação em sociedade limitada. A deliberação da matéria, por
voto da maioria, só é possível se o estatuto de origem tiver previsão expressa nesse sentido.
Não obstante, determinadas circunstâncias específicas podem ensejar
uma amenização dessa regra. Partindo-se do princípio do interesse precípuo
da sociedade sobre os interesses particulares dos acionistas e da inexistência
de prejuízo para os acionistas, investidores e trabalhadores, se, em determinado momento, a forma da limitada melhor coadunar com o objetivo da
companhia, sem prejuízo para aqueles agentes, passa a ser possível a realização de reforma no estatuto para viabilizar a alteração do tipo societário
por decisão da maioria.
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De toda forma, em qualquer hipótese, é imperativo que se garanta
ao dissidente, independentemente de suas razões para a discordância quanto
à deliberação, o direito de retirada, com o recebimento do valor de suas
ações.
Por fim, entende-se que a identificação do contexto autorizador ou
não da operação dependerá da análise pontual das circunstâncias específicas de cada caso concreto que se ponha diante do intérprete.
4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BULGARELLI, Waldírio. Regime jurídico da proteção às minorias nas
S.A. (de acordo com a reforma da Lei nº 6.404/76). Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações da
Lei nº 9.457, de 5 de maio de 1997, e da Lei nº 10.303, de 31 de outubro
de 2001. São Paulo: Saraiva, 2002.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. São Paulo:
Saraiva, 2005.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva,
2005, vol. 2.
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder
de controle na sociedade anônima. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
MARTINS, Fran. Direito societário: estudos e pareceres. Rio de Janeiro:
Forense, 1984.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2003,
vol. 2.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das
sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979.
WALD, Arnoldo. Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, vol. XIV.
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3
A INDEPENDÊNCIA DAS GARANTIAS
INTERNACIONAIS SOB DEMANDA
ANDRÉ RENNÓ LIMA GUIMARÃES DE ANDRADE
Sumário
1. Introdução. 2. As garantias internacionais sob demanda e a independência. 3. Conclusão. 4. Referências
bibliográficas.
Resumo
As garantias sob demanda surgiram para proporcionar segurança
àqueles que praticam negócios jurídicos no âmbito internacional. É essencial, para se obter essa segurança, que a garantia seja autônoma e independente em relação ao contrato-base, do qual ela decorre. Não fosse assim,
qualquer defesa oriunda da relação principal poderia ser invocada pelo
garantidor para deixar de cumprir sua obrigação, não sendo proporcionada às partes contratantes confiança na utilização das garantias. Destarte,
torna-se imprescindível a demonstração da independência da garantia sob
demanda, não obstante os mecanismos de pagamento utilizados, mormente naqueles que ocorrem mediante apresentação de documentos ou de
decisão judicial ou arbitral em que é necessária a demonstração da inadimplência da outra parte para a exigência da garantia. O escopo deste artigo
é demonstrar a independência das garantias sob demanda, qualquer que
seja o mecanismo de pagamento previsto em seus termos e condições, por
meio da verificação do seu funcionamento e estrutura.
PALAVRAS-CHAVE: garantias sob demanda; mecanismos de pagamento; independência.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 47-60
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ANDRÉ RENNÓ LIMA GUIMARÃES DE ANDRADE
Abstract
The demand guarantees arose to provide safeguard to those who
do juridical business in the international scope. It is essential, in order to
obtain this safeguard, that the guarantee be autonomous and independent
regarding the main contract from which it is originated. If not so, any defense
arising from the main relation could be invoked by the guarantor to keep
from fulfilling its obligation, with no safeguard for the contracting parts in
the use of the guarantees. Therefore, it is essential to demonstrate the
independence of the demand guarantee, no matter the mechanisms of
payment used, mostly on those that occur by means of presentation of
documents or due to judicial or arbitral decision, in which it is necessary
the demonstration of insolvency from the other party to demand the
guarantee. The scope of this article is to demonstrate the independence of
the demand guarantees, whatever the mechanism of payment foreseen in
its terms and conditions, through the verification of its operation and
structure.
KEYWORDS: demand guarantees; mechanism of payment; independence.
1
INTRODUÇÃO
As garantias sob demanda são utilizadas em transações internacionais com o objetivo de resguardar uma das partes envolvidas de eventual
inadimplência da outra. Para que produzam os efeitos necessários, é imprescindível que elas sejam independentes da transação-base, já que pretendem assegurar o cumprimento das obrigações nela previstas. Isso porque a possibilidade de invocação, pela parte inadimplente, de defesas oriundas do contrato-base, quando requerida a garantia, faria com que tal instrumento perdesse sua razão de ser, já que não haveria qualquer liquidez
em sua prestação.
Entretanto, podem existir questionamentos em relação à referida independência quando a garantia for utilizada com previsão de mecanismos
de pagamento que não aquele da primeira solicitação. De fato, quando a
garantia for pagável mediante apresentação de documentos de terceiros ou
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A INDEPENDÊNCIA DAS GARANTIAS INTERNACIONAIS SOB DEMANDA
de apresentação de decisão judicial ou arbitral, exige-se demonstração da
inadimplência da parte.
O escopo deste artigo é demonstrar a independência da garantia em
qualquer mecanismo utilizado, ou seja, mesmo se nela houver previsão de
pagamento mediante apresentação de documentos ou de decisão judicial
ou arbitral.
2
AS GARANTIAS INTERNACIONAIS SOB DEMANDA
E A INDEPENDÊNCIA
Com a expansão da globalização no século XX, houve um incremento das transações realizadas por pessoas, físicas ou jurídicas, situadas
em países diversos. Essas relações, que extrapolaram os limites territoriais
e geográficos, trouxeram maior risco e enorme incerteza para as partes,
decorrentes da distância entre elas e da diversidade de sistemas jurídicos
em seus países. Como conseqüência, surgiu a necessidade de mecanismos
que não apenas regulassem essas transações mas que também garantissem
sua efetividade e execução.
O comércio internacional é regulado basicamente por usos e costumes, incorporados na lex mercatoria, que guarda forte particularismo com
o ius mercatorum dos tempos medievais1. Assim, é a lex mercatoria que
regula os diversos aspectos de uma transação comercial internacional, desde o seu nascimento, nas negociações preliminares, até a sua execução.
Isso ocorre porque as convenções internacionais ainda não são suficientes
para proceder à regulamentação de toda a matéria, o que revela que muitos desses aspectos ainda seguem a prática criada pelos próprios
comerciantes.
Para proporcionar a efetividade dessas transações, surgiram mecanismos de garantias, que são apenas utilizados nos casos em que não há o
cumprimento das obrigações assumidas voluntariamente pelas partes. De
início, convencionou-se um sistema baseado em depósitos bancários. Assim, a parte importadora ou contratante, obrigada ao pagamento, buscava
a garantia de que a mercadoria lhe seria entregue ou a obra seria concluída;
dessa forma, exigia da parte exportadora ou contratada um depósito em
1
Para uma visão aprofundada do assunto, ver GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Fundamentos da arbitragem no comércio internacional. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 74-86.
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dinheiro como garantia2. Esse procedimento era dispendioso e problemático para a exportadora ou contratada, já que consistia em retenção de numerário. Em razão da pouca funcionalidade e praticidade de tal procedimento, surgiu um mecanismo para substituí-lo, segundo o qual o comprador podia ter a mesma certeza e rapidez de se compensar pela inadimplência
da outra parte. Foram, assim, criadas as garantias.
O surgimento dessa prática remonta ao ano de 1960, no mercado
interno americano. No âmbito internacional, as garantias apareceram com
o desenvolvimento dos países do Oriente Médio, que, com o dinheiro proporcionado pela venda de sua matéria-prima básica, o petróleo, passaram
a contratar empresas estrangeiras para a realização de obras estruturais em
seu território. Tais países exigiam garantias de que as construções fossem
realizadas, e o número de contratos proporcionou diretamente o incremento de sua utilização. Em contrapartida, as empresas de países estrangeiros
também exigiam garantias de que os pagamentos seriam feitos pelos governos contratantes3.
As garantias são reguladas pela lex mercatoria e por legislações
criadas em alguns países, como Arábia Saudita, Iraque e outros do Norte
da África4.
2
3
4
Cf. AFFAKI, Georges. ICC uniform rules on demand guarantees. A user’s handbook to the
URDG. ICC Publication 631. Paris: ICC, 2001, p. 30.
Nas palavras de Roeland Bertrams: “Garantias bancárias independentes e sua equivalente
americana, a carta de crédito standby, são um fenômeno relativamente novo. Parece que
elas apareceram primeiro no mercado doméstico americano em algum momento da metade
da década de 60, enquanto, de acordo com banqueiros, elas começaram a ser usadas num
volume apreciável em relação a transações internacionais no começo dos anos 70. A riqueza
crescente nos países produtores de petróleo do Oriente Médio neste período permitiu a
esses países concluir contratos importantes com empresas ocidentais para projetos de
larga escala, como melhorias de infra-estrutura (estradas, aeroportos, instalações portuárias), serviços públicos (habitação, hospitais, redes de comunicação, usinas de energia),
projetos industriais e agrícolas, e de defesa nacional. É devido a estes desenvolvimentos
que as origens e a primeira exigência por garantias bancárias independentes e especialmente
aquelas pagáveis à primeira solicitação, provavelmente podem ser traçadas” (tradução
nossa) (BERTRAMS, Roeland F. Bank guarantees in international trade. ICC Publication
547. The Netherlands: ICC, 2001, p. 1).
Segundo Roeland F. Bertrams: “Na maioria dos países não existe nenhuma legislação
específica sobre garantias independentes, enquanto apenas poucos países têm algumas
disposições legais de natureza geral. Países no Oriente Médio, particularmente a Arábia
Saudita e o Iraque, e na África do Norte promulgaram regulamentos obrigatórios relativos
a garantias independentes e é importante ter uma visão clara da natureza e do efeito legal
destes regulamentos, que, incidentalmente, não são de modo algum peculiares a essas
regiões” (tradução nossa) (BERTRAMS, 2001, p. 27).
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Elas são chamadas de “garantias” em alguns países (guarantees).
Nos Estados Unidos, o termo “garantia” representa a acessória; o mecanismo independente é designado carta de crédito standby. Já na Inglaterra,
o termo “garantia” é utilizado para descrever tanto a acessória, quanto a
independente, sendo sua natureza depreendida dos termos e condições da
própria garantia5.
A garantia pode ser prestada em decorrência do contrato-base de
compra e venda, de prestação de serviços ou mesmo em licitações internacionais.
No procedimento da garantia, há a intervenção de uma terceira parte, alheia aos contratantes, que se compromete, a pedido do exportador ou
contratado, perante o importador ou contratante, a pagar uma determinada
soma em dinheiro6 no caso de inadimplência do primeiro, que posteriormente procederá o reembolso. Essa garantia é diversa da relação-base e
pagável mediante simples pedido da parte beneficiária ou mediante apresentação de determinados documentos ou de decisão judicial ou arbitral.
Eis a representação gráfica:
GARANTIDOR
(prestador da garantia)
Relação de instrução
PRINCIPAL
(responsável por
providenciar a emissão
da garantia)
Relação de garantia
propriamente dita
Relação-base
BENEFICIÁRIO
(em favor de quem a
garantia é emitida)
Figura 1 Representação da garantia.
5
6
Cf. BERTRAMS, 2001, p. 3-5.
As garantias à solicitação prevêem apenas garantias nas quais a obrigação do garantidor é
pagar uma determinada soma de dinheiro, ao contrário de outras espécies de garantia, nas
quais ele pode ser obrigado a cumprir a obrigação do garantido.
51
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As garantias sob demanda podem ser emitidas por bancos, companhias financeiras ou coligadas. As garantias bancárias são as mais comuns7.
As garantias também se distinguem do sistema do crédito documentário, forma de pagamento implementado por intermédio de bancos. Em
que pese a impressão de que o crédito documentário possa representar
espécie de garantia para o credor, o instituto se revela distinto. Nele, o
banco age como mero intermediário-pagador. Na garantia, a intervenção
do banco é exceção, manifesta apenas no caso de a parte não cumprir suas
obrigações. De fato, a estatística demonstra que em apenas 3% a 5% dos
casos envolvendo garantias há pedido de seu pagamento8.
É essencial, para se obter a segurança pretendida com a utilização
da garantia, que ela seja autônoma e independente em relação ao contratobase do qual decorre. Não fosse assim, qualquer defesa oriunda da relação principal poderia ser invocada pelo garantidor para deixar de cumprir
sua obrigação, não sendo proporcionada às partes contratantes confiança
e agilidade na utilização das garantias.
No intuito de disciplinar as garantias, a Câmara de Comércio Internacional de Paris editou, em 1978, a Publicação nº 325, conhecida como
Regras Uniformes para Garantias Contratuais. Essas regras não foram
muito aceitas na prática por não regular o mecanismo mais utilizado pelos
operadores do comércio internacional: a garantia à primeira solicitação.
Com isso, houve dúvida sobre a independência da garantia, característica
essencial para desvinculá-la do contrato principal, já que era sempre exigida
do beneficiário da garantia, para a concretização do seu direito de vê-la
prestada, demonstração sobre a inadimplência da outra parte do contrato
principal, por meio de apresentação de decisão judicial ou arbitral.
Para sanar esse problema, a CCI editou, em 1992, a Publicação nº
458, cujo nome é Regras Uniformes para Garantias sob Demanda.
Esta publicação tratou do mecanismo de pagamento à primeira solicitação,
atendendo à necessidade dos comerciantes e conferindo dinamismo às garantias. Ao mesmo tempo, não desprotegeu o principal (parte que provi7
8
De acordo com Georges Affaki: “Embora a porcentagem de garantias à solicitação e contragarantias emitidas por bancos largamente exceda a emitida por não-bancos, é permitido a
não-bancos emitir garantias e contra-garantias também. Garantias emitidas por empresas
controladoras em favor de credores de suas subsidiárias são características comuns nas
economias modernas” (tradução nossa) (AFFAKI, 2001, p. 53).
Cf. BERTRAMS, 2001, p. 219.
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dencia a emissão da garantia por meio do garantidor e que contrata com
o beneficiário da garantia, na relação-base), tendo procurado o equilíbrio
entre os interesses das partes envolvidas ao exigir do beneficiário da garantia, como condição para sua solicitação, a apresentação, em conjunto
com seu pedido, de declaração atestando a inadimplência do principal.
Com isso, buscou inibir a realização de pedidos fraudulentos na garantia.
A concretização dessa novidade encontra-se no artigo 20(a) da Publicação nº 458, que dispõe que a garantia deverá ser paga ao beneficiário,
quando esse apresenta um pedido em conformidade com os seus termos e
condições, acompanhado de uma declaração, de sua autoria, de que o
principal está inadimplente e qual é a inadimplência.
A seguir, o teor de tal regra:
Artigo 20(a) – Qualquer pedido de pagamento sob a Garantia deve
ser por escrito e deve (em adição a quaisquer outros documentos
que possam estar especificados na Garantia) ser suportado por uma
declaração escrita (no pedido em si ou em um documento separado
ou documentos acompanhando o pedido e nele referidos) declarando:
(i) que o Principal está inadimplente em relação à(s) sua(s) obrigação(ões) sob o(s) contrato(s)-base ou, no caso de uma garantia
de licitação, as condições da licitação;
e
(ii) o motivo pelo qual o Principal está em falta.9
Essa inovação também foi tratada na Introdução das Regras, da seguinte forma:
[...] os interesses do beneficiário devem estar balanceados com a
necessidade de proteger o principal contra um pedido injusto da ga-
9
“Art. 20(a) Any demand for payment under the Guarantee shall be in writing and shall (in
addition to such other documents as may be specified in the Guarantee) be supported by
a written statement (whether in the demand itself or in a separate document or documents
accompanying the demand and referred to in it) stating: (i) that the Principal is in breach of
his obligation(s) under the underlying contract(s) or, in the case of a tender guarantee, the
tender conditions; and (ii) the respect in which the Principal is in breach” (no original).
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rantia. A CCI considera razoável prever que, de acordo com os princípios da eqüidade e contratação justa, o pedido deve ser por escrito e deve pelo menos estar acompanhado de uma declaração do
beneficiário de que, e em qual respeito, o principal está em falta, e o
artigo 20 assim o prevê.10
As garantias sob demanda, reguladas pela Publicação nº 458 da CCI
e, posteriormente, pela Convenção da UNCITRAL (United Nations
Comission on International Trade Law) sobre Garantias Independentes
e Cartas de Crédito Standby, de forma similar, podem ser definidas como
um compromisso escrito de pagamento, dado geralmente por um banco,
de pagar ao beneficiário um determinado valor, mediante a apresentação
de pedido em conformidade com os termos e condições ajustados no instrumento da própria garantia, acompanhado ou não de documentos ou de
decisão judicial ou arbitral.
A garantia possui natureza documentária: o garantidor, para
efetivar o seu pagamento, deverá apenas proceder ao exame formal
dos documentos apresentados pelo beneficiário, que podem consistir em um pedido simples ou em outros documentos nela especificados. Isso representa uma significativa vantagem para o garantidor,
que não fica sujeito à verificação de fatos, o que tornaria sua incumbência bem mais complexa. Contudo, tal análise requer boa-fé e cuidado razoável.
A garantia é um contrato que envolve três ou quatro relações jurídicas distintas, dependendo de sua estrutura, se direta ou indireta, respectivamente. Na garantia direta, as relações jurídicas ocorrem entre devedor
(principal) e credor (beneficiário), denominada relação-base; principal
e garantidor (solicitação e instruções para emissão da garantia); e entre
garantidor e beneficiário (garantia propriamente dita). Já na garantia indireta, ocorrem entre devedor (principal) e credor (beneficiário); princi10 “[...] the interests of the beneficiary must be balanced against the need to protect the
principal against an unfair claim on the guarantee. The ICC considers it reasonable to
provide that an accordance with principles or equity and fair dealing a demand should be in
writing and should at least be accompanied by a statement by the beneficiary that, and in
what respect, the principal is in default, and Article 20 so provides” (no original) (Introdução da Publicação nº 458 da CCI).
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pal e parte instrutora, que é um banco situado em seu próprio país (solicitação e instruções para emissão da garantia); parte instrutora e garantidor, que, no caso, é um banco situado no país do beneficiário (solicitação e instruções para emissão da garantia, de um lado e, de outro, prestação de contragarantia); e, por fim, entre garantidor e beneficiário (garantia propriamente dita).
As garantias podem ser de espécies distintas, utilizadas de variadas
formas. As espécies variam em razão da relação-base estabelecida entre
as partes, sendo elas:
Garantia de Execução – Conhecida como Performance
Guarantee; a Garantia de Execução tem por objeto, como já informa o
próprio nome, assegurar o cumprimento das obrigações assumidas por
uma das partes em contrato11. Pode acobertar todas as suas fases ou apenas a execução de parte, hipótese em que outras garantias podem ser emitidas posteriormente. Por exemplo, uma garantia pode ser emitida durante a fase de fabricação e outra abarcar a instalação e a manutenção. Seu
valor varia, usualmente, de 5% a 10% do montante econômico envolvido
no contrato principal, o que não impede as partes de acordarem valor mais
alto12;
Garantia de Licitação – Conhecida internacionalmente como Tender
Guarantee ou Bid Guarantee13; são utilizadas em concorrências públicas
ou privadas, para a compra de determinado produto ou a contratação de
serviços. Tais procedimentos são comumente utilizados por entes públicos
dos mais diversos países, com o escopo de escolher, dentre várias propostas aquela que melhor atenda a seus interesses;
Garantia de Reembolso – Em inglês, Advance Payment Guarantee
ou Repayment Guarantee; sua finalidade é garantir o reembolso das importâncias adiantadas ao contratado ou exportador para a realização do
serviço ou a produção da mercadoria objeto do contrato14;
11 Cf. BASSO, Maristela. Contratos internacionais do comércio: negociação – conclusão –
prática. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 247; BERTRAMS, 2001, p. 30;
GOODE, 1992, p. 13.
12 Cf. BERTRAMS, 2001, p. 31; BASSO, 1998, p. 247.
13 Cf. GOODE, 1992, p. 13; BASSO, 1998, p. 244.
14 Cf. BASSO, 1998, p. 248; BERTRAMS, 2001, p. 32; GOODE, 1992, p. 13.
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Garantia de Manutenção – Conhecida no comércio internacional
como Maintenance Guarantee ou Warranty Guarantee; predomina nos
contratos de construção e de compra e venda15, garantindo a manutenção
da obra ou da mercadoria;
Garantia de Retenção – Esta espécie de garantia, chamada nas transações internacionais de Retention Guarantee, muito se aproxima
conceitualmente da garantia de manutenção16. Ela é utilizada para contratos
de construção nos quais os pagamentos são implementados após a conclusão de cada estágio da obra constatada por certificados emitidos por engenheiros ou arquitetos. Na prática, após a conclusão de cada estágio, 5% a
10% do valor da parcela é retido para cobrir eventuais defeitos17. A garantia de retenção visa, justamente, permitir a liberação de tal percentual. Em
vez de reter valores, o contratante efetua o pagamento integral do preço nas
etapas diversas. Contudo, ocorre, em seu favor, a emissão de uma garantia, que será chamada em caso de defeitos18;
Garantia de Pagamento – A espécie em comento, como o próprio
nome informa, garante o pagamento a ser implementado por uma parte a
outra19. Esta modalidade costuma ser equiparada às cartas de crédito
standby, reguladas pela Publicação nº 590 da CCI (IPS98). Contudo, as
últimas podem ser utilizadas também como garantia de execução ou financeira20, ao passo que aquelas estão restritas ao pagamento.
15
16
17
18
Cf. BERTRAMS, 2001, p. 32; BASSO, 1998, p. 250; GOODE, 1992, p. 14.
Cf. BASSO, 1998, p. 251; BERTRAMS, 2001, p. 33; GOODE, 1998, p. 14.
Cf. BERTRAMS, 2001, p. 33.
De acordo com Roeland Bertrams, essa garantia é utilizada como instrumento financeiro e
tende a ser paga à primeira solicitação, isto é, por simples pedido do beneficiário,
desacompanhado de qualquer outro documento, o que significa a certeza de sua independência em relação ao contrato-base (BERTRAMS, 2001, p. 33.)
19 Pode substituir o crédito documentário, já que os dois, por suas características comuns,
não podem estar presentes concomitantemente. Assim, em vez de escolherem as partes o
mecanismo do crédito documentário, no qual o banco sempre interfere na operação, fazendo o pagamento mediante a apresentação dos documentos especificados, quem ficará
responsável por ele é a própria parte. Apenas no caso em que ela não o fizer, tornando-se
inadimplente, o banco, na qualidade de garantidor, interferirá para realizá-lo.
20 O artigo 1.01(a) da Publicação nº 590 assim dispõe: “Estas Regras aplicam-se às cartas de
crédito standby (e incluem as cartas de crédito standby de garantia de performance, as
cartas de crédito standby financeiras e as cartas de crédito standby para pagamento direto).”
(tradução nossa)
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As regras da Câmara de Comércio Internacional de Paris e as normas da Convenção da UNCITRAL prevêem três mecanismos de pagamento diversos para as garantias, independentemente da espécie utilizada:
Garantia à primeira solicitação – É a mais utilizada no comércio internacional por ser a mais favorável ao beneficiário21. Sua prestação decorre de simples pedido, às vezes acompanhado de declaração de que o
principal encontra-se inadimplente, com a descrição de tal inadimplência.
Esse mecanismo é previsto no artigo 20(a) da Publicação nº 458 da CCI.
Nenhuma prova dessa inadimplência do devedor é requerida, mesmo no
caso de exigência de apresentação da declaração, já que ela é de autoria
do próprio beneficiário, e o garantidor não irá conferir sua veracidade22.
O pagamento da garantia à primeira solicitação demonstra sua liquidez, por
ocorrer logo após o requerimento do beneficiário, desde que dentro do
prazo de validade;
Garantia mediante apresentação de documentos – Neste mecanismo de pagamento, o simples pedido do beneficiário não é suficiente para
o pagamento da garantia. Devem ser apresentados também documentos
que demonstrem a inadimplência do principal, cujo risco é diminuído23.
Não deve ser referida como garantia documentária, porque todos os mecanismos de pagamento são documentários, ou seja, exigem a apresentação de algum documento, ainda que mero pedido ou declaração do principal24. Também não deve ser distinguida por garantia condicional, tendo em
vista que o pagamento da garantia à primeira solicitação também pode ser
condicionado à apresentação de declaração do beneficiário de que o principal está inadimplente;
Garantia mediante apresentação de decisão judicial ou arbitral – Por
meio deste mecanismo, o beneficiário, para receber o pagamento da garantia, deve apresentar decisão judicial ou laudo arbitral que ateste a
inadimplência do principal na relação-base.25 A garantia deve prever se a
21 Assim entende Roeland Bertrams: “No comércio internacional, o pagamento à primeira
solicitação do beneficiário é provavelmente o tipo de mecanismo de pagamento prevalecente” (tradução nossa) (BERTRAMS, 2001, p. 40).
22 Cf. BERTRAMS, 2001, p. 40.
23 Cf. BERTRAMS. Op. cit., p. 44.
24 Cf. BERTRAMS. Loc. cit.
25 Cf. BERTRAMS, 2001, p. 47.
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decisão, judicial ou arbitral, deve ter transitado em julgado ou se pode ser
simples liminar.26
A independência da garantia em razão da relação-base é inequívoca quando estipulado o mecanismo de pagamento à primeira solicitação,
no qual basta o pedido do beneficiário, acompanhado de declaração de
sua autoria sobre a inadimplência do principal, para sua prestação. Entretanto, apesar da Publicação nº 458 da CCI e da Convenção da
UNCITRAL qualificarem indistintamente as garantias como independentes, nos outros mecanismos de pagamento pode haver questionamento sobre a independência, por se exigir do beneficiário demonstração da
inadimplência do principal, por meio de documentos ou de decisão judicial ou arbitral.
3
CONCLUSÃO
A conclusão à qual se chega após o estudo das garantias sob demanda é no sentido de que elas são independentes em qualquer hipótese,
pelos seguintes fundamentos:
a. impossibilidade do garantidor de invocar defesas decorrentes da
relação-base para deixar de efetuar o pagamento da garantia ao
beneficiário;
b. previsão no próprio instrumento da garantia de necessidade de
apresentação de documentos ou de decisão judicial ou arbitral, e não no
instrumento da relação-base;
c. autonomia entre todas as relações jurídicas que compõem o contrato de garantia.
Esta conclusão pode ser corroborada pelos seguintes aspectos relativos às garantias sob demanda:
1. deveres distintos das partes em cada relação jurídica que compõe
o contrato de garantia;
2. independência entre garantia e contragarantia, inclusive em relação à jurisdição e à lei aplicável;
26 Roeland Bertrams recorda que já houve decisões entendendo como suficiente uma medida
liminar para acarretar o pagamento da garantia, nos casos Paris, May 27 1991 e Rb Rotterdam,
October 28 1993. (BERTRAMS, 2001, p. 230).
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3. não descaracterização da independência por mera referência à
garantia no instrumento da relação-base;
4. período de validade da garantia não subordinado à relação-base;
5. possibilidade de transferência da garantia (alteração do beneficiário da garantia, com a manutenção das partes da relação-base);
6. inexistência de conexão entre o montante pagável na garantia e os
prejuízos suportados pelo beneficiário na relação-base;
7. necessidade de previsão de cláusula de redução no instrumento
da própria garantia para sua efetividade.
Portanto, as garantias sob demanda são sempre independentes, não
obstante o mecanismo de pagamento utilizado, ou seja, mesmo aquelas pagáveis mediante apresentação de documentos ou de decisão judicial ou arbitral.
4
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O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DE
CLÁUSULAS COMPROMISSÓRIAS E DE LAUDOS
ARBITRAIS ESTRANGEIROS NO BRASIL
BERNARDO PRADO DA CAMARA
Sumário
1. Introdução. 2. A arbitragem internacional. 3. Da autonomia e da validade da cláusula arbitral. 4. Do procedimento arbitral. 5. Reconhecimento e execução dos laudos arbitrais estrangeiros no Brasil. 6. Conclusão. 7.
Referências bibliográficas.
Resumo
Fruto de desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário, a arbitragem
internacional é universalmente reconhecida, em decorrência das diversas
vantagens que lhe são inerentes, como a melhor alternativa disponível às
partes para afastar do Poder Judiciário a responsabilidade pela adjudicação de litígios entre empresas localizadas em diferentes jurisdições.
A inserção, por meio do Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 2002,
da Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e a Execução de
Laudos Arbitrais Estrangeiros, no ordenamento jurídico brasileiro, trouxe
muitas inovações no que se refere aos efeitos dessa modalidade de arbitragem em nível nacional.
A referida convenção, em vigor desde 1958, contudo, não se refere
apenas à eficácia dos laudos arbitrais internacionais; ela também estabelece as regras e condições relativas à execução da própria cláusula arbitral
inserida no contrato celebrado entre as partes.
Diante disso, e para que a responsabilidade pela adjudicação da
controvérsia seja validamente transferida aos árbitros, bem como no intuito
de se conferir certeza, segurança e previsibilidade às relações comerciais
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BERNARDO PRADO DA CAMARA
entre pessoas jurídicas de diferentes nacionalidades, as exigências e formalidades legais devem ser estritamente obedecidas.
O objetivo do presente trabalho, dessa forma, é descrever e explicar
as exigências relativas ao reconhecimento e à execução de cláusulas e laudos arbitrais estrangeiros no Brasil.
Abstract
Born as a result of jurisprudential and doctrinal development,
international arbitration is universally recognized, pursuant to the diverse
adventages inherent to it, as the best alternative available to the parties in
order to move away from the Judiciary Power the responsilility of adjudicating
controversies between companies located in different jurisdictions.
The insertion, through the Decree n. 4,311 of 23 dr July of 2002, of
the New York Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign
Arbitral Awards, in the Brazilian legal system, brought many innovations
with regars to the effects of such an arbitration in the national level.
This Convention, in force since 1958, however, is not effective only
to international arbitral awards. It also establishes the rules and conditions
regarding the enforcement of the arbitration clause inserted in the contract
celebrated between the parties.
Ahead of this, and in order to confirm the responsibility for adjudicating
the controversy upon the arbitrators, as well as with the objective of improving
the degree of certainty, security and predictability to the commercial relations
between legal entities of different nationalities, the requirements and
formalities must be strictly obeyed.
The objective of the present paper, in such a way, will be to describe
and to explain the necessary requirements related to the recognition and the
execution of arbitration clauses and foreign arbitral awards in Brazil.
1
INTRODUÇÃO
Conforme reconhecido por inúmeros filósofos e doutrinadores da
ciência jurídica, a arbitragem é o meio mais utilizado para a solução de
controvérsias fora da esfera do Poder Judiciário1. Diante disso, e princi1
DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito internacional privado: arbitragem comercial internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 19.
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palmente em decorrência da necessidade de se adaptar o direito nacional e
internacional privado a essa nova realidade, os Estados estão aperfeiçoando suas legislações arbitrais por meio da utilização de regras desenvolvidas
por instituições especializadas, com atuação em nível global.
Trata-se, inclusive, de uma iniciativa louvável. Isso ocorre porque os
países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, não podem prescindir de
políticas que favoreçam o empreendedorismo e fomentem o desenvolvimento econômico. Assim, a necessidade de inserir no ordenamento jurídico nacional as regras e princípios que conferem certeza, segurança e
previsibilidade às relações comerciais entre pessoas jurídicas de diferentes
nacionalidades foi um dos principais fatores que levaram os nossos representantes a adotar a Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e
a Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros de 1958 (Decreto n° 4.311/
02), responsável por preencher as lacunas da atual Lei de Arbitragem brasileira (Lei n° 9.307/96), omissa no que se refere à grande parte das peculiaridades que envolvem a arbitragem internacional2.
A Convenção de Nova York, contudo, não se refere apenas à eficácia dos laudos arbitrais internacionais3. Conforme será devidamente exposto a seguir, ela também prevê, em seu artigo II, as regras relativas à
execução da própria cláusula arbitral inserida no contrato celebrado entre
as partes.
2
A ARBITRAGEM INTERNACIONAL
Segundo a lição de Irineu Strenger,
o termo “arbitragem”, tout court, pode ter ampla extensão. A arbitragem abrange, como sistema de solução de pendências, desde
pequenos litígios pessoais até as grandes controvérsias empresariais
ou estatais, em todos os planos do Direito, que expressamente não
estejam excluídos pela legislação.4
2
3
4
PINTO, José Emilio Nunes. A arbitragem no Brasil e a Convenção de New York de 1958.
Questões relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, nº 61, jan. 2003. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3650>. Acesso em: 20 set. 2006.
DOLINGER. Op. cit., p. 71.
STRENGER, Irineu. Contratos internacionais do comércio. 4.ed. São Paulo: LTr Editora,
2003, p. 232.
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Diante disso, e para que a responsabilidade pela adjudicação da
controvérsia entre pessoas, naturais ou jurídicas e de diferentes nacionalidades seja validamente transferida aos árbitros, as exigências e formalidades legais devem ser estritamente obedecidas.
A definição do caráter “estrangeiro” do laudo que já foi ou que virá a
ser proferido, dessa forma, é a primeira formalidade a ser verificada pelo
operador do direito para confirmar, ou não, a aplicabilidade da Convenção
de Nova York.
De acordo com o artigo I da Convenção, serão laudos arbitrais estrangeiros aqueles proferidos no território de um Estado que não aquele em
que se tencione o seu reconhecimento e a sua execução. Ela será aplicável,
igualmente, a laudos arbitrais não considerados domésticos no Estado em
que se vislumbre o seu reconhecimento e a sua execução. No que se refere
ao direito brasileiro, e de acordo com o parágrafo único do artigo 34 de
nossa Lei de Arbitragem, considerar-se-á sentença arbitral estrangeira a
que tenha sido proferida fora do território nacional.
Cumpre esclarecer, entretanto, que definir a natureza da arbitragem
apenas levando em consideração o local em que o laudo foi proferido não
é a forma mais adequada.
Conforme ensina José Emílio Nunes Pinto:
Internacional será a arbitragem em que estejam envolvidas partes
nacionais e estrangeiras, mas não necessariamente será estrangeiro o laudo proferido em qualquer dessas arbitragens. Isso somente ocorrerá caso o laudo seja proferido fora do território
nacional. Assim sendo, podemos imaginar duas arbitragens internacionais envolvendo as mesmas partes – uma delas domiciliada
no Brasil e outra, no exterior. Numa delas, o local de arbitragem
se situa fora do território brasileiro e na outra, no Brasil. No primeiro caso, teremos um laudo proferido no local da arbitragem e,
conseqüentemente, um laudo arbitral estrangeiro, ao passo que
na outra, proferido em território brasileiro, o laudo arbitral será
considerado não estrangeiro. Portanto, duas arbitragens internacionais com laudos arbitrais de nacionalidades distintas. No caso
da arbitragem em que se convencionou ser o Brasil o local da
arbitragem, não se poderá dizer que, a despeito da existência de
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O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DE CLÁUSULAS COMPROMISSÓRIAS ...
um laudo não estrangeiro, a arbitragem será tida como nacional
ou doméstica.5 (grifo nosso)
Assim, pode-se verificar que o laudo passível de reconhecimento e
execução de acordo com a Convenção de Nova York será, apenas e tãosomente, aquele proferido no exterior. Quanto ao segundo laudo, em que
pese seu caráter internacional, ele será considerado não estrangeiro. Dessa
forma, mesmo não sendo decorrente de arbitragem doméstica, ele estará
sujeito às regras aplicáveis à execução dos laudos arbitrais nacionais, ou
seja, de acordo com as disposições propostas pela Lei de Arbitragem
brasileira.
Já no que se refere ao mérito e conteúdo da disputa, as partes devem levar em consideração o disposto no item 1 do artigo II da Convenção, que prevê a existência de um relacionamento jurídico definido, contratual
ou não, com relação a uma matéria passível de solução mediante arbitragem.
Como, entretanto, a Convenção de Nova York é omissa no que se
refere ao conteúdo da disputa, as partes deverão verificar o disposto no
artigo 1º da Lei de Arbitragem. De acordo com ele, as pessoas capazes de
contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a
direitos patrimoniais disponíveis6.
3
DA AUTONOMIA E DA VALIDADE DA CLÁUSULA
ARBITRAL
Além de regular o procedimento relativo ao reconhecimento e à execução de laudos arbitrais estrangeiros, a Convenção de Nova York também se refere à exeqüibilidade da cláusula arbitral, ou compromissória.
Segundo conceito de Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme:
(...) cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os
litígios eventualmente derivados do contrato. É, pois, cláusula com-
5
6
PINTO. Op. cit.
BENEDETTI JUNIOR, Lidio Francisco. Da convenção de arbitragem e seus efeitos. Jus
Navigandi, Teresina, ano 7, n° 64, abr. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
doutrina/texto.asp?id=3951>. Acesso em: 20 set. 2006.
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promisso, necessariamente escrita, ainda que de forma de pacto
adjeto, e dela não poderá a parte fugir em função da conhecida construção do nosso direito tradicional, traduzida no axioma: pacta sunt
servanda. 7
Referidos atributos foram, inclusive, consagrados pela própria Convenção de Nova York. Isso acontece porque, de acordo com o artigo II
desse diploma legal, os países signatários deverão reconhecer o acordo
escrito pelo qual as partes se comprometem a submeter à arbitragem todas
as divergências que tenham surgido ou que possam vir a surgir entre elas no
que diz respeito a um relacionamento jurídico definido, contratual ou não,
com relação a uma matéria passível de solução mediante arbitragem.
Insta ressaltar, na oportunidade, que conforme prevê a Lei de Arbitragem brasileira, a cláusula compromissória é autônoma em relação ao
contrato em que está inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica,
necessariamente, a nulidade da primeira. Diante disso, para que seja válida
e exeqüível de acordo com a Convenção de Nova York, a cláusula arbitral
deve estar presente no acordo celebrado entre as partes ou, na eventualidade de sua ausência, estar contida na troca de cartas ou telegramas efetuada por elas.
A definição do que vem a ser uma cláusula arbitral, portanto, é muito
importante, já que a Convenção de Nova York também será o instrumento
hábil a confirmar a exeqüibilidade de um compromisso arbitral, elaborado
após a conclusão do contrato. Este, por sua vez, deve ser entendido como
a convenção bilateral, judicial ou extrajudicial, pela qual as partes renunciam à jurisdição estatal e se obrigam a se submeter à decisão proferida por
árbitros por elas indicados ou, ainda, como o mecanismo de que se valem
os interessados para, de comum acordo, atribuírem ao árbitro a competência para adjudicar os conflitos e pendências existentes entre eles.
Deve-se considerar, inclusive, que a deficiência na redação de uma
cláusula compromissória, responsável por conferir-lhe o status de cláusula
“vazia”, pode provocar a elaboração de um compromisso arbitral8. Isso acon7
8
GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Distinção entre cláusula compromissória
e compromisso arbitral. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, nº 58, ago. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3090>. Acesso em: 20 set. 2006
PINTO, José Emílio Nunes. A cláusula compromissória à luz do Código Civil. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, nº 518, dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=6025>. Acesso em: 20 set. 2006.
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tece, por exemplo, quando a cláusula arbitral não define o número de árbitros, a legislação aplicável ao mérito do litígio e se a arbitragem será conduzida
de acordo com as regras de alguma instituição arbitral específica ou se é ad
hoc, entre outras características. Nessa situação, a própria Convenção de
Nova York prevê que o Poder Judiciário do Estado signatário, quando de
posse de ação sobre os efeitos da cláusula arbitral e a pedido de uma das
partes, encaminhar-lhes-á a arbitragem, a menos que constate que o acordo
celebrado é nulo, inoperante ou inexeqüível. Nessa situação, estaremos diante de um compromisso arbitral judicial, responsável por suprir as deficiências
e preencher as lacunas de uma cláusula arbitral “vazia”.
4
DO PROCEDIMENTO ARBITRAL
No que se refere à arbitragem internacional, assim como ocorre em
qualquer procedimento em trâmite perante a justiça comum, a justiça federal ou a justiça especializada do trabalho, as partes, bem como os árbitros,
devem respeitar os princípios da isonomia, da ampla defesa e do contraditório, sob pena de tornar o laudo ineficaz de acordo com a Convenção de
Nova York.
Já em relação à lei aplicável ao mérito da disputa, a regra aceita
universalmente é a de que as partes têm liberdade para escolher a lei a ser
aplicada pelos árbitros para sua respectiva solução. Entretanto, quando as
partes não a tiverem escolhido, os árbitros devem se basear nas normas de
diferentes instituições que administram arbitragens nacionais e internacionais9.
Quando a arbitragem for ad hoc, contudo, a escolha dessa lei ficará a
cargo dos próprios árbitros ou do representante do Poder Judiciário.
Adicionalmente, todas as convenções e leis que tratam da arbitragem internacional permitem às partes indicar a aplicação da ex aequo e
bono, ou seja, da eqüidade. Elas podem, portanto, inserir na cláusula arbitral
que “os árbitros irão julgar com base no contrato e na justiça, sem aplicar
qualquer lei nacional”. É possível, ainda, que os árbitros apliquem a lex
mercatoria, incluindo os usos e costumes comerciais comuns à relação
jurídica estabelecida entre as partes10.
9 DOLINGER. Op. cit., p. 75.
10 Idem.
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Pode ocorrer, também, como as partes são livres para escolher a lei
aplicável ao litígio, que essa não possua nenhum vínculo com o local da arbitragem e com a nacionalidade das partes. E mais! Existe a possibilidade de
a lei aplicável ao mérito não estar claramente expressa no contrato, mas revelada de forma indireta. Quando isso ocorrer, a jurisprudência demonstra
que a escolha do lugar onde o processo arbitral deverá ocorrer indica implicitamente que as partes optaram pela aplicação da lei desse país.
O ideal, dessa forma, é elaborar uma cláusula compromissória que
contenha normas sobre o local, o idioma dos trabalhos, o número de árbitros, a legislação aplicável ao mérito e, finalmente, se a arbitragem será
conduzida por uma instituição arbitral ou se ela será ad hoc, que pode ser
definida como:
An ad hoc arbitration is one which is conducted pursuant to rules
agreed by the parties themselves or laid down by the arbitral
tribunal. Parties are free to work out and establish rules of
procedure for themselves, so long as these rules treat the parties
with equality and allow each party a reasonable opportunity of
presenting its case. Alternatively, and more usually, the relevant
arbitration clause will provide for the arbitration to be conducted
according to an established set of rules, such as the UNCITRAL
Arbitration Rules.11
Como conseqüência, a arbitragem ad hoc é aquela cujas regras são
definidas pelas próprias partes para atender às exigências decorrentes de
um litígio específico e excessivamente complexo, proveniente de um contrato celebrado entre elas. Em geral, é estipulada mediante a elaboração de
um compromisso arbitral, anterior ou posterior ao surgimento do litígio.
11 “Uma arbitragem ad hoc é aquela que é conduzida de acordo com regras definidas pelas
próprias partes ou determinadas pelo tribunal arbitral. As partes estão livres para desenvolver e estabelecer regras de procedimento aplicáveis a elas mesmas, desde que estas
regras tratem as partes com igualdade e lhes concedam uma oportunidade razoável para
apresentar seus argumentos. Alternativamente, e de forma usual, a cláusula arbitral relevante irá determinar que a arbitragem seja conduzida de acordo com um conjunto de regras
estabelecidas, como as Regras de Arbitragem da UNCITRAL.” (REDFERN, Alan;
HUNTER, Martin. Law and practice of international commercial arbitration. 4.ed. Londres: Sweet and Maxwell, 2004, p. 55)
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5
RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DOS LAUDOS
ARBITRAIS ESTRANGEIROS NO BRASIL
Após apresentarmos as peculiaridades da cláusula compromissória
e do compromisso arbitral, bem como as características fundamentais de
um laudo arbitral estrangeiro, ambos passíveis de reconhecimento e execução de acordo com a Convenção de Nova York, passamos a descrever as
normas que devem ser obedecidas para que a decisão dos árbitros possa
surtir efeitos no país onde o reconhecimento e a execução são tencionados.
Cumpre-nos esclarecer, contudo, as eventuais dúvidas acerca dessas duas hipóteses, de acordo com referido diploma legal.
Em primeiro lugar, e quanto ao “reconhecimento” de um laudo arbitral
estrangeiro, trata-se de um procedimento utilizável pela parte interessada
quando essa se encontra diante de uma eventual decisão e/ou ação judicial
em trâmite em algum Estado signatário que não seja aquele onde a execução desse laudo é vislumbrada.
Assim, pode-se concluir que o reconhecimento deve ser compreendido como uma defesa processual pertinente às pessoas físicas ou jurídicas
beneficiadas por uma decisão arbitral proferida no exterior. No que se refere ao Brasil, portanto, a partir do momento em que a parte derrotada
ingressa em juízo com base nos mesmos fundamentos que deram origem à
disputa extrajudicial, o juiz poderá indeferir, de plano, a sua pretensão,
tendo em vista a existência do laudo proferido pelos árbitros.
A finalidade da “execução” de um laudo arbitral estrangeiro, todavia,
é diferente. Ela se refere a um procedimento de índole ativa, e não reativa,
tal como ocorre na primeira hipótese.
Dessa forma, quando a parte vencedora do procedimento arbitral
decide ingressar em juízo no Brasil, requerendo a execução da decisão,
seja por meio do pagamento de uma soma em dinheiro, seja por meio do
arresto de bens do devedor, em virtude da existência de ativos de sua
propriedade no território nacional, o juiz deverá deferir o seu pedido. A
referida parte deve, porém, utilizar-se dos procedimentos legais pertinentes, de forma a legitimar a atuação do representante do Poder Judiciário.
Deve-se salientar, em tempo, que o princípio geral da Convenção de
Nova York, de acordo com seu artigo III, é o de que cada país signatário
reconhecerá a decisão como vinculante e, conseqüentemente, o executará
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de acordo com as suas regras de processo12. Ao reconhecimento ou execução dos laudos arbitrais a que se apliquem a Convenção, entretanto, não
serão impostas substancialmente condições mais onerosas ou custas ou
encargos maiores que os impostos quando do reconhecimento ou execução dos laudos arbitrais nacionais.
A questão relativa à necessidade, ou não, de se homologar o laudo
arbitral perante o Superior Tribunal de Justiça é a mais delicada e merece
cuidado especial.
Existem autores, por exemplo, que consideram a atuação do STJ,
quanto a homologar o laudo arbitral, legalmente dispensável. O nosso entendimento, contudo, é contrário a essa posição.
Conforme se depreende do texto da Convenção, esta estabelece as
condições procedimentais segundo as quais o reconhecimento ou execução
de laudos arbitrais estará subordinado, isto é, os Estados contratantes estão livres para criar o seu próprio procedimento executivo, de acordo com
as leis domésticas, mas os seus órgãos judiciais competentes estarão adstritos
às condições contidas nos artigos IV, V e VI. Assim, quanto aos dois últimos, estes se referem às hipóteses de recusa para se reconhecer ou executar laudos arbitrais estrangeiros.
Nesse diapasão, e após explicarmos as diferenças entre procedimentos e condições para a execução de reconhecimento de laudos arbitrais
estrangeiros, importante observar que a própria Convenção determina que
a eles não serão impostas condições substancialmente mais onerosas, custas ou encargos maiores que os impostos quando do reconhecimento ou
execução dos laudos arbitrais nacionais.
Dessa forma, a lição proferida por José Emílio Nunes Pinto é conclusiva sobre o assunto, apesar de elaborada na época em que a homologação de laudos arbitrais estrangeiros ainda era de responsabilidade do
Supremo Tribunal Federal:
(...) entendemos inexistir fundamento na afirmação de que a exigência de homologação dos laudos arbitrais estrangeiros pelo Supremo
Tribunal Federal seria dispensável por atentar contra a letra e o espírito da Convenção de New York. Essa exigência se enquadra na
12 DOLINGER. Op. cit., p. 81.
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liberdade conferida aos Estados Contratantes para determinar procedimento de acordo com sua legislação interna. Negar esse direito
aos Estados Contratantes é transformar a linguagem da Convenção
em letra morta. Certo é que, no decorrer do juízo de delibação do
Supremo Tribunal Federal, deverá ele levar em conta as condições
previstas na Convenção e que, na realidade, se encontram dispostas
nos artigos 37, 38 e 39 da Lei de Arbitragem.13
Assim, de acordo com o artigo IV da Convenção, a parte que solicitar o reconhecimento e a execução do laudo arbitral estrangeiro deverá
fornecer, perante o STJ e no intuito de obter a sua homologação, a decisão
autenticada pelo consulado brasileiro ou uma cópia, devidamente certificada, além do acordo original que contém a cláusula compromissória, o compromisso arbitral ou cópias legalizadas perante a autoridade competente.
Caso essa decisão ou esse acordo não tenha sido feito em idioma
oficial do país no qual a homologação é invocada, seja por meio do reconhecimento de seu caráter vinculante, seja por meio de sua execução propriamente dita, a parte vencedora deverá produzir uma tradução desses
documentos para o idioma local. Essa tradução será certificada por um
tradutor oficial ou juramentado, ou por um agente diplomático.
É de se concluir, por conseguinte, e conforme previsão da própria
Lei de Arbitragem, que a homologação de sentença estrangeira seguirá as
mesmas regras do Código de Processo Civil e do Regimento Interno do
STJ relativas à homologação de sentença estrangeira.
Nesse sentido, e ainda de acordo com a Convenção de Nova York,
uma sentença arbitral estrangeira não será homologada pelo STJ apenas e
tão-somente se as partes na convenção de arbitragem forem incapazes; a
convenção de arbitragem não for válida segundo a lei à qual as partes a
submeteram ou, na falta de indicação, em virtude da lei do país onde a
sentença arbitral tiver sido proferida; a parte contra qual se invoca a sentença arbitral não tiver sido notificada da designação do árbitro ou do procedimento de arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando a ampla defesa; a sentença arbitral tiver sido proferida
fora dos limites da convenção de arbitragem e não foi possível separar a
13 PINTO. Op. cit., 2003.
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parte excedente daquela submetida à arbitragem; a instituição da arbitragem não estiver de acordo com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória; a sentença arbitral não tiver se tornado obrigatória para as partes,
tiver sido anulada, ou, ainda, tiver sido suspensa por órgão judicial do país
onde a sentença arbitral for prolatada; segundo a lei brasileira, o objeto do
litígio não for suscetível de ser resolvido pela arbitragem; e quando a decisão ofender a ordem pública nacional.
Após a homologação pelo STJ, o laudo arbitral estrangeiro assumirá
a condição de título executivo judicial.
6
CONCLUSÃO
Fruto de desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário, a arbitragem
internacional é universalmente reconhecida, em decorrência das diversas
vantagens que lhe são inerentes, como a melhor alternativa disponível às
partes para afastar do Poder Judiciário a responsabilidade pela adjudicação da controvérsia.
Esse sistema é, conforme demonstram inúmeras decisões nacionais
e internacionais, mais célere, relativamente mais barato e, com certeza, mais
justo, visto que decorre da atuação de árbitros, escolhidos pelos próprios
litigantes, que possuem um conhecimento técnico bastante avançado sobre
o problema debatido.
De acordo com a lição de Mário Luiz Elia Junior:
(...) a arbitragem surge para desafogar o Judiciário e, ao mesmo
tempo, permite às partes a utilização de um meio alternativo de solução de controvérsias, fugindo-se da demora dos conflitos instaurados no Poder Judiciário e dos milhares tipos de recursos e graus
recursais existentes em nosso sistema.14
Para que a decisão proferida pelos árbitros seja eficaz, contudo, ela
deve obedecer às regras da Convenção de Nova York para o Reconhecimento e a Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros (1958).
14 ELIA JUNIOR, Mário Luiz. Arbitragem como foro de solução de controvérsias internacionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 1117, 23 jul. 2006. Disponível em: <http://
jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8680>. Acesso em: 25 set. 2006.
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A adoção de referido diploma legal por parte do Brasil, portanto,
consagrou a tendência global de se positivar as regras utilizadas em nível
global, no sentido de aumentar a certeza, a segurança e a previsibilidade
das relações jurídicas internacionais.
Como o laudo arbitral que seguir as orientações da Convenção de
Nova York será irrecorrível e definitivo quanto ao conteúdo da controvérsia, entendemos que os benefícios trazidos pela arbitragem internacional
não devem ser ignorados.
Assim, e considerando que a viabilização da arbitragem não depende apenas da elaboração de regras abstratas, torna-se necessário explicar
como devem ser interpretados referidos dispositivos legais. O presente trabalho pretendeu, dessa forma, estudar as principais características relativas
à arbitragem, incluindo o conceito de cláusula compromissória e compromisso arbitral, o procedimento a ser seguido para que a controvérsia seja
validamente solucionada e, por último, a explicação do procedimento para
homologação do laudo arbitral estrangeiro, por parte do Superior Tribunal
de Justiça, pressupostos para seu reconhecimento ou sua execução de acordo com a Convenção de Nova York.
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEDETTI JUNIOR, Lidio Francisco. Da convenção de arbitragem e
seus efeitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n° 64, abr. 2003. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3951>. Acesso em: 20
set. 2006.
DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito internacional privado: arbitragem comercial internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
ELIA JUNIOR, Mário Luiz. Arbitragem como foro de solução de controvérsias internacionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 1117, 23 jul.
2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8680>.
Acesso em: 25 set. 2006.
GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Distinção entre cláusula compromissória e compromisso arbitral. Jus Navigandi, Teresina, ano
6, nº 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=3090>. Acesso em: 20 set. 2006
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PINTO, José Emilio Nunes. A arbitragem no Brasil e a Convenção de
New York de 1958. Questões relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7,
nº 61, jan. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=3650>. Acesso em: 20 set. 2006.
PINTO, José Emilio Nunes. A cláusula compromissória à luz do Código
Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 518, dez. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6025>. Acesso em: 20 set.
2006.
REDFERN, Alan; HUNTER, Martin. Law and practice of international
commercial arbitration. 4.ed. Londres: Sweet and Maxwell, 2004.
STRENGER, Irineu. Contratos internacionais do comércio. 4.ed. São
Paulo: LTr, 2003.
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A LESÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
E O EQUILÍBRIO SUBJETIVO DAS PARTES
CRISTIANO RENNÓ SOMMER
Sumário
1. Introdução. 2. Da lesão. 3. Referências bibliográficas.
Resumo
O instituto da lesão, vício do negócio jurídico, na forma como adotado
pelo Código Civil de 2002, visa proteger as partes de se obrigarem a cumprir
prestações acentuadamente desproporcionais que, em função da falta de
discernimento ou da necessidade momentânea de uma das partes, resulte em
um distanciamento entre a vontade interna e a vontade declarada. O Código
Civil de 1916 era incompatível com tal instituto, considerando a influência do
liberalismo acentuado do Código Napoleônico, não permitia que o Estado
ultrapassasse o controle formal ou objetivo do negócio jurídico. O vício da
lesão, apesar de historicamente ser configurado por meio da constatação de
desproporções de cunho meramente objetivo, ou seja, considerando-se apenas a desproporção acentuada das prestações, o Código Civil atual sequer
menciona um percentual para sua constatação, ao contrário das origens românicas. A inclusão da lesão no novo Código Civil entre os vícios do negócio
jurídico só foi possível em face da nova concepção do contrato, que elevou a
pessoa natural a um patamar mais importante que o negócio em si, amparado
pelos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, tornando tal instituto uma questão de ordem pública.
PALAVRAS-CHAVE: lesão; equilíbrio subjetivo; relações obrigacionais.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 75-86
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CRISTIANO RENNÓ SOMMER
Abstract
The institution of injury, vice of legal transactions, in the form as adopted
by the Civil Code of 2002 aims to protect the parties that bind themselves to
execute distinctly disproportionate payments which, owing to the lack of
discretion or momentary necessity, causes a divergence between internal will
and expressed will. The Civil Code of 1916 was incompatible with such institute,
considering the influence of the accented liberalism of the Napoleonic Code,
which did not allow that the state exceeded the formal or objective control of
the legal transaction. Although historically injury has been shaped through the
verification of merely objective disproportions of meaning; in other words,
considering only the distinct disproportion of payments, the present Civil Code
does not even mention any percentage to be substantiated in the injury, unlike
the Roman origins of this study. The inclusion of injury in the new Civil Code
was only possible due to a new concept of contracts that would elevate the
person to a threshold of greater importance than the transaction itself which,
supported by the principles of objective good faith and the social power of
contract, would transform such an institution into a matter of public order.
KEYWORDS: injury; subjective balance; obligational relations.
1
INTRODUÇÃO
Apesar de a lesão, em sua trajetória histórica, sempre ter enfocado o
desequilíbrio percentual das prestações, o atual código, não desprezando
esse elemento objetivo, destacou também o desequilíbrio subjetivo das partes nos contratos maculados por tal vício do negócio jurídico.
A lesão, como um dos “novos” institutos que compõem os vícios do
consentimento, pode ser encarada como uma conseqüência da nova concepção das relações obrigacionais surgidas com o atual Código Civil, uma
vez que a concepção clássica adotava de modo extremo o princípio da autonomia da vontade e, com esse princípio, a lesão não se coadunava.
A reunião de outros princípios de direito contratual com o dogma da
autonomia da vontade fez nascer uma nova era das relações contratuais,
permitindo ao Estado ultrapassar a fiscalização do aspecto formal do contrato, preservando, dessa forma, a boa-fé objetiva e a função social em tais
relações, resultando na era da autonomia privada.
Para que possamos entender melhor tal evolução e como chegamos à
presente fase dos negócios jurídicos, é de bom alvitre uma breve retrospectiva histórica.
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A LESÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E O EQUILÍBRIO SUBJETIVO ...
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DA LESÃO
Em tempos remotos, muitos dos conflitos envolvendo negócios privados eram solucionados conforme a autotutela, ou seja, pela lei do mais
forte, uma vez que não havia a figura de um Estado imparcial e eqüidistante
das partes para que, mediante força judicante, fossem sopesadas as razões
e solucionados os litígios de maneira justa.
Tais disputas, obviamente, não realizavam a justiça, muito menos o direito, na medida em que o equilíbrio das relações sociais e jurídicas só se verificava ocasionalmente, sendo regra a imposição da vontade por meios coercitivos,
não apenas no aspecto moral ou psicológico mas também, e principalmente, no
aspecto físico, uma vez que a parte dotada de maior força física era a que, em
geral, tinha vantagem em tais conflitos.
Nesse sentir, a vontade era praticamente inexistente, portanto, nem se
falava em relação contratual, uma vez que não havia emissão livre de vontades
bilaterais e concordantes tanto na prestação de uma parte quanto na
contraprestação da outra.
Na medida em que se impõe pela força a vontade única de uma das
partes, o acordo de vontades desaparece e, com ele, vai-se o próprio
contrato e a relação negocial.
Nesse sentido, sobre a imposição da força nas relações jurídico-sociais:
O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se
não transforma essa força em direito e a obediência em dever. Daí
o direito do mais forte, direito tomado ironicamente na aparência e
realmente estabelecido em princípio. Mas explicar-nos-ão um dia
esta palavra? A força é uma potência física; não vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui um ato de necessidade, não de vontade; é no máximo um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever?
[...] Convenhamos, pois, que força não faz direito, e que não se é
obrigado a obedecer senão às autoridades legítimas (ROUSSEAU,
1996, p. 12) (grifo nosso).
Para que houvesse a livre expressão da vontade individual, seria necessário que as escolhas feitas pelas partes fossem isentas de quaisquer
influências causadas por fatores externos que pudessem desvirtuar a decisão de uma parte, que deveria poder escolher de forma livre se queria
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contratar e com qual extensão de direitos e obrigações decorrentes do
pacto firmado.
Quando a escolha de uma parte é imposta pela ameaça, coação ou
qualquer outro tipo de expediente que influa na decisão da outra parte, não
há que se falar em ato de vontade, mas em ato de puro conformismo.
Com o passar dos tempos, as pessoas desprovidas de postura física
e postura moral sólidas começaram a perceber a possibilidade de deixar o
isolamento que as faziam vulneráveis para se tornarem fortes por meio da
união com pessoas que tinham interesses semelhantes aos seus, no intento
de encontrar a almejada paz e a segurança social.
Tal reunião de forças, sem dúvida, foi um passo e tanto na direção ao
equilíbrio individual das vontades das partes, uma vez que o uso da força
física, como instrumento de solução de conflitos, tornava-se bem menos
freqüente no âmbito das relações entre os “associados” de um mesmo grupo. Entretanto, tais associações só tinham o condão de garantir aos seus
participantes um convívio social longe dos abusos da força física. Subjetivamente, esses participantes permaneciam desprotegidos diante das desigualdades de cunho social, moral, psicológico, entre outros. Isso porque,
em qualquer sociedade, sempre houve disparidades entre seus membros,
seja em função do poder econômico ou hierárquico, seja em função da
capacidade de discernimento que, de certa forma, faz perdurar os resquícios da lei do mais forte até os dias de hoje.
Tal comportamento social na Europa medieval deu início a um novo
modelo econômico. Nesse modelo, homens livres se voltavam para o cultivo da terra sob a proteção de senhores feudais, dentro dos limites geográficos dessas propriedades.
Daí as origens do feudalismo, que se consubstanciou no movimento
de libertação dos antigos escravos romanos associado à subseqüente submissão dos camponeses bárbaros à nobreza, levando ao estabelecimento
do sistema feudal, em que pequenos produtores trabalhavam nos domínios
dos senhores feudais.
Mesmo que as regras e os costumes internos dos feudos fossem
iguais para todos, havia a imposição moral e psicológica de certas pessoas
sobre outras mais fracas, impedindo que as prestações firmadas contratualmente pudessem atingir um nível de equilíbrio perto do desejado.
Ainda assim, a segurança jurídica dos vassalos nos feudos, no tocante às obrigações assumidas, já havia avançado em comparação ao isolamento em que viviam em épocas passadas.
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No entanto, em que pese ter sido minimizada a insegurança jurídica
dentro dos feudos, no que toca às relações com outros grupos, tal insegurança ainda existia, em face da fragmentação do direito decorrente do isolamento de um grupo feudal em relação a outro.
Surgiu, assim, a necessidade de normas que obrigassem todos os
indivíduos de maneira uniforme, o que levaria a outra fase da evolução dos
negócios privados.
Conforme ressalta Van Caenegem (1999, p. 5), “Era necessário dar
um fim à incerteza jurídica reinante através do uso, na prática jurídica, de
códigos universalmente válidos”, mostrando a tendência, naquela época,
de unificação das regras.
Na França, o direito natural apresentou-se como o melhor caminho
para suprir essa falta de normas que regessem todo um país e aumentasse
a segurança dos relacionamentos, na medida em que seria um direito que
estaria acima da vontade dos homens e que, por isso, seria comum a todos,
traduzindo-se em regras que eram emanadas da própria natureza e, portanto, incontestáveis.
Pouco após o surgimento dos ideais liberalistas do direito natural, foi
promulgado o Code Civile de 1804, que marcou o final do jusnaturalismo
na França.
A experiência francesa de unificação de suas leis foi seguida pela
Alemanha (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB, de 1850) e por outros países europeus que viram a imprescindibilidade de tal providência.
Diante do cenário de prosperidade econômica e depois de séculos
de incerteza jurídica, com o advento do Code Civile as relações contratuais
passaram a ter poder vinculante nas obrigações das partes, baseado no
princípio do pacta sunt servanda que, para o Estado, a validade dos contratos se resumia, simplesmente, na presença da livre manifestação da vontade (entendendo-se essa como a vontade objetiva ou declarada), objeto
lícito e forma prescrita ou não defesa em lei, seguindo exatamente a tendência liberalista da época.
Entendia-se que, para que uma economia pudesse desenvolver-se
com prosperidade, a lei deveria valorizar, sobretudo, a segurança jurídica,
colocando o Estado em posição de garantidor da regularidade formal e
puramente objetiva do contrato e obstruindo qualquer intervenção na vontade declarada das partes, como conseqüência de séculos de imposição
coercitiva das vontades.
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O Código Civil de Clóvis Bevilacqua, tal como o Código de
Napoleão, era sorvido dessa característica individualista, resultado da concepção político-filosófica preponderante após o sucesso da Revolução
Francesa.
Em vista de tal evolução, fica mais fácil visualizar a importância que o
dogma da vontade, com o império do princípio do pacta sunt servanda,
representava para a época, após séculos de insegurança nas relações
negociais.
Assim, naquela época era preferível que nem o Estado interviesse na
vontade interna das partes, mesmo que aparentemente pudesse haver um
acentuado desequilíbrio em suas prestações, tendo em vista a precípua
necessidade de se garantir o cumprimento das obrigações que superava,
naquele momento, qualquer vulnerabilidade que pudesse haver de forma
subjetiva entre os contratantes.
Diante desse cenário, não se podia admitir a inserção da lesão como
um dos defeitos do negócio jurídico nos códigos liberalistas uma vez que a
aplicação desse instituto ultrapassava a barreira da análise da vontade declarada das partes, o que permitiria ao Estado rever o equilíbrio das prestações das partes.
Um negócio viciado pela lesão não podia ser corrigido pelos vícios
do negócio jurídico previstos nos códigos liberalistas, pois a vontade declarada e pactuada não se admitia anular por outras formas que não pelos
tradicionais vícios do consentimento, como coação, simulação, fraude, erro,
dolo, posto que, nesses, a verdadeira vontade de realizar o negócio, tal
como conhecido pelas partes, era inexistente.
Assim, a certeza das relações negociais era prioridade absoluta e
qualquer defeito negocial deveria ficar na esfera objetiva das relações e
distante das vontades emanadas pelas partes.
Por causa desse inevitável passo na evolução dos negócios jurídicos, o legislador de 1916 não vislumbrou a necessidade de serem aprumadas, por meio da intervenção do Estado, as deficiências naturais da parte
mais fraca na relação contratual quanto às vantagens do mais forte sob os
aspectos psicológico, moral, social e hierárquico, entre outros.
Em meados do século XX, ainda durante a vigência do código de
Clóvis Bevilacqua, começou a se formar a consciência de que, ao deixar as
partes decidirem sozinhas sobre a proporção de suas obrigações, o Estado
poderia deixar de prestar sua função democrática e jurisdicional, uma vez
que, do ponto de vista moral, intelectual ou psicológico, uma parte podia
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ser muito inferior à outra, fazendo com que, em alguns negócios realizados,
houvesse retrocessão à fase da lei do mais forte, valorizando negócios eivados do vício do enriquecimento sem causa pela parte mais favorecida.
A Constituição Federal de 1988 foi o diploma que possibilitou o
fortalecimento dessa tendência de publicização das relações privadas, na
medida em que elevou o ser humano a uma posição de destaque no
ordenamento jurídico pátrio, como se nota do princípio da dignidade da
pessoa humana.
Desse modo, o princípio do pacta sunt servanda foi perdendo espaço para novos princípios que atendiam à tendência de publicização do
direito privado.
Considerando-se que a pessoa não contrata pura e simplesmente
porque quer, mas porque precisa e sendo a pessoa humana o elemento
mais precioso na relação contratual, foi criada a teoria preceptiva do contrato, tendo como um de seus precursores o professor Emílio Betti (1969,
p. 107), que sustentava:
3 – Conceito do negócio jurídico (crítica do dogma da vontade) (1).
– Passando, após estas premissas, a determinar o conceito do negócio jurídico, não devemos perder de vista o problema prático, de
que a autonomia privada e seu reconhecimento jurídico representam
a solução. O instituto do negócio jurídico não consagra a faculdade de querer no vácuo, como apraz afirmar certo individualismo, que ainda não foi estirpado da hodierna dogmática. Pode dizer-se, segundo o que já vimos, que ele até garante e protege a autonomia privada na vida da relação, na medida em que se destina a
servir de assentamento a interesses dignos de tutela, nas relações
que lhe dizem respeito. Assente isto, é também fácil chegar a definir
o negócio jurídico segundo os seus caracteres genéticos e essenciais. Ele é o acto pelo qual o indivíduo regula, por si, os seus interesses, nas relações com os outros (acto de autonomia privada): acto
ao qual o direito liga os efeitos mais conformes à função econômico-social que lhe caracteriza o tipo (típica neste sentido) (grifo
nosso).
A teoria preceptiva do contrato permitiu diferenciar o que poderia
ser considerado justo em função da pessoa, do justo em função exclusiva
da vontade declarada no próprio contrato.
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Nota-se que, sob a concepção liberalista, o contrato era o elemento
mais importante e estava acima das pessoas envolvidas no negócio, não
competindo ao Estado manifestar sobre a comutatividade, justiça e equilíbrio da relação.
Por outro lado, a teoria preceptiva já atribuía ao indivíduo uma maior
importância, permitindo que fossem levados a efeito os referidos princípios
da comutatividade e justiça contratual.
A Constituição da República, por meio dos princípios do valor social
do trabalho e da dignidade da pessoa humana, previstos no artigo 1º, incisos
III e IV, proporcionaram esse ambiente favorável à volta da lesão, uma vez
que é de interesse público que a todo enriquecimento equivalha uma causa
justa. Com o retorno do instituto da lesão ao diploma civil atual, a idéia de
supremacia da autonomia da vontade é genericamente minorada, embora
continue a ser elemento indispensável à formação do vínculo contratual.
Devido a tal ampliação do poder revisional do Estado, o direito
contratual, com a superveniência do novo Código Civil, sofreu significante
transformação em sua concepção original.
Atualmente, a função social do contrato, como princípio motriz das
riquezas e da realização dos legítimos interesses dos indivíduos, tem como
base não apenas a segurança jurídica mas também o equilíbrio das obrigações externadas pelas partes.
Dessa forma, além dos limites objetivos estabelecidos pelo Código
Civil de 1916, agora caberá ao Estado verificar novos limites do contrato,
orientados pela norma principiológica da função social do contrato, uma
vez que, para que o contrato possa inserir-se com perfeição no ordenamento
jurídico, deverão estar presentes no contrato a justiça comutativa, a boafé, a auto-responsabilidade, não sendo descartado o princípio da autonomia da vontade, que se tornou apenas um princípio subordinado ao princípio da autonomia privada.
O instituto da lesão, inserido no artigo 157 do Código Civil, vindo a
integrar o rol dos defeitos dos atos jurídicos, antes descartado por Clóvis
Bevilacqua, proporcionou a superação dos limites do tecnicismo formal do
negócio jurídico, estabelecidos nos artigos 82 e 147 do código anterior,
para permitir ao Estado intervir na vontade interna declarada das partes
pactuantes, verificando se há ou não desequilíbrio entre as prestações e,
em caso afirmativo, se há vantagem para a matchposition na relação
negocial (MARQUES, 2002).
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O desequilíbrio subjetivo das partes, como se pode notar até mesmo
pelo lado histórico do desenvolvimento da lesão, pode manifestar-se de
várias maneiras.
Apenas para ilustrar, há que ser lembrada a intervenção do Estado
nas relações trabalhistas e nas relações consumeristas posto que, nessas
relações, os abusos praticados pelas partes mais fortes eram uma constante, principalmente no concernente às relações trabalhistas.
No atual Código Civil, cada caso irá indicar a ocorrência desse
desequilíbrio, considerando as peculiaridades que envolvem cada caso, não
havendo uma figura pré-determinada de quem seja a parte mais forte ou de
quem seja a parte mais fraca. No entanto, para que se identifiquem exatamente quais os fatores que podem influenciar o desequilíbrio, deve-se colocar em análise, primeiro, o tipo de negócio que se está sendo realizado,
segundo, as características subjetivas das partes e, por último, a desproporção das prestações a que se obrigaram.
Apenas poderá haver a constatação da lesão frente a uma série de
circunstâncias que, quando agrupadas, demonstram a situação de desvantagem da parte lesada no negócio.
Inclusive, o próprio fato de haver uma desproporção acentuada nas
prestações do negócio jurídico já serve de indício de que há um desequilíbrio
subjetivo entre as partes contratantes, uma vez que quanto maior for o
prejuízo da parte lesada, maior a suspeita do reduzido discernimento.
Por outro lado, também poderá ser constatada a lesão em certas
ocasiões em que não haja uma desproporção tão gritante das prestações,
mas que, por outros motivos, fique evidenciado que uma parte se valeu de
sua experiência em detrimento do reduzido discernimento da outra parte.
O Código Civil vigente destacou, de forma expressa, no artigo 157,
duas maneiras pelas quais a lesão poderá ser caracterizada: pela
inexperiência ou por premente necessidade.
Tanto pela inexperiência quanto pela urgente necessidade, haverá de
ser feita uma confrontação com a desproporção analisada de fato. No que
toca à premente necessidade, não há como prever o que a caracteriza, sem
que se analisem as circunstâncias de um caso concreto e que se emita um
juízo de valor sobre tal questão.
Por se tratar de uma mudança legislativa que irá influenciar os hábitos e costumes dos jurisdicionados, a nova concepção social do contrato
ainda demorará a prevalecer nas negociações cotidianas, em face do longo
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período vivido sob a égide do Código Civil de 1916, que pregava a autonomia da vontade pura.
Será apenas com as decisões definitivas dos tribunais que a cultura
de se beneficiar de um negócio jurídico ao extremo começará a se tornar
exceção e o sentimento de auto-responsabilidade das partes prevalecerá
nos futuros contratos.
Assim, a tendência de mudança do comportamento social só se perceberá com as decisões judiciais proferidas em definitivo, momento em
que as partes que negociam passarão a agir com maior cautela para que os
limites da boa-fé objetiva e da função social do contrato não sejam
maculados, preservando o interesse social na realização daquele pacto,
sob a premissa de que à sociedade não interessa a concretização de um
bom negócio para uma das partes com ares de embuste.
Na verdade, sempre haverá, em todo negócio jurídico, uma parte
com maior capacidade de discernimento que, na maioria das vezes, será
mais beneficiada no fechamento do contrato.
No entanto, não há como querer que todos os contratos sejam
milimetricamente equilibrados e as partes tenham sempre o discernimento
sobre o objeto do que se contrata em pleno equilíbrio, na mais absoluta e
exata proporção das prestações. Isso seria utopia.
Devemos render a devida homenagem à autonomia da vontade que
durante todo o século XX cumpriu seu papel de fixar a responsabilidade
das partes conforme o conteúdo do contrato, criando a necessária segurança jurídica que, até então, não se observava, servindo como uma
preparação para uma fase posterior àquela originada em 1916, caracterizada pela ausência do Estado no equilíbrio do negócio jurídico e que
atendia à necessidade de se imprimir maior velocidade nas contratações
em face da evolução tecnológica e da evolução industrial que emolduravam o cenário econômico daquela época. No entanto, sua superação foi
inevitável, posto que, o que prevalece na atual legislação com suporte
constitucional é a pessoa humana, em primeiro plano, e seu trabalho,
como fonte de sustento.
Pode ser que tal possibilidade de se rever o conteúdo material do
contrato desacelere a falsa economia, entendendo essa como a de especulação e de exploração do trabalho da parte mais fraca nos contratos, que
faz com que a economia de poucos mais fortes evolua e a de muitos, mais
fracos, retroceda. Portanto, a análise do equilíbrio subjetivo das partes no
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negócio jurídico se faz de extrema importância, sendo divisor de águas na
caracterização da lesão, tal como adotada pelo presente Código Civil.
3
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CRISTIANO RENNÓ SOMMER
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Sumário
1. Os motivos de uma busca de compreensão. 2. A empresa no centro das atenções hodiernas. 3. Afinal de
contas, o que é e o que não é empresa? 4. A empresa
entre o céu e o inferno. 5. Uma proposta de compreensão. 6. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente estudo dedica-se à compreensão de um dos fenômenos mais importantes da sociedade contemporânea, qual seja, a empresa.
Partindo de seu conceito econômico, como exercício da atividade empresária, em um primeiro momento busca-se identificar e sanar alguns
equívocos terminológicos freqüentemente cometidos pelo público em
geral e também pelos juristas que se dedicam ao tema. Feitas essas
conceituações técnicas, passa a enfrentar as antagônicas expectativas que
gravitam em torno da empresa, concluindo com uma análise jurídico-filosófica sobre o que se pode – e se deve – esperar da empresa no
contexto atual.
Abstract
The present study is dedicated to the understanding of one of the
most important phenomena of contemporary society, which is the
company. Starting from its economic concept, as an exercise of the
enterprise activity, at first sight it intends to identify and solve some
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terminology mistakes frequently committed by the public in general and
by the jurists who dedicate themselves to the subject. After these
technical concepts, it faces the antagonistic expectations that surround
the company, concluding with a legal-philosophical analysis on what we
can – and must – expect from the company in the current context.
1
OS MOTIVOS DE UMA BUSCA DE COMPREENSÃO
Ao utilizarmos o termo compreensão, ele não é tomado apenas no
sentido de entender ou perceber, de alcançar com a inteligência1. Na verdade, busca-se aqui o todo, um abranger dialético, um conter-se em si e no
todo. “Enquanto a explicação detecta as relações que ligam os fenômenos
entre si, a compreensão procede a uma apreensão imediata e íntima da
essência de um fato humano, isto é, seu sentido”2.
A análise mecanicista, em que pese sua utilidade para o conhecimento das coisas (sua composição, funcionalidades e finalidades) mostra-se
fragmentária e não permite uma verdadeira compreensão, na medida em
que não consegue absorver as incoerências intrínsecas à realidade, bem
como não capta as relações do objeto pesquisado com o pesquisador (como
o necessário espelhar deste naquele), com as demais partes da totalidade,
e com a própria totalidade em que está imerso.
Nesta proposta compreensiva, busca-se aplicar ao presente estudo
um caráter reflexivo (filosófico) temporal3, conforme os valores e limitações da realidade hodierna. O que é a empresa hoje difere do que ela era
tempos atrás, assim como no futuro, provavelmente, não poderá ser compreendida do mesmo modo.
No que diz respeito ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo;
assim é também a filosofia, que é seu tempo apreendido no pensamento. É tão insensato imaginar que uma filosofia qualquer possa ir
além de seu mundo presente quanto imaginar que um indivíduo possa saltar por cima de seu tempo, saltar por cima do Rhodus.
1
2
3
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, p. 417.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia, p. 47.
Cf. BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político de Hegel, p. 99.
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Como outra referência importante, adotar-se-á o ordenamento jurídico pátrio como diretriz estruturante da compreensão jurídica aqui buscada, mas não limitada apenas ao enfoque dado pelo direito. Trabalhar-se-á
no campo da ciência e da filosofia do direito sem, contudo, desprezar o
conhecimento fornecido pelas ciências afins, e que sejam pertinentes ao
tema proposto.
2
A EMPRESA NO CENTRO DAS ATENÇÕES HODIERNAS
A empresa é um fenômeno econômico-social em evidência. Com o
domínio do regime capitalista e a imperiosa busca de soluções para o fundamento antagônico da ciência econômica (necessidades humanas infinitas
versus recursos finitos)4, a empresa ganha proeminência na pauta mundial
como peça de destacada importância na produção das riquezas.
Fábio Konder Comparato, no ensaio A reforma da empresa, assim
se manifesta sobre a importância da empresa para o cenário mundial:
Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência,
dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo
e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável:
essa instituição é a empresa5.
Não é para menos. A economia e suas questões impulsionam a evolução humana há milênios. Desde o desenvolvimento da navegação, ainda
na remota antiguidade6, até os dias atuais, em que a humanidade é, mais
uma vez, “sacudida” pelos efeitos decorrentes da tecnologia da comunicação7, as barreiras e distâncias geográficas da humanidade e, em especial,
de sua atividade econômica, são significativamente reduzidas.
E a empresa está no centro dessa atividade econômica mundial, como
átomo dessa atual realidade econômica denominada “virtualização da economia”8. Elas são impelidas a se agruparem, formando as macroempresas,
4
5
6
7
8
Cf. ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia, p. 203 e ss.
COMPARATO. Direito empresarial: estudos e pareceres, p. 3.
FERREIRA. Instituições de Direito Comercial, p. 26.
Cf. ROHRMANN. Curso de Direito Virtual, p. 8 e ss.
ROHRMANN. Curso de Direito Virtual, p. 8.
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como forma de se adaptar a essa nova realidade, impondo seus interesses
em esferas antes ocupadas apenas pela política, pelo direito.
E esse destaque não é merecimento apenas da macroempresa. Também as pequenas atuam de forma significativa na geração, circulação e
distribuição da riqueza mundial, embora em atuação mais regionalizada,
conforme ensina Comparato:
A acalorada disputa entre partidários da pequena ou da grande empresa, como principal fator de eficiência na economia contemporânea, dá mostras de se encaminhar para um empate técnico. (...). A
análise serena e englobante da realidade tende ao reconhecimento
de que, simplesmente, a grande empresa é mais eficiente para a consecução de certos objetivos, e a pequena empresa para a realização
de outros.9
Nessa realidade, a empresa ocupa o centro das atenções e é motivo
de discussões intermináveis. Por ela passa parte significativa das riquezas
do mundo. Seus interesses se impõem nas principais esferas de decisões
mundiais. Inúmeras são as publicações tratando do tema, sob a batuta de
diversas áreas da ciência, sob diversas perspectivas. Assim como para a
economia, para a administração de empresas, para as ciências contábeis,
para a comunicação social, para a sociologia e outras áreas do conhecimento, o direito também reconhece a importância da atividade empresária
e dá destaque ao seu estudo, dedicando-lhe vários de seus ramos.
Podemos citar, como exemplos, os ramos do direito econômico, do
consumidor, tributário, do trabalho, etc. Dentre esses ramos, destaca-se o
direito comercial ou, como alguns preferem denominar atualmente, direito
empresarial, como o ramo jurídico que mais estreitamente se dedica ao
tema empresa, tendo-o como objeto central de seus estudos.
É bem verdade que essa nova nomenclatura dada ao vetusto direito
comercial encontra alguma resistência e crítica entre os estudiosos, por dar
a entender que tal ramo jurídico dedica-se apenas à empresa, o que de fato
não ocorre.
9
COMPARATO. Estado..., p. 38.
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No entanto, não se nega à empresa o destaque de tema central das
investigações de referida disciplina, conforme sentencia Comparato: “O
conceito de atividade empresarial constitui hoje, como sabido, o fulcro de
todo o sistema do direito comercial, assim como o de atividade administrativa pode ser tomado como conceito nuclear do direito administrativo”10.
Com efeito, a própria evolução histórica do direito comercial justifica essa estreita relação e dedicação, em um processo de perder-se de suas
origens, passando pelas fases subjetiva e objetiva, para se reencontrar no
estudo da atividade empresarial, com a teoria das empresas.
Mesmo aqui, no direito comercial, não são poucas as discussões (e
confusões) a respeito do tema empresa. De início, temos que o conceito
jurídico de empresa é tema ainda nebuloso nos meios jurídicos. Em vão,
muito se debateu na tentativa de construir um conceito jurídico para empresa. É que a empresa é predominantemente um fenômeno econômico, e
como tal, coube à ciência econômica conceituá-la com maior propriedade.
Hoje, mesmo com um certo incômodo11, a doutrina jurídica cedeu ao conceito econômico de empresa.
Entretanto, essa não é a única dificuldade apresentada na compreensão da empresa. Também com os conceitos correlatos, como empresário e
estabelecimento, a dificuldade de conceituação transforma-se em um caos
de noções imprecisas. Essa dificuldade não é percebida apenas nos não
iniciados na ciência jurídica, a imprecisão freqüenta também os ambientes
jurídicos.
Nessa balbúrdia terminológica, toma-se o objeto pelo agente, o sujeito pelo objeto, o estático pelo movimento, o concreto pelo abstrato e,
com base nesses erros, chega-se a conclusões equivocadas, e o que era
para informar acaba por confundir mais ainda.
3
AFINAL DE CONTAS, O QUE É E O QUE
NÃO É EMPRESA?
Requião parece identificar com precisão o cerne dessa confusão
conceitual:
10 COMPARATO. Estado..., em nota, p. 41.
11 Incômodo esse ressaltado por Rubens Requião, em seu Curso de direito comercial, p. 50.
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É preciso compreender que a empresa, como entidade jurídica, é
uma abstração. A muitos tal afirmativa parecerá absurda e incompreensível, dado o condicionamento de que a empresa é uma entidade material e visível12.
Explica-se: conforme restou mencionado anteriormente, o conceito
de empresa, adotado pelo direito, é o econômico. Como exemplo, tomemos o conceito apresentado por Galves: “A empresa é a obra do empresário: é a combinação de fatores da produção, com a finalidade de criar
coisas e serviços úteis”13.
Ora, e o que é a obra do empresário se não a própria atividade
empresária, ou ainda, o exercício da atividade profissional (não esporádica) de colocar em interação sinérgica os fatores de produção para que
esses resultem em um produto final a ser ofertado ao mercado.
Não é o estabelecimento onde essa atividade se dá, não é o empresário ou a sociedade empresária, nem os sócios que compõem essa última.
Ainda conforme Requião: “Daí porque o conceito de empresa se firma na
idéia de que é ela o exercício de atividade produtiva. E do exercício de uma
atividade não se tem senão uma idéia abstrata.”14
Definido então o que é empresa, deve-se enfrentar outros conceitos
correlatos. Conforme ensina Wille Duarte Costa, “o empresário é o sujeito
de direito que exerce e dirige a atividade econômica. É ele quem assume
todos os riscos da empresa, orienta os seus negócios, determina a forma
de sua realização e é quem figura nos pólos das relações jurídicas decorrentes”15. Tem-se então que o empresário (sujeito de direito que pode se
apresentar como pessoa natural ou pessoa jurídica) é o titular da empresa
(objeto de direito).
Entende-se sujeito de direito como aquele que possui personalidade, ou seja, capacidade genérica para adquirir direitos e contrair deveres.
Conforme ensina Caio Mário da Silva Pereira:
12
13
14
15
Cf. REQUIÃO. Curso..., p. 59.
GALVES. Manual de economia política atual, p. 119.
REQUIÃO. Curso..., p. 60.
COSTA, W. D. A possibilidade de aplicação do conceito de comerciante ao produtor rural,
p. 142.
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A idéia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois
exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres.
Esta aptidão é hoje reconhecida a todo ser humano, o que exprime
uma conquista da civilização jurídica.
[...]
Como o homem é o sujeito das relações jurídicas, e a personalidade
a faculdade a ele reconhecida, diz-se que todo homem é dotado de
personalidade. Mas não se diz que somente o homem, individualmente considerado, tem esta aptidão. O direito reconhece igualmente personalidade a entes morais, seja os que se constituem de agrupamentos de indivíduos que se associam para a realização de uma
finalidade econômica ou social (sociedades e associações), sejam os
que se formam mediante a destinação de um patrimônio para um fim
determinado (fundações), aos quais é atribuída com autonomia e independência relativamente às pessoas físicas de seus componentes
ou dirigentes.16 (grifo do autor).
Assim, no direito pátrio, a empresa não pode ser vista como sujeito
de direito. Conforme visto, no universo empresarial, somente o empresário
ou a sociedade empresária possuem essa aptidão. À empresa resta a qualidade de propriedade, ou seja, objeto de direito e como tal compreendem
os bens jurídicos.
São bens jurídicos, antes de tudo, os de natureza patrimonial. Tudo
que se pode integrar no nosso patrimônio é um bem, e é objeto de direito
subjetivo”17.
É importante informar que existem renomados autores favoráveis ao
enquadramento da empresa como sujeito de direito. No direito econômico, pode-se destacar o entendimento da professora Isabel Vaz, que adota
o seguinte conceito de empresa:
(...) instituição dotada de personalidade jurídica, no seio da qual se
organizam os fatores da produção com vistas ao exercício de ativi-
16 PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, p. 213-214.
17 PEREIRA. Instituições..., p. 400-401.
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dades econômicas ou à prestação de serviços em face dos princípios ideológicos adotados na Constituição”18.
Tal proposição é pertinente e defensável, parecendo estar bem mais
próxima à realidade do emprego do termo empresa por parte do público
em geral. Contudo, o presente estudo não tem caráter prospectivo ou
propositivo, mas sim descritivo, ou seja, de melhor compreender o objeto
pesquisado e seus conceitos correlatos, de acordo com o ordenamento
jurídico pátrio, sendo que para este a empresa não possui personalidade.
Por fim, acerca das distinções necessárias à presente análise, resta
falar do estabelecimento comercial, que vem a ser o aparelhamento necessário ao exercício da atividade empresarial, compondo-se de “(...)
elementos corpóreos e incorpóreos, que o empresário comercial une para
o exercício de sua atividade”19. São, em parte (mas não apenas), os elementos palpáveis da empresa, que se mostram aos órgãos perceptivos
humanos, como o local onde é exercida a atividade empresária e que,
por vezes, é confundido com a própria empresa. Contudo, o estabelecimento comercial não se resume nisso, conforme ensina João Eunápio
Borges:
Estabelecimento comercial não é apenas a casa, o local o cômodo
no qual o comerciante exerce sua atividade. Mas é o conjunto, o
“complexo das várias forças econômicas e dos meios de trabalho que o comerciante consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade formal, em relação com a unidade do
fim”, para o qual as reuniu e organizou.20 (grifo do autor).
Essas diferenciações são fundamentais à boa compreensão da empresa para que não lhe sejam atribuídas, como ocorre com freqüência,
responsabilidades e vontades atinentes a um sujeito de direito, agente volitivo,
18 VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades, p. 481. Alexandre Bueno Cateb também nos dá notícias de outros autores partidários dessa corrente, cf. Desporto profissional
e direito de empresa, p. 59; a esses autores podemos somar o nome de Claude Champaud
e Michel Despax, estes informados na obra da autora citada no início desta nota, p. 483.
19 REQUIÃO. Curso..., p. 270.
20 BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre, p. 187.
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e nunca de um objeto de direito. Também para que não se confunda a
empresa com o local em que o empresário exerce suas atividades.
Se para os leigos na ciência jurídica a utilização do termo empresa,
quando se quer falar empresário, é cotidiana, nos meios jurídicos, tal equívoco, também não é raro21.
Não se ignora os renomados autores que trataram da empresa como
um fenômeno multifacetado, abordando seus perfis subjetivo, funcional,
patrimonial e corporativo22. Contudo, tal perspectiva, embora demonstre
as várias facetas pelas quais a empresa pode ser vista, pouco contribui
para um melhor entendimento técnico deste instituto.
Entende-se que o conhecimento científico, com as rupturas ocorridas nos paradigmas da ciência moderna, busca tornar-se senso comum,
ou seja, deve objetivar tornar-se conhecimento claro e acessível, em prol
da sociedade em geral. Nesse sentido, deve guardar as devidas cautelas
quanto à clareza e assertividade do emprego de seus termos técnicos, de
modo que seu resultado contribua para a melhor compreensão dos fenômenos investigados.23
4
A EMPRESA ENTRE O CÉU E O INFERNO
Conforme se afirmou, a empresa é a grande vedete da contemporaneidade. E muito se fala a seu favor e em seu demérito. É bem verdade que,
conforme demonstrado, muitas e injustas vezes o termo empresa é mal
empregado, especialmente quando se lhe quer atribuir alguma pecha, cabível somente ao agente volitivo (empresário ou sociedade empresária) que
lhe dirige.
Para alguns parece não haver meio termo, ou a empresa deve ser
favorecida e adorada, em um pedestal intocável, especialmente pelos Esta-
21 Essa imprecisão terminológica, de tão comum na linguagem leiga, parece contaminar os
juristas, e até mesmo os comercialistas, sendo que estes, apesar de bem conceituarem e
diferenciarem referidos termos, por vezes parecem confundir o sujeito de direito com o
objeto de direito. Cf. ROCHA FILHO. Curso de direito comercial, p. 14, e ZANOTI. A
função social da empresa como forma de valorização da dignidade da pessoal humana, p.
20.
22 Cf. ASQUINI, Perfis da empresa. Tradução e notas de Fábio Konder Comparato in
Revista de Direito Mercantil (...), n. 104, p. 109 e ss. Cf. também FERRI, in REQUIÃO.
Curso..., p. 51.
23 Cf. GUSTIN. (Re)pensando..., p. 11 e ss.
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dos, por ser a motriz do desenvolvimento, ou então deve penar sob uma
campanha acirrada de vigília e repressão, exigindo-se dela responsabilidades típicas de uma abnegada benfeitora pública.
Bastante ilustrativo a esse respeito é a reportagem veiculada na revista Exame (março de 2005), intitulada O estigma do lucro24. O texto
aborda a divergência entre os empresários e a opinião pública sobre a
missão das empresas. É interessante notar que se de um lado o lucro aparece no topo das prioridades das empresas segundo os empresários, de
outro, para a sociedade em geral, a missão principal das empresas está
vinculada a atividades como gerar empregos, ajudar a desenvolver o
país e promover trabalhos comunitários.
Nessa reportagem, é possível perceber as posições antagônicas de
grandes executivos, como Márcio Cypriano, do Bradesco, para quem “não
é mais admissível buscar o lucro a qualquer custo, é preciso respeitar conceitos como sustentabilidade do planeta e ter preocupação com valores
universais”25 versus José Tadeu Alves, presidente da Merck, Sharp &
Dohme no Brasil, que entende que “uma praça deveria ser conservada pela
prefeitura (...). Se uma empresa gasta dinheiro para conservá-la, só para
depois poder colocar uma plaquinha com propaganda, então todos saímos
perdendo”26.
É importante reafirmar que em qualquer atividade positiva ou negativa, por parte da empresa, deve-se antes pensar no sujeito de direito que
está por trás dela. Mas deve-se acrescentar que o resultado dessa atividade (esta abstração que é a empresa) vai depender também da resultante de
outras forças que atuam sobre ela, dentre as quais podemos destacar os
interesses do Estado, dos empregados, dos consumidores, dos fornecedores, da comunidade na qual se estabeleceu a empresa, entre outros grupos
de interesses (stakeholders) 27.
É bem verdade que a intensidade dessa participação externa vai depender não apenas da força e da articulação política desses stakeholders,
24 GUROVITZ, Helio; BLECHER, Nelson. O estigma do lucro (reportagem publicada na
Revista Exame, março de 2005).
25 Revista Exame, março de 2005, p. 22.
26 Revista Exame, março de 2005, p. 23.
27 Cf. LETTIERI. Quem realmente interessa às empresas?, in [sem autor ou organizador]
Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades, v. III, Prêmio
Ethos/Valor, 3ª. ed., p. 17.
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mas também do porte e do tipo societário adotado, no caso das sociedades empresárias.
Com isso não se quer dizer que a vontade do empresário não é
importante nos destinos da empresa, ao contrário, ela é primordial, até
mesmo para o surgimento desta. No entanto, não se pode ignorar a atuação dessas outras vontades componentes da resultante final que é a própria atividade empresária.
O pano de fundo teórico para tais discussões, no campo do direito,
costuma ser a inflacionada expressão função social da empresa. Tal afirmativa costuma ter por base a citada compreensão da empresa como objeto de direito (propriedade), e por fundamento legal o inciso XXIII do art.
5º da Constituição da República que estabelece que a propriedade atenderá a sua função social 28.
A esse respeito, Comparato esclarece o sentido da expressão função social:
Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato de função, em
suas múltiplas espécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente
é sempre o interesse alheio, e não o próprio do titular do poder. O
desenvolvimento da atividade é, portanto, um dever, mais exatamente, um poder-dever; e isto, não no sentido negativo, de respeito a
certos limites estabelecidos em lei para o exercício da atividade, mas
na acepção positiva, de algo que deve ser feito ou cumprido.
Há funções exercidas no interesse de uma pessoa ou de pessoas
determinadas – como o pátrio poder, a tutela e a curatela – e funções
que devem ser desempenhadas em benefício da coletividade. Nesta
última hipótese, e somente nela, parece-me mais apropriado falar em
função social.29
Contudo, esse mesmo autor informa que, na prática histórica dos
países que adotaram norma semelhante em suas normas internas, essa função social da propriedade resume-se a “alguns deveres negativos impostos
ao proprietário no uso de seus bens, notadamente imóveis”.30
28 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de
1988 (Saraiva, 2006), p. 7.
29 COMPARATO. Estado..., p. 41.
30 COMPARATO. Estado..., p 42.
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No direito pátrio, a situação não é diferente, sendo que quaisquer
exigências de dever positivo na utilização da propriedade, devido a sua
função social, estão mais vinculadas à propriedade imóvel, urbana e rural 31. Nada de novo quanto à empresa, para a qual a expressão função
social parece não apresentar um conteúdo mais concreto e palpável de
ações positivas a serem impostas à empresa.
No campo da Administração de empresas e da Comunicação, muito
se fala sobre a Responsabilidade Social das Empresas. É bem verdade
que, em uma análise preciosista, tal expressão carrega em si o equivoco de
querer atribuir responsabilidade ao objeto. Melhor seria referir-se à responsabilidade social dos empresários, ou ainda, empresarial.
No entanto, a contribuição dessas áreas parece ter sido maior que a
do direito para a inclusão, na pauta empresarial, de questões sociais. Alguns de seus autores são categóricos ao afirmar que as empresas atuais
não podem mais se fechar apenas em seus próprios interesses, sem se
integrar positivamente à realidade em que estão inseridas, sob pena de
significativas perdas mercadológicas 32.
5
UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO
Parece ser pertinente transportar-se para a esfera das empresas e
dos Estados, em um mundo intensamente interligado e submetido à mencionada “virtualização da economia”, um pensamento hegeliano apresentado
por Bourgeois:
Longe de ser pelo cidadão que o Estado é Estado, é pelo Estado
que o cidadão é cidadão; o Estado é o universal que ultrapassa o
indivíduo e lhe permite ultrapassar-se como cidadão, sem o que ele
permaneceria encerrado em sua particularidade natural.33
Não há como se compreender a parte sem se pensar o todo, e nem
como se pensar o todo sem se pensar as partes, assim como não se pode
pensar esses momentos sem se compreender a interação dinâmica entre
31 COMPARATO. Estado..., p. 42 e ss.
32 BUENO. Comunicação empresarial, p. 105 e ss.
33 BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político de Hegel. p. 93.
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ambos. Desse modo, não apenas as pessoas jurídicas, mas também as
pessoas naturais, estejam elas por trás da atividade empresária, ou em singelos atos do cotidiano comum, todos estão imersos em uma realidade
interconectada.
É bem verdade que os capitalistas são pessoas lógicas, objetivas, e
visam o lucro. São irreais quaisquer pretensões de se exigir dos mesmos
quaisquer atuações socialmente engajadas, altruísticas, sob pena de se
desestimular a atividade econômica, desencorajando a livre iniciativa, provocando enormes prejuízos para o Estado e para a sociedade em geral.
Também não se pode esperar que Estados, unilateralmente, tomem
a iniciativa de atribuir às empresas maiores ônus do que os já existentes,
sob pena de se desmotivar os investimentos estrangeiros e de se prejudicar
o desenvolvimento econômico interno, agravando os problemas sociais,
comuns até mesmo em potências econômicas.
Mas há que se ponderar que a humanidade enfrenta sérias ameaças,
quer seja nas diversas formas em que a violência se manifesta (terrorismo,
guerras, violência urbana), muitas destas baseadas, direta ou indiretamente, em questões vinculadas à desigualdade econômica, quer seja com relação às graves ameaças de desequilíbrio ambiental 34 que pairam sobre todos (aquecimento global, etc.).
Importa também estar atento a uma discreta falácia contida nas soluções apresentadas para o já citado dilema econômico da escassez de riquezas versus as infinitas necessidades humanas.
As soluções apresentadas até o presente momento, e que envolvem
as empresas diretamente, indicam a necessidade de produção de maiores
riquezas. E para se produzir essas novas riquezas é necessário que se acumule maiores riquezas ainda, o que contribui, contraditoriamente, para o
aumento das dificuldades de acesso às riquezas.
Há, então, uma dimensão ética a ser observada no emprego das
riquezas, não só pelos Estados, mas também pelos empresários e por todos aqueles que as detêm, uma vez que o seu acúmulo impede que outros
tenham acesso aos mesmos recursos.
Conforme se afirmou na proposta compreensiva defendida no início
deste ensaio, as visões fragmentárias do mundo são incapazes de oferecer
34 Cf. GORE. Uma verdade inconveniente.
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uma melhor compreensão da realidade e, consequentemente, de apresentar boas soluções para os graves problemas que assolam a humanidade.
Portanto, não há como se compreender a empresa sem contextualizála em uma realidade interconectada, e por vezes contraditória e caótica. Há
todo um contexto de partes, interesses e relações, costumeiramente antagônicos, mas que devem se compor na formação da atividade empresaria,
redefinindo o papel que se pode – e se deve – esperar da mesma, nos
rumos atuais e do futuro da humanidade.
6
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O NOVO CÓDIGO CIVIL, O CONTRATO SOCIAL DA
SOCIEDADE LIMITADA E O ATO JURÍDICO PERFEITO
DANIEL SECCHES SILVA LEITE
Sumário
1. Introdução. 2. Breve escorço histórico. 3. O ato jurídico perfeito. 4. O ato constitutivo da sociedade limitada. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
Resumo
O novo Código Civil trouxe relevantes modificações ao âmbito do
direito comercial, por ele agora denominado direito empresarial. Impôs,
como conseqüência, um prazo para que as sociedades empresárias constituídas sob a égide do regime anterior adaptem os seus contratos sociais às
novas regras vigentes. Para parte da doutrina jurídica, contudo, o contrato
social de sociedade, especialmente do tipo limitada, celebrado antes da
vigência da nova legislação civil, caracterizar-se-ia como ato jurídico perfeito,
não se sujeitando aos comandos emanados na nova legislação civil. Pretendemos afastar a insegurança provocada por esse debate no meio jurídico –
que tem severas repercussões na própria regularidade da pessoa jurídica e
conseqüentemente no princípio da separação patrimonial entre os bens dos
sócios e da sociedade. O presente trabalho tem como escopo demonstrar
que por sua própria natureza jurídica o contrato de sociedade não pode ser
considerado perfeito e acabado no tempo, e que as sociedades limitadas,
ainda que existentes antes do novo Código Civil, devem ter seus contratos
sociais a ele adaptados.
PALAVRAS-CHAVE: affectio societatis; ato jurídico perfeito; Código Civil; contrato de sociedade; contrato plurilateral; sociedade limitada; sociedade marital.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 103-114
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2006
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DANIEL SECCHES SILVA LEITE
Abstract
The New Civil Code made relevant changes in corporate law, now
known as “direito empresarial”. The New Civil Code establishes a period
of time for the corporations to adapt their acts of incorporation accordingly
to the new terms of the law. `Part of the juridical doctrine thinks that acts of
incorporating of LLCs signed before the New Civil Code are perfect legal
acts that cannot be affected by the new law. This article intends to
demonstrate that, due to its nature, the acts of incorporation cannot be
considered perfect and finished in time and therefore, LLCs must have their
acts of incorporation adapted to the new Civil Code.
KEY-WORDS: affectio societatis; perfect legal acts, Civil Code, contracts;
limited liability;
1
INTRODUÇÃO
O novo Código Civil, em vigor desde 10 (dez) de janeiro de 2003,
trouxe importantíssimas inovações à seara do direito comercial, agora denominado por ele direito de empresa.
Com efeito, devido à unificação parcial do direito privado, atingida
pela revogação da primeira parte do Código Comercial determinada pelo
artigo 2.045 do novel diploma civil, este apresentou um novo regramento
para o direito societário, no qual a maioria dos tipos de sociedades existentes no Brasil sofreu profundas mudanças. Talvez as mais relevantes, pela
larga utilização desse tipo societário, tenham sido as verificadas nas sociedades limitadas, antes regidas pelo Decreto-Lei nº 3.708/19 e agora completamente disciplinadas pelo novo Código Civil, em capítulo próprio.
Com efeito, as sociedades limitadas passaram a ter uma regulação
legal muito mais minudente e complexa, que as aproxima sobremaneira, em
vários aspectos, das sociedades anônimas.
Assim, criou-se para a sociedade limitada a possibilidade de instituição de um conselho fiscal (artigos 1.066/1.070 do novo Código), muito
parecido com previsão semelhante contida na Lei das Sociedades Anônimas (nº 6.404/76); estipulou-se como regra para a tomada de deliberações a assembléia de sócios (artigos 1.071/1.080 daquele mesmo diploma
legal), com várias formalidades para a convocação, também muito próximas das existentes na Lei nº 6.404/76 para a realização das assembléias
nas sociedades anônimas; aumentou-se a proteção ao sócio minoritário,
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O NOVO CÓDIGO CIVIL, O CONTRATO SOCIAL DA SOCIEDADE LIMITADA ...
tornando mais difícil sua exclusão da sociedade pela maioria do capital
social; permitiu-se que terceiro estranho à sociedade seja seu administrador, o que era inviável sob a égide do Decreto-Lei nº 3.708/19; entre outras modificações que implicarão sérias conseqüências para esse tipo de
sociedade e seus sócios.
Além disso, o novo Código Civil trouxe proibição de que cônjuges
casados sob o regime da comunhão universal de bens, ou sob o de separação obrigatória, contratem sociedade (de qualquer tipo), nos termos de
seu artigo 9771.
Questão premente, que se coloca diante desses fatos, é a de saber
se há obrigatoriedade de adaptação dos contratos sociais das sociedades
limitadas (objeto de nosso estudo) às regras oriundas do novo Código
Civil, mormente diante do disposto em seu artigo 2.031 (com redação dada
pela Lei nº 11.127/2005), que dilatou o prazo para tal adaptação, que
expirará em 10 de janeiro próximo.
Em que pese o teor do citado artigo 2.031 do novo Código Civil, a
impor tal modificação, existe uma expressiva posição doutrinária e de alguns órgãos administrativos no sentido de que as sociedades limitadas já
constituídas sob o regime da lei anterior, qual seja, o Decreto-Lei nº 3.708/
19, não teriam obrigatoriamente de alterar seus contratos sociais que se
caracterizariam, no caso, como ato jurídico perfeito.
Nessa esteira é que o Departamento Nacional de Registro do Comércio, alguns doutrinadores e vários cartórios de registro civil de pessoas
jurídicas vêm defendendo que, por se tratar de ato jurídico perfeito, o contrato social de uma sociedade limitada constituída antes da vigência do
novo Código Civil não precisa ser alterado, a não ser por vontade dos
sócios, raciocínio esse que, se adotado, seria também aplicado a todas as
demais alterações impostas pelo novo codex civil.
Vale transcrever breve parecer jurídico emitido pelo DNRC/COJUR
nº 125/03, de 4 de agosto de 2003:
INTERESSADO: JUCILEI CIRIACO DA SILVA – ESCRITÓRIO CONTEC
ASSUNTO: Sociedade empresária entre cônjuges constituída antes
da vigência do Código Civil, de 2002.
1
Assim dispõe o artigo 977 do NCC: “Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”.
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DANIEL SECCHES SILVA LEITE
Senhor Diretor,
Jucilei Ciriaco da Silva, em razão da proibição constante do artigo
977 do novo Código Civil, consulta a este Departamento sobre qual
o procedimento a ser adotado em relação àquelas sociedades entre
cônjuges, casados sob os regimes da comunhão universal de bens e
da separação obrigatória, constituídas anteriormente ao Código Civil de 2002, ou seja, “se haverá necessidade de alteração de sócio
ou regime de casamento”.
A norma do artigo 977 do CC proíbe a sociedade entre cônjuges
tão somente quando o regime for o da comunhão universal de bens
(art. 1.667) ou da separação obrigatória de bens (art. 1.641). Essa
restrição abrange tanto a constituição de sociedade unicamente entre marido e mulher, como destes junto a terceiros, permanecendo
os cônjuges como sócios entre si.
De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não
atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando, tão somente, as que viessem a
ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de
se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios-cônjuges, em tal hipótese.
Tal debate reveste-se de especial interesse, posto que se eventual e
futuramente o judiciário entender que uma determinada sociedade limitada
contratada entre cônjuges casados sob um dos regimes mencionados pelo
artigo 977 deveria ter se adaptado ao novo Código Civil e não o fez, poderá invalidar o contrato social e acarretar a gravíssima conseqüência da perda da autonomia patrimonial dos sócios em relação à sociedade.
Este, portanto, é o escopo do presente trabalho: investigar a necessidade ou não de realizar as alterações impostas pelo novo Código Civil
em relação às sociedades limitadas – dada a relevância desse tipo societário
em nosso país –, até 10 de janeiro de 2007, sob a ótica do ato jurídico
perfeito, de molde a se evitar a responsabilização pessoal dos sócios pelas
dívidas da sociedade.
2
BREVE ESCORÇO HISTÓRICO
As sociedades de responsabilidade limitada foram criadas com o
nítido objetivo de atender às necessidades econômicas do comércio, que
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precisava de uma sociedade comercial em que os sócios pudessem limitar
sua responsabilidade, princípio característico das sociedades anônimas, sem
as dificuldades e inconveniências dessas, como a organização demorada e
custosa, o apelo ao público para a formação do capital social e a livre
cessibilidade das ações.
Com efeito, até meados do século XIX as sociedades eram divididas em dois grupos principais: as sociedades de pessoas de simples constituição, mas de responsabilidade ilimitada ou mista; e as sociedades anônimas de responsabilidade limitada, mas de constituição e funcionamento
complexos.
Tal situação não era satisfatória para pequenos e médios empresários na medida em que buscavam a responsabilidade limitada, mas sem a
complexidade da sociedade anônima. Com a revolução industrial dando
seus primeiros passos, impunha-se o preenchimento desse vazio legislativo,
a fim de se criar um tipo societário que atendesse aos interesses das pequenas e médias empresas.
Há grande divergência na doutrina acerca do local e da data de
surgimento das sociedades de responsabilidade limitada: se na Inglaterra,
por volta de 1862, com as Private Companies; ou se na Alemanha, em
1892, com a Geselschaft mit Beschränkter Haftung, conhecida pelas
iniciais GmbH, mescla de sociedade de pessoas e de capitais.
Ressalta Fran Martins que, na Inglaterra, o costume se antecipou ao
legislador, criando-se as sociedades limitadas antes que a lei as regulasse.
Entretanto, as private companies não são, exatamente, o mesmo tipo de
sociedade de responsabilidade limitada existente no direito continental,
possuindo quase todas as características das sociedades anônimas com
restrições impostas pelo costume apenas quanto ao modo de formação, ao
número de sócios (mínimo de sete para dois e máximo de ilimitado a cinqüenta) e cessão das quotas sociais (que foi dificultada), por sinal chamadas de ações (shares).
De acordo com os tradicionais princípios do direito inglês, tais sociedades, assim formadas, não foram molestadas por parte do Poder Público. Pelo contrário, difundindo-se a prática, mais tarde foram reconhecidas
por lei e, posteriormente (Companies Act, de 1907) regulamentadas. Até
então, eram apenas sociedades de fato e não de direito, não gozando de
personalidade que, no direito inglês, é adquirida com o registro.
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Assim, dadas as peculiaridades da sociedade de origem inglesa, a
maioria da doutrina defende que a sociedade limitada teve sua origem no
direito alemão, que viveu o mesmo problema econômico da Inglaterra, mas
optou por partir de uma legislação na qual fossem traçadas todas as normas necessárias para que a nova sociedade pudesse cumprir as suas finalidades econômicas e, ao mesmo tempo, caracterizar-se, juridicamente, como
uma sociedade autônoma dentro do quadro das sociedades comerciais.
Da Alemanha, o novo tipo societário se expandiu para Portugal, em
1901; para a Áustria, em 1906; e Inglaterra, em 1907 (Companies Act).
No Brasil, o deputado Joaquim Luiz Osório, baseado em um projeto de reforma do Código Comercial de Inglês de Souza, apresentou, em
1918, um projeto para a criação no Brasil da sociedade por cotas de responsabilidade limitada que, por sua vez, foi aprovado sem alterações dando origem ao Decreto nº 3.708 de 10-01-19, que vigorou até a edição do
novo Código Civil.
Hoje a sociedade limitada é o tipo societário mais utilizado no Brasil,
correspondendo a mais de 90% do total de sociedades empresariais. Seu
sucesso decorre de dois fatores principais: a limitação da responsabilidade
dos sócios e a contratualidade.
É justamente em decorrência dessa sua relevância no cenário empresarial do país que se justifica o presente estudo, pois as implicações
trazidas pela nova ordem legal em relação às sociedades limitadas afetam
um grande número de pessoas, físicas e jurídicas, em especial se não for
acatada a tese acerca do ato jurídico perfeito.
3
O ATO JURÍDICO PERFEITO
O ato jurídico perfeito é aquele que sob o regime de determinada lei
tornou-se apto para produzir os seus efeitos pela verificação de todos os
requisitos a isso indispensáveis. É aquele que já reuniu todos os seus elementos constitutivos exigidos por lei.
Segundo Clóvis Bevilacqua (1959, p. 101):
O direito quer que o ato jurídico perfeito seja respeitado pelo legislador e pelo intérprete na aplicação da lei, precisamente porque o
ato jurídico é gerador, modificador ou extintivo de direitos. Se a lei
pudesse dar como inexistente ou inadequado o ato jurídico (...) o
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direito adquirido, dele oriundo, desapareceria por falta de título ou
fundamento. Assim, a segurança do ato jurídico perfeito é um modo
de garantir o direito adquirido, pela proteção concedida ao seu elemento gerador.
Constata-se, outrossim, que com fincas a garantir a segurança das
relações jurídicas o direito impede que uma norma legal superveniente venha desdizer aquilo já aperfeiçoado ou consumado por meio de um ato
jurídico. Justamente por isso tanto a Lei de Introdução do Código Civil
quanto a Constituição Federal, cada qual à sua maneira, afirmam que a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
(art. 5º, XXXVI, da C. F.; art. 6º, caput, da LICC)2.
Fundamental para o presente estudo é assentar que para a existência
de ato jurídico perfeito, apto a merecer a tutela jurídica como tal, indispensável se torna que tenha ele se consumado, é dizer, acabado, quando da
entrada em vigência da lei posterior. Somente assim se dará a imutabilidade
assegurada pela Magna Carta e pela Lei de Introdução do Código Civil.
Exatamente nesse sentido é a lição de José Cretella Júnior (1992, p.
459-460):
Na expressão “ato jurídico perfeito”, o vocábulo “perfeito” tem o
sentido de “acabado”, “que completou todo o ciclo de formação”,
“que preencheu todos os requisitos exigidos pela lei”. (...) Se o ato
se completou, na vigência de determinada lei, nenhuma lei posterior
pode incidir sobre ele, tirando-o do mundo jurídico, porque “perfeição”, aqui, é sinônimo de “conclusão”.
Percebe-se, aqui, que uma vez tendo o ato jurídico realmente completado todo o ciclo de formação, ou seja, esteja consumado, dúvida não
2
Dispõe o artigo 6º da LICC: “Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados
o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que
se efetuou”. Dispõe o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “Art. 5º. Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Omissis, omissis; XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito
e a coisa julgada”;
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haverá acerca de sua caracterização como perfeito, atraindo dessa forma a
proteção constitucional.
No entanto, o contrato social de uma sociedade limitada nunca poderá ser classificado como ato jurídico perfeito.
É o que procuraremos demonstrar a seguir.
4
O ATO CONSTITUTIVO DA SOCIEDADE LIMITADA
O encontro da vontade dos sócios da sociedade limitada será concretizado em um contrato social, em que se definirão as normas
disciplinadoras da vida societária.
É por meio da celebração de tal contrato, e seu posterior arquivamento, que a sociedade limitada ganha existência no mundo jurídico. O ato
jurídico que dá início à vida societária da limitada, já se vê, é aquele contrato assinado pelos quotistas.
O contrato social é uma forma bastante peculiar de contrato. Além
das normas do direito civil, há que se observar as legislações especiais. O
contrato de sociedade é uma espécie do gênero “contrato plurilateral” em
que converge para um mesmo objetivo comum a vontade dos contratantes3. Como contrato plurilateral, cada contratante assume obrigações perante os demais sócios. O dever do sócio de integralizar a quota do capital
social decorre do contrato social; o titular do direito correspondente a esse
dever é a sociedade nascida também do mesmo contrato.
Como bem observa Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto (1956, p.
65):
Trata-se [o contrato social], porém, de um tipo de contrato diferente, onde as partes, em lugar de terem interesses antagônicos e opos-
3
Tullio Ascarelli classifica os contratos de sociedade como uma subespécie de contrato, o
plurilateral, esclarecendo: “todas as partes de um contrato plurilateral são titulares de
direitos e obrigações. Cada parte, pois, tem obrigações, não para com ‘uma’ outra, mas para
com ‘todas’ as outras. Se quiséssemos ser indulgentes para com o uso recente de imagens
geométricas na ilustração de fenômenos jurídicos, poderíamos dizer que, no contrato de
sociedade e nos contratos plurilaterais em geral, as partes se acham como dispostas em
círculo; nos demais contratos, ao contrário, cada uma das (duas) partes se acha num dos
extremos de uma linha.”. In: Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, p.
287.
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tos, esforçam-se para o mesmo resultado. Daí observa VIVANTE
que o contrato de sociedade transforma os interesses individuais e
divididos dos sócios em interesse coletivo.
Tal caráter sui generis do contrato de sociedade assume particular
relevo para o nosso estudo na medida em que, também em decorrência
dele, não há como se falar em perfeição do ato, na medida em que ele
protrai seus efeitos ao longo do tempo.
Deveras, o contrato de sociedade pressupõe uma comunhão de interesses entre os sócios – affectio societatis – que não se limita ao momento da sua celebração, mas permeia toda a vida da sociedade de tal
forma que, uma vez extinto, impede inclusive sua continuidade. Nesse sentido é a exata lição de João Eunápio Borges (1971, p. 265):
E o problema será muitas vezes o de descobrir se em certas relações
existe de fato a intenção de formar uma sociedade. Ou porque tal
intenção não se manifestou claramente, ou porque, existindo a sociedade, os contratantes têm interesse em dissimulá-la, sob a aparência de outra relação afim.
Além disso, ao que parece, desconhecem ou descuram os autores
modernos a diferença entre a affectio societatis e o simples
consensus, que se encontra em qualquer contrato, assim como a
que existe entre a primitiva societas romana e o contrato atual de
sociedade.
Aquela exauria seus efeitos nas relações internas entre os sócios,
não se refletindo na posição destes em suas relações com terceiros e
pela renuntiatio podia o sócio deixá-la a qualquer momento, sempre que cessasse a affectio societatis.
E assim se esclarece o verdadeiro significado da expressão. Affectio
societatis é apenas o consentimento, o elemento subjetivo comum e
indispensável à formação de todo e qualquer contrato.
Apenas, nos contratos de sociedade, em vez de se reduzir como nos
demais ao “instantâneo encontro de um pólo positivo e negativo,
onde se acende a centelha da obrigação”, a affectio implica a permanência de uma intenção comum, cuja cessação acarretaria a cessação do contrato.
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Significa dizer que, sendo indispensável a existência da affectio ao
longo de toda a vida societária, sob pena de cessação do próprio contrato
de sociedade, este não pode ser considerado como consumado ou acabado no momento de sua assinatura pelas partes, mas antes como de execução diferida ou continuada, aperfeiçoando-se a cada dia4.
Acerca do ato de execução continuada, doutrina Vicente Ráo (1997,
f. 63):
Segundo nosso modo de ver, os atos de execução continuada (todos e não apenas os contratos) caracterizam-se pela unidade orgânica da relação e pelo desdobramento ou pluralidade de suas prestações, a fim de serem cumpridas em momentos ou termos sucessivos e predeterminados por lei, ou por atos dispositivos convencionais. Embora distintas quanto ao tempo de vencimento, essas prestações múltiplas ou desdobradas umas às outras se prendem em conseqüência da unidade estrutural da relação que, gerando-as, as
disciplina.
Do exposto ressai que o contrato social de uma sociedade limitada,
mesmo daquela constituída antes do advento do novo Código Civil, não
pode ser considerado ato jurídico perfeito, porquanto não se consuma no
ato de sua assinatura ou em momento único, mas, ao contrário, se aperfeiçoa a cada dia, emanando seus efeitos ao longo do tempo.
5
CONCLUSÃO
Conclui-se do que foi apresentado que não pode prosperar o raciocínio daqueles que entendem ser imutável o contrato social das sociedades
limitadas sob o argumento de que se constituem como atos jurídicos perfeitos.
Tais contratos sociais, em virtude de irradiarem efeitos ao longo do
tempo, dependendo da existência da affectio societatis para continuarem
4
Está na lição de GOMES, Orlando (2001, p. 81): “Aos contratos de duração contrapõemse os instantâneos ou de execução única, que se caracterizam por serem executados, de
uma só vez, em um só momento. A execução pode dar-se imediatamente após a sua
conclusão, ou ser protraída para outro momento. No primeiro caso, diz-se que são contratos de execução imediata. No segundo, contratos de execução diferida”.
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hígidos, não se consumam na sua assinatura ou em momento subseqüente
único por isso não podem ser caracterizados como atos jurídicos perfeitos
sob a ótica do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil ou artigo 5º,
XXXVI, da Constituição Federal.
Consectariamente, todos os contratos sociais das sociedades limitadas contratadas antes do advento do novo Código Civil são por ele atingidos, devendo ser analisados caso a caso para se verificar a necessidade de
alteração antes de 10 de janeiro de 2007, prazo máximo para tal desiderato.
(manter a data?)
É extremamente aconselhável, por exemplo, que os sócios da sociedade limitada (desde que em número de dez ou menos, pois do contrário a
opção não é possível) redijam uma cláusula estabelecendo que as deliberações serão tomadas por meio de reunião, em vez de assembléia,
convencionando ainda a forma de sua convocação; que eles estabeleçam a
regência supletiva da sociedade limitada (hoje, a regra é que ela se dê pelas
normas atinentes à sociedade simples, artigos 997 a 1.038 do NCC); a
conveniência de ter um terceiro administrador e inúmeras outras matérias
suscitadas pelo novo diploma que requerem uma pausada reflexão e debate entre os interessados.
Importante ainda destacar que os sócios casados sob o regime de
comunhão universal de bens ou separação obrigatória de bens que não
adaptarem o contrato social antes de 10 de janeiro próximo estarão sujeitos a responder pessoalmente pelas dívidas da pessoa jurídica, uma vez
que o referido contrato poderá ser invalidado pelo Judiciário a pedido do
credor da sociedade.
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva & Cia, 1945.
BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Paulo
de Azevedo, 1959, vol. I.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos. (aqui falta o ano da publicação)
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de
Janeiro: Forense, 1971.
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6.ed. rev. e atual.
de acordo com o novo Código Civil e alterações da L.S.A. São Paulo:
Saraiva, 2003, vol. 2.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de
1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, vol. I.
FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1961, vol. 3.
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa 3.ed.
reform. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1.
PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. A sociedade por cota de responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
RÁO, Vicente. Ato jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e
acidentais: O problema do conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 4. ed., anotada, rev. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
LIMITADAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
EDEN MATTAR
Sumário
1. Introdução. 2. Dos institutos assemelhados e diferenciações. 3. Da dissolução parcial. 4. Conclusão. 5.
Resumo. 6. Referências bibliográficas.
Resumo
Dissolução parcial. Confusão com institutos tais como recesso, retirada, morte, falência e exclusão de sócio. Diferenças. Suporte na nova
legislação civil e em nível constitucional.
Abstract
Parcial dissolution. Confusion with the institutes such as the right of
recess, redraw, death, bankruptcy and partner exclusion. Differences.
Support in the new substantial civil law and constitucional level.
1
INTRODUÇÃO
A questão posta no presente texto se faz objeto de acirrados combates na doutrina e na jurisprudência, pelo que não há interesse em definição de pontos, mas meramente contribuir para os estudos aprofundados
que o tema merece.
A dissolução parcial de sociedades sempre foi analisada ou de forma
global ou de forma dispersa, por intermédio de institutos que, embora guardem certa semelhança, com ela não se confundem.
Assim, o enfoque da questão – a dissolução parcial stricto sensu
nas sociedades limitadas sob a égide supletiva das sociedades simples –
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BELO HORIZONTE
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tentará trazer novos contornos ao instituto e desfazer as dúvidas que possam ainda existir sobre ele, em especial diferenciando-o dos institutos anteriormente referidos.
2
DOS INSTITUTOS ASSEMELHADOS
E DIFERENCIAÇÕES
Vários são os institutos com os quais a dissolução parcial se confunde, dentre eles podem ser citados a falência, o recesso, a retirada, a morte
e a exclusão de sócio.
Contudo, como se verá, a sintonia é apenas aparente e fica mais
distante com uma análise profunda da questão.
Da falência – O Código Civil de 2002 traz em seu artigo 1.044,
aplicável por força dos artigos 1.053 e 1.087, a falência da sociedade
como causa de sua dissolução. Antes, deve ser lembrado que não é a declaração da falência que causa a extinção da sociedade, mas, sim, seu encerramento, judicialmente constatado, com a extinção das obrigações, procedendo-se ao arquivamento do ato na Junta Comercial para os devidos
fins legais1. Assim, o Código Civil parece ter eleito, de forma equivocada, a
falência como causa de extinção extrajudicial2.
No que concerne à falência dos sócios, o novel estatuto substantivo
é claro em asseverar, em seu artigo 1.030, parágrafo único, que a problemática se resolve mediante a exclusão do sócio, e não dissolução da sociedade, com mera apuração de haveres, o que se coaduna com o artigo 81
da novel lei falimentar.
Assim, só pelo fato de se tratar de saída involuntária, distingue-se da
dissolução parcial, que trata da vontade de desligamento do sócio.
Do direito de recesso – O direito de recesso é prerrogativa que
acontece apenas quando há divergência de um sócio a respeito de alguma
atitude tomada pelos demais componentes do corpo societário, cujo moti-
1
2
Fran Martins entende, inclusive, que é necessária terceira fase, qual seja, de extinção das
obrigações.
Mesmo porque até o encerramento da falência há possibilidade de soerguimento da empresa ou suspensão de seus efeitos. Nesse sentido é o entendimento de FAZZIO JÚNIOR,
Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002, p. 288.
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vo de discordância esteja previsto em lei, tendo suas origens ou motivações no poder que se confere ao minoritário para castrar as decisões da
maioria ou, pelo menos, para contra elas poder se resguardar, estando
atualmente previsto no artigo 1.077 do novo Código Civil.
Tal direito, como se vê, é viável apenas se for embasado em um dos
motivos expostos no artigo citado, ou seja, se previsto legalmente, competindo apenas ao sócio dissidente ou, melhor, ao minoritário (uma vez que
para haver alteração e aprovação das matérias elencadas no dispositivo
mencionado é necessário o consenso da maioria correspondente a três
quartos do capital social – artigo 1.071, VI, c/c 1.076, I, NCC3).
Corresponderia ao artigo 15 do Decreto nº 3.708/19, previsto atualmente
no artigo 137 da Lei das Sociedades Anônimas.
Por ser disposição legal, exercido por manifestação de vontade4 (que
não pode, portanto, ser suprimido por disposições contratuais) é que, em
regra geral, independe de intervenção judicial, mas se houver ação, a motivação há de ser observada (o que não acontece com a dissolução parcial).
Não poderá ser suprimido por disposições contratuais, uma vez que
se trata de norma estabelecida de forma legal.
O recesso não se confunde com a dissolução parcial, pois aquele é
prerrogativa prevista legalmente, cabível a sócios minoritários, essa tem
por base a ausência de tipificação do artigo que embasa o direito de recesso, sendo viável a qualquer sócio e independente (regra geral) de motivação.
Nos dizeres de Mauro Rodrigues Penteado:
A chamada dissolução parcial, fórmula elaborada pela doutrina e
largamente admitida pelos tribunais, encontra na limitada utilização
intensiva que permite aos quotistas obterem, na via judicial, resultado semelhante ao alcançado pelo direito de recesso ou retirada –
com a substancial diferença de que, aqui, não precisam alegar nenhuma das hipóteses que constam na lei, em elenco fechado,
3
4
Artigo 1.071: “Dependem de deliberação dos sócios, além de outras matérias indicadas na
lei ou no contrato: [...] VI – a incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a
cessação do estado de liquidação”. Artigo 1.076: “Ressalvado o disposto no artigo 1.061 e
no § 1º do art. 1.063, as deliberações dos sócios serão tomadas: I – pelos votos correspondentes, no mínimo, a ¾ (três quartos) do capital social, nos casos previstos nos incisos V
e VI do art. 1.071”.
Como asseverado por FONSECA, Priscila M. P. Dissolução parcial, retirada e exclusão
de sócio no novo Código Civil, p. 26.
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como pressuposto para o exercício desse direito (no caso do Dec.
nº 3.708/19, a divergência na alteração do contrato social – art. 15).5
(grifo nosso).
Esse é, exatamente, o posicionamento de Vera Helena de Melo
Franco:
Outro ponto onde a situação não é muito clara é o da separação
entre a dissolução parcial e o recesso. Por vezes, em uma e em outra
sentença a dissolução parcial recebe tratamento semelhante àquele
atribuído ao recesso. Isto não só quanto aos requisitos para fundamentar o pedido, como, ainda, tendo em vista os efeitos que dele
deveriam decorrer. Por exemplo, embora cuide-se de dissolução
parcial, fala-se em dissidência ou recorre-se ao contrato para disciplinar a apuração de haveres. A impropriedade é evidente. A dissidência é condição para o exercício do direito de recesso, mas
não o é para o pedido de dissolução. Da mesma forma, quando o
contrato disciplina o modo de apuração dos haveres para a hipótese
de retirada, o critério não atinge a dissolução parcial. Muito menos,
tem aplicação a regra estabelecida na norma do art. 15 do Dec.
3.708/1919. Dissolução parcial e recesso são coisas distintas que
devem ser bem extremadas6 (grifo nosso).
No mesmo sentido, Alfredo de Assis Gonçalves Neto, ao dispor
sobre a dissolução:
Trata-se de direito potestativo que tem seu substrato no princípio
que repele a assunção de compromissos eternos. Contudo, esse direito é muito mais amplo do que o de recesso, eis que pode ser
exercido em qualquer tipo societário regrado pelo Código Comercial e independentemente de o sócio divergir de alteração contratual7.
Tais são as distinções entre os dois institutos.
5
6
7
PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades, p. 154.
FRANCO, Vera Helena de Melo. Dissolução parcial e recesso nas sociedades por quotas
de responsabilidade limitada. Legitimidade e procedimento. Critério e momento de apuração de haveres. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, nº 75, p. 23-24, jul./set. 1989.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário, p. 232-233.
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES ...
Do direito de retirada – O direito de retirada não é legal, mas,
sim, contratual, distinguindo-se, por isso, do direito de recesso, anteriormente estudado.
Os sócios podem, no contrato social, prever causas específicas para
o exercício do direito de retirada (desde que diversas das causas legais do
recesso) ou simplesmente estabelecê-las de forma geral e inespecífica.
Podem, por exemplo, dispor que o sócio poderá retirar-se em caso de
aumento não autorizado de capital social, ausência de integralização de
quotas de um dos demais sócios depois de certo período, necessidade de
contrair dívidas acima de certo patamar ou simplesmente deixar em aberto
a possibilidade não mais participar da sociedade, estipulando regras para
notificação da sociedade, apuração e recebimento de haveres.
Pode acontecer até mesmo que, juntamente com a cláusula contratual
que estipule esse direito, esteja prevista a renúncia ao direito de pretender
a dissolução total imotivada do corpo societário – o que coaduna com o
espírito de preservação da empresa. Uma vez existindo tal cláusula, deve
haver a garantia do direito de retirada, como requisito de sua validade.
Na verdade, a saída imotivada, pura e simples do sócio, que ensejaria
a dissolução parcial, será exercida uma vez não previsto o pleno direito de
retirada do sócio (por exemplo, se existir estabelecimento de saída com
apuração de haveres de forma incompleta) ou sendo esse impossível (sem
justa causa em sociedades por prazo determinado), ou, ainda, não existindo disposição a respeito da apuração de haveres.
O direito de retirada poderá, então, excluir a possibilidade de dissolução parcial, trazendo maior segurança e estabilidade ao vínculo jurídicosocietário. Daí não se confundirem os institutos.
O suporte do direito de retirada pode ser verificado, de forma genérica, no artigo 421 do novo estatuto civil, e de forma direta, no artigo 1.035
(c/c 1.053).
Distingue-se da dissolução parcial por depender de elaboração
contratual geralmente motivada (mas sempre prevista no instrumento de
regência da sociedade) e não no simples direito de dissolução.
Da morte de sócio – A lei substantiva civil é expressa no sentido de
que a morte não é mais causa de dissolução total da sociedade, mas de
liquidação de quota social, conforme se verifica em seu artigo 1.028.
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Assim, seja quando não houver previsão contratual de término da
sociedade com a morte de sócios, persistindo a sociedade após pagamento das quotas aos herdeiros do falecido, seja quando os sócios optarem
por substituí-lo, não haverá a dissolução societária, só admissível em caso
de decisão dos sócios e, mesmo assim, em sua forma total (mas até nesse
caso seria de se questionar sobre o direito do sócio remanescente continuar a sociedade).
As diferenças entre a morte e a dissolução parcial começam pelo
fato de que essa última é pretendida por quem é sócio, qualidade que não
têm os herdeiros do sócio pré-morto (a sucessão tem efeitos meramente
patrimoniais). Além disso, não se trata de exercício de direito de desligamento do sócio.
Da exclusão de sócio – Característica da exclusão de sócio é o
afastamento motivado e compulsório do membro que descumpre seus papéis contratual e/ou legalmente estipulados, causando rompimento do contrato plurilateral societário.
Seja ela judicial (justa causa ou incapacidade – art. 1.030 caput),
seja extrajudicial (rompimento dos vínculos da sociedade em relação a sócios minoritários e sócios remissos, falência de sócio e do que tiver sua
cota liquidada – artigos 1.085, 1.004, 1.030, parágrafo único, 1.026 NCC),
de qualquer ângulo do qual se analise a questão, a verdade é que se trata
de ato praticado por terceiros, e não pelo sócio que está se retirando do
quadro social.
3
DA DISSOLUÇÃO PARCIAL
O artigo 1.029 do novo Código Civil é o embasamento jurídico da
dissolução parcial, aplicável seja por causa das omissões que possam existir no contrato social (não acolhimento do direito de retirada pleno), seja
pela ausência de tipificação de todas as situações que possam ensejar o
direito de recesso, uma vez verificando que o artigo 1.077 é taxativo em
seu elenco.
Não se pode olvidar que a dissolução parcial tem por índole o direito do sócio de se desligar do núcleo societário sem necessidade de motivar
seu pleito, o que não ocorre no direito de retirada nem no de recesso, bem
como nos demais institutos em comento (falência, morte e exclusão de sócio).
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Poucos autores pátrios têm se inclinado para o entendimento ora
esposado (não obstante não terem aprofundado ou mostrado total consonância com o que ora se expõe), dentre eles, podemos citar André Lemos
Papini, Jorge Lobo, Modesto Carvalhosa e, ainda, Priscila M. P. Corrêa
da Fonseca e Fábio Ulhoa Coelho8.
De qualquer ângulo do qual se analise a questão, a verdade é que o
Código tratou do assunto da saída do sócio com muita economia, o que lhe
é prejudicial, pois pode enclausurá-lo no organismo social contra sua vontade ou exigir dele a ocorrência de motivos legais restritos para que, somente assim, possa desligar-se do mecanismo que não mais o atrai.
Seu suporte jurídico também pode ser percebido no artigo 5°, II,
XIII, XX e 170 da CF/88 e no artigo 4º da LICC – regras em
constitucionalização do direito privado.
Uma última análise pode ser feita: o artigo 1.029 do novo estatuto
civil prevê que “além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer
sócio pode retirar-se da sociedade”. Ou seja, é a própria lei que se refere
à viabilidade de afastamento do sócio além dos casos de recesso (previsto
na lei) e de retirada (previsto contratualmente).
Várias outras ponderações poderiam ser feitas, para as quais há também resposta, tais como a dissolução parcial motivada ou em sociedades
por prazo determinado, forma de apuração de haveres, função social da
dissolução, motivação de ação judicial, mas que fogem ao estreito caminho
traçado neste estudo.
4
CONCLUSÃO
A dissolução parcial é encarada pela maioria dos autores pátrios em
confusão com diversos institutos, tais como a retirada, o recesso, a morte e
a falência de sócio, bem como a exclusão.
O direito de recesso, que não se confunde com a dissolução parcial,
é prerrogativa apenas dos sócios minoritários, com exercício dependente
de motivação contida na lei, sendo necessária divergência a atitudes e acontecimentos predeterminados legalmente.
O direito de retirada também é confundido com o instituto objeto
deste trabalho, mas, na verdade, para que ocorra deve estar disposto contra8
Citados nas referências bibliográficas.
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tualmente e de forma motivada na maioria das vezes, sendo faculdade
apenas do sócio minoritário.
A morte não se confunde com a dissolução parcial, principalmente
por não ser realizada a quebra do vínculo por quem é sócio (enquanto não
adentrar no quadro social, o herdeiro ou sucessor do sócio falecido não
detém tal titularidade) e por não se tratar de exercício de direito de afastamento de sócio.
Já a falência de sócio não enseja a dissolução total da sociedade,
mas, antes, a mera liquidação de seus haveres.
Finalmente, a expulsão de sócio também guarda mera similitude com
a dissolução. Entretanto, em análise mais apurada, percebe-se que há várias categorias e formas sendo feitas por parte dos sócios (maioria) após
motivação prevista contratualmente (justa causa).
Todos esses são fenômenos desassociativos e não dissolutórios.
A dissolução parcial deitou suas raízes no direito brasileiro, embora
sem explícito apoio legal, mas com plena aceitação doutrinária e
jurisprudencial, e principalmente embasada em dispositivo que lhe traçou
originariamente as diretrizes.
O novo Código Civil traz dispositivo que a contempla (artigo 1.029),
de forma direta ou indireta, bem como seu sustentáculo se encontra em
nível constitucional (podendo ser citados vários artigos, dentre os quais
sobressai o artigo 5º, XX).
Trata-se de direito a ser exercido, na maioria das vezes, de forma
imotivada, bastando a indeterminação do prazo da sociedade para sua
ocorrência; ou mesmo nas sociedades com prazo determinado, com motivação diversa das legais e contratuais que embasam os direitos de recesso
e retirada, respectivamente.
5
RESUMO
Em linhas gerais, foram analisadas algumas características da dissolução parcial, as quais ora se resume, e que a distinguem dos demais institutos:
• É direito potestativo, de caráter constitucional.
• Cabe a qualquer sócio, majoritário ou minoritário.
• Geralmente é desmotivada nas sociedades sem prazo. Nas com
prazo determinado, a motivação deve ser diversa da prevista legalmente
para o direito de recesso e da contratual existente para o direito de retirada.
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• Em regra geral, não há necessidade de apontamento de qualquer
divergência.
• Se faz como pleito tanto para se afastar do vínculo societário bem
como para nele permanecer, em caso de dissolução total pedida pelos demais sócios.
• Pode ser judicial ou extrajudicial.
• É opção de quem já consta do quadro societário (ou seja, já é
sócio).
• Será seguida de ampla apuração de haveres.
• Causa ruptura de vínculo em relação a um dos sócios e à sociedade, podendo ser por denúncia vazia nas sociedades por prazo indeterminado,
ou cheia nas por prazo determinado (de forma obrigatória nessas últimas).
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERGARIA NETO, Jason Soares de. Partes na ação de dissolução
de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 2001. 270 f.
Tese (Doutorado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte.
BARBI FILHO, Celso. Dissolução parcial da sociedade de quotas de
responsabilidade limitada. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, 541 p.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: parte especial do direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2003, 840 p.
COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2003, 180 p.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo: Atlas, 2003, 317 p.
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio no novo Código Civil. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2003, 264
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FRANCO, Vera Helena de Mello. Dissolução parcial e recesso nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Legitimidade e procedimento. Critério e momento de apuração de haveres. Revista de Direito
Mercantil, São Paulo, n. 75, p. 19-30, jul./set. 1989.
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GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, 296 p.
LOBO, Jorge. Sociedades limitadas. Rio de Janeiro: Forense, 2004, 425
p.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 23.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, 384 p.
PAPINI, André Lemos. A sociedade limitada e o novo Código Civil. In:
RODRIGUES, Frederico Vianna (Coord.). Direito de empresa. Rio de
Janeiro: Forense, 581 p.
PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades. 2.ed. São Paulo: Saraiva. 2000, 315 p.
PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução parcial da sociedade limitada
(da resolução da sociedade em relação a um sócio e do sócio em relação à
sociedade). In: RODRIGUES, Frederico Vianna (Coord.). Direito de
empresa. Rio de Janeiro: Forense, 2004, 581 p.
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DESISTÊNCIA E RENÚNCIAAO
PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
EDUARDO SILVA BITTI
Sumário
1. Introdução. 2. A desistência ao pedido de concordata
e o surgimento da recuperação judicial. 3. A desistência
e a renúncia ao pedido de recuperação judicial. 3.1.
Renúncia. 3.2. Desistência. 4. Considerações finais. 5.
Referências bibliográficas.
Resumo
A narrativa da nova legislação falimentar brasileira esqueceu o problema da desistência ao pedido de recuperação judicial com a respectiva
menção em apenas um dos parágrafos do artigo 52. Nestes comentários,
escrevemos sobre as possibilidades interpretativas do tema e seus contornos.
PALAVRAS-CHAVE: recuperação judicial; desistência; renúncia.
Abstract
The bankruptcy law narrative forgot the desistance problem for juridical
recovery request with respective mention in only one of the 52 article
paragraphs. On these comments, we write about the theme interpretative
possibilities and it shapes.
KEYWORDS: juridical recovery; desistance; quitclaim.
1
INTRODUÇÃO
A nova lei de falências e recuperação judicial trouxe pequeno tratamento ao problema da desistência e renúncia ao pedido de recuperação
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
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judicial, de que passamos a tecer comentários e a analisar as hipóteses em
que se averigua.
A dúvida que paira é afagada pela interpretação da norma colocada
como objeto de crítica e a resposta não pode ser sintetizada em afirmação
única. Talvez o caráter empírico sirva de amparo para as proposições acerca
da exegese a ser exposta. O importante é que tenhamos uma clara visão
dessa problemática, tema que se não é inédito guarda sua própria virtude,
a de não ser extemporâneo, e isso já é de bom grado.
2
A DESISTÊNCIA AO PEDIDO DE CONCORDATA E
O SURGIMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Em resumida ilustração, no estudo da antiga concordata era notável
o requerimento do empresário com o objetivo precípuo de seu próprio
resgate, o que em boa parte das vezes em nada resultava. O procedimento
utilizado tornava inútil a espera do cumprimento do tal “favor” concedido
pelo Estado a fim de que o devedor pudesse se reerguer. Enquanto mentalizávamos o sucesso da concordata, nenhum resultado efetivamente era
obtido, o que gerava a ineficácia do instituto aliada ao clamor por mudanças de ordem social em relação à atividade empresarial.
O antigo horizonte concordatário refletia um direito de ação fundado
em jurisdição voluntária. Não havia, portanto, partes, somente interessados em receber do devedor aquilo que lhes seria destinado mediante direito obrigacional. O comerciante se dispunha perante o Estado a cumprir
com suas dívidas ali relacionadas, como forma de fuga ao amargo remédio
da falência, do caráter empresarialmente letal que acabaria com um possível sonho de recebimento dos créditos por parte dos credores.
Esse entardecer epistemológico acabou por fazer com que nova ordem normativa fosse interposta de modo a tentar acabar com alguns absurdos decorrentes dessa sistemática, o que não impediu a configuração de
novos erros e defeitos, como a falta de tratativas mais consideráveis a respeito de situações como as que discorremos neste texto.
A súplica da comunidade jurídica nacional pela criação de uma lei
que viesse a enfrentar o desafio de regulamentar melhor a matéria tinha
como base a fuga à idéia do cataclísmico benefício da pessoa do empresário e o direcionamento do resguardo da atividade exercida, a empresa.
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DESISTÊNCIA E RENÚNCIA AO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A recuperação judicial surgiu em um espasmo parlamentar, em uma
contração que durou mais de dez anos para ser aprovada e que acabou
por trazer mais dúvidas do que respostas.
Antes de passar à espumenta reflexão principal, vale dizer que boa
parte de nossa inquietação jurídica se deve à efetividade da nova norma. A
própria noção da jurisdição do pedido de recuperação judicial a ser empregada é controvertida, ou seja, se é voluntária ou se apresenta contenciosa.
Na divergência a José Frederico Marques1 quanto à concordata,
Vinícius José Marques Gontijo2, v.g., tomou posicionamento no sentido da
segunda ao concluir em sua tese de doutoramento pela Universidade Federal de Minas Gerais:
Dito isso, tem-se por corolário que a ação de concordata é uma
ação de jurisdição voluntária, reitere-se à exaustão. Diverso é o caso
da recuperação judicial que, assumindo o caráter contratual, admite
lide por impugnação (art. 56 do PLF), depende da manifestação dos
credores em assembléia (art. 37 do PLF), e, portanto, envolve as
partes: devedor e credores sujeitos à recuperação, apenas não há
vedação da convolação da recuperação em falência, externando que
a sentença de concessão não gera coisa julgada material. Por tudo
isso, tem-se que concluir que, efetivamente, a recuperação judicial
será uma ação de natureza contenciosa.
A considerar o trabalho brilhante e pioneiro do autor sobre a temática,
escrita ainda sobre a desistência ao pedido de concordata, ou seja, antes
da atual legislação falimentar, não podemos coadunar com essa assertiva
de que haveria uma natureza processual contenciosa, apesar de também
acreditar no caráter contratual.
Está certo que ser uma ação-contrato é o que se posta como destino ao pedido de recuperação judicial, mas isso nada tem de contencioso.
Os credores habilitam seus créditos e são levados a constituir uma assem1
2
Marques, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. Campinas: Millennium,
2000, p. 262. Apud Gontijo, Vinícius José Marques. Da desistência e da renúncia à ação de
concordata. UFMG: Belo Horizonte, 2004, p. 30.
GONTIJO, Vinícius José Marques. Da desistência e da renúncia à ação de concordata.
Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 54.
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bléia para discutir planos de recuperação, mas nem por isso são partes.
Eles nada mais são de que interessados, pessoas que desejam ver seus
créditos satisfeitos, que devem, entretanto, ponderar sobre a permissibilidade
da forma de pagamento e nada mais. A negativa ao pedido gera efeitos
diversos e nem por isso há lide.
Na certeza que a doutrina pátria tende a se insurgir contra aspectos
objetivos da nova lei falimentar, como o faz Ricardo Negrão3, deixamos de
apreciar outras interrogações e conseqüências da hermenêutica daquela
nova sistemática normativa.
3
A DESISTÊNCIA E A RENÚNCIA AO PEDIDO
DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
O Projeto de Lei nº 46.376-B (PLF), de 1993, abordou a situação sob a denominação de recuperação judicial e dispôs diretamente
sobre a matéria da desistência no artigo 514, mas não foi aproveitado
pela legislação aprovada sob o número 11.101, que em seu artigo 52,
parágrafo 45 apenas revelou o momento em que o pedido revogatório
poderia ser feito.
3
4
5
NEGRÃO, Ricardo. Aspectos objetivos da Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Saraiva, 2005.
Projeto de Lei nº 4376-B/1993 – Artigo 51. A qualquer tempo, no curso da tramitação da
ação de recuperação judicial, desde que não com o objetivo de se furtar ao cumprimento das
obrigações assumidas na recuperação, o devedor poderá requerer a desistência de seu
pedido, ressalvado o total cumprimento dos atos jurídicos válidos firmados no âmbito da
recuperação judicial. § 1º. O pedido de desistência será autuado em separado e o juiz
mandará intimar todos os credores, para, querendo, impugnarem o pedido no prazo de 30
(trinta) dias, mediante edital publicado e afixado em cartório. § 2º. Havendo ou não
impugnação, ouvido o Comitê, o administrador judicial e o Ministério Público, o juiz
decidirá. § 3º. Tendo sido deferido o pedido de desistência, o devedor reassumirá sua
condição empresarial pretérita e os credores terão reconstituídos integralmente seus direitos e garantias, ressalvados os créditos renegociados. § 4º. Da sentença que deferir o pedido
de que trata o caput deste artigo cabe apelação. § 5º. O devedor desistente do pedido de
recuperação judicial não poderá renovar a ação pelo prazo de 2 (dois) anos, a partir do
trânsito em julgado da homologação.
Lei nº 11.101/2005 – Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta
Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato: § 4º. O
devedor não poderá desistir do pedido de recuperação judicial após o deferimento de seu
processamento, salvo se obtiver aprovação da desistência na assembléia-geral de credores.
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DESISTÊNCIA E RENÚNCIA AO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Com a não aprovação do texto original, essa tratativa se resumiu
àquilo que Celso Marcelo de Oliveira6 observou:
Assim, a doutrina e a jurisprudência definem dois marcos para a
consideração da possibilidade da desistência, ou seja, antes ou depois do despacho do juiz que manda processá-la. Antes do despacho de processamento da concordata não há divergência, pois é
perfeitamente possível a desistência do pedido de concordata, na
medida em que não se estabeleceu a lide, com o comparecimento
dos credores no processo. Porém, após o despacho de processamento, algumas peculiaridades ocorrem.
Ao amparo jurisprudencial, tem-se admitido a desistência, mesmo
após o despacho preliminar, desde que haja concordância dos credores,
cabendo ao juiz julgar procedente ou não a oposição dos credores. Como
já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, “sem a concordância geral
dos credores, não é possível que o devedor simplesmente desista da
concordata, antes de cumpridas suas obrigações”.
O vácuo jurídico criado pela inexistência de tratativa somente veio a
corroborar para uma mais aprofundada hermenêutica sobre o ponto. Deveríamos, então, estabelecer uma caricatura sobre o caso com base em
uma série de considerações sobre os elementos que viabilizariam o assunto.
3.1
Renúncia
Em sentido material, a recuperação judicial está ligada ao próprio
direito potestativo de ação em si mesmo. Temos, pois, para o significado
de desistir, nessa hipótese, a conotação de renúncia ao direito subjetivo
que é defeso por lei, haja vista se tratar de matéria constitucional, garantia
individual indisponível.
Logo, deve o problema perpassar pela égide do plano processual, o
que faz encarar o assunto sob o emblema do termo desistência, ou seja, no
enfoque da faculdade do exercício jurídico.
6
OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova Lei de Falências. São Paulo: IOB
Thomson, 2005, p. 292.
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3.2
Desistência
Como dito anteriormente, a jurisdição da concordata era voluntária
em função do fato de não haver lide, posta à revelia da vontade dos credores que eram meros interessados e que acabavam por depender do respeito aos termos do favor estatal pelo devedor.
Na hodierna disposição acerca da recuperação judicial, não há
valoração de favor algum. O que ocorre é uma proposição em sentido
ação-contrato, sendo o Estado mero remetente dos interesses particulares.
É exatamente no interessar que se determina a manifestação
naturalística do instituto, qual seja, a de se tratar de um processo de jurisdição também voluntária, a que nos referimos. A abordagem do parágrafo 4º
do artigo 52 relata que após o deferimento do processamento do pedido
não se poderá desistir, senão sob autorização da assembléia dos titulares
do direito creditório.
A propósito, Vinícius José Marques Gontijo7 bem asseverou:
Em que pese o Projeto de Lei de falências prescrever no art. 46 que
a recuperação judicial será uma ação, constata-se o retorno à
“concordata-contrato”, na medida em que é da competência da assembléia de credores deliberar sobre o plano de recuperação apresentado pelo empresário (art. 37 do PLF, que poderá ser aprovado,
revisto ou mesmo apresentado um plano alternativo).
Como visto, há a possibilidade da desistência da ação antes da decisão que a processa. Assim é que, havendo aprovação pelo juízo, o empresário retorna ao status quo ante, livre dos efeitos da proposta contratual
junto aos credores. Até aqui, nenhuma divergência pode ser destacada, já
que nada pode ser feito por parte daqueles que teriam interesse em virtude
do processamento do pedido recuperatório, que sequer chegou a acontecer.
De outro modo, e aqui começa a preocupação maior pela falta de
mais disposições legais, caso não seja aprovado, abre-se margem a duas
situações. A primeira é a possibilidade de declaração de falência na esteira
7
GONTIJO, Vinícius José Marques. Da desistência e da renúncia à ação de concordata.
Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 20, n. 18.
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do preenchimento dos requisitos do artigo 94, em especial, do inciso III,
em que se localiza a prática de atos ruinosos ou de cunho duvidoso. A
segunda, conforme o ambiente, é a visualização da manutenção da ação e
o prosseguimento da proposta, sob pena de descumprimento, o que resultaria no mesmo ralo da determinação imperativa da convolação da recuperação judicial em processo falimentar.
É de clara percepção que a Lei nº 11.101/2005 deixou de apreciar a
questão dos recursos nessa esfera processual. Uma pena, haja vista que
essa legislação foi criada exatamente para disciplinar as relações jurídicas
materiais e processuais sobre a temática. Entristece-nos ao perceber que
devemos procurar pela sistemática do Código de Processo Civil para nos
satisfazer quanto a esse tipo de tópico.
Assim é que o indeferimento do pedido de desistência antes do
processamento trata-se de decisão interlocutória, atacável por meio de
agravo de instrumento, assim como aquele que o defere emprega a natureza de sentença que fundamenta apelação.
Mais uma vez, utilizamos a lição de Vinícius José Marques Gontijo:
A decisão que homologa a desistência é uma sentença e, portanto,
desafia recurso de apelação, ao teor do que prescreve o art. 513 do
Código de Processo Civil. Este é o nosso entendimento, posto que
se nos apresenta como sendo o mais técnico e sustentável8.
E já que temos opções diversas mais facilmente observáveis para o
antes, do qual para tanto nos valemos do empirismo para progressos nesse
diapasão, temos que depois do processamento também são notáveis duas
opções. Há novamente a hipótese do retorno do devedor ao status quo
ante graças ao consentimento dado pela assembléia de credores, ou, em
razoável síntese, a mantença da recuperação judicial, com iguais efeitos do
momento exposto no parágrafo anterior. A lógica se constata de modo a
fazer com que, se o devedor não desejar cumprir suas obrigações impostas
no processo, poderá sofrer com as penas descritas em parágrafo anterior,
v.g. convolação da recuperação em falência.
8
Ibidem, p. 143.
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Outra vez, nenhuma solução foi concebida em termos recursais. E
nem teria, se o plano de recuperação judicial é uma proposta contratual
feita aos credores por intermédio da atuação do magistrado, a negativa
pela assembléia do pedido de desistência não tem o condão recursal. Em
uma ordenação de fatos, teríamos uma proposição confeccionada, uma
negativa imposta pelos credores e, por fim, a manutenção do processamento
da ação, sem recurso.
Sem esquecer, apenas para ilustrar, se o devedor for citado para
contestar pedido de falência e apresentar intenção de recuperar a empresa,
vindo a desistir após ultrapassar o prazo para resposta, o retorno ao estado anterior acarretaria em uma revelia diante da preclusão consumativa
para a nova defesa.
Interessante é o fato de que nenhum óbice se apresenta ao caso de
deferimento da desistência, como havia na redação original do parágrafo
5º do artigo 51 do projeto de lei. O prazo, que era de dois anos para a
renovação do pedido de recuperação judicial, simplesmente desapareceu.
Ora, se o inciso II do artigo 48 preceitua a penalidade de cinco anos
sem o interesse de agir por conta de algo muito mais gravoso que é a
concessão da recuperação judicial, nenhuma razão assistiria ao legislador
em punir a empresa pelo simples e inferior fato de o empresário ter desistido do processamento da ação, tanto antes, como depois desse. Daí se
concluir que o biênio seria injustificado.
Como último ponto, é sempre importante lembrar a posição do fisco
quanto ao pedido desistente, vez que ele sequer pode fazer parte do rol de
interessados na recuperação judicial. Esse tipo de questionamento só seria
possível se fosse credor e pudesse ver seu crédito habilitado na ação de
recuperação, o que não ocorre tendo em vista o disposto no caput do
artigo 187 9 do Código Tributário Nacional.
Por outro lado, ainda que o impedimento não ocorresse, também
não haveria benefícios para que o mesmo se opusesse, seja em relação ao
requerimento da recuperação, seja quanto a sua desistência, vez que o
instituto é voltado exatamente para que o Estado não seja privado, em
tese, de uma boa fonte pagadora de impostos e criadora de empregos, no
9
Código Tributário Nacional – Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é
sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata,
inventário ou arrolamento.
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pensamento de que a empresa tem sua função social, tal qual o raciocínio
inerente ao surgimento da própria Lei nº 11.101/2005.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pequena narrativa outorgada ao tema pela referida legislação, estranha devido às graves conseqüências que a desistência traz e da qual há o
merecimento de ponderações ulteriores a serem apontadas em caráter de
urgência a fim de que sejam evitadas mais controvérsias sobre a questão.
O deslocamento dos olhares, todavia, para o parágrafo 4º do artigo
52 da nova legislação, remonta-nos ao pensamento de que temos o dever
de raciocinar de modo a adequar sua aplicação ao enfoque hodierno.
Seria inexorável talvez o somatório de outros parágrafos, ou a criação de disposições alineares de modo sanar a grave omissão praticada
quanto à matéria da desistência ao pedido recuperatório seria deveras pungente à nossa crítica. É sabido, no entanto, que isso não ocorrerá, o que
finda algumas vezes por açoitar nossa boa razão e por desferir seqüela à
nossa posição sacerdotal de defesa da desistência ao pedido recuperatório,
mais como medida interpretativa. Se bem que quando se tenta doutrinar
matéria dentro de uma norma, são apontáveis os equívocos conceituais.
Apesar de termos o bom caminho da não atribuição de prazo punitivo a ser respeitado pelo que pede a recuperação, o de dois anos previsto
no projeto, mas que não foi aprovado, causa-nos aborrecimento a falta de
soluções acerca do sistema recursal a ser utilizado, o que nos faz crer na
utilização do Código de Processo Civil, na variação de cada hipótese tratada nos tópicos anteriores. Refletindo melhor, é bem provável que da pouca
escrita sobre o assunto pela legislação, a mais grave crítica a ser feita foi
essa.
5
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTOLDI, MARCELO M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso
avançado de direito comercial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006.
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de concordata. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
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2005, e Lei 118, de 9/2/2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
NEGRÃO, Ricardo. Aspectos objetivos da Lei de Recuperação de
Empresas e de Falências. São Paulo: Saraiva, 2005.
OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova Lei de Falências. São
Paulo: IOB Thomson, 2005.
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DESISTÊNCIA E RENÚNCIA AO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
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Sumário
1. Introdução. 2. Origem. 3. Objetivos. 4. Conceituação.
5. As prerrogativas usualmente conferidas ao seu detentor. 6. Presença da golden share por setor de atividade econômica. 7. Impacto econômico. 8. As decisões do Tribunal de Justiça europeu. 9. A recepção da
golden share pelo ordenamento jurídico brasileiro. 10.
Conclusão. 11. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente artigo se propõe a analisar o instrumento da golden share
como forma de intervenção estatal na atividade econômica, por meio de
um mecanismo societário criado nas empresas privatizadas. Assinala sua
origem histórica e procura estabelecer seus principais objetivos e poderes
conferidos ao seu titular, apresentando, ainda, a conceituação proposta
pelas literaturas estrangeira e nacional. Trata do posicionamento adotado
pelo Tribunal de Justiça Europeu e da introdução do referido mecanismo
no direito brasileiro, seus objetivos e uma análise de sua compatibilidade
com a Constituição.
Abstract
This essay to anlyse golden share arrangements as a way of the
State interventionism in economic activity, though a corporate
instrument in privatized companies. It shows golden share´s historical
origins, besides establishing its main purposes and powers conferred
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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N. 13
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to its holder, followed by national and international definitions.
Furthermore, it reflects upon the European Justice Court decisions. In
addition, it deals with the introduction of the instrument in the Brazilian
law, with the further analysis of its constitutionality and the objectives
usually targeted by its ordering.
1
INTRODUÇÃO
O processo de desestatização (esta entendida como a retirada da
presença do Estado de atividades constitucionalmente reservadas à iniciativa privada1), observado em diversos países a partir do início da década
de 1980, envolveu um forte movimento de privatizações de empresas até
então sob controle do Estado. No entanto, essa afirmação não deve ser
compreendida como decisão do Poder Público de abandonar qualquer
forma de ingerência na atividade empresarial.
Houve, decerto, uma substancial modificação na forma como o Estado intervém na atividade econômica, não mais como agente produtor,
mas agora se limitando a corrigir as imperfeições e incapacidades do mercado por meio da atividade regulatória2.
Nesse contexto, observa-se o que Siniscalco e Faccio denominam
“privatização relutante”: aquela por meio da qual se promove a alienação
dos ativos das empresas estatais sem a correspondente transferência dos
poderes de controle3.
Em diversas ocasiões, o Poder Público, ao proceder à privatização,
procurou manter um certo grau de ingerência na companhia, e o fez por
meio do instrumento das golden shares, incorporadas pelo direito brasileiro como ações preferenciais de classe especial, nos termos do art. 17,
parágrafo 7º, da Lei nº 6.404.
1
2
3
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Desestatização, privatização, concessões e terceirizações.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 9. O autor entende tratar a desestatização como
gênero, sendo a privatização uma espécie, assim como a concessão, a permissão, a
terceirização e a gestão associada de funções públicas.
RODRIGUES, Nuno Cunha. “Golden Shares”: as empresas participadas e os privilégios
do Estado enquanto accionista minoritário. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 139.
SINISCALCO, Domenico; FACCIO, Mara. Reluctant privatization. Disponível em
<www.feem.it/Feem/Pub/Publications/WPaper/default.htm>. Acesso em: 3 abr. 2006.
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2
ORIGEM
A origem das golden shares pode ser localizada a partir de 1979, no
Reino Unido, no governo conservador Tatcher, que apresentou um ambicioso programa de privatizações, procurando abrir à iniciativa privada setores tradicionalmente públicos.
Quase que imediatamente a idéia foi adaptada na França (que, historicamente, sempre observou uma forte participação do Estado na atividade econômica) por meio da action spécifique, Lei 86-912, de 6 de
agosto de 1986, seção 10, como condição para a privatização de mais
de sessenta companhias, enumeradas na Lei 86-793, de 2 de julho do
mesmo ano. Em seguida, foi adotada pelos demais países europeus. Com
a abertura política a partir dos anos de 1988 e 1989, os países do Leste
Europeu iniciaram agressivos programas de privatização e de liberalização
econômica.
Em outras partes do mundo o instrumento também foi utilizado. Destacamos, a título de exemplo, a kiwi share, aplicada na privatização da
New Zealand Air, reservando ao governo neozelandês poderes semelhantes aos concedidos ao governo britânico. Na África, encontramos aplicações concretas do mecanismo; lá restou mais evidente a necessidade de
proteção das antigas estatais do comportamento predatório das companhias estrangeiras, em especial em face da quase inexistência de setores
privados nacionais4.
3
OBJETIVOS
O referido instrumento foi concebido como forma de viabilizar o processo de privatização, concedendo ao Estado um conjunto de privilégios
sem qualquer correspondência com sua participação societária. O intuito
era não apenas vencer resistências políticas ao processo de privatizações
mas também dotar o Poder Público de instrumentos de salvaguarda do
interesse nacional.
4
Como na privatização da Ashanti Goldfields Corporation (AGC) pelo governo de Gana,
em 1994. In: ELLISON, Kofi. In the matter of the Golden Share. Disponível em:
<www.ghanaweb.com/GhanaHomePage/features/artikel.php?ID=21330>. Acesso em: 2
jan. 2003.
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Dessa forma, foram alterados os estatutos de diversas companhias,
que passaram a incluir a possibilidade de nomeação de administradores
por parte do Estado, bem como reservar-lhe direito de veto em determinadas matérias previamente estabelecidas e tidas como de relevância para o
interesse nacional.
Como destaca Rodrigues, a ação em comento permitiu ao Estado
garantir, ao menos por um determinado período, formas de controle de
companhias recém-privatizadas que, por sua vez, permitiram a formação
de um consenso em favor das políticas de privatização5.
Assim, em um primeiro momento, serviu ao propósito de defesa dos
interesses nacionais de setores estratégicos, formando um escudo contra
aquisições hostis por parte de investidores indesejáveis, dando à companhia recém-privatizada um certo período para sua adaptação ao livre mercado, bem como ao Poder Público para a definição de marcos regulatórios
da atividade em questão.
Corroborando essa idéia, o então Secretário de Energia do Reino
Unido, Nigel Lawson, afirmou: “A existência desses poderes atuará como
o mais formidável meio de contenção a qualquer um que procure assumir o
controle da administração, da companhia ou da maioria das ações, e que o
governo considere inaceitável”6.
Outros objetivos foram perseguidos nas últimas décadas: assim, a
Espanha e a Itália, que justificaram a criação de golden shares no setor
energético como instrumento de defesa contra uma possível aquisição de
suas antigas estatais pela estatal francesa Electricité de France7.
4
CONCEITUAÇÃO
Partamos para a conceituação de golden share.
5
6
7
RODRIGUES. Op. cit., p. 303. (Nas obras que já foram citadas, inseri Op. cit)
Tradução livre. No original: “The very existence of these powers will act as the most
formidable deterrent to anyone who tries to take over control of the board, of the company
or the majority of its shares, and who the government considers to be unacceptable”. In:
PUTEK, Christine O´Grady. Limited but not lost: a comment on the ECJ’s Golden Share
Decision. Fordham Law Review, v. 72, p. 2223, 2003-2004.
PUTEK. Op. cit., p. 2224-2225.
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Para Rodrigues, trata-se de uma forma excepcional de atuação intrasocietária, com a detenção de capital social, criada pela via legislativa, possibilitando ao Estado o controle temporário de alguns aspectos das companhias privatizadas, de forma a possibilitar uma transição gradual de um
modelo de gestão pública para outro de gestão privada8. Trata-se, pois, de
ações detidas pelo Poder Público que, no âmbito da prossecução do interesse público e do interesse nacional, lhe permitem vetar, independentemente do capital social detido, deliberações relativas a determinadas matérias, devidamente tipificadas no estatuto da sociedade cujo capital é, majoritariamente, detido por pessoas de direito privado9.
Ainda na literatura estrangeira, Bortolotti e Siniscalco a definem como
um complexo de poderes garantidos ao Estado e restrições estatutárias em
companhias privatizadas10.
Na literatura brasileira, o Professor Osmar Brina Corrêa-Lima assevera tratar-se de “salutar medida de ordem pública, que visa a assegurar ao
Estado uma espécie de compartilhamento do controle da empresa estatal,
por ele alienado”11.
Modesto Carvalhosa utiliza a terminologia adotada pela lei brasileira
– ação preferencial de classe especial – conceituando-a como instrumento
direto de política pública, que pode substituir, em certa medida, a função
desempenhada pelas agências reguladoras, uma vez que essas atuam externamente à empresa, ao passo que o instrumento ora em estudo possibilita ao Estado atuar internamente, na própria empresa, na defesa da coletividade e sobre o mercado12. O aspecto de mecanismo regulatório-societário
também é destacado por Calixto Salomão Filho13.
8 RODRIGUES. Op. cit., p. 255.
9 Ibidem, p. 352.
10 BORTOLOTTI, Bernardo; SINISCALCO, Domenico. The challenges of privatization: an
international analysis. Oxford: Oxford Press University, 2004, p. 89.
11 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade anônima. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
106. Para o citado professor, “o § 7º do art. 17 prevê a hipótese de o Estado, que aliena o
controle de uma empresa estatal, subscrever ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva, com poder de veto a determinadas deliberações da assembléia geral (‘ação
dourada’ – ação de ouro ou golden share)”.
12 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002, v.1, p. 231.
13 COMPARATO, Fabio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de controle na
sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 196-197 (Nota: 37).
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Não concordamos com a opção do legislador de tratá-la como ação
preferencial, uma vez que o elemento que distingue a golden share é sua
natureza intuitu personae, baseada na realização do interesse público que
legitima essa atuação especial do Estado. Há, aqui, derrogação do regime
geral societário, aplicável a todas as sociedades. É evidente que a criação
das golden shares traz novas implicações ao tema da separação entre propriedade e controle.
Parece-nos, assim, que o referido mecanismo se afigura como instrumento de viabilização da gestão privada de interesses públicos – ao transferir a propriedade ao setor privado, viabiliza-se uma gestão mais eficiente,
ao mesmo tempo em que se desincumbe dos pesados ônus decorrentes do
exercício da atividade econômica. O interesse público, no entanto, será
resguardado, atuando o Poder Público como controlador em determinadas questões. Trata-se, pois, de uma forma de intervenção estatal na atividade empresarial, buscando, por meio da gestão privada, a consecução de
interesses públicos.
5
AS PRERROGATIVAS USUALMENTE CONFERIDAS
AO SEU DETENTOR
As ações ora em estudo atribuem ao seu titular, no mais das vezes, o
direito de nomear membros para os órgãos de administração e o direito de
ser ouvido (para vetar ou não) previamente em determinadas deliberações
que digam respeito a matérias sensíveis nas companhias privatizadas – alteração de nome, sede, objeto social, dissolução, aquisição e alienação de
subsidiárias, disposições de capital social.
6
PRESENÇA DA GOLDEN SHARE POR SETOR
DE ATIVIDADE ECONÔMICA
Bortolotti e Siniscalco, em seu já citado estudo sobre as
privatizações, apontam uma freqüência maior do mecanismo objeto do
presente estudo nos setores aeroespacial e de defesa (indiscutivelmente
essenciais à segurança nacional). No panorama brasileiro, é de se notar
que a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), privatizada no início
da década de 1990, teve seus estatutos alterados de forma a conferir à
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União uma golden share que lhe permitisse vetar, por exemplo, propostas de aquisição de capital por pessoas estrangeiras acima de determinado percentual14.
7
IMPACTO ECONÔMICO
Questão que não encontra consenso na literatura diz respeito à possível diminuição do valor de mercado da companhia cujo edital de
privatização estabeleça a criação de uma golden share.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) constatou que a utilização de semelhante mecanismo pelo governo romeno diminuiu substancialmente o valor de mercado das companhias
que faziam parte do programa de privatização daquele país15.
No entanto, alguns autores questionam a generalização de semelhante afirmação. Para Rodrigues, o mercado reconheceria na golden share
uma função de garantia na mera presença do Estado (apesar de reconhecer que, muitas vezes, essa função não seria efetiva)16. Siniscalco e Faccio,
por seu turno, identificam aqui uma possibilidade de obtenção de auxílio
governamental e, conseqüentemente, uma fonte de ganhos17.
Entendemos que a questão não encontra uma única e definitiva resposta, uma vez que está na dependência do estabelecimento de um marco
regulatório que ofereça segurança ao investidor, bem como de uma definição da forma através da qual o Poder Público irá se utilizar das prerrogativas criadas.
14 Dispunha o Capítulo 1, subitem 1.2.1. do Edital de Privatização que a alienação de ações da
Embraer a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras ficaria limitada a 40%. O estatuto social
da companhia, em seu artigo 7º, aponta as matérias sobre as quais a União poderá exercer
seu poder de veto. Disponível em: <www.embraer.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2006.
Evidentemente, não teria sentido o edital de privatização estabelecer uma limitação à
aquisição de ações por estrangeiros que não significasse também uma idêntica limitação
após a realização do leilão. Nesse sentido, concordamos com o posicionamento adotado
pela Advocacia-Geral da União, através do parecer AGU/LA-01/2000, de lavra do Consultor da União, Dr. Luiz Alberto da Silva, e adotado pelo Parecer GQ-215, publicado no
DOU de 20 de janeiro de 2000, p. 2.
15 A informação consta do artigo Around the world in 80 ideas – privatization: golden goal.
Disponível em: <www.adamsmith.org/80ideas/idea/62.htm>. Acesso em: 19 maio 2004.
16 RODRIGUES. Op. cit., p. 228.
17 SINISCALCO; FACCIO. Op. cit., p. 4.
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8
AS DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU
A partir de 2000, o Tribunal de Justiça europeu passou a apreciar a
compatibilidade das diversas golden shares com o ordenamento comunitário.
Importa esclarecer que a União Européia está fundada em quatro
liberdades consideradas fundamentais: do livre movimento de pessoas, de
bens, de serviços e estabelecimentos e de capitais, esta última consagrada
pelo Tratado de Maastricht, de 1993, como uma efetiva obrigação dos
Estados-Membros (art. 56).
O mesmo tratado, no entanto, estabelece algumas exceções: art. 58
(1) alínea b, prevê a possibilidade de os Estados-Membros tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública
que poderão condicionar a livre circulação de capitais. É evidente que
estamos tratando de conceitos indeterminados: Putek critica a norma do
art. 58 do tratado, afirmando que, ao abrir exceções, trouxe incerteza e
insegurança, dadas as infinitas possibilidades de interpretação18.
O cerne da questão está no fato de o estabelecimento das golden
shares criar restrições a investimentos e à livre circulação de capitais, razão
pela qual foi o tribunal instado a se posicionar sobre a possibilidade de sua
criação, bem como os limites dos poderes conferidos ao seu titular.
Destacamos três julgados: C-367/98 (Comissão v. Portugal), C-483/
99 (Comissão v. França), C-503/99 (Comissão v. Bélgica)19:
Comissão v. Portugal: a lei portuguesa aplicável às privatizações
(Lei Quadro de Privatizações, nº 11/90), em seu art. 13,3 determinava que
os diplomas que operassem a transformação das empresas públicas em
privadas poderiam limitar o montante de ações passíveis de aquisição pelo
conjunto de entidades estrangeiras ou cujo capital fosse majoritariamente
detido por entidades estrangeiras. Argumentou o governo português que
não fazia uso efetivo dessa atribuição e que essas restrições somente se
aplicariam a investidores extracomunitários. O tribunal, no entanto, rechaçou
essas considerações, condenando o Estado português pelo não-cumprimento da norma comunitária.
Comissão v. França. Aqui o tribunal se manifestou sobre as golden
shares propriamente. O objeto da ação foi a action spécifique criada para
18 PUTEK. Op. cit., p. 2234.
19 Acórdãos de 4 de junho de 2002.
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a privatização da Societé Nationale Elf-Aquitane, que reservava certos
poderes ao Ministro da Economia, como a necessidade de prévia autorização na eventualidade de um investidor desejar aumentar o número de suas
ações.
O tribunal reconheceu a presença de interesse nacional relevante
(desde 198420, reconhece que o setor petrolífero é de importância fundamental para a própria existência dos países). No entanto, entendeu que o
sistema francês não indicava ao investidor, de forma clara e segura, se a
autorização seria concedida ou recusada e se a amplitude do poder discricionário concedido ao Estado constituiria ofensa à livre circulação de capitais.
Assim, a despeito da condenação do Estado francês, o instrumento
da golden share, em si, não foi considerado como contrário ao ordenamento
europeu.
Comissão v. Bélgica. O mecanismo da golden share foi acatado tal
como concebido para a privatização da Société Nationale de Transport
par Canalisations (SNTC) e Société de Distribution du Gaz (Distrigaz),
ambas atuantes no setor de distribuição de gás e energia. O Estado possuía
o direito de ser notificado de qualquer cessão, qualquer afetação a título de
garantia e alteração do destino das canalizações das sociedades que constituíam grandes infra-estruturas de transporte interno de produtos energéticos
(na primeira sociedade) ou qualquer alteração do destino dos ativos estratégicos (no segundo caso). Permitia-lhe, ainda, nomear dois membros do
conselho de administração, com poderes de propor ao ministro a anulação
de qualquer decisão considerada contrária à política energética, no prazo
de quatro dias. O ministro, por sua vez, teria o prazo de oito dias para se
manifestar. Após o oitavo dia, a decisão era considerada efetiva. No caso
de veto, haveria ainda o direito de apelar ao conselho de Estado belga,
para obter a nulidade da decisão ministerial.
O tribunal identificou quatro elementos que, no seu entender, conferiam legitimidade ao mecanismo belga: em primeiro lugar, por não exigir
autorização prévia (o ato era praticado e posteriormente submetido à apreciação da autoridade, o que significava que o ônus era do governo e não do
investidor); estava claro que o poder do Estado somente seria exercido
20 Caso C-72/83, Camps Oil Ltd v. Ministério da Indústria. O governo irlandês buscava a
adoção de medidas que impedissem que sua única refinaria de petróleo fechasse, o que
tornaria o país inteiramente dependente de outros.
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em casos específicos (como na alteração da rede de distribuição de gás);
os objetivos da política energética deveriam estar efetivamente em risco e,
por fim, a decisão estava sujeita a recurso por parte do investidor, com
prazos bem definidos para ambas as partes.
Parece-nos que, conquanto contestado em sede doutrinária e
jurisprudencial, o instrumento das golden shares vem sendo acolhido ao
menos em tese. A questão está na elaboração de um arcabouço que permita, a um só tempo, a preservação de interesses efetivamente relevantes e a
segurança dos investidores privados.
9
A RECEPÇÃO DA GOLDEN SHARE PELO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A Constituição da República de 1988 delimitou o papel do Estado como agente regulador da atividade econômica, o que pode ser
confirmado com a leitura do art. 173. Com exceção das hipóteses em
que haja prestação de serviço público ou de exploração direta de atividade econômica para atender aos imperativos de segurança nacional
ou de relevante interesse coletivo, não há lugar para a existência de
empresas estatais.
Segundo Fernando Netto Boiteux, a liberdade fundamental de exploração da atividade econômica foi conferida, exclusivamente, à iniciativa
privada. A empresa estatal somente terá acesso ao mercado nas condições
do art. 173 da Constituição e, ainda assim, submetendo-se às leis gerais
que regulam a concorrência21. O Estado não é eliminado, mas assume funções novas22.
Reconhecemos, aqui, a alta subjetividade e indeterminação das expressões “interesse nacional” e “interesse coletivo”.
Nesse contexto se situa o programa de desestatização, influenciado
pelas experiências de diversos países, e que teve como instrumento normativo
básico a Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, que em seu artigo 8º assim
estabeleceu:
21 BOITEUX, Fernando Netto. Intervenção do Estado no domínio econômico na Constituição Federal de 1988. In: GRECO, Marco Aurélio (Coord.). Contribuições de intervenção
no domínio econômico e figuras afins. São Paulo: Dialética, 2001, p. 72.
22 FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.
255.
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Artigo 8º. Sempre que houver razões que o justifiquem, a União
deterá, direta ou indiretamente, ações de classe especial do capital
social de empresas privatizadas, que lhe confiram poder de veto em
determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos estatutos sociais das empresas, de acordo com o estabelecido no art.
6º, inciso XIII e §§ 1º e 2º desta Lei.
Esta lei foi revogada pela Lei nº 9.491/97, que ampliou o alcance
dessas ações, agora não mais limitadas ao poder de veto:
Artigo 8º. Sempre que houver razões que o justifique, a União deterá, direta ou indiretamente, ações de classe especial do capital da
empresa ou instituição financeira objeto da desestatização, que lhes
confira poderes especiais em determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos seus estatutos sociais.
Destacamos a golden share criada na privatização da Companhia
Eletromecânica CELMA, indústria de motores aeronáuticos, que além de
conferir à União a prerrogativa de nomear membros do conselho de administração, estabelecia a possibilidade de veto nas deliberações sobre alteração do objeto social e delimitava a participação no capital votante das
companhias aéreas e seus controladores, controladas, coligadas e administradores (disposições que vigorariam por cinco anos a partir da vigência do
estatuto social, ou seja, restando nítido o propósito da União de criar um
instrumento de regulação do mercado). A Embraer e a Companhia Vale do
Rio Doce são as empresas nas quais a golden share foi utilizada de maneira mais destacada.
A novidade, restrita ao programa de privatizações, somente foi incorporada ao direito societário brasileiro com a edição da Lei nº 10.303,
de 2001, o que, na opinião de Carvalhosa, subverteu o princípio fundamental do direito societário da deliberação por maioria do capital social23. A referida norma acrescentou o parágrafo 7º do art. 17 da Lei
6.404/76:
23 CARVALHOSA. Op. cit., p. 228.
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Artigo 17. (...)
§ 7º. Nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada
ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do
ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da
assembléia-geral nas matérias que especificar.
Assim, podem ser as golden shares criadas também pelos Estados
e Municípios no âmbito de suas estatais; são necessariamente preferenciais; podem conferir outros poderes (devidamente especificados no estatuto) e, por fim, são de exclusiva propriedade do Poder Público desestatizante,
que não pode transferi-las a terceiros, seja particulares, seja outras pessoas de direito público.
Resta possibilitado, assim, o controle externo de direito pelo Poder Público desestatizante, permitindo que sócios capitalistas possam fomentar o
desenvolvimento das empresas com participação de capital que não represente endividamento para elas; em contrapartida, há o interesse do Poder Público em manter a participação, por meio de veto, de decisões estratégicas24.
Entendemos que o mecanismo é compatível, ao menos em tese, com
o texto constitucional. Como leciona Rachel Sztajn, para garantir a livre
iniciativa, a liberdade de acesso aos mercados, o constituinte, nos termos
do art. 170, valoriza a concorrência e o respeito ao trabalho. Cabe ao
direito disciplinar a estrutura de forma a definir tutelas e garantias que possibilitem a satisfação das necessidades individuais sem injustiças sociais,
com regras que disciplinem a propriedade e sua atribuição, a circulação
regular da riqueza e a definição de responsabilidades dos operadores25.
Ora, as atividades desempenhadas em desconformidade com esses princípios são reputadas inconstitucionais.
Assim é que, se o direito constitucional de exercício de uma atividade econômica lícita não se subordina à manifestação estatal unilateral, discricionária, também não obsta o exercício da função de polícia sobre essas
mesmas atividades26.
24 COMPARATO, SALOMÃO FILHO. Op. cit., p. 197.
25 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo:
Atlas, 2004, p. 26.
26 SOUZA, Horácio Augusto Mendes de. A intervenção do Estado no domínio econômico à
luz da jurisprudência. In: SOUTO, Marcos Juruena Villela; MARSHALL Carla C. (Coord.).
Direito empresarial público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
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AS GOLDEN SHARES – BREVES CONSIDERAÇÕES
Constitui a golden share, portanto, um importante instrumento de
intervenção do Estado na atividade econômica. Essa intervenção, por sua
vez, antes de um fim em si mesmo, representa um instrumento para o cumprimento dos objetivos atribuídos ao próprio Estado pela Constituição,
estabelecidos no artigo 3º – uma sociedade livre, justa, solidária, e a garantia do desenvolvimento nacional.
10 CONCLUSÃO
Concluímos que a golden share constitui importante mecanismo de
defesa do interesse nacional, permitindo ao Estado retirar-se do papel de
agente produtor na atividade econômica sem que isso signifique a perda do
papel regulador.
O mecanismo foi concebido como um instrumento conferido ao Poder Público para, a um só tempo, quebrar resistências políticas ao processo de privatização e possibilitar uma efetiva atuação em setores considerados sensíveis ou estratégicos.
Incorporado ao direito brasileiro, entendemos que é não apenas compatível com o texto constitucional mas, antes, é um importante instrumento
para a efetivação da vontade do constituinte, que acolheu a concepção do
Estado regulador, reservando à iniciativa privada, de um modo geral, o
exercício direto da atividade econômica.
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOITEUX, Fernando Netto. Intervenção do Estado no domínio econômico na Constituição Federal de 1988. In: GRECO, Marco Aurélio (Coord.).
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Janeiro: Lumen Juris, 2002.
SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e
mercados. São Paulo: Atlas, 2004.
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A CONCESSÃO DE PATENTES DE PRODUTOS
FARMACÊUTICOS NO DIREITO BRASILEIRO
FABÍOLA MOREIRA GONTIJO
Sumário
1. Introdução. 2. Fundamentação. 3. Conclusão. 4.
Referências bibliográficas.
Resumo
A doutrina pátria ainda se mostra muito tímida no que diz respeito às
discussões acerca da concessão de patentes de produtos farmacêuticos em
nosso ordenamento jurídico. Entretanto, o que talvez não tenha sido largamente divulgado até hoje é que o surgimento das leis de propriedade industrial ligadas ao setor farmacêutico se deu em razão de exigências feitas
pela indústria farmacêutica norte-americana, detentora da maior fatia desse
segmento no mercado mundial, a fim de que o governo norte-americano impusesse a necessidade de uma regulamentação geral de âmbito mundial.
Assim, vários países passaram a legislar sobre o assunto no intuito
de buscar uma norma uniforme capaz de proteger a descoberta e privilegiar o descobridor. O Brasil, sobretudo após sua entrada na Organização
Mundial do Comércio, seguiu o mesmo caminho e criou normas próprias
nesse sentido, seguindo as determinações gerais de cunho internacional.
Este artigo se propõe a tratar da concessão de patentes no direito
brasileiro e suas respectivas conseqüências, pois que tal instituto está diretamente ligado ao bem maior do ser humano: a vida.
PALAVRAS-CHAVE: patentes; produtos farmacêuticos; propriedade
industrial.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 149-160
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FABÍOLA MOREIRA GONTIJO
Abstract
The brazilian doctrine towards pharmaceutical patents is still relatively
shy regarding the legal aspects of this kind of patents.
Although not widely known, the origin of patents regulation was a
first requirement from the US Government intended to obtain international
regulation, as a demand from the north american pharmaceutical industry.
Because of that, a great number of countries started to legislate for
the matter in order to insure protection of the invention as well as to reward
the inventor.
Like many other countries, Brazil specially after joining the World
Trade Organization was followed the same effective international
determination.
This article intends to examine the mechanism that provides
pharmaceutical patents and its relating consequences in Brazil, because
pharmaceutical patent statute is closely related to the human being’s greatest
treasure: life.
KEYWORDS: patents; pharmaceutical products; pharmaceutical patent.
1
INTRODUÇÃO
Desde tempos remotos pode-se verificar questionamentos ligados
ao que denominamos hoje “propriedade industrial”. Resquícios históricos
nos remetem a épocas em que, mesmo com ordenamentos jurídicos menos
evoluídos, havia a necessidade de proteger descobertas a fim de privilegiar
seu descobridor e fazer com que houvesse um retorno financeiro em razão
do descobrimento.
Entretanto, somente a partir de tempos mais recentes – década de
1940 – tornou-se possível analisar o instituto jurídico da patente como a
temos hoje. Uma visível ligação entre a propriedade industrial e a formação
da Organização Mundial do Comércio (OMC) é flagrante e deve ser mencionada a fim de explicitar o ponto-chave que corresponde à patente de
produtos farmacêuticos.
A Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias
e Comércio (GATT) em 1947, surgiu de negociações prévias referentes à
liberalização do comércio internacional, seu objetivo principal. O documento
de fundação do GATT reflete princípios neoliberais que pregam o comér150
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cio livre de barreiras, a elevação do nível de vida (o que propicia maior
consumo), o crescimento da produção mundial e o intercâmbio de produtos. Cada negociação do GATT foi denominada “rodada” e a do Uruguai
tornou-se a mais famosa de todas, dada a importância das decisões tomadas na ocasião.
Uma das cláusulas do referido acordo dizia respeito à propriedade
intelectual relacionada ao comércio, o que abrangia as patentes. Um detalhe importante é o fato da adesão ao acordo como um todo; ao Estado que
optasse por assiná-lo não seria dado o direito de reserva, ou seja, a assinatura implicava a aceitação de todos os dispositivos nele contidos, sem
exceção.
Essas disposições relacionadas às patentes foram criadas pelos Estados Unidos, país idealizador também da própria OMC, com o intuito de
proteger sua indústria e economia. O que é pouco estudado diz respeito à
íntima ligação da indústria farmacêutica com esse processo de formação. A
indústria farmacêutica norte-americana, detentora da mais alta tecnologia
de descoberta de novos fármacos, acabou por pressionar o governo de
seu país para que tomasse medidas jurídicas de caráter uniforme, inclusive
de cunho internacional, capazes de proteger as invenções norte-americanas de fármacos que estavam sendo copiadas, sobretudo no continente
africano.
Essa ligação torna-se ainda mais evidente, pois o estudo da propriedade industrial está intimamente ligado à questão do poder. Isso porque,
especificamente no que diz respeito à concessão de patentes de produtos
farmacêuticos, o desenvolvimento, a criação e o surgimento de um novo
fármaco passível de proteção e registro junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), leia-se registro de patente, só é possível mediante investimentos em pesquisa tecnológica de ponta.
Para se obter algo novo, hábil de sustentar um pedido de registro de
patente, sobretudo relacionado ao setor farmacêutico, é indispensável uma
enorme estrutura de pesquisa, geralmente oriunda de grandes indústrias
farmacêuticas ou patrocinada por elas, dotadas de grande poder econômico e influência social. Essas empresas são, sem sombra de dúvida,
multinacionais capazes de reunir em todos os continentes um público fiel e
ávido por novidades, pois se trata de um setor muito específico e sui generis:
a saúde do ser humano.
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FABÍOLA MOREIRA GONTIJO
2
FUNDAMENTAÇÃO
Em 1970, com o avanço da política tecnológica no Brasil, foi criado
o INPI, com o propósito de constituir um subsistema em que as marcas e
patentes participassem do comércio da técnica e se subordinassem a uma
mesma ação cujo objetivo último seria informado pelas diretrizes da política tecnológica nacional1.
Assim, o sistema jurídico pátrio, sobretudo após o advento da Lei nº
9.279, de 14 de maio de 1996, Lei de Propriedade Industrial (LPI), passou a ter um mecanismo legal de tutela do direito de propriedade industrial
e intelectual que visa regular direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial como preceitua o artigo 1º da supracitada lei. Busca-se, portanto, no registro de patente, seja ela de qualquer modalidade, a tutela jurídica capaz de proteger, conceder benefícios e impor sanções nos vários aspectos concernentes a essa matéria.
Luiz Otávio Pimentel define a expressão proteção jurídica da propriedade industrial como sendo a designação do:
(...) conjunto de normas do Direito, particularmente aquelas de caráter econômico, em que os sujeitos de direito são agentes econômicos, geralmente uma empresa, através dos quais se obtém, como
efeito do resguardo, o privilégio ao exercício de certos direitos sobre
a tecnologia, focalizando exclusivamente a patente.2
Essa proteção jurídica, por sua vez, se dá por meio da concessão de patentes que, segundo o mesmo autor, seria:
(...) o título oficial de privilégio que se dá para um inventor que inscreve a sua invenção no órgão de registro da propriedade industrial,
do qual emana um direito que lhe permite o monopólio temporário
para a sua exploração. É, portanto, uma figura jurídica, um instrumento de garantia da propriedade.
1
2
LOBO, Thomaz Thedim. Introdução à nova Lei de Propriedade Industrial. São Paulo:
Atlas, 1997, p. 15.
PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito industrial – As funções do direito de patentes. Porto
Alegre: Síntese, 1999, p. 21.
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O regime jurídico de patentes é utilizado como um dos instrumentos
de política econômica governamental. Seu objetivo é incentivar eficazmente a inovação tecnológica que resulta em imprescindível fator de crescimento de um país. Na economia de mercado, a produção ou criação de
inovações é muito cara e implica altos riscos econômicos, dado que os
resultados da pesquisa são incertos e difíceis de calcular; por isso esse
instituto foi criado, com a finalidade de oferecer às empresas ou pessoas
criadoras uma recompensa potencial; um incentivo e uma garantia de que
os riscos relacionados ao processo de descoberta poderiam ser suplantados no caso de sua ocorrência, afinal, toda pesquisa tecnológica visa, antes
de tudo, lucro e ganhos econômicos.
O melhor mecanismo até então existente para conseguir esses resultados era a criação e o desenvolvimento do direito de propriedade industrial e a concessão da patente como seu título.
O regime da concessão de patentes é feito no Brasil com o intuito de
incentivar a produção científica e a inovação tecnológica, que são de suma
importância para o desenvolvimento de qualquer nação. A concessão de
patentes de produtos farmacêuticos é regida pela Lei de Propriedade Industrial que em seu art. 229, parágrafo único, alínea C. (esta última acrescida da Lei nº 10.196/2001) condicionou à prévia anuência da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos.
Essa intervenção da Anvisa no processo de concessão de patentes
de produtos farmacêuticos se justifica pela disposição contida no art. 200,
caput, de nossa magna Carta, que assim dispõe:
Art. 200. Ao sistema único de saúde, compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de
interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
(...). (grifo nosso).
AAnvisa é, portanto, agência reguladora ligada ao Ministério da Saúde
e o órgão regulador e fiscalizador dos assuntos sanitários ligados à saúde.
Retornando aos dispositivos elencados na Lei de Propriedade Industrial, verifica-se, com base na análise do título VIII, art. 229, parágrafo
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único e art. 230, caput, a questão da concessão de patentes de produtos
farmacêuticos, verbis:
Art. 229 (...)
Parágrafo único: Aos pedidos relativos a produtos farmacêuticos e
produtos químicos para a agricultura que tenham sido depositados
entre 1º de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, aplicam-se os
critérios de patenteabilidade desta lei, na data efetiva do depósito do
pedido no Brasil ou da prioridade, se houver, assegurando-se a proteção a partir da data da concessão da patente, pelo prazo remanescente a contar do dia do depósito no Brasil, limitado ao prazo previsto no caput do art. 40.
Art. 229 C. A concessão de patentes para produtos e processos
farmacêuticos dependerá de prévia anuência da Agência nacional de
Vigilância Sanitária – ANVISA.
Art. 230. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios,
químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem
como os respectivos processos de obtenção, modificação, por quem
tenha proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, ficando assegurada a data do primeiro depósito no exterior, desde que seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado,
por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu consentimento,
nem tenham sido realizados por terceiros, no país, sérios e efetivos
preparativos para a exploração do objeto do pedido ou da patente.
Com base na leitura desses dois artigos, conclui-se que as mesmas
disposições que regem a patenteabilidade de produtos em geral regem também o processo de concessão de patentes de produtos farmacêuticos, com
as próprias especificações verificadas no texto legal. No entanto, os requisitos essenciais de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial também constituem condição sine qua non à concessão de patentes de produtos farmacêuticos.
A concessão das patentes de produtos farmacêuticos, por sua vez,
possui aspectos de grande relevância a serem discutidos, o primeiro deles
é a exigência, desde 2001, da prévia anuência da Anvisa em relação ao
processo no INPI.
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Embora seja indiscutível a competência do INPI para avaliar os critérios de patenteabilidade, mister admitir que a patente de produtos farmacêuticos é mais delicada por se tratar de matérias-primas (ativos) utilizadas
no fabrico de medicamentos.
Analisando a questão segundo esse aspecto, natural a exigência legal
da presença da Anvisa nesse processo, eis que ela é o órgão regulador de
assuntos sanitários e de saúde conforme mencionado anteriormente.
A patente de produtos farmacêuticos possui, assim, caráter sui generis
porque, além de englobar as questões relacionadas ao direito de propriedade (por se tratar de descoberta passível da concessão de patente), configura objeto de regulamentação por parte de órgãos sanitários (por se
tratar de matéria-prima para produção de medicamentos ou mesmo processos farmacêuticos de produção de medicamentos).
Essa inovação legal vem causando problemas e discussões no setor
farmacêutico nacional, inclusive discussões relativas à efetiva competência
da referida agência e suas atribuições constitucionais. A indústria farmacêutica argumenta que a interferência da Anvisa retarda o processo, causa
prejuízos financeiros em razão da demora e mais, estaria em conflito com
as atribuições e funções do INPI, que é o órgão responsável pela questão
de propriedade industrial em nosso país.
Outro argumento é que a agência não teria condições de avaliação
técnica dos produtos apresentados a ponto de possuir direito de veto. Nesse
sentido, o entendimento é que o INPI seria o único órgão responsável e
capaz para definir a questão relacionada às patentes farmacêuticas.
Essas discussões e divergências que ocorrem desde 2001 não estão
perto de uma solução devido ao impasse cada dia mais freqüente, isso
porque, uma vez que a lei determina a prévia anuência da Anvisa, o INPI é
obrigado a chamá-la ao processo. Nesse momento, segundo a indústria
farmacêutica, há uma estagnação do processo de concessão. Nesse meio
tempo, nada há para ser feito senão esperar a decisão da Anvisa acerca da
concessão ou não da patente requerida.
Por outro lado, há que se ter em mente que a inclusão da alínea C no
art. 229 da LPI não se deu por mera insensatez do legislador. A necessidade de alteração no processo de concessão de patentes de produtos farmacêuticos no Brasil ocorreu exatamente em função do caráter técnico do
INPI ligado tão-somente aos requisitos de patenteabilidade e técnica.
A interferência da Anvisa nesse processo torna-se fundamental para
garantir a eficácia, segurança e aplicabilidade dessa nova descoberta no
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que diz respeito ao aspecto sanitário. Essa descoberta, por ser um novo
insumo farmacêutico; um novo princípio ativo a ser utilizado na preparação
de novos medicamentos, estará inegavelmente ligada à profilaxia e à cura
de patologias diversas, daí a necessidade da presença da Anvisa nesse
processo, dotada do poder de veto à concessão.
Outro aspecto polêmico que envolve a concessão das patentes de
produtos farmacêuticos está nas disposições contidas no art. 42, caput, e
no art. 43, inciso II, da LPI, verbis:
Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro,
sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender
ou importar com estes depósitos:
(...)
Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:
(...)
III – à preparação de medicamento de acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional habilitado,
bem como ao medicamento assim preparado;
(...)
Pela leitura dos artigos supracitados, percebe-se expressamente a
intenção do legislador de permitir uma exceção à regra geral da proteção
às patentes.
A definição trazida no inciso III do art. 43 corresponde exatamente à
definição de farmácias magistrais segundo análise das disposições trazidas
na RDC 33/2000 da Anvisa, norma cogente editada pela referida agência
reguladora que regulamenta o funcionamento das farmácias magistrais, também conhecidas como farmácias de manipulação.
Verifica-se, portanto, que nos casos em que a farmácia de manipulação, por meio de seu profissional habilitado que é o farmacêutico responsável, prepara medicamento, objeto de patente, mediante prescrição médica para casos individuais (para aquele paciente e não em larga escala)
não está violando nenhum direito de proteção conferido pela patente, ao
contrário, está amparada pelas disposições contidas no inciso III do art. 43
da LPI, não havendo neste caso, qualquer violação ao direito ou à proteção conferida pela patente.
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Todavia, a prática se mostra totalmente distinta: há forte pressão por
parte da indústria farmacêutica contra as farmácias de manipulação no intuito de coibir a manipulação de medicamentos que se encontram ainda
sob direito de patente, mas que a classe médica prescreve aos seus pacientes dando-lhes o direito de optar entre as drogas industrializadas e as manipuladas ou genéricas, dependendo da forma da prescrição médica e seu
exato teor.
Essa situação cotidiana ocorre, pois, sabidamente, os medicamentos
manipulados em farmácias de manipulação são sempre mais baratos que
os mesmos medicamentos fabricados pela indústria farmacêutica comprados em drogarias. Daí um indício de que a pressão sofrida pelas farmácias
de manipulação não advém de questões exclusivamente relacionadas à propriedade industrial e ao direito de patente, mas sim de questões relacionadas à economia de mercado, o que consubstancia situações claramente
distintas.
O que deve ser dito é que o legislador, ao instituir essa exceção, o
fez amparado nas disposições constitucionais de direito à vida e à saúde
aliado à necessidade de atender à função social da propriedade e não exclusivamente à propriedade tão somente.
Evidente, por conseguinte, que inúmeros debates surgirão no intuito
de discutir a questão analisando as duas vertentes que se formam: de um
lado a propriedade e, de outro lado, a sua função social aliada aos direitos
também assegurados pela Constituição Federal correspondentes à vida e à
saúde.
Para aqueles que acreditam que os aspectos polêmicos relacionados
à concessão das patentes de produtos farmacêuticos finalizam aqui, a má
notícia é que outra questão vem surgindo e, neste momento, o direito de
exclusividade é colocado em franca discussão. Visando promover ou incentivar a produção de inventos, a patente limita artificialmente sua difusão
por meio do direito de exclusividade. A restrição do uso do conhecimento
pela patente é a principal característica do regime, o que supõe um custo
social elevado e ávido por discussões e reformas.
Esse direito de exclusividade perdura 20 anos para as invenções e
15 anos para os modelos de utilidade contados do protocolo do pedido no
INPI. No intuito de conferir real direito de exclusividade ao inventor, a
própria lei, em seu art. 40 trata de determinar que esse período de exclusividade não poderá ser inferior a dez anos para as invenções e sete anos
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para os modelos de utilidade. Atendidas essas regras não poderá ser permitida a prorrogação do prazo de exclusividade concedido.
No entanto, nos casos de produtos farmacêuticos, percebe-se que
nova concessão de patente é obtida por meio de estratégia largamente
utilizada pela indústria farmacêutica.
Quando o prazo do direito de exclusividade da patente está para
findar-se, o produto farmacêutico patenteado é novamente apresentado ao
INPI, dessa vez com pequenas transformações químicas, freqüentemente
relacionadas à estruturação molecular, que nada modificam sua essência,
função ou aplicabilidade; são os chamados análogos.
Esses análogos passam por novo processo de análise no INPI e na
Anvisa e acabam, muitas vezes, obtendo nova concessão de patente. O
problema que se apresenta é que em relação à atuação e função não existe
nenhuma diferença se comparado ao produto anteriormente patenteado.
No entanto, mais dez anos de proteção e direito de exclusividade são conferidos a esse “novo” produto.
Isso significa dizer que a indústria farmacêutica deterá por mais dez
anos pelo menos, os direitos sobre aquele produto, acarretando uma exclusividade que acaba evitando a difusão dos medicamentos no mercado e
seu livre acesso por parte da população em geral. Menores preços e opções de escolha entre fabricantes, livre concorrência e, conseqüentemente,
preços mais competitivos são apenas algumas das consequências não concretizadas em virtude desta nova e indevida concessão de patente.
É inevitável o questionamento acerca da validade legal dessa conduta que resulta em nova obtenção de patente, mas que não apresenta real
modificação no uso e função daquela estrutura anteriormente patenteada,
ora modificada.
Essa prática não é ilegal, pois inexiste especificação na lei a esse
respeito, mas também não está totalmente correta uma vez que a
aplicabilidade e exploração satisfatória no mercado são condições de
patenteabilidade. Acredita-se que tal conduta esbarra em uma lacuna deixada pelo texto legal. Veja-se que é uma prática reiterada que deve ser
amplamente discutida e questionada, de modo a verificar se há prejuízo
para a população uma vez que a exclusividade acaba por ser prorrogada
(mesmo que concedida novamente a patente por meio de novo processo
administrativo) injustificavelmente pois, novidade propriamente dita, inexiste.
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Esta lacuna existente na Lei de Propriedade Industrial nesse aspecto
deve ser preenchida com dispositivos capazes de proibir novos registros
que visam a obtenção de vantagens pecuniárias advindas dos privilégios
concedidos pela proteção legal conferida às patentes, o que deturpa a essência desse instituto. Remunerar o descobridor é preciso, mas não se pode
admitir que o descobridor passe a utilizar esse instituto como mecanismo
de obtenção de vantagens financeiras em detrimento da difusão desses produtos no mercado, sobretudo por se tratar de medicamentos capazes de
combater e curar inúmeras doenças existentes em todo o mundo. A utilização deformada deve ser proibida pela própria lei, de modo a permitir que
as pessoas possam ter acesso às novas descobertas farmacológicas visando ao bem maior do ser humano: sua vida.
Admitir esse aspecto significa fazer concessões de caráter financeiro, o que é bastante difícil para economias capitalistas. No entanto, é preciso analisar a licitude da obtenção de recursos financeiros advindos de
atos imorais e pouco éticos que não trarão benefício algum à coletividade
em uma análise a longo prazo e mais, não permitir a cura e profilaxia de
determinadas patologias significa manter um comércio amoral que utiliza
indivíduos como meio de obtenção de lucros.
O comportamento da industria farmacêutica já foi, inclusive, objeto de
filme (O Jardineiro Fiel) e não apenas em relação à descoberta, testes, estudos e obtenção de lucro, mas de maneira geral a política da industria farmacêutica precisa ser discutida a fim de conscientizar a população da necessidade de uma legislação de propriedade industrial mais eficaz, sobretudo em
relação às patentes farmacêuticas, com o objetivo de garantir que a ciência
e a tecnologia de ponta sejam aplicadas ao bem maior do ser humano que
é tutelada pelos vários ordenamentos jurídicos existentes: a vida.
3
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, verifica-se que a concessão de patentes de produtos farmacêuticos engloba discussões políticas, sociais e jurídicas. Esse
instituto deve ser amplamente difundido em todas as partes do mundo,
possibilitando novas regulamentações condizentes com o conjunto de situações existentes.
É preciso que o estudo da propriedade industrial, especificamente
no que diz respeito à concessão de patentes de produtos farmacêuticos
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seja reformulado. O presente artigo se ateve às discussões mais importantes, quais sejam, a prévia anuência da Anvisa, a permissão legal de manipulação de medicamentos e produtos farmacêuticos sob direito de patente
pelas farmácias magistrais e a obtenção de nova patente por meio dos
análogos.
Espera-se que o visível desenvolvimento do Brasil nessa área possa
significar, por meio de alterações no texto da LPI, a erradicação de determinadas condutas concernentes às patentes de produtos farmacêuticos,
privilegiando sim o descobridor, mas não em detrimento de direitos constitucionalmente assegurados e valiosos para o ser humano: sua saúde e sua
vida.
4
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A CONCESSÃO DE PATENTES DE PRODUTOS FARMACÊUTICOS NO ...
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ANOTAÇÕES SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA “EMPRESA”
FABRÍCIO DE SOUZA OLIVEIRA
Sumário
1. Introdução. 2. Das várias acepções do termo “empresa” 3. A função social da empresa analisada do prima da empresa como atividade organizada para a produção no mercado e para ele 4. A função social da
empresa, analisada sob o prisma do instrumento de constituição das sociedades empresárias. 5. Função social
da empresa, sob o prisma da exploração dos bens de
produção 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente artigo explora a empresa segundo o aspecto econômico, visando à análise da função social da empresa, como atividade exercida no mercado e para ele. Assim, o texto trata a empresa de acordo com as variadas acepções
dadas ao termo pelos estudos doutrinários, elucidando eventuais divergências
semânticas existentes entre o instituto jurídico e a expressão lingüística.
Abstract
This article analyse the firm, considering the economic aspect treated
by the “Firm Theory”. In this issue, is aproaching the firm´s social function in
and for the market. Also, it analyses the meanings connected with the term,
in order to explain semantic problems that may occur between the legal
institute and the linguistic expression.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 161-174
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1
INTRODUÇÃO
Pretende-se discutir aqui a função social da empresa sob seus vários
aspectos, principalmente no que toca ao exercício da empresa, vez que,
comumente, a doutrina analisa essa questão abordando não o exercício da
empresa, mas algum outro aspecto.
Nesse propósito, antes de efetivamente discutir a função social da empresa, é mister estabelecer as relações entre empresa, sociedade empresária
(ou empresário individual) e estabelecimento empresarial.
Essa distinção se faz necessária, tendo-se em vista que o estudo da
função social da empresa dependerá do sentido em que é empregado o vocábulo “empresa”, já que reconhecidamente empresa é termo que admite múltiplos significados. Portanto, o objeto do estudo varia segundo o contexto em
que é utilizado o termo empresa, mesmo porque a legislação nacional, em seus
vários diplomas legais, carece de um dispositivo específico que trate da função
social da empresa e, por conseguinte, a do empresário. Lembrando, nesse
aspecto, Newton De Lucca: “(...) outro silêncio injustificável que é o referente
à ausência de um dispositivo específico sobre a função social do empresário”1.
Em virtude do silêncio do direito normatizado e dos vários sentidos dados ao termo empresa (alguns mais técnicos, outros menos), a função social da
empresa terá sua aplicação variada, exigindo, portanto, uma análise do conteúdo mínimo da empresa e sua função social.
2
DAS VÁRIAS ACEPÇÕES DO TERMO “EMPRESA”
Dando seguimento ao propósito inicial, tem-se que o empresário é o
sujeito de direito que explora a atividade de empresa, é o titular dessa atividade a quem cabe a assunção dos riscos dela decorrentes2. Dessa forma,
pode-se dizer que o empresário – empresário individual, quando o exercente
da atividade é uma pessoa física, ou a sociedade empresária, quando o
exercente da atividade é uma pessoa jurídica – é o sujeito de direito.
1
2
SIMÃO FILHO, Adalberto; DE LUCCA, Newton (Coord.). Direito empresarial contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 69.
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. São Paulo: Malheiros,
2004, v. 1, p. 155.
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De outra perspectiva, aqui explorando o aspecto objetivo, tem-se o
estabelecimento empresarial, definido como o complexo de bens, materiais
ou imateriais utilizados pelo empresário para a consecução de seu objetivo
social; ou seja, o empresário, para atingir seu objetivo, organiza e explora
fatores de produção, dentre os quais, bens de sua propriedade afetados
pela atividade empresarial.
A empresa, por outro lado, não detém personalidade jurídica. Não
concebe o direito brasileiro a personificação da empresa, sendo, pois, objeto de direito3. A empresa, assim, é concebida como a atividade exercida
pelo empresário, uma força especial em movimento, tal como identificada
pela doutrina tradicional4.
Já de outra perspectiva, mais alinhada com a Teoria da Firma, a
empresa seria uma estrutura em cuja organização de fatores de produção,
por meio da realização de uma série de contratos (contratos de trabalho,
de prestação de serviços, contratos com fornecedores de insumos, franquias, por exemplo), somada ao estabelecimento de regras claras de hierarquia, forma de tomada de decisões e movida por um sistema que estimule o cumprimento das declarações, possibilite a coordenação das atividades econômicas para o mercado, mediante, inclusive, cooperação entre
os participantes.
De acordo com essa ótica, deve-se entender a empresa como uma
estrutura viável para reduzir os custos de transação existentes nas negociações realizadas no mercado, diminuindo-se os riscos trazidos pelas incertezas e informações assimétricas presentes no mercado, estrutura não
hierarquizada. Citando Raquel Sztajn:
É o que explica o fato de, na cadeia produtiva, mercados e empresas
conviverem harmoniosamente. O “homo economicus”, racional,
3
4
5
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 2.ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 13.
Pela característica própria do presente trabalho e, tendo em vista a finalidade a que se
propõe, não serão aqui tecidas todas as discussões inerentes à conceituação da empresa,
considerando-se suficiente o apontamento de determinadas características para sua distinção e correlação com o empresário. Entretanto, pela pertinência, transcreve-se o conceito
de empresa formulado por Waldirio Bulgarelli: “atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter
profissional, através de um complexo de bens”. (BULGARELLI, Waldirio. Tratado de
direito empresarial. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 100).
SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 74.
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maximizador de utilidades, valoriza-as porque naqueles vê a estrutura em que ocorrem as relações econômicas e, nestas, uma forma de
exercício da atividade em que se produz para mercados5.
A relação de propriedade existe, sim, entre o sujeito de direito (empresário), titular de uma situação ativa de propriedade (bens de produção, ou
melhor, estabelecimento empresarial) e uma coletividade de pessoas que se
encontram na condição de dever respeitar aquela situação e de não ingerir na
esfera do titular6. Dessa forma, não há que se falar propriamente na empresa
como atividade organizada para a produção no mercado e para ele, como
direito real de propriedade ou mesmo como uma relação de propriedade.
Logo, quando se analisa a função social da empresa, há de se delinear
os conceitos que envolvem o instituto, já que a função social pode-se dar em
relação à propriedade exercida pelo empresário no tocante aos bens que
compõem o estabelecimento empresarial, ou pode-se analisar a função social da empresa propriamente dita como atividade organizada exercida pelo
empresário, atividade organizada que visa otimizar a produção para o mercado.
Em relação a esse último aspecto, a empresa “associada à valorização do trabalho, à manutenção da concorrência, há fundamento para atribuir a empresa utilidade social, certa função social”7.
Ainda nesses contornos iniciais, há que se mencionar que quando a
atividade de empresa é exercida por uma sociedade empresária toma espaço a função social do contrato, quando analisado seu instrumento
constitutivo. Nesse sentido, com singularidade, informa Vinícius Gontijo:
“Sabidamente, a compreensão do termo sociedade se enquadra em duplo
vértice: a sociedade na acepção do instrumento de constituição, que pode
ser verbal ou não, e a sociedade como efeito jurídico do instrumento que a
constitui”8; ou seja, além das relações existentes entre o empresário e os
bens de produção na realização da atividade empresarial, é de fundamental
6
7
8
PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2.ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 227.
SZTAJN, Rachel. Op. cit., p. 90.
GONTIJO, Vinícius José Marques. A regulamentação das sociedades limitadas. Revista
dos Tribunais. São Paulo, vol. 810, p. 21, ano 92, 2003.
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importância o estudo da função social no instrumento de constituição da
sociedade empresarial, assim como no seu exercício.
Portanto, hodiernamente, ao termo “empresa” se empresta múltiplos
significados, razão pela qual o estudo da função social da empresa deve,
primeiramente, identificar de que prisma está sendo analisado o instituto. O
presente trabalho, como já foi dito, não tem a pretensão de esgotar a análise em todos os seus primas, mas tece breves considerações acerca da
função social da empresa entendida em seus diversos significados.
3
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ANALISADA DO
PRIMA DA EMPRESA COMO ATIVIDADE
ORGANIZADA PARA A PRODUÇÃO
NO MERCADO E PARA ELE
Raquel Sztajn9, citando Natalino Irti, elucida que a
afirmativa de Irti pode ser transportada para o Brasil fundada no art. 170
da Constituição de 1988, que garante a liberdade de iniciativa econômica. Nas palavras de Irti, liberdade de iniciativa não é apenas a liberdade
de promover, ou não, atividade industrial, comercial ou financeira, mas
significa também liberdade de acesso, liberdade de entrar em certo ramo
de atividade negocial, de competir com outros pelo que a liberdade de
iniciativa se liga diretamente à liberdade e à concorrência.
É a liberdade de iniciativa vista também como instrumento de realização
da justiça social, o que poderia levar à análise da função social do mercado.
De outro lado, o mercado assume relevante importância ao ordenar
e regulamentar as trocas entre os agentes econômicos, tornando eficiente a
circulação de riquezas, o que se traduz em melhoria na distribuição dos
bens entre seus atores.
Nesse ponto, deve ser lembrado que o conceito de eficiência econômica não se confunde com o conceito de justiça social, da mesma forma
que a disciplina jurídica do mercado não é sinônimo de políticas sociais. A
eficiência econômica que se persegue no mercado é a possibilidade de
9
SZTAJN, Rachel. Op. cit., p. 32.
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melhor alocação de recursos, o que pode ser observado por meio do modelo teórico proposto por Pareto.
Todavia, tendo-se em vista a existência de falhas nos mercados, como as
externalidades e assimetrias de informação, ou mesmo a existência de mercados
monopolizados, as trocas ocorridas no mercado não alcançam, naturalmente, o
ótimo paretal. Diante disso, torna-se necessária a regulação dos mercados pelo
Estado, muito embora a existência de regulamentação nos mercados não signifique a garantia de trocas eficientes, como demonstra a Teoria da Captura.
Em virtude da existência das falhas de mercado, Raquel Sztajn observa
que: “Depender de mercados para produzir gera riscos que podem não convir
aos particulares que, por isso, organizam os fatores de produção como meio de
dar maior estabilidade a suas operações”. Dessa forma, as empresas, como atividades especialmente organizadas para a produção para o mercado possibilitam
a redução dos custos de transação envolvidos na procura do bem, no estudo do
comportamento do mercado, na análise do melhor preço, entre outros aspectos.
Isso se dá em razão da organização de núcleos produtivos na forma
empresarial possibilitar a definição de regras claras de hierarquia (ao contrário dos mercados), otimizar o fluxo de informações, incentivando a cooperação entre os agentes de produção – aqueles que fornecem a força de
trabalho, os insumos, a tecnologia, dentre outros – facilitando a previsão de
mecanismos que estimulem o cumprimento dos contratos. As características da produção por meio da empresa possibilitam a redução dos custos
transacionais e dos riscos da atividade mercantil, influenciados diretamente
pela concorrência e pela existência de informações assimétricas.
Assim, a função social da empresa, entendida como o exercício de atividade, evidencia-se quando a organização possibilita a melhor circulação de
riquezas, com a redução dos custos transacionais envolvidos na oferta da produção ao mercado, lembrando ainda que: “o desenho organizacional é que
limita ou amplia a possibilidade de condutas de apropriação de riquezas”10.
A função social da empresa identifica a sua funcionalidade no sentido
de meio de criação de riquezas, o que pode resultar em ganho social. Podese afirmar que a função social da empresa não se contrapõe à atividade
especulativa, a empresa exerce sua função social por meio dos ganhos
sociais gerados com base em sua própria organização, redundante do arranjo contratual e, ou complexo de direitos, que lhe deve ser própria.
10 SZTAJN, Rachel. Op. cit., p. 74.
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A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA, ANALISADA SOB O
PRISMA DO INSTRUMENTO DE CONSTITUIÇÃO DAS
SOCIEDADES EMPRESÁRIAS.
Quando a empresa é explorada por uma sociedade, que é centro de
imputação de direitos, obrigações e responsabilidades, facilitando a reunião de pessoas que contribuam com recursos para a consecução do objetivo comum, sem que seus bens individuais respondam pelas obrigações
sociais11, a função social deve estar presente também em seu instrumento
de constituição. Isso se deve à distinção entre sociedade instrumento de
constituição e sociedade efeito, já apontada em tópico anterior.
O contrato de constituição de sociedade é contrato plurilateral, incompleto e de execução continuada, razão pela qual o princípio da maioria
se coloca como instrumento apto para deliberar alterações que revelem o
melhor interesse dos sócios.
Desse prisma, a função social da empresa deve ser verificada em seu
instrumento de constituição, tendo como base constitucional o art. 5º, inciso
XXII, já que contrato é instrumento de circulação da propriedade, lembrando, por oportuno, as lições de Giselda Hironaka, citada por Pablo
Stolze e Rodolfo Pamplona Filho:
Ainda que o vocábulo social sempre apresente esta tendência de nos
levar a crer tratar-se de figura de concepção filosófico-socialista,
deve restar esclarecido tal equívoco. Não se trata, sem sombra de
dúvida, de estar caminhando no sentido de transformar a propriedade em patrimônio coletivo da humanidade, mas tão apenas de subordinar a propriedade privada aos interesses sociais (...).12
11 SZTAJN, Raquel. Associações e sociedades. Revista de Direito Mercantil, 128/15, nova
série, out./dez. 2002. Para a autora, “seja pela variabilidade do número de partes, seja por
serem contratos de execução continuada, é próprio dos contratos de sociedade a possibilidade de serem alterados por deliberação da maioria dos membros, maioria essa que, nas
sociedades mercantis ou empresárias, será computada em relação à participação no capital
social ou em relação ao número de participantes ou, ainda, dependerá do critério previsto
para a contagem de votos (há sociedades com voto plural, outras em que certos membros
não têm direito à voz, ou têm direito à voz em certas matérias)”.
12 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil.
2.ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006, vol. 4: Contratos, tomo 1: Teoria geral,
p. 45.
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A função social do contrato de sociedade deve ser tratada nesse
momento – nas relações associativas – de modo diverso daquele visto no
âmbito das relações consumeristas, ou não paritárias clássicas.
Assim, primeiro, deve-se ter em mente que as relações mercantilistas,
em especial as societárias, devem ser diferenciadas das demais relações,
as regidas por legislações eminentemente protecionistas (consumerista, trabalhista, por exemplo), haja vista que, como muito bem elucida Vinícius
Gontijo: “(...) Como se sabe, o Direito Empresarial tem entre seus princípios o individualismo e a onerosidade presumidos nas relações (...)”13.
Portanto, a questão é a ponderação de princípios nas relações
mercantilistas. No caso, não se trata de invalidar os princípios já consagrados pelo direito comercial, mas aplicá-los em consonância com os princípios informadores da Teoria Geral dos Contratos, lembrando que, em caso
de colisão de princípios, no caso concreto e em razão de suas
especificidades, uns cedem em relação a outros. Válido, aqui, os estudos
de Robert Alexy, citado por Teresa Negreiros: “Cuando dos princípios
entran em colisón (...) un de los principios tiene que ceder ante el outro(...)”14.
Em um segundo momento, em decorrência da própria diferenciação
na aplicação do princípio da função social do contrato no que tange a relações eminentemente empresariais, é mister identificar o princípio da paridade, citando Pietro Perlingieri, ao estudar as normas paritárias existentes
no Códice Civile e o princípio da igualdade previsto na Constituição da
Itália, segundo o qual:
(...) O princípio da paridade de tratamento pressupõe a paridade de
condições e regras rígidas que se inspiram em critérios precisos, os
quais podem ser somente patrimoniais, somente pessoais, ou de natureza mista. Segundo uma elaboração, defronte de condições
paritárias deve reservar-se um tratamento paritário e a partir daí se
argumenta que o princípio da paridade pode ser aplicado mesmo
num ordenamento jurídico que não prevê o princípio da igualdade,
como demonstra o ordenamento civilístico de 1942.15
13 GONTIJO, Vinícius José Marques. O empresário no Código Civil brasileiro. Revista de
Julgados do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, p. 30, 2004.
14 NEGREIRO, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 266.
15 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 46.
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Considerando que a função social do contrato decorre de uma
releitura da Teoria dos Contratos, que somou aos princípios ditos tradicionais, como liberdade contratual, pacta sunt servanda e a relatividade dos
efeitos dos contratos, novos princípios ditos sociais, como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico ou a equivalência material e a função social do
contrato16.
Segundo Paulo Nalin17, a função social pode manifestar-se de forma
intrínseca ou extrínseca. No primeiro aspecto, a função social se revela por
meio da boa-fé objetiva, da lealdade entre os contratantes. No segundo
aspecto, a função social do contrato se revela por meio do impacto eficacial
do contrato na sociedade em que fora celebrado.
Analisando a função social do contrato (instrumento de constituição
de sociedade) em seu aspecto intrínseco, pode-se afirmar que a cláusula
geral prevista no art. 421 do Código Civil possui aplicações específicas em
direito societário. Apenas a título de exemplo, aponta-se a vedação da
cláusula leonina prevista no art. 1.008 do Código Civil ou a necessidade de
se fazer constar expressamente do estatuto social os privilégios e desvantagens previstos para os acionistas preferencialistas, conforme previsto no
art. 17 da Lei nº 6.404/76.
Outro aspecto em que toma parte o interesse da função social no
contrato social é a norma prevista no art. 999, que exige a unanimidade dos
sócios para a alteração das matérias arroladas no art. 997, ambos do Código Civil. Aqui, a preocupação do legislador foi impedir que a maioria
capitalista sobreponha os interesses dos minoritários nas cláusulas que julgou essenciais ao interesse presente quando da formação e constituição da
sociedade. Há outros casos em que os quora de deliberação são estabelecidos em razão do número de sócios (critério per capita) e não em razão
da participação no capital social, como no caso do art. 1.028 e do art.
1.061 do Código Civil.
Outro exemplo dessa preocupação pode ser notado no art. 116 da
Lei nº 6.404/76 que dispõe que o acionista controlador deve utilizar o
16 TEPEDINO, Gustavo. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo
Código Civil. Revista da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, vol. 6, nº 23, p. 34,
2003.
17 NALIN, Paulo Roberto. Do Contrato: conceito pós-moderno – em busca de sua reformulação
na perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001.
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seu poder de controle com o fim de fazer a companhia realizar seu
objeto social e cumprir sua função social.
Frederico Simionato18 aduz que o conselho de administração e a
assembléia geral representam um instrumento para o exercício da vontade
do controlador. Prescindindo esse poder de um controle por órgão externo
e independente no que tange a verificar se os atos de gestão atendem aos
interesses da coletividade. Entre as várias normas que visam limitar o interesse do grupo controlador, pode-se citar aquela prevista no art. 254-A da
Lei nº 6.404/76, que prevê a cláusula tag along para as companhias abertas.
Analisando o aspecto extrínseco da função social do contrato de
constituição da sociedade, percebe-se que o contrato societário é balizado
por interesses sociais que fogem algumas vezes ao interesse individual dos
contratantes. Exemplo disso é a norma prevista no art. 1.059 do Código
Civil que imputa responsabilidade aos sócios no caso de distribuição de
lucros com prejuízo do capital social. Isso porque a sociedade foi constituída para a realização de objetivo comum e esse objetivo, em que pese o
objeto econômico da sociedade – a partilha dos resultados – não deve ser
relegado para atender aos interesses individuais dos contratantes.
Por outro lado, o legislador de 2002 previu tipos societários específicos e determinados: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita
simples, sociedade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade anônima. Sendo que, para cada tipo societário foi previsto núcleo específico de imputação de responsabilidade para os sócios (contratantes) pelas obrigações sociais. Por essa razão é que, segundo afirma Vinícius Gontijo,
em suas magistrais aulas, as responsabilidades de terceiros pelas obrigações sociais pode se dar por ato volitivo dos sócios, quando da escolha do
tipo societário.
5
FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA, SOB O PRISMA DA
EXPLORAÇÃO DOS BENS DE PRODUÇÃO
A análise da função social da empresa, neste momento, está relacionada ao instituto da propriedade (bens de produção). Nesse sentido, pode18 SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. A função social e o controle do poder de controle nas companhias. Revista de Direito Mercantil, 135/94, nova série, jul./set. 2004.
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se afirmar, de início, que a função social da propriedade passa a ser vista
como elemento interno da estrutura do direito subjetivo, determinando sua
destinação, e que as faculdades do proprietário privado são reduzidas ao
que a disciplina constitucional lhe concede na medida em que o pressuposto para a tutela da situação proprietária é o cumprimento da função social,
que, por sua vez, tem conteúdo predeterminado, voltado para a dignidade
da pessoa humana e para a igualdade com terceiros não-proprietários19.
Por essa razão, pode-se afirmar, segundo Ana Prata (ao estudar o
direito constitucional português), que a função social da propriedade tem
significado que engloba e sintetiza os limites legais e intrínsecos à propriedade, constituindo, esses limites, não uma compreensão exterior do direito
do proprietário, uma sanção pelo descumprimento de um dever, mas antes,
um elemento “conatural” do próprio direito a fim de que seja legítimo, mas
não se trata apenas, nem principalmente, de uma fórmula designativa de
limites especificados na lei: ela constitui, autonomamente, uma fonte de limitações na medida em que caracteriza, de certa forma, o direito e o seu
exercício.
Reconhece-se pela melhor doutrina que a função social da propriedade pode ser analisada em relação aos bens sobre os quais recai, já que
os poderes essenciais do proprietário são diferentes em relação à propriedade dos bens de uso e dos bens de consumo, à propriedade do solo
abrangido por medidas de urbanização, à propriedade utilizada economicamente para a produção de bens de alimentação e de matérias-primas, à
propriedade empresarial20.
O empresário, quando da exploração dos bens de produção, devese pautar em duas balizas: de um lado deve atender aos interesses egoísticos
próprios; de outro, quando da exploração dessa propriedade, deve atender à função social dela. Isso porque se a função social, como já dito, é
ínsita ao próprio conceito de propriedade, a finalidade de obter lucro é
atributo do empresário.
19 MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
Estado, Direito e Sociedade - publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUCRio - vol. I, p . 38, 1991.
20 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. Conteúdo mínimo do direito de propriedade. Revista
Quaestio Iuris - revista jurídica on-line da Uerj, Rio de Janeiro, nº 5, p. 158, 1998.
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Assim, a questão que surge se refere à identificação ou delineação
da função social dos bens de produção: pode-se pensar que a função social dos bens de produção seria a realização de deveres anexos ao próprio
objetivo social ou, ainda, ao negócio social (cujo conceito é mais abrangente).
É grande o risco de o intérprete ser levado a conclusões equivocadas. Não
se exige do empresário ou da sociedade empresária a realização de atividades altruísticas, de forma a dispensar o Estado de prestar seus deveres
sociais.
Em síntese, a função social da propriedade dos bens de produção
resolve-se na proteção da utilidade produtiva dos bens, isto é, a função
social analisa-se em obrigações de utilizar o bem de acordo com a sua
função produtiva, de forma a contribuir para o incremento da produção
nacional, sem lesão dos interesses dos consumidores e utentes de bens e
serviços produzidos, resultando em intervenções estatais de três tipos: umas
atingem a titularidade do direito (expropriação), outras a forma de gestão
dos bens e outras, ainda, a estruturação das relações entre os sujeitos proprietários e outros sujeitos que estão, em alguma medida, interessados no
uso do bem21.
É por essa razão que a chamada “propriedade de empresa” não
comporta deveres de prestação de serviços sociais, incompatíveis com a
própria natureza da empresa, em nosso sistema econômico, em sua qualidade de entidade direcionada, primariamente, à produção de lucros22.
6
CONCLUSÃO
Após a análise da função social da empresa, distinguindo seu exercício, apropriando os conceitos da utilização dos bens de produção e do
desenho das relações associativas, partindo da idéia defendida na doutrina
segundo a qual a empresa seria um complexo de direitos, organizados por
meio de um arranjo de contratos, visando à otimização da produção no
mercado e para ele, e, por conseguinte, aumentando o ganho social, pode21 PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p.
47.
22 COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1995.
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se afirmar que são, as empresas, instrumentos essenciais ao cumprimento
da função socioeconômica.
O ganho social que redundará dessa função social da empresa dependerá da forma como será aplicado o direito nas relações sociais em que
a empresa se contextualiza ou, melhor dizendo, o ônus imputado ao exercício da atividade empresarial deve ser corretamente mensurado, de forma a
evitar elevados custos de transação que, muitas das vezes, acarretam
externalidades negativas, sendo incluídos no custo da produção e repassados à sociedade. Daí a preocupação com a atividade empresarial sob seus
vários aspectos, a forma de sua organização, incluindo a organização
associativa, seu exercício, atuação no mercado e a exploração da propriedade. Esclarecendo as questões abordadas, evidencia-se que a geração
de riquezas advinda da empresa é o instrumento de realização da função
social.
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 1995.
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil.
2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1995.
DE LUCCA, Newton. Direito empresarial contemporâneo. SIMÃO
FILHO, Adalberto; DE LUCCA, Newton (Coord.). São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2000.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso
de direito civil. 2.ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006, vol.
4: Contratos, tomo 1: Teoria geral.
GONTIJO, Vinícius José Marques. A regulamentação das sociedades limitadas. Revista dos Tribunais. São Paulo, vol. 810, ano 92, 2003.
GONTIJO, Vinícius José Marques. O empresário no Código Civil brasileiro. Revista de Julgados do Tribunal de Alçada de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2004.
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FABRÍCIO DE SOUZA OLIVEIRA
MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade - publicação do Departamento
de Ciências Jurídicas da PUC-Rio - vol. I, 1991.
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ANOTAÇÕES SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA “EMPRESA”
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FERNANDA UCHÔA COSTA CAMBRAIA
Sumário
1. Introdução. 2. A empresa bancária 3. Concentrações
bancárias 4. As particularidades da análise concorrencial no
setor bancário 5. Da harmonização das atribuições do Cade
e do Bacen 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
Resumo
Em meados de 2000, veio a público uma divergência de opiniões entre o
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o Banco Central do
Brasil (Bacen) acerca de qual dos dois órgãos teria competência legal para decidir sobre os atos de concentração envolvendo instituições bancárias. Com efeito,
sabe-se que os bancos são instituições “diferentes”, não só por sua importância
na economia, como guardiães da poupança da sociedade, multiplicadores da
moeda e capazes de gerar mais consumo, produção e investimentos em todos os
demais setores, mas também por sua vulnerabilidade a corridas dos depositantes,
a partir no momento em que se espalham simples boatos sobre as dificuldades de
uma instituição. Daí que resta evidente a necessidade de uma complementaridade
dos órgãos – Cade e Bacen – atuando com as suas respectivas expertises: de um
lado, o Bacen, que detém informações específicas acerca das instituições bancárias e condições de acompanhar compromissos de natureza comportamental; de
outro, o Cade, que tem a expertise técnica para avaliar fusões e aquisições (definir mercados, examinar a existência de poder de mercado e estabelecer medidas compensatórias aos danos à concorrência). Assim, dessa complementaridade
nasceria a colaboração entre os órgãos e a eficiência no tratamento das questões de estabilidade e concorrência no que diz respeito ao setor bancário.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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N. 13
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FERNANDA UCHÔA COSTA CAMBRAIA
Abstract
In the middle of 2000, it came public a divergence of opinions between
the “Administrative Council of Economical Defense” (Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência) and the “Central Bank of Brazil” (Banco Central do Brasil) concerning which of them were legally competent to
decide on concentration of actions among banking corporations. With effect,
it is known that banks are unique institutions, not only because of their
economic importance as society saving’s guardians, currency multipliers and
consumption, production and investments facilitators in all other areas, but
also because of their vulnerability of withdraw of savings by the moment it is
dispersed simple rumors about a financial difficult. Since then, remains an
evidence of a necessity of complementary job between the two organs –
“Administrative Council of Economical Defense” and “Central Bank of
Brazil” – combining both expertises: on a side, the “Central Bank of Brazil”,
that gathers specifics information about baking corporations and are able to
following their commitments, and of other, the “Administrative Council of
Economical Defense”, that has the technical expertise to evaluate merges
and acquisitions (define markets, evaluate the market existence and define
compensatory measures for damages to the competition). Thus, from this
complementary job would raise the cooperation between the two organs
and the efficiency on the treatment of stability and competition in the baking
sector.
1
INTRODUÇÃO
O debate em torno da aplicação do direito concorrencial às instituições bancárias repropõe o tema das fronteiras e interações entre direito,
política e economia. Uma economia sólida não sobrevive sem um regime
político estável; da mesma forma, estabilidade política exige um mínimo de
solidez na economia. O fundamento para o desenvolvimento de uma economia sólida é aquele em que as empresas disputam, de uma maneira justa,
os mercados, valendo somente as leis naturais de concorrência.
Para uma economia globalizada e aberta, é necessária a existência
de organismos reguladores, que supervisionem a prática de fundamentos
concorrenciais, impedindo abusos de poder econômico. É essencial, pois,
garantir a abertura de mercados, a manutenção dos princípios da livre
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concorrência e, ainda, prevenir e reprimir qualquer infração contra a ordem
econômica.
As instituições bancárias não são exceção quanto a essas preocupações. Nos últimos cinco anos, o sistema financeiro brasileiro transformouse radicalmente por meio de uma série de fusões e aquisições de bancos,
com as pequenas e médias instituições bancárias sendo incorporadas pelas
grandes. Como conseqüência, iniciou-se um período de revolução no mercado bancário no país, acentuando-se a preocupação com qualquer ato de
concentração que pudesse lhe ser prejudicial.
A necessidade de proteção da poupança popular e os efeitos do
multiplicador de moeda fazem com que o sistema bancário exija pesada
regulamentação como atividade intermediadora de recursos. A concentração bancária e os movimentos ligados à concorrência entre os bancos
são, pois, de interesse especial do Estado para obter os fins maiores de
sua política econômica, mediante expansão ou contração dos meios de
pagamento.
Há uma vasta discussão sobre a competência legal para se analisar
os atos de concentração no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. Não
está definido, ainda, se a competência pertence ao Banco Central do Brasil, ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ou se deve
ser partilhada por ambos os órgãos por meio de um modelo de competência complementar viável, jurídica e economicamente, na repressão do abuso do poder econômico envolvendo instituições bancárias; abuso esse ao
qual, lamentavelmente, assistimos com freqüência.
2
A EMPRESA BANCÁRIA
Antes de conceituarmos empresa1 bancária, é importante deixar claro que o termo empresa varia do campo do direito comercial para o campo
do direito econômico. Para o primeiro, a empresa é considerada atividade,
ou seja, objeto de direito, e a sociedade empresária (pessoa jurídica) é o
1
O termo “empresa” é aqui utilizado em seu sentido técnico-jurídico, de modo a significar a
atividade econômica organizada desenvolvida pelas “sociedades bancárias”.
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sujeito de direito; para o segundo, a empresa é sujeito de direito, ou seja,
pessoa jurídica.
A atividade (empresa) bancária, considerada a mais comercial de
todas as atividades mercantis2, vem, já há algum tempo, em razão de sua
especialidade, deixando o domínio do direito privado (comercial) para dela
também se ocupar o direito público (administrativo), na medida em que se
tem difundido a concepção da atividade bancária como verdadeiro serviço
público.
Com efeito, é inconcebível imaginar qualquer atividade - incluída aí a
atividade estatal - que prescinda da atividade bancária para o seu regular
desenvolvimento. O crédito, matéria-prima dessa última, tornou-se elemento
essencial à produção ou circulação de bens ou de serviços e seus respectivos consumos. Sem o crédito, o desenvolvimento econômico e social, de
uma maneira geral, resta prejudicado em demasia e torna-se até mesmo
inalcançável.
Considerando a premissa básica de que o crédito é essencial, não
restam dúvidas acerca da notabilidade da atividade bancária, uma vez que
os bancos, dentre outras funções, exercem a intermediação e a mobilização
do crédito, atividade que constitui o chamado “binômio bancário” que, nos
dizeres de Lauro Muniz Barreto, se resume ao fato de os bancos tomarem
dinheiro emprestado a crédito e também o darem por empréstimo3.
A legislação brasileira não dá uma definição precisa do que sejam os
bancos. Isso espelha uma tendência também encontrada em outros sistemas jurídicos, derivada do fato de as normas gerais deverem se referir,
quase sempre, às entidades que exercem intermediação financeira, sejam
elas bancos ou não, pois todas essas entidades podem interferir na economia, influindo na circulação da moeda, criando moeda e afetando a poupança popular.
Carvalho de Mendonça conceituou os bancos como
2
3
Cf. art. 19 § 2º do Regulamento 737, de 1850.
“Art. 19. Considera-se mercancia:
(...)
§ 2º As operações de câmbio, banco e corretagem.
(...)”.
BARRETO, Lauro Muniz. Direito bancário. São Paulo: Universitária de Direito, 1975, p.
XIII.
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empresas comerciais, cujo objetivo principal consiste na intromissão
entre os que dispõem de capitais e os que precisam obtê-los, isto é,
em receber e concentrar capitais para, sistematicamente, distribuílos por meio de operações de crédito.4
Nelson Abrão define banco como sendo “a empresa que com fundos próprios, ou de terceiros, faz da negociação de crédito sua atividade
principal”5.
Não menos precisas são as palavras de Fran Martins, para quem
“os bancos são empresas comerciais que têm por finalidade realizar a
mobilização do crédito, principalmente mediante o recebimento, em depósito, de capitais de terceiros, e o empréstimo de importâncias, em nome
próprio, aos que necessitam de capital”6, esclarecendo que o termo “empresa”, do ponto de vista técnico-jurídico, diz respeito não ao estabelecimento bancário, mas, sim, à atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou de serviços, concepção acolhida pelo Código Civil de 2002 (art. 966)7.
Assim, dessas conceituações, extrai-se uma das principais características da atividade bancária: a utilização de recursos de terceiros, embora
operem eles, também, com recursos próprios. Dessa forma, a atividade
tem um único objetivo: aproximar os detentores de poupança dos que ne-
4
5
6
7
CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. 7.ed. São
Paulo: Freitas Bastos, 1970, v. VI, p. 13-14.
ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 9.ed. rev., ampl. e atual. por Carlos Henrique Abrão.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17.
MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 14.ed. Rio de Janeiro: Forense,
1997, p. 407.
O Código Civil de 2002, seguindo o modelo do Código Civil italiano de 1942, tentou
unificar o direito privado, revogando, em parte, o Código Comercial, e abandonando a
conhecida teoria dos atos de comércio (que se mostrou incompatível com a organização
capitalista), para incorporar ao ordenamento a chamada Teoria da Empresa, motivo pelo
qual as prerrogativas que eram conferidas àqueles que se enquadrassem no conceito de
comerciantes (presentes, portanto, os pressupostos da profissionalidade, habitualidade e
intermediação), tais como a falência, a concordata etc., agora são conferidas àqueles que se
enquadrarem no conceito de empresário (CC/2002, art. 966). Alerte-se, além disso, para o
fato de que, em razão do surgimento do paradigma em epígrafe (empresário) o que distingue
uma atividade empresária de uma atividade não empresária é a forma pela qual ela é
exercida, não mais o seu objeto.
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cessitam de crédito, de modo a propiciar a utilização econômica da poupança e então atingir as metas de política econômica do Estado.
Isabel Vaz conceitua atividade bancária como uma prestação de serviços de notável relevância na vida de um país, e que, consistindo, basicamente, na captação de depósitos e na concessão de empréstimos aos investidores privados ou públicos, realiza uma formidável intermediação de
recursos financeiros, mediante o pagamento de taxas cujos valores variam
de uma a outra instituição8.
Assim, a atividade bancária, apesar de se constituir apenas em parte
da atividade financeira desenvolvida no mercado, é relevante no aspecto
econômico, uma vez que é a porta de entrada pela qual os recursos disponíveis ingressam no sistema e consiste na parte mais visível desse mesmo
sistema.
Cumpre destacar que de acordo com o art. 25 da Lei nº 4.595/64
os bancos privados devem se revestir da forma de sociedades anônimas9.
Confira-se:
Art. 25. As instituições financeiras privadas, exceto as cooperativas
de crédito, constituir-se-ão unicamente sob a forma de sociedade
anônima, devendo a totalidade de seu capital com direito a voto ser
representada por ações nominativas.
A atividade bancária resume-se à captação e ao repasse de recursos. O banco capta recursos a prazo ou à vista e os transforma em créditos
contra terceiros.
Assim, os bancos são diferentes não só por sua importância na economia como guardiães da poupança da sociedade, multiplicadores da moeda e emprestadores capazes de gerar mais consumo, produção e investimentos em todos os demais setores, mas também por sua vulnerabilidade
às corridas dos depositantes a partir do momento em que se disseminam
8
9
VAZ, Isabel. Fundamentos constitucionais da livre concorrência no setor bancário. In:
CAPILONGO et al. Concorrência e regulação no sistema financeiro. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 199.
O art. 25 da Lei nº 4.595/64 teve sua redação dada pela Lei nº 5.710, de 7 de outubro de
1971, expressamente revogada pelo art. 324 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986.
Isso não prejudica, a nosso ver, o dispositivo citado, porque a própria Lei nº 4.595/64 não
foi objeto de revogação, em sua nova redação.
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simples boatos sobre as dificuldades de uma instituição, o que não é raro
em um processo de negociação.
3. CONCENTRAÇÕES BANCÁRIAS
O processo concentracionista no setor bancário não é novo no Brasil. Já nas décadas de 1960 e 1970, ofereceram-se estímulos à concentração bancária com renúncia fiscal importante. Visava-se à criação de bancos privados nacionais, fortes. Nesse período, surgiram os bancos Bradesco,
Itaú e Unibanco, por exemplo. Mais recentemente, o processo concentracionista na área financeira foi retomado por conta das privatizações de
instituições bancárias estaduais e pelo imperativo de saneamento do sistema, após a insolvência de algumas instituições, como os bancos Nacional,
Econômico e Bamerindus10.
Considere-se também que o aumento da presença de instituições
estrangeiras no mercado, algumas delas atraídas pelo crescimento da economia nacional e pelas altas taxas de juros, é causa do acirramento da
disputa entre os maiores bancos privados nacionais para manter ou aumentar sua posição estratégica, levando-se em conta a nova onda de aquisições de instituições pequenas e médias11.
A concentração bancária justifica-se, assim, pela ampliação das unidades produtivas individuais. A existência de economia de escala associada a um maior tamanho da instituição é a principal causa da concentração
bancária, que tende a buscar maior eficiência possível.
Com efeito, devemos nos perguntar: Qual o papel do Estado em
tudo isso? É inadmissível que o Estado fique à mercê. É necessário um
constante monitoramento das atividades bancárias, sem que, com isso, se
configure intervencionismo ou regulamentação irrelevante.
Compreender a natureza das transformações no mercado e adaptar
a regulamentação e as leis para tanto é outro dos grandes desafios do Estado, mais particularmente de sua autoridade monetária, o Banco Central.
10 SZTAJN, Rachel. Regulação e concorrência no sistema financeiro. In: CAPILONGO et al.
Op. cit., p. 235.
11 Idem.
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4. AS PARTICULARIDADES DA ANÁLISE
CONCORRENCIAL NO
SETOR BANCÁRIO
Existem várias formas e motivos diversos para a regulação das atividades bancárias, dada a importância de se imprimir transparência, segurança e solidez ao sistema bancário e considerados, ainda, os diversos
interesses a serem protegidos.
Pode-se falar, inicialmente, sobre a necessidade, por todos reconhecida, de cada país possuir um sistema bancário sólido, seguro e regido por
normas transparentes. Esses predicados, se por um lado representam um
direito do administrado, usuário e consumidor daqueles serviços, significam, por outro, para os investidores externos e demais parceiros comerciais, uma garantia do adimplemento e da pontualidade em relação aos compromissos assumidos.
Assim, como visto, o sistema financeiro é, sem dúvida, um dos setores
mais sensíveis da economia. Nele, todos os agentes econômicos, de assalariados a grandes empresas, ainda que indiretamente, interagem, criando relações de interdependência nas quais a poupança de alguns representa o investimento de outros e o lucro de uns é o que gera o rendimento de outros.
Também de importância fundamental para a economia é a existência
e o bom funcionamento do sistema de pagamentos, do qual os bancos são
participantes fundamentais. É por meio desse sistema que grande parte das
relações de pagamento da sociedade são realizadas, como compensações
de cheques e transferências bancárias.
Portanto, o sistema financeiro lida com o crédito e com a moeda, situações entre as mais acentuadas expressões da soberania de um país. Lida
com a economia popular, com as poupanças, os capitais produtivos, os meios de pagamento de uma nação e outros valores e serviços financeiros que a
especialização tecnológica e as comunicações permitem aos bancos oferecer
à sociedade. Assim, é preciso haver segurança e solidez no sistema bancário.
Essa permanente tensão imposta ao sistema bancário em razão do
famigerado risco sistêmico cria, do ponto de vista de políticas públicas, a
necessidade de um tratamento especial às instituições bancárias, seja pela
imposição de regras específicas de natureza prudencial, seja pela injeção
de recursos públicos para manutenção do sistema, ou mesmo pelo abrandamento das condições concorrenciais no mercado bancário.
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Assim, no setor bancário, além de existir uma atividade de regulação e
de fiscalização, que deve zelar pela saúde do mercado financeiro e defender
os interesses dos depositantes, há a necessidade da defesa da concorrência.
No Brasil, essa atividade reguladora, como visto, é exercida pelo
Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil. A
Lei nº 4.595/64 defere ao CMN a competência normativa e ao Banco
Central as atribuições de execução das normas editadas pelo CMN.
Para Paulo César Coutinho,
os principais objetivos da regulação prudencial são: promover práticas bancárias seguras e sólidas, promover a eficiência do setor bancário, zelar pela proteção aos depositantes e outros credores e manter a estabilidade dos mercados financeiros.12
Especificamente quanto às fusões e às aquisições, o papel do Banco
Central do Brasil é particularmente importante, uma vez que lhe cabe apreciar e decidir sobre sua aprovação ou não, confira-se:
Os agentes têm uma série de preocupações com relação às conseqüências de fusões e aquisições. Dentre elas destacam-se o acúmulo
de poder econômico, político e social que pode influenciar o processo de tomada de decisões das autoridades governamentais, a concentração de propriedade que pode resultar em “self-dealing” e conflitos de interesses, e o aumento indevido de poder de mercado que
pode resultar em práticas anticompetitivas. Por outro lado, esses
agentes precisam também avaliar até que ponto a fusão ou aquisição
proporciona um aumento de eficiência naquele mercado, o que geralmente é utilizado como argumento para justificar a operação, e se
essa eficiência poderia ser obtida de outra maneira. Finalmente, precisam comparar as potenciais eficiências com o prejuízo à concorrência porventura existente.13
12 Cf. COUTINHO, Paulo César; OLIVEIRA, André Rossi de. Regulação prudencial e concorrência no setor bancário. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE REGULAÇÃO
E DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO SETOR BANCÁRIO. Coletânea de trabalhos
apresentados. Brasília. 29-30 mar. 1999, p. 214 e ss.
13 Ibidem, p. 221-222.
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Portanto, na construção de sua decisão, o Banco Central deve articular um raciocínio conhecido dos estudiosos do direito econômico e também muito comum nas decisões do Cade, sobre concentrações em outros
setores da economia, responsável pela aprovação da maioria das operações submetidas à sua apreciação, qual seja: a aplicação da chamada “regra da razão”, materializada no direito pátrio pelo parágrafo 1º e parágrafo
2º do art. 54 da Lei nº 8.884/9414
Entre a defesa da concorrência e o sistema de regulação, concessão
e fiscalização do setor bancário há uma íntima ligação. Prescindir da defesa
da concorrência seria desprezar um elemento essencial para se garantir a
eficiência das instituições bancárias, o que, afinal, é um dos objetivos da
regulação prudencial. Também não se pode desconsiderar a necessidade
de fortalecer os participantes e, assim, evitar o risco sistêmico. Dignos de
consideração, ainda, são os benefícios que muitos atos de concentração
podem trazer ao mercado, como um maior investimento em tecnologia e no
desenvolvimento de produtos e serviços.
Portanto, é essencial que haja harmonia entre a defesa da concorrência e a regulação do sistema bancário, devendo a autoridade competente, seja ela qual for, decidir-se sempre pelo que for mais conveniente ao
bem comum segundo as diretrizes da política econômica.
14 “Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer
forma prejudicar a livre concorrência ou resultar na dominação de mercados relevantes de
bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.
§1º O CADE poderá autorizar os atos a que se refere o caput, desde que atendam às
seguintes condições:
I - tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente:
a) aumentar a produtividade;
b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou
c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico.
II - os benefícios decorrentes sejam distribuídos eqüitativamente entre os seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro;
III - não impliquem eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante
de bens e serviços;
IV - sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados.
§ 2º Também poderão ser considerados legítimos os atos previstos neste artigo, desde que
atendidas pelo menos 3 (três) das condições previstas nos incisos do parágrafo anterior,
quando necessários por motivos preponderantes de economia nacional e do bem comum, e
desde que não impliquem prejuízo ao consumidor ou usuário final.”
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5. DA HARMONIZAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO CADE E
DO BACEN
Assim, as atividades dos órgãos reguladores e do Cade devem ser
absolutamente complementares. Tal raciocínio, respeitando-se as opiniões
em contrário, pode ser aplicado ao Banco Central do Brasil. Com efeito,
em que pese a necessidade de uma maior sofisticação, perfeitamente viável
é compatibilizar os textos do art. 2º, do art. 15 e do art. 54 da Lei nº 8.884/
94, com o art. 10 e o art. 18 da Lei nº 4.595/64.
As atribuições dadas ao Bacen para autorizar atos de concentração,
bem como para regular as regras de concorrência entre as instituições financeiras, dão-se no campo da regulação prudencial, típica de órgãos reguladores.
A expressão “compete privativamente”, de acordo com o art. 10 da
Lei nº 4.595/64, é utilizada no sentido de afastar a atribuição de qualquer
outro órgão regulador. Tal competência, porém, por se dar apenas no marco da regulação prudencial, não afasta a atribuição complementar do órgão de defesa da concorrência em analisar os atos de concentração de
instituições financeiras e de sancionar as condutas por elas praticadas que
violem a ordem econômica.
Resta clara, portanto, a divisão de atribuições: o Bacen poderá efetivar uma análise de natureza regulatória no marco das suas atribuições de
fiscalização e da aplicação da política monetária nacional, cumprindo as
diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. Ademais, a
sua racionalidade levará sempre em conta a circunstância de evitar qualquer risco sistêmico, detendo, para tanto, informações exclusivas, que nenhum outro órgão estatal possui. É com base nesse aspecto que se entende
as suas funções de analisar atos de concentração e regular condições de
concorrência, aplicando as normas da legislação específica do setor bancário para sancionar eventuais infrações a tais regras.
Caberá ao Cade, porém, a análise dos atos de concentração e a
aplicação de sanções à luz da defesa da concorrência, em sua função de
prevenção a lesões à ordem econômica nacional. Nesse aspecto, suas decisões são autônomas, sendo tomadas independentemente da regulação
prudencial efetivada pelo Bacen e pelo CMN.
Entendimento diverso, inclusive, equivaleria a conferir imunidade
antitruste às instituições financeiras. Na medida em que apenas o Cade
detém os instrumentais conferidos pela Lei nº 8.884/94 para reprimir e
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prevenir lesões à ordem econômica. Assim, no campo da repressão, apenas ele pode impor as sanções nela previstas; e, no campo da prevenção,
somente a Lei nº 8.884/94 estabelece instrumentos de grande valia, tais
como o compromisso de desempenho de conduta.
Ademais, é esse o entendimento que o operador do direito deve
adotar ao analisar duas leis em aparente conflito: buscar a maneira de melhor conciliá-las, evitando a simples eliminação de uma norma pela outra.
São precisas, nesse sentido, as observações de Carlos Maximiliano,
na clássica obra Hermenêutica e aplicação do direito:
Contradições absolutas não se presumem. É dever do aplicador comparar e procurar conciliar as disposições várias sobre o mesmo objeto, e do conjunto, assim harmonizado, deduzir o sentido e alcance
de cada uma. Só em caso de resistirem as incompatibilidades, vitoriosamente, a todo esforço de aproximação, é que se opina em sentido eliminatório da regra mais antiga, ou de parte da mesma, pois
que ainda será possível concluir pela existência de antinomia irredutível,
porém parcial, de modo que afete apenas a perpetuidade de uma
fração do dispositivo anterior, contrariada, de frente, pelo posterior.15
Não existe, pois, conflito de competência, mas complementaridade
de atribuições.
Um ato do Banco Central, por exemplo, que estabeleça um capital
mínimo integralizado para a constituição de um banco no país é, seguramente, entre outras coisas, um ato de controle da concorrência. Esse ato
pode ser praticado pelo Banco Central, que tem competência para tanto,
mas não pode ser desempenhado pelo Cade, nem por outro órgão público. Aliás, o Cade não pode estabelecer regulações normativas. Ele é um
órgão judicante, que decide a aplicação da lei concorrencial a casos concretos a ele submetidos. O Bacen, por sua vez, está incumbido de uma
função de supervisão prudencial, que, obviamente, não se limita ao escopo
de controle da concorrência, mas se destina a preservar, em níveis seguros,
a liquidez e a confiabilidade das instituições do mercado.
15 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1995, p. 356.
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A DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO SETOR BANCÁRIO
O papel que o Banco Central desempenha no aconselhamento ao
Presidente da República, com relação ao ingresso de instituições financeiras estrangeiras no país, é também uma forma de controle da concorrência.
O art. 192, inciso III, da Constituição Federal, atribui à Lei Complementar
o poder de dispor sobre condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições financeiras, devendo considerar especialmente os interesses nacionais. Já o art. 52 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias determina que, enquanto a Lei Complementar não especificar
quais são essas condições, o ingresso de instituições estrangeiras fica proibido, exceto em caso de interesse do governo brasileiro. Portanto, o Executivo Federal e o Banco Central têm entendido que os recentes ingressos
de bancos estrangeiros no Brasil são de interesse nacional. Abrindo ou
fechando o mercado nacional à concorrência estrangeira, o Banco Central
está, na realidade, determinando o nível geral de competição do setor.
6
CONCLUSÃO
No setor financeiro, duas atividades de controle são essenciais: a
supervisão prudencial e a defesa da concorrência. Aquela visa garantir a
higidez do sistema financeiro e de suas instituições, reduzindo o risco sistêmico
e evitando crises de confiança no mercado que poderiam gerar efeitos prejudiciais a toda a economia. Já a defesa da concorrência, na dupla perspectiva de controle de concentração e de repressão a condutas que infringem a ordem econômica, tem como principal objetivo evitar o abuso do
poder econômico, caracterizado, principalmente, pela eliminação e pela
dominação do mercado.
Com efeito, a conclusão é de que o ideal seria o estabelecimento de
um sistema de competências complementares no qual tanto o Bacen quanto o Cade tivessem competências na área de defesa da concorrência, em
se tratando de instituições sob supervisão do Bacen, havendo, assim, uma
divisão de tarefas entre os dois órgãos.
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO SETOR BANCÁRIO
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ROMPIMENTO DO VÍNCULO SOCIETÁRIO
NA SOCIEDADE LIMITADA
HENRIQUE VILAÇA BELO
Sumário
1. Introdução. 2. Breve análise da dissolução 3. Dissolução total – hipóteses 4. Dissolução parcial - hipóteses
5. Dissolução por previsão contratual expressa – abuso,
violação do contrato social, da lei – descumprimento das
obrigações 6. Liquidação – hipóteses 7. Conclusão. 8.
Referências bibliográficas.
Resumo
O rompimento do vínculo societário na sociedade limitada apresenta-se,
no cenário atual, mais completo que a legislação pretérita, qual seja, o DecretoLei nº 3.708/19, que continha somente 18 artigos regulamentando toda a sociedade limitada. O novo Código Civil, por sua vez, apresenta-se mais amplo,
pois traz, de forma taxativa e expressa, as variadas modalidades de dissolução
total ou parcial. Por seu turno, demonstra-se condizente com os dispositivos
constitucionais ao limitar a atuação do sócio majoritário na exclusão do sócio
minoritário, minimizando os prejuízos do segundo. Sensível à atual tendência
legislativa, contribui para a diminuição das demandas judiciais ao permitir que a
dissolução, em determinados casos, se faça sem a necessidade de ajuizamento
de ação específica para obtê-la, como na exclusão extrajudicial de sócio. Essas, dentre as várias novidades trazidas pelo novo diploma civil quanto ao rompimento do vínculo societário na sociedade limitada, exigirão dos operadores
do direito, em especial da jurisprudência, relevante papel no sentido de manter
a intenção do legislador em conjugar a dissolução do vínculo com os princípios
e regras constitucionais, intenção essa, diga-se de passagem, louvável.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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N. 13
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HENRIQUE VILAÇA BELO
Abstract
The rupture of the partner tie in the limited society is recently
seen, more completed than the Decree 3708/19, which had only
eighteen articles regulating the entire limited society. The new civil code,
however, is shown more extensive, bringing firm and meaningfully, a
number of sorts of total or partial dissolution. It is consonant proven
with the constitutional devices when it limits the act of the major partner
in the exclusion of the minor one, diminishing the losses of the minor.
Sensitive to the actual legislative tendency, it contributes to the reduction
of the judicial demands as it lets the dissolution, in some cases, been
done without any need of specific action of judicious to obtain it, as
used in the exclusion of extrajudicial partner. Those, among many other
news, brought by the new civil diploma concerning the ruprure of the
partner in the limited society, will require from the law operators,
specially from the jurisprudence, relevant part, in order to maintain
the legislator intention of conjugating the rupture of the partner with
the constitutional principles and rules. This intention, must be said, it is
praiseworthy.
1
INTRODUÇÃO
A sociedade limitada, diante da escassez de normas do Decreto-Lei
nº 3.708 de 1919, foi sistematizada por completo em capítulo próprio no
novo Código Civil, especificamente no Livro II, Capítulo IV, artigos 1.052
a 1.087, ressaltando a possibilidade de aplicação subsidiária da sociedade
simples no artigo 1.053.
O novo Código Civil, ao estabelecer as normas envolvendo o direito de empresa, trouxe várias inovações com relação à forma e aos
requisitos para dissolução de sociedades, em especial a sociedade limitada. Apresentou-se mais completo com relação ao rompimento do vínculo societário nessa sociedade, expressa e implicitamente delineando
várias hipóteses dissolutórias. Por um lado, sensível à freqüente elaboração de estratégias pelos sócios majoritários na exclusão de minoritários
ousa prever, mesmo que genericamente, algumas das formas de limites à
exclusão forçada do sócio minoritário, ao trazer os dispositivos legais
dos artigos 1.085 e 1.086.
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É notória a intenção do novo diploma em preservar o sócio minoritário
das investidas excessivas de poder praticadas pelos sócios majoritários
afastando, ou pelo menos pretendendo afastar, qualquer resquício de insegurança quanto à permanência do primeiro no quadro associativo.
A intenção protecionista do legislador vai além da exclusão do sócio,
atingindo, inclusive, a forma de liquidação de suas quotas, a qual se dará, com
base no artigo 1.031, na verificação da situação patrimonial da sociedade por
meio de balanço especialmente levantado, evitando a adoção de balanços
desatualizados causadores do empobrecimento indevido do sócio excluído.
Portanto, diante das várias inovações com relação ao rompimento
do vínculo societário na sociedade limitada, analisar-se-á as formas apresentadas pela nova legislação que conduzem à extinção da sociedade empresária, ou apenas de parte do vínculo de determinado(s) sócio(s), permanecendo a sociedade em pleno vigor, bem como as causas, características e conseqüências emanadas de tais atos, visando a uma melhor compreensão do instituto proposto.
2
BREVE ANÁLISE DA DISSOLUÇÃO
Ao se estudar as formas de rompimento de vínculo societário, sem
dúvida alguma a dissolução ocupa papel de relevância, seja em seu sentido
amplo, que compreende o procedimento de extinção da sociedade limitada e o término de sua personalidade jurídica, seja para individualizar o ato
específico que dá origem a esse processo quando determinado sócio de
desvincula do quadro associativo.
Primando pelo princípio da conservação da empresa, as legislações
atuais visam à continuidade das atividades empresariais em determinadas
situações que poderiam ocasionar a extinção definitiva de determinada sociedade. O melhor exemplo são os casos de conflitos entre sócios.
Da mesma forma, o novo Código Civil apresenta-se nesse cenário
objetivando a continuidade da sociedade empresária sem afetar a dissolução da personalidade jurídica, mas, sendo o caso, dissolvendo os vínculos
contratuais de determinados sócios componentes do quadro associativo,
mantendo aquela em plena vigência.
A dissolução de parte desses vínculos com a permanência da sociedade em plena atividade por força dos demais sócios não dissolvidos é
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denominada dissolução parcial (artigos 1.004, 1.028 a 1.032, 1.033, III,
1.058, 1.085, 1.086, Código Civil). Quando ocorre a dissolução de todos
os vínculos contratuais, fazendo com que a sociedade deixe de existir, seja
por causa natural, como o término do prazo de duração, seja por causa
superveniente, fala-se em dissolução total (artigos 1.033, 1.034, 1.044,
1.051, 1.087, Código Civil).
Em algumas hipóteses, a dissolução se dará por sentença, dissolvendose judicialmente, como na falência, no caso de falta grave no cumprimento das
obrigações, incapacidade superveniente, colocação das atividades da empresa
em risco, cometimento de atos de inegável gravidade, dispositivos legais dos
artigos 1.030, 1.085 e 1.086, neste último não sendo prevista a justa causa no
contrato social, sendo utilizado o procedimento da liquidação judicial dos artigos 655 a 674 do Código de Processo Civil de 1939, em vigor diante da
previsão legal do artigo 1.218, VII, do Código de Processo Civil de 1973.
Ressalta-se, ainda, a faculdade colocada à disposição do sócio de
requerer judicialmente a dissolução nos casos de anulação da constituição
da sociedade, exaurimento ou inexeqüibilidade do seu fim social, conforme
artigo 1.034, diploma civil.
Em outros casos, de acordo com o instrumento operacional utilizado, caso tenha sido operada a dissolução por deliberação dos sócios e
registrada em ata, seja pelo distrato, seja pela alteração contratual, dissolver-se-á extrajudicialmente, encontrando-se previstas as hipóteses no artigo 1.033 do diploma civil, ora denominada dissolução de pleno direito.
3
DISSOLUÇÃO TOTAL – HIPÓTESES
Vários são os fatores que podem dar origem à dissolução total da
sociedade limitada. O primeiro a ser analisado é a vontade dos sócios. O
segundo, o decurso do prazo determinado de duração. Uma outra hipótese é a declaração de falência. A inexeqüibilidade, exaurimento do objeto
social, anulação de sua constituição ou a extinção da autorização para funcionar vêm logo em seguida. A unipessoalidade por mais de 180 dias também é causa de dissolução total da sociedade. Por fim, a deliberação flagrantemente ofensiva à lei, mesmo sendo de procedimento ilícito, é mais
um exemplo.
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Além dessas, a seguir detalhadas, registra-se que o contrato também
pode prever outras causas de dissolução a serem verificadas quando contestadas judicialmente, conforme dispõe o artigo 1.035 do Código Civil,
citando-se como exemplo a não-obtenção de patamar mínimo de lucro.
3.1
Dissolução por vontade dos sócios
Denominada dissolução de pleno direito, conforme dispositivo legal
do artigo 1.087, diante do consenso unânime dos sócios ou, ainda, em
virtude da deliberação deles (por maioria absoluta na sociedade de prazo
indeterminado), prevê o Código Civil a possibilidade de dissolução da sociedade limitada, sendo desnecessário o decurso do prazo de sua duração,
podendo se dar, exclusivamente, pela antecipação do prazo.
O diploma em referência concede a possibilidade de, nas sociedades contratadas por prazo determinado, ocorrer a dissolução antes do prazo
acertado diante da concordância unânime de todos os sócios. Se sociedade por prazo indeterminado, exige-se a vontade de sócios representativos
de mais da metade do capital social, permitindo a jurisprudência o
questionamento em juízo pelo sócio que discordar.
Depois de formalizada a dissolução, seja por distrato, seja por ata
assemblear, sendo indicados os valores repartidos entre os sócios e a pessoa responsável (ou pessoas responsáveis) pelo ativo e passivo social remanescente, bem como informados os motivos que ocasionaram a dissolução, será o referido documento, representativo da maioria do capital social, registrado na Junta Comercial, nos termos do Decreto nº 1.800/96 e,
assim, declarada dissolvida a sociedade limitada.
3.2
Decurso do prazo de duração
Decorrido o prazo de duração da sociedade estabelecido no pacto
social, vencido este, a mesma será dissolvida após concordância extrajudicial
por meio de distrato.
Entretanto, discordando um dos sócios do decurso do prazo de duração, é perfeitamente cabível recorrer ao Poder Judiciário para obter a
dissolução judicial. Na hipótese de não haver oposição de sócio e, vencido
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o prazo de duração, a sociedade não entrar em liquidação, a sociedade irá
ser prorrogada indeterminadamente, aplicando-se, desse momento em diante, as regras da sociedade em comum, tendo em vista o posterior encerramento do prazo de duração de forma irregular.
Ressalta-se que o registro da sociedade após o vencimento do prazo de duração, por meio da prorrogação, não é admitido pela Lei nº 8.934/
94, Lei de Registro de Empresas.
3.3
Falência
Prevista no artigo 1.044, a falência, regida atualmente pela Lei nº
11.101, de 9 de fevereiro de 2005, é mais uma causa de dissolução total
da sociedade limitada. Evidentemente, a falência é hipótese de causa de
dissolução judicial, diante da impossibilidade de se prosseguir com a atividade empresarial, sendo realizado o ativo e pago o passivo, obedecendose a uma ordem de preferência entre os credores.
Registra-se que a falência do sócio de sociedade empresária não implica, de fato como no passado implicava, falência da sociedade, sendo o
sócio e a sociedade pessoas completamente distintas. Por isso, falida uma
das empresas de determinado sócio, as outras não serão dissolvidas, pois o
sócio se sujeita somente aos efeitos da falência, não sendo reputado falido.
3.4
Exaurimento do fim social
Alcançando a sociedade limitada o objetivo para o qual foi constituída, para um ou vários negócios, não mais se evidencia a necessidade de
sua manutenção, sendo extinta, via dissolução, pelo interesse manifesto dos
sócios destinado ao juízo que proferirá a decisão.
3.5
Inexeqüibilidade do objeto social
A inexeqüibilidade do objeto social da sociedade é outra hipótese de
dissolução total. Vários são os exemplos que tornam inexeqüíveis o objeto
social da sociedade limitada, como no caso de falta de interesse dos consumidores acerca do produto fornecido pela sociedade, insuficiência do
capital social para produzir ou circular o bem ou o serviço constante no
objeto social, e assim por diante.
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A inviabilidade poderá ser a contingência do mercado ou aspecto de
ajuste entre os sócios, decorrendo a necessidade de sentença judicial para
que o assunto possa ser abordado, conforme artigo 1.034, II.
3.6
Unipessoalidade
Também denominada dissolução de pleno direito, a dissolução da
sociedade diante da falta de pluralidade dos sócios (unipessoalidade), ocorrerá se decorrerem 180 (cento e oitenta) dias após ser detectada a presença de somente um sócio no quadro associativo.
O prazo de 180 dias objetiva assegurar ao sócio único que, por
causa específica, possa obter prazo necessário à negociação do ingresso
de mais uma pessoa na sociedade.
A título de curiosidade, registra-se que tal modalidade comporta exceções, como aquela descrita no artigo 251 da Lei nº 6.404/76, Lei das
Sociedades Anônimas, quando prevê a possibilidade da existência da subsidiária integral, cuja totalidade das ações são de propriedade de outra
pessoa jurídica nacional, sendo, então, a única sócia da sociedade.
Importante ressaltar que o prazo de 180 dias não se aplica às sociedades anônimas, diante de expressa previsão na Lei nº 6.404/76, artigo
206, I, “d”.
3.7
Anulada sua constituição ou extinção da autorização
para funcionar
Trata-se de previsão dos artigos 1.034, I e 1.033, V, do Código
Civil. Da mesma forma que as demais causas de dissolução da sociedade,
tem-se que, anulada a constituição da sociedade, seja por manifesto desrespeito aos requisitos que lhe dão validade, seja pela extinção de autorização para funcionar, a etapa em seguida será a liquidação e solução de
qualquer pendência existente.
Ressalta-se que o Ministério Público possui legitimidade subsidiária
para providenciar a liquidação judicial da sociedade, assim que comunicado pela autoridade competente, quando não realizada pelos administradores nos 30 dias seguintes à perda da autorização, ou se o sócio não a
houver requerido.
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Se o Ministério Público, por sua vez, não promover tal liquidação
nos 15 dias posteriores ao recebimento da comunicação, a autoridade competente para conceder a autorização irá nomear interventor, o qual será
dotado de poderes para requerer a medida e administrar a sociedade enquanto não nomeado o liquidante.
3.8
Por deliberação flagrantemente ofensiva à lei
Denominada dissolução de fato, ocorre quando os sócios, não observando as fases da dissolução total, vendem os bens integrantes do
patrimônio social e encerram as atividades da empresa, dividindo o acervo.
É popularmente conhecida como “golpe na praça”. Nesse caso, há
desobediência por completo às normas do processo de liquidação contidas na legislação. A conseqüência dessa modalidade de dissolução é a
responsabilidade dos sócios ilimitada, direta e pessoal.
Trata-se de procedimento lastimável, justificador da responsabilidade ilimitada do sócio fraudador.
4
DISSOLUÇÃO PARCIAL - HIPÓTESES
Denominada resolução da sociedade em relação a um sócio, a dissolução parcial é aquela em que ocorre o desvirtuamento de algum sócio
do quadro social, prosseguindo a sociedade limitada em suas atividades.
Para tanto, exige-se que, restando somente um sócio por força da dissolução, ele providencie, no prazo de 180 dias, um outro sócio para fazer parte
do quadro associativo, de fato como descrito alhures.
A retirada, exclusão ou morte dos sócios, exemplos dessa modalidade, não os exime ou a seus sucessores, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade, nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e, em igual prazo,
enquanto não se requerer a averbação, muito embora esse tipo societário
possua a peculiaridade de que sua responsabilidade seja limitada somente
à integralização do capital social.
4.1. Deliberação dos sócios
A deliberação dos sócios, desde que mantido ao menos dois no quadro associativo da sociedade, é a primeira das hipóteses de dissolução
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parcial a ser analisada. Logo, com a saída de um deles, serão apurados os
respectivos haveres com base na situação patrimonial da sociedade à data
da resolução, em balanço especialmente levantado.
4.2
Morte
Havendo morte do sócio, não liquidadas as suas cotas, poderão os
herdeiros ou legatários manifestar interesse em ingressar na sociedade,
desde que anuam os demais sócios. Ressalta-se que, caso haja cláusula
contratual dissolutória, essa não poderá prevalecer à vontade dos interessados, seja sucessores, seja sócios sobreviventes, quanto à permanência da empresa.
Tal modalidade de dissolução parcial tem como objetivo principal
compatibilizar os interesses dos sucessores do sócio morto e de sócio sobrevivente, o qual pode ser formalizado extrajudicialmente.
4.3
Retirada de sócio
Contratada com sociedade de prazo indeterminado, o sócio que se
interessar poderá se retirar de sociedade de que participa, independentemente do motivo, porém, verificando certas exigências.
A primeira delas é a obrigatoriedade de que os demais sócios sejam
notificados com antecedência mínima de 60 dias. Após, deve o interessado
aguardar a manifestação dos sócios no prazo de 30 dias seguintes à notificação, caso esses queiram se manifestar.
Em caso de sociedade de prazo determinado, a retirada do sócio se
fará somente de forma judicial, desde que comprovada justa causa.
Destaca-se que nas sociedades limitadas, o sócio que discordar da
alteração contratual proposta, ou da fusão, incorporação da sociedade,
poderá também se retirar.
4.4
Exclusão do sócio
O sócio, ao ingressar na sociedade, passa a se submeter a um regime jurídico formado por obrigações - definidas na legislação societária e/
ou no contrato social da sociedade limitada - que perduram até a liquidação dessa sociedade e a extinção das responsabilidades sociais. Desobedecendo a uma dessas obrigações, poderá ocorrer sua exclusão compul197
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sória, justificando-se em virtude do princípio da preservação da atividade
exercida pela sociedade, seja por razões de ordem econômica, seja por
quaisquer outras que visam manter a atividade produtora de riquezas. Para
tanto, a lei proporciona os meios capazes de extinguir as barreiras prejudicialmente impostas pelo sócio excluído e os elementos perturbadores da
vida da sociedade.
A exclusão “forçada” do sócio indesejado é um direito de defesa da
sociedade contra aquele que coloca em risco a sua regular atividade e, em
alguns casos, sua própria existência; subdivide-se em extrajudicial e judicial.
a) Exclusão extrajudicial
A nova legislação, ao contrário do Decreto-Lei nº 3.708/19, atendendo aos reclamos da doutrina e da jurisprudência, preencheu a lacuna da
lei ao tratar da questão relacionada à exclusão do sócio minoritário nesse
tipo societário, exatamente naqueles casos em que houver o cometimento
de ato de inegável gravidade que coloque em risco a continuidade da empresa, o que os dispositivos dos artigos 1.085 e 1.086 regulamentam.
Nos referidos dispositivos legais, pode-se constatar que, quando a
maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social,
entender que um ou mais sócios estão colocando em risco a continuidade
da empresa, por força de ato de inegável gravidade e, ressalvados os
casos do artigo 1.030, bem como a hipótese do artigo 1.004 e, ainda,
prevista a justa causa, poderá excluir o sócio que incorrer em uma dessas
condutas por meio de simples alteração contratual, após realização de
assembléia para esse fim, conferindo ao sócio a ser excluído o direito de
defesa.
Não prevista a justa causa, a exclusão se dará somente por decisão
judicial.
O novo Código Civil acrescenta requisitos à exclusão do sócio remisso, seja ele majoritário, seja minoritário, ao mencionar no artigo 1.004,
aplicado subsidiariamente à sociedade limitada, a permissão da retirada
forçada do sócio que não se obrigue, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, porém, desde que devidamente
notificado para que venha a fazê-lo.
As hipóteses citadas permitem que a exclusão se faça sem a necessidade da instauração de procedimento judicial, mas por mera deliberação
dos demais sócios, seguindo ao arquivamento da alteração contratual no
registro público competente, respeitados os requisitos legais exigidos.
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A lei prevê, ainda, uma outra forma de exclusão, a denominada “exclusão de pleno direito”, que se operará naqueles casos em que o sócio for
declarado falido, conforme artigo 1.030 e seu parágrafo único, ou tiver sua
quota liquidada nos termos do parágrafo único do artigo 1.026.
b) Exclusão judicial
Sob a hipótese de não ser possível a exclusão do sócio faltoso por
mera deliberação dos demais, sendo diverso o fundamento, não sendo o
caso as hipóteses de sócio remisso ou exclusão de sócio minoritário com
previsão de justa causa no contrato social, obrigatoriamente recorrer-se-á
ao poder judiciário para que o conflito seja dirimido.
Nesse ponto, o novo Código Civil mencionou as possibilidades de
exclusão judicial nas hipóteses de ocorrência de falta grave no cumprimento das obrigações do sócio e incapacidade superveniente (artigo 1.030)
ou, ainda, à omissão contratual da justa causa (artigo 1.085), sendo essa
caracterizada pela violação ou falta de cumprimento das obrigações sociais.
Novamente, assevera-se que o contrato também pode prever outras
causas de dissolução, as quais poderão ser reanalisadas quando contestadas judicialmente.
5
DISSOLUÇÃO POR PREVISÃO CONTRATUAL
EXPRESSA – ABUSO, VIOLAÇÃO DO CONTRATO
SOCIAL, DA LEI – DESCUMPRIMENTO DAS
OBRIGAÇÕES
O contrato da sociedade empresária poderá dispor de outras hipóteses de dissolução, entretanto, levadas a juízo para análise do contexto
fático quando contestadas, não sendo casos de dissolução extrajudicial.
Várias são tais hipóteses, como aquelas em que ocorre o conflito de interesses de determinados sócios, ou qualquer outra prevista no contrato social como causa de análise judicial.
Por sua vez, o abuso, a violação do contrato, da lei ou até mesmo do
cumprimento de suas obrigações podem ocasionar a quebra da affectio
societatis, ou seja, do convívio harmônico dos sócios, o que levará o magistrado a analisar o exame do caso concreto para concluir pela ocorrência
ou não de condições para que a sociedade prossiga.
Assim, cabe ao juiz analisar as causas apresentadas para dissolução,
sempre dando máxima relevância aos interesses da sociedade, a qual representa papel de fundamental importância no conjunto da coletividade.
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LIQUIDAÇÃO – HIPÓTESES
Pode se dar de forma extrajudicial ou judicial. Se feita amigavelmente quanto a determinado sócio, seguirá as normas do contrato social e,
nada prevendo, seguirá as normas dos artigos 1.102 a 1.112 do Código
Civil, ressalvado o disposto no ato constitutivo ou no instrumento da dissolução, sendo denominada de apuração de haveres. É feita extrajudicialmente.
Se o objeto for a dissolução da sociedade, a liquidação será feita
judicialmente.
Em se cuidando de dissolução consensual, o ato arquivado será um
novo contrato, denominado distrato. Se judicial, a sentença será objeto de
arquivamento.
6.1
Liquidação judicial
Diante do dispositivo do artigo 1.111 do Código Civil, o qual manteve em vigor os artigos 655 a 674 do Código de Processo Civil de 1939,
apresenta a legislação a liquidação judicial a qual visa à realização do ativo
e o pagamento do passivo, quando da ocorrência da dissolução total da
sociedade limitada.
Durante a liquidação, a sociedade empresária não sofre restrição
alguma à sua personalidade, podendo praticar os atos relativos às suas
pendências obrigacionais.
Em se cuidando de liquidação judicial, será nomeado um liquidante,
que irá manifestar a vontade da sociedade e conduzir o processo de liquidação, devendo a sociedade acrescentar ao seu nome a expressão “em
liquidação”, conforme expressa determinação legal.
Cabe ao liquidante praticar todos os atos representativos da sociedade considerados indispensáveis à sua liquidação, inclusive alienar imóveis, móveis, transigir, dar e receber quitação e outros, respondendo pelos
atos praticados por dolo ou má-fé.
Assim, realizado o ativo e pago o passivo, terminando a liquidação
do patrimônio social, apresentará o liquidante o relatório da liquidação e as
contas finais.
Segue-se a fase da partilha, convocando o liquidante assembléia dos
sócios para prestação de contas. O patrimônio que restar será dividido
entre os sócios, de forma proporcional à participação de cada um no capital social, se não acordado de outra forma.
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Existindo no acervo da sociedade bens que não foram vendidos,
poderão os sócios tomá-los para si, a aprazimento dos outros, mediante
avaliação, que poderá ser feita amigável ou judicialmente.
Após a partilha e aprovadas as contas, estará encerrado o processo
de extinção da sociedade limitada com a perda de sua personalidade jurídica mediante averbação da ata da assembléia na Junta Comercial, sendo
efetuada a publicação.
6.2
Liquidação extrajudicial - apuração de haveres
Após resolvida a sociedade com relação a determinado sócio, será
efetuada a apuração de haveres e o reembolso por liquidação, porém, nesse caso, apenas das cotas do sócio desvinculado, por meio de balanço
levantado especialmente para a hipótese e de acordo com o patrimônio
atual da sociedade, sendo a quota liquidada paga em dinheiro no prazo de
90 dias, salvo acordo ou disposição em contrário.
Em havendo desvinculação do sócio, haverá a redução do capital
social, salvo se os demais sócios suprirem o valor da cota.
Os objetivos da apuração de haveres se restringem à definição do
quantum devido ao sócio desvinculado pela sociedade. Assim, esse sócio
tem direito de crédito contra a pessoa jurídica no mesmo valor que teria
caso a hipótese fosse de dissolução da sociedade empresária.
Tem, portanto, direito ao valor patrimonial de sua quota, não ao valor nominal ou qualquer outro. Os valores relacionados à parte do patrimônio
líquido que corresponde à proporção da quota liberada em relação ao
capital social serão apurados pela sociedade e pagos ao sócio ou aos sucessores no valor mencionado no contrato ou, omisso, à vista.
7
CONCLUSÃO
As mudanças ocorridas na sociedade limitada, aliadas à recente entrada em vigor da Lei nº 10.406/02 e à revogação da primeira parte do
Código Comercial, influenciaram diretamente no rompimento do vínculo
societário na sociedade limitada, enriquecendo-o de dispositivos legais
regulamentadores, conferindo amplitude ao tema analisado em comparação à
legislação anterior, qual seja, o Decreto-Lei nº 3.708/19.
Os denominados sócios minoritários se encontram atualmente em posição
privilegiada, posto que foram corrigidas, como descrito, as absurdas dissoluções
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societárias que lhes eram prejudiciais.As modificações quanto à forma de liquidação de quotas do sócio retirado ou excluído vieram em um bom momento, exigindo balanço especialmente levantado para a ocasião do pagamento do crédito
daquele.
Dessa forma, pretendendo-se demonstrar objetivamente as formas de dissolução da sociedade limitada, seja total, seja parcial, bem como suas conseqüências jurídicas, foram apresentados, longe de pretender esgotar o tema, os tópicos alhures como forma de melhor visualizar, sistematicamente, o instituto da
ruptura do vínculo societário na sociedade limitada e, ainda, elogiar as mudanças
efetuadas, posto que se apresentam, no cenário societário, condizentes com os
princípios constitucionais aplicáveis a todo o ordenamento jurídico.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva,
2000, vols. 1, 2, 3.
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unificação no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
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2005.
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Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1.
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REALE, Miguel. Visão geral do Novo Código Civil. 26-05-2002. Disponível em: <http://miguelreale.com.br>.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: ed. Saraiva,
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ROCHA FILHO, José Maria. Curso de direito comercial. Belo Horizonte: Del Rey, 2004 .
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil.
Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. 1.
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ROMPIMENTO DO VÍNCULO SOCIETÁRIO NA SOCIEDADE LIMITADA
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CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A
COISA JULGADA MATERIAL
JÚLIO DE CARVALHO PAULA LIMA
Sumário
1. Introdução. 2. Coisa julgada. 3. Referências bibliográficas.
Resumo
A imutabilidade das decisões judiciais finais é alvo de acirradas discussões, devendo, por isso, ser analisada e revista, com escopo de respeitar a
segurança jurídica, as normas constitucionais e manter a ordem política e social.
Abstract
The immutability of the final sentences is the target of tough quarrels,
having therefore to be analyzed and reviewed, with a purpose to respect
the legal security, the constitutional rules and to keep the social politics order.
1
INTRODUÇÃO
Como efeito da sentença transitada em julgado tem-se a imutabilidade
dela, denominada coisa julgada. Tal efeito se subdivide em res iudicata
material e formal.
A coisa julgada material está prevista, em nosso ordenamento jurídico, no art. 467 do Código de Processo Civil, sendo “a eficácia, que torna
imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou
extraordinário”. Portanto, de acordo com esse dispositivo legal, encontrase vedada a discussão do litígio em qualquer outro processo judicial.
Por outro lado, a coisa julgada formal impede que a sentença ou
acórdão possa ser revisto pelo juiz ou tribunal que o prolatou, ocorrendo,
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JÚLIO DE CARVALHO PAULA LIMA
assim, o término da prestação jurisdicional, conforme se infere do art. 463
do Código de Processo Civil.
2
COISA JULGADA
Tem-se discutido, segundo a doutrina, a eficácia da coisa julgada
material frente às normas constitucionais, à instrumentalidade do processo
civil e à legalidade das decisões judiciais. Em outra senda, a imutabilidade
das decisões judiciais finais encontra forte sustentáculo na ordem pública e
na segurança jurídica, princípios basilares do estado democrático de direito.
Esse conflito de posicionamento está longe da solução, mas, em virtude de sua importância para evolução do direito processual brasileiro é
preciso revolver e aprofundar os argumentos sustentados pelos operadores do direito, com intuito de contribuir para o alcance de um resultado
objetivo.
Ressalta-se que a revisão da coisa julgada material, via decisão judicial, não é protegida expressamente pela Constituição da República, sendo
vedada textualmente apenas a retroatividade da norma para violar a coisa
julgada, nos exatos termos do inciso XXXVI, do art. 5º, da Lei Maior, que
assim prevê: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
No mesmo sentido é a norma do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de
setembro de 1942, (Lei de Introdução ao Código Civil) ao dispor no seu
art. 6º que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
Nota-se, portanto, que ambas as normas transcritas não vedam a
revisão de uma sentença transitada em julgado por via judicial. Conforme
mencionado alhures, o codex processual brasileiro, por meio dos arts. 463
e 467, afasta a possibilidade de alteração do julgado pelo seu prolator,
bem como a revisão pelo Judiciário de sentença transitada em julgado.
Dessa forma, tem-se que a lei ordinária processual é que estabelece,
no direito pátrio, parte dos limites da coisa julgada, especialmente no que
concerne à revisão judicial de sentença da qual não caiba mais recurso.
Assim, como ficaria a imutabilidade das sentenças finais quando essas violam diametralmente dispositivo de lei ordinária ou, pior, contrariam
texto constitucional? Nesse caso, haveria um conflito entre a norma de
direito material, a ser observada no estado democrático de direito, e a
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CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A COISA JULGADA MATERIAL
norma processual, que garante a imutabilidade do julgado, com evidente
base no princípio da segurança jurídica.
Em razão disso, pode ser argüida a revisão judicial, por meio de
ação declaratória, de sentenças transitadas em julgado, baseadas em lei
declarada, posteriormente, inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, uma vez que a
coisa julgada material não é protegida constitucionalmente em relação à
revisão judicial e uma vez que o feito da decisão do Supremo Tribunal
Federal, proferida em ação direta de inconstitucionalidade, é ex tunc, tal
decisão retroage e, dessa forma, poderia ser aplicada na revisão da coisa
julgada material em determinado processo.
A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, dispõe que o Supremo
Tribunal Federal pode, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da decisão que declarar inconstitucional determinada lei ou
ato normativo, ou que a sua eficácia será a partir de determinado momento,
sempre em razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Nota-se, portanto, que, como regra geral, a decisão do Supremo, em ação
direta de inconstitucionalidade, retroage ao tempo do nascimento da norma, retirando-a do ordenamento jurídico nacional, como se nunca houvesse existido. Nesses termos, urge indagar como ficariam as lides julgadas
com base em leis que nunca poderiam ter produzido qualquer efeito? Isso
porque o guardião da Constituição declarou que a citada norma encontrava-se em desacordo com a Norma Maior desde o início de sua vigência.
Destarte, é ínsito questionar como manter uma decisão baseada em norma
declarada inconstitucional nos termos expostos.
Deve-se citar também, como caso concreto que coloca em dúvida a
coisa julgada material, a hipótese de revisão de sentença transitada em
julgado que, por exemplo, não teria reconhecido a paternidade do réu em
face do autor, mas que com o advento do exame de DNA, anos depois,
restou comprovada a paternidade daquele. Poderia, nesse caso, ser revista
a decisão?
As respostas para as questões dos parágrafos precedentes não são
simples, pois, de outro lado, encontram-se as razões que conferem a qualidade de coisa julgada aos julgamentos finais das lides, das quais se destacam a exigência da ordem pública e a segurança jurídica. Assim, mesmo
que as sentenças definitivas sejam consideradas injustas, essas seriam válidas e imutáveis para se garantir a ordem política e jurídica.
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Moacyr Amaral Santos1 descreve as teorias que sustentam a coisa
julgada material; merecem destaque as seguintes:
a) Teoria da força legal. De autoria de Pagenstecher. Afirma que
proferida a sentença, não existe mais o direito anterior, mas sim um direito
novo declarado pela decisão judicial, o qual possui força de lei entre as
partes.
b) Teoria da vontade do Estado. Seu autor é o renomado
Chiovenda, para quem a imutabilidade da sentença proviria da vontade do
Estado, sendo considerada ato seu e, portanto, irrevogável e de força obrigatória.
c) Teoria de Carnelutti. Para o autor, a coisa julgada é um ato
estatal, que pressupõe o comando existente na lei.
d) Teoria de Liebman. Afirma que a existência da coisa julgada
material e sua observância fundam-se na necessidade que o Estado tem de
coibir a perduração das lides.
Verifica-se que o fundamento da coisa julgada material pode ser resumido na autoridade do Estado, que, com a aplicação da norma ao caso
concreto, encerra a sua prestação jurisdicional, trazendo a paz social e a
segurança jurídica, o que reflete na manutenção da ordem pública.
Conforme ensina o professor Marinoni, esse também é o entendimento de Thomas Hobbes e Hans Kelsen ao concluírem que a norma do caso
concreto produzida pelo Judiciário é válida porque o “Soberano” assim quis2.
José Frederico Marques assim preleciona: “Trata-se de exigência da
ordem pública e do bem comum, a fim de que a tutela jurisdicional entregue
se torne estável, segura e de absoluta indeclinabilidade”3. Dessa forma, o
renomado autor conclui que a res iudicata possui fundamento eminentemente político.
Nota-se que a relativização da coisa julgada material, como hipóteses
de revisão abrangente, bem como o absolutismo da res iudicata, pode configurar ilegalidade, inconstitucionalidade e, de forma mais abstrata, injustiça.
1
2
3
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil: adaptadas ao novo
Código de Processo Civil. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1979, vol III, p. 42-45.
MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716>.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
1976, vol. III, 2ª parte, p. 234.
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Nesse ponto, vale destacar a lição de Ihering:
Violando um direito, o titular defronta-se com uma indagação:
deve defender seu direito, resistir ao agressor, em outras palavras, deve lutar, ou deve abandonar o direito para escapar à luta?
A decisão a este respeito só a ele pertence. Seja qual for essa
decisão, a mesma sempre envolve um sacrifício: num caso o direito é sacrificado a favor da paz, noutro a paz a favor do direito.
Dessa forma a indagação adquire novos contornos: qual é o sacrifício mais suportável, face às características do caso concreto
e da pessoa nele envolvida?4
Como exceção à regra geral da imutabilidade das sentenças transitadas em julgado, o ordenamento jurídico brasileiro possui a ação rescisória,
prevista no art. 485 do Código de Processo Civil, o qual determina as
hipóteses taxativas para revisão de sentença final, bem como o prazo legal
para sua propositura. Assim, o Estado tenta balancear o cumprimento do
direito material e o princípio da segurança jurídica.
Todavia, para se alcançar um menor “sacrifício” do direito pessoal
ou social, o Estado deve promover a revisão das hipóteses legais para
propositura da ação rescisória assim como o prazo para sua utilização, no
intuito de acompanhar a evolução da sociedade, adequando-a aos seus
atuais anseios.
Não é prudente aceitar a revisão de julgados sem embasamento em
norma processual cogente, sob pena de ferir o princípio da segurança jurídica, sustentáculo indiscutível do estado democrático de direito.
Conclui-se que a revisão da coisa julgada material deve ser realizada
de acordo com a lei procedimental, sendo necessária para sua evolução
uma reforma legislativa, baseada no interesse político e social.
4
IHERING. Rudolf von. A luta pelo direito. Tradução de Richard Paul Neto. Rio de Janeiro:
Rio, 1975, p. 31-32.
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JÚLIO DE CARVALHO PAULA LIMA
3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
IHERING. Rudolf von. A luta pelo direito. Tradução de Richard Paul
Neto. Rio de Janeiro: Rio, 1975.
MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=5716>.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2.ed.
São Paulo: Saraiva, 1976, vol. III, 2ª parte.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil:
adaptadas ao novo Código de Processo Civil. 3.ed. São Paulo: Saraiva,
1979, vol III.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil.
Rio de Janeiro: Forense, 2000, vol. 1.
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CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A COISA JULGADA MATERIAL
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ACORDO DE COTISTAS EM SOCIEDADE LIMITADA
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Sumário
1. Introdução. 2. Acordo de Cotistas. 3. Conclusão
Resumo
Possibilidade de adoção do acordo de cotistas em sociedades limitadas tendente a criar normas de co-gestão societária entre os cotistas.
Deverá guardar consonância com o contrato social e ser levado à averbação
no registro competente. Uma cópia do acordo deverá estar arquivada na
sociedade.
Abstract
It is possible to adopt an Agreement of Quotaholders in a Private
Limited Company in order to set up rules to govern the relationship between
it’s quotaholders. The Agreement of Quotaholders must keep consonance
with the Articles of Incorporation and must be taken to a Public Register. A
copy of the agreement must be filed in the private limited company.
1
INTRODUÇÃO
Pretende-se discutir neste artigo a possibilidade legal e a utilidade de
aplicação, com as devidas adaptações, do acordo de acionistas previsto
na Lei nº 6.404/76, com alterações trazidas pela Lei nº 10.303/01, na sociedade limitada, que no caso passaria a ser um acordo de cotistas, por
meio do qual os cotistas de uma sociedade limitada poderiam pactuar regras de compra e venda de suas cotas, teriam preferência para adquiri-las,
exercício do direito de voto ou do poder de controle, entre outros aspectos.
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O art. 1.053 do Código Civil Brasileiro (CCB) estabelece que as omissões do capítulo que trata das sociedades limitadas serão supridas pelas normas da sociedade simples, mas permite, no seu parágrafo único, que os cotistas
de uma sociedade limitada possam optar pela regência supletiva das normas da
sociedade anônima, Lei nº 6.404/76, com as alterações posteriores.
Infere-se que a lei criou uma regra no art. 1.053 e uma exceção em
seu parágrafo único. A regra é que, não havendo previsão expressa em
contrário no contrato social de constituição de uma sociedade limitada ou
em qualquer alteração contratual posterior, ela será regida, nas omissões
do Capítulo IV do Livro II, que trata do direito de empresa no CCB, pelo
Capítulo I do mesmo livro, que disciplina as sociedades simples. A exceção
será justamente a previsão contratual em contrário, por meio da qual os
cotistas da sociedade limitada irão preferir a suplência da Lei das Sociedades Anônimas à regência das sociedades simples.
Entende-se, dessa forma, que os cotistas de uma sociedade limitada,
preferindo que as omissões de regência desse tipo de sociedade sejam
supridas pela Lei nº 6.404/76 e suas alterações, poderiam optar por incluir
no contrato social a previsão de um “acordo de cotistas”, à semelhança do
acordo de acionistas, previsto no art. 118 da citada lei, mas com algumas
adaptações necessárias, as quais se pretende aqui comentar.
Ainda que não esteja previsto no contrato social de uma sociedade limitada que as omissões devam ser supridas pela Lei nº 6.404/76, entende-se como
possível a adoção do acordo de cotistas nesse tipo societário, pois a liberdade de
contratar, quando presentes os requisitos legais, é assegurada no direito brasileiro
na medida em que qualquer negócio jurídico requer basicamente três condições
essenciais a emprestar-lhe validade, conforme o CCB. Anota-se:
2
ACORDO DE COTISTAS
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.
Não se deve, assim, entender como requisito essencial à adoção do
acordo de cotistas na sociedade limitada sua prévia previsibilidade, com
base na exceção contida no parágrafo único do art. 1.053 do CCB, pois,
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ACORDO DE COTISTAS EM SOCIEDADE LIMITADA
por se tratar de acordo entre as pessoas cotistas da sociedade limitada,
que em princípio em nada afeta os negócios da sociedade em relação a
terceiros, esse acordo estaria permitido dentro da regra geral do citado art.
104 do mesmo CCB.
Waldirio Bulgarelli entende que
o acordo de cotistas não altera o contrato social – ao menos nas
disposições essenciais – nem ofende em princípio o direito de terceiros, sendo destarte válido, vigente e eficaz; também não se trata de
um contrato oculto entre todos os sócios infletindo sobre o contrato
ostensivo, e sim, um ajuste entre sócios a respeito do exercício do
direito de voto e outras avenças complementares.1
Quanto à forma necessária a revestir o acordo de cotistas, pode-se
afirmar, recorrendo novamente ao CCB, que poderá ser particular, não
necessariamente pública, haja vista que não há previsão legal de exigência
de instrumento público para esse negócio jurídico no art. 118 da Lei nº
6.404/76, tampouco em qualquer outro dispositivo do CCB atinente às
sociedades empresárias . Relembra-se:
Art. 109. No negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer
sem instrumento público, este é da substância do ato.
Contrário ao que está no art. 109 citado, não havendo previsão legal
de formalizar por instrumento público o acordo de acionista previsto no art.
118 da Lei nº 6.404/76, nem qualquer menção no atual CCB, a formalização
pode ser por instrumento particular.
Há que se ter presente, todavia, que, tanto no direito empresarial
como nos negócios jurídicos em geral, não se justificam atos desnecessários. A adoção de um acordo de cotistas em sociedade limitada deve ser
precedida de uma análise objetiva de sua real utilidade, com a identificação
do proveito que o acordo poderia trazer aos acionistas e, por extensão, ao
bom convívio desses na co-gestão da sociedade.
1
BULGARELLI, W. Tratado de direito empresarial. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 49.
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Depois que os cotistas, com ajuda de seus assessores, tenham decidido pela necessidade e conveniência do acordo, o profissional encarregado de fazê-lo deve preocupar-se em construí-lo com regras claras e objetivas, de modo a evitar que eventuais discussões suscitadas em seus termos
possam gerar mais dúvidas do que esclarecimentos. Clareza e objetividade, porém, não devem ser requisitos exclusivos de um acordo de cotista,
mas do propósito de forma de qualquer negócio jurídico.
Feita essa sucinta introdução, tenta adaptar-se, a seguir, para uma
sociedade limitada, as regras do acordo de acionistas, à luz daquele previsto na Lei das Sociedades Anônimas, para disciplinar, por exemplo, uma
sociedade limitada de quatro cotistas, cada qual com 25% de cotas.
Em uma configuração societária em que cada cotista possua 25%
das cotas, o que não é raro, tem-se que todos são minoritários e nenhum
deles tem poder para tomar decisão isoladamente. Digamos que todas as
decisões contratuais, além daquelas previstas na forma legal e que já definam o quórum de decisão, se façam com o quórum de 75%, no caso três
dos quatro acionistas. Não havendo esse quórum, a sociedade estaria diante de um impasse, fato que poderia prejudicar a consecução de seus
objetivos.
Nenhum dos cotistas em particular quer ceder participação ou abrir
mão desse quórum de decisão; por outro lado, todos entendem que para o
bem social algumas regras de convivência poderiam nortear as tomadas de
decisão, preservar o futuro da sociedade que, por princípio, deve sobreviver aos sócios fundadores e, se possível, ser perenizada para continuar
cumprindo suas funções e objetivos. Se assim for, o acordo de cotistas
poderá ser um instrumento útil, senão essencial.
É possível, já neste passo, que o leitor esteja se questionando sobre
a real necessidade do acordo de cotistas, segundo o argumento de que
tudo que em tese pode ser disciplinável nele pode, com economia de forma, ser pactuado no próprio contrato social.
Aqueles que defendem essa tese podem acrescentar, com certa lógica, tomando por base o mesmo CCB, que o acordo seria ineficaz perante
terceiros, a teor do art. 997 e seu parágrafo único e, portanto, não teria
utilidade ou necessidade:
Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes,
mencionará:
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Incisos I a VIII omitidos.
Parágrafo único. É ineficaz em relação a terceiros qualquer pacto
separado, contrário ao disposto no instrumento do contrato.
Outra linha de raciocínio, a que se defende neste artigo, pode conduzir a entendimento diferente, primeiro na defesa do acordo apartado do
contrato social; segundo, para circunscrevê-lo a um negócio entre partes
(cotistas da sociedade limitada), tendente a criar normas para e entre as
partes que o subscrevem.
Em reforço desse entendimento,
conclui-se que este dispositivo nega eficácia às cláusulas contratuais
ocultas e às contrárias ao estabelecido no contrato social. Conforme
interpretação da doutrina majoritária, ainda sob a égide do disposto
no artigo 302 do Código Comercial, não é vedada a possibilidade
de serem realizados acordos entre sócios, mas as cláusulas lesivas a
direitos de terceiros e contrárias ao contrato não são oponíveis a
quem dele não é parte.2
Com ressalva à parte da doutrina de Carvalhosa, que menciona o
artigo do Código Comercial que hoje está revogado, e voltando ao contrato social, sabe-se que suas cláusulas e condições devem - essencialmente constituir-se de regulamento da sociedade empresária, documento que,
depois de registrado no órgão competente, torna-se público e confere existência legal à pessoa jurídica, estabelecendo regras e limites que visam dar
segurança a todos aqueles que com ela venham a se relacionar, atribuindo
àquela pessoa (jurídica), por ficção legal, capacidade de contrair direitos e
obrigações independentes dos de seus cotistas, pessoas naturais. Anota-se
o art. 45 do CCB:
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito
privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro,
precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que
passar o ato constitutivo.
2
WALD, Arnoldo: Comentários ao novo código cívil. 1o ed. Rio de Janeiro, 2005. livro 2, p.
131.
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Já o acordo de cotistas, em essência e como o próprio nome sugere,
estaria apto a regular o relacionamento dos cotistas da sociedade, na qualidade de pessoas naturais, ou jurídicas, independentes da sociedade.
Assim, tendo em vista que o contrato social rege a vida da sociedade, estabelecendo e delimitando direitos e obrigações dela para com terceiros, e que o acordo de cotistas serve para regular a forma e as regras
com as quais esses cotistas pretendem administrar a co-participação
societária naquela entidade, deduz-se que pessoas e objetivos diversos
devem demandar regras e instrumentos de formas diferentes.
A seguir uma tentativa, perfunctória, de aproveitar na sociedade limitada, com algumas adaptações, as regras do acordo de acionistas da Lei
das Sociedades Anônimas.
Diz o art. 118 da Lei nº 6.404/76:
Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações,
preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder
de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede.
O caput do artigo citado não se aplica a um acordo de cotistas de
uma sociedade limitada porque algumas características peculiares à sociedade anônima ou companhia inexistem na sociedade limitada.
A sociedade anônima ou companhia é regida por um estatuto
institucional que, quando regula uma sociedade anônima aberta, com ações
em circulação pública nas bolsas de valores ou no mercado de balcão, é
um típico contrato de adesão ao qual aderem os acionistas que compram
ações daquela companhia no mercado.
Não é dado ao acionista o direito de discutir, pelo menos no momento da aquisição das ações no mercado, o estatuto social, suas regras e
condições. Presume-se que ao se decidir por comprar ações em bolsa de
valores da companhia A, B ou C o pretendente tenha se informado previamente sobre o estatuto da sociedade e, ao exercer o seu direito de compra,
está a ele aderindo, sem direito de discutir suas cláusulas e condições.
Obviamente que ao passar à condição de acionista, o comprador de
ações com direito de voto, por exemplo, poderá participar das assembléias gerais e votar os assuntos ali tratados, inclusive quanto à alteração do
estatuto, se for o caso. Mas esse direito, também conhecido como poder
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político, o acionista só adquire após ter aderido às regras vigentes à época
de sua entrada como acionista. Nenhuma dúvida, portanto, tratar-se de
contrato de adesão o estatuto social de uma companhia aberta, no momento em que o investidor faz aquisição de ações daquela companhia no mercado de valores mobiliários.
Ora, se as pessoas podem se tornar acionistas de uma companhia aberta mediante uma operação de compra de ações em bolsa de valores,
intermediada por uma sociedade corretora de valores, sem que a própria companhia aberta fique sabendo daquela operação, ela, a companhia, por mais
razão, não ficará sabendo se seus acionistas realizaram um acordo entre eles acordo de acionistas - se a ela não for dado conhecer o conteúdo desse acordo, razão da regra contida no caput do art. 118 da Lei nº 6.404/76.
A compra de ações, ainda que feita em bolsa de valores, deverá ser
formalmente registrada no livro de transferência de ações existente na companhia para que haja a correspondente troca da propriedade dos referidos
valores mobiliários. Em uma abordagem moderna, porém, a grande maioria das companhias já opera com ações escriturais, registradas e transferíveis via programa eletrônico de dados, registros geralmente terceirizados a
uma instituição financeira contratada para esse fim.
O acordo de acionista precisa ser formalmente comunicado à companhia para que tome conhecimento de seus termos e possa recepcionar suas
regras, entre outras, a de registrar, ou autorizar que registrem, as transferências
de ações, após verificar se está conforme as regras do acordo de acionistas ou,
ao contrário, vetá-la, segundo argumento de que infringe as regras do acordo
que lhe fora previamente averbado, conforme exigência do art. 118.
E qual seria a adaptação necessária da regra do caput do art. 118
citado em uma sociedade limitada, sabendo-se que nesse tipo de sociedade não existe livro de transferência de cotas? A transferência de propriedade de cotas opera-se por meio de uma alteração contratual necessariamente levada a averbação nos cartórios das pessoas jurídicas ou nas juntas
comerciais, dependendo tratar-se ou não de sociedade empresária. É uma
das características inerentes à sociedade contratual.
De plano percebe-se não fazer sentido a regra do caput do art. 118
na sociedade limitada. Ao não aplicar a regra do caput, faz sentido aplicar
os seus parágrafos? Necessária a análise de cada um deles.
§ 1º As obrigações ou ônus decorrentes desses acordos somente
serão oponíveis a terceiros, depois de averbados nos livros de registro e nos certificados das ações, se emitidos.
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De forma precipitada pode afirmar-se que tudo que foi dito em relação ao caput do artigo valeria também para o parágrafo primeiro, pela
inexistência, na sociedade limitada, de livros de registro e certificados de
ações. Contudo, pode-se perfeitamente aproveitar a primeira parte do parágrafo, levando-se o acordo de cotistas ao registro de comércio, o que o
tornaria público.
Nasce daí uma primeira regra do acordo de cotistas na sociedade
limitada, a fim de compatibilizá-lo tanto com a parte primeira do parágrafo
1º do art. 118 da Lei nº 6.404/76 quanto com o parágrafo único do art.
997 do CCB, que, a título de sugestão, seria a inclusão da seguinte cláusula:
As obrigações ou ônus decorrentes desse acordo de cotistas somente serão oponíveis a terceiros se houver previsão de sua existência no
contrato social e depois de levado ao registro de comércio competente,
cuja cópia ficará arquivada na sociedade.
No mesmo diapasão,
Ao contrário, invocando-se a disciplina jurídica do artigo 118, da
Lei das Companhias, também não produz efeitos perante a companhia, quando não há o arquivamento na sua sede: também não produz efeito perante terceiros, se não tiver averbado nos livros de registro da sociedade.3
Nota-se que qualquer pretendente a adquirir determinada quantidade de cotas de uma sociedade limitada examinaria, no mínimo, o seu contrato social consolidado ou, se não houvesse, analisaria o original e todas
as alterações contratuais posteriores, bem como quaisquer outros registros
e averbações feitos no competente registro de comércio. Nessa primeira
investigação já perceberia a existência de cláusula relativa ao acordo de
cotistas, o que lhe permitiria não só solicitar diretamente a cópia como
buscá-la por meio de pedido no próprio registro de comércio que o houvesse registrado. Não poderia alegar, portanto, que comprara a participação sem ter conhecimento da existência do acordo de cotistas.
3
BULGARELLI, W. Op. cit., p. 49.
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ACORDO DE COTISTAS EM SOCIEDADE LIMITADA
Arnoldo Wald esclarece que
desta forma, em decorrência da aplicação subsidiária da Lei 6.404/
76, quando for o caso, certas formalidades devem ser seguidas com
o fim de fazer com que o acordo entre sócios vincule a sociedade e
seja oponível a terceiros. Por outro lado, a publicidade conforme a
lei societária também é relevante para demonstrar a boa-fé das partes e não configurar a hipótese de cláusulas ocultas, aposta no parágrafo único do artigo 997 do novo Código Civil.
Acredita-se que, com as devidas adaptações, dar-se-ia a publicidade necessária a evitar que terceiros de boa-fé comprem, por meio de um
contrato particular, cotas de uma sociedade limitada para, posteriormente,
ser surpreendido com a negativa dos demais sócios em firmar a alteração
contratual, com o argumento de que aquela transferência infringe regra contida no acordo de cotistas.
Diz o parágrafo seguinte:
§ 2° Esses acordos não poderão ser invocados para eximir o acionista de responsabilidade no exercício do direito de voto (artigo 115)
ou do poder de controle (artigos 116 e 117).
Com a troca da palavra acionista para cotista pode aproveitar-se
completamente esse parágrafo, na medida em que também na sociedade
limitada seria defeso aos cotistas pactuar sobre a responsabilidade no exercício do direito de voto ou do poder de controle.
§ 3º Nas condições previstas no acordo, os acionistas podem promover a execução específica das obrigações assumidas.
Esse parágrafo também é aplicável ao acordo de cotistas. Por se
tratar de acordo entre as partes, uma cláusula nesse sentido seria legal,
permitindo-se discutir determinada condição, não necessariamente o todo.
§ 4º As ações averbadas nos termos deste artigo não poderão ser
negociadas em bolsa ou no mercado de balcão.
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Esse parágrafo seria inaplicável, pois não há previsão legal de negociação de cotas no mercado de capitais, exatamente pela característica
contratual da sociedade limitada, já enfocada antes.
§ 5º No relatório anual, os órgãos da administração da companhia
aberta informarão à assembléia-geral as disposições sobre política
de reinvestimento de lucros e distribuição de dividendos, constantes
de acordos de acionistas arquivados na companhia.
Veja-se que o parágrafo quinto se refere à política de distribuição
de resultados e de retenção de lucros, que deve estar clara no relatório
anual da companhia aberta, uma exigência de boa governança corporativa
e de transparência, visando à defesa dos interesses de acionistas
minoritários. Não há dúvidas de que os lucros, após todas as retenções
e provisões legais, devem ser distribuídos aos sócios, a quem de fato
pertencem. A lei, ao estabelecer os chamados dividendos mínimos, visou, como o próprio nome diz, criar uma regra mínima de proteção aos
acionistas não controladores, mas espera e exige, como a CVM reiteradas vezes informa em suas normas, que a distribuição seja maior do
que a mínima legal, senão da totalidade, do remanescente do lucro.
Percebe-se que a exigência do citado parágrafo é que a nãodistribuição motivada por reinvestimento seja clara e transparente.
Destarte, se o acordo de acionistas estipular regras de política de retenção de lucros para reinvestimento, que elas sejam informadas no
relatório da administração para que todos os acionistas dela tomem
conhecimento.
Embora os direitos de cotistas minoritários em uma sociedade
limitada estejam mais bem preservados, pois as regras de distribuição
de resultados estão previstas no contrato social, é possível que em um
acordo de cotistas a maioria dos sócios, com digamos 75% dos votos,
possam pactuar, no acordo de cotistas, que votarão no sentido de a
sociedade reter os lucros para reinvestimento, se e quando necessário,
o que torna o parágrafo quinto aplicável ao acordo em comento.
Considerando que o acordo de cotistas não poderá modificar o
contrato social nem terá o condão de modificar relações com terceiros,
torna-se relevante a análise da regra geral de quórum de votação já
prevista no CCB:
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Art. 1.010. Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos
sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das
quotas de cada um.
§ 1º Para formação da maioria absoluta são necessários votos correspondentes a mais de metade do capital.
§ 2º Prevalece a decisão sufragada por maior número de sócios no
caso de empate, e, se este persistir, decidirá o juiz.
§ 3º Responde por perdas e danos o sócio que, tendo em alguma
operação interesse contrário ao da sociedade, participar da deliberação que a aprove graças a seu voto.
A regra geral do art. 1.010 e parágrafos do CCB é a de decisão por
maioria simples, mais da metade do capital. Já o art. 1.071 especifica em
seus incisos algumas matérias que necessariamente dependem de deliberação social qualificada. Anota-se:
Art. 1.071. Dependem da deliberação dos sócios, além de outras
matérias indicadas na lei ou no contrato:
I - a aprovação das contas da administração;
II - a designação dos administradores, quando feita em ato separado;
III - a destituição dos administradores;
IV - o modo de sua remuneração, quando não estabelecido no contrato;
V - a modificação do contrato social;
VI - a incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação;
VII - a nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das
suas contas;
VIII - o pedido de concordata.
No art. 1.072, o CCB enfatiza o quórum de decisão por maioria e
remete as decisões para reuniões ou assembléias, de acordo com o que
estiver previsto no contrato social, de forma a solenizar as decisões e, nesse particular, introduz o formalismo das decisões assembleares das sociedades anônimas nas sociedades limitadas. Ressalta-se que, por força do
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parágrafo primeiro, se a sociedade limitada possuir mais de dez sócios, a
assembléia será sempre obrigatória.
Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no
art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembléia, conforme
previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato.
§ 1º A deliberação em assembléia será obrigatória se o número dos
sócios for superior a dez.
Importante mencionar a regra qualificadora de quórum de decisão existente no art. 1.076 do CCB, a que exige o quórum de 75% até 100% de votos,
pois o eventual acordo de cotistas deverá, quando se referir às matérias ali
mencionadas, respeitar também o quórum qualificado, sob pena de nulidade.
Art. 1.076. Ressalvado o disposto no art. 1.061 e no § 1º do art.
1.063, as deliberações dos sócios serão tomadas:
I - pelos votos correspondentes, no mínimo, a três quartos do capital
social, nos casos previstos nos incisos V e VI do art. 1.071;
II - pelos votos correspondentes a mais de metade do capital social,
nos casos previstos nos incisos II, III, IV e VIII do art. 1.071;
III - pela maioria de votos dos presentes, nos demais casos previstos na lei ou no contrato, se este não exigir maioria mais elevada.
Note-se, ainda, a exigência de quórum de 100%, se o capital não
estiver totalmente integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a
integralização, quando houver a designação de administradores não-sócios, conforme exigência do art. 1.061.
Ainda o eventual acordo de cotistas deverá considerar a possibilidade do direito de dissidência, outro instituto incorporado da Lei das Sociedades Anônimas nas limitadas, pelo CCB:
Art. 1.077. Quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra, terá o sócio que
dissentiu o direito de retirar-se da sociedade, nos trinta dias subseqüentes à reunião, aplicando-se, no silêncio do contrato social antes
vigente, o disposto no art. 1.031.
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Finalmente, os três últimos parágrafos do art. 118 da Lei nº 6.404/
76. O parágrafo sexto é auto-explicativo e perfeitamente aplicável ao acordo
de cotistas. O sétimo pode ser aplicável, com a adaptação ao prazo mencionado, pois faz remissão a outro artigo da Lei nº 6.404/76. Também o
oitavo seria aplicável, na medida em que, com as novas disposições trazidas
pela CCB para as sociedades empresárias, algumas decisões nas sociedades limitadas dependerão de decisões formalizadas em assembléias, como
já ocorre nas companhias. A seguir os textos:
§ 6º O acordo de acionistas cujo prazo for fixado em função de
termo ou condição resolutiva somente pode ser denunciado segundo
suas estipulações.
§ 7º O mandato outorgado nos termos de acordo de acionistas para
proferir, em assembléia-geral ou especial, voto contra ou a favor de
determinada deliberação, poderá prever prazo superior ao constante do § 1º do art. 126 desta Lei.
§ 8º O presidente da assembléia ou do órgão colegiado de deliberação da companhia não computará o voto proferido com infração de
acordo de acionistas devidamente arquivado.
3
CONCLUSÃO
É possível a adoção de acordo de cotistas em sociedade limitada.
Ainda que não haja a previsão legal do parágrafo único do art. 1.053 do
CCB, os cotistas poderão formalizar o acordo, tendo em vista a liberdade
de contratar assegurada no art. 104 do CCB e o fato de o acordo vincular
os cotistas, não a sociedade.
Para que tenha valor contra terceiros deverá ser o acordo levado ao
registro de comércio competente para averbação e uma cópia deverá ser
arquivada na sociedade.
Todos os termos do acordo deverão, no que se refere a quórum de
decisão assemblear, respeitar os quóruns previstos na regulamentação das
sociedades empresárias feita pelo CCB.
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REFLEXÕES SOBRE PECULIARIDADES E ASPECTOS
POLÊMICOS DAS SOCIEDADES SIMPLES
MARCELO MORAES TAVARES
Sumário
1. Introdução. 2. Breve histórico. 3. Conceito e objeto.
4. Peculiaridades da sociedade simples em relação aos
outros tipos societários. 4.1. Admissão de sócio
prestador de serviço. 4.2. Da possibilidade de contratação de sociedades simples entre pessoas casadas
por regime de comunhão universal de bens. 4.3. Cessão de cotas a terceiros. 4.4. Administração da sociedade – Irrevogabilidade de poderes do sócio administrador. 4.5. Administração da sociedade simples – Pessoas físicas. 4.6. Quóruns para alteração contratual e
deliberação dos sócios. 4.7. Exclusão de sócios por falta
grave. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
Resumo
Sociedade simples. Peculiaridades. Sócio prestador de serviços.
Contratação entre pessoas casadas por comunhão universal de bens. Cessão de cotas a terceiros. Administração da sociedade simples. Quóruns de
deliberação. Exclusão por falta grave. Conclusão.
Abstract
“Sociedade simples”. Peculiarities. Labour partner. Contract between
married couples. Share’s transfer to third parties. “Sociedade simples”
administration. Deliberation´s quorum. Partner´s exclusion by serious fault.
Conclusion.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 223-232
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MARCELO MORAES TAVARES
1
INTRODUÇÃO
O novo Código Civil trouxe profundas alterações legislativas ao direito societário, notadamente quanto ao elencado no Código Civil de 1916,
no Código Comercial e quanto ao previsto em leis esparsas, como no caso
da Sociedade Limitada.
Com efeito, o Código Civil de 2002 introduziu nova forma de
enquadramento das atividades da pessoa jurídica, substituindo o critério da
prática de atos de comércio pela moderna teoria da empresa, calcada no
requisito da estrutura, funcionalidade e modo de organização do desempenho de funções pelos sócios.
Com essas novas concepções, o novel diploma legal introduziu a
divisão básica em sociedades simples e sociedades empresárias, baseando
tal distinção no conceito de empresário.
Segundo essa nova concepção, o legislador entendeu por bem inserir a sociedade simples no ordenamento jurídico brasileiro, buscando deixar clara a sua intenção em distinguir sociedades que possuem característica empresarial, ficando as demais que não se enquadram em nenhum tipo
de sociedade, por exclusão, como sociedade simples1.
O presente trabalho procura abordar alguns aspectos gerais peculiares das sociedades simples, sem prejuízo de comentar aqueles que têm
causado polêmica e discussão na doutrina e que certamente ganham relevância por essa ter adquirido, por via legal, o status de regência supletiva
das demais sociedades tipificadas no novo Código Civil brasileiro.
2
BREVE HISTÓRICO
A origem da sociedade simples decorreu do Código de Obrigações
suíço do final do século XIX, que definiu, em seu art. 530, a sociedade
simples: “A sociedade é uma sociedade simples, no sentido do presente
título, quando ela não oferece característicos distintivos de uma das outras
sociedades reguladas por lei”2, lembrando que era estabelecida nesse
1
2
A exposição de motivos do Código, quanto às sociedades, deixa claro esse espírito, ao
dispor que “Com a instituição da sociedade simples, cria-se um modelo jurídico capaz de
dar abrigo ao amplo espectro das atividades de fins econômicos não empresariais, com
disposições de valor supletivo para todos os tipos de sociedades”.
ABRÃO, Carlos Henrique. Sociedade simples. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 3-4.
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REFLEXÕES SOBRE PECULIARIDADES E ASPECTOS POLÊMICOS DAS ...
digesto, ampla a liberdade de sua organização, com deliberações por unanimidade, administração exercida por todos os sócios, sem estar dotada
de personalidade jurídica3.
O Código Civil italiano, de 1942, seguindo o exemplo suíço, inseriu
a sociedade simples em seu ordenamento jurídico, enquadrando-a como
regras gerais societárias4.
No Brasil, a sociedade simples foi introduzida por meio do Código
Civil de 2002, com várias peculiaridades dos modelos adotados pelos italianos e suíços.
3
CONCEITO E OBJETO
Com base no conceito do art. 966 do novo Código Civil, qual seja,
definição do empresário, tão discutida entre os doutrinadores, surge o elemento caracterizador da sociedade simples, que tem como essência a adoção de um perfil eminentemente pessoal, ocupando a participação do capital um papel secundário.
Em análise aparente, a sociedade simples fica destinada a profissionais intelectuais, não organizados de modo empresarial, e aos pequenos
empresários, agregando cooperativas, por disposição legal.
Esse conceito é bastante discutido na doutrina nacional, pois alguns
partem do pressuposto de que a sociedade simples não tem por escopo
principal o lucro. Na verdade, a grande discussão consiste em saber se
está caracterizado o exercício de atividade econômica organizada para produção e circulação de bens (art. 966 CC), momento em que será caracterizada a sociedade empresária.
4
PECULIARIDADES DA SOCIEDADE SIMPLES EM
RELAÇÃO AOS OUTROS TIPOS SOCIETÁRIOS
Não obstante ser necessário reconhecer que as sociedades simples,
por expressa permissão legal (art. 983 do CC 2002), podem ser constituídas segundo os moldes das sociedades empresárias, a chamada socieda-
3
4
Ibidem. p. 4.
Ibidem. p. 5.
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de simples pura, como regra geral, possui algumas peculiaridades em relação aos demais tipos societários, que reputamos interessante apontar.
4.1
Admissão de sócio prestador de serviço
Dentre outras peculiaridades, a sociedade simples admite a figura do
sócio prestador de serviços (art. 997, V) previsto anteriormente nas antigas sociedades de capital e indústria, reforçando, por meio dessa inserção,
o caráter pessoal da sociedade, fugindo da regra de prestigiar integralização
do capital das empresas.
Contudo, adverte Carlos Henrique Abrão5 que “compete aos sócios
que empenham os trabalhos na constituição do capital social definir o modo,
a forma e o tempo na radiografia de estampar o adimplemento”.
É de boa cautela dispor, no próprio contrato social, as condições de
prestação de serviço do sócio admitido nessa condição, sugerindo o autor
citado que
os sócios podem mesclar capital com serviços, ou simplesmente atribuir ao último a finalidade contributiva das respectivas participações,
no entanto, é uma maneira de atender à circunstância, inclusive em
tempo de dificuldade de transformação do potencial em dinheiro,
deparando-se com especificidade em sintonia com a realidade do
quadro empresarial.6
Entende Campinho7 que nessa hipótese, salvo convenção em contrário, é vedado ao sócio prestador de serviços empregar-se em atividade
estranha à sociedade, e que a infração de tal dever poderia implicar privação de participação nos lucros, a teor do art. 1.006 do Código Civil.
Adrianna Setubal8 disserta que o termo “atividade estranha à sociedade” deve ser entendido como atividade idêntica à realizada na so5
6
7
8
ABRÃO, Carlos Henrique. Op. cit., p. 19.
Ibidem, p. 18.
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 96.
SANTOS, Adrianna de Alencar Setubal. In: Comentários ao novo Código Civil - Artigo
por artigo. São Paulo: RT, 2006, p. 779.
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ciedade em que esse sócio participe como sócio de indústria, não impedindo de exercer outras atividades não relacionadas ao objeto social. Interpretar de forma contrária significaria ofensa ao princípio constitucional da
livre iniciativa.
Não obstante ser permitida tal inclusão, a própria lei prevê forma
diversa do pagamento dos dividendos.
O art. 1.007 do Código Civil significa, ao nosso ver, que o valor a
ser recebido pelo sócio prestador de serviços deve ser o produto da soma
de participação dos demais sócios, com posterior divisão do valor obtido
pelo número de sócios de capital.
O resultado da operação aritmética exprimiria, assim, o nível de participação do sócio de serviço em relação aos lucros da sociedade simples.
Lembre-se de que podem ser ajustadas outras disposições em face da
autorização legal concedida pelo dispositivo.
Não se pode olvidar que o mencionado dispositivo deve ser harmonizado com o disposto no art. 1.008 do Código Civil, no que diz respeito à
vedação legal de impedimento de participação dos sócios, quanto ao lucro
ou às perdas.
4.2
Da possibilidade de contratação de sociedades
simples entre pessoas casadas por regime de
comunhão universal de bens
Sem dúvida, uma das peculiaridades mais atrativas para adoção da
modalidade da sociedade simples pura alegadas pela doutrina consiste
na permissibilidade de contratação de sociedade entre cônjuges ainda
que o casamento seja pactuado em comunhão universal de bens, pois o
art. 977 do Código Civil, que contém vedação nesse sentido, diz respeito
apenas ao empresário, por interpretação sistemática, sendo razoável tal
entendimento, pelo fato de a disposição retro encontrar-se no capítulo
referente à capacidade de ser empresário, o que não é o caso da sociedade simples.
4.3
Cessão de cotas a terceiros
O atual art. 1.003 do Código Civil prevê um certo rigorismo para a
cessão de cotas ao dispor que a cessão somente poderia ocorrer com o
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consentimento de todos os sócios, por alteração contratual, se comparada
com as disposições da sociedade limitada, que possibilita cessão mediante
votação de quórum inferior de deliberação.
Nesse ínterim, critica Adrianna Setubal9 que seria mais razoável e
suficiente a manifestação da maioria para a cessão das cotas a terceiros.
Com efeito, embora seja necessário o resguardo aos sócios, dada a
característica pessoal da sociedade simples, a exigência de unanimidade
acaba por engessar a transição societária, que seria menos traumática se
houvesse quórum de maioria absoluta, pelo que entendemos pertinente a
realização de alteração legislativa nesse sentido.
4.4
Administração da sociedade – Irrevogabilidade de
poderes do sócio administrador
A sociedade que se constitui segundo a modalidade simples, sem
abranger outro tipo societário, prevê, em seu art. 1.019, que os poderes
do sócio nomeado no contrato social são irrevogáveis, salvo a efetiva comprovação de justa causa, divergindo das demais sociedades previstas no
novo Código Civil, que possuem disposição mais liberal nesse sentido,
permitindo a destituição por deliberação dos sócios, como é o caso da
sociedade limitada.
A doutrina tem entendido que tal peculiaridade da sociedade simples
é prejudicial ao andamento da atividade societária, pois atribui necessidade
de se recorrer ao Poder Judiciário para destituição do administrador, com
o escopo de comprovação de justa causa, o que pode emperrar sobremaneira o andamento da atividade da sociedade simples.
De outro lado, Campinho10 ressalta que é criticável atribuir diferença
de tratamento em relação a sócio nomeado em instrumento separado, pois
estaria afetando a estabilidade do administrador por questão meramente
formal (arts. 1.012 e 1.019, parágrafo único do Código Civil), advogando
a tese de que o parágrafo único refere-se apenas aos mandatários, não aos
sócios. Lembra também que o quórum para nomeação de administrador
em separado é de maioria absoluta.
9 SANTOS, Adrianna de Alencar Setubal. Op. cit., p. 784.
10 CAMPINHO, Sérgio. Op. cit., p. 109.
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4.5
Administração da sociedade simples – Pessoas físicas
Pelo conteúdo do inciso VI do art. 997 do Código Civil, somente
pessoas físicas são admitidas como administradores.
Contudo, em virtude de críticas ao mencionado dispositivo, já existe
tramitação, por meio do Projeto de Lei nº 7.160/02, para modificação do
dispositivo11 a fim de inserir inciso que possibilita a descrição do “modo
por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e
extrajudicialmente (...)”, justificando-se tal alteração também para
compatibilização com os arts. 1.012, 1.013, 1.015 e 1.024 do Código
Civil.
4.6
Quóruns para alteração contratual e deliberação
dos sócios
A sociedade simples se distingue das demais também pela adoção
de apenas dois tipos de quóruns deliberativos: unanimidade dos sócios, nas
hipóteses de alteração contratual (art. 999 do CC) e dissolução (art. 1.033
do CC), e por maioria absoluta de votos às demais matérias (art. 999 do
CC).
Esse dispositivo também está sendo criticado pela doutrina, que entende ser inaceitável determinar apenas as duas opções de quórum para as
demais matérias, em detrimento da liberdade de contratação, pelo que sugere, pelo Projeto de Lei nº 6.960/02, a alteração do art. 997, para permitir modificações mediante a maioria absoluta de votos para as demais matérias não contempladas nos incisos do citado dispositivo12, ou até mesmo
para relativizar ainda mais o quórum de deliberação do contrato social,
abrangendo a possibilidade de pactuação de outros quóruns até mesmo
para as matérias do art. 997 (Projeto de Lei nº 7.160/02).
Compactuamos com aqueles que entendem a necessidade da modificação de tal dispositivo, pois deveria ser prestigiada maior liberdade de
contratação.
Outra questão pertinente que entendemos ser oportuno abordar é o
sistema de desempate das sociedades simples. O art. 1.010 dispõe que a
11 SANTOS, Adrianna de Alencar Setubal. Op. cit., p. 781.
12 Idem.
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deliberação por maioria absoluta de votos, contados conforme o valor de
suas cotas, correspondentes a mais da metade do capital social; caso haja
empate, prevalecerá o critério de número de sócios votantes. Se ainda
persistir empate, a decisão será levada a juízo.
Diante da crítica pelo engessamento das deliberações societárias, já
existe proposta de alteração (Projeto de Lei nº 7.160/02) destinada à modificação do art. 1.010, para constar também o quórum por maioria absoluta, se outro maior não foi exigido no contrato social, além de dispor que
para formação de maioria absoluta seriam necessários votos correspondentes a mais da metade do valor do capital social ou do número de sócios,
conforme contrato social.
Constariam ainda nesse dispositivo outras matérias, como instaurar
a arbitragem para composição de conflitos em vez de estabelecer critério
de desempate pelo número de sócios.
4.7
Exclusão de sócios por falta grave
Um dos pontos que causam maior celeuma doutrinária é uma das
peculiaridades atinentes à sociedade simples: a possibilidade de exclusão
do sócio por falta grave nos moldes do art. 1.030 do Código Civil, que
dispõe a possibilidade de exclusão apenas em juízo, por iniciativa da maioria dos sócios, por falta grave no cumprimento das obrigações ou por incapacidade superveniente.
A primeira questão, objeto de críticas pela doutrina, consiste na necessidade de recorrer ao Poder Judiciário para tal apuração, pois os motivos poderiam ser tratados internamente na sociedade, o que não retiraria o
direito do sócio excluído de recorrer ao Poder Judiciário para buscar anulação da deliberação, pelo que, baseado nessa crítica, já existe também
proposta de alteração por meio do Projeto de Lei nº 7.160/02, propondo
a supressão da necessidade de recorrer a juízo para exclusão do sócio por
falta grave13.
De outro lado, a grande dificuldade está em definir o que seria falta
grave. Jorge Shiguemitsu Fujita14 comenta:
13 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. In: Comentários ao novo Código Civil - Artigo por artigo. São
Paulo: RT, 2006, p. 800.
14 Idem.
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a lei não distingue o que seja falta grave para fins societários, porém
podem ter esta característica faltas que coloquem em risco a própria
atividade social e que comprometam a situação da sociedade no
aspecto negocial ou financeiro, de forma tal que a mesma possa ser
impedida de atingir seu objeto social.
Não obstante, muitos doutrinadores e aplicadores do direito têm
considerado a necessidade de o contrato social dispor expressamente as
hipóteses de falta grave.
Entendemos, salvo melhor juízo, impossível tal disposição, pois diversas faltas graves cometidas durante a vida societária certamente não se
encaixariam no rol elencado no contrato social, tornando inócua uma disposição contratual voltada para punição do sócio infrator.
5
CONCLUSÃO
Tendo como base os comentários elaborados neste breve ensaio,
podemos chegar às seguintes conclusões:
I. A sociedade simples foi introduzida no ordenamento jurídico de
forma a adequar a divisão do tipo societário à luz da nova Teoria da Empresa.
II. A sociedade simples admite sócio prestador de serviços, mediante necessária expressa definição das suas atribuições no contrato social,
sendo vedado o exercício de atividade similar em outra empresa e vedação
de impedimento de distribuição de lucros.
III. A sociedade simples admite contratação entre cônjuges, casados
em comunhão universal de bens, pois as normas sobre capacidade dos
empresários não são aplicáveis aos sócios de sociedade simples.
IV. A norma que atribui irrevogabilidade de poderes a administrador
nomeado em contrato social só pode ser alterada mediante justa causa
perante o Poder Judiciário. Contudo, tal regra não é semelhante quanto a
administrador nomeado em ato separado.
V. A administração de pessoa jurídica compete exclusivamente à
pessoa física, entretanto, existe projeto de lei que contemplaria a administração por pessoa jurídica.
VI. Os quóruns de alteração contratual e deliberação dos sócios são
os de unanimidade e de maioria absoluta, ressalvando que já existem projetos de lei destinados à sua flexibilização.
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MARCELO MORAES TAVARES
VII. A exclusão de sócio por falta grave exige a demonstração em
juízo de tal ocorrência para a exclusão do sócio infrator, situação que já
merece debate para alteração da legislação a fim de permitir a sua avaliação internamente na sociedade.
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRÃO, Carlos Henrique. Sociedade simples. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
FUJITA, Jorge Shiguemitsu. In: Comentários ao Novo Código Civil - Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2006.
MAMEDE, Gladston. Direito societário - sociedades simples e empresárias. São Paulo: Atlas, 2004.
NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil comentado e legislação extravagante. São Paulo: RT, 2005.
SANTOS, Adrianna de Alencar Setubal. In: Comentários ao novo Código Civil - Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2006.
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REFLEXÕES SOBRE PECULIARIDADES E ASPECTOS POLÊMICOS DAS ...
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OS EMBARGOS DO TERCEIRO-CREDOR – UMA
NOVA VIA NO PROCESSO FALIMENTAR?
MARCO AURELIO FERENZINI
“Vamos aos embargos... E por que iremos aos embargos?”1
Sumário
1. Introdução. 2. Do giro do sistema anterior para a
nova lei. 3. O terceiro e o credor. 4. O crédito como
bem da vida perseguido pela via dos embargos. 5. O
correntista e/ou aplicador como credor do banco falido. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente estudo tem por objetivo lançar uma discussão sobre o
dispositivo do art. 93 da Nova Lei de Falências (Lei nº 11.101/05), que
trata dos embargos de terceiro, na medida em que aponta como legitimado
ativo para a utilização dessa via processual o credor e não terceiro esbulhado
ou turbado na posse. Tendo em vista a novidade do instituto contido na
nova sistemática falimentar não se almeja, por óbvio, o esgotamento do
assunto, mas um breve confronto do atual procedimento com o anterior e o
sistema processual vigente.
1
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 1997, p. 177. (Obras completas
de Machado de Assis).
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
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MARCO AURELIO FERENZINI
Abstract
The present work has as its aim to start a discussion about disposition
of art. 93, from the New Law of Bankruptcies (Law nº 11.101/05), that it
is about the arrests of third, so far as it points as the active legitimated for
the application of this process way the creditor and not the third trouble in
the possession. In view of the novelty of the institute contained at the new
bankruptcies systematic it does not aim, by blatant, the exhaustion of the
subject, but a brief of the actual confront of the actual procedure with the
latter and the external present process system.
1
INTRODUÇÃO
Após onze anos de tramitação no Poder Legislativo, no direito brasileiro foi introduzido um novo modelo falimentar com a promulgação da
Lei nº 11.101, de 9-2-2005. Substituiu-se o emperrado procedimento da
concordata pela recuperação (judicial e extrajudicial) adequando nosso
sistema ao de nações industrializadas. No âmbito da falência vieram alterações consideráveis, tornando a execução coletiva mais apta para atender
aos anseios conflitantes do empresário insolvente e seus credores. Não se
cogita mais do inquérito judicial e da verificação de contas, a habilitação
dos credores passou a ser realizada perante o administrador judicial, o qual
teve sua atividade profissionalizada, facilitando a realização do ativo e alterando a ordem de classificação dos credores.
É certo que os procedimentos estão em fase inicial de processamento
perante o Poder Judiciário, não sendo ainda possível aferir a efetividade
dos novos instrumentos contidos na Nova Lei de Falências, tampouco a
posição dos tribunais.
Entretanto, foi inserido nesse novo diploma falimentar o art. 93 dispondo sobre os embargos de terceiros dentro da Seção III que trata do
Pedido de Restituição. Como se verá adiante, tudo indica ter havido um
novo enfoque ao aludido incidente processual, transformando o terceiro
em credor, ou credor em terceiro.
2
DO GIRO DO SISTEMA ANTERIOR PARA A NOVA LEI
O Decreto-Lei nº 7.661, de 21-6-1945, em seu art. 79, inserido no
Título V, que dispunha Do Pedido de Restituição e dos Embargos de Terceiro, era vazado nos seguintes termos: “Art. 79. Aquele que sofrer turbação
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OS EMBARGOS DO TERCEIRO-CREDOR – UMA NOVA VIA NO PROCESSO ...
ou esbulho na sua posse ou direito, por efeito da arrecadação ou do seqüestro, poderá, se não preferir usar o pedido de restituição (art. 76), defender os seus bens por via de embargos de terceiro”.
É que o síndico, quando da promoção da arrecadação, não tinha
outra opção senão promover a constrição de todos os bens que estivessem
no estabelecimento do falido. Promovendo a arrecadação desses bens
poderia turbar ou esbulhar a posse ou direito de terceiro, para o qual havia
a possibilidade do manejo do incidente em questão. Anote-se que aparentemente o citado dispositivo legal dava uma opção ao turbado ou esbulhado
de se valer do pedido de restituição. No entanto, não são procedimentos
equivalentes na medida em que a mera turbação não autorizava a utilização
do pedido restituitório, apesar da posição divergente de Rubens Requião2.
A nova lei, ao tratar dos embargos de terceiro, não deu ensejo a essa
dúvida não admitindo a fungibilidade daqueles com o pedido de restituição,
dispondo textualmente: “Art. 93. Nos casos em que não couber pedido de
restituição, fica resguardado o direito dos credores de propor embargos
de terceiro, observada a legislação processual civil”.
O cerne da questão ora debatida, na real verdade, reside no fato de
a Nova Lei de Falência dar legitimidade ativa aos credores, e não aos
terceiros, como se deduzia do texto legal do Decreto-Lei nº 7.661 e da
nossa própria tradição processual civil, esta aplicável de forma subsidiária.
Indagamos:
a) Qual credor terá a oportunidade de manejar os embargos de terceiro do art. 93 da Lei nº 11.101/05?
b) Criou-se uma nova classe de credores na falência?
c) De qual instrumento dispõe o terceiro que foi esbulhado ou turbado na sua posse ou direito?
3
O TERCEIRO E O CREDOR
Os processualistas procuram conceituar o legitimado ativo para o
manejo dos embargos de terceiro, pois “quem não sendo parte no processo”, como consta do texto legal, não é suficiente para indicá-lo.
2
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, vol. 1,
p. 254.
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MARCO AURELIO FERENZINI
Hamilton de Moraes e Barros3 destaca a posição de vários deles:
Para PEREIRADE SOUZA, citado por LUIZ AMBRA, em Dos
Embargos de Terceiro, pág. 20, “Terceiro é a pessoa diferente daqueles que tem contenda entre si” e, logo a seguir, o mesmo LUIZ
AMBRA acrescenta: “é o antônimo de parte, haja ou não sentença
na lide”.
PONTES DE MIRANDA, depois de dizer que “somente pode
embargar como terceiro quem não tomou parte no feito”, pondera
que “mais precisa e cientificamente se há de dizer que não pode usar
de embargos de terceiro quem quer que esteja sujeito à eficácia do
ato judicial que pretende embargar” (Comentários ao Código de
Processo Civil, 2ª ed., vol. IX, pág. 23).
LIEBMAN, em parecer na Revista Forense, vol. CIX, pág. 46, assentou: “Para determinar se uma pessoa é ou não parte em processo, não é suficiente considerar a sua identidade física, devendo-se,
ao contrário, tomar em conta também a qualidade jurídica em que
compareceu no feito. Uma pessoa física poder ser simultaneamente
parte e terceiro com relação a determinado processo, se não diferentes títulos jurídicos que justificam esse duplo papel que ela pretende representar, se não distintas as posições jurídicas que ela visa
a defender”.
JOSÉ FREDERICO MARQUES, nas suas perfeitas Instituições de
Direito Judiciário Civil, vol. 5, 2ª ed., pág. 445, ensina: “Os embargos são de terceiro; mas, como tal, deve entender-se não a pessoa
física ou jurídica que não tenha participado do feito, mas “a pessoa
titular de um direito outro que não tenha sido atingido pela decisão
judicial”.
Depois de repetir a lição de J. M. CARNEIRO LACERDA, nos
Comentários ao Código de Processo Civil Brasileiro, edição de 1941,
vol. IV, pág. 175, de que terceiro “é o que não figurou na causa
principal, ou contra quem a sentença não é exeqüível”, ainda escreve
JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Se a pessoa citada para a execução é parte ilegítima (ilegitimidade passiva ad causam) para figurar
na relação processual executória , o que lhe cumpre é aduzir essa
3
BARROS, Hamilton de Moraes e. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1988, vol. 9, p. 363-365.
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falta de condição de ação nos embargos do executado. Impossível
lhe é, depois, opor embargos de terceiro.
Ainda com relação ao conceito de terceiro, vale invocar-se JOSÉ
ALBERTO REIS, para quem “terceiro contrapõe-se à parte. É terceiro com relação a um processo quem nele não figura como parte.
É com a intervenção em processo alheio que o terceiro se transforma em parte”.
E vamos encerrar essa caracterização com a palavra de MOACIR
AMARAL SANTOS, nas suas Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 2º, 4ª ed., 1972, Max Limonad Editora, pág. 24:
“Terceiros são pessoas estranhas à relação processual já constituída, mas que, sujeitos de uma relação de direito material àquela se
liga intimamente, intervém no processo sobre a mesma relação, a fim
de defender interesse próprio”.
Ora, não discrepam, portanto, em identificar o terceiro como sendo
aquele que não compareceu ao processo como parte, conceito que se transpõe facilmente para o processo falimentar até pela aplicação subsidiária da
lei processual civil, o que difere da figura do credor ante a instauração da
falência do sujeito passivo do crédito.
É que, decretada a falência e publicado o edital a que alude o art. 99,
parágrafo único, da Lei nº 11.101/05, incumbe ao credor não relacionado
promover a habilitação de seu crédito perante o administrador judicial.
Crédito esse que, devidamente habilitado, será satisfeito quando da liquidação do ativo e pagamento dos demais credores.
Tendo em vista o negócio jurídico existente entre o credor e o falido,
estando aquele relacionado pelo administrador judicial, ou sendo admitido
pela via da habilitação, somente se pode dizer que o credor figura no processo falimentar como parte, nele podendo intervir ativamente na defesa de
seus interesses junto à massa. Não se amoldando a sua condição à posição
de terceiro nos autos da falência, pois dele é parte e tem atuação ativa,
repetindo.
4
O CRÉDITO COMO BEM DA VIDA PERSEGUIDO PELA
VIA DOS EMBARGOS
O art. 1.046 do Código de Processo Civil põe à disposição do terceiro os embargos quando sofrer turbação ou esbulho na posse de seus
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MARCO AURELIO FERENZINI
bens. Já o art. 79 da revogada Lei de Falência outorgava expressa proteção, não só à posse mas também a direito4.
A Lei nº 11.101/05, por seu turno, dispõe que, nos casos em que
não couber pedido de restituição, fica resguardado o direito dos credores
de propor embargos de terceiro, observada a legislação processual civil.
Não se pode daí extrair a conclusão de que os direitos estariam
excluídos da proteção dos embargos, pois até mesmo o crédito pode ser
perseguido como leciona Pontes de Miranda5:
O direito pode ser pessoal, como se o juiz penhora crédito, pretensão ou ação, ou se, devendo somente penhorar o bem, deducta a
dívida, a pretensão, ou a ação, o penhora sem restrição, ou se, devendo somente penhorar o crédito, a pretensão ou a ação, penhora
o bem, cujo domínio ou direito real ainda não foi transferido ao credor, ou titular da pretensão ou ação.
O mesmo Pontes de Miranda6 afirma que:
O terceiro, que é apenas credor do executado, pode embargar com
fundamento em que a coisa julgada material ou o ato judicial é incompatível com o seu “direito” e lhe cause constrição. Não precisa,
para isso alegar colusão. O credor é terceiro como qualquer outro.
Sem dúvida, essa não é a posição do credor do falido.
No entanto, na medida em que seu crédito não é objeto de arrecadação pelo administrador judicial, mas sim parte integrante da massa que
compõe o passivo da empresa insolvente, aquela não é a hipótese normal
da situação do credor no processo falimentar.
Ora, se não houve arrecadação de seu crédito, como cogitar da
utilização da via dos embargos?
4
5
6
“Art. 79. Aquele que sofrer turbação ou esbulho na sua posse ou direito, por efeito da
arrecadação ou do seqüestro, poderá, se não preferir usar do pedido de restituição (art. 76),
defender os seus bens via de embargos de terceiro”.
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1977, t. 15, p. 7.
Ibidem, p. 79.
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O detentor, em virtude de direito real ou de contrato, que teve seu
bem arrecadado pelo administrador judicial no estabelecimento do falido,
será legitimado ativo para promover o pedido de restituição, na forma do
art. 85 da Lei nº 11.101/05.
Nesse caso, tive oportunidade de demonstrar em dissertação de
mestrado7 as várias hipóteses em que inclusive o dinheiro arrecadado na
falência pode ser objeto do pedido restituitório.
5
O CORRENTISTA E /OU APLICADOR COMO CREDOR
DO BANCO FALIDO
Naquela mesma oportunidade da dissertação argumentei sobre a
possibilidade de o correntista e/ou aplicador de instituição financeira falida
valer-se do pedido de restituição para reaver os valores depositados e/ou
aplicados arrecadados pelo administrador judicial, tendo em vista a ausência de transferência da propriedade da quantia aplicada e/ou depositada,
pela aplicação das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor8 e pela ausência de plena disponibilidade sobre os respectivos valores
pelo banco.
Contudo, a tese que prevaleceu no julgamento do caso da falência
do Banco do Progresso S.A., em sede de Recurso Especial, pelo Superior
Tribunal de Justiça9 é a de que, na hipótese, há transferência de propriedade e que o depositante não tinha cobertura do art. 76, do Decreto-Lei nº
7.661/45 (hoje, art. 85 da Lei nº 11.101/05), pois se trata depósito de
coisa fungível, que se regula pelo que dispõe a lei acerca do mútuo (art.
1.280 do Código Civil de 1916; art. 645 do Código Civil de 2002). Assim,
o correntista e/ou aplicador da instituição financeira falida transmudou-se
de terceiro para credor, sujeito ao rateio na classe dos quirografários, mas
não legitimado ativo para os embargos de terceiro.
7
8
9
FERENZINI, Marco Aurélio. O dinheiro de terceiro em poder do falido como objeto do
pedido de restituição no processo falimentar. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito Milton Campos, Belo Horizonte.
Tese agasalhada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 2.591 proposta pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), em que foi relator o Ministro Carlos Veloso. Disponível em: <http://
www.stf.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2006.
Ver, como exemplo: Recurso Especial nº 504.300-MG, Rel. Min. Humberto Gomes de
Barros, 20-05-2004. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 1º jun. 2005.
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MARCO AURELIO FERENZINI
Aliás, Trajano de Miranda Valverde10, comentando o art. 79, do
revogado Decreto-Lei nº 7.661/45, indaga e aduz que:
Poderá o juiz, se julgar improcedentes os embargos de terceiro,
mandar incluir o embargante na classificação que, como credor, por direito
lhe caiba? Parece que sim, atendendo-se ao princípio de economia processual e à circunstância de que, no pedido de restituição, essa faculdade é
concedida ao juiz (art. 77, parágrafo 5º).
Seria esse credor, do banco falido, o legitimado ativo para os embargos de terceiro na Nova Lei de Falências?
Entendemos que não, pois a ele cabe o pedido de restituição e o
sistema da Lei nº 11.101/05 não teve alterações substanciais a inviabilizar a
busca do crédito por intermédio desse procedimento.
6
CONCLUSÃO
A doutrina que se debruçou sobre o texto da Nova Lei de Falências
ainda não atentou para a questão enfocada, bem como não se tem notícia
de que já tenha sido objeto de apreciação pelos tribunais.
O fato é que ainda não se vislumbra qual será o credor apto a manejar os embargos de terceiro, tampouco se pode dizer da criação de uma
nova classe de credores.
Ao terceiro, assim entendido aquele conceituado pela doutrina processual civil, que foi esbulhado ou turbado na posse de seus bens ou direito
terá por certo a possibilidade da utilização dos embargos a que alude o art.
1.046 do Código de Processo Civil, pois o art. 93, da Lei nº 11.101/05,
ressalva a observância da aplicação da legislação processual.
Enquanto isso, vamos aos embargos...
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa. 21.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
10 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4.ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Forense, 1999, vol. 2, p. 70-71.
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OS EMBARGOS DO TERCEIRO-CREDOR – UMA NOVA VIA NO PROCESSO ...
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 1997, p. 177.
(Obras completas de Machado de Assis).
BARROS, Hamilton de Moraes e. Comentários ao Código de Processo
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CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de
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FERENZINI, Marco Aurélio. O dinheiro de terceiro em poder do falido
como objeto do pedido de restituição no processo falimentar. 2006.
Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito Milton Campos, Belo Horizonte.
GUERRA, Érica; LITRENTO, Maria Cristina Frascari (Org.). Nova Lei
de Falências comentada - Lei nº 11.101, de 9/2/2005. Campinas: LZN,
2005.
MACHADO, Rubens Approbato (Coord.). Comentários à nova Lei de
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MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio
de Janeiro: Forense, 1977, t. 15.
PACHECO, José da Silva. Do pedido de restituição e dos embargos de
terceiro no processo de falência consoante a nova lei. ADV Advocacia
Dinâmica, boletim informativo semanal, vol. 25, nº 31, p. 607, 7 ago.
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PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova
Lei de Falências e Recuperação Judicial. São Paulo: Quartier Latin,
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REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1982, vol. 1.
SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: RT, 2006.
TZIRULNIK, Luiz. Direito falimentar. 7.ed. São Paulo: RT, 2005.
VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4.ed.
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NATUREZA JURÍDICA DO FUNDO DE EMPRESA
RICARDO GUIMARÃES BOTELHO
Sumário
1. Apresentação. 2. Conceito. 3. Breve histórico. 4.
Terminologia. 5. Natureza jurídica. 6. Conclusão. 7.
Referências bibliográficas.
Resumo
O presente trabalho, baseado no estudo de abalizada doutrina, pretende discorrer sobre a natureza jurídica do fundo de empresa, que é o
conjunto de bens de que se vale o empresário para, organizadamente, exercer
sua atividade, com a finalidade de obtenção de lucro. Para tanto, serão
analisados conceito, histórico e terminologia do instituto. Objetivando munir o estudo dos operadores atuantes na área do direito de empresa, constata-se, ao final, tratar-se de universitas facti.
Abstract
This paper, based on the study of appraised doctrine, intends to
discourse on the legal nature of the goodwill, which is the set of chattels
used by the entrepreneur to exert its activity, with the purpose of profit
attainment. For in such a way, one analyzes concept, historical evolution
and terminology of the institute. Objectifying to provide the study of the
operating operators in the area of the Commercial Law, it is evidenced, in
the end, to be universitas facti.
1
APRESENTAÇÃO
O fundo de empresa nada mais é que o conjunto de bens de que se
vale o empresário para, organizadamente, exercer sua atividade, com a
finalidade de obter lucro.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 243-252
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2006
RICARDO GUIMARÃES BOTELHO
O presente trabalho pretende discorrer, de forma singela, sobre a
natureza jurídica do referido instituto. No entanto, antes de abordar o tema,
julgamos necessário tecer considerações sobre conceito, histórico e terminologia.
2
CONCEITO
Etienne Brasil, nos idos da década de 1930, explicou o significado
da expressão: “Fundo significa – haveres, dinheiro e crédito. (...) Fundo de
comércio é o conjunto das cousas que se prendem ao exercício de um
commércio”1.
Fran Martins ressalta a finalidade para a qual o empresário se
utiliza desses elementos: “Em todas elas (atividades comerciais), entretanto, há uma finalidade comum: os elementos empregados pelos comerciantes para exercerem com sucesso as suas atividades sempre visam a atrair a freguesia”2.
João Eunápio Borges, citando Navarrini, conceitua estabelecimento
comercial como “o conjunto, o ‘complexo das várias forças econômicas e
dos meios de trabalho que o comerciante consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade formal, em relação com a unidade fim’,
para o qual ele as reuniu e organizou”3.
Há autores que equiparam o fundo de comércio à empresa, entendida essa como o conjunto de capital, trabalho e organização, realizando a
circulação das mercadorias com o intuito de lucro. Entretanto, por mais
que se caminhe para colocar a empresa no centro do direito comercial, e é
o que se dá com a vigência do Código Civil de 2002, ela e o fundo de
comércio não se confundem, já que esse designa “os elementos de que se
utiliza a empresa para obter bons resultados de sua atividade”4.
1
2
3
4
BRASIL, Etienne. Renovação das locações. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1937,
p. 15.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 22.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997, p. 425.
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 187.
MARTINS, Fran. Op. cit., p. 429.
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NATUREZA JURÍDICA DO FUNDO DE EMPRESA
O Código Civil dá tratamento especial ao estabelecimento (arts. 1.142
a 1.149), conceituando-o nos moldes do disposto pelo art. 2.555 do Código Civil italiano: “Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou
por sociedade empresária”.
Waldirio Bulgarelli elogia a iniciativa, inédita no direito brasileiro, de
conceituação e disciplina específica do fundo:
A instituição de um regime jurídico específico para o estabelecimento é uma inovação valiosa, permitindo que se liberte na prática –
principalmente no que toca aos negócios jurídicos de que é objeto –
das inseguranças e incertezas em que está envolto, pela ausência de
normas expressas, obrigando a doutrina a exercícios de interpretação e qualificação nem sempre afinados.5
Destaca-se, nos semelhantes conceitos expostos, o caráter instrumental de que se reveste o fundo de empresa.
3
BREVE HISTÓRICO
Na França, no final do século XIX, evidenciou-se que atividade organizada do empresário gerava uma propriedade imaterial que a ele pertencia, passível de se exprimir economicamente e de ser alienada.
Surgia, com a Lei Fiscal francesa, de fevereiro de 1872, o baux de
commerce ou fonds de commerce. Na Itália, essa propriedade imaterial
do empresário é chamada azienda; na Espanha, hacienda; na Inglaterra, é
chamada de goodwill; na Alemanha, de Geschaft ou Handelsgschaft.
No ordenamento jurídico brasileiro, até o advento do Decreto nº
24.150, de 20 de abril de 1934, os doutrinadores (Carvalho de Mendonça, Júlio Pires Ferreira, Waldemar Ferreira, dentre outros) utilizavam as
expressões estabelecimento comercial e negócio comercial, esta última
empregada pelo Regulamento nº 738, de 25-11-1850, arts. 15 e 157, e
pela Lei nº 2.024, de 17-12-1908, arts. 2º, nº 7, 78 e 157, para designar o
5
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1995, p.
243.
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RICARDO GUIMARÃES BOTELHO
que se chama de fundo de comércio. A partir da legislação de 1934, que
passou a adotar a definição fundo de comércio, o termo se difundiu no
país, sem, contudo, conquistar unanimidade nos meios doutrinário, jurisprudencial e legislativo.
Como já citado, o Código Civil conceitua o instituto e disciplina sua
transferência.
4
TERMINOLOGIA
No Brasil, as expressões fundo de comércio, propriedade comercial
e estabelecimento comercial coexistem. Entretanto, a maior parte dos
doutrinadores pátrios utiliza o termo estabelecimento ou estabelecimento
comercial para designar o conjunto de bens corpóreos e incorpóreos de
que se utiliza o empresário para o exercício de suas atividades.
Entretanto, como já mencionado, o fundo de empresa é um direito imaterial do empresário, que não se confunde com a sede física em
que esse exerce suas tarefas. O termo fundo de comércio é mais correto que estabelecimento comercial, pois este pode se confundir com a
casa comercial. Não raras vezes em que a casa comercial designa,
além do prédio em que se localiza o comerciante, a própria empresa
comercial.
Apenas para ilustrar a confusão decorrente da utilização do termo
estabelecimento comercial para designar o fundo de empresa, traz-se à
colação o seguinte ensinamento do emérito João Eunápio Borges: “Mesmo
o comerciante ambulante, embora não estabelecido em parte alguma, tem
o seu estabelecimento comercial, o seu fundo de comércio”6.
Para o ex-professor de direito comercial da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, seria o termo fundo de comércio
que poderia acarretar complicações, já que passível de ser confundido com
a expressão fundo de negócio. Este designa coisa completamente diversa
do outro. O fundo de comércio surgiu do fonds de commerce francês, ao
passo que o segundo, também originário da França, possui o mesmo significado de fonds de boutique, os restos mortais do estabelecimento postos
em liquidação.
6
BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 188.
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NATUREZA JURÍDICA DO FUNDO DE EMPRESA
Em função do advento da Lei nº 8.245/91, Arnoldo Wald opinou no
sentido de que, em face da expansão legal daqueles a que, embora não
pratiquem atos de comércio, era assegurada a renovação compulsória da
locação, evidenciando a existência do fundo de comércio mesmo fora das
atividades definidas como mercantis, a mudança terminológica para fundo
de empresa: “Agora, estendida tal vantagem a empresas civis com fins lucrativos, parece melhor chamar-se de ‘fundo de empresa’, já que pode ser
comercial ou civil”7.
De fato, segundo os comandos do art. 51, § 4º, do aludido diploma
legal, as locações celebradas por indústrias e sociedades civis com fins
lucrativos e regularmente constituídas também estariam abrangidas pelo instituto da renovação compulsória.
O Código Civil adotou expressa e integralmente, pela primeira vez
no ordenamento jurídico brasileiro, a teoria da empresa para caracterizar o
que agora se chama direito da empresa (antes denominado direito comercial). Talvez por isso preferiu o legislador apenas chamar o fundo de comércio de estabelecimento, sem a qualificação comercial ou outra.
Entretanto, em função de o termo estabelecimento também designar
o local em que se situa o empresário, e dada a nova conotação de empreendedor trazida pelo vigente Código Civil, em detrimento da figura do comerciante, parece coerente a sugestão de nova terminologia para designar
a espécie: fundo de empresa ou fundo empresarial.
5
NATUREZA JURÍDICA
No que tange à natureza jurídica do fundo de empresa, o consenso
parecer inexistir, haja vista as diferenças e peculiaridades de cada
ordenamento jurídico. De acordo com o direito enfocado, o fundo empresarial é considerado um patrimônio de afetação, uma verdadeira pessoa
jurídica, ou, por fim, uma universalidade.
Sobre a dificuldade de se classificar o fundo de empresa nas categorias clássicas do direito, Rubens Requião manifesta-se sem pudores:
Essa bizarra figura jurídica, que é formada de bens que, unidos, dão
em seu conjunto nascimento a um novo bem, como já se acentuou,
7
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 14.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,
p. 378.
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tem desafiado a argúcia dos juristas para enquadrá-la nas tradicionais categorias jurídicas.8
Cabe a ressalva de que, com a vigência do Código Civil de 2002, a
conceituação do fundo de empresa agora é também legal (art. 1.142).
5.1
Personalidade jurídica
No direito alemão, há duas teorias sobre o estabelecimento comercial. Pela primeira, a da personificação do estabelecimento ou Rechtssubjektivität, o fundo de comércio é visto como uma espécie de pessoa jurídica, sujeito, mas não objeto de direitos. É criado pelo comerciante, mas
adquire vida própria e autônoma.
Tal construção, que acaba por separar o fundo empresarial da figura
do empresário que o criou, fez com que João Eunápio Borges tecesse
comentário no mínimo peculiar sobre a questão:
Criatura que se ergue contra o criador, verdadeiro Frankstein
jurídico, separa-se o patrimônio do estabelecimento do de seu
dono. O estabelecimento adquire direitos, contrai dívidas sem
que tais direitos e tais dívidas se confundem com as demais de
seu proprietário.9
5.2
Patrimônio de afetação
Para a outra corrente germânica, o estabelecimento comercial seria
um patrimônio de afetação, mas dada a extensão dos efeitos desse patrimônio, a diferença entre uma e outra teoria acabaria sendo nenhuma.
O estabelecimento constituiria patrimônio especial, destacado e autônomo em relação ao patrimônio do comerciante em razão da finalidade
peculiar a que se destina. É o que na Alemanha se chama de Zwekvermögen,
Sondergüter ou Sondervermögen.
As obrigações decorrentes do exercício do comércio vinculam não
o patrimônio do comerciante, mas o do estabelecimento.
8
9
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, vol. 1, p.
244.
BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 201.
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NATUREZA JURÍDICA DO FUNDO DE EMPRESA
5.3
Universalidade de fato ou de direito?
No direito brasileiro, o fundo de comércio não pode ser visto como
patrimônio de afetação nem como pessoa jurídica. O comerciante possui
um só patrimônio, que se compõe da totalidade de seus bens.
Nos dizeres do eminente João Eunápio Borges, o fundo de empresa
“nada mais é juridicamente do que uma coisa complexa ou o complexo de
coisas (bens corpóreos, incorpóreos e serviços), organizado para o exercício do comércio”10, sendo, assim, uma universalidade.
Resta saber se se trata de universitas facti ou de universitas iuris.
Para os que advogam ser o fundo empresarial uma universalidade de
direito, há o óbice intransponível no ordenamento jurídico brasileiro, vez
que, aqui, a universitas iuris só se constitui em função de expressa disposição legal, como ocorre com a herança e com a massa falida, sendo sujeito de direito.
Segundo o célebre jurista Orlando Gomes, as universalidades de
fato são “o conjunto de coisas singulares, simples ou compostas, agrupadas pela vontade da pessoa, tendo destinação comum”11, o que identificaria exatamente a noção de estabelecimento, pois se trata de conjunto de
bens isolados que, ligados pela vontade do empresário a uma finalidade
comum, atuam como instrumento do o exercício da empresa.
Assim entende Requião, para o qual o fundo de comércio é universalidade de fato, pois é formado “de bens que, unidos, dão em seu conjunto nascimento a um novo bem”12.
Realmente, de acordo com o disposto pelos arts. 54, II, e 57 do
Código Civil de 1916 13, o fundo de empresa não podia ser visto de outra
forma senão como universalidade de fato.
10 Ibidem, p. 205.
11 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.
227.
12 REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 244.
13 “Art. 54. As coisas simples ou compostas, materiais ou imateriais, são singulares ou
coletivas:
(...)
II - coletivas, ou universais, quando se encaram agregadas em todo.”
“Art. 57. O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidades, e
como tais subsistem, embora não constem de objetos materiais.”
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O mesmo se diz quando analisado o tema em face da nova
codificação, Lei nº 10.406/02. Em seu art. 90, o Código Civil assim classifica a universalidade de fato, ressaltando o traço característico da destinação
unitária:
Art. 90. Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária.
Parágrafo único. Os bens que formam essa universalidade podem
ser objeto de relações jurídicas próprias.
A despeito dessa discussão, Rubens Requião demonstra que o
enquadramento do fundo empresarial na categoria das universalidades de
fato pouco possui de jurídico, sendo muito mais uma constatação fática.
O cerne sensível da questão seria, assim, a determinação da espécie
de direito que o instituto encerra e seu próprio conteúdo.
5.4
Conteúdo do instituto
Seria bem imaterial porque, apesar de compostos por bens corpóreos
e incorpóreos, todos eles, individuais, ao se agruparem pela organização
do comerciante, formariam outro bem, imaterial.
Entretanto, o empresário, proprietário do fundo de comércio, não
possui direito sobre a clientela, dada a fugacidade do conceito e impossibilidade de se lhe apropriar. O empreendedor teria, sim, direito sobre os
elementos corpóreos e incorpóreos de que se utiliza, segundo sua organização, para exercer sua atividade. Seria aí, nesse caráter pessoal do modo
em que o empresário explora sua atividade, que residiria, segundo Julliot
de La Morandière, citado por Requião, “o direito incorpóreo sobre o fundo de comércio, como ocorre com os direitos de autor e a propriedade
industrial”14.
Tão logo esses elementos corpóreos e incorpóreos que integram o
fundo de comércio permaneçam unidos pela exploração do estabelecimento,
seu proprietário é titular de um fundo de comércio, isto é, de uma propriedade incorpórea, tendo por objeto o direito à clientela do estabelecimento.
14 REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 246.
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A doutrina alemã, exposta há pouco, que ora se inclina em considerar o fundo de empresa como patrimônio de afetação, ora como pessoa
jurídica, nesse ponto é convergente: trata-se de bem imaterial.
Na Itália, o Codice Civile define, em seu art. 2.555, o fundo de
comércio, denominado de azienda, como o complexo de bens dispostos
pelo empresário para a atividade da empresa. Verifica-se, mais uma vez, a
noção de bens individuais unidos pela atividade organizada.
Antes da atual codificação, os doutrinadores italianos dividiam-se
entre os que entendiam ser a azienda um complexo unitário, uma universalidade distinta dos elementos que a formavam, e aqueles para os quais ela
seria apenas a reunião de vários elementos, sem, contudo, formar algo novo,
vendo-a atomisticamente.
Conforme narrado por Rubens Requião ao perfilhar os ensinamentos
do professor Tamburrino, há, atualmente, três correntes que procuram explicar a natureza jurídica da azienda. A primeira vê o fundo empresarial
como uma universalidade, um complexo unitário, objeto de direitos, dentre
os quais os reais de propriedade e gozo. A discordância existente entre os
que o vislumbram com universitas reside na qualificação dessa coletividade: universitas iuris ou universitas facti.
Outros doutrinadores – chamados atomistas – defendem a impossibilidade de a azienda ser concebida de forma unitária. Assim, não poderia
ser objeto de direitos em si mesma, não havendo que se falar em direitos
reais sobre ela. A unicidade só se verificaria em relação aos negócios jurídicos que versassem sobre os bens que a compõem.
A terceira corrente ora classifica a azienda como universalidade,
objeto de direitos, inclusive reais, ora a trata da mesma forma como o
fizeram os defensores da teoria atomista. No que tange à cessão dos direitos de gozo sobre ela, relação jurídica entre o proprietário e terceiro, seria
o fundo uma universitas. Já considerada apenas perante o proprietário,
seria apenas um agrupamento de bens singulares, de átomos.
Por fim, Requião demonstra que no ordenamento jurídico italiano,
apesar das controvérsias doutrinárias, a azienda é vista como um patrimônio
unitário, um bem imaterial, e expõe seu abalizado parecer:
Somos de opinião que o estabelecimento comercial pertence à categoria dos bens móveis, transcendendo às unidades de coisas que o
compõem e são mantidas unidas pela destinação que lhes dá o em251
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presário, formando em decorrência dessa unidade um patrimônio
comercial, que deve ser classificado como incorpóreo. O estabelecimento comercial constitui, em nosso sentir, um bem incorpóreo,
constituído de um complexo de bens que não se fundem, mas mantém unitariamente sua individualidade própria.15
6
CONCLUSÃO
Em síntese – e não há, por óbvio, que se falar aqui em “conclusão” –
, procurou-se, sem ensaboadelas, desenvolver a natureza jurídica do fundo
de empresa. Foi aferido que se trata de uma universalidade de fato. Dissecou-se também conceito, histórico e terminologia, sempre objetivando munir
o estudo dos operadores atuantes na área do direito de empresa.
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 5.ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1991.
BRASIL, Etienne. Renovação das locações. Rio de Janeiro: A. Coelho
Branco Filho, 1937.
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1995.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2000.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de
comércio. 22.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, vol. 1, 440 p.
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 14.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, 992 p.
15 Ibidem, p. 250.
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DESAFIOS DO DIREITO DESPORTIVO
FRENTE À MODERNIZAÇÃO DAS RELAÇÕES
JURÍDICO-DESPORTIVAS
RICARDO DOS SANTOS VIANNA
Sumário
1. Introdução. 2. A organização desportiva. 3. Direito
desportivo. 4. Legislação desportiva brasileira. 5. A justiça desportiva no Brasil. 6. Conclusões. 7. Referências
bibliográficas.
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar o direito desportivo e a modernização das relações jurídico-desportivas, transmitindo a forma de aplicação das normas legais ao mundo desportivo. Tendo como base a pesquisa teórica, o texto analisa a natureza jurídica do direito desportivo e, em
relação à legislação desportiva brasileira, faz levantamento histórico e análise da Lei Geral do Desporto, com ênfase nas recentes alterações, incluindo sua contextualização no Código Civil vigente. Os resultados da pesquisa mostram que a modernização das relações jurídico-desportivas é importante para o sucesso da vultosa e significativa atividade empresarial
potencializada pelo setor desportivo.
Abstract
The article aim to analyze the Sporting Law and the modernization of
legal-sporting relationships, showing the enforcement of the legal rules to
the sports world. The legal nature of the Sporting Law is analyzed according
to the theoretical research and, regarding the Brazilian Sporting Legislation,
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 253-267
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2007
RICARDO DOS SANTOS VIANNA
a historical research and an analysis of the Sports General Law are
performed, emphasizing the recent changes, including its conceptualization
into the new Civil Code. The research results show that the modernization
of the legal-sporting relationships is important for the success of the profitable
and significant business activity powered by the sporting sector.
1
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal (CF) de 1988 abriu para o desporto um
novo cenário, de maior respeitabilidade e consideração na comunidade
jurídica.
A conquista da autonomia jurídico-desportiva alterou profundamente as relações institucionais dos protagonistas da comunidade desportiva,
libertando-os da submissão aos organismos estatais.
No esporte, em especial o futebol, observa-se um fenômeno sociocultural. A “indústria da bola” movimenta milhões de reais, gerando milhares de empregos.
Por outro lado, o crescimento desse campo, mormente naquilo que
concerne à administração do desporto de alto rendimento, tem ocasionado
alterações e inclusões incessantes na legislação desportiva.
Com a internacionalização das grandes competições, o espetáculo
desportivo passou a ser comercializado em escala mundial. O aporte de
capitais via publicidade e o grande interesse da mídia, notadamente televisiva,
transformaram-no em um negócio monumental.
Pretende-se aqui investigar o que vem ocorrendo no desporto brasileiro, da Lei Zico até as recentes alterações na Lei Pelé.
A escolha do tema se deve, sobretudo, à percepção de ser este
estudo um apoio aos profissionais que estão realizando pesquisas no contexto jurídico-desportivo nacional.
2
A ORGANIZAÇÃO DESPORTIVA
As atividades desportivas, a princípio, limitavam-se à prática do jogo,
em obediência, unicamente, às regras preestabelecidas: as regras ou as leis
do jogo. Com a evolução do desporto, sua disseminação e o próprio desenvolvimento histórico dos povos multiplicaram as competições e já não
se defrontavam tão-somente povos contra povos, e sim equipes contra
equipes, em um arremedo do que seriam mais tarde as associações.
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DESAFIOS DO DIREITO DESPORTIVO FRENTE À MODERNIZAÇÃO DAS ...
Formaram-se novas estruturas nas quais os clubes, para a consecução de seus fins desportivos, se agruparam em entidades dirigentes para
que houvesse ordem nas competições e princípios que regulassem, não
mais a própria disputa, que já tinha seu ordenamento nas regras, mas toda
a atividade desportiva. Nasceram as entidades de direção nacional, com
estrutura, organização, competência, poderes explícitos sobre os clubes
agrupados e sobre os indivíduos exercentes da atividade desportiva.
Nesse quadro surgiu o desporto rompendo fronteiras, abrindo as
portas das competições internacionais, criando um mundo desportivo.
Atletas, dirigentes, clubes e entidades de direção, vindos de todas as
nações, desejavam se reunir em torno de uma instituição internacional que
tivesse no desporto sua razão de ser, que fosse independente de governos,
que adotasse seus próprios princípios, que editasse as suas leis.
Surgiram, então, as entidades internacionais de direção dos desportos. A primeira delas foi a Union Cycliste Internationale, fundada em 1885;
em 1894, foi fundado o Comitê Olímpico Internacional (COI) e, em 1904,
a Fédération Internationale de Football Association (Fifa), dentre tantas
outras.
Com essas mudanças nasceu o direito desportivo, complexo de normas e regras que regem o desporto no mundo inteiro e cuja inobservância
pode acarretar a marginalização de associações nacionais do concerto
mundial desportivo.
(...) o Direito Desportivo organizou instituições suas, peculiares, que
velam pela regularidade e exação dos seus preceitos e dispõe de
uma constituição própria – clubes, ligas, federações e confederações – cada qual com administração regular, de tipo eletivo e democrático, além de um código penal seu, como se tivessem a seu lado o
poder do Estado. Direito vivo, pois.1
A legislação do desporto salvaguarda o reconhecimento do direito
desportivo, cujo caráter ecumênico semelhante ao direito canônico é desprovido de cunho nacional. Os mandamentos dos organismos que coman1
OLIVEIRA VIANNA, F. J. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record, 1950,
p. 33.
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RICARDO DOS SANTOS VIANNA
dam universalmente as atividades inerentes ao desporto atendem a influências sociais estranhas à ordem institucional dos Estados.
A função atribuída ao desporto pode ser mais bem analisada em um
país como o Brasil, onde uma partida de futebol, de vôlei, ou mesmo uma
corrida de Fórmula 1, são aspectos catalisadores de todas as tensões dos
aficionados pelo desporto. As datas são sempre associadas a acontecimentos esportivos; parte da população é capaz de lembrar a história da
seleção brasileira, mas não sabe citar um acontecimento importante da história do país
A projeção do desporto no domínio jurídico é recente, o que faz
com que os campos clássicos do direito, como é habitual em relação a
novos campos jurídicos, imponham certas reservas à formação de um direito desportivo.
O constitucionalista Pinto Ferreira, conceitua desporto da seguinte
forma:
Dá-se o nome de desporto ao conjunto de exercícios físicos praticados com método, individualmente ou em equipe, com observância
de determinadas regras específicas, tendo por finalidade acima de
tudo desenvolver a força muscular, a coragem, a resistência, a agilidade e a destreza, com vistas ainda ao desenvolvimento físico do
indivíduo.2
No título Da Ordem Social, Capítulo III, Seção III, intitulada Do
Desporto a CF deu tratamento especial para o desporto ao trazer em seu
art. 217 novas diretrizes para o Brasil.
Ao Estado foi conferido o dever de fomentar (ação de estimular,
promover ou proteger uma coisa) práticas desportivas; concomitantemente,
foi atribuído ao cidadão um direito. Assim, com a reconhecida importância
do desporto na vida social passou a ser necessário regulamentá-lo como
atividade de extrema necessidade, cuja prática é, ao mesmo tempo, um
direito fundamental dos cidadãos e um dever do Estado. Aos dirigentes
desportivos e entidades envolvidas, a missão de adequar o direito desportivo
à necessidade prática do segmento e à norma constitucional.
2
PINTO FERREIRA. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995,
vol. 7, p. 177.
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3
DIREITO DESPORTIVO
O direito desportivo nunca foi tão prestigiado e, mais do que isso,
respeitado. Oliveira Vianna menciona sobre o direito desportivo:
Dominados pela preocupação do direito escrito, não vendo nada
mais além da lei, os nossos juristas esquecem este vasto submundo
do direito costumeiro do nosso povo, de cuja capacidade criadora o
Direito Desportivo é um dos mais belos exemplos. (...) organizou
instituições suas, peculiares, que velam pela regularidade e exação
dos seus preceitos e dispõe de uma constituição própria – clubes,
ligas, federações e confederações (...).3
O direto desportivo é conceituado por Melo Filho como “um conjunto de técnicas, regras, instrumentos jurídicos sistematizados, que tenham
por fim disciplinar os comportamentos exigíveis na prática dos desportos
em suas diversas modalidades”4.
A existência, no sistema jurídico, do direito desportivo, é mais bem
evidenciada quando se observa que esse ramo do direito possui autonomia
em diversos âmbitos de sua formação. Melo Filho define tais âmbitos em
que o direito desportivo tem autonomia inconteste, em que é independente
de codificação para a sua efetivação, como é observável em vários outros
setores do direito positivo. Coloca que hoje é uma disciplina integrante de
muitos currículos de cursos de direito e de educação física5.
O campo de atuação do direito desportivo para os profissionais da
área consolidou-se e é cada vez mais atraente.
Ao mesmo tempo em que está sujeito ao ordenamento jurídico soberano do país, o desporto brasileiro deve seguir as disposições
estabelecidas por estatutos das entidades internacionais.
Para que as entidades nacionais possam fazer parte de competições
internacionais, devem obedecer aos regulamentos internacionais de cada
modalidade, sob pena de não participar da prática desportiva.
3
4
5
OLIVEIRA VIANNA, F. J. Op. cit., p. 19.
MELO FILHO, Álvaro. Direito desportivo atual. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 6.
MELO FILHO, Álvaro. Alcance e aplicabilidade do direito desportivo. In: AIDAR, Carlos
Miguel (Coord.). Direito desportivo. São Paulo-Campinas: Mizuno, 2000, p. 175.
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RICARDO DOS SANTOS VIANNA
A subordinação de entidades locais, regionais e nacionais de cada
modalidade, às regras e normas das respectivas entidades internacionais é
uma decorrência necessária no ordenamento jurídico-desportivo brasileiro.
Em relação a esse direito internacional desportivo, Bernardo Mata
Schuch elucida que:
de fato, uma assídua representação da pátria em eventos internacionais concede margem para o estabelecimento de tratativas quase
que diplomáticas, não esquecendo, ademais, da necessidade do cumprimento de regras externas, principalmente aquelas ditadas por organismos internacionais tais como a FIFA e o COI, cuja obediência
vai depender, na esfera mundial, do reconhecimento da validade dos
atos praticados por tais associações.6
A soberania, caracterizada pela supremacia nacional na organização
da prática desportiva, preconizada no art. 2º, inciso I, da Lei Pelé, acaba
não sendo efetivamente observada.
As regras desportivas internacionais como fontes autônomas do direito desportivo são aplicáveis às federações filiadas e aos desportistas por
meio da cúpula das duas grandes estruturas hierárquicas, quais sejam: o
COI e as federações mundiais especializadas.
Com o COI, as federações internacionais dos desportos funcionam
como órgãos para regular a prática e estabelecer as regras dos desportos
pelas quais é responsável. Entretanto, são entidades totalmente independentes.
Quanto às federações internacionais, cada uma tem o poder de elaborar as regras, modificá-las ou extingui-las, além de fazer com que sejam
cumpridas.
As entidades internacionais de cada modalidade estabelecem preceitos, dentre eles, a renúncia, por parte das entidades nacionais, do direito
de recorrer à justiça interna, devendo submeter os eventuais litígios à apreciação de árbitros escolhidos para tal fim.
De acordo com o Estatuto da Fifa, art. 59, in verbis:
6
SCHUCH, Bernardo Mata. Direito desportivo: natureza, tendência e áreas de atuação,
maio1996. Disponível em: <www. direitodesportivo.com.br>. Acesso em: set. 2005.
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as associações nacionais, clubes ou membros de clubes não estarão
autorizados a apresentar diante dos tribunais ordinários os litígios
que tenham com a federação ou com outras associações, clubes ou
membros de clubes, comprometendo-se a submeter cada um destes
litígios a um tribunal arbitral nomeado de comum acordo.
Se de um lado há proibição oriunda de uma norma do direito internacional, de outro há ditames no ordenamento nacional, mais precisamente
na CF, art. 5º, inciso XXXV, segundo o qual não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer ameaça ao direito.
A CBF, em cumprimento à determinação da Fifa, inseriu no seu estatuto o art. 6º:
Art. 6º. Todas as entidades e associações direta ou indiretamente
vinculadas à CBF devem abster-se de postular e recorrer ao Poder
Judiciário para dirimir eventuais litígios desportivos que tenham com
a CBF, com outras federações, ligas ou clubes, e, apesar da permissão da legislação brasileira, comprometem-se a aceitar as decisões
da Justiça Desportiva como únicas e definitivas para resolver os conflitos ou litígios de natureza desportiva, conscientes das conseqüências que podem advir da inobservância do art. 59 do Estatuto da
FIFA.
A dinâmica da atividade desportiva exige celeridade no exame de
seus processos. O conteúdo da matéria requer de seus julgadores conhecimento específico e vivência de normas e práticas do desporto. A proliferação de ações na justiça comum, direito básico de qualquer pessoa, traz
seqüelas irreparáveis às competições, que têm seu andamento prejudicado.
Alguns sustentam a injuridicidade desse dispositivo, assim como do
art. 59 da Fifa, por afrontar a soberania nacional dos países onde as associações nacionais têm sede, contudo, deve-se adaptar à realidade,
objetivando o progresso do desporto internacional.
É importante destacar que a Constituição da República Federativa
do Brasil é a única a inserir a Justiça Desportiva em seu texto.
Apesar de o mundo desportivo ter aumentado muito o seu prestígio,
possui ainda suporte jurídico frágil e inacabado. Além disso, é um campo
um tanto quanto desassistido, a fonte doutrinária é escassa e a referência
jurisprudencial, incipiente.
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LEGISLAÇÃO DESPORTIVA BRASILEIRA
Na história da legislação desportiva no Brasil, com exceção do futebol, que possui normatização razoável, os esportes são marcados pela escassez de diplomas legais para disciplinar suas atividades.
Em 1916, foi fundada a CBD, resultado da fusão da Federação Brasileira de Sports e da Federação Brasileira de Futebol (FBF). A
profissionalização do futebol aconteceu em 1933, sem qualquer regulamentação legal. A legislação desportiva brasileira teve seu primeiro registro
histórico com a criação do Conselho Nacional de Cultura (Decreto-Lei nº
526/38), porém, um ano depois, com o Decreto-Lei nº 1.056, instituidor
da Comissão Nacional de Desportos, é que realmente nasceu a legislação
desportiva brasileira.
Em 1941, houve um grande avanço no direito desportivo, com a
promulgação do Decreto-Lei nº 3.199, que estabeleceu as bases da organização dos desportos em todo o país e criou o Conselho Nacional de
Desportos (CND), representado nos Estados pelos conselhos regionais.
Em outubro de 1941, por meio da Portaria Ministerial nº 254, ficou determinado que as confederações e federações desportivas deveriam adotar
um código de disciplina e penalidades, e um manual específico com todos
os direitos e deveres dos atletas profissionais.
Em 1943, o Decreto-Lei nº 5.342 tratou da competência do CND e
da disciplina das atividades desportivas; essa legislação era de teor essencialmente concentracionista, autoritário e intervencionista. Além de submeter em seus artigos iniciais a total centralização do desporto ao CND, exigia das sociedades desportivas, no seu art. 4º, a obrigatoriedade de licença
para funcionar por meio de alvará, expedido pelo conselho competente,
renovado anualmente; o Decreto-Lei nº 7.674/45 impôs a obrigatoriedade
da existência de órgão fiscalizador nas entidades e associações desportivas.
Ainda no mesmo ano, encerrando a primeira fase da legislação desportiva
brasileira, o Decreto nº 19.425 aprovou o Regimento do CND; o Decreto-Lei nº 8.458 dispôs sobre o registro dos estatutos das entidades e associações desportivas, condicionando a efetivação do registro e a conseqüente regularidade à prévia aprovação do órgão competente.
O segundo período do ordenamento jurídico-desportivo no Brasil
trouxe em seu bojo as marcas do autoritarismo do período militar, fazendo
transparecer o caráter intervencionista do Estado.
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A primeira norma regulamentadora a tratar do atleta profissional de
futebol foi o Decreto nº 51.008/61, que disciplinou as competições
desportivas de futebol em relação ao horário de realização, intervalo entre
partidas e recesso obrigatório para os atletas. O Decreto nº 53.820/64
tratou da cessão do jogador, condicionando-a de prévia e expressa anuência
do interessado; reconheceu a figura da participação indenizatória no “passe” do atleta; necessário acrescer a essa síntese cronológica a deliberação
CND 9/67, que dispôs sobre a participação do jogador profissional de
futebol no passe, ficando o normativo conhecido como Lei do Passe.
A CF de 1967, limitou-se a outorgar competência à União de legislar “normas gerais sobre desportos”, o que só se concretizou com a edição
da Lei nº 6.251/75, regulamentada pelo Decreto nº 80.228/77. Disciplinou
a política nacional e o plano nacional de educação física e dos desportos;
referendou espírito da lei anterior, dando continuidade à marcante presença estatal, tutelando e centralizando a organização desportiva. Expandiu o
poder disciplinador do CND, atribuindo-lhe funções normativas, de fiscalização, controle e de julgamento das matérias desportivas, condensando
em um único órgão todas as funções que na normalidade das instituições da
República são divididas em três poderes distintos.
A Lei nº 5.939/73 dispôs sobre a seguridade social dos jogadores
profissionais do futebol. Versando também sobre os atletas profissionais,
destacaram-se duas leis: a Lei nº 6.269/75 regulamentada pelo Decreto nº
77.774/76, que instituiu o sistema de assistência complementar ao atleta
profissional; e a Lei nº 6.354/76, que tratou das relações de trabalho do
atleta profissional de futebol, seus direitos e obrigações contratuais; e disciplinou a polêmica figura do passe.
Concernente aos códigos de disciplina desportiva, dois foram os diplomas: o CBDF, exclusivamente para o futebol e o CBJDD, para as demais modalidades desportivas.
A Portaria do Ministério da Educação nº 531/85 dispõe sobre normas de controle de utilização de substâncias dopantes.
Cabe ressaltar as deliberações e resoluções do CND, que entre outubro de 1941 e setembro 1990 somam 431 atos normativos, maculados
pelo intervencionismo disciplinador e centralizador do Estado. A Resolução nº 03/90 revogou, de uma só vez, 400 desses atos, acabando com a
ultrapassada legislação infralegal do CND. Os 31 remanescentes foram
definitivamente revogados com o Decreto nº 2.574/98.
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Com a CF de 1988, começou a terceira fase do ordenamento jurídico-desportivo brasileiro, um grande avanço do direito desportivo e da autonomia desportiva.
A primeira norma desportiva decorrente da inserção constitucional
da matéria desportiva se deu pela Resolução ME/CND nº 3/89, que tratou
de uniformizar questões relativas à disciplina desportiva.
Na década de 90, o desporto teve representação destacada na estrutura da República com a criação da Secretaria de Esportes, órgão vinculado à Presidência da República; o escolhido para titular da pasta foi o
ex-jogador Zico.
Surgida da iniciativa de segmentos interessados e objeto de consulta
ampla à comunidade desportiva, a Lei nº 8.672/93 ficou conhecida como
Lei Zico. Diploma jurídico de esmerada confecção, regulamentou o art.
217 da CF/88, especialmente seu inciso I. Essa lei, muito mais do que
instituir normas gerais sobre o desporto, reuniu diretrizes normativas democráticas, ajustando-se às aspirações contemporâneas, tornando-se instrumento de modernização do desporto nacional, abrindo horizontes para
a atividade desportiva empresarial.
Como pontos de destaque dessa lei, vale ressaltar a faculdade concedida aos clubes de se tornarem empresas, a previsão do fim da Lei do
Passe, e a supressão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Em de março de 1998, revogando expressa e totalmente a Lei Zico,
foi promulgada a Lei nº 9.615, conhecida como Lei Pelé. Esta lei, regulamentada pelo Decreto nº 2.574/98, igualmente instituiu normas gerais sobre o desporto, resguardando cerca de 80% do texto original da Lei Zico.
Os pontos de destaque da Lei Pelé são o art. 27, sobre a obrigatoriedade
de as entidades de prática desportiva participantes de competições que
envolvem atletas profissionais se tornarem sociedades com fins lucrativos,
e a extinção do passe do atleta profissional, constante do parágrafo 2º do
art. 28.
A Lei nº 9.981/00 alterou dispositivos da Lei Pelé e reiniciou a discussão do já mencionado art. 27 da Lei de 1998, estabelecendo, como
faculdade para as entidades, a conversão em sociedades com fins econômicos; extinguiu a inédita e estranha figura do semiprofissional; retirou da
autarquia desportiva, Indesp, a incumbência de autorizar e fiscalizar os
bingos, outorgando-a à Caixa Econômica Federal.
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Em março de 2001 foi editada a MP nº 2.141, que introduziu na
legislação pátria salvaguarda já praticada na Comunidade Européia e prevista no estatuto da Fifa, prevendo indenização de formação ao clube formador do atleta.
A Lei nº 10.220/01 reconheceu a profissão de peão de rodeio, equiparando-o ao atleta profissional.
Pela Lei nº 10.264/01, o desporto olímpico foi agraciado com vultosa fonte de recursos: 2% da arrecadação das loterias federais; o Decreto
nº 3.944/01 regulamentou o art. 20 da Lei Pelé, dispondo sobre as ligas
profissionais.
Das alterações ocorridas na Lei Pelé a mais polêmica foi a MP nº 39/
02, tanto assim que teve seu projeto de conversão em lei rejeitado pelo
Congresso. Com a intenção de caracterizar a natureza eminentemente empresarial da gestão do desporto e do relevante interesse social, inclusive
atribuindo competência ao Ministério Público para conhecer fatos relacionados ao desporto, tornou compulsória para entidades de prática e ligas, a
constituição de sociedade comercial ou a contratação de sociedade comercial para administrar suas atividades profissionais, sob pena de serem
equiparadas às sociedades irregulares.
A MP nº 79/02 enquadra a exploração e gestão do desporto profissional no conceito de empresário do CC vigente; com essa nova MP, desaparece a obrigatoriedade e retorna a faculdade de as entidades desportivas
profissionais organizarem-se como sociedades com fins econômicos. Apesar da liberdade de se transformarem ou não em sociedades empresárias,
somente mediante tal adaptação seria possível obter empréstimos, financiamentos e patrocínios de entidade governamental; além de não poderem
contar com ressarcimento por formação de atleta, sujeitar-se-iam ao regime de sociedade em comum, aplicando-se a responsabilidade solidária e
ilimitada, aos dirigentes e aos sócios, dependendo da interpretação.
Em maio de 2003, duas novas leis passaram a integrar o Direito
Desportivo: Lei nº 10.671, conhecida como Estatuto do Torcedor, estabelecendo paralelismo com a Lei do Consumidor; outra, de mesma data, Lei
nº 10.672, teve origem na MP nº 79 por meio de projeto de conversão,
aproveitando diversos dispositivos dessa MP, bem como da MP nº 39 e da
MP nº 2.193. A nova lei confirma o espírito empresarial da gestão do desporto profissional, reafirma os princípios de transparência, moralidade e
responsabilidade dos dirigentes, reforma as alterações do art. 27 dispondo
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que as entidades profissionalizadas do desporto, independentemente da
forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes aos
efeitos do princípio da desconsideração da pessoa jurídica.
Por essa última interferência legislativa está a Lei Geral do Desporto
composta pela originária Lei Pelé, Lei nº 9.615, com significativas modificações pelas leis nº 9.981 e nº 10.672, além da regulamentação de seu art.
20 (ligas profissionais), pelo Decreto nº 3.944 e pela chamada Lei Piva,
Lei nº 10.264, que alterou seu art. 56, que trata de verbas para o esporte,
certamente longe de uma situação estável e de perenidade nas regras desse
novo ramo do direito.
5
A JUSTIÇA DESPORTIVA NO BRASIL
À medida que o esporte foi se tornando uma realidade social, cultural, política e econômica tornou-se imprescindível a criação, a organização
e o funcionamento da Justiça Desportiva, instituição responsável pela observância das normas disciplinares e administrativas.
Álvaro Melo Filho, para delimitar as competências da Justiça
Desportiva e da Justiça Estadual, define as espécies de lides que se enquadram nos conceitos de disciplina e de competições desportivas:
Ações relativas à disciplina são as condutas comissivas ou omissivas,
que prejudiquem de qualquer modo, o desenvolvimento normal das
relações desportivas, ou atentem contra o decoro ou dignidade, contrariando normas dos códigos de Justiça Desportiva. Ações relativas
às competições desportivas são as condutas comissivas ou omissivas,
que importem em desrespeito, descumprimento ou perturbação às
regras oficiais de jogo ou ao desenvolvimento normal das atividades
competitiva, desde que tais faltas e sanções estejam previstas nos
Códigos de Justiça Desportiva.7
Com a CF/88, em seu art. 217, parágrafos 1º e 2º, o esporte teve o
seu maior reconhecimento. A previsão constitucional foi um forte instrumento de validade, eficácia e legitimidade da Justiça Desportiva.
7
MELO FILHO, Álvaro. Lei Pelé: comentários à Lei nº 9.615 de 1998. Brasília: Brasília
Jurídica, 1998, p. 141.
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A CF/88 valorizou a JD ao determinar que o Poder Judiciário só
poderá aceitar ações relativas à disciplina e às competições desportivas
após tais fatos terem sido objeto de apreciação final em suas instâncias.
Contudo, a Constituição impôs um prazo máximo (60 dias) para que a
Justiça Desportiva profira uma decisão final a respeito das ações a ela
submetidas.
Ao contrário do que possa parecer, a Justiça Desportiva não integra
o Poder Judiciário, muito menos o Executivo ou o Legislativo. Na verdade,
a Justiça Desportiva é uma instituição de direito privado, dotada de interesse público, ligada às entidades de prática desportiva.
Posterior à Constituição, a Lei nº 8.028/90, no seu art. 33, determinou que a Lei Geral disporia sobre a Justiça Desportiva e a Lei Zico, estabeleceu, em seu art. 34, que a “organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitada ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos em códigos”.
As atribuições da Justiça Desportiva eram definidas por dois códigos desportivos: o Código Brasileiro Disciplinar de Futebol (CBDF), que
regulava os procedimentos do futebol profissional, e o Código Brasileiro
de Justiça e Disciplina Desportiva (CBJDD), que regia as demais modalidades esportivas. Pela Resolução do Conselho Nacional do Esporte (CNE)
nº 1, de 2003, um único código disciplinar desportivo foi introduzido, unificando o sentido disciplinar independentemente da modalidade, estipulando regras mais rigorosas se comparadas com os códigos revogados.
Na atual conjuntura, a legislação atinente à Justiça Desportiva é a Lei
Pelé, que dedica todo o Capítulo VII à discussão da matéria, devendo ser
observadas as alterações trazidas pela Lei nº 9.981/00 e pela Lei nº 10.672/
03.
Assim, os órgãos judicantes são unidades autônomas e independentes das federações e confederações, segundo o caput do art. 52, compondo-se do STJD, funcionando junto de entidades nacionais de administração do desporto; dos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD), funcionando
junto de entidades regionais da administração do desporto; e das Comissões Disciplinares (CD), cuja competência é processar e julgar as questões
previstas nos Códigos de Justiça Desportiva. O STJD e os TJD serão
compostos por nove membros, sendo dois indicados pela liga, federação
ou confederação; dois indicados pelos clubes que participam de competições oficiais da divisão principal; dois advogados indicados pela OAB; um
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representante dos árbitros e dois representantes dos atletas, por estes indicados.
No caput desse artigo está assegurado o direito à ampla defesa e
ao contraditório, princípios constitucionais reafirmados como preceitos
básicos e obrigatórios também nessa justiça especializada.
Salienta-se que a Lei Zico previa, em seu art. 36, que apenas caberia
“recurso aos Tribunais Desportivos, assegurados o contraditório e a ampla
defesa”, não sendo tais princípios basilares assegurados na primeira instância (CD).
A Lei Pelé adotou solução adequada, assegurando de forma
insofismável, no parágrafo 2º do art. 53, a ampla defesa e o contraditório,
já na primeira instância, acabando de vez com tal distorção.
A Justiça Desportiva regulamentada e legalmente consolidada no
âmbito desportivo possui condição plena de dar solução satisfatória aos
conflitos, carecendo, entretanto, de efetiva e regular implementação e dotação de meios próprios, notadamente nos segmentos não profissionalizados.
6
CONCLUSÕES
No decorrer do estudo foi possível observar que na literatura pertinente o Direito Desportivo vem recebendo a importância devida, haja vista
a amplitude que toma esse fenômeno no país. Tendo a legislação desportiva
brasileira como premissa, a Lei Zico e a Lei Pelé passam obrigatoriamente
pela avaliação da Justiça Desportiva, de forma a aplicar as normas legais
da maneira mais próxima da realidade.
Esse aspecto permitiu verificar, do ponto de vista do desporto brasileiro, que a extensão universal alcançada pelo desporto e sua transcendência
converteram-no em fenômeno de influência inquestionável na realidade social, cultural, política e econômica.
De forma específica, o estudo sugeriu que o Direito Desportivo é um
campo que está crescendo vertiginosamente, mas é preciso haver
profissionalização e deixar de lado paixões “clubísticas” e interesses políticos que rondam essa lucrativa atividade.
O delineamento da discussão da Justiça Desportiva, longe de se resumir a um mero debate retórico, ganhou mais credibilidade com a sua
elevação ao patamar constitucional, ficando explicitamente consignada,
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contudo aguardando a efetiva estruturação e independência de seus órgãos
judicantes.
Deve-se destacar que os resultados de um estudo como este, ainda
em progresso, permitiu verificar que há muito a ser melhorado nesse campo, mas os últimos acontecimentos mostram que há preocupação em acabar com a mistura de interesses e a utilização política inadequada que existe
no desporto, buscando-se eficiência, transparência, moralidade e profissionalismo, o que faz com que se tenha esperança de ver o esporte alçado ao
patamar que lhe cabe ocupar na sociedade contemporânea.
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELO FILHO, Álvaro. Alcance e aplicabilidade do direito desportivo. In:
AIDAR, Carlos Miguel (Coord.). Direito desportivo. São Paulo-Campinas: Mizuno, 2000.
MELO FILHO, Álvaro. Direito desportivo atual. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
MELO FILHO, Álvaro. Lei Pelé: comentários à Lei nº 9.615 de 1998.
Brasília: Brasília Jurídica, 1998.
OLIVEIRA VIANNA, F. J. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record, 1950.
PINTO FERREIRA. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995, vol. 7.
SCHUCH, Bernardo Mata. Direito desportivo: natureza, tendência e áreas
de atuação, maio 1996. Disponível em: <www.direitodesportivo.com.br>.
Acesso em: set. 2005.
WILL, Michael R. Normas desportivas internacionais e do direito interno. Tradução de José Ângelo Estrella Faria, a.26, nº 103, jul./set. Brasília,
1989.
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DO CONTRATO COM PESSOA À DECLARAR
RENATA SILVA SOUZA
Sumário
1. Intodução 2. Histórico 3. Da Natureza Jurídica
4. Aspectos Tributários
Resumo
Com a vigência do Código Civil de 2002, o legislador brasileiro previu expressamente, pela primeira vez, na parte geral dos contratos, artigos
467 a 471, a figura jurídica do ‘Contrato com Pessoa a Declarar’. Essa
espécie de contrato é amplamente utilizada, de fato, na sociedade brasileira, mas somente agora foi codificada no mencionado diploma legal e por
ser uma novidade no nosso ordenamento jurídico, tornou-se objeto deste
trabalho.
O aspecto principal deste estudo é a responsabilidade das partes
envolvidas nos ‘contratos com pessoa a declarar’, pois o terceiro indicado
como verdadeiro contratante pode aceitar ou não a nomeação, ser incapaz, ou mesmo insolvente, surgindo daí a responsabilidade para o contratante originário. Todavia, para delimitar a responsabilidade das partes nos
contratos com pessoa a declarar, fez-se necessário um estudo mais amplo
sobre os direitos e obrigações decorrentes de todos os contratos em geral.
Ao final, foi abordado o aspecto tributário, isto é, a responsabilidade
dos envolvidos no ‘contrato com pessoa a declarar’ em face do fisco, porque na maioria dos contratos dessa natureza, ocorre a troca da titularidade
jurídica do bem, e essa troca faz nascer a obrigação de recolher o respectivo tributo, mas também forma de burlar o fisco.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 269-277
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2006
RENATA SILVA SOUZA
Abstract
With the validity of the Civil Code of 2002, the Brazilian legislator
foresaw express, for the first time, in the general part of contracts, articles
467 the 471, the legal figure of Contract with Person to Declare. This contract
species widely is used, in fact, in the Brazilian society, but now it was only
codified in the mentioned statute and for being a newness in our legal system,
object of this work became.
The main aspect of this study is the responsibility of the involved
parts in contracts with person to declare, therefore third indicated as true
contractor can accept or not it nomination, being incapable, or exactly
insolvent, appearing from there the responsibility for the originary contractor.
However, to delimit the responsibility of the parts in contracts with person
to declare, one in general became necessary a ampler study on the rights
and decurrent obligations of all the contracts.
To the end, the aspect was boarded tributary, that is, the responsibility
of involved in the contract with person to declare in face of the treasury
department, because in the majority of contracts of this nature, the exchange
of the legal title of the good occurs, and this exchange makes to be born the
obligation to collect respective the tribute, but also form of burlar the treasury
department.
1
INTRODUÇÃO
O Código Civil de 2002, nos arts. 467 a 471, dispõe sobre o contrato com pessoa a declarar estabelecendo que: “No momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as obrigações dele
decorrente”.
A indicação do nome da pessoa deverá ser por escrito e a comunicação a ela, feita em um prazo de 5 (cinco) dias a partir da conclusão do
contrato ou se outro prazo não tiver sido convencionado.
Feita a nomeação segundo os requisitos estabelecidos na lei, a pessoa indicada passará a ter, perante o promitente, todos os direitos e deveres oriundos do contrato, a partir de sua constituição, liberando o indicante
de quaisquer ônus resultante do contrato.
No contrato com pessoa a declarar, se não tiver sido declarada a
pessoa que substituirá o promitente ou houver recusa da nomeação, ele
passará a ter eficácia apenas entre as partes originariamente contratantes.
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DO CONTRATO COM PESSOA E DECLARAR
Quem nomeia o terceiro responderá pelas obrigações decorrentes
do pacto, no caso desse terceiro ser inidôneo, insolvente ou incapaz no
momento da nomeação.
O nomeante, por seu turno, aceitará o risco da insolvência do indicado e, sob o respaldo do princípio da boa-fé, a cláusula da responsabilidade
no que se refere àquele estará ínsita no pacto contratual, daí que, quem
nomeia terceiro responderá pela sua inidoneidade ou insolvência (art. 471,
2ª parte, Código Civil de 2002). Nessa hipótese, a cláusula de nomeação
tornar-se-á ineficaz, e o contrato passará a ter efeito apenas entre as partes
originariamente contratantes.
2
HISTÓRICO
O contrato com pessoa a declarar surgiu na Idade Média e a sua
finalidade precípua era beneficiar uma terceira pessoa que, no momento da
concretização do contrato, não figurava como parte na relação jurídica
originária. Em princípio, sem uma caracterização específica, passou a ser
denominado “contrato por pessoa a nomear” ou “contrato para pessoa
que se designará”, mas foi objeto de pouco estudo porque não se vislumbrava grande utilidade para a sociedade da época. Era utilizado apenas em
hasta pública ou leilões e ao longo do tempo estendeu-se para o campo
das relações privadas, constituindo verdadeiro direito consuetudinário.
O direito romano não admitia as estipulações feitas a terceiros - nemo
alteri stipulari non potest, razão pela qual não conheceu o contrato em
questão. Nesse caso, o contrato significava uma idéia eminentemente pessoal e restrita às partes contratantes. A repulsa ao terceiro era justificada
porque aquele que contrata por outrem não se torna credor por causa da
falta de interesse na operação e a pessoa em favor de quem se contrata
também se torna impossível ser credora por não ter assistido ao contrato e
conseqüentemente não ter consentido. Logo, os contratos assim celebrados eram nulos.
Na atualidade, o direito italiano foi o primeiro a consagrar o contrato
com pessoa a declarar, tal como noticia Enrietti (1956)1:
1
ENRIETTI, Enrico. Il contratto per persona nominare. Torino, Italia: G. Giappichelli
Editore, 1956, p. 29.
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RENATA SILVA SOUZA
La figura del contratto per persona da nominare nasce nel diritto
comune e si sviluppa, predendendo consistenza e precisione di
dettaglhi, atraverso le droit coutumier.
(...)
Nato in Italia, questo contrattto si diffuse rapidamente in numoerse
altre regioni.
Così Fabro ci dice che il contratto per persona da nominare ebbe
súbito larga difusione nelle regioni della Savoia; mentre Voët e
Gornenewgwn attestano Che tale contratto è freqüente in Olanda e
nelle regioni vicine.
Altrettanto avvene nella Spagana.
E’ certo poi che il paese in cui il contratto avec éléction de command
ebbe la piú larga elbarazione e venne ad acquistare notevole
precisazione di funzionamento tecnico e di caratteri giuridici fu la
Francia, specie nel periodo del droit coutumier (infra).
E’ infine, da ricordare che anche in numerose localitá della Svizzera
fu assai diffusa la vente pour soi ou pour son nommable, e gli scritori
svizzeri sono concordi nel retinere che tale contratto ‘etait semblable
aux opérations du même ordre quei se faisaient em Itale, em France
et em Savoie: in qualche regione della Svizzera furono anche emanate
norme specifiche per disciplinare tale contratto (così, nel Pays de
Vaud e a Genève).
Em Portugal, não houve previsão no Código Civil de 1867, mas
estava previsto no Código Comercial (art. 465). Atualmente está previsto
no Código Civil português de 1966 em vigor.
O Código de Napoleão foi silente, mas a doutrina e a prática francesas reconheceram essa modalidade de contrato, tratando do tema em lei
tributária esparsa porque visava evitar a incidência de duplo imposto em
caso de transmissão de direitos patrimoniais. A Alemanha também não regulamentou o instituto, mas criou uma figura semelhante denominada “indicação do comprador reservado”. O Código Civil peruano de 1984 consagrou o instituto nos arts. 1.473 a 1.476 e o Código Civil boliviano dispôs
sobre a matéria em três artigos.
2
MESSINEO, Francesco. Doctrina general del contrato. T. I. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952, p. 278.
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DO CONTRATO COM PESSOA E DECLARAR
3
DA NATUREZA JURÍDICA
No que diz respeito à natureza jurídica do contrato em questão, Guy
Flattet afirma que ele tem uma especial característica que é a de fazer surgirem
direitos em benefícios de outrem. Enrietti defende a posição, muito criticada
por outros juristas, de que existem dois contratos estabelecidos em forma alternativa. Mesmo havendo várias opiniões sobre a natureza jurídica do referido
contrato, a maior parte da doutrina estrangeira, liderada por Montes, entende
que existe apenas um único contrato, e não dois, como muitos afirmam.
No Brasil, há outores que afirmam tratar-se de um contrato em favor
de terceiro; Messineo (1952)2 esclarece:
La figura que estamos examinando, no es: a) un caso de representación; b) no estampouco representación indireta (comissión); c)
no es um caso de gestión de negócios ajenos; d) no es um caso de
contrato a favor de tercero; e) no es tampouco promesa de um hecho
del tercero; f) no es, finalmente, un caso de interposición fictícia de
persona; g) el contrato por persona da nombrar ofrece alguna analogía
también con el contrato por cuenta de quien corresponda.
Os contratos com pessoa a declarar possibilitam que os corretores
adquiram imóveis para serem revendidos sem o recolhimento dos gravosos
encargos tributários decorrentes da troca da titularidade dos bens imóveis;
evitam que o dono de um imóvel, em razão da condição pessoal do candidato à eventual aquisição do bem, venda-o por preço muito superior ao
valor efetivo dele; possibilitam ao condômino que recorra a outrem para
adquirir, para si, a quota do co-proprietário; evitam gravosa taxação por
dupla alienação quando o comprador já adquire com a intenção de logo
revender o imóvel a quem melhor preço lhe oferecer; possibilitam o
favorecimento da intermediação nos negócios e regularizam as aquisições
em leilões e hastas públicas, de modo a permitir ao vencedor do lanço que
apresente o pedido de entrega ou adjudicação do bem em nome do verdadeiro adquirente, o que descaracterizaria o negócio jurídico ou mesmo a
fraude da lei, tão comum nesse tipo de operação; regularizam a venda de
automóveis em agência que não permite seja o recibo de compra e venda
emitido em seu nome, deixando-o em branco para preenchê-lo com o comprador, a quem revenderá, permanecendo insciente o vendedor do nome
de sua contraparte.
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O contrato com pessoa a declarar não pode ser confundido com a
cessão de contrato, mandato, representação, gestão de negócios, mediação, corretagem e estipulação em favor de terceiro.
Na cessão de contrato, diferente do que ocorre na cessão de crédito
ou de débito, o cedente transfere a sua própria posição contratual a um
terceiro, que passará a substituí-lo na relação jurídica originária. A cessão
do contrato se opera necessariamente com o consentimento do cessionário,
ao passo que o contrato com pessoa a declarar forma-se independentemente da concordância do nomeado. Também não se confunde com o
mandato, pois nesse, “(...) alguém recebe de outrem poderes para, em seu
nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato” (art. 653 do Código Civil de 2002).
A idéia de representação distingue o contrato de mandato dos
outros contratos principalmente pelas conseqüências fundamentais que
lhe são inerentes. O mandato é um contrato consensual, não solene,
intuitu personae, gratuito e unilateral, não se confunde o contrato
com pessoa a declarar com a figura do mandato porque neste o mandatário declara desde logo o nome do mandante, que não será nem
oculto, nem incerto.
No mandato, não existe prazo fixado para a designação do mandante e se esse não é designado, o mandatário, caso adquira algum bem nessa
qualidade, nunca será seu dono, como acontece com o contrato com pessoa a declarar.
Da mesma forma não se confunde com a representação (direta ou
indireta), porque no negócio representativo os efeitos recaem na pessoa do
representado, ao passo que no contrato com pessoa a declarar os efeitos
recaem sobre o estipulante ou sobre a pessoa nomeada. Ponto diferencial
significativo se situa no fato de que no contrato com pessoa a declarar não
existe representação direta porque ele se apresenta concluído em nome
próprio.
Vê-se, pois, que na representação a parte contratante sabe que o
contrato está sendo celebrado em nome de outrem, devidamente identificado, ao passo que no contrato com pessoa a declarar é celebrado em
nome do primitivo contratante e posteriormente aparece a figura do terceiro.
De igual forma, não há qualquer similitude com o contrato de gestão
de negócios porque nesse alguém age em nome de outrem sem ter mandato para tal. É bem verdade que o contrato de gestão de negócios não é
considerado um verdadeiro contrato, pois lhe falta o elemento básico, ou
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seja, o prévio acordo de vontades entre as partes, indispensável para a
configuração do vínculo contratual. Como o gestor assume de livre vontade a administração do negócio alheio, não se pode falar em manifestação
conjunta de vontades.
Diferencia-se a gestão de negócios do contrato com pessoa a declarar porque o nome do gestor deve ser revelado e enquanto não houver a
ratificação do negócio jurídico por ele, gestor, o contrato ficará pendente.
No contrato com pessoa a declarar os efeitos serão produzidos de imediato à declaração de vontade, tornando, portanto, o negócio perfeito e válido entre as pessoas envolvidas.
No que diz respeito ao contrato de mediação, sabe-se que nele o
mediador é imparcial por não estar vinculado àqueles que pretendem efetivar entre si contrato futuro. A relação jurídica entre mediador e interessado
surge apenas com a conclusão do negócio. Trata-se de obrigação de fazer
que será efetivada com a convergência de interesses opostos ou mesmo
coincidentes entre duas pessoas.
A mediação se concretiza no momento em que surgir o acordo de
vontade entre os contratantes, ou seja, mediante a aproximação feita pelo
mediador; finda essa, restará concluída a função dessa modalidade de contrato. Na mediação, o mediador põe em contato as pessoas que querem
contratar, sem que haja vínculo ou poder entre elas. O mediador não tem
poder para se manifestar em nome de outro, nem assume a posição de
sujeito ativo ou passivo na relação negocial.
O contrato de corretagem tem os mesmos efeitos que o de mediação e também está disciplinado no art. 722 do Código Civil de 2002. Verifica-se que as diferenças são mais que evidentes, pois os corretores não
são mandatários e não estão obrigados a revelar o nome de seus comitentes
ou compradores. O contrato com pessoa a declarar não se confunde com
a estipulação em favor de terceiro, disciplinada pelo art. 436 do Código
Civil de 2002. Isso porque a estipulação em favor de terceiro se dá quando
em um contrato entre duas pessoas fica pactuado que a vantagem resultante do ajuste contratual reverterá em benefício de terceiro, estranho à convenção e nela não representado.
No contrato estipulado em favor de terceiro existem peculiaridades resultantes de obrigações recíprocas entre os contratantes, caso em
que apenas um deles assume o encargo de realizar a prestação em favor
do terceiro.
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A característica fundamental desse tipo de contrato em favor de terceiro repousa no fato de que tanto o estipulante como o terceiro beneficiário
pode exigir seu cumprimento, o que não acontece com o contrato com
pessoa a declarar. Naquele, o estipulante age em nome próprio atribuindo
ao beneficiário um simples direito. O estipulante e o promitente são os
únicos contratantes e o terceiro, mesmo depois de sua adesão ao pacto,
mantém-se estranho a ele. Nesse caso, o estipulante age em nome próprio.
No contrato com pessoa a declarar, ao contrário, uma vez aceita a nomeação, um dos contratantes desaparece, sendo substituído pelo nomeado
como se aquele nunca tivesse participado da negociação.
O art. 468 do Código Civil de 2002 prevê que a indicação do terceiro deve ser feita à outra parte no prazo de cinco dias da data da conclusão do contrato ou outro que as partes estabelecerem. Assim, ante a falta
de prazo convencional, prevalecerá o legal. Se não houvesse a previsão
legal de prazo, este seria judicial, isto é, designado pelo juiz, a contar da
data da interpelação do estipulante para fazer a nomeação. Entretanto, o
Código trouxe a solução caso houvesse a inércia do contratante em indicar
o terceiro.
O referido prazo é decadencial e exíguo; no Código Civil francês,
inclusive, ele é de vinte e quatro horas, pois a finalidade, conforme exposto,
é evitar manobras para prejudicar terceiro. No caso do direito brasileiro,
tal justificativa perdeu o sentido porque a lei previu prazo de cinco dias ou
outro que as partes estipularem.
Assim, a opção que o legislador deixou às partes para indicarem o
eleito, no prazo que melhor lhes convier, não induz ao entendimento de que
aquele possa ser desarrazoado, sob pena de ser configurado abuso do
direito.
4
ASPECTOS TRIBUTÁRIOS
Outro aspecto importante refere-se aos tributos decorrentes do contrato com pessoa a declarar. A responsabilidade pelo seu recolhimento
ocorrerá, em tese, a partir do momento em que for nomeada a pessoa que
passará a ser o verdadeiro e único adquirente. Muito embora esse seja o
momento inicial para se responsabilizar a pessoa nomeada, em se tratando
de bens imóveis, o tributo será devido a partir da transcrição no registro
competente, momento em que surge o sujeito passivo.
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Em virtude disso, na fase anterior à nomeação da pessoa indicada
para adquirir direitos e obrigações do contrato, não existe escrituração ou
registro desse contrato, não dando ensejo à criação do fato gerador do
ITBI ou mesmo do ICMS, isso porque, o objeto do contrato, na fase
anterior à nomeação, ainda não transmite o bem à pessoa designada, ou
seja, com a qualidade de sujeito passivo; e sem a determinação do sujeito
passivo não haverá como incidir a relação obrigacional.
No entanto, se a nomeação não foi realizada, por qualquer circunstância prevista no Código Civil de 2002, o contratante originário será o
responsável pelo tributo e pelo seu recolhimento, pois assume a posição do
verdadeiro adquirente.
Com relação ao ICMS, é cediço que ele incide sobre operações
relativas à circulação de mercadorias. O contribuinte desse tributo é qualquer pessoa física ou jurídica que realize, com habitualidade, operações de
circulação delas.
Assim, se o contrato com pessoa a declarar tiver como objeto a
compra e a venda de mercadorias, sobre cada entrada e saída delas incidirá
o mencionado imposto.
Ressalte-se que podem ocorrer inúmeras transferências tanto de bens
móveis quanto de bens imóveis, objetos de contrato com pessoa a declarar, sem o efetivo recolhimento do imposto respectivo, o que fatalmente
lesará o fisco. Deixando a lei a critério das partes estabelecerem o prazo
para indicar o verdadeiro adquirente, podem elas, com o intuito de burlar o
fisco, alienar o mesmo bem várias vezes, para diversas pessoas, sem recolher o respectivo tributo a cada operação.
Essa foi uma das razões por que o contrato com pessoa a declarar,
nascido na Idade Média, desapareceu da legislação dos povos - sua finalidade desvirtuou-se daquela para a qual foi efetivamente criado. Com o
objetivo primeiro de evitar o constrangimento da participação dos nobres
da Idade Média nas vendas em hasta pública e em leilões, passou a ser,
com a evolução do instituto, um meio de transmitir bens móveis e imóveis
sem recolher os gravosos e duplos encargos tributários da época medieval.
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Sumário
1. Considerações iniciais. 2. Breves notas sobre a coisa
julgada. 3. Um enfoque diferente da coisa julgada tributária. 4. Aspectos críticos na mitigação da coisa julgada
tributária. 5. Considerações finais.
Resumo
O Estado republicano tem o seu fundamento de validade no contrato
social, que reflete o pacto de solidariedade entre os cidadãos. O tributo é o
instrumento formal que consubstancia a celebração desse pacto. Assim, é
possível afirmar que na democracia o tributo é o fundamento que legitima a
existência do Estado. O fim do Estado é a consecução do bem comum e o
tributo é a ferramenta que possibilita o alcance desse objetivo. O ideal de
justiça tributária se realiza no equilíbrio entre o nível da carga tributária e as
ações de governo voltadas ao bem-estar da sociedade. A ruptura desse
equilíbrio gera um ambiente de aversão ao tributo, o que explica que entre
nós o tributo se defina como norma de rejeição social, repercutindo no
aumento da litigiosidade das relações entre o cidadão e o Estado.
Neste ambiente de elevada litigiosidade, a segurança jurídica erigese em valor supremo do Estado, pois as disputas de natureza tributária
colocam o cidadão em linha oposta e de confronto com o próprio Estado,
o que remete a uma grave crise do pacto de solidariedade. A doutrina da
flexibilização da coisa julgada com base na mera primazia do interesse público sobre o privado há de ser examinada com redobrada cautela e prudência, pois acarreta um sentimento de frustração no ideal do Estado repuREV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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blicano, sobretudo quando a segurança jurídica é relegada a plano secundário em virtude da imposição de uma carga tributária escorchante.
Abstract
The Republican State has its ground of validity on the Social Contract
which reflects the social solidarity pact among citizens. The tax is the formal
instrument which contains such agreement. Thus, it is possible to state that
on democracy the tax is the foundation which justifies and legitimates the
State existence. The State existence is based on the welfare of its citizens
and the tax is the main tool which allows achievement of such purpose. The
tax justice ideal depends on the balance between the tax charge level and
governmental policies on public welfare. The rupture of such balance
produces a tax aversion environment. Therefore, it is not surprising that
among us the taxation is often regarding as a social rejection norm. As a
result of this social feeling the relationship between the Brazilian State and
the taxpayers is marked by a high number of litigations.
With such hostile environment of litigations the juridical security is the
most important value as the lawsuits and disputes of tax matter put citizens
against the State and this situation establishes a deep crisis on the social
solidarity pact. The res iudicata mitigation doctrine based on the supremacy
of the public interests over the private interests must be examined with care
and prudence because such primacy brings on a profound frustration on the
republican ideal, especially when the principle of the juridical security is
relegated to a secondary plan in favor of a very heavy tax charge system.
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O crítico e jornalista norte-americano H. L. Mencken escreveu que
“todo homem decente se envergonha do governo sob o qual vive”1. O
Brasil atravessa uma crise profunda cujo epicentro se localiza justamente
nos meandros de um governo incapaz de responder com ações efetivas
aos anseios de justiça fiscal do cidadão. O Estado brasileiro não responde
positivamente às demandas do cidadão nos diversos setores dos chamados serviços essenciais.
1
MENCKEN, H. L. O livro dos insultos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 220.
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Todavia, esse mesmo Estado, ineficiente, incompetente e incapaz de
atender às necessidades fundamentais de seu povo, ergue o seu braço fiscal poderoso e opressor, como um Leviatã a esmagar o cidadão, impondo-lhe o ônus de uma carga tributária insuportável.
O cidadão brasileiro vive uma realidade paradoxal em que a carga
tributária aumenta na proporção inversa da eficiência dos serviços e benefícios prestados pelo Estado. O dado perverso e frustrante dessa afirmação reside no fato de que a realidade circundante é dominada por um ambiente de corrupção e crise moral, afetando a credibilidade das instituições
e dos valores republicanos, eis que nenhum dos Poderes da república se
coloca a salvo das graves denúncias de falcatruas e mau uso do dinheiro
público.
O aforismo de Mencken se aplica entre nós de modo sinistro e cruel,
pois não há cidadão decente deste país que não sinta vergonha de seu
governo, ao mesmo tempo em que medra em toda sociedade um sentimento enorme de aversão ao tributo como sustentáculo de um Estado corrompido e cada vez mais distante do ideal de justiça tributária.
Cabe assinalar que o Estado se justifica no pacto de solidariedade,
cujo móvel fundamental é o impulso do indivíduo no sentido da segurança e
da paz social. O tributo é a ferramenta que viabiliza o pacto de solidariedade e possibilita ao Estado assegurar a paz social. Por isso, o tributo confere
uma dimensão de legitimidade ao Estado, posto que o fundamento de sua
validade está no postulado da solidariedade. Do ponto de vista etimológico,
diga-se de passagem, tribuere é a repartição da contribuição geral entre os
membros da tribo.
Quando o esforço contributivo de todos resulta inócuo em virtude
das falhas de atuação do Estado na repartição de seus resultados, instaurase uma crise que lança o cidadão contra o próprio Estado, gerando o cisma
de um abismo profundo entre os interesses de um e outro. Conseqüência
disso é o fomento da litigiosidade na relação fisco-contribuinte, gerando
instabilidade e insegurança, o que redunda na busca do processo como
instrumento de pacificação social.
Carga tributária escorchante, corrupção, direitos e garantias individuais solapados, serviços administrativos ineficientes são fatores que influem no ambiente de alta tensão das relações tributárias, cujo principal impacto no consciente coletivo é a aversão ao tributo, o que de resto acarreta
o efeito colateral da sonegação e da crise do pacto de solidariedade social.
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É nesse contexto que explode o litígio no campo tributário. O detalhe relevante nesse quadro é que o próprio Estado se coloca ao mesmo
tempo como causador e parte desse conflito. É o Estado o grande responsável pela exacerbação do conflito. Infelizmente, as soluções dadas ao problema apenas contribuem para o aumento da instabilidade e do caos tributário, passando ao largo da almejada segurança jurídica.
No rol de soluções imaginadas para esse grave problema se insere a
chamada flexibilização dos direitos. Não se nega ao direito o caráter dinâmico e a necessidade de sua adaptação ao fato social em constante mutação. Contudo, em especial na última década, impressiona o avanço do
Estado sobre os direitos e garantias fundamentais do contribuinte, a pretexto da adequação do direito ao interesse coletivo.
O mais grave dos avanços sobre os direitos e garantias do contribuinte se verifica na mitigação da coisa julgada. Na senda tributária, a
flexibilização da res iudicata tem sido praticada com o sacrifício de garantias e direitos fundamentais do contribuinte, muitos deles fruto de conquistas seculares da civilização contra o arbítrio.
2
BREVES NOTAS SOBRE A COISA JULGADA
No filme 2001 – Uma odisséia no espaço há uma cena antológica
em que o ancestral do homem, ainda no estágio tribal, transmite aos demais
integrantes de seu clã o sinal de comando e união ao bater de modo ritmado
um pedaço de osso de um predador abatido. Na cena, o pedaço de osso
é lançado para o alto e se transforma em nave espacial, registrando de
forma singular e bela o enorme salto da humanidade para o desenvolvimento e o progresso, como conseqüência do esforço comum e da solidariedade dos homens.
É possível imaginar nessa cena a gênese do Estado como instrumento de satisfação das aspirações comuns no sentido da paz, do desenvolvimento e da segurança social. O Estado, nesse viés, independentemente do
modelo de organização e dos matizes ideológicos, nada mais é do que uma
criação do homem, que obriga o indivíduo a transcender os limites do egoísmo como única maneira de atingir os seus anseios.
O fenômeno da tributação surgiu dessa necessidade de satisfação
do desejo do indivíduo, cuja afirmação somente se concretiza, paradoxalmente, na medida da solidariedade, daí a concepção do Estado fiscal, modelo
jurídico que possibilita a vida em comum.
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A tributação é legitimada no consentimento do indivíduo que transfere ao Estado o poder de auferir as contribuições para a satisfação dos
anseios do bem comum. Nesse sentido, é possível afirmar que o bem comum é o somatório das aspirações individuais, por isso não é absurdo dizer
que o tributo é a fonte de legitimação do próprio Estado.
Assim, não é de todo desarrazoado afirmar que a crise do Estado
tem uma de suas causas no caos tributário em que se encontra imerso o
país, sobretudo em virtude do ambiente de incerteza e insegurança jurídica,
de modo especial em função da ampliação dos casos de flexibilização da
coisa julgada tributária.
A coisa julgada pode ser definida como a qualidade da sentença da
qual já não cabe mais recurso e que se reveste da característica da
imutabilidade e da indiscutibilidade. Essa qualidade da sentença torna inadmissível o reexame da decisão por outro ou pelo mesmo juízo.
Em outras palavras, o Estado encerra o litígio colocando um ponto
final na disputa, desobrigando-se da sua função jurisdicional. É por isso
que se diz, também, que o fundamento político da coisa julgada se acha
inscrito na extinção da obrigação jurisdicional.
A propósito, Warren Freedman escreveu
res iudicata is that principle inherent in all judicial systems which
provides that an existing final judgement rendered upon the merits,
without fraud or collusion, by a court of competent jurisdiction, is
conclusive of rights, questions, and facts in issue, as to the parties and
their privies, in all other actions in the same or any other judicial tribunal of concurrent jurisdiction.2
Note-se que o conceito posto na doutrina do common law se afigura bastante pragmático, pois encerra a um só tempo a afirmação essencial
da definitividade do provimento judicial e as hipóteses possíveis de sua
relativização, ou seja, a fraude, o conluio ou a decisão de juízo incompetente.
Em nosso direito, a idéia essencial não difere dos demais sistemas
jurídicos, pois a coisa julgada tem seu fundamento mais importante na se2
FREEDMAN, Warren. Res iudicata and collateral estoppel. New York: Quorum Books,
1988, p. 1.
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gurança jurídica como pressuposto formal da estabilidade social, admitida
a flexibilização em caráter excepcional.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, em
excelente obra acerca do assunto, afirmam que “a coisa julgada é instituto
cuja função é a de estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro”, completando que o dado fundamental é a “irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas” no processo. Ambos sustentam que “o princípio da segurança jurídica é elemento essencial ao Estado Democrático de Direito”, concluindo que “a estabilidade das decisões
dos poderes públicos não pode ser alterada senão quando concorrerem
fundamentos relevantes”3.
Guglielmo Fransoni, depois de passar em revista os vários fundamentos políticos e jurídicos da coisa julgada, coloca em relevo o princípio
da economia processual, alçando-o a plano superior ao da estabilidade
das decisões judiciais, justificando que “ci sembra che considerare il giudicato
una mera applicazione di un principio di economia cosí inteso”4.
Afirma o autor italiano:
il nucleo centrale della teoria in esame è che il dato di maggior rilievo
ai fini della tutela dei diritti è l´éfficacia del provvedimento conclusivo
del processo, mentre la sua stabilità sarebbe o un profilo secondario,
oppure, ancora più radicalmente, costituirebbe un fenomeno del tutto
accesorio, in nessun senso funzionale alla tutela dei diritti, posto che
questi sarebbero tutelati ancora meglio da processi continuamente
rivedibili.5
A perspectiva parece interessante, porquanto há uma lógica sustentável na afirmação segundo a qual o direito se aperfeiçoa na proporção das
possibilidades de sua revisão, idéia que se contrapõe de modo flagrante à
rigidez da imutabilidade dos efeitos do provimento judicial. De tal maneira,
que a imodificabilidade das decisões, em última análise, atenderia a um
3
4
5
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa
julgada - Hipótese de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 21-22.
FRANSONI, Guglielmo. Giudicato tributario e attività dell´amministrazione finanziaria.
Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 25.
Idem.
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princípio de economia com o abreviamento eficaz da função jurisdicional
nos litígios.
Seja lá qual for o ângulo pelo qual se examine os fundamentos políticos de validade da coisa julgada, levando-se em conta os postulados da
estabilidade social, da economia processual ou simplesmente do esgotamento da obrigação jurisdicional, ou mesmo de seu fundamento jurídico
expresso nas teorias da presunção da verdade (Ulpiano), ficção da verdade (Savigny), força legal (Pagenstecher), vontade do Estado (Chiovenda),
imperatividade do comando decisório (Carnelutti) ou da eficácia da sentença (Liebman), o certo é que a coisa julgada reveste-se da autoridade de
sua imutabilidade.
A nosso ver, questão essencial reside nesse fato, eis que a imutabilidade é corolário da estabilidade e previsibilidade, ambas requisitos fundamentais da relação jurídico-tributária. O grande problema de nossos dias
está no fato de que o Estado, movido pela voracidade fiscal, faz pouco
caso da segurança jurídica, malferindo os princípios tributários da nãosurpresa, da irretroatividade e da legalidade.
3
UM ENFOQUE DIFERENTE DA COISA
JULGADA TRIBUTÁRIA
A coisa julgada no campo tributário apresenta um desdobre relevante na esfera da jurisdição material, posto que não implica apenas o esgotamento da função jurisdicional, mas atinge a própria relação jurídica substancial, uma vez que a decisão passada em julgado é causa de extinção do
crédito tributário.
Visto o tributo como um instrumento de financiamento do Estado,
que torna possível a realização do bem comum, a questão da coisa julgada
no direito tributário assume feição bastante relevante, pois enseja a interferência de categorias do direito material sobre o direito instrumental, afetando e contaminando a coisa julgada na pureza da sua origem como instituto
do direito processual.
É certo que a teoria unitária do processo não admite um processo
para cada jurisdição material, partindo da premissa da existência de um
processo único, aplicável a todas as jurisdições materiais. Entretanto, não é
menos verdade que as propriedades do direito tributário interagem e interferem na conformação do instituto da coisa julgada, de modo especial no
que diz respeito às limitações constitucionais ao poder de tributar.
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O tributo é o objeto da relação jurídica que pode ser atingido substancialmente pela res iudicata. A extinção do crédito tributário por força
da coisa julgada traz implicações diversas ao planejamento das condutas
do contribuinte em face dos deveres e obrigações fiscais. A previsibilidade
e a estabilidade são requisitos do planejamento tributário. Sem tais premissas não há segurança e certeza na definição de comportamentos pelo contribuinte.
A autoridade da coisa julgada, que resulta da força de sua imodificabilidade, atua como um verdadeiro farol a guiar o contribuinte no planejamento de suas ações, daí o descabimento da mitigação dessa força
sob qualquer pretexto ou fundamento. É preciso salientar que o tributo é
a pedra angular do estado de direito. Por isso a segurança jurídica nas
relações tributárias há de se elevar em categoria de valor mítico, inalcançável pelas conveniências transitórias ditadas pelas carências materiais
do Estado.
Lamentavelmente, à sombra das necessidades do Estado, quase sempre com fundamento na primazia do interesse coletivo sobre o privado,
cresce de modo assustador o movimento da mitigação da coisa julgada,
lançando a escombros o edifício da segurança jurídica, o que se tem feito
entre nós ao arrepio das garantias constitucionais e desprezo aos princípios
limitadores ao poder de tributar.
Da pena arguta de Ives Gandra se colhe que
quanto mais se eleva a carga tributária, mais, à evidência, os controles sobre a sociedade se multiplicam, aniquilando-se o direito de
defesa e elevando-se as penalidades, para que o poder se assegure
de obter aquilo que seus detentores sabem ser injusto, quando não,
confiscatório (...) infelizmente, desde a promulgação da Constituição
de 1988, o poder só tem reduzido os direitos dos contribuintes, de
um lado, e aumentado a carga tributária, de outro (...) eis porque,
com a melancólica concordância de muitos magistrados, o direito à
ampla defesa administrativa vem sendo reduzido; o direito à privacidade desvirtuado; o direito ao princípio da não-surpresa reduzido à
sua expressão nenhuma (...)6.
6
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Limitações ao poder impositivo e segurança jurídica.
Pesquisas tributárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 30-32.
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Sob o falso pretexto da prevalência do interesse público a acobertar
indisfarçável sanha arrecadatória, o poder agora investe contra a coisa
julgada, ampliando as hipóteses de sua mitigação para além daquelas situações previstas no artigo 485 do estatuto processual, contando, como disse Ives Gandra, “com a melancólica concordância de muitos magistrados”.
É triste verificar que o judiciário vem se portando em muitas situações de modo conivente com abusos e violência perpetrados contra a segurança jurídica. Em julgamentos recentes, o Supremo Tribunal Federal e o
Superior Tribunal de Justiça modificaram entendimento anteriormente expresso nos órgãos plenários de ambas as casas quanto aos direitos dos
contribuintes em relação aos créditos de IPI nas exportações.
O posicionamento anterior favorável ao direito de aproveitamento dos
créditos de IPI nas exportações orientou a conduta do contribuinte no exercício desse direito. Todavia, com a revisão do entendimento das Cortes
federais, o que se deu por motivação puramente fiscalista, sob a pressão dos
anúncios de perdas bilionárias de arrecadação, o fisco passou a autuar os
contribuintes, exigindo-lhes créditos tributários com efeitos retroativos.
Da mesma forma, contribuintes que obtiveram decisões favoráveis
exoneratórias de obrigação tributária relativa à CSLL, transitadas em julgado e intocáveis ante as tentativas de rescisão desses julgados, estão sendo autuados pelo fisco com fundamento na mitigação da res iudicata,
apenados com a exigência do crédito tributário, inclusive multas e juros
moratórios, em função do efeito retroativo da exação.
Nesses casos, os direitos obtidos pelos contribuintes sob o manto
da coisa julgada têm sido flexibilizados pela mitigação da res iudicata ao
fundamento da prevalência do interesse público sobre o privado e do posterior reconhecimento da constitucionalidade da lei havida por inconstitucional
na decisão passada em julgado.
Para tanto, não se tem hesitado até mesmo na sobreposição de tal
fundamento a princípios consagradores das garantias individuais dos contribuintes, tais como a irretroatividade e a legalidade.
4
ASPECTOS CRÍTICOS NA MITIGAÇÃO DA COISA
JULGADA TRIBUTÁRIA
O problema da mitigação da coisa julgada no campo tributário deve
ser examinado sob a perspectiva da segurança jurídica como valor imanente
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da função jurisdicional. A distribuição da justiça é atividade estatal incompossível em ambiente de caos e incerteza, sobretudo quando o próprio
Estado se coloca como parte no litígio e ao mesmo tempo causador da
crise que conduz ao litígio.
No domínio tributário é exatamente o que acontece. O Estado, como
já dito, é o causador da crise imensa que atinge o tributo como valor jurídico e social, o que se dá exatamente em função da sua incapacidade de
suprir as demandas do cidadão, ao mesmo tempo em que extenua o contribuinte com o peso de uma das maiores cargas tributárias do mundo.
A flexibilização da coisa julgada na seara tributária, longe de se apresentar como instrumento de correção de injustiça ou valorização do direito,
tende a se prestar como apêndice do braço fiscal do Estado, trazendo
intranqüilidade e incerteza para o contribuinte. Basicamente, os defensores
da relativização da res iudicata no direito tributário têm argumentado em
seu favor com os fundamentos da prevalência do interesse coletivo, dos
princípios da universalidade e da isonomia, da continuidade e trato sucessivo das relações tributárias e do efeito ex tunc da declaração de constitucionalidade.
O Ministro José Augusto Delgado impressiona quando afirma que
“não é possível conceber o reconhecimento absoluto da coisa julgada quando
ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios
maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza”. Diz o eminente ministro que “a grave injustiça não deve prevalecer em
época nenhuma, mesmo protegida pelo manto da coisa julgada, em regime
democrático, porque ela afronta a soberania da proteção da cidadania”7.
Cândido Rangel Dinamarco acentua que
o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto, a coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça
das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a
garantia do acesso à justiça.8
7
8
DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In:
Coisa julgada e os princípios constitucionais. NASCIMENTO, Valder do (Org.). Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 45.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada. Meio Jurídico, ano IV, nº 44,
p. 45, 2001.
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No mesmo sentido, Octávio Campos Fischer defende a mitigação
da coisa julgada “nos casos ditos teratológicos, de flagrante injustiça ou
afronta exorbitante a certos valores constitucionais”. Lembra o aludido autor que se a própria lei não se acha infensa ao controle de inconstitucionalidade, com mais razão não poderia sê-lo a sentença, pois “a coisa julgada
não pode suplantar a lei”9.
Pensamos que, embora impressionem os argumentos, o risco maior
reside na adoção generalizada da idéia da relativização da coisa julgada
como valor superior à segurança jurídica, pois nem sempre se afigura fácil
definir o que é exatamente uma “decisão injusta” ou “teratológica” fora dos
casos elencados no citado art. 485 da lei processual, lançando-se, por
conseqüência, o jurisdicionado no limbo da vaguidade e subjetividade das
interpretações, o que acarreta perigosa e indesejável insegurança na função estatal de distribuir a justiça.
Ademais, não nos parece adequado justificar a flexibilização da coisa julgada com fundamento na ofensa a princípios ou valores constitucionais, porquanto não se há de perder de vista que a coisa julgada é antes de
tudo um valor constitucional encerrado no capítulo dos direitos e garantias
individuais. Aliás, a nosso ver, juntamente com o tributo, a coisa julgada é
uma categoria de valor jurídico que se coloca como antecedente lógico da
própria existência do Estado.
Nesse sentido, consideramos possível a existência de um Estado que
não realiza a justiça, aliás, muitos existem que não praticam a justiça. Também vemos a existência de Estados que transgridem princípios e vetores
constitucionais, bastando exemplificar com o próprio Estado brasileiro,
contumaz na violação ao texto maior.
Todavia, não conhecemos um único Estado possível sem o tributo
ou a segurança da coisa julgada. Um Estado sem o tributo como fundamento do pacto de solidariedade, o tribuere na acepção essencial do termo e na concepção tribal, ou sem a coisa julgada como apanágio da função
jurisdicional, não passa de um Estado imaginário, anárquico, possível apenas nos modelos teóricos.
9
FISCHER, Octávio Campos. Coisa julgada inconstitucional em matéria tributária. In: Problemas de processo judicial tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). São Paulo:
Dialética, 2002, vol. 5.
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Além disso, mais grave é que no campo tributário a noção de “decisão injusta” ou “teratológica”, assim como a adequação e o balanceamento
dos princípios constitucionais, tende a uma natural torção em função da
circunstância de que o Estado é a um só tempo parte e juiz, causador e
julgador do litígio. A mitigação da coisa julgada em tal contexto coloca o
cidadão em risco quando em confronto com o próprio Estado.
A flexibilização da coisa julgada, quando há interesse direto do Estado em disputa com o contribuinte, em geral não se presta a instrumento
de correção de situação teratológica ou injusta. Ao revés, a mitigação da
res iudicata em tais circunstâncias opera em nosso direito como dispositivo que produz instabilidade e incerteza, o que tem ocorrido em função da
combinação nociva da mitigação com o efeito retroativo, atingindo situações já consolidadas para o contribuinte em relação ao crédito tributário.
O que preocupa é que o conceito de “justiça” quando se acha presente o interesse do Estado no papel simultâneo de juiz e parte é exageradamente “flexível”.
Há mais de 500 anos, Tomás Morus, discorrendo sobre o modelo
imaginário de Estado, produziu texto de impressionante atualidade no qual
expõe de forma crítica a fragilidade da noção de justiça quando em jogo o
interesse do Estado. O texto pressupõe uma discussão imaginária entre
ministros que se esforçam em contribuir com os melhores conselhos ao rei.
Tomás Morus escreveu:
Outro aconselha que os juízes sejam ganhos para sentenciar sempre
em favor do rei; que, para maior segurança, este os faça vir ao palácio para discutir em sua presença as causas da coroa. Nenhuma
causa dessa natureza será tão evidentemente injusta que um deles,
diante do rei, seja por amor à contradição, seja por desejo de apresentar uma opinião singular, seja para fazer-lhe a corte, não encontre
uma fissura por onde uma falsa interpretação possa se introduzir. No
momento em que uma questão clara como o dia é discutida desse
modo e a verdade é posta em dúvida, o rei poderá intervir e interpretar o direito em seu interesse pessoal. Os outros assentirão por
embaraço ou por temor, e o tribunal pronunciará enfim a sentença
sem hesitação. Pois quem decide em favor do príncipe sente-se sempre protegido, já que lhe basta alegar ou a letra da lei, ou algum texto
habilmente interpretado, ou ainda, na falta de tudo isso, o indiscutível
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privilégio real – o que pesa mais que todas as leis do mundo no
espírito desses homens escrupulosos.10
Não duvidemos da atualidade da crítica do pensador londrino, pois
o “indiscutível privilégio real que pesa mais sobre todas as leis do mundo” é
o mote oculto nas intenções da mitigação da coisa julgada desfavorável à
fazenda pública, tendo em vista a política de afirmação do interesse prioritário
da arrecadação tributária. Também não se deve ignorar as pressões do
lobby do rei sobre os magistrados, quando em disputa questões tributárias
milionárias, como nos casos recentes dos julgamentos dos créditos sobre o
IPI nas exportações.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A flexibilização da coisa julgada nas relações tributárias não deve ir
além das hipóteses e casos previstos no próprio sistema legal. A expansão
das hipóteses a pretexto da correção de injustiças ou situações teratológicas
em nada contribui para o aperfeiçoamento do sistema. Ao contrário, apenas aumenta a incerteza e a insegurança, expondo ainda mais as fragilidades das relações tributárias, agravando a crise do tributo como instrumento
de legitimação do Estado.
Os argumentos em geral invocados em abono da mitigação da coisa
julgada são, segundo nosso juízo, inconvincentes. Ademais, os postulados
gerais da ciência processual devem ser obtemperados no que diz respeito à
sua utilidade e aplicação nas relações tributárias, impondo-se a sua aceitação com reservas, a despeito da prevalência entre nós da chamada teoria
unitária do processo, posto que a coisa julgada no campo tributário tem
contornos típicos do direito material, eis que os seus efeitos não se limitam
apenas ao esgotamento da função jurisdicional, mas alcançam também o
próprio direito em lide.
A alegada prevalência do interesse público sobre o privado como
base de justificativa da relativização da coisa julgada tributária não convence.
A coisa julgada é instituto resultante da lide e o processo foi concebido como instrumento de pacificação dos litígios individuais. A despeito
10 MORUS, Tomás. A utopia ou o tratado da melhor forma de governo. Porto Alegre:
L&PM, 1997, p. 1.
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dos esforços de alguns processualistas, como Ada Pellegrini Grinover, na
tentativa da elaboração das bases de um processo coletivo, não se pode
desconsiderar que o processo em sua formulação essencial é ainda fruto de
uma concepção individualista. Ademais, a relação tributária não é do tipo
que se defina como relação transindividual e não se confunde com os interesses difusos. O conflito tributário é tipicamente individual. A presença do
Estado em um dos pólos da relação processual não transmuda a feição
individualista do processo.
Também não impressiona a alegação de que a flexibilização da coisa
julgada tributária se justificaria no direito ao reexame da decisão em virtude
da declaração posterior de constitucionalidade da lei havida inconstitucional
na decisão anterior.
Sob nenhum pretexto, o reconhecimento posterior da conformidade
da lei tributária com a ordem constitucional pode retroagir seus efeitos para
atingir o crédito tributário já declarado extinto pela res iudicata. Admitir tal
possibilidade implica ofensa aos princípios tributários da não-surpresa e da
irretroatividade. Mais grave ainda importa em violação ao princípio da legalidade, porquanto a revigoração do ônus tributário em tais circunstâncias
significa a reinstituição do tributo pela via judiciária, com a usurpação da
competência legislativa, quebrado o princípio republicano da representação
social, tal como expresso na máxima do “no taxation without representation”.
Ao se examinar a possibilidade de mitigação da coisa julgada não se
deve olvidar que o tributo é a base de fundação do Estado e que do ponto
de vista axiológico e filosófico o fenômeno da tributação se explica na teoria da imposição desmesurada, figurando o tributo como norma de rejeição
social, em virtude do crescente sentimento de rejeição ao pacto de solidariedade na medida em que o Estado não responde satisfatoriamente às
demandas da sociedade ao mesmo tempo em que lhe exige o sacrifício
desmedido na forma da contribuição tributária.
Ao admitir a possibilidade de flexibilização da coisa julgada fora dos
limites legais das hipóteses de rescisão do julgado, cria-se um ambiente de
absoluta incerteza e insegurança, de atropelo a garantias individuais, pois o
contribuinte se verá lançado na vala desprotegida do interesse puramente
fiscalista, que nem sempre reflete o interesse da sociedade.
As palavras do Ministro Celso de Mello em voto proferido no RE
150.764-1 são de beleza lapidar:
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argumentos de necessidade, por mais respeitáveis que possam ser,
não devem prevalecer sobre o império da Constituição. Razões de
Estado, ainda que vinculadas a motivos de elevado interesse social,
não podem legitimar o desrespeito e afronta a princípios e valores
sobre os quais tem assento o nosso sistema direito constitucional
positivo. Essa Corte, ao exercer de modo soberano, a tutela
jurisdicional das liberdades públicas, tem o dever indeclinável de velar
pela intangibilidade da nossa Lei Fundamental, que, ao dispor sobre
as relações jurídico-tributárias entre o Estado e os indivíduos
institucionalizou um sistema coerente de proteção, a que se revelam
subjacentes importantes princípios de caráter político, econômico e
social. É preciso advertir o Estado de que o uso ilegítimo de seu
poder de tributar não deve, sob pena de erosão da consciência constitucional, extravasar os rígidos limites traçados e impostos à sua atuação pela Constituição da República.11
A aceitação da mitigação da coisa julgada com desrespeito aos princípios e valores constitucionais em justificativa da sobrevalência dos interesses fiscalistas do Estado resulta exatamente na morte da consciência
constitucional e dos valores econômicos, políticos e sociais que lhe são
caros e subjacentes.
Platão afirmou que a justiça não pode ser o postulado da afirmação
do mais forte e do mais astuto sobre o mais fraco. Aqui voltamos àquela
imagem do filme 2001 - Uma odisséia no espaço para dizer que à semelhança da força e da astúcia do ancestral do homem naquela cena, o Estado não pode frustrar os desejos de segurança, paz e estabilidade social de
seus cidadãos, sob pena de voltarmos aos primórdios das trevas.
11 MELLO, Celso de. RE 150.764-1. DJU 02.04.1993, Ementário 1698-08, p. 1557-1558.
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COMENTÁRIOS SOBRE AS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS
PELA LEI 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002
VINICIUS MOREIRA MITRE
Sumário
1. Classificação das pessoas jurídicas de direito privado. 2. Das sociedades: alterações introduzidas pelo CC/
2002 – aplicação às empresas conforme sua situação
jurídico-funcional. 2.1. Da administração coletiva. 2.2.
Dos atos de má gestão ou gestão ruinosa. 2.3. Da cessão de quotas. 2.4. Da administração. 2.5. Do conselho fiscal. 2.6. Das deliberações dos sócios e dos atos
formais. 2.7. Aumento ou redução do capital. 2.8. Exclusão compulsória de sócio minoritário. 2.9. Responsabilidade do sócio em relação a terceiros. 2.10. Da
resolução da sociedade. 3. Sociedades por ações. 3.1.
Origem. 3.2. Características e natureza. 3.3. Sociedades Anônimas abertas e fechadas. 3.4. Fechamento da
companhia – critérios. 4. Referências bibliográficas.
Resumo
Inovações introduzidas pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Estudo comparativo com a legislação anterior. Aspectos jurídicos da sociedade anônima fechada e da sociedade de responsabilidade limitada. Inovações quanto à dissolução da sociedade, exclusão do sócio indesejado.
Da responsabilidade perante terceiros. Abordagem dos demais tipos de
sociedades e suas características. Crítica a omissões e controvérsias na lei
nova.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 295-312
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Abstract
Innovations introduced by Law 10.406 dated January 2002.
Comparative study with previous legislation. Juridical aspects of private
limited company and limited liability company. Innovations regarding
company dissolution, exclusion of undesired partner. Responsibilities to third
parties. Approach to other types of companies and its characteristics.
Criticism to omissions and controversies about new law.
Neste trabalho, deteremo-nos em apertada análise, na verificação
sistemática da condição das pessoas jurídicas de direito privado, que, segundo regra esculpida no art. 44 do CC, são as associações, sociedades
e fundações. Com base nisso, traçaremos um paralelo comparativo entre
sociedades empresárias e sociedades anônimas.
1
CLASSIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS
DE DIREITO PRIVADO
Quando instituídas por iniciativa de particulares, dividem-se em:
a) Fundações particulares
Entidades sem fins lucrativos, mas não necessariamente filantrópicas, pois podem prestar serviços remunerados; organizam-se por constituição de bens livres, colocados por pessoa física ou jurídica, a serviço de
um fim lícito e especial alcance social pretendido por seu instituidor e/ou
com finalidade de promover o desenvolvimento/fomento de áreas específicas de atuação, com fins sociais e culturais, personalizados pela ordem
pública, em consideração a um fim estipulado pelo fundador, com objetivo
imutável, ou seja, não sujeito a alterações ou ampliações em seu objetivo
estatutário.
O novo Código Civil regula as fundações desde seu art. 62 usque
69. Praticamente não houve nenhuma inovação, excetuada a mais significativa, consubstanciada no parágrafo único do art. 62, que assim dispõe: “A
fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.”
Para uma perfeita compreensão da vontade do legislador, no caso
presente, não deve cingir-se o intérprete ao exame estrito da letra de lei,
pois que obviamente genéricos os vocábulos empregados, aí insertos, por
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COMENTÁRIOS SOBRE AS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 10.406, DE ...
exemplo, as fundações para fins de preservação ambiental, como é o caso,
a título de mero exemplo, da Fundação Alexander Brandt, cujos fins de
fundo “moral” e de “assistência” direta ou indireta estão obviamente presentes, vez que a licitude da atividade é manifesta (moral), ao passo que a
assistência ao homem exsurge igualmente irrefragável, a partir da ajuda à
preservação da fauna e flora, por exemplo.
Outras alterações houve, especialmente em relação ao que é pertinente às condições para alteração do estatuto, a exigir, agora, a aprovação
do Ministério Público, e não mais do “órgão competente”, como antes
disposto, ao qual inclusive cabe “velar” pelas fundações, o que somente
pode ser compreendido como auxiliar, proteger e fomentar a criação de
novas entidades.
b) Associações
Podem ser religiosas, pias, morais, científicas e/ou literárias; também
podem ser de utilidade pública. Em qualquer caso, caracterizam-se pela
reunião de pessoas, sócios ou associados, que deliberam livremente, sem
fins lucrativos, mas contando com patrimônio formado com a contribuição
de seus membros para a obtenção de fins culturais, educacionais, esportivos, religiosos, recreativos etc.
c) Sociedades
Pela acepção do novo código, dividem-se em sociedade simples e
sociedade empresária. Em ambos os casos, visa-se ao lucro, pois seu fim
é econômico, a ser repartido entre os sócios conforme dispuser o contrato
social, absorvendo, outrossim, eventuais prejuízos, na proporção da participação de cada sócio. A sociedade simples, nova nomenclatura da sociedade civil, define-se ainda pelo exercício conjunto de certas profissões
ou pela prestação de serviços técnicos, à luz dos arts. 997 a 1.038 do CC,
por exemplo, uma sociedade imobiliária ou uma cooperativa. Constitui-se
sempre por escrito e é levada a registro no Registro Civil das Pessoas
Jurídicas. A sociedade empresária, por sua vez, desenvolve atividade
empresária ou comercial, podendo, segundo as espécies a ela ínsitas, ser
do tipo sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples,
sociedade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade por
ações ou anônima. Tem por objetivo a organização de atividades econômicas organizadas para a produção ou circulação de bens ou de serviços,
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estando sempre sujeita a registro, via de regra, nas juntas comerciais regionais. Rege-se pelas normas dos arts. 1.052 a 1.087 do CC, aplicandose, como regra geral, e naquilo que não conflitar com tais dispositivos, as
normas que regem as sociedades simples.
d) Partidos políticos
Associações civis assecuratórias, próprias do regime democrático,
garantidoras do sistema representativo, assim definido na CF, arts. 88, 17,
I a IV, parágrafos 1º a 42, 22, XXVII, 37, XVII, XIX, XX, 71, II a IV,
150, parágrafo 2º, 169, parágrafo único, II, 163, II, e pela Lei nº 9.096/
95.
Feitas tais preleções, e sendo o que nos importa o efetivo estudo da
sociedade empresária, passaremos a expor aquilo que deverá ser observado pelo empresário a partir da entrada em vigor da lei nova, inclusive no
que diz respeito às orientações direcionadas às alterações contratuais
porventura necessárias.
2
DAS SOCIEDADES: ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS
PELO CC/2002 – APLICAÇÃO ÀS EMPRESAS
CONFORME SUA SITUAÇÃO JURÍDICO-FUNCIONAL
Porquanto seja temerário traçar uma ordem de “importância” para
cada inovação inserta na lei, passaremos, de forma mais didática possível,
porém com as necessárias nuanças que o trato jurídico recomenda, a expor os aspectos que poderão refletir na sociedade, mas que deverão ser
avaliados de maneira isolada, conforme o caso. Assim, dentre as novidades inauguradas, temos:
2.1
Da administração coletiva
Cumpre, de início, aclarar o termo administração coletiva, que vem
a ser a administração da empresa por dois ou mais sócios, em conjunto ou
separadamente. Nesse caso, dispõe o art. 48 do CC que as decisões serão tomadas por maioria simples de “votos” (mais da metade), salvo se o
contrato societário dispuser de modo diferente. Poderá, contudo, o sócio
que se sentir prejudicado, postular a anulação do ato, no prazo decadencial
de três anos, requerer a nulidade da deliberação da administração, mas
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somente se provar vício de consentimento (erro, dolo ou coação) ou violação à norma legal.
Distingue-se da sociedade em nome coletivo, constante nos arts. 1.039
e seguintes do CC, vez que nessa, a administração cabe exclusivamente
aos sócios; portanto, sem a possibilidade de nomeação de procurador, os
sócios podem, entre si, limitar a responsabilidade de cada um (mas sem
afetação dos direitos de terceiros).
O termo firma social, empregado no art 1.042, significa que deverá
haver a indicação expressa, na razão social, do nome dos sócios (“fulano,
beltrano e cia.”).
2.2
Dos atos de má gestão ou gestão ruinosa
Deve o sócio-gestor, o administrador da sociedade, agir de forma
proba e em obediência aos princípios consubstanciados no instrumento de
constituição societária, sob pena de ser compulsoriamente afastado, a requerimento de qualquer dos demais sócios, ou do próprio Ministério Público, quando esse órgão detectar, de ofício, os desvios que tenham sido
praticados.
O fundamento para tal posicionamento é o de que “A pessoa jurídica
não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso
em que pode o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios, ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as
circunstâncias, a dissolução da entidade”. É importante destacar, contudo,
os casos em que o sócio pode ser excluído pela via administrativa, conforme previsto no art. 1.085 do CCB.
Tal princípio apenas vem consagrar a chamada teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, que, segundo reza o novo
código, em caso de desvios ilícitos por parte de um ou mais administradores, com abuso no exercício de suas funções, desde que prejudiciais ao
objeto societário, e com seqüelas prejudiciais a terceiros, poderão os efeitos de tais atos estender-se aos bens particulares dos administradores ou
sócios da pessoa jurídica. Embora o art. 50 do novo código não explicite,
tais medidas somente poderão ser requeridas em juízo, não só pelos demais sócios e pelo MP mas também pelo terceiro prejudicado, e até aquele
interessado e, ao que se vê do dispositivo, tais efeitos não se limitarão
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somente ao administrador, eventualmente serão estendidos aos demais sócios, caso provado que esses tenham tido ciência ou participado, ainda que
não de forma ativa, dos atos de má gestão.
Na verdade, tal regra já vinha sendo aplicada com bastante regularidade pelo Judiciário, com lastro em evolução doutrinária e jurisprudencial
que autorizava a extensão da responsabilidade civil à pessoa do sóciogerente e dos demais sócios, nos casos anteriormente descritos.
2.3
Da cessão de quotas
Dispõe o novo código, em seu art. 1.057, que, caso não haja vedação
no contrato, qualquer sócio poderá ceder suas cotas, total ou parcialmente, a outros sócios, ou mesmo a “estranhos”, nesse último caso, se não
houver oposição de outros sócios componentes de no mínimo um quarto
do capital social. Vale dizer: é curial que conste em contrato/alteração a
vedação expressa à livre transferência de cotas.
2.4
Da administração
Segundo a antiga legislação, os sócios poderiam desenvolver atividades de gerência, assim nominados, por exemplo, gerente-geral, gerente
administrativo etc. Pelo novo código, “gerente” somente poderá ser entendido como um preposto, a serviço da administração, ou dos órgãos de
administração.
Para definir quem será o administrador, ou os membros da administração, naturalmente deve prevalecer a vontade da maioria de votos, estes
correspondentes ao número de cotas que cada sócio possuir, ou seja, a
metade mais um.
Parece-nos óbvio, embora assim não tenha disposto o legislador,
que caso o sócio minoritário venha a se sentir prejudicado, ou haja fundado
receio por parte dele de que haja perigo para os interesses da sociedade,
eventual constituição de membros da administração, ou sua modificação,
poderá argüir em juízo tal aspecto, colimando a salvaguarda de seus direitos e do próprio objeto societário.
Assim, se a administração for coletiva, poderá se desmembrar em
presidente, diretor, superintendente etc.
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Poderá a administração ser desenvolvida por terceiros, não-sócios,
desde que o contrato assim o permita, mas tal designação dependerá da
aprovação unânime dos sócios, enquanto não integralizado o capital, ou de
dois terços após a integralização. Equivale à figura do antigo mandatário,
com poderes especiais e específicos; agora, entretanto, deve o ato de posse do administrador ser levado a registro no órgão público competente.
Assim, o disposto no art. 1.018, no sentido de que poderá o administrador
constituir mandatários da sociedade, deverá ser entendido com as ressalvas antes citadas. (O exercício da administração é indelegável, pelo que só
se pode constitui mandatário se autorizado em contrato. Por aplicação
analógica do disposto no art. 1.012, CC, deve haver registro em cartório.)
A exemplo do que se observa em quase todos os atos desenvolvidos
à frente da sociedade, ou em nome dela, também aqui se exige a averbação
do instrumento de nomeação do administrador, à margem do registro da
sociedade no órgão respectivo. Entendemos ser absurdo e desnecessário
tal formalismo, vez que, obviamente, e como estabelece o próprio código,
para que se eleja determinado administrador, ou para que se altere, imprescindível é modificar o contrato social, que forçosamente será levado a
registro. A medida imposta pela lei somente vem onerar o empresário, inaugurando um frenesi de receitas notariais sem igual na história e incomum em
países que buscam a desburocratização e o prestígio da iniciativa privada
legalizada.
O contrato social delimitará os poderes do administrador, na forma
do art. 1.015 do CC, e bem assim, caso haja administração coletiva, o
estabelecimento de poderes isolados e conjuntos, como, aliás, ocorre normalmente, não havendo, pois, maiores modificações.
2.5
Do conselho fiscal
Poderá a sociedade dispor em seu contrato, ou na alteração, sobre a
criação de um conselho fiscal, que será sempre composto de no mínimo
três pessoas, sócias ou não, desde que residentes no país e devidamente
eleitas em assembléia, vedadas as pessoas constantes do parágrafo 1º do
art. 1.066, CC.
Por se tratar de uma faculdade que o legislador pôs ao alcance da
sociedade, entendemos que referido conselho fiscal somente será viável, e
operacional, nos casos em que for elevado o número de sócios, e eventual301
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mente difusos seus interesses e atuações na sociedade, já que caberá ao
conselho examinar livros e papéis, caixa, movimentações financeiras, enfim, tudo o que disser respeito aos atos de administração, “fiscalizando” e
fazendo cumprir os termos do objeto societário, além de poder denunciar
erros, fraudes ou vícios apurados, convocar assembléias para esse fim e
demais poderes que o legislador introduziu.
2.6
Das deliberações dos sócios e dos atos formais
Aqui o legislador não estabeleceu a faculdade legal, mas sim a
obrigatoriedade de atenção a tais disposições. Logo, dependem de deliberação dos sócios (art. 1.071 do CC): aprovação das contas da administração; designação dos administradores, quando feita em ato separado; destituição dos administradores; modo de sua remuneração, quando não estabelecido no contrato; modificação do contrato social; incorporação, fusão
e dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação; nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das suas contas; e pedido
de concordata.
Todas as deliberações deverão ser tomadas em reunião ou assembléia, conforme definido em contrato social, e devem ser precedidas de
convocação formal a ser realizada pelos administradores.
Quando a sociedade tiver dez sócios ou mais não será possível convocar reunião, mas as deliberações deverão obrigatoriamente ser tomadas
em assembléia.
Dispõe a lei que as reuniões ou assembléias serão desnecessárias
quando todos os sócios decidirem por escrito sobre a matéria objeto dos
debates.
Tais reuniões/assembléias também podem ser convocadas por quaisquer sócios, não administradores, nos casos previstos no art. 1.073 do
CC. (Atentar para o fato de que o CC não estabelece prazo para a convocação prévia apenas deduz que deve ser “hábil”.)
Quando feitas as deliberações em reuniões ou assembléias, deverão
obedecer, para que surtam efeitos legais, aos seguintes quóruns:
• Votos correspondentes a três quartos do capital social, para os
casos de modificação do contrato social e incorporação, fusão e dissolução da sociedade, ou cessação do estado de liquidação;
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• Votos correspondentes a mais da metade do capital social, para
designação e destituição de administradores, modo de sua remuneração e
pedido de concordata;
• Pela maioria dos votos dos presentes, para os demais casos.
Quando o contrato dispuser sobre a realização de assembléia, esta
deverá ocorrer pelo menos uma vez por ano, para as deliberações de que
trata o art. 1.078 do CC.
2.7
Aumento ou redução do capital
Ao dispor o CC sobre o aumento do capital ou sua redução, olvidou-se de que isso importa em alteração do contrato social, sendo desnecessário criar uma seção exclusivamente para tal desiderato.
Assim, o aumento de capital, ou sua redução, causará alteração forçosa do contrato. Tais decisões deverão ser tomadas em reuniões ou assembléias ou, caso antes mencionado, mediante anuência/acordo escrito
entre os sócios, e sua sistemática obedecerá ao disposto nos arts. 1.081 a
1.084 do CC.
2.8
Exclusão compulsória de sócio minoritário
Importante inovação foi essa, introduzida pelo legislador, e que vem
para eliminar uma série de controvérsias e pendências em juízo e fora dele,
envolvendo sócios e sociedades.
Assim, a exclusão compulsória do sócio minoritário passa a ser possível, mediante ato de deliberação dos demais sócios, de ordem administrativa, sempre que comprovadamente o sócio a ser excluído estiver agindo de forma temerária, pondo em risco os interesses da sociedade ou,
como entendemos, agindo de maneira incompatível com os negócios ou
em confronto com os demais sócios (art. 1.085, CCB).
Tal previsão, de exclusão por “justa causa”, deverá vir no contrato, e
será deliberada em assembléia ou reunião, especialmente convocada para
esse fim, dando-se ciência formal ao sócio, da reunião ou assembléia que
irá deliberar nesse sentido, que estiver na iminência de ser excluído. O
prazo de ciência não foi delimitado pelo legislador, que apenas o situou
como “em tempo hábil”, dando a entender, a nosso ver, que anteceda, no
mínimo, cinco dias da data prevista para a assembléia ou reunião.
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Essa disposição, contudo, não inibe que o sócio excluído possa questionar em juízo o seu desligamento forçado, inclusive como forma de evitar
abusos no exercício do poder que a detenção majoritária de ações possa
proporcionar.
Deve-se destacar, ainda, o fato de que, com o desligamento compulsório, pela via administrativa, os haveres do sócio serão apurados na
forma do contrato ou, em caso de não aceita a apuração, por via de ação
própria.
Por fim, tem especial importância a faculdade, pois evita o procedimento de dissolução “parcial” da sociedade, em juízo, e que se impunha,
como provocação judicial, que se excluísse o sócio indesejado.
Merece destaque, ainda, o disposto no art. 1.002 do CC direcionado
para as sociedades “simples” (antiga sociedade civil), mas aplica-se
subsidiariamente às sociedades empresárias (limitadas), por força do disposto no art. 1.053, caput, segundo o qual “A sociedade limitada rege-se,
nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples”. Assim,
tem-se que, mesmo minoritário, o sócio não poderá também ser substituído “no exercício das suas funções”, sem anuência dos demais sócios, o
que vale dizer, sem a aprovação unânime desses, e tudo mediante a devida
modificação do contrato social.
2.9 Responsabilidade do sócio em relação a terceiros
O vocábulo “terceiros” empregado pelo legislador quer dizer, via de
regra, o “credor”, seja da sociedade, seja do próprio sócio.
Ao passo que na sociedade simples (civil) é ilimitada a responsabilidade, embora subsidiária, ou seja, primeiro respondem os bens da sociedade, para, em seguida, serem abrangidos os bens do sócio (art. 1.023,
CC), na sociedade empresária (limitada), a responsabilidade do sócio é
limitada, ressalvados os casos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme art. 1.052, CC; portanto, no caso, é inaplicável a regra do
art. 1.053 do CC, pois há, no capítulo atinente à sociedade empresária,
disposição expressa a respeito.
Quanto ao sócio admitido na sociedade, mesmo após sua criação,
sua responsabilidade não se restringirá ao momento de seu ingresso, sendo
extensiva às dívidas anteriores. Tal disposição, ao que consta do CC, aplica-se exclusivamente às sociedades simples e exige redobrada cautela do
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sócio novo, pois, caso esteja contaminada a sociedade por dívidas pretéritas à sua entrada, em relação às mesmas estará subsidiariamente responsável, entretanto, a responsabilidade não é solidária, a teor do disposto no
art. 1.024 do CC. (A pergunta que fica é a seguinte: qual o objetivo do
legislador em estabelecer tal termo legal, na forma do art. 1.003, parágrafo
único do CCB, semelhante, inclusive aos casos de falência? A resposta
parece ser a de preservação dos interesses de terceiros credores.)
Outra inovação do código afeta as sociedades simples e diz respeito à possibilidade de o credor particular do sócio, e na insuficiência de
bens do devedor, fazer recair a execução sobre os haveres do sócio-devedor, inclusive para, em última análise, requerer a liquidação das cotas do
devedor, conforme disposto no art. 1.026 do CC, ou seja, com penhora,
avaliação e praceamento das cotas, disponibilizando-se o resultado da realização de tais ativos ao juízo no qual tramita a execução.
Na verdade, a penhora de cotas se mostra improfícua, vez que, via
de regra, não resulta em benefício econômico para o credor. Poderá pedir,
contudo, a penhora de lucros, que somente dará resultado se houver lucros
apurados em balanço e a serem distribuídos. Se recair sobre lucros futuros
e eventuais, certamente correrá o credor grande risco de nada receber, na
medida em que poderá haver manipulações no que diz respeito à contabilidade.
2.10 Da resolução da sociedade
Se a resolução se der por morte, a partir do advento no novo código, não podem mais os herdeiros de sócio morto, ou o cônjuge sobrevivente, passar a, automaticamente, fazer parte da sociedade, exceto no caso
de mútuo acordo com os demais sócios. Seu direito será limitado à percepção de lucros, até que se liquide a sociedade, parcialmente, com o fito de
apurar os haveres do sócio morto. (Pela regra antiga, havia a automática
sucessão pelos herdeiros; hoje isso é exceção e desde que previsto em
contrato.)
Da mesma forma, quando do inventário de tal sócio, não mais será
correto arrolar as “cotas” de determinada sociedade, mas apenas os direitos sobre os benefícios que essas cotas vierem a gerar, ou seja, os lucros
propriamente ditos.
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Embora tenha se silenciado o legislador acerca da possibilidade de a
sociedade apresentar prejuízos, ainda durante o período em que o sócio
morto compunha o quadro social e, portanto, por se tratar de encargo a ser
suportado pelos sócios, entendemos que, por aplicação analógica, deverá
o espólio, ou os herdeiros, nesse caso, suportar tais ônus.
Faculta-se, outrossim, ao sócio, retirar-se da sociedade, notificando
aos remanescentes previamente, podendo ou não alienar suas cotas a um
dos sócios. Não exercendo os remanescentes o direito preferencial, poderá alienar a terceiros. Embora o art. 1.029 aluda à “justa causa”, com o
devido respeito, e ao nosso modesto aviso, também poderá desvincular-se
sem a necessidade de invocar fator grave, posto que a ninguém se pode
impor a obrigação de associar-se ou manter-se associado (CF, art. 5º,
XX) senão por sua livre vontade.
Disporá o contrato, ou a lei, se o desligamento de um sócio implicará
ou não dissolução da sociedade. Em caso de mera resolução da sociedade, a solução será a mais singela, ou seja, apuração dos direitos do sócio
morto, ou que se retira, evidentemente sem prejuízo de querelas judiciais,
caso haja controvérsia acerca do modus operandi para a sua apuração,
ou o resultado obtido, como soe ocorrer em dissoluções judiciais de sociedades, totais ou parciais (esta última modalidade, fruto de evolução doutrinária e jurisprudencial, visando preservar o caráter social do empreendimento).
A resolução pode se dar de forma compulsória, por falta grave de
sócio ou por conduta incompatível com os objetivos societários, hipóteses
já comentadas neste despretensioso estudo.
3
SOCIEDADES POR AÇÕES
3.1
Origem
Segundo o que se colhe da melhor doutrina, aí insertos Modesto
Carvalhosa e Nelson Eizirik1, já nos fins da Idade Média, grandes capitalistas costumavam fazer empréstimos aos estados, para realização de obras
1
CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. A nova Lei das S. A. 1.ed. São Paulo:
Saraiva 2002.
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públicas, recebendo deles o direito de cobrar impostos a fim de com estes
pagarem os juros dos empréstimos.
A operação mostrava-se tão compensadora que passaram a se reunir em consórcios, de modo a avolumar as ofertas e, com isso, amealhar
mais e mais juros. A responsabilidade dos sócios era limitada apenas à
importância com que entravam para o capital, ou seja, ao valor do seu
empréstimo.
Uma dessas sociedades, denominada Casa de São Jorge, fundada
na cidade de Gênova, foi, em 1407, transformada em Banco de São Jorge,
passando a ter fins especulativos e, desse modo, caracterizando-se como
sociedade comercial. Os títulos de renda tomaram o caráter de ações, passando os seus possuidores a perceber, não os juros dos empréstimos que
haviam feito, mas lucros ou dividendos obtidos pelas transações do banco. Em 1419, o Banco de São Jorge passou a possuir estatutos que regulavam os direitos e obrigações dos sócios, o modo de administração e a
eleição dos administradores (conselho geral), revestindo-se, assim, de
características de verdadeira sociedade anônima.
A partir do início do século XVI, com as grandes descobertas ultramarinas, passaram os empreendedores exploradores a buscar investimentos para tais proezas, captando, então, investimentos particulares, na maioria das vezes anônimos, cuja responsabilidade era restrita ao investimento
de cada participante.
A primeira sociedade que se formou para essa exploração foi a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, no ano de 1602; depois dela surgiram outras, não apenas na Holanda como também em vários países. A
participação e a influência dos governantes eram decisivas, inclusive porque submetiam ao crivo estatal a autorização para criação de tais empresas, porquanto lhes interessava diretamente o resultado da empreitada; em
contrapartida, legislavam em favor dos descobridores, para lhes proporcionar uma série de privilégios, especialmente de natureza tributária, daí
porque, em nosso antigo Código de Comércio, foi copiada essa antiga
prática, mesmo quando há muito superada a era das grandes descobertas.
Atualmente as sociedades anônimas se consubstanciam, geralmente,
em poderosos grupos econômicos e financeiros, com seus multifários braços, que não prescindem, dada a sua pujança, de mecanismos reguladores
cada vez mais amiudados e severos, colimando não só proteger o mercado
como também o pequeno investidor, já que, vez por outra, assistimos a
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manipulações protagonizadas por especuladores ou mesmo pelos detentores da maioria do capital votante.
3.2
Características e natureza
Remontam ao Código Comercial, arts. 295 a 299, a constituição e o
funcionamento das sociedades anônimas, a que dava a nomenclatura de
companhias, e que não raro assim são, mesmo hodiernamente, definidas
na doutrina e na jurisprudência. Segundo aquele vetusto regramento, necessitavam de autorização do governo para sua constituição, que, por sua
vez, precedia de aprovação pelo Poder Legislativo, sempre que, por sua
natureza ou composição de ações, gozasse de algum privilégio fiscal ou
jurídico.
Até a edição do Decreto-Lei nº 2.627, de 26 de setembro de 1940,
quando de sua publicação, várias leis modificaram os artigos que introduziram tal modalidade societária no país, verbi gratia, o Decreto nº 3.150,
de 3 de outubro de 1882, revogando o art. 37 do Código de Comércio,
que ditava a vinculação à autorização governamental.
A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 2.627/40, houve
certa consolidação acerca da constituição e do desenvolvimento das sociedades por ações, mas, com o passar dos anos, especialmente com o incremento das relações de mercado, quer no aspecto nacional, quer no
aspecto mundial, passou a reclamar modernização. Assim, pelas mãos de
José Luis Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho, criou-se o anteprojeto
de lei, que, encaminhado ao Congresso Nacional, convolou no Projeto de
Lei nº 2.559/76, que, por sua vez, desaguou na Lei nº 6.404, de 15 de
dezembro de 1976, com alterações posteriores, por via da Lei nº 9.457,
de 5 de julho de 1997 e, por fim, pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de
2001.
Nas sociedades anônimas, o capital é dividido em ações e a responsabilidade do sócio é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou
adquiridas.
3.3
Sociedades Anônimas abertas e fechadas
Segundo o que dispõe o art. 4o e seus parágrafos, da Lei n° 10.303,
de 31 de outubro de 2001, a principal forma de classificação de socieda308
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des anônimas é a que as divide em abertas e fechadas, conforme os valores
mobiliários de sua emissão sejam ou não admitidos à negociação no mercado de valores (bolsas de valores).
Uma das características essenciais das sociedades anônimas é a livre
e ampla cessão/circulação de suas ações, cuja titularidade é desimportante
para a sociedade. Sucede que, para haver a transferência das ações, de
caráter sempre oneroso, curial é que esteja a companhia cadastrada e registrada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que é o órgão de
controle do mercado de capitais, e submetida ao crivo ao qual se submetem as sociedades que movimentam suas emissões públicas de ações no
mercado de valores mobiliários (Lei nº 6.385, de 7 dezembro de 1976, art.
19).
Em outro giro, quando essas sociedades, por razões administrativas,
optam por não se valerem de tal modalidade como forma de buscar recursos de investidores, diz-se que são fechadas.
Fran Martins ensina que
Não é assim, o número maior ou menor de acionistas que distingue a
companhia aberta da fechada. Esta pode ter um número avultado de
acionistas, mas, se as ações não são negociadas no mercado de valores mobiliários, serão sociedades fechadas. (...) Não se deve confundir a companhia fechada com a chamada sociedade familiar. Esta
á sempre uma sociedade fechada de uma mesma família ou de pessoas muito próximas dessas; por isso essas ações não são negociadas no mercado de valores mobiliários.2
Discordamos do autor quando estabelece condição inexorável e imperativa de qualificar sempre como fechadas as sociedades familiares, uma
vez que o controle acionário pode encontrar-se em mãos de uma ou mais
famílias, mas, ao mesmo tempo, pode-se promover oferta públicas de ações,
buscando investimentos, incremento de capital, diversificação de tipos de
ações etc., como no caso do Grupo Pão de Açúcar, da Coteminas, entre
outras.
Segundo Marcelo M. Bertoldi,
2
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial - Sociedades por ações. 29.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 287-288.
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Tal distinção, que inexistia no Decreto-Lei 2.627/40, permite o estabelecimento de tratamento jurídico distinto a companhias economicamente estruturadas de forma quase antagônica. De fato, o mercado exige a imposição de normas mais rígidas, de um controle mais
efetivo sobre as companhias que fazem oferta pública de seus valores mobiliários. Tenta-se, por esta via, fornecer maior segurança aos
investidores (...).3
Diferem as sociedades fechadas das abertas basicamente pelo fato
de que naquelas a negociação dos valores mobiliários se dá de forma particular, ou seja, sem oferta pública ou negociação em bolsa de valores.
No mais, regulam-se pelos mesmos parâmetros da lei, inclusive no
que diz respeito ao valor de ações, compreendidos em valor nominal,
valor patrimonial, valor de negociação e preço de emissão, exceção
feita exclusivamente ao valor econômico, que se consubstancia no valor
estimado que uma ação provavelmente atingiria em uma operação de mercado aberto.
3.4
Fechamento da companhia – critérios
Poderá uma companhia aberta converter-se em fechada, mas, nesse
caso, e segundo os parágrafos 4º, 5º e 6º do prefalado artigo, e art. 4º A e
seus parágrafos, após o cancelamento de seu registro para negociações no
mercado, e se for feita uma oferta pública para aquisição das ações em
circulação, mas, desde que o faça por preço justo.
A conversão de uma companhia aberta em fechada poderá, se operada de maneira contrária ao disposto em lei, resultar em prejuízos consideráveis aos acionistas minoritários, mormente àqueles sem direito a voto,
uma vez que, com tal pretensão, a ser deliberada em assembléia especial,
extraordinária, realizada para esse fim específico, observarão uma perda
abrupta e irreversível da liquidez de suas ações, ou seja, a negociação delas no mercado se tornará inviável, restando a esse minoritário acatar o
preço ofertado para suas ações ou optar por permanecer como acionista,
sendo essa última opção certamente desvantajosa.
3
BERTOLDI, Marcelo M. Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. 1.ed. São Paulo: RT,
2002, p. 25-26.
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Daí que, a despeito da oferta pública de ações, se houver precisa
demonstração de que o preço fixado não representa o chamado valor
patrimonial real (e não o contábil), poderá o acionista preterido buscar a
devida tutela judicial, inclusive como modo de embargar a transformação
societária.
Assim, para o caso de pretender a companhia convolar-se em sociedade de capital fechado, deverá perseguir os seguintes critérios: apresentar o patrimônio líquido contábil, apresentar o patrimônio líquido a preço
de mercado (patrimônio real), fluxo de caixa descontado, cotação de ações
no mercado de valores mobiliários, ou outros critérios aceitos pela CVM.
Logo, vê-se que o legislador concedeu ao administrador liberdade
para a fixação do valor atribuído às ações em poder de acionistas anônimos e minoritários, vez que, embora definido em assembléia especial, como
antes gizado, poderá obedecer a critérios adotados pelo acionista majoritário, que poderá, portanto, manipular o preço ofertado, em detrimento
dos demais acionistas.
Caso isso ocorra, e segundo dispõe o art. 4º da lei, poderão os
titulares de ações em circulação, em quantidade não inferior a 10% das
ações em circulação, não envolvidos na administração da companhia, convocar assembléia destinada a deliberar sobre uma nova e mais ajustada
avaliação (parágrafo 2º), ou seja, o quórum deliberativo será composto,
via de regra, pelos minoritários, não administradores.
4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTOLDI, Marcelo M. Reforma da Lei das Sociedades Anônimas.
1.ed. São Paulo: RT, 2002.
CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. A nova Lei das S. A. 1.ed.
São Paulo: Saraiva 2002.
FIÚZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva,
2002.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial - Sociedades por ações.
29.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Sociedade limitada à luz do novo Código Civil brasileiro. Campinas: LZN, 2003.
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VINICIUS MOREIRA MITRE
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Direito empresarial à luz do novo Código Civil. Campinas: LZN, 2003.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva,
1982, vol. 2.
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24
CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À
BIODIVERSIDADE E PROPRIEDADE INTELECTUAL
LYSSANDRO NORTON SIQUEIRA
Sumário
1. Introdução. 2. Conhecimento tradicional associado à
biodiversidade. 3. Propriedade intelectual. 4. Proteção
do conhecimento tradicional associado à biodiversidade
e à propriedade intelectual. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
Resumo
A procura por um desenvolvimento mundial sustentável tem aberto
diversas frentes de pesquisas e propiciado o entendimento de vários países
em torno de algumas questões ambientais importantes, como se depreende,
por exemplo, do Protocolo de Kyoto e da Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB). A CDB, resultado da Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Cnumad - Rio 92), realizada
no Rio de Janeiro, em junho de 1992, constitui um dos instrumentos internacionais mais importantes relacionados ao meio ambiente. Importantes
marcos legais e políticos têm sido definidos pela CDB. Esses marcos orientam a gestão da biodiversidade em todo o mundo. Também no âmbito
da Convenção de Diversidade Biológica foi iniciada a negociação de um
Regime Internacional sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição
dos Benefícios resultantes desse acesso. A ausência de instrumentos jurídicos adequados tem permitido grandes controvérsias acerca do tema, com
acusações de apropriação indevida da biodiversidade brasileira e do conhecimento tradicional a ela associado. O presente trabalho examina as
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 313-334
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LYSSANDRO NORTON SIQUEIRA
possíveis alternativas apontadas para regulação jurídica do conhecimento
tradicional associado à biodiversidade, destacando, principalmente, as implicações da aplicação ao tema das normas relativas à propriedade
intelectual.
Abstract
The search for world sustainable development has opened a new
field of legal research. Countries have started the debate about serious
environmental law issues such as the Kyoto Protocol and the Convention
on Biological Diversity (CBD). CBD had defined some legal and policy
issues related to biodiversity. Besides, CBD started the negotiation over an
international regime regarding the access to genetic resources. The lack of
proper legal rules has led to controversies regarding Brazilian biodiversity
and the protection of the associated traditional knowledge. This article
analysis possible legal solutions for the regulation of traditional knowledge
associated with biodiversity. In this research we present the conflicts between
the protection of traditional knowledge and the existing rules of Intellectual
Property.
1
INTRODUÇÃO
A busca pela conciliação entre as iniciativas de proteção ao meio
ambiente e de desenvolvimento econômico é verdadeiramente uma preocupação mundial.
Nesse sentido, a necessidade de um desenvolvimento sustentável
tem sido imposta aos setores produtivos.
A preocupação com o tema não é recente. Alguns instrumentos jurídicos já regulavam internacionalmente, desde o início do século XX, a relação entre meio ambiente e desenvolvimento; podem ser citadas a Convenção sobre a Preservação da Fauna e da Flora, de 1933, e a Convenção
Internacional para a Regulação da Caça das Baleias, de 1946.
Recentemente, a busca por um desenvolvimento mundial sustentável
tem aberto diversas frentes de pesquisas e propiciado o entendimento (não
unânime, é verdade) de diversos países em torno de algumas questões importantes, como se depreende, por exemplo, do Protocolo de Kyoto e da
Convenção sobre Diversidade Biológica.
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A CDB, resultado da Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento (Cnumad - Rio 92), realizada no Rio de
Janeiro, em junho de 1992, constitui um dos instrumentos internacionais
mais importantes relacionados ao meio ambiente. Foi assinada por 168
países e ratificada por 188, sendo certo que esses últimos se tornaram
partes da Convenção.
Importantes marcos legais e políticos, que orientam a gestão da
biodiversidade em todo o mundo, têm sido definidos pela CDB, tais como
o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; o Tratado Internacional
sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura; as Diretrizes de Bonn; as Diretrizes para o Turismo Sustentável e a Biodiversidade;
os Princípios de Addis Abeba para a Utilização Sustentável da
Biodiversidade; as Diretrizes para a Prevenção, Controle e Erradicação
das Espécies Exóticas Invasoras; e os Princípios e Diretrizes da Abordagem Ecossistêmica para a Gestão da Biodiversidade.
Também no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica, foi iniciada a negociação de um Regime Internacional sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição dos Benefícios resultantes desse acesso. Tal
iniciativa, entretanto, tem discutível efetividade, posto que a CDB não teve
a assinatura dos Estados Unidos da América, maior detentor de registros
de patentes e marcas.
No bojo dessas iniciativas, a biodiversidade tem ganhado destaque
desde o início da última década, principalmente pelo interesse de diversos
setores econômicos e ambientais em torno do tema.
O Brasil, um dos países mais ricos do mundo em biodiversidade,
tem importante papel no cenário mundial.
Ocorre, contudo, que a ausência de instrumentos jurídicos adequados tem permitido e até mesmo incentivado grandes controvérsias acerca
do tema, com acusações de apropriação indevida da biodiversidade brasileira e do conhecimento tradicional a ela associado.
Diversos já são os casos noticiados de empresas de diversas nacionalidades que utilizam conhecimentos tradicionais de comunidades brasileiras para produzir os mais variados itens comerciais, registrando as respectivas patentes e explorando marcas, com a acusação de desprezo pelas
comunidades detentoras desse conhecimento tradicional.
Não se pode, contudo, generalizar a ponto de se atribuir ao setor
produtivo todos os males do acesso à biodiversidade, muito menos des315
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conhecer os benefícios que podem ser proporcionados à população mundial por algumas descobertas relativas, principalmente, à exploração honesta e racional da flora, como é o caso da indústria farmacológica.
Não se pode igualmente taxar de biopirataria toda e qualquer iniciativa relativa à exploração da biodiversidade, nem caracterizar como conhecimento tradicional todo e qualquer procedimento em que se utilizem
recursos naturais, sem que se tenha um prévio trabalho de pesquisa sério e
apto a identificar a comunidade responsável por seu desenvolvimento, sua
originalidade e seu processo produtivo.
Certo é que não há como impedir o acesso à biodiversidade apenas
pelo receio de esbulho de eventual conhecimento, talvez tradicional, de
uma ainda não identificada comunidade.
Como se vê, muitas são as interrogações relativas ao tema, mostrando-se, portanto, imprescindível a instituição de instrumentos jurídicos aptos a regular com precisão a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados a ela.
Uma das alternativas apontadas recentemente para regulação jurídica da matéria é a utilização do arcabouço do instituto da propriedade intelectual como possível forma de garantir mais segurança às comunidades
tradicionais e às empresas que desejam explorar regularmente o potencial
brasileiro.
O presente trabalho pretende, assim, tratar do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não abordando temas, também fecundos,
como os conhecimentos tradicionais relativos a outras áreas, por exemplo,
a artística ou a literária.
Inicialmente, cuidaremos da definição de conhecimento tradicional
associado à biodiversidade, passaremos, em seguida, a um panorama das
normas jurídicas internacionais e nacionais já editadas sobre o tema. No
tópico seguinte, trataremos da normatização da propriedade intelectual.
Como ponto central do trabalho, buscar-se-á uma análise dos possíveis conflitos entre a aplicação das normas relativas ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade e daquelas relativas à propriedade intelectual.
O objetivo é a justa repartição dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos, conforme determinado pela Conversão de Diversidade Biológica.
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Por fim, passaremos às considerações sobre a pesquisa realizada,
expondo possíveis soluções.
2
CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À
BIODIVERSIDADE
2.1
Definição
Antes mesmo de abordar as polêmicas que circundam o tema, há
que se tratar da definição de conhecimento tradicional associado à
biodiversidade, distinguindo-o, de início, dos conhecimentos tradicionais
relativos a outras áreas.
Com efeito, as comunidades tradicionais produzem conhecimentos
de toda sorte, em áreas da cultura, como a artística ou a literária.
Neste trabalho, será abordado o conhecimento tradicional relacionado à biodiversidade.
Biodiversidade, segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica,
adotada ao final da Conferência do Rio (junho de 1992) e editada no dia
29 de dezembro de 1993, significa:
(...) a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que
fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.1
Conhecimento tradicional tem a seguinte definição na lição de Guilherme Cruz de Mendonça:
Outrossim, os conhecimentos tradicionais são aqueles desenvolvidos e acumulados por populações tradicionais, passados oralmente
de geração em geração. Cabe ressaltar que o conhecimento tradi1
BRASIL. Decreto Legislativo nº 2, de 1994. Convenção sobre diversidade biológica. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/cdbport.pdf>. Acesso em:
15 ago. 2006.
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cional pode estar associado à biodiversidade ou não. Quando o conhecimento tradicional é associado à biodiversidade, seu acesso é
regulado pela Medida Provisória 2186-16/2001.2
Já para a Organização Mundial de Propriedade Intelectual, o conhecimento tradicional é tratado da seguinte forma:
A Organização Mundial de Propriedade Intelectual define o conhecimento tradicional como “tradição literária, artística ou científica,
performances, invenções, descobertas científicas, desenhos, marcas,
nomes e símbolos e outras inovações e criações resultantes da atividade intelectual nos campos da indústria, ciência e das artes”.3
Deve-se ressaltar, entretanto, que “biodiversidade”, neste estudo,
deve ser vista à luz da Convenção de Diversidade Biológica, cujos objetivos são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de
seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias
pertinentes.
Mostra-se necessária, assim, a definição de patrimônio genético, que,
segundo o disposto no art. 7º, I, da Medida Provisória nº 2.186-16/2001,
é:
(...) informação de origem genética, contida em amostras do todo ou
de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes
seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou
mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in
situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva.
2
3
MENDONÇA, Guilherme Cruz de. Interfaces entre a proteção da cultura quilombola e a
conservação da biodiversidade. Direitos humanos e meio ambiente. BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 551.
Idem.
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Conhecimento tradicional associado é, portanto, a informação ou a
prática de determinadas comunidades indígenas ou locais, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, transmitida, geração a geração,
das mais diversas formas, com valor real ou potencial, associada ao
patrimônio genético.
2.2
Legislação estrangeira
Os instrumentos jurídicos destinados à conciliação entre desenvolvimento e proteção do meio ambiente remontam à década de 30.
No que se refere à biodiversidade e ao conhecimento tradicional a
ela associado, pode-se afirmar que a Convenção de Diversidade Biológica
é o primeiro instrumento jurídico de maior abrangência internacional, ao
qual se seguiram outras convenções relativas ao tema.
Juliana Santilli4 ressalta, entretanto, que outros instrumentos internacionais já haviam tratado da diversidade cultural de comunidades indígenas, tais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Resolução nº 1.990/27 do Grupo de Trabalho sobre Populações
Indígenas, criado em 1982 pelo Conselho Econômico e Social da ONU.
a) Convenções internacionais
Como já afirmado, a Convenção de Diversidade Biológica, assinada
no Rio de Janeiro durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento realizada em 1992, constitui o marco inicial
da abrangente discussão acerca de conhecimento tradicional associado à
biodiversidade.
A proteção dos conhecimentos tradicionais é tratada pela CDB em
seu artigo 8 (j) ao estabelecer que deverão ser respeitados, preservados e
mantidos o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e
populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica.
A Agenda 21, assinada também naquela oportunidade, tratou, no
seu capítulo 26, do reconhecimento e fortalecimento do papel dos povos
4
SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. Revista de Direito Ambiental, nº 29,
p. 83, 2003.
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indígenas, por meio de instrumentos legais que protegem a sua propriedade intelectual e cultural e o direito à preservação de sistemas e práticas de
acordo com seus costumes.
Após o citado “marco inicial”, quando começou uma efetiva discussão sobre o tema, os organismos internacionais procuraram dar a sua contribuição, seja mediante criação de grupos temáticos de discussão, seja
mediante edição de orientações acerca da questão.
Em detalhado estudo, Jaílson Lucena Batista5 dispõe sobre algumas
dessas iniciativas, a seguir enumeradas:
• CONAIE – Confederação Nacional Indígena do Equador. Em
trabalho conjunto com outras organizações indígenas locais
(Ecuarunari e Fenoc) e com a organização não governamental
Acción Ecológica, elaborou uma proposta de direitos coletivos e
biodiversidade;
• FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura. Aprovou o Tratado Internacional de Recursos
Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura, tratando, de forma
limitada, da proteção dos conhecimentos tradicionais;
• OMC – Organização Mundial do Comércio. Tratou dos conhecimentos tradicionais no art. 27.3 (b) do Acordo sobre Aspectos
dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPs, em inglês TradeRelated Intellectual Property Rights);
• OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual –
(WIPO – World Intellectual Property Organization). Criou uma
divisão sobre propriedade intelectual mundial que desenvolveu
vários estudos sobre o tema;
• UNCTAD (United Nations Conference on Trade and
Development) – Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento. Promoveu o Encontro de Especialistas
sobre Sistemas e Experiências Nacionais para a Proteção do
Conhecimento Tradicional;
• UNHCHR (United Nations High Commissioner for Human Rights)
– Alto comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Preparou um relatório sobre o possível conflito entre prote5
BATISTA, Jaílson Lucena. Conhecimentos tradicionais: estudos jurídicos das legislações
e convenções no âmbito nacional e internacional. Belém: UFPA, 2005, p. 30-36.
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ção à propriedade intelectual e proteção ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade;
• WSSD (World Summit on Sustainable Development) – Cúpula
Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável. Recomendou à
Convenção de Diversidade Biológica a instituição de regulamento jurídico internacional apto a garantir a repartição justa e eqüitativa dos benefícios provenientes do acesso aos recursos naturais.
b) Legislação comparada
A ausência de uma regulamentação internacional definitiva não tem
impedido que diversos países tratem do tema.
O Peru, segundo Juliana Santilli6, foi o primeiro país a aprovar uma
lei interna estabelecendo regime de proteção dos conhecimentos coletivos
dos povos indígenas.
Na América do Sul, merece destaque, ainda, o Pacto Andino, um
acordo comercial entre os países da região andina – Colômbia, Equador,
Venezuela, Peru e Bolívia – adotado pela Decisão nº 391, de 1996; o
objetivo principal é a uniformização das normas relativas ao acesso aos
recursos genéticos.
Além dos signatários do Pacto Andino, ou Comunidade Andina, há
outros países que também possuem legislação própria sobre o tema: Costa
Rica, Filipinas, Tailândia, Índia e Malásia.
2.3
Legislação no Brasil
a) Normas federais
Não há registro na legislação do Brasil de referência específica ao
conhecimento tradicional associado à biodiversidade.
Pode-se afirmar, contudo, que a primeira lei a tratar indiretamente
do tema foi o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de
1973), que garantia às comunidades indígenas a posse permanente das
terras que habitavam, com o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes. Assegurava, ainda, o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão.
6
SANTILLI, Juliana.Op. cit., p. 92.
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A normatização explícita do tema no Brasil tem origem na própria
Constituição da República de 1988, em seu art. 225, parágrafo 1º, II.
Posteriormente, conforme já afirmado, o Brasil assinou, em 1992, a
Convenção de Diversidade Biológica, durante a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tendo sido aprovada
pelo Poder Legislativo por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 3 de fevereiro de 1994, e promulgada pelo Presidente da República, em 16 de março de 1998 por meio do Decreto nº 2.519.
Posteriormente, diversas foram as iniciativas legislativas visando à
implementação da Convenção de Diversidade Biológica, podendo ser citados o Projeto de Lei nº 306/1995, de autoria da então Senadora Marina
Silva, Ministra do Meio Ambiente (2002/2006); o Projeto de Lei nº 4.842/
1998, proposto pelo Senador Osmar Dias; o Projeto de Lei nº 4.579/
1998, de autoria do Deputado Jacques Wagner; o Projeto de Lei nº 4.751/
1998 e a Proposta de Emenda Constitucional nº 618/1998, ambos de autoria do Poder Executivo Federal; o Projeto de Lei nº 1.953/1999, proposto pelo Deputado Silas Câmara; o Projeto de Lei nº 3.634/2000, de
autoria do Deputado Paulo Mourão e o Projeto de Lei nº 377/2003, do
Senador Mozarildo Cavalcanti.
O elevado número de projetos divergentes sobre o mesmo tema e a
ausência de um instrumento jurídico efetivo acabaram gerando insegurança
jurídica.
Foi editada, em 29 de junho de 2000, a Medida Provisória nº 2.052,
reeditada, em 23 de agosto de 2001, por meio da Medida Provisória nº
2.186, ainda hoje em vigor, por força da Emenda Constitucional nº 32, de
11 de setembro de 2001.
Como não poderia deixar de ser, o então novo instrumento jurídico
sofreu várias críticas que culminaram com a propositura de duas Ações
Diretas de Inconstitucionalidade: Adin nº 2.246-6, julgada prejudicada pelo
STF, por perda de objeto, e Adin nº 2.289-0, extinta em decorrência de
alterações posteriores no ato normativo.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2289/DF, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura postulou fosse declarada a
inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 2.052-1, de 28 de julho de
2000, sob o fundamento de que “os artigos 10 e 14 da Medida Provisória
supramencionada violavam os artigos 5º, inciso XXII, 231, caput e § 6º,
216, § 1º, assim como a MP em seu todo violava o artigo 62 da Carta
Constitucional”.
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Com a reedição da referida medida provisória, com alterações, sob
nº 2.126-11, em 26 de abril de 2001, a requerente desistiu de seu pedido
de declaração de inconstitucionalidade do artigo 10, segundo o fundamento de que tal dispositivo não mais constava do texto da norma legal.
Em razão das sucessivas reedições da Medida Provisória nº 2.0521 e conseqüentes alterações, de texto e numeração, do então art. 14, a
requerente postulou novo aditamento da inicial, insistindo na declaração de
inconstitucionalidade do dispositivo alegando que o mesmo estaria criando
“exceção – não prevista constitucionalmente – ao direito de propriedade
dos pequenos produtores rurais (art. 5º, inciso XXII)”.
Ocorre que, seguindo o fundamento de que o dispositivo legal atacado teria sofrido substanciais alterações posteriores, o Ministro Néri da
Silveira extinguiu o processo sem julgamento do mérito7.
Verifica-se, portanto, que não houve, pelo Supremo Tribunal Federal, qualquer manifestação acerca da constitucionalidade dos dispositivos
questionados.
A iniciativa judicial, por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, baseado em fundamento vinculado ao direito de
propriedade, demonstra a preocupação da classe produtiva com o tema.
Não se tem notícia, até a presente data, de novo questionamento
acerca das versões posteriores da norma.
Em 28 de setembro de 2001, foi publicado o Decreto nº 3.945 definindo a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e
estabelecendo as normas para o seu funcionamento, mediante a regulamentação dos arts. 10, 11, 12, 14, 15, 16, 18 e 19 da Medida Provisória
nº 2.186-16.
O Decreto nº 3.945 foi posteriormente modificado pelo Decreto nº
4.946, de 31 de dezembro de 2003, que revogou e acrescentou dispositivos, e pelo Decreto nº 5.439, de 3 de maio de 2005, que deu nova redação aos artigos 2º e 4º.
Com a edição da Medida Provisória nº 2.186-16 e com o Decreto nº
3.945, ambos de 2001, o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento
tradicional a ele associado passou a depender, portanto, de deliberação do
7
Adin nº 2.289/DF. Relator: Min. Néri da Silveira. DJ 11/12/2001.
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Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, ficando sujeito à repartição de
benefícios, nos termos e nas condições legalmente estabelecidos.
Os princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional
da Biodiversidade foram instituídos pelo Decreto nº 4.339, publicado em
22 de agosto de 2002.
O Decreto nº 5.479, de 7 de junho de 2005, regulamentou o art. 30
da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, disciplinando as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio
genético ou ao conhecimento tradicional associado.
b) Normas estaduais
Considerando a ausência de regulamentação exaustiva sobre o tema,
seja no cenário internacional, seja no cenário nacional, alguns Estados da
federação vêm, em normas próprias, tratando da proteção ao conhecimento tradicional associado.
No Estado do Acre, a Lei nº 1.235, de 9 de julho de 1997, modificada pela Lei nº 1.238, de 22 de agosto de 1997, dispôs sobre os instrumentos de controle do acesso aos recursos genéticos estaduais.
No Estado do Amapá, a Constituição Estadual, em seu art. 313,
consagrou de forma explícita a proteção da biodiversidade, norteando, dessa
forma, a atuação do legislador infraconstitucional. Nesse sentido, em 1997,
foi publicada a Lei Estadual nº 388, disciplinando o acesso à diversidade
biológica do Estado. A lei estadual foi, posteriormente, regulamentada pelo
Decreto nº 1.624, de 1999.
3
PROPRIEDADE INTELECTUAL
Conforme já afirmado, as normas jurídicas relativas à propriedade
intelectual têm sido apontadas pela doutrina como possível solução para a
regulação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e
da repartição de benefícios decorrentes de sua exploração.
É necessário destacar, entretanto, que existem algumas dificuldades
para adequação de normas já consolidadas em determinados institutos,
cujas próprias definições estão em fase de evolução.
Nesse ponto, serão abordadas algumas características da normatização da propriedade intelectual, passando-se, em seguida, à análise de
sua aplicação ao conhecimento tradicional associado.
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O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
relacionados ao Comércio (TRIPS) impõe aos signatários, membros da
Organização Mundial do Comércio (OMC), a obediência aos seguintes
requisitos na concessão de patentes:
• Novidade;
• Presença de atividade inventiva;
• Possibilidade de aplicação industrial.
O disposto no art. 27.3 (b) do TRIPS autoriza, entretanto, que seus
membros recusem as patentes de plantas e animais:
(...) plantas e animais, com exceção de microorganismos, e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excluídos os processos não biológicos e microbiológicos. Entretanto, os Membros providenciarão a proteção de variedades de
plantas por meio de patentes, por um sistema especial que seja eficaz ou por qualquer combinação desses dois.
Depreende-se, portanto, que não há qualquer impedimento expresso à concessão de patentes de recursos genéticos e bioquímicos. Haveria
certa dificuldade, contudo, quanto ao atendimento dos requisitos necessários, principalmente o da novidade.
A justificativa jurídica encontrada na Europa e na América para se
patentear tais produtos naturais decorre da interpretação de que seriam
substâncias químicas.
Acrescente-se, ainda, o freqüente argumento de que “produto natural” teria sofrido intervenção humana.
4
A PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL
ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE E À PROPRIEDADE
INTELECTUAL
Conforme já afirmado, a importância da biodiversidade, bem como
o conhecimento tradicional a ela associado, tem ganhado crescente espaço
na mídia, especialmente no Brasil, país mais rico do mundo em biodiversidade.
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O jornal Estado de Minas noticiou, no dia 6 de agosto de 2006, a
preocupação com a proteção de bens imateriais do povo do Estado de
Minas Gerais: “Sabores da colônia: IEPHA inicia projeto para reconhecer,
como bens imateriais, a pinga pura de alambique, a rapadura e o açúcar
preto, produzidos em minas desde os tempos do domínio português”.
O setor científico tem se preocupado igualmente com o tema. Ainda
no âmbito de Minas Gerais, cumpre destacar recente estudo, de altíssima
qualidade, realizado pela Faculdade de Farmácia da Universidade Federal
de Minas Gerais, denominado Pesquisa e recuperação de dados e imagens de plantas medicinais utilizadas pela população do entorno da
Estrada Real.
A metodologia utilizada pelos pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais demonstra a dificuldade na coleta de dados e a precariedade desses, assim, foi preciso utilizar como base os registros históricos:8
A escolha da região não foi aleatória. Além de representar um importante marco geográfico e cultural de Minas Gerais, a Estrada Real
apresenta muitos registros históricos do uso de plantas medicinais no
passado. No século XIX a região foi visitada por oito naturalistas
que vieram estudar a colônia portuguesa e escreveram sobre a flora
e a fauna da região, registrando suas observações em diários, com
ricas informações sobre o uso de plantas medicinais.
A utilidade de iniciativas como essa resta demonstrada tanto pela
variedade biológica quanto pela necessidade de documentação dos conhecimentos tradicionais a ela associados o que, para muitos, constitui peçachave na proteção e distribuição dos benefícios oriundos da exploração
desses recursos naturais.
Em que pese a importância do tema, deve-se ressaltar que, conforme afirmado anteriormente, a ausência de uma correta e precisa regulamentação jurídica tem propiciado a exploração indevida ou, melhor dizendo, questionável, dos recursos naturais brasileiros.
Depreende-se, portanto, que boa parte dos problemas está relacionada à utilização, de forma equivocada, do sistema de patentes vigente
8
FUNDEP. Memória da medicina popular. In :http//www.fundep.ufmg.br/homepage/cases/169.asp – acesso em 28/06/2006 – 15:29hs.
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para “regularização” de conhecimentos tradicionais relacionados à
biodiversidade.
As soluções sugeridas pela doutrina, contudo, não se mostram pacíficas.
A doutrina aponta, em síntese, três possíveis soluções para a controvérsia.
Uma corrente mais conservadora entende como perfeitamente aplicável à proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade
o regime geral de propriedade intelectual. Para seus defensores, a concessão da patente sobre um produto derivado do conhecimento tradicional
não traria prejuízo à respectiva comunidade indígena ou local, pois protegeria o produto da utilização por terceiros. Os críticos dessa posição entendem que seria impossível proteger os conhecimentos tradicionais, no
bojo de um sistema que privilegia aquele que obtém a patente em primeiro
lugar, impedindo, assim, a utilização de tais conhecimentos, que originalmente são coletivos e compartilhados.
Uma segunda corrente entende que o sistema de patentes seria aplicável com algumas adaptações, criando-se, assim, um regime de propriedade intelectual sui generis. Essa é a posição da Organização Mundial do
Comércio e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual que, para
tratar do tema, criou o Comitê Intergovernamental sobre a Propriedade
Intelectual.
Há quem entenda, contudo, que somente um novo e específico regulamento geral poderia tratar o tema de forma adequada, compatibilizando a
CDB com o TRIPS. Os defensores dessa corrente defendem o estabelecimento de regras que exijam, para o reconhecimento de patentes, a identificação da fonte do conhecimento tradicional utilizado, a prova da obtenção
do consentimento prévio e a repartição justa dos benefícios obtidos.
Destaque para a lição de Ana Rachel Teixeira Mazaudoux:
Cada Organismo que trata dos conhecimentos tradicionais associados, o faz dentro de uma ótica própria, baseada em interesses (de
seus membros) específicos sobre o tema, que resulta na existência
de três caminhos ou regimes possíveis e propostos ao desempenho
do papel de tutor dos conhecimentos tradicionais, quais sejam: 1)
regime de Propriedade Intelectual convencional; 2) Regime sui
generis de Propriedade Intelectual e 3) Regime sui generis distinto.
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Se por um lado a tendência no seio da Conferência de Partes (COP)
da CDB, confirmada pelas suas duas últimas reuniões, em Kuala
Lumpur (2004) COP-7 e em Curitiba (2006) COP-8, é no sentido
de definir as bases de um regime sui generis de proteção, o qual
será dotado de componentes gerais, a serem utilizados, adaptados e
transformados em forma de normas específicas a serem estabelecidas
em nível nacional. Por outro lado, a OMPI, através de seu Comitê
Intergovernamental sobre a Propriedade Intelectual, Conhecimento
Tradicional e o Folclore, sustenta a utilização, tanto dos instrumentos
clássicos do Direito de Propriedade Intelectual (DPI), quanto dessas ferramentas jurídicas modificadas, visando a sua adequação à
natureza diversa e coletiva dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos e criando, assim, um regime de propriedade intelectual sui generis.
No entanto, entre os regimes jurídicos supracitados, o de Propriedade Intelectual é o mais conhecido, o mais potente e um dos mais
defendidos. Este sistema já dispõe no mundo inteiro de uma existência concreta, bem como de defensores aguerridos, constituídos na
sua maior parte de países desenvolvidos, os quais além de possuírem
um regime jurídico de propriedade intelectual extremamente avançado, têm uma grande influência no curso das negociações no seio da
OMPI e da OMC, onde esse regime vem, indubitavelmente, em primeiro lugar.9
No que se refere à criação de um sistema sui generis, muitas são as
dificuldades para sua efetivação.
Entendemos que um dos pressupostos intransponíveis da implementação de um regime legal sui generis de proteção a direitos intelectuais
coletivos de comunidades tradicionais seria a identificação prévia desses
“conhecimentos” e das respectivas “comunidades”.
Juliana Santilli sugere a “previsão da inversão do ônus da prova em
favor das comunidades tradicionais em ações judiciais que visem anular
9
TEIXEIRA MAZAUDOUX, Ana Rachel. Proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados. Questões essenciais em matéria de propriedade intelectual. Direitos humanos e meio ambiente. BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 335-336.
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CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE E ...
patentes concedidas sobre processos ou produtos resultantes de seus conhecimentos, de forma que competiria à pessoa ou empresa demandada
provar o contrário”.10
É de discutível efetividade a sugestão apontada, principalmente se
considerarmos que o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN),
criado pelo Decreto nº 3.945/2001, tem, até a presente data, atuação apenas embrionária, mesmo sem ter encontrado pela frente qualquer impedimento de ordem processual.
É importante ressaltar, neste ponto, que o CGEN sofreu diversas
críticas por ser constituído apenas por participantes de órgãos e instituições governamentais, não incluindo representantes da sociedade civil e das
comunidades tradicionais.
De qualquer modo, a participação de representantes da sociedade
civil é extremamente complexa, seja pela dificuldade de se identificarem os
grupos, ou entidades, que representem as comunidades tradicionais (tão
dispersas pelo território nacional), seja pela eventual precariedade dessa
representatividade, dita paritária, frente a grupos/entidades representativos
do setor produtivo/econômico.
Acrescente-se que a efetividade das legislações internas dos países
detentores dos conhecimentos tradicionais fica mitigada em face da ausência de uma norma internacional geral.
Cite-se o exemplo da Convenção de Diversidade Biológica que não
teve a assinatura dos Estados Unidos, maior detentor de registros de patentes e marcas.
Ademais, a ausência dessa regulação geral e a utilização precária do
sistema de patentes fomentam a insegurança jurídica em torno da questão,
propiciando, de forma recorrente, a alegação de ausência de novidade.
Veja-se, como exemplo, a solução encontrada no famoso caso do
“nim”, uma árvore da Índia utilizada para fins farmacológicos, conforme
bem destacado por Juliana Santilli:
Alguns casos de biopirataria ganharam repercussão internacional,
como o do nim (em inglês, neem), árvore da Índia, usada há séculos
nesse país como fonte de biopesticidas e remédios. A empresa
10 SANTILLI, Juliana. Biodersidade e conhecimentos tradicionais associados: novos avanços
e impases na criação de regimes legais de proteção. Revista de Direito Ambiental n. 29. São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 89.
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multinacional norte-americana W.R. Grace Corporation e o Departamento de Agricultura dos EUA conseguiram obter, junto ao Escritório Europeu de Patentes, seis patentes sobre produtos e processos
derivados do nim indiano. Entre elas, uma patente sobre um método
de preparação de um óleo com propriedades pesticidas, extraído
das sementes da árvore. A revogação de tal patente foi requerida
por um grupo de pessoas e organizações: Vandana Shiva, diretora
da Research Foundation for Science, Technology and Ecology; Linda Bullard, presidente da International Federation of Organic
Agricultural Moviments e Magda Alvoet, ministra belga da Saúde e
do Ambiente. Ao final de cinco anos de batalha legal, no dia 10/05/
2000, o Escritório Europeu de Patentes revogou a patente com base
no argumento de que o processo patenteado pelos norte-americanos não atendia ao requisito da novidade. A decisão de revogar a
patente se fundamentou no depoimento de um dono de uma fábrica
indiana, nos arredores de Nova Déli que demonstrou utilizar processo semelhante ao patenteado pelos norte-americanos desde 1995, e
não no desrespeito frontal aos princípios da Convenção sobre a Diversidade Biológica.11
O possível confronto dos princípios da CDB com o TRIPS é assim
examinado pela doutrina:
Em resumo, parece plausível a seguinte interpretação: não haverá
violação do TRIPS se os países exigirem que os solicitantes de patentes (i) descrevam o material genético e conhecimento tradicional
relevante na especificação e (ii) apresentem evidência documental
de que concordam com as normas de acesso e repartição de benefícios. Mas provavelmente haverá essa violação se for requerido dos
solicitantes, na especificação, que também revelem a origem geográfica do material genético relevante e conhecimento tradicional associado. Conseqüentemente, impor tal exigência acarretaria uma revisão do TRIPS. Alternativamente, estas exigências poderiam ser
11 SANTILLI, Juliana. Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 348349.
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apresentadas fora dos processos de pesquisa e exame, como medidas administrativas.
O problema é que um solicitante de patente pode ser tentado a omitir a divulgação do conhecimento tradicional relevante. Não existe
nenhuma razão particular para que um examinador suponha que uma
dada invenção seja baseada em conhecimento tradicional, a menos
que o candidato o revele. Assim, na maioria dos casos, é improvável
que o examinador suspeite disso, e a patente será então concedida
sob o pressuposto de que preenche as exigências normais.12
Alguns países, como a Índia, têm buscado adotar como solução a
formação de banco de dados de conhecimento tradicional. Questiona-se,
contudo, quanto à efetiva utilidade desses bancos de dados.
Outras possíveis soluções apontadas pela doutrina internacional, sempre passando por possíveis alterações no atual sistema patentário, seriam a
efetiva eliminação da possibilidade de concessão de patentes sobre a vida
ou, de outra lado, o aperfeiçoamento da qualidade dos órgãos concedentes.
5
CONCLUSÃO
Há vários obstáculos na busca de um sistema conciliador entre as
normas de propriedade intelectual e a Convenção de Diversidade Biológica.
Enquanto Japão, Estados Unidos, países europeus e outros do hemisfério norte concentram-se no aperfeiçoamento do sistema patentário
vigente, os países detentores da quase totalidade de biodiversidade mundial, como Brasil, Peru, Índia e outros, procuram construir um sistema legal
baseado nos princípios da CDB.
A solução, de fato, é complexa e caminha para a elaboração de um
sistema normativo melhor adequado às especificidades dos conhecimentos
tradicionais e de seus detentores.
Nesse sentido, o novo regime jurídico deverá consagrar, como exigência à concessão de patentes, a identificação da fonte do conhecimento
12 DUTFIELD, Graham. Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. VARELLA,
Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.
93.
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tradicional utilizado e a prova da obtenção do consentimento prévio e fundamentado e da repartição justa e eqüitativa de benefícios.
É importante ressaltar que tal normatização, no âmbito internacional,
não trará solução definitiva às controvérsias hoje existentes, dadas as
especificidades naturais, sociais, culturais e legais de cada um dos países
detentores de expressiva biodiversidade.
Não há, contudo, como negar ao tema a aplicação dos institutos
jurídicos já existentes.
Independentemente do regime, sui generis ou não, que se queira
construir para tratar as questões controvertidas, não há como fechar os
olhos para os conflitos já existentes, buscando, desde já, soluções nos instrumentos jurídicos à disposição dos aplicadores do direito, mesmo porque, a futura normatização não será aplicável às atuais demandas, em respeito à segurança jurídica.
Desse modo, no que se refere ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, afigura-se razoável a aplicação da lei de patentes, em
face da ausência de instrumento legal específico, embora de efeito prático
frágil para as comunidades detentoras do conhecimento tradicional.
Até que se tenha definitiva regulamentação jurídica do tema, cumpre
aos países detentores de biodiversidade o fortalecimento dos órgãos destinados à pesquisa e identificação dos conhecimentos tradicionais associados e das comunidades que o desenvolveram.
O fortalecimento dessa base de dados permitiria, ainda que precariamente, a oposição aos pedidos de patentes, com fulcro na ausência do
requisito da novidade, o que protegeria as comunidades indígenas ou tradicionais.
No Brasil, restaria, ainda, ao detentor do conhecimento tradicional
associado a possibilidade de se pleitear a nulidade da patente, caso desobedecido o comando da Medida Provisória nº 2.186-16/2001, especialmente no que tange à obrigação de “informar a origem do material genético
e do conhecimento tradicional associado”.
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Jaílson Lucena. Conhecimentos tradicionais: estudos jurídicos das legislações e convenções no âmbito nacional e internacional. Belém:
UFPA, 2005.
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LYSSANDRO NORTON SIQUEIRA
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RESPONSABILIDADE E CULPA – FUNDAMENTOS
E IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
NANCI DE MELO E SILVA
Sumário
1. Introdução. 2. Fundamentos. 3. Implicações jurídicas. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
Resumo
A teoria da responsabilidade civil foi elaborada com fundamentação
na culpa – a teoria subjetiva da responsabilidade. A obrigação de indenização deveria ser baseada na culpa do autor. A evolução do pensamento
jurídico, no entanto, desdobrou-se no sentido de que o interesse da coletividade deve estar acima dos interesses individuais, mas, sem sacrifício desses interesses e sem implicar o afastamento da noção de culpa. A responsabilidade objetiva, também chamada “socialização do risco” ou “responsabilidade sem culpa” (SILVA, 1969) conquistou a aceitação da doutrina,
penetrou no princípio constitucional (art. 5º, incisos V e X) e manifesta-se,
por exemplo, na legislação relativa ao acidente de trabalho e no Código de
Proteção ao Consumidor – Lei nº 8.078/90.
Abstract
The theory of torts is based upon the concept of fault – the subjective
theory of torts. The obligation of compensation should be based upon the
fault of the author. The juridical thinking evolved and developed in the
direction of the interest of the society being on top of the individual interests,
but without sacrificing these individual interests and without forgetting the
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concept of fault. Strict liability, also known as “socialization of risks” and
“liability without fault” (SILVA, 1969) was accepted by the legal doctrine,
has become a constitutional principle (art. 5, V and X) and is present, for
example, in the laws of labor accident and in the Consumer Protection Code
– Law n. 8.078/90.
1
INTRODUÇÃO
Confundem-se as idéias de responsabilidade e de culpa. Culpa pode
ser definida como a responsabilidade por ação ou comissão prejudicial,
reprovável ou criminosa; responsabilidade pode ser definida como qualidade ou condição de responsável.
A personalidade pode ser definida como o caráter ou a qualidade
do que é pessoal, a maneira habitual de ser de uma pessoa, o que a
distingue de outra. Em sentido jurídico, significa a aptidão genérica para
adquirir direitos e contrair obrigações, atributo do homem que o acompanha por toda a sua vida. Aliada à idéia de personalidade, a ordem
jurídica reconhece ao indivíduo a capacidade para a aquisição dos direitos e aptidão para exercê-los por si mesmo, por intermédio ou com a
assistência de outrem. Personalidade e capacidade completam-se. A capacidade jurídica ajusta-se ao conteúdo da personalidade e, nesse sentido genérico, não há restrições à capacidade. A privação da capacidade
implicaria frustração da personalidade, tendo por conseqüência o seu
aniquilamento no mundo jurídico. A capacidade de direito pode sofrer,
eventualmente, restrições, porém, restrições expressamente decorrentes
da lei. A regra é a capacidade.
Importa frisar que, pelo direito brasileiro, a incapacidade resulta
de coincidência com a situação de fato em que se encontra o indivíduo.
No caso dos “absolutamente incapazes”, segundo o Código Civil, necessários se fazem alguns esclarecimentos. Para efeito da “incapacidade”,
importa, tão-somente a apuração sobre se o ato incriminado foi praticado em um momento de “eclipse de consciência”, na expressão de Pereira
(1995). A comprovação de que a aptidão volitiva tenha faltado, quando
da realização do ato, é que o invalida, porque a vontade é pressuposto
da ação jurídica, é a sua ausência que conduz à invalidade do ato. O
instituto das incapacidades foi construído sobre uma razão moralmente
elevada – a proteção dos portadores de deficiência juridicamente apreci336
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RESPONSABILIDADE E CULPA – FUNDAMENTOS E IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
ável. Essa é a idéia fundamental que norteia aqueles que intentam
descriminalizar o usuário dependente de drogas, que seria considerado
“incapaz” de manifestar validamente a sua vontade na ação ou omissão
de ato reprovável ou antijurídico, inclusive com relação ao próprio uso da
droga da qual depende, física ou psiquicamente. O Código Civil de 2002,
considera “incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer” aqueles que são “(...) viciados em tóxicos, e os que, por deficiência
mental tenham o discernimento reduzido” (art. 4º, II) e “absolutamente incapazes” todos aqueles que “por enfermidade ou deficiência mental, não
tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” (art. 3º,
II).Tal “incapacidade”, no entanto, deve ser sempre apurada e declarada
em processo judicial regular, com a comprovação médica da incapacidade
de manifestação válida de vontade, nesse caso, será nomeado um curador
que representará o incapacitado em atos da vida civil.
A incapacidade por alienação é a que resulta de uma situação permanente. Os estados transitórios provocados por embriaguez, por uso de
substâncias utilizadas em medicina para mitigação de dor ou ansiedade,
por traumatismos etc. não são causadores de incapacidade nos termos da
lei civil. Entretanto, podem traduzir uma “responsabilidade sem culpa” que
não implica “irresponsabilidade” civil.
2
FUNDAMENTOS
Na sua conduta anti-social, o indivíduo pode agir intencionalmente,
ou não; pode proceder por comissão ou por omissão, pode ser apenas
negligente ou imprudente. A iliceidade da conduta está no procedimento
contrário ao dever preexistente, importando na violação do ordenamento
jurídico. No direito civil, o ato ilícito atenta contra o interesse privado de
alguém e a reparação do dano sofrido é a forma de restauração do equilíbrio rompido, embora de forma indireta. O fundamento é ético, quer se
trate de ilícito civil, quer criminal, imputando-se o resultado à consciência
do agente.
As figuras delituais típicas, conhecidas no direito romano, não podiam conter todas as hipóteses de danos reparáveis, e foi necessário imaginar um fundamento para o dever de reparação. Preocupou-se a doutrina
com a diversificação das noções de dolo e culpa. O primeiro, como infração consciente do dever preexistente com a consciência do resultado; a
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NANCI DE MELO E SILVA
segunda, como violação desse dever sem a consciência do dano (PEREIRA, 1995). Considerando a inutilidade prática da diferenciação, o direito
brasileiro abandonou-a – no campo do direito civil – fixando na idéia de
transgressão de um dever o conceito genérico do ato ilícito. No entanto,
não ficou afastada a noção de culpa.
De fato, à doutrina individualista sucede a corrente socialista do direito. O homem é animal social por excelência, já afirmava Aristóteles, por
isso, destinado a viver na comunidade política. É o princípio da associação
que concorre para a superação de nossas fraquezas, multiplicando nossas
forças na criação de obras que beneficiarão as gerações que se sucedem.
Os homens nem sempre nascem com as mesmas aptidões ou suficientemente dotados de naturais elementos de defesa. Há os mais fortes e os
mais fracos, há os mais ou menos providos de dotes intelectuais. Há os de
maior entusiasmo, há os apáticos e os pessimistas. Na doutrina individualista, partir-se-ia do homem natural, tomado como ser isolado, nascido
absurdamente igual. Na doutrina socialista, o homem é considerado um ser
destinado a viver em sociedade, na qual encontraria o meio natural para o
desenvolvimento de suas aptidões.
Sob a inspiração dessas idéias nasceu a teoria da responsabilidade
objetiva. Importa a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador. O
fundamento ético está na caracterização da injustiça intrínseca que tem por
base a diminuição de um patrimônio – material ou não – pelo fato do titular
de outro patrimônio. É um fundamento mais humano do que o da culpa e
mais profundamente ligado ao sentimento de solidariedade social. Essa teoria não substitui a da culpa, mas convive ao seu lado. Cada um deve
sofrer o risco de seus atos sem cogitação da idéia de culpa, deslocando o
fundamento da responsabilidade civil da noção de culpa para a idéia de
risco.
2.1
Responsabilidade e culpa
As idéias de responsabilidade e de culpa confundem-se. Uma das
definições de culpa é a responsabilidade por ação ou por omissão prejudicial, reprovável ou criminosa, a responsabilidade é uma qualidade
ou condição de responsável, ou situação de um agente consciente com
relação aos atos que ele pratica voluntariamente, culpa pressupondo
ação ou omissão prejudicial ou reprovável.
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Culpa, originariamente, foi o termo jurídico para indicar a infração
de uma norma cometida “involuntariamente” e em contraposição ao delito
(dolus), a transgressão projetada. Para Kant, “uma transgressão voluntária
chama-se culpa; uma transgressão voluntária (com a consciência de que se
trata de transgressão) chama-se delito” (ABBAGNANO, 1982). Responsabilidade, por sua vez, pode ser relacionada a atos “prejudiciais” ou “reprováveis” ou a atos louváveis e apreciados.
A responsabilidade é a possibilidade de prever os efeitos do próprio
comportamento e de corrigir o mesmo comportamento, com base em tal
previsão. A noção de responsabilidade baseia-se na noção de escolha, e a
noção de escolha é essencial ao conceito de liberdade limitada, porque, em
caso de necessidade, a previsão dos efeitos não poderia influenciar na ação.
(ABBAGNANO, 1982).
3
IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
O pensamento jurídico evoluiu no sentido de que o interesse geral da
coletividade deve estar acima dos interesses individuais, sem o sacrifício
desses. Necessária é a conciliação entre as duas ordens de interesses, para
que seja preservada a dignidade da pessoa humana. No entanto, não é fácil
encontrar esse ponto de equilíbrio. As transformações do direito civil ocorrem em todas as suas instituições: propriedade, contrato, família, além da
responsabilidade civil.
O individualismo jurídico fundamenta a responsabilidade civil na idéia
de culpa, como fez o legislador do Código Civil brasileiro de 1916. Todo
dever jurídico há de resultar da vontade individual. A responsabilidade civil
consiste na obrigação de reparar o dano causado e só se explica por atividade ou abstenção ilícita. Elaborou-se, então, a teoria subjetiva da responsabilidade. Estabelecida a existência do nexo causal entre o comportamento do agente e o dano, há responsabilidade por fato próprio; quando
essa relação causal repercute em terceiros, a quem correrá o dever de
reparar o mal causado, há responsabilidade por fato de terceiros; quando o dano é causado por objeto ou animal, guardado por alguém, há responsabilidade pelo fato das coisas.
Em todos os países, entretanto, vem se alargando a idéia de culpa e
estendido o princípio da responsabilidade civil, no qual não se pode encontrála em sentido estrito. Criou-se a noção de culpa presumida, dando maior
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consideração à vítima que ao autor do dano. Já se chegou à inquietante
conclusão de que a norma não passaria de mera convenção social. Tal
ponto de vista aparece no curso da história de modo excepcional, no entanto, o que caracteriza a vigência da norma na sociedade humana é a
crença, sempre renovada, no fundamento divino da norma. Mudanças existem, indubitavelmente, mas à procura de reiteradas formas de consolidação e contra todas as aparências, são valores que duram mais que o próprio homem.
O Código Civil de 2002, coerente com essas mudanças, inscreveu
no parágrafo único do art. 927 que a obrigação de reparar o dano independe
de culpa “nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco
para os direitos de outrem”.
O direito é vida, é ciência brotada da vida e destinada a regulamentar a própria vida. Na imagem de Almeida apud Silva (1974), “não poderia
aspirar, (o direito) na sua parte formal, àquela perenidade estática das catedrais dos idos da Idade Média, talhadas no granito desafiador do tempo”. A lei foi feita para a sociedade e não a sociedade para a lei. A norma
deve ser suficientemente elástica para compreender, de maneira razoável,
as diuturnas mutações do meio a que se destina, para que nela encontrem
ressonância as aspirações de dados momentos da vida social. Sendo o
direito vida, é da sua essência a mutabilidade, mas sem perder de vista a
realidade.
Assim, a culpa acabou, também ela, por ver ampliado, ao máximo, o
seu próprio conceito, na tentativa de abranger e solucionar situações novas
que surgiam. Vivemos na era da máquina, dos vôos espaciais, dos robôs,
dos automóveis, dos grandes parques industriais, quando o próprio risco
se tornou anônimo. A invocação só do critério da culpa, como fundamento
único da responsabilidade civil, teria um tom anacrônico.
Por isso, a teoria da responsabilidade objetiva, também chamada
por Silva (1969), “socialização do risco” ou “responsabilidade sem culpa” conquistou aceitação na doutrina e consta do art. 5º, da Carta de
1988, no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Fazem
referência à indenização por dano “material, moral ou à imagem”, ou decorrente da violação da “intimidade, vida privada, honra e imagem das
pessoas”. Danos morais, reconhecidos pela vigente carta constitucional,
consistem em
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RESPONSABILIDADE E CULPA – FUNDAMENTOS E IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu
patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. (...)
Jamais afetam o patrimônio material (...). E para que facilmente os
reconheçamos, basta que se atente, não para o bem sobre que
incidiram, mas, sobretudo, para a natureza do prejuízo final. (...) Danos
morais, pois, seriam, exemplificadamente, os decorrentes das ofensas à honra, ao decoro, à paz interior de cada qual, às crenças íntimas, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, à liberdade, à
vida, à integridade corporal (SILVA, 1949).
A teoria da culpa continua a ser fundamental, essencial no campo do
direito criminal. Entretanto, a teoria objetiva encontrou sólida base na legislação quanto a acidentes no trabalho, cujo raciocínio básico está em que
aquele que se serve da atividade alheia e dela aufere benefícios responde
pelos riscos a que expõe quem lhe presta aquela atividade. Ninguém cogita
da culpa do patrão, que é sempre obrigado à reparação do dano sofrido
pelo seu empregado por ocasião do trabalho.
Também o Código de Proteção ao Consumidor (Lei nº 8.078/90,
art. 12) abraçou a teoria da responsabilidade objetiva que estabelece: “O
fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador, respondem, independentemente de culpa (...)”.
4
CONCLUSÃO
A “socialização dos riscos” não visa transacionar com a desgraça
alheia, mas harmonizar interesses; do desejo de nenhum tipo de cerceamento de atividades livres e lícitas, fonte do crescente progresso social; da
tentativa do razoável equilíbrio em face da diversidade de situações econômicas e sob o impulso da superior justiça. A responsabilidade objetiva não
é a solução perfeita, não existe perfeição no direito. Um instituto jurídico
não é excelente, mas pela média maior de benefícios que apresenta, frente
às desvantagens implícitas. Os indivíduos não mais aparecem como unidades isoladas, independentes, egocêntricas. Pelo contrário, aparecem reunidos, prestando ajuda mútua e mútua assistência dentro da sociedade para
a qual tendem todos a uma natural inclinação, como já nos fez ver Santo
Tomás, em interpretação do universo aristotélico, pelo viés do cristianismo.
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NANCI DE MELO E SILVA
A responsabilidade objetiva participaria da própria justiça social,
como sua parcela. A responsabilidade objetiva vai ao encontro da realidade em que o dano deixa de ser apenas um dano às pessoas, para se tornar
um dano à própria coletividade e, pelo critério da justiça distributiva, mais
ensejaria amplas perspectivas nos vastos domínios da responsabilidade civil, coibindo explorações, injustiças e promovendo um melhor entendimento entre os homens e uma maior garantia de harmonia, de segurança e de
paz social.
5
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Ed. Mestre
Jou, 1982.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17.ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1995, vol. 1.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 4.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1995, vol. 3.
SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 3.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1983.
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2.ed. São Paulo:
Saraiva, 1974.
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RESPONSABILIDADE E CULPA – FUNDAMENTOS E IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
26
AÇÕES POSSESSÓRIAS E PETITÓRIAS NO DIREITO
BRASILEIRO – CABIMENTO E DISTINÇÕES
LUIZ FERNANDO DA SILVEIRA GOMES
Sumário
1. Posse. 2. Propriedade. 3. A posse não se confunde
com a propriedade. 4. Posse sem propriedade e propriedade sem posse. 5. Ações possessórias. 6. Ações
petitórias. 7. O artigo 505 do Código Civil de 1916 e o
atual artigo 1.210, parágrafo 2º, do Código de 2002,
que o modificou. 8. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente trabalho propõe-se a analisar as ações próprias para a
defesa da posse e da propriedade, segundo o direito processual vigente,
conjugando-o com o estudo do respectivo direito material, consubstanciado
no Código Civil de 2002, na parte relativa ao direito das coisas. A importância do estudo dessas questões está, na prática, em evitar as freqüentes
dificuldades na eleição das ações utilizadas para dirimir os conflitos entre
possuidores molestados em sua posse (ações possessórias) ou em relação
ao proprietário buscando reaver a coisa da qual tem o domínio, mas não
tem a posse (ações petitórias).
Abstract
The study of possession and ownership and its diferences, in brazilian
law, combined with the civil procedure and substantive law is helpfull to
those who needs to elect the correct lawsuits, in diferents cases concerning
to possessions or property violations.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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LUIZ FERNANDO DA SILVEIRA GOMES
1
POSSE
A posse, no direito brasileiro, é tratada, inicialmente, no artigo 1.196 do
Código Civil de 2002. Na verdade, ali, o legislador apenas definiu o possuidor
como sendo “(...) todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de
algum dos poderes inerentes à propriedade”. Isso significa dizer que o possuidor exerce, de fato, algum ou alguns dos poderes que o proprietário pode
exercer de direito, sem que o aludido possuidor seja proprietário. Tais poderes
são os de usar, gozar e até dispor da coisa, eis que o possuidor pode ceder sua
posse. Importante frisar que não se deve confundir a posse com a propriedade,
tratando-as como se fossem reguladas pelas mesmas regras legais; ao contrário, é necessário que sejam consideradas separadamente, para todos os efeitos, em especial nas ações que as defendem, as quais não podem ser confundidas, por terem finalidades diferentes, conforme se comentará em outro tópico.
A definição de possuidor feita pelo código fala em propriedade apenas
para esclarecer que aquele que tem a posse de uma coisa está, na verdade,
exercendo um poder de fato sobre a mesma, poder esse que também pode
ser exercido, de direito, por quem tem a propriedade. Aliás, o proprietário tem
o direito à posse da coisa que adquiriu: ius possidendi. E o possuidor tem o
direito de manter e defender sua posse: ius possessionis, do que resulta a
chamada posse ad interdicta: aquela que faculta ao possuidor utilizar as ações
possessórias, ou seja, os interditos possessórios. Em resumo, pode-se dizer
que a posse é um poder de fato e a propriedade um poder de direito (sujeito ao
registro imobiliário, no caso de imóveis, conforme o artigo 1.245 do Código
Civil de 2002).
O conceito de posse adotado pelo direito brasileiro segue a escola de
Rudolf von Ihering, romanista alemão, não acolhendo a doutrina de Friedrich
Karl von Savigny, também famoso romanista. Os dois códigos civis brasileiros
adotaram a teoria de Ihering, que não inclui o chamado animus domini (intenção de dono), apregoado por Savigny, entre os requisitos da posse. A escola
de Ihering é conhecida como objetiva; a de Savigny, como subjetiva, porque
insere o elemento volitivo, ou seja, é preciso haver a vontade do possuidor de
ter a coisa como sua.
A posse, repetindo, é chamada ad interdicta quando, estabilizada, passa a receber a proteção possessória de caráter interdital, podendo o possuidor
valer-se das ações possessórias (interditos possessórios) para defender sua
posse. Como se sabe, tais interditos vêm da época do direito romano, foram
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criados pelo pretor, com a finalidade de manter a paz em Roma em razão dos
conflitos que surgiam entre os possuidores das ager publicus – terras públicas
–, distribuídas entre os romanos no período da fundação e consolidação da
cidade, conforme a teoria mais aceita. Naquela época, em face da dificuldade
para obtenção de prova da propriedade, muitas das ações terminavam como
possessórias, não como reivindicatórias, como começavam. A utilização dos
interditos possessórios é um dos dois mais importantes efeitos da posse. O
outro efeito decorre da chamada posse ad usucapionem, a que, com o correr
do tempo previsto em lei e mais os requisitos gerais e os específicos a cada
modalidade da usucapião, transforma-se em propriedade.
Interessante observar que a longa discussão acerca de se a posse é
direito real ou pessoal pode ter origem no fato de que a posse, tanto como a
propriedade, têm a coisa como foco: ambas giram em torno da coisa. No
entanto, a posse é apenas um fato (embora, se molestada, recebe a proteção
do direito) e a propriedade é um direito e como direito real que é depende de
registro imobiliário, se se tratar de imóvel. Já a posse não depende de qualquer
registro, é óbvio. Convém insistir que esta, mesmo sendo um fato, conforme a
doutrina de Pontes de Miranda1, recebe a proteção da lei, quando molestado o
possuidor, como já vimos ao tratar da posse ad interdicta. Entretanto, essa
proteção legal, quando necessária, não a transforma em direito real para a
corrente que a tem como direito pessoal, com a qual temos maior simpatia.
Aliás, no direito brasileiro, o artigo 1.225 do Código Civil de 2002 (antigo 674
do Código de 1916) não inclui a posse no rol dos direitos reais e essa enumeração é considerada taxativa pela doutrina majoritária.
Acresce que o artigo 10, do CPC, em nova redação, dispensa a citação
do cônjuge do réu em ação possessória, desde que o outro cônjuge não tenha
participado do ato de moléstia à posse, nem tenha havido composse. Observese, ainda, que o conceito de direito real da escola clássica mostra que é o poder
jurídico da pessoa sobre a coisa e a posse é apenas o poder de fato sobre a
coisa possuída. O simples fato da posse não depende de construção jurídica
para existir, ao passo que a propriedade depende de uma organização estatal
(cartorária, no direito brasileiro). Entretanto, a posse, em si mesma, no direito brasileiro, como em vários outros países, onde há um estado organi-
1
MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de direito privado. Direito das coisas. Posse.
Campinas: Bookseller, 2000.
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zado, é regulamentada, mas apenas em razão de ser reconhecida e ainda
em virtude da proteção que recebe do direito (interditos).
2
PROPRIEDADE
No Código Civil de 2002, como acontecia também no de 1916, a propriedade é conceituada por meio da indicação das faculdades que tem o proprietário, como se lê no artigo 1.228: “O proprietário tem a faculdade de usar,
gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha”. O artigo 1.225, por sua vez, elenca,
taxativamente, os direitos reais e menciona a propriedade em primeiro lugar. A
escola clássica a conceitua como o poder jurídico da pessoa sobre a coisa.
Posteriormente, em face da observação do filósofo de Königsberg (capital da
Prússia, antigo estado da Alemanha do norte), Immanuel Kant (In: Metafísica
dos costumes), sobre a impossibilidade de as coisas se relacionarem juridicamente com as pessoas, Marcel Planiol, entre outros, citado por Darcy Bessone2,
colaborou para a criação da escola moderna esclarecendo que a propriedade
é a relação jurídica da pessoa do proprietário com todas as demais pessoas,
que devem respeitar o direito de quem adquiriu a coisa. É que tal coisa, não
sendo capaz de ser titular de um direito, ou seja, não tendo personalidade
jurídica, o proprietário não pode com ela manter relação jurídica. Essa relação,
na verdade, ocorre entre o proprietário, sujeito ativo ou credor de dita obrigação e demais pessoas naturais, que constituem o sujeito passivo dessa relação,
ou devedor indeterminado, que se tornará determinado quando violar tal obrigação (de respeitar a propriedade).
Essa tendência de pessoalizar o direito real vem muito bem desenvolvida
pelo professor gaúcho Ovídio Araújo Baptista da Silva3. É importante frisar
que a propriedade continua e continuará sendo o principal direito real, pois
essa escola moderna procura apenas investigar e esclarecer o que ocorre, na
verdade, entre o proprietário, a coisa e terceiros (efeito erga omnes), o que
não altera o conceito, a finalidade, nem a posição da propriedade no direito civil.
2
3
BESSONE, Darcy. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, ano, 1995. p. 5.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2.ed.
São Paulo: RT, 1998, p. 134-145.
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3
A POSSE NÃO SE CONFUNDE COM A PROPRIEDADE
A conhecida frase de Ulpiano “separata esse debet possessio a
proprietate” significa que a posse deve ser considerada separadamente da
propriedade e que deve ser protegida por si mesma, de forma destacada
da propriedade. Assim, mesmo tendo o Código Civil brasileiro acolhido a
escola objetiva de Ihering, que vê a posse como a simples visibilidade do
domínio, deve ela ser protegida pelos interditos apenas como um fato que
é, sem a vincular à propriedade. Como ocorreu com Savigny, que via a
posse como um fato, a teoria de Ihering, ao considerá-la a exteriorização
da propriedade, acabou por não ter como negar que a posse é um poder
de fato, tanto que o artigo 1.196 do Código Civil, que adotou sua teoria
objetiva, diz que é possuidor aquele que tem de fato o exercício de algum
dos poderes inerentes à propriedade, ou seja, usar, gozar etc.
Mesmo assim, não se pode deixar de mencionar que Ihering insistiu
em que a posse é um direito, dizendo que se ela é protegida pelos interditos
é porque tem o caráter de relação jurídica e, portanto, é direito. Parece
que Ihering partia do pressuposto de que somente os direitos é que podiam
ser juridicamente protegidos, não acolhendo a tese de que a posse é um
fato em si mesma e que se jurisdiciza somente ao ser violada, como entendem Pontes de Miranda e seus seguidores.
A melhor solução é a que preconiza que a posse é um fato, mas
protegido pelo direito, quando ela sofre violação, acrescentando-se que os
autores, de uma perspectiva mais moderna, vêm entendendo que é ela um
fato e é também um direito, eis que as diversas legislações a reconhecem e
protegem, conforme a observação de José Carlos Moreira Alves4. Entretanto, é preciso ficar bem claro que, historicamente, a posse surgiu primeiro, somente depois é que o direito a reconheceu, regulamentou e protegeu.
A separação entre a posse e a propriedade é, assim, de extrema
importância para a compreensão das finalidades e do cabimento das ações
possessórias (que defendem a posse em si mesma) e das petitórias (as que
defendem a propriedade), que também não podem ser confundidas. As
ações possessórias têm a finalidade de proteger aquele que é possuidor:
artigo 927, inciso I, do CPC e as petitórias (reivindicatória e imissão na
4
ALVES, José Carlos Moreira. Posse. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. vol. II, tomo I, p.
90.
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posse) protegem o proprietário que está com a coisa injustamente em mãos
de outrem (artigo 1.228, parte final, do novo Código Civil), isto é, a
reivindicatória, ou que ainda não recebeu a posse a que tem direito em virtude de aquisição do domínio da coisa, ou seja, a ação de imissão na posse.
4
POSSE SEM PROPRIEDADE E PROPRIEDADE
SEM POSSE
Como já abordado, a posse existe independentemente da propriedade e é considerada um fato. É vista pelo legislador brasileiro como um
fato social e, por isso, protegida cada vez mais pela lei, como ocorreu, por
exemplo, com o novo Código Civil, que em seu artigo 1.228, ao tratar da
propriedade, que tem a posse como elemento principal, acrescentou os
parágrafos 4º e 5º, que cuidam da proteção aos possuidores, em áreas
extensas, e demais requisitos que podem levar à improcedência de uma
ação reivindicatória contra eles proposta. Esses dispositivos, aliás, têm sido
considerados inconstitucionais por parte da doutrina5. E o assunto, na verdade, não é novo, pois, desde a época da fundação de Roma que a posse,
como um fato, vem sendo protegida pelo direito, como ocorreu na criação
dos interditos possessórios, pelo pretor, em face da necessidade de solucionar os conflitos surgidos entre os possuidores romanos que recebiam terras públicas, como foi tratado neste texto. Essa modalidade de posse, destacada da propriedade, é a que se chama ad interdicta e já foi estudada
em tópico anterior. O direito do possuidor nessas condições é chamado
jus possessionis, ou seja, o direito de manter e conservar sua posse.
Assim, se vê que a posse pode existir sem a propriedade, como
também a propriedade pode ser vista e estudada sem a posse, que pode se
encontrar em mãos, por exemplo, do inquilino, do usufrutuário, do
comodatário (posse direta do inquilino e indireta do locador-proprietário).
Terminada a locação, o usufruto ou o comodato, o proprietário pode exercer o seu direito à posse, ou seja, o jus possidendi. Da mesma forma, o
proprietário que adquire a coisa e não recebe a posse da mesma tem o
direito a tê-la, isto é, o mesmo jus possidendi, e pode se socorrer da ação
de imissão na posse, como veremos em outro tópico.
5
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 37.ed. São Paulo: Saraiva,
2003, vol. 3, p. 86.
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5
AÇÕES POSSESSÓRIAS
Os antigos interditos possessórios romanos atravessaram os séculos
como remédios destinados a proteger o possuidor e hoje, com a mesma
finalidade, se acham regulamentados no Código de Processo Civil, do artigo 920 ao artigo 933. Os autores costumam chamar atenção para o fato
de que as ações de nunciação de obra nova e os embargos de terceiro
podem ser utilizadas também pelos possuidores e que, portanto, seriam
remédios adequados para protegê-los.
Entretanto, sob o rótulo de ações possessórias, o código regula apenas as ações de manutenção (turbação – moléstia à posse sem a perda
total dela), as de reintegração de posse (esbulho – perda da posse) e o
interdito proibitório (ameaça). A defesa da posse é considerada um dos
seus principais efeitos, juntamente com a usucapião, a percepção de frutos
e alguns outros. As ações possessórias são chamadas ações dúplices, que
dispensam o oferecimento de reconvenção pelo réu, pois é esse o outro
possuidor que disputa a posse com o autor. Basta, assim, ao réu fazer suas
alegações na contestação, visando demonstrar que é a sua posse a melhor,
pedindo ao juiz que dessa forma a reconheça na sentença.
Essas ações estão regulamentadas no Livro IV do Código de Processo Civil por serem ações de rito especial quando propostas dentro do
prazo de ano e dia, contados da data do esbulho ou da turbação (ações de
força nova). Quando ajuizadas após esse prazo, continuam sendo consideradas de natureza possessória, mas passam a correr sob o rito ordinário
(ações de força velha).
É muito importante observar que o artigo 927 do CPC dispõe que,
para o autor propor uma ação possessória, é preciso primeiramente provar a sua posse, conforme está expresso no inciso I do referido artigo,
conforme transcrição feita mais adiante. Isso significa que essas ações são
específicas para a defesa do possuidor. Somente aquele que tem a posse
da coisa e a teve molestada é que pode se utilizar de tais ações; pode ser
proprietário, desde que tenha também a posse; ou é apenas possuidor,
hipótese mais comum.
Efetivamente, o artigo 927 do CPC, que cuida dos requisitos para a
propositura das ações possessórias, dispõe que: “Incumbe ao autor provar: I – a sua posse;”. Assim, sem a prova, feita já na petição inicial, de
que o autor tem a posse da coisa e que foi ela esbulhada ou turbada ou
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ainda ameaçada, não pode a ação prosperar. A simples existência da escritura definitiva de compra e venda do imóvel, devidamente registrada no
Cartório de Registro de Imóveis, não legitima aquele que teve seu terreno
invadido a ajuizar ação possessória, se não tinha a posse do mesmo, quando ocorreu a invasão. Como se viu, o inciso I do artigo 927 do CPC exige
a prova da posse para que o autor tenha legitimidade para pedir ao juiz que
o reintegre, mantenha-o ou o proteja da ameaça à sua posse.
6
AÇÕES PETITÓRIAS
São denominadas de petitórias as ações que têm a finalidade de defender a propriedade, como ocorre com a ação de reivindicação e a ação
de imissão na posse. Esta última, entretanto, é mais específica e busca a
posse com apoio diretamente no jus possidendi, ou seja, no direito à posse. A imissão na posse tem por base o direito material em hipóteses mais
restritas, como o direito do adquirente de ter a posse da coisa adquirida,
em face do vendedor que não lhe entrega a coisa vendida. Aliás, esse é um
dos principais casos de cabimento da ação de imissão na posse. Entretanto, é preciso ficar atento à advertência de Ovídio A. Baptista da Silva6
sobre a questão, uma vez que o alienante somente pode transferir a posse
ao adquirente se a tiver. É o que esclarece o referido autor: “Se o alienante
não estava na posse, ao adquirente caberá socorrer-se das ações possessórias, ou da reivindicação, ou, havendo alguma relação contratual que
ligue o possuidor ao alienante, da ação que o contrato indicar”. Por oportuno, esclareça-se que esse renomado processualista utiliza-se do nome
ação de imissão de posse por considerá-lo já enraizado no direito brasileiro, desde alguns códigos anteriores, mas convém lembrar que outros
autores utilizam-se, ao se referirem a essa ação, do nome ação de imissão
na posse, que consideram mais adequado, o qual utilizamos neste trabalho.
A reivindicatória e a imissão na posse correm no rito ordinário ou
sumário, dependendo do valor dado à causa. Não são ações previstas no
Livro IV do CPC, exatamente porque não têm o rito especial. E quanto à
de imissão na posse, o Código de Processo Civil de 1973 a aboliu da
categoria de especial, gerando perplexidade entre os autores àquela época, chegando-se a imaginar que teria sido extinta.
6
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Ação de imissão de posse. 3.ed. São Paulo: RT, 2001, p. 184.
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A ação reivindicatória, por sua vez, defende o proprietário de forma mais genérica, permitindo-lhe buscar o bem que lhe pertence, das
mãos de quem, injustamente, esteja com a coisa. Defende a propriedade
de forma mais ampla. É menos específica que a ação de imissão na posse, a qual protege o proprietário, com base em seu jus possidendi (direito à posse), constante de uma situação concreta, da qual o autor deverá
fazer a respectiva prova. Esse direito à posse e a prova correspondente
não necessariamente serão a de proprietário sem a posse, como ocorre
na reivindicatória. Pode ter por base um negócio jurídico específico.
A prova que deve ser apresentada pelo autor, na reivindicação, é o
registro imobiliário do imóvel objeto da ação, se ela versar sobre a propriedade imobiliária. Em se tratando de bem móvel o autor deve fazer a
prova de sua aquisição, geralmente por meio de apresentação de nota
fiscal.
A ação de reivindicação é de natureza real e tem suporte na parte
final do artigo 1.228 do Código Civil, que dispõe, ao falar das faculdades
do proprietário: “(...) e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha”. Como foi dito antes, é imprescindível
que o autor faça a juntada à inicial de certidão do registro de imóveis, se
for o caso de bem imóvel, devendo também descrevê-lo, no pedido,
com precisão. Já na ação de imissão na posse, que também é de natureza
real e reduzidas as dúvidas iniciais sobre sua existência e posição, sua
base de direito material será o dispositivo legal e o contrato respectivo
em que irá se apoiar. Em resumo, na reivindicatória a posse é pedida com
base no domínio, que o proprietário tem. Já a ação de imissão na posse,
mais célere, em que a defesa é mais restrita, é cabível quando o autor só
necessita ser confirmado judicialmente em sua posse, nos casos em que
ele tenha qualquer direito (com apoio em documento) a essa mesma posse, na esteira dos ensinamentos de Ovídio A. Baptista da Silva (2001, p.
120), com apoio em Dionysio da Gama.
Tercílio Pietroski7 enumera as hipóteses de cabimento da ação: 1.
Nos casos de compra e venda, do adquirente em face do alienante; 2.
Do promitente-comprador em face do promitente-vendedor; 3. Dos
adjudicatários ou arrematantes para haver a posse efetiva dos bens ad7
PIETROSKI, Tercílio. A ação de imissão de posse. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p.
42-71.
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judicados ou arrematados judicialmente; 4. Do cessionário de direitos e
ações; 5. Da imissão de posse como ação cautelar atípica (inominada),
com base no artigo 798 do CPC.
Acrescente-se a respeito da hipótese de cabimento pelos que adjudicam ou arrematam bens, que reina enorme controvérsia, a qual se encontra examinada pelo citado autor Tercílio Pietroski, no livro mencionado,
bem como por Ovídio Araújo Baptista da Silva (2001), também já citado,
aos quais remetemos o leitor. Ainda sobre essa controvérsia, entendemos
que já é tempo de haver uma rápida e eficiente pacificação, seja pelo legislador, seja pelo Supremo Tribunal Federal, editando súmula esclarecedora
sobre essa importante questão. O ponto a ser pacificado situa-se em saber
se é necessária a propositura de ação de imissão na posse em caso de
recusa do executado em entregar ao arrematante o bem arrematado ou
adjudicado, ou se o Estado-juiz pode entregá-lo aos adquirentes via
arrematação por meio de simples expedição, em seu favor, de mandado de
imissão na posse, por ato do juiz que preside a execução.
É oportuno lembrar que, com as últimas reformas processuais, na
área da execução, com a generalização das ações de rito executivo lato
sensu, incluindo-se aí a execução por quantia certa, conforme o novo artigo 475, letras I e seguintes, não há mais processo autônomo de execução
e, conseqüentemente, os atos do juiz, durante todo o processamento da
ação, pertencem a uma fase única, em que a cognição é mais ampla, legitimando a decisão concedendo a imissão na posse ao arrematante, adicionando-se, por exemplo, um parágrafo ao artigo 6º do CPC, permitindo-se
ao julgador, em nome do Estado, determinar a expedição do mandado de
imissão na posse, em favor do arrematante ou de quem adjudicou o bem.
Fica, aí, pois, a sugestão para uma alteração de lege ferenda, homenageando o princípio da efetividade do processo.
A hipótese de cabimento da ação reivindicatória é aquela prevista no
já citado artigo 1.228 do Código Civil de 2002, parte final, que dá ao
proprietário o direito de reaver a coisa do poder de quem injustamente a
detém ou possui. A prova é o título de propriedade, devidamente registrado, se for imóvel. A coisa deve ser descrita, com grande precisão, na petição inicial. Importante relembrar, perdoe-nos a insistência, que tal ação é
petitória e não possessória. A sua finalidade é proteger a propriedade, sen352
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do, pois, ação real, que não se confunde com as possessórias, que somente se prestam a proteger o possuidor nos casos em que houver moléstia à
sua posse, nos termos do artigo 927, inciso I, do CPC.
7
O ARTIGO 505 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E O ATUAL
ARTIGO 1.210, PARÁGRAFO 2º, DO CÓDIGO DE 2002,
QUE O MODIFICOU
O artigo 505 do revogado Código Civil de 1916 dispunha que: “Não
obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de domínio, ou de
outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor
daquele a quem, evidentemente, não pertencer o domínio”. O dispositivo correspondente no novo Código de 2002 é o artigo 1.210,
parágrafo 2º, que dispõe: “Não obsta à manutenção ou reintegração
na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”. Como se observa, no novo código foi abolida a parte final do
artigo 505 do antigo, permanecendo apenas a primeira parte, que diz,
em resumo, que eventual alegação de propriedade pela outra parte
não influi no julgamento da ação possessória. Em outras palavras,
significa dizer que a questão que deverá ser julgada na ação possessória
será tão-somente a de se saber de quem é a melhor posse e nada
mais. A questão relativa à propriedade, quando for o caso, somente
será decidida em outra ação, a petitória. Ficou, assim, bem distinta a
solução judicial de eventual violação da posse (ações possessórias)
e, do outro lado, o julgamento de ação que tenha por finalidade a
defesa da propriedade (ações petitórias).
A nova redação do artigo 1.210, parágrafo 2º, do Código Civil
de 2002 corrigiu a discrepância que havia entre o artigo 505 do Código revogado e artigo 923 do Código de Processo Civil, que dispõe:
“Na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor
como ao réu, intentar a ação de reconhecimento de domínio”.
Agora, tanto o Código Civil como o Código de Processo regulam a matéria do mesmo modo, ainda que seja possível questionar
que, dessa maneira, parece não ter sido observada a tendência de
acelerar o andamento dos processos (princípio da efetividade). Entretanto, é oportuno recordar a frase de Ulpiano, citada anteriormen353
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te, “separata esse debet possessio a proprietate”: a posse deve ser
considerada separada da propriedade. É que a posse deve receber
proteção independentemente da propriedade, pois essa é a natureza
e a finalidade das ações possessórias. Entretanto, é claro que se a
ação petitória já tiver sido proposta antes da possessória, aquela deve
ter prosseguimento normal e o seu resultado poderá influir no da
possessória, que veio depois.
Pelo que ficou exposto, pode-se perceber que quando o proprietário tem o domínio, mas não tem posse, a ação cabível é a
reivindicatória, para pedir que, aquele que estiver ocupando injustamente a coisa que lhe pertence, faça-lhe a entrega, com apoio
no artigo 1.228, parte final, do Código Civil de 2002. É o chamado jus possidendi, que tem o proprietário, ou seja, é o direito à posse. Se o proprietário tem a posse e essa é molestada, pode ajuizar a
ação possessória para recuperar tal posse (reintegração) ou se manter
nela (manutenção de posse). Percebe-se, por outro lado, que o possuidor, não proprietário, deve se socorrer, é óbvio, das ações
possessórias, previstas no CPC, nos artigos 920 e seguintes. Diz respeito, na espécie, do jus possessionis, ou seja, o direito de se manter na
posse, que o possuidor já tem, a qual foi molestada.
8
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18.ed. Rio
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27
INTEGRAÇÃO DE EX-EMPREGADO COMO SÓCIO EM
DISTINTA SOCIEDADE DO MESMO GRUPO ECONÔMICO,
COM MANUTENÇÃO DE ATRIBUIÇÕES NAANTIGA
SOCIEDADE DE QUE ERA EMPREGADO: FRAUDE OU
RUPTURA DO CONTRATO DE TRABALHO?
AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
RICARDO ADRIANO MASSARA BRASILEIRO
Sumário
1. Itrodução 2. Solidariedade 3. Enunciado 269 TST
4. Da Fraude 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas
Resumo
O estudo versa sobre a controversa questão da possibilidade de
empregado integrar-se como sócio em sociedade do grupo empregador,
com ruptura do anterior contrato de emprego, e explicita critérios jurídicos
e indiciários para a aferição da regularidade da operação ou da ocorrência
de fraude.
PALAVRAS-CHAVE: Grupo econômico - relação de emprego - sócio fraude - nulidade
Abstract
The study approaches the controversial question of the possibility of
the employee becomes member of a company belonging the employer group,
with the rupture of the employment contract, and clears legal and indications
standards to the verification of transaction’s regularity or of fraud occurrence.
KEY-WORDS: Economic group - employment - partner - fraud - nullity
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1
INTRODUÇÃO
O encontro do fenômeno econômico da concentração empresarial
com preceito justrabalhista de proteção ao empregado torna, inúmeras
vezes, ainda mais conturbada a interpretação de situações de análise já
delicada no plano de uma única sociedade.
Nesse particular, a complexa situação da possibilidade de integração de
um ex-funcionário como sócio da empregadora1 faz-se ainda mais complexa
com a indagação da possibilidade de o ex-empregado tornar-se sócio de uma
das sociedades do grupo empregador, notadamente se mantém as atribuições
da antiga sociedade de que era empregado.
Essa é a questão que se vai aqui apreciar, não sem uma breve explanação anterior sobre as conseqüências trabalhistas da existência do grupo.
2
SOLIDARIEDADE
A propósito, de plano é de se observar que a existência de um agregado econômico determina a apreensão despersonalizada do empregador.
Assim, o parágrafo 2o do artigo 2o da CLT estabelece a solidariedade
entre empresas com personalidades jurídicas distintas que funcionem, formal
ou informalmente, como grupo econômico.
Conforme dispõe o texto legal, essa solidariedade existe “para os efeitos
da relação de emprego”, de modo a ser ela tanto passiva como ativa.
Assim, os diversos entes do grupo econômico, preenchidas determinadas condições, podem ser responsabilizados por débitos trabalhistas uns dos
outros, bem como podem se valer indistintamente dos funcionários uns dos
outros, sem formação de novo vínculo laboral.
A questão é que, como esclarece Vilhena, o “dispositivo” legal “é
incindível”, somente dele se podendo extrair uma interpretação unívoca:
Ainda que a tutela se dirija, imediatamente, ao empregado, acobertandoo de contínuas e sucessivas trasladações de uma a outra empresa do
1
Sobre esse tema os autores deste trabalho elaboram um estudo designado Integração de exempregado como sócio: entre fraude e ruptura do contrato de trabalho, atualmente em
curso de publicação, mas com parcela das reflexões aqui sumariadas.
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mesmo grupo, com a diluição ou de seu tempo de casa ou de efeitos
decorrentes da prestação de serviço ao mesmo empregador (v.g., CLT,
arts. 460 e 461), dele também se beneficiará este, quando no exercício de certos poderes inerentes ao comando empregatício (v.g., deslocamentos, transferências etc.).2
Nesse último sentido, pela solidariedade ativa, aliás, a disposição do Enunciado 129 do TST: “A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo
grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário”.
Por outro lado, somente é pacífica a aplicação da solidariedade passiva
nos casos dos grupos de subordinação, aqueles hierarquicamente organizados,
tal como o disposto na literalidade da lei.
De todo modo, tão vasta é a penetração do efeito de solidariedade decorrente da idéia de despersonalização do empregador que, segundo Vilhena, esse
efeito de solidariedade alcança a “própria natureza das pessoas jurídicas das
empresas, que passam, em sua dualidade ou multiplicidade, a ser consideradas
como se fossem uma só”3.
Quanto à identificação da formação de grupo econômico, que pode assumir concretamente infindáveis conformações, o mesmo Vilhena exemplifica inúmeras circunstâncias que indicam a sua presença, que pode não se manifestar de
forma de fácil apreensão, como a que decorre do mero compulsar dos atos
constitutivos de cada qual sociedade:
(...) tais como altos empregados que se revezam entre empresas (engenheiros, técnicos, contadores); um mesmo preposto por elas respondendo; as mesmas instalações usadas; o mesmo escritório; o uso, consecutivo
ou alternado, de empregados de uma por outra; situações difusas, na exploração de um negócio, por mais de uma pessoa, quando, muitas vezes,
o sócio de uma empresa é representante da outra; o fato de uma firma não
transferir, em instrumento idôneo, seu negócio a outra e ainda interferir na
relação de emprego dos trabalhadores desta; recíprocas transferências de
empregados (...), negociações comuns etc.4
2
3
4
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego. São Paulo: Saraiva, 1975, p.
122.
Idem.
Ibidem, p. 126.
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3
ENUNCIADO 269 TST
Tornando ao foco do estudo, deve-se ressaltar que, em linha de princípio, um ex-empregado pode perfeitamente alçar-se a sócio de uma das
sociedades do grupo econômico e manter atribuições na sociedade do grupo
em que era empregado sem se manter a relação de emprego.
Do mesmo modo, o fato de o ex-empregado fazer-se sócio pode muito
bem ser uma tentativa de fraudar a lei e de fugir das prescrições celetistas.
Não obstante, o que vai definir se o status de sócio do ex-empregado é
fraudulento ou não e se é mantido ou não o liame trabalhista é o exame de
diversas circunstâncias.
A situação de sócio em uma sociedade do grupo pode perfeitamente
encampar a situação de empregado em outra sociedade do grupo, tal como no
caso de uma única e mesma sociedade a situação de sócio pode absorver a de
empregado.
Essa absorção, como assentou a doutrina e a jurisprudência, é o que se
dá, no plano de uma única sociedade, nas funções de representação ou
“presentação” (na terminologia de Pontes de Miranda) da sociedade. Assim,
nas funções de direção, administração, gerência ou fiscalização, cujas atribuições, forma de nomeação e, por vezes, forma de remuneração derivam diretamente do compromisso social. Isso, pelo fato de essas funções de índole societária
serem incompatíveis com a função subordinada e de índole organizacional do
empregado. E essa incompatibilidade é tão acentuada que chega a se aplicar a
todas as situações de diretoria e efetiva gestão da sociedade por não-sócios,
ex-empregados ou não. Isso o que assentou, quanto ao exercício da função de
direção da sociedade por ex-empregado, a irreprochável ratio do Enunciado
269 do colendo Tribunal Superior do Trabalho, ampliável a todos os tipos
societários. Todavia, nesse último caso, quando se mantém a subordinação,
mantém-se íntegro o contrato de trabalho. Não se deve considerar subordinação, contudo, os corriqueiros fatos de a assembléia geral, o conselho de administração, ou outros órgãos de direção, determinação ou gestão da sociedade
influírem na atuação de um específico diretor. A questão da identificação da
existência da relação de emprego, por certo, depende da intensidade da influência exercida sobre o órgão de direção. Essa influência deve alçar-se à determinação jurídica para que se configure existente o vínculo laboral. Assim, obvi360
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amente, o mero fato de ter o administrador, diretor ou gerente que prestar
contas não faz com que se configure o vínculo laboral. Mesmo o presidente
grande acionista de qualquer corporação deve seguir as orientações do conselho de administração e tem o dever de prestar contas.
Do mesmo modo, no plano de uma única sociedade, dá-se aquela absorção da situação de empregado pela de sócio, ainda conforme a doutrina e a
jurisprudência, nas situações em que os sócios responsabilizam-se de forma
ilimitada pelos compromissos sociais. Aqui, o grau e a intensidade da participação do sócio impossibilita toda a viabilidade da sua atuação como empregado
subordinado.
Nessas duas circunstâncias, ainda que presentes os pressupostos
constitutivos da relação empregatícia, essa não se forma em virtude de operarem fatos impeditivos da formação do vínculo laboral entre sócio e sociedade.
Assim ensina, entre outros, Vilhena, para quem “a impossibilidade jurídica da coexistência [das situações de sócio e de empregado] somente se dá
naquelas espécies de sociedades em que a qualidade do sócio acarrete ou a
responsabilidade ilimitada pelas obrigações sociais ou o exercício de mandato
gerencial ou diretivo”5.
Nada disso se modifica por ser o sócio ex-empregado.
4
DA FRAUDE
Por outro lado, há fraude se o sócio que atua na sociedade, seja ele
ex-empregado ou não, possui a qualidade de sócio de forma meramente
nominal, sendo verdadeiramente a sua vinculação com a sociedade de índole trabalhista.
Em similares circunstâncias deve imperar o princípio da primazia da
realidade e ser reconhecido o vínculo trabalhista como decorrência da sanção de nulidade6 prescrita pelo artigo 9o da CLT.
Assim, como decorrência dessa sanção de nulidade imposta às situações desconformes às previsões normativas consolidadas, o que se opera, quando dessa utilização fraudulenta da sociedade para mascarar uma
5
6
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Op. cit., p. 266.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 12.
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verdadeira relação empregatícia, é a absorção da situação de sócio pela
de empregado.
Fica pronunciada a nulidade ab ovo dos atos tendentes a mascarar a
realidade fática da relação de emprego (artigo 182 do Código Civil de 2002),
que então deve ser apreciada tal como se apresenta.
E se o “sócio” é verdadeiramente empregado, tal como empregado deve
ou deveria ser ou ter sido tratado. Do mesmo modo, se o piso que o “sócio” retira
ou retirou mensalmente como pro-labore, ou qualquer outra denominação que
tenha, é na verdade salário, tal como salário deve ser ele considerado, e assim por
diante.
Grande problema, contudo, reside na identificação concreta ou casuística
da existência de fraude ou da existência de real relação empregatícia.
No foro trabalhista, parece que só o fato de ter-se tornado sócio um exempregado faz com que se aguce a mais fina percepção dos juízes para a identificação de fraude e ocultamento do nexo empregatício ao mais leve traço da
presença desse.
Todavia, como se sabe, não basta uma prestação de serviços para que se
forme uma relação de trabalho.
Nem mesmo o exclusivo fato, ao contrário do que parece supor em peso a
jurisprudência trabalhista, de manter o ex-empregado e novo sócio as antigas atribuições que mantinha na sociedade faz com que ele se mantenha um empregado.
Se há predisposição para se encontrar subordinação, obviamente essa se
encontrará! Como já posto, mesmo o acionista majoritário, presidente e órgão
máximo representativo de qualquer companhia deve seguir as orientações e prestar contas ao conselho de administração e à sociedade. Mesmo esse presidente
se insere na genérica organização da atividade produtiva normal da sociedade,
bem como se sujeita à possibilidade de potenciais e eventuais intervenções em
sua gestão, tudo isso último o que se entende como subordinação.
O que parece que se deva seriamente considerar, contudo, é a maior ou
menor determinabilidade no modo da prestação dos serviços daquele cuja situação se quer investigar, determinabilidade essa “que se dá no quê, no como, no
onde e no quando prestar”7.
Tenha-se, a propósito, o esclarecedor julgado:
7
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Op. cit., p. 229-230.
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Contrato de emprego – Sociedade – Excetuadas as sociedades cujas
obrigações são garantidas não apenas pelo patrimônio social, mas também pelo patrimônio individual dos sócios, no direito brasileiro a doutrina admite a coexistência desta condição com a de empregado, em face
do princípio legal de distinção de personalidade e desde que concorram
os pressupostos fáticos do conceito de empregado. Todavia, se os elementos dos autos não evidenciam a onerosidade e a subordinação jurídica, tem-se que os serviços de mecânica e manutenção executados
pelo reclamante, sócio e diretor técnico do reclamado, foram a título de
cooperação, de junção de esforços, visando lograr fins comuns, porém
sempre imbuído da affectio societatis. (TRT 3a R. – 2 T. – RO/9516/
90 Rel. Juíza Alice Monteiro de Barros – DJMG 01/11/1991).
Tudo isso que aplicável ao plano de uma única e mesma sociedade
aplica-se também ao plano de um grupo de sociedades.
Como afirmado, um ex-empregado pode perfeitamente alçar-se a sócio
de uma das sociedades do grupo econômico e manter atribuições na sociedade do grupo em que era empregado sem se manter a relação de emprego.
Nesse sentido, são indícios de ruptura do anterior vínculo empregatício
e de não-ocorrência de fraude o operar-se de sensível aumento nos vencimentos auferidos pelo novo sócio; maior empenho, solicitude e envolvimento
do novo sócio nos negócios sociais; maior flexibilidade no horário de trabalho do novo sócio; comprometimento patrimonial do novo sócio com os
empreendimentos do grupo, seja como sócio de responsabilidade ilimitada
de uma das sociedades, seja como portador de razoável quantidade de
quotas ou ações, seja com o aporte de capital, ainda que diminuto, para
integrar o quadro social, seja com a prestação de garantia pessoal ou real
com bens próprios pelos compromissos sociais, em especial pelos compromissos sociais da sociedade do grupo de que não faz parte; recolocação
do antigo funcionário em posto de grandes responsabilidades, mesmo que
o técnico de sua especialidade; o fato de o novo sócio, laborando como
técnico, auferir rendimentos bastante superiores aos de um similar técnico
da categoria etc.; tudo isso ainda que mantenha ele as antigas atribuições
que podem muito bem ter sido absorvidas pela nova situação de sócio.
Tudo depende de uma ampla análise de múltiplos fatores. Não é suficiente
o aferrar-se em uma única, fechada e imutável percepção.
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Aqui por si só afasta a hipótese de simulação e demonstra o fato de o
antigo empregado ter-se tornado sócio do grupo, com a ruptura do antigo
enlace empregatício, o fato de o novo sócio comprometer ilimitadamente o seu
patrimônio pelas obrigações de uma das sociedades do grupo ou por algumas
ou todas as obrigações do próprio grupo.
Por menos a doutrina afasta a idéia de fraude. “Como bem destaca a
doutrina alemã, não é possível presumir que um sócio que assume obrigações e
responsabilidades como tal não tenha intenção de ser efetivamente sócio”8.
E isso se dá notadamente quando o ex-empregado é pessoa esclarecida
e capacitada que sabe perfeitamente mensurar as conseqüências de seus atos e
que tem relativa ampla empregabilidade no mercado de trabalho.
Do mesmo modo, por si só demonstra a absorção da antiga situação de
empregado pela nova situação de sócio do grupo o fato de o esclarecido exfuncionário empenhar diretamente o seu patrimônio pessoal com obrigações da
sociedade de que era ex-empregado e da qual não é formalmente sócio, a
despeito de ser sócio do grupo. Aqui também, notadamente quando as atividades das sociedades do grupo se confundem pelo objeto e quando todas as
sociedades do grupo dependem fundamentalmente uma da outra para atingir
seus fins, sejam eles específicos ou comuns.
Nessa situação não parece suficiente para a caracterização da fraude
a idéia de que, se o novo sócio não participa das perdas sociais, é ele verdadeiramente um empregado. A questão é muito mais complexa do que parece.
Não é em todas as circunstâncias que os próprios sócios comungam das
perdas sociais. Mesmo o sócio que presta serviços à sociedade e que dela
retira pro-labore, como compensação pelos serviços que presta, não participa dessas perdas nesse mínimo que recebe, tal como delas não participa o
empregado em seu salário. Essa retribuição é ao sócio “devida, ainda que o
balanço social tenha registrado prejuízos”9, do mesmo modo como são também devidos os salários aos empregados nas mesmas circunstâncias.
8
9
SALOMÃO FILHO, Calixto. Sociedade simulada. In: O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 123.
ABRÃO, Nelson. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 1980, p. 106.
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Obviamente, a remuneração pro-labore paga ao sócio de uma sociedade pode perfeitamente retribuir a atuação que desempenhe ele em outra
sociedade do grupo. Isso, aliás, é o que geralmente se verifica na praxe comercial, a despeito de todas as sociedades beneficiadas pela atuação do sócio de
uma delas poderem ratear a remuneração pro-labore em uma proporção estimada do respectivo benefício.
O sócio participa evidentemente das perdas sociais quando deixa de
receber lucros ou dividendos, sem prejuízo do pro-labore, em decorrência de
um exercício social negativo. Do mesmo modo, contudo, nessa mesma circunstância os empregados que têm participação nos lucros do empreendimento não deixam de sofrer as perdas sociais. Aliás, se todo o empreendimento vai
à bancarrota, não são somente os sócios que sofrem perdas. Toda a situação,
repita-se, deve ser examinada in complexu. Toda e qualquer específica situação de não-participação nas perdas sociais pode ser graduada. Em maior ou
menor grau, todos os sócios, todos os funcionários, toda a comunidade consumidora, enfim, toda a sociedade, em um sentido macroeconômico, perde com
as perdas sociais de uma sociedade específica.
5
CONCLUSÃO
Somente é fraudulenta a sociedade se quer ela ocultar uma relação de emprego que para existir deve preencher todos os seus pressupostos, sem que se dêem quaisquer fatos impeditivos.
Por outro lado, caso resulte considerada como fraudulenta a ascensão do ex-empregado a sócio, para se fugir das normações trabalhistas, a
única possível conseqüência é a absorção da fraudulenta situação de sócio
pela real situação de empregado. Após o pronunciamento da nulidade, que
não reconhece quaisquer efeitos válidos, a situação não pode restar outra.
E isso notadamente quando foi o tornar-se sócio em uma empresa do
grupo o que acarretou a suposta ruptura do contrato de trabalho na outra empresa do mesmo grupo. A pronúncia da nulidade somente pode abranger todos os
atos, com a recondução ao status quo ante.
Assim, toda e qualquer remuneração que tenha percebido o suposto sócio
se deverá ter como ao mesmo conferido a título laboral.
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Desse enquadramento se excluem, contudo, as parcelas pagas como distribuição de resultados, que não têm natureza salarial e sobre as quais não incide
qualquer tipo de encargo (artigo 7o, XI, da Constituição da República de 1988).
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRÃO, Nelson. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
2 ed. São Paulo: Saraiva, 1980.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro:
Aide, 1993.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Sociedade simulada. In: O novo direito
societário. São Paulo: Malheiros, 1998.
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego. São Paulo:
Saraiva, 1975.
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DIREITO E ESTADO NA PERSPECTIVA DOS
GRANDES CONTRATUALISTAS MODERNOS
FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
Sumário
1. Introdução. 2. O pensamento de Thomas Hobbes.
3. O pensamento de John Locke. 4. O pensamento de
Jean-Jacques. Rousseau. 5. Referências bibliográficas.
Resumo
O presente artigo é um estudo sobre as teorias dos principais representantes do movimento jusracionalista moderno: Hobbes, Locke e
Rousseau. Sua perspectiva contratualista acerca da origem e formação do
Estado dará fundamental impulso às revoluções do século XVIII, além de
estipular alguns dos elementos principais para a formação do constitucionalismo moderno. Pretendemos, pois, com base em uma interpretação
de seus principais escritos e dos mais destacados pontos de seus sistemas,
propiciar uma maior compreensão do fundamento de validade e da legitimidade do direito sob tal paradigma.
Abstract
This is a study about the theory of the most important members of the
so called modern natural law school: Hobbes, Locke and Rousseau. Their
perspective of the contract and the origin and constituency of the State will
be of great importance for the revolutions of the eighteenth century. Beyond
that, they are also responsible for stipulating some of the strongest basis of
the modern constitutionalism. So, by making an interpretation of their mainly
writings and most important elements of their theoretical system, we intent
to stimulate a deeper comprehension of the foundation of validity and
legitimacy of the Law.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
1
INTRODUÇÃO
Ao jusnaturalismo medieval, marcado por sua sustentação das doutrinas religiosas – tanto cristãs quanto reformistas –, sucede, no Século das
Luzes, um jusnaturalismo de sentido bastante diverso. São concepções que
levam as teorizações jusnaturalistas ao seu apogeu, baseadas todas em um
paradigma racionalista, condizente com o momento histórico vivido. No
que tange à demonstração do fundamento da obrigação de obediência ao
direito, a principal vertente do jusnaturalismo no século XVIII é constituída
pelas teorias contratualistas.
As teorias contratualistas são uma manifestação desenvolvida do
voluntarismo jurídico, isto é, aquela doutrina que fundamenta a validade
do direito em atos de vontade, tendo sua forma de expressão mais acabada na idéia de pacto ou de “contrato social”. O voluntarismo contratualista teve seu período de maior afirmação nos séculos XVII e XVIII,
mais precisamente no período entre 1650 e 1800, podendo-se apresentar Leviatã, de Hobbes, como a obra que inaugura essa escola de pensamento, a qual perduraria até Princípios metafísicos da doutrina moral de Kant, devendo-se apresentar como seus principais representantes
Hugo Grócio, Thomas Hobbes, Samuel Pufendorf, John Locke e JeanJacques Rousseau.
Segundo tal doutrina, o contrato social seria o instrumento hábil
a operar a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade civil. Estado de natureza seria aquele em que o homem gozaria
da máxima liberdade (arbítrio), de um suum decorrente de sua própria natureza humana. Já o estado de sociedade civil é marcado pela
alienação da liberdade por parte do homem em prol do poder civil,
tendo em vista uma maior segurança jurídica. Do estado de sociedade civil emanam os direitos subjetivos, concebidos como faculdade
moral (qualitas ou facultas moralis) de formular uma pretensão diante de outro sujeito, a fim de que esse se veja obrigado a agir da
forma como se lhe é exigido. Tais direitos subjetivos se desdobrariam,
por sua vez, em um “direito primário ou positivo”, de determinado
conteúdo, e em um “direito secundário ou negativo”, mediante o qual
se pode empregar a força (potestas, imperium) sempre que o direito
primário não for observado.
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Sem nos apegarmos à extensa discussão acerca do contrato social,
se é uma realidade “histórica” ou se é mera “idéia ou hipótese” teórica de
legitimação, sem a pretensão de se plasmar na realidade, entendemos que
o núcleo da teoria do contrato social reside na idéia de que o governo
legítimo é o produto artificial de um “acordo voluntário” entre agentes morais livres e de que a autoridade política “natural” não existe. Ao contrário
das teorias até então vigentes, de acordo com a ótica contratualista, a autoridade política seria algo artificial, repousando ela sobre a vontade, vale
dizer, o poder político se legitima por atos de vontade, produtos da liberdade e responsabilidade de cada um. Nesse sentido, a lição de Fiuza e
Costa, para quem tais teorias “têm como base o entendimento de que a
sociedade civil, o Estado e o governo nasceram de um acordo consciente
realizado pelos indivíduos, em determinado momento lógico ou histórico”
(2006, p. 45).
Assim, as teorias contratualistas pretendem resolver o problema da
legitimação do poder político, estabelecendo os limites da legitimidade da
submissão dos cidadãos ao poder do Estado. Na Antigüidade e na Idade
Média, pressupunha-se a existência de uma dominação política, vale dizer,
a discussão versava sobre quem e como era exercida a legitimação. Como
apontam os estudiosos, o pensamento político de Maquiavel teve o condão de provocar uma total inversão no quadro de legitimação do poder até
então existente.
Sabendo-se que a reflexão política só adquire foros de ciência com
a reflexão política de Maquiavel – não por outro motivo tido como o criador da Ciência Política moderna (SALGADO, 1998, p. 49) – é de se
supor que, no período em que emergiram as teorias contratualistas, não
houve o desenvolvimento de conceitos jurídicos próprios do direito político, sendo certamente esse o motivo pelo qual se tenha recorrido a um
conceito de direito privado, como o contrato.
Conforme o postulado consagrado por Sumer Maine, sabe-se que
a idéia de contrato (contractus) é própria de sociedades complexas e se
produz entre indivíduos que livre e voluntariamente se associam. Sendo
um conceito próprio, contractus se diferencia de status, no sentido de
que esse é tanto anterior no tempo quanto típico de sociedades menos
desenvolvidas. É algo predeterminado pelo nascimento e inamovível, vale
dizer, não é voluntário, e sim estático e fechado (apud SCHMITT, 1996,
p. 86).
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FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
2
O PENSAMENTO DE THOMAS HOBBES
O inglês Thomas Hobbes (1588-1679) traduz a vertente absolutista
do pensamento contratualista. Segundo ele, o homem, assim como os demais seres vivos, tem a tendência natural de permanecer contido em seu
próprio ser, tendo como preocupação fundamental a luta pela sobrevivência. Daí que sua marca essencial seja o egoísmo e o utilitarismo, no sentido
de que tudo concebe do ponto de vista de sua própria conveniência. O
conceito de felicidade mesmo nada mais é que a obtenção contínua do
que lhe seja bom e a negação contínua do que se lhe afigure como mau
(HOBBES, 1997, p. 57-65; 107-108).
Em seu estado primitivo, vivem os homens em perpétua guerra de
todos contra todos (a bellum privata), em que cada homem é um lobo
para os demais (homo homini lupus). O que impera é a lei do mais forte,
regra absoluta nesse estado de guerra, nocivo e prejudicial a todos os homens, que a todos coloca em perigo constante. Daí decidirem os homens
pela celebração de um pacto que lhes possibilitasse a vida em sociedade
(HOBBES, 1997, p. 109-111; 113-121).
Há a necessidade de que toda sociedade seja governada, e não sendo possível o governo de todos os homens, opera-se uma delegação de
poderes de cada um dos indivíduos a um só ou um pequeno grupo de
indivíduos de forma irreversível, passando, então, esse indivíduo ou esse
grupo de indivíduos a gozarem de um poder ilimitado até onde alcança a
sua força, as leis e o direito. O bem e o mal procedem de sua vontade
(BOBBIO, 1991, p. 43-47). Desse modo, Hobbes situa, incondicionalmente, uma justificativa das monarquias absolutistas e do poder absoluto
dos reis, que viria a se configurar como a mais conhecida justificação do
Estado Absoluto, a que ele denomina, em sua obra principal, de Leviatã.
Segundo Hobbes, no estado de natureza cada homem deve procurar a paz na medida do possível, e quando não for possível pode recorrer à
guerra: “Busquemos a paz e conservemo-la”, e “defendamos, com todos
os meios de que dispomos, a paz”, essa era de fato, para Hobbes, a primeira lei da natureza (1997, p. 113-114). A segunda lei da natureza é a que
faculta ao homem realizar pactos com os demais. Pactos redutores das
suas liberdades, mas, garantidores de sua segurança, mediante a criação
do poder político. Esse pacto obrigará os seus pactuantes, mas tal
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obrigatoriedade não é derivada da razão, e sim da própria conveniência
humana (1997, p. 114-116).
Aí resplandece, de forma cristalina, o utilitarismo hobbesiano, que
faz com que a força dos pactos derivem não de sua própria natureza, mas
do temor das nocivas conseqüências que adviriam de sua ruptura. O cumprimento do pacto não tem nenhum fundamento absoluto, descansa no próprio interesse, na idéia de que melhor é a conservação do pior Estado do
que o retorno ao estado de guerra (HOBBES, 1997, p. 117-121; 141143).
O descumprimento do pacto social leva à permanência do homem
no estado de guerra, sendo, portanto, latente a imperatividade da obediência ao direito, a qual se baseia na conveniência. Todavia, Hobbes entende
que, por mais razoável e proveitoso que resulte, em longo prazo, o cumprimento dos pactos, o homem não raro busca satisfazer seus interesses mais
imediatos, tornando sempre possível a ruptura do pacto (1997, p. 142).
Daí a necessidade de que os homens instituam um Estado que os
obrigue a respeitar o pacto, ainda que eles próprios não mais o queiram.
Hobbes ressalta a fragilidade humana ao enfatizar que, conquanto perceba
o mal futuro a que pode se submeter por suas ações, inúmeras vezes o
homem sucumbe à tentação do agir para satisfação seu desejo imediato.
Em razão disso – da debilidade humana – é que se torna imperativo que se
estabeleça instrumento capaz de resguardar o próprio pacto, surgindo daí
um Leviatã que impede os homens de caírem na tentação da discórdia
(1997, p. 144, 151).
O absolutismo de Hobbes foi conseqüência de seu próprio individualismo extremado, vale dizer, uma teoria que se fundasse sobre um individualismo mais ameno – tanto sociológica como antropologicamente – não
teria necessidade de submeter toda vida política dos súditos a uma obediência absolutamente incondicionada. Poderia ter reconhecido, inclusive,
alguns direitos políticos aos cidadãos, como o próprio direito de voto, de
liberdade de expressão e, mesmo, em caso extremo, o direito de dissentir,
concepção mais próxima da teoria de Locke.
Em Hobbes, o essencial para que a norma jurídica se imponha com
validade universal é a mera autoridade do soberano, do qual ela emana, e
não a verdade e a justiça material da própria norma. É o famoso preceito
consagrado por Hobbes segundo o qual auctoritas non veitas facit legem
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(1997, p. 147), fundamental em seu sistema político e que o coloca na
posição de uma espécie de “semente” do próprio positivismo jurídico
moderno1.
O argumento de Hobbes para justificar o dever de obediência ao
direito baseia-se na sustentação de que o Estado é uma instituição que
existe para atender aos interesses de todos os cidadãos. Estes, ao gozarem
da segurança que lhes proporciona o soberano ao cumprir as funções de
árbitro nas contendas sociais, mediante o exercício monopolizado da violência, devem suportar a carga que supõe a obediência à lei, inclusive suas
exteriorizações esporadicamente tidas por injustas. Assim, para Hobbes,
“ninguém tem liberdade para resistir à força do Estado, porque semelhante
liberdade arrebataria ao soberano os meios de nos proteger e é, por conseguinte, destrutiva da verdadeira essência do governo”. (1997, p. 171176).
Hobbes sustenta que é dever de um indivíduo obedecer a uma ordem do Estado, independentemente de qual seja sua origem ou estrutura
política, posto que a mera existência de tal ordem já é razão suficiente para
sua observância. À medida que um Estado provê os meios para resolver
de maneira pacífica os conflitos de interesses no seio da sociedade, há a
obrigação de que se lhe obedeça (1997, p. 177). Na visão hobbesiana,
qualquer medida com escopo de impor limitações ao Estado, desobedecendo a suas ordens, abriria um perigoso caminho para o surgimento de
conflitos irresolúveis. Existência do Estado, resolução pacífica dos conflitos sociais e obediência à lei são para Hobbes expressões sinônimas. Não
é outra a lição de Salgado, verbis: “(...) o Estado despótico concebido por
Hobbes em virtude da renúncia sem reserva da liberdade natural dos indivíduos para a sua instituição, não comete injustiça, do que decorre também
não ser possível opor-lhe qualquer direito de resistência” (1995, p. 79).
Hobbes adota uma postura análoga à de muitos outros autores, segundo os quais matar – salvo em defesa própria – é uma violação da lei da
1
Cabe salientar que o positivismo de Hobbes está em perfeita consonância com o pano de
fundo nominalista a que seu pensamento pertence. Isso porque, o pacto social responsável
pela saída do estado de natureza pressupõe um pacto lingüístico, uma vez que o desentendimento dos indivíduos sobre o significado das palavras seria também causa de sedição,
propensa a levar os homens a retornarem ao individualismo radical do estado de natureza.
Para uma visão mais ampla a esse respeito ver Höffe (1991) e Fonseca (2005).
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natureza. Todavia, conquanto outros consideram que o ato de matar é algo
mau em si mesmo, posto que todo homem tem direito à vida, Hobbes
afirma apenas que os homens querem viver em paz e devem se colocar de
acordo para converter o ato de matar em um crime (1997, p. 176). Assim,
ao passo que para outros matar é um ato mau por natureza para Hobbes é
mau quando contradiz um prévio acordo exigível de não matar. Para aqueles, trata-se de algo imoral; para Hobbes é apenas um ato inadequado. O
que torna a prescrição de não matar obrigatória, não é a justiça, nem os
direitos naturais ou os mandamentos divinos, vale dizer, considerações absolutas, senão meras razões prudenciais, ressalta-se, que a desobediência
a tal ordem se considera ilegal.
Pode-se assim concluir, com Fiuza que,
Nota-se aí o germe de todo Estado totalitário: Napoleão, Hitler,
Mussolini etc. Incapazes de viver sozinhos, os indivíduos escolhem
alguém, com mais capacidade, que os governe de cima para baixo
(...) Um pacto por meio do qual os indivíduos, que eram soberanos,
alienam tudo, para ficarem tranqüilamente sob a proteção do governo. Institui-se a submissão absoluta (2006, p. 47-48).
3
O PENSAMENTO DE JOHN LOCKE
Outro representante do contratualismo é John Locke (1632-1704),
cuja teoria política está contida fundamentalmente em Dois tratados sobre
o governo – Two treatises of government – e em Cartas sobre a tolerância – Letters concerning toleration. No primeiro “Ensaio sobre o
Governo Civil” são refutados como falsos princípios contidos em Patriarcha,
de Robert Filmer. Neste, o direito divino dos reis busca sua justificação
final na descendência hereditária a partir de Adão, havendo os monarcas
absolutistas recebido o poder absoluto de Deus como descendentes de
Adão e de Eva. Ademais, Primeiro tratado sobre o governo traz, também, um ataque ao absolutismo de Filmer e de Hobbes, conquanto a concepção lockeana derive igualmente o poder político de um contrato
(LOCKE, 1998, p. 4). Já Segundo tratado sobre o governo traz o conteúdo positivo da teoria política de Locke, e Cartas sobre a tolerância, a
exposição de suas idéias acerca da liberdade religiosa.
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No que diz respeito à teoria de Locke e às influências por ele recebidas, deve-se assinalar que, tradicionalmente, a teoria do contrato social
se contrapõe ao ensaio de David Hume intitulado Of the original contract.
Embora Hume afirme que o consentimento é o maior e mais sagrado fundamento da obrigação política, as teorias contratualistas clássicas vão ainda mais além. Afirmam não só que o consentimento é suficiente para a
constituição da autoridade política mas também que é condição indispensável, não havendo nenhuma outra fonte possível para legitimar o governo,
além do consentimento dos governados. Ademais, sustentam que, paralelamente ao consentimento expresso dos governados, há também o consentimento tácito implícito, que em Locke se produz, por exemplo, pela residência contínua no território do Estado em que se vive. Ambos os postulados são atacados por Hume (RICHARDS, 1984, p. 792-794).
Em Segundo tratado sobre o governo, Locke parte da existência
do estado de natureza do qual surge a comunidade política. No entanto, o
estado de natureza, na teoria de Locke não é um estado anárquico. Diferencia-se, portanto, de Hobbes, o qual considera que no estado de natureza os homens são iguais em suas capacidades, sendo que tal igualdade de
capacidade gera uma tão grande competitividade entre eles, que procuram
se afirmar uns diante dos outros, impondo-se uns aos outros, valendo-se
seja da força, seja do uso da inteligência. Assim é que os homens se convertem em inimigos entre si: o estado de guerra. Neste estado não há estabilidade, segurança, cultura, tampouco qualquer manifestação de arte
(HOBBES, 1997, p. 107-111).
Daí o fato de que todos clamam por uma maior segurança e paz
social, posto que as condições de vida existentes são denegadoras de elementos essenciais à própria vida humana. Como afirma Hobbes, a vida no
estado de natureza é “solitária, pobre, vital e curta”. Nesse estado de natureza, todo homem tem, segundo Hobbes, o direito natural inalienável de
preservação de sua própria vida, posto que ele não pode ser privado de tal
direito em nenhuma circunstância. Cada homem tem a obrigação de não
fazer nada que vá contra sua liberdade. O que se constata, todavia, é que
tal direito natural pode ser mais bem garantido abolindo-se o estado de
natureza, mediante a instituição da sociedade civil e política. Nela, serão
salvaguardadas de uma forma melhor a segurança, a autoconservação e a
proteção frente ao caos social (HOBBES, 1997, p. 113-118).
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Locke também parte do pressuposto de que no estado de natureza
os homens são iguais e possuem plena liberdade de disposição sobre os
seus bens, mas não acredita em um estado de luta e caos como o previsto
por Hobbes (LOCKE, 1998, p. 395-401). A concepção de Locke prevê
a existência de uma ordem prévia, anterior à formação do próprio estado
civil. No estado de natureza, a ordem é mantida mediante a observância da
lei da natureza que ordena que “ninguém deve violar o outro em sua vida,
liberdade e propriedade” (LOCKE, 1998, p. 381-384).
Todavia, apesar de terem os homens tal lei, não necessariamente a
seguem, posto que há “homens maus” em todas as sociedades: aqueles que
não seguem leis e são dominados por suas paixões e apetites pessoais.
Esses homens trazem o caos à convivência pacífica dos demais, introduzindo na vida do estado de natureza o descontentamento e o desassossego.
Contra os que violam a lei da natureza e atentam contra a vida, liberdade e
propriedade dos demais devem ser dirigidas as sanções e o castigo.
Indagando-se a respeito da viabilidade de que cada pessoa se ponha como seu próprio juiz, Locke aponta a necessidade de se instituir a
sociedade civil a fim de que se faça efetiva a lei da natureza. Na opinião
de Locke, é conveniente limitar a liberdade originária, mas, para isso,
todos os indivíduos devem prestar seu próprio consentimento (LOCKE,
1998, p. 385-387; 391-392). O único meio para retirar o homem do
estado de natureza é o pacto estabelecido pelo contrato social. Por meio
da criação da sociedade política, o homem tentará fazer efetivas a vida, a
liberdade e a propriedade protegidas no estado de natureza (LOCKE,
1998, p. 393-394).
No entanto, como justificar o consentimento daquelas pessoas que
não deram, expressamente – por expressa manifestação de sua vontade–
sua anuência à constituição da sociedade civil ou à formação de um determinado governo? Locke justifica tais hipóteses por meio da idéia de consentimento tácito, como alternativa ao consentimento expresso (1998, p.
468, 470-472). Presume ele que o desfrute dos benefícios do Estado é
suficiente para fazer supor a existência de consentimento, que, embora não
expresso, tem-se como bastante contundente, consubstanciando-se na
obrigação de submeter-se às decisões da maioria. Ao consentir com outros na criação de um governo, todo homem passa a se submeter a uma
obrigação com relação a todos os demais de submeter-se à decisão da
maioria.
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Vê-se, pois, que o governante deriva dos governados toda a sua
autoridade de governar e legislar, atuando como um juiz mediante criação
de normas supostamente justas e não discriminatórias. É a idéia do juiz na
Terra, ou do juiz natural, centro da própria concepção política de Locke
(1998, p. 496; 498-499; 515-516). Desse modo, a autoridade se justifica
pelo bem que leva à consecução2. Quintão Soares nos ensina que:
Estabelecida a comunidade civil, esta há de escolher determinada
forma de governo, observando-se que, qualquer que seja a opção,
tal governo deve atender às demandas da commonwealth ou comunidade social:
a) fazer leis dotadas de sanção, incluindo a pena de morte, com o fim
de conservar e regular a propriedade;
b) empregar a força da comunidade, para a boa executoriedade dessas leis;
c) defender a própria commonwealth contra os inimigos externos,
garantindo destarte o bem público (2001, p. 102-103).
O povo, ao prestar o consentimento, não outorga irreversível e incondicionalmente o poder ao governante. Trata-se de um melhor intercâmbio, no qual há direitos e obrigações, contraprestações atribuídas a ambas
as partes, como ocorre nos contratos em direito privado. O contrato social
não vincula apenas o povo, senão que obriga também ao soberano, sendo
possível, pois, que o violador do pacto seja o soberano, e não apenas os
governados (LOCKE, p. 1998: 499 et seq.).
Estamos, portanto, diante de uma concepção da origem do poder
de feições populistas, antecessora direta do governo democrático, típica
do liberalismo, pela qual o título constitutivo do governo é o pacto, pacto
de todos os homens como iguais, em clara contraposição às concepções
2
É de notar que a tradição democrática, seguindo basicamente os postulados de John Locke,
formula nesse sentido um chamamento à obediência à lei sobre a base do consentimento
prestado pelos cidadãos às autoridades democraticamente eleitas por meio da participação
em processos eleitorais. O consentimento dos cidadãos, bem como o reconhecimento e
respeito dos direitos essenciais, constituiriam, dessarte, os novos argumentos que hão de
ser esgrimidos em suporte da tese da obediência à lei dentro do marco de uma organização
jurídico-política (o Estado democrático liberal) considerada como “quase-justa” (Rawls).
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teocráticas das monarquias tradicionais, vitalícias – não temporais – hereditárias – e não eletivas, nas quais há uma manifesta violação ao princípio
de igualdade, pela só existência de uma pessoa, o monarca – alteza, majestade – que goza de supremacia frente a todos os demais (LOCKE, 1998,
p. 461-463).
Baseado na concepção de Hobbes, defensora das monarquias absolutas, Locke assenta as bases teóricas do próprio liberalismo político,
por meio de sua especial concepção acerca do contrato social. Locke é
consciente das deficiências inerentes ao poder ilimitado dos monarcas, entendendo que um governo não pode deter poder absoluto sobre o povo.
Isso porque seu poder deve estar limitado pela própria idéia de bem comum. Ademais, o poder absoluto não é congruente com a existência da lei
natural e com os direitos humanos que, em Locke, todavia, não são ainda
direitos sociais, mas apenas direitos típicos do liberalismo de primeira geração: direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade.
Para Locke, não há lugar para a tirania dos governantes, encontrando-se, pois, em sua teoria, um amplo campo para a defesa da resistência e
da desobediência ao governo descumpridor das obrigações para as quais
foi instituído. Vale dizer que se o governo deixa de realizar a finalidade para
a qual fora instituído, que é servir ao bem comum, perde a confiança do
povo, que passa a ter o direito de sublevar-se contra ele. Locke está consciente da inexistência de governos infalíveis, considerando, portanto, possível a dissolução do governo em algumas situações. Assim é que enumera
quatro situações nas quais será justificada a dissolução do governo por
parte dos cidadãos: I. a “conquista” (conquest), vale dizer, a submissão
violenta a um agressor como conseqüência de uma guerra justa (1998, p.
542-559); II. a usurpação (usurpation), ou seja, a conquista interna por
parte de um membro da comunidade que se faz sem o consentimento de
todos os demais, sem que haja a modificação das formas de governo ou
das leis (1998, p. 559-560); III. a “tirania” (tyranny), na qual a arbitrariedade não deriva da pessoa que ostenta o poder, mas da forma mesma de
governo (1998, p. 560-570); IV. a “dissolução do governo” (dissolution
of government), que se produz diante da usurpação das funções legislativas
pelo soberano por uma das seguintes causas: quando as normas do legislativo
não tiverem aplicação; quando o legislativo estiver impedido de deliberar
livremente; quando as regras dos eleitores forem modificadas sem consentimento; quando o governo agir violando a confiança nele depositada, com
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a intenção deliberada de violar à propriedade – que em Locke não se
refere apenas à propriedade de bens materiais3 – dos cidadãos para converter-se em senhor de suas vidas, de sua liberdade e de suas fortunas, vale
dizer, de seus direitos inalienáveis advindos de seu estado de natureza (1998,
p. 571-601).
Temos, assim, as principais diferenças entre o pensamento de Locke
e o de Hobbes. Elas se situam, primeiramente, na visão pessimista e quase
sanguinária que Hobbes tem acerca do estado de natureza. Ao confundir o
estado de natureza com o estado de guerra, Hobbes estabelece um profundo distanciamento entre a sua concepção e a de Locke. Para Locke,
apenas em certas ocasiões é possível a convergência dos dois estados em
virtude de uma degeneração do estado de natureza. Ademais, Hobbes defende a outorga do poder do povo a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, mostrando-se partidário da monarquia absolutista e da aristocracia, ao
passo que Locke baseia-se em uma consideração da soberania popular
bem mais próxima das democracias liberais. Isso se deve à maior consciência de Locke dos muitos percalços provocados pelo Estado absolutista,
entendendo que a concentração de poder das monarquias absolutas pode
ser mais perniciosa do que o próprio estado de natureza, inclusive o estado
de guerra de feições hobbesianas. É que, no estado de natureza, em sua
liberdade inata, os homens pelo menos se oporão apenas aos seus próprios iguais, não ao poder superior do Estado, de um Estado opressor e dotado de gigantescos poderes tal qual o Estado leviatânico de Hobbes.
3
Para Locke, a propriedade constitui o fim principal da sociedade política e do governo.
Assim ele a define no Segundo tratado sobre o governo, verbis: “Se o homem no estado de
natureza é livre como se disse, se é senhor de sua própria pessoa e suas próprias posses,
igual ao mais eminente dos homens e a ninguém submetido, por que haveria ele de se
desfazer dessa liberdade? Por que haveria de renunciar a esse império e submeter-se ao
domínio e ao controle de qualquer outro poder? A resposta evidente é a de que, embora
tivesse tal direito no estado de natureza, o exercício do mesmo é bastante incerto e está
constantemente exposto à violação por parte dos outros, pois que sendo todos reis na
mesma proporção que ele, cada homem um igual ao seu, e por não serem eles, em sua
maioria, estritos observadores da eqüidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da propriedade é bastante incerto e inseguro. Tais circunstâncias o fazem querer abdicar dessa
condição, a qual, conquanto livre, é repleta de temores e de perigos constantes. E não é sem
razão que ele procura e almeja unir-se em sociedade com outros que já se encontram
reunidos ou projetam unir-se para a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens,
aos quais atribuo o termo genérico de propriedade” (1998, p. 494-495).
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O PENSAMENTO DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Ao lado do pensamento contratualista dos pensadores anglo-saxões
encontra-se o contratualismo de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ilustre cidadão de Genebra que teve de refugiar-se devido à força de suas
idéias, passando grande parte da vida na França. É preciso ter em vista que
Locke e Hobbes, assim como Rousseau, sofreram indiretamente a influência de Nicolau Maquiavel, cuja obra representa um dos pontos de ruptura
que desencadearam o início da modernidade. Ademais, Maquiavel foi o
primeiro a abordar alguns dos postulados que lhe seriam essenciais, como
o fato de o homem e a sociedade não serem contemporâneos, como na
Antigüidade4 se acreditava – ubi homo ibi societas, ubi societas ibi jus –
, senão que a sociedade, tal como o direito, é produto humano que o homem estrutura por sua vontade e racionalidade. O homem não é um ser
social ou político por natureza, senão conseqüência de um acordo pelo
qual decide participar da sociedade.
O homem, disse Maquiavel, não é nem bom nem mau por natureza,
mas simplesmente maleável. Ademais, contrário à tradição herdada de
Platão, Cícero, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, que insistiam em
uma concepção ideal de seres humanos, concebendo todos os direitos
correlatos de um dever respectivo, Maquiavel afirmará que todo homem
nasce com direito à autoconservação, ao qual reclama deveres correlativos,
não pesando, todavia, sobre o próximo a obrigação de permitir seu exercício (MAQUIAVEL, 1969, p. 101-104, passim).
Este foi, de alguma forma, um ponto de contribuição e unificação das
teorias de Rousseau, Hobbes e Locke. Todavia, apesar desses pontos
comuns, o contratualismo de Rousseau apresenta várias inovações com
relação aos autores anglo-saxões. Um ponto de divergência entre as teorias dos três autores diz respeito às próprias concepções políticas que defendem. Hobbes é defensor do absolutismo; Locke é defensor do liberalis-
4
Nesse sentido, ensina Galuppo que a concepção antropológica prevalecente na Antigüidade helênica tendia a conceber a sociedade como prévia e prioritária ao ente humano, o qual
só se fazia realmente homem porque inserido na polis. Daí, inclusive, advindo o correto
sentido da célebre dicção aristotélica de que o homem seria o “animal político” (zoon
politikón) (2002, p. 43-45).
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mo; e Rousseau é defensor da ideologia sustentadora da própria Revolução Francesa.
A obra-chave para a compreensão do pensamento de Rousseau é
Do contrato social. Nessa obra, encontram-se os pontos básicos da doutrina rousseauniana acerca do contrato social, como instrumento criador
do Estado, portando, contudo, os seguintes elementos diferenciais:
I. O direito à vida ou, preferindo-se, à autoconservação, direito natural que pertence ao indivíduo pela própria natureza das coisas. Assim se
posiciona Rousseau:
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a família: os
filhos permanecem ligados aos pais apenas durante o tempo em que
têm necessidade deles para se conservar. Assim que esta necessidade cessa, o laço natural se dissolve. Os filhos ficam isentos da obediência que deviam ao pai; o pai fica isento dos cuidados que devia
aos filhos, retomando, assim, todos igualmente, a independência. Se
continuam unidos, não é mais naturalmente, é voluntariamente; e a
própria família se mantém apenas por convenção.
Esta liberdade comum é uma conseqüência da natureza do homem.
Sua primeira lei é a de velar por sua própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que deve a si mesmo e, assim que alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados à
sua conservação, torna-se, por isso, seu próprio senhor ([s.d.], p.
18).
II. A lei da natureza teve um papel importante no pensamento de
Hobbes e Locke, marcando os pressupostos mínimos que deveriam ser
observados a fim de impedir o retorno ao estado de natureza e suas mazelas. Assim, por exemplo, em Locke, os pressupostos mínimos eram o respeito à “vida, à liberdade e à propriedade”. Nesse ponto, Rousseau se
distanciou dos contratualistas ingleses, aproximando-se das teorias democráticas e rechaçando por completo a necessidade da existência da lei da
natureza, com base na sustentação de que não há um parâmetro objetivo a
que se tenha de aproximar o direito positivo de uma sociedade determinada. Basta que tal modelo seja eleito pela maioria conformadora da própria
sociedade (ROUSSEAU, [s.d.], p. 26-28).
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III. Para Hobbes, diferentemente de Rousseau, o soberano não é
parte do contrato, portanto, jamais pode ser convocado a prestar contas
sobre a maneira como cumpre suas funções. O contrato de Rousseau representa um grande avanço não apenas em relação à concepção de Hobbes
mas também à concepção do próprio Locke. Quando toma parte no contrato, o indivíduo de Rousseau cede todos os seus direitos e suas propriedades à comunidade, posto que
as cláusulas (do contrato) se reduzem, quando bem compreendidas,
a uma só, a saber: a alienação total de cada associado com todos os
seus direitos a toda a comunidade, pois, em primeiro lugar, cada um
se doando inteiramente, a condição é igual para todos e, sendo assim, ninguém tem a intenção de torná-la onerosa aos demais.
Além disso, se a alienação for feita sem reserva, a união é tão perfeita quanto possível e nenhum associado tem nada a reclamar: pois, se
restassem alguns direitos aos particulares, como não haveria nenhum
superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada
um, sendo até certo ponto seu próprio juiz, rapidamente pretenderia
sê-lo para todos; o estado de natureza subsistiria, e a ação tornarse-ia, necessariamente, tirânica ou vã ([s.d.], p. 27).
Assim fazendo, cada indivíduo deve ter consciência de que adiante
não terá outros direitos ou deveres que aqueles que a vontade geral lhe
conceda. Como sustenta o genebrino:
Cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante à vontade geral que tem como cidadão: seu
interesse particular pode ser muito diverso do interesse comum; sua
existência absoluta, e naturalmente independente, pode fazer com
que considere o que deve à causa comum como uma contribuição
gratuita, cuja perda seria menos prejudicial aos outros que o pagamento oneroso para ele; e olhando a pessoa moral que constitui o
Estado como um ser de razão, porque não é um homem, gozaria dos
direitos do cidadão sem querer cumprir os deveres do súdito, injustiça cujo progresso causaria a ruína do corpo político.
A fim de que esse pacto não seja, pois, um formulário vão, ele compreende tacitamente este compromisso, o único que poderá dar for-
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ça aos outros, que quem quer que venha a recusar à vontade geral,
será constrangido a isso por todo o corpo, o que significa apenas
que será forçado a ser livre, pois esta é a condição que, dando cada
cidadão à pátria, o garante de toda dependência pessoal, condição
que constitui o artifício e o jogo da máquina política, e que é a única
a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, seriam absurdos, tirânicos, e sujeitos aos maiores abusos ([s.d.], p. 30-31).
Entretanto, o contrato de Rousseau não é permanente. A característica do contrato social, segundo esse pensador, é a de que o Poder
Legislativo edite normas gerais acerca tanto de seu conteúdo – o bem comum – como de seus destinatários – a generalidade da cidadania. Caso
não se façam observar tais requisitos, o cidadão pode se ver livre de sua
obrigação de obediência. Assim, pela primeira vez, busca-se um processo
legislativo democrático e constitucional, com garantias pessoais para o caso
de descumprimento contratual por parte do Estado ([s.d.], p. 47-49). Fiuza
chega mesmo a apontar uma provável conexão entre o contrato social tal
como proposto por Rousseau, e a idéia de constituição escrita que viria a
ser defendida pelos founding fathers dos Estados Unidos da América
(FIUZA, 2006, p. 52).
Nessa linha de pensamento, uma sociedade na qual inexista o postulado legal não será, em suma, uma comunidade autêntica. Rousseau, logo
no início de seu magnífico Contrato social, levanta a questão de como
deve ser entendido o poder coercitivo da autoridade governamental. Em
seu estilo retórico e incisivo, exclama: “O homem nasce livre, mas em toda
parte está acorrentado” ([s.d.], p. 17). Rousseau não acreditava ser capaz
de explicar a origem de tal acontecimento, sendo seu intuito explorar a
forma como essa situação (pode ser transformada para ser legitimada). De
sua ótica, essa legitimação resulta do fato de que as leis devem ser decididas por vontade geral. Atente para sua argumentação:
O cidadão consente a todas as leis, mesmo àquelas que foram aprovadas independentemente de si, e mesmo àquelas que o punem quando ousa violar a qualquer uma. A vontade constante de todos os
membros do Estado é a vontade geral: é por ela que são cidadãos e
livres. Quando se propõe uma lei na assembléia do povo, o que se
lhes pergunta não é precisamente se aprovam a proposição ou se a
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rejeitam, mas se por seu voto dá sua opinião e pelo cálculo dos
votos se obtém a declaração da vontade geral. Quando, portanto, o
parecer contrário ao meu vence, isto prova apenas que me enganei,
e aquilo que eu acreditava ser a vontade geral, não o era. Se meu
parecer particular tivesse vencido, eu teria feito coisa diferente da
desejada; e então eu não teria sido livre ([s.d.], p. 115).
E ainda:
A vontade geral é sempre constante, inalterável e pura, mas é subordinada a outras que a sobrepujam. Cada um, desligando seu interesse do interesse comum, bem sabe que não pode isolá-lo completamente; mas sua parte do mal público nada lhe parece diante do bem
excluído de que pretende se apropriar. Excetuando-se esse bem
particular, quer o bem geral pelo seu próprio interesse, tão fortemente quanto qualquer outro. Mesmo quando vende seu sufrágio a preço de ouro, não extingue em si a vontade geral, ele a ilude ([s.d.], p.
112).
(...) De si mesmo, o povo quer sempre o bem, mas de si mesmo, de
modo algum nem sempre logra enxergá-lo. A vontade geral está sempre certa, mas o julgamento que a revela nem sempre é esclarecido
([s.d.], p. 49).
Vê-se que, como corolário de sua concepção fundamentalmente igualitária do ser humano, todos os homens possuem, em Rousseau, uma vontade racional, encarada como expressão dessas vontades individuais, no
momento em que essas se reúnem para legislar. Todavia, não podemos daí
concluir que Rousseau tenha considerado a vontade geral como a mera
soma das vontades individuais componentes da comunidade, posto que
essas vontades particulares não estão dirigidas no sentido do bem geral,
mas tão-somente do bem do indivíduo. Ora, uma verdadeira lei deve ser
sempre uma regra geral, e o problema central de todo governo é justamente saber como obter as referidas leis, voltadas que são à obediência de
todos.
IV. O problema do consentimento esteve presente na obra dos três
principais pensadores contratualistas e resultou, para eles, na árdua tarefa
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de explicar como a obrigatoriedade se estende para além daqueles que o
celebraram, como a seus descendentes. Hobbes e Locke sustentaram essa
necessidade afirmando que os descendentes prestam o seu consentimento
tácito ao permanecerem na circunscrição territorial do Estado e ao aceitarem sua proteção. Como afirma Kendall,
nisso, uma vez mais, Rousseau se distancia radicalmente de seus predecessores, posto que tratou de legitimar de forma dual, as leis de
sua sociedade, prolongando o consentimento dos cidadãos, prestado individualmente: em primeiro lugar, estipulando no contrato que
se requererá de cada cidadão que, ao chegar a idade adulta, decida
se consente com o quadro das instituições existentes ou prefere se
afastar da sociedade. E, em segundo lugar, exigindo que nenhum
cidadão seja excluído formalmente das deliberações de votação através das quais se manifesta a “vontade geral”. Em ambos os aspectos
Rousseau nos conduz muito próximo aos termos mais importantes
da teoria democrática contemporânea: a importância atribuída à igualdade política e à insistência na participação ativa do cidadão no processo político como condição indispensável do “governo por consentimento” ([s.d.], p. 145-149).
5
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO
DOS DIREITOS HUMANOS
PATRÍCIA DUARTE COSTA MENTA
Sumário
1. Introdução. 2. Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. 3. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 4. Direitos culturais. 5. Considerações finais. 6.
Referências bibliográficas.
Resumo
A influência política e econômica sobre os costumes e as tradições
dos povos ao longo dos anos culminou na necessidade de proteção dos
direitos humanos, particularmente dos direitos culturais que preservam e
orientam a evolução da sociedade.
Este artigo mostra a necessidade de restabelecimento da ordem
mundial – afetada pela queda nas atividades econômicas, gerada pelos
conflitos mundiais e pela bipolarização política – por meio da instituição
dos direitos inerentes ao homem e, principalmente, da promoção de liberdade indicando os direitos culturais como valorizadores da diversidade e
do intercâmbio como fator para coexistência harmoniosa dos homens.
PALAVRAS-CHAVE: bipolarização; direitos humanos; liberdade; direitos culturais.
Abstract
The political and economical influence on peoples´ habits and traditions
through the years made the protection of human rights, particularly cultural
rights – that preserve and guide the evolution of the society – be a necessity.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 387-407
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PATRÍCIA DUARTE COSTA MENTA
This article discuss the need of establish the world order again –
affected by the decreasing in the economical activities, a result of world
conflicts and political bipolarization – through the institution of the inherent
rights in man and, mainly, because of the promotion of freedom indicating
cultural rights as an aspect that value the diversity and the exchange as a
factor to an harmonious coexistence between human beings.
KEYWORDS: bipolarization, human rights, freedom, cultural rights.
1
INTRODUÇÃO
Durante a Segunda Guerra (1939-1945), as nações mais industrializadas registraram quedas em suas atividades econômicas. Na tentativa de
defender suas produções, restringiram as importações, o que acarretou
diminuição do comércio global com conseqüente agravamento da crise financeira mundial. Dessa forma, os governos perceberam que o mundo tinha mudado e que os países não mais podiam viver isoladamente. A evolução tecnológica e dos meios de comunicação encurtou a distância entre as
nações transformando a realidade social, econômica e política, influenciando o comportamento do homem. A crise econômica afetava todos os países, ainda que estivessem a milhares de quilômetros de distância dos Estados Unidos e das nações da Europa.
Pouco antes do final do conflito, os Estados Unidos haviam se tornado
credores do mundo, situação que favoreceu o início de um ciclo de financiamento de economias enfraquecidas. Com as experiências negativas, os vencedores da Segunda Guerra trataram de criar uma nova ordem mundial, agora planejada. O acordo de Bretton Woods (1944)1 estabeleceu as bases
dessa nova ordem com uma análise crítica das duas décadas anteriores. Era
preciso evitar o que havia acontecido depois da Primeira Guerra, com a falta
de hegemonia e organização global. A partir daí, Inglaterra e Estados Unidos
estavam dispostos a exercer o papel de reguladores da economia mundial.
A conferência de Bretton Woods, amparada no Fundo Monetário
Internacional (FMI)2 e no Banco Internacional de Reconstrução e Desen1
2
Em 1944, o Acordo de Bretton Woods tratou da taxa de câmbio fixa (fixed exchange rate),
estabelecida entre as moedas dos países. O sistema de taxas de câmbio fixas perdurou até
início dos anos 70, quando foi adotado o sistema de taxa de câmbio flutuante (floating
exchange rate).
O Fundo Monetário Internacional (FMI) foi criado em 1944, durante a Conferência Internacional de Bretton Woods (nos Estados Unidos), promovida pela Organização das
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO DOS DIREITOS HUMANOS
volvimento (Bird)3, tratou, então, de recompor as relações comerciais com
pré-condições, como taxas fixas de câmbio, ainda que ajustáveis, e de
criar organismos que resolvessem problemas de liquidez de curto prazo
para que o país em crise pudesse rapidamente corrigir suas distorções. A
expectativa era de que a estabilidade de câmbio e a maior previsibilidade
impediriam ajustes recessivos nos países.
Com o sistema econômico mundial em fase de estabelecimento, logo
após a guerra, uma nova conferência, de São Francisco (1945), buscou
reorganizar o sistema político mundial por meio da criação da Organização
das Nações Unidas (ONU)4. Seus fundadores tinham grandes esperanças
3
4
Nações Unidas (ONU), com objetivo de promover a cooperação monetária e emprestar
fundos para os países com dificuldades no balanço de pagamentos. Esse sistema de cooperação econômica, estabelecido por representantes de 29 países, foi desenvolvido para
fornecer assistência financeira temporária (incluindo empréstimos) para países em crise;
evitar a repetição das políticas econômicas que contribuíram, por exemplo, para o enfraquecimento do comércio mundial durante a Segunda Guerra; assegurar que os países tivessem reservas em moeda forte (principalmente dólar) que lhes permitisse continuar
comercializando com outras nações do mundo; e estimular o crescimento econômico.
O Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), mais conhecido como
Banco Mundial, foi criado em 1944, junto com o FMI. Seu objetivo é promover o desenvolvimento econômico de seus países-membros em longo prazo. Nesse processo está
incluído o financiamento de projetos de infra-estrutura, como construção de estradas e
melhorias no abastecimento de água.
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada oficialmente logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial, em 24 de outubro de 1945, em São Francisco, Califórnia, depois
da Carta das Nações Unidas ter sido ratificada pelos então cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança (República Popular da China, França, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Reino Unido e Estados Unidos da América) e pela grande maioria dos
outros 46 membros. A primeira assembléia geral foi celebrada no dia 10 de janeiro de 1946
(em Westminster, Central Hall, Londres). A sua sede atual é na cidade de Nova Iorque. A
percussora das Nações Unidas foi a Sociedade das Nações (também conhecida como Liga
das Nações), organização concebida em circunstâncias similares durante a Primeira Guerra
Mundial e estabelecida em 1919, em conformidade com o Tratado de Versalhes, “para
promover a cooperação internacional e conseguir a paz e a segurança”. Em 2006, a ONU
tem representados 192 Estados-Membros – cada um dos países soberanos internacionalmente reconhecidos, exceto o Vaticano, cuja qualidade é de observador, e países sem
reconhecimento pleno (como Taiwan, território reclamado pela China, mas de reconhecimento soberano por outros países).
Um dos feitos mais destacáveis da ONU foi a proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948. A idéia das Nações Unidas foi elaborada na declaração,
firmada durante a Segunda Guerra Mundial, na conferência de aliados celebrada em Moscou, em 1943. O então presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, sugeriu
o nome de “Nações Unidas”. Em 25 de abril de 1945 foi celebrada a primeira conferência em
São Francisco. À parte dos governos, foram convidadas organizações não governamentais.
As 50 nações representadas na conferência assinaram a Carta das Nações Unidas dois
meses mais tarde, em 26 de junho; a Polônia, que não esteve representada na conferência,
acrescentou o seu nome mais tarde, totalizando 51 Estados.
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de prevenir novas guerras, mas, em muitos casos, esse desejo não foi realizado, e a divisão do mundo em zonas hostis persistiu.
A oposição entre socialismo e capitalismo foi levada ao extremo após
1945, resultando em uma bipolarização política, ideológica e militar que
afetou todo o mundo contemporâneo. Após a Segunda Guerra Mundial,
dois blocos distintos de países se constituíram: de um lado, o capitalista,
liderado pelos Estados Unidos; do outro, o comunista, liderado pela União
Soviética. Embora cada lado defendesse seus interesses e procurasse se
fortalecer ainda mais, não houve confrontos diretos; essa situação recebeu
o nome de Guerra Fria.
A chamada Guerra Fria que teve início5 com a decisão de Stalin,
chefe do Estado soviético, de não participar do Plano Marshall (19471948)6, foi um período em que a guerra era improvável, e a paz, impossível, na célebre frase do pensador Raymond Aron7.
5
6
Não existe um consenso sobre a data exata do início da Guerra Fria. Para alguns estudiosos,
o marco simbólico foi a explosão nuclear que atingiu as cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki, em agosto de 1945. Outros acreditam que seu início data de fevereiro de 1947,
quando o presidente norte-americano Harry Truman lançou no Congresso dos Estados
Unidos a Doutrina Truman, que previa uma luta sem tréguas para deter a expansão comunista no mundo. Há estudiosos que lembram a divisão da Alemanha em dois Estados, em
outubro de 1949. O surgimento da Alemanha Oriental, socialista, estimulou a criação de
alianças militares dos dois lados, tornando oficial a divisão da Europa em dois blocos
antagônicos. Esse também pode ter sido o marco inicial da Guerra Fria.
O Plano Marshall, conhecido oficialmente como Programa de Recuperação Européia, foi o
principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos
anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. A iniciativa recebeu o nome do Secretário de
Estado dos Estados Unidos, George Marshall. O plano de reconstrução foi desenvolvido
em um encontro dos Estados europeus participantes, em julho de 1947. A União Européia
e os países da Europa Ocidental foram convidados, mas Josef Stalin viu o plano como uma
ameaça e não permitiu a participação de nenhum país sob controle soviético. O plano
permaneceu em operação por quatro anos fiscais desde julho de 1947. Durante esse período, algo em torno de US$ 13 bilhões de assistência técnica e econômica – equivalente a
cerca de US$ 130 bilhões em 2006, valor ajustado pela inflação – foram entregues para
ajudar na recuperação dos países europeus que se juntaram à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Quando o plano foi completado, a economia de cada país participante, com exceção da Alemanha, tinha crescido consideravelmente
acima dos níveis pré-guerra. Pelas próximas duas décadas a Europa Ocidental iria gozar de
prosperidade e crescimento. O Plano Marshall também é visto como um dos primeiros
elementos da integração européia, já que anulou barreiras comerciais e criou instituições
para coordenar a economia em nível continental. Uma conseqüência intencionada foi a
adoção sistemática de técnicas administrativas norte-americanas.
Recentemente os historiadores vêm questionando tanto os verdadeiros motivos quanto os
efeitos gerais do Plano Marshall. Alguns acreditam que os benefícios do plano foram
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Uma vez que havia arsenais nucleares capazes de destruir a Terra em
instantes, Estados Unidos e União Soviética não podiam cumprir suas ameaças, por simples questão de sobrevivência. A paz era impossível porque
os interesses de capitalistas e de comunistas eram incompatíveis por natureza. A guerra era improvável porque o poder de destruição das superpotências era tão grande que um confronto generalizado seria, com certeza, o
último.
Hoje, percebe-se isso claramente; na época, entretanto, a situação
se caracterizava como o “equilíbrio do terror” 8.
No totalitarismo, nascido no decorrer da Primeira Guerra Mundial,
com a necessidade de direcionar a produção industrial para a demanda
gerada pela guerra, os governos das frágeis democracias liberais européias
tiveram de se fortalecer, acumulando poderes e funções de Estado, em
detrimento do poder parlamentar, para agilizar as decisões importantes em
tempos de guerra. Naquele momento a idéia era que esses poderes
7
8
resultado de políticas de laissez faire que permitiram a estabilização de mercados por meio
do crescimento econômico. Além disso, alguns criticam o plano por estabelecer uma tendência de os Estados Unidos ajudarem economias estrangeiras em dificuldades com o
dinheiro de impostos dos cidadãos norte-americanos.
Raymond Aron (Paris, 14 de março de 1905 – Paris, 17 de outubro de 1983) foi filósofo,
sociólogo e comentador político francês.
O “equilíbrio do terror” é uma teoria elaborada na época da Guerra Fria quando a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas e seus aliados do Pacto de Varsóvia de um lado e os
Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de
outro se envolveram em uma corrida armamentista tão perigosa que nenhuma das partes
beligerantes poderia esperar obter as vantagens de um conflito armado. Armas nucleares e
mísseis balísticos diferentes e poderosos, com capacidade para destruir o mundo várias
vezes, foram desenvolvidos. (Como se fosse possível destruir o destruído.) As ameaças
que as superpotências faziam entre si implicavam produção de um maior e mais poderoso
arsenal de armas que funcionava como mecanismo de defesa; o ataque a qualquer um dos
lados desencadearia uma guerra que poria fim à vida humana. Como ambos os lados do
conflito agiam de forma racional, por terem consciência das conseqüências de uma guerra
desse tipo, a paz foi preservada graças a acordos de desarmamento parcial, feitos após
numerosas negociações.
Pode-se dizer que essa expressão significa a capacidade de cada bloco antagônico de aniquilar seu adversário por meio de um ataque em caso de ser atacado. O primeiro que tenta
destruir o outro tem a certeza de que sofrerá lesões parciais ou totais e isso garante que o
ataque não tenha início para não se correr o risco de ser aniquilado. Esse equilíbrio se
transformou paradoxalmente em uma garantia para a paz, e foi isso que evitou, por mais de
50 anos, que as superpotências se enfrentassem abertamente em uma guerra mundial. Foi
um dos períodos mais seguros da história.
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retornariam à distribuição democrática usual, quando a paz fosse
restabelecida. Entretanto, não foi isso que aconteceu.
O Estado com executivo forte e legislativo debilitado que se constituiu durante a Primeira Guerra acabou sendo a semente do modelo de
autoritarismo9 que surgiria na década seguinte. Os regimes totalitários, violentamente opressores, estavam inseridos no contexto da sociedade de
massa e o uso da violência, como ferramenta de dominação, se efetuava de
modo completo.
Finalmente, em 1948, os países que aderiram à ONU firmaram, em
Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, visando restabelecer
a ordem jurídica internacional profundamente afetada pela experiência totalitária,
como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a
fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade,
tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela
educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e
por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos, tanto entre as populações dos próprios Estados-Membros como
entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.10
2
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO
CIDADÃO
Segundo ensinamentos de Mata Machado a Revolução Francesa11
instituiu uma alteração fundamental na relação entre o Estado e o povo ao
9
Das várias monarquias parlamentares européias em 1914 (Reino Unido, Itália, Espanha,
Portugal, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Noruega, Sérvia, Bulgária, Romênia, Grécia,
Áustria-Hungria e outras), só a britânica terminou o século sem ter passado por uma
ditadura de inspiração fascista.
10 Parte inicial do texto da Declaração.
11 Revolução Francesa é o nome dado ao conjunto de acontecimentos que entre 5 de maio de
1789 e 9 de novembro de 1799 alteraram o quadro político e social da França. Em causa
estavam o Antigo Regime e a autoridade do clero e da nobreza. A Revolução Francesa é
considerada o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os
direitos feudais na França e proclamou os princípios universais de “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade” (Liberté, Égalité, Fraternité), expressão criada por Jean Nicolas Pache.
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sustentar que o indivíduo era portador de direitos inerentes à natureza humana, como os direitos à vida e a liberdade que passaram a prevalecer
sobre quaisquer outros, particularmente o direito divino, reclamado pelos
monarcas como justificativa do seu poder.
Inspirada na Declaração de Independência americana e nas idéias
filosóficas do Iluminismo12, a Assembléia Nacional Constituinte da França
revolucionária aprovou, em 26 de agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizando os ideais libertários e liberais
da primeira fase da Revolução Francesa em 17 artigos e um preâmbulo.
Foram proclamados as liberdades e os direitos fundamentais do homem de
forma universal, visando abarcar toda a humanidade. Ela foi reformulada
no contexto do processo revolucionário e serviu de base para a Declaração Universal dos Direitos Humanos13, promulgada pela ONU em 1948 e
consolidada como uma reposta à ruptura da tradição, provocada pelos
regimes totalitários após a vitória dos países aliados.
A Declaração aqueceu a discussão sobre os direitos humanos, pois
marcou o surgimento do homem como ator internacional, e incorporou à
ordem jurídica internacional os direitos que haviam sido conquistados no
intervalo entre a Revolução Francesa e a Segunda Guerra, particularmente
os direitos econômicos, sociais e culturais – que englobam áreas de influência direta na paz e a segurança internacionais, e que exigem atores políticos
internacionais e da comunidade mundial em suas soluções.
3
DIREITOS HUMANOS
A idéia de direitos humanos é recente na história e se solidifica de
forma lenta, conforme as necessidades sociais e a evolução das correntes
de pensamento. Utilizando-se a expressão direitos humanos como qualquer direito atribuído ao homem, pode-se encontrar o reconhecimento de
tais direitos até mesmo na Antiguidade. No entanto, naquele momento eram
12 Iluminismo foi o movimento cultural que se desenvolveu na Inglaterra, Holanda e França,
nos séculos XVII e XVIII. Nessa época, o desenvolvimento intelectual, que vinha ocorrendo desde o Renascimento, deu origem a idéias de liberdade política e econômica, defendidas
pela burguesia. Os filósofos e economistas que difundiam essas idéias julgavam-se
propagadores da luz e do conhecimento, sendo, por isso, chamados de iluministas.
13 Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas,
em 10 de dezembro de 1948.
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bastante precários em sua estrutura. Mesmo assim, esse embrião contribuiu para a disseminação da idéia de direitos humanos, pois naquela época
já existia uma preocupação com a pessoa humana em seus costumes e
instituições sociais.
Os primeiros marcos da internacionalização dos direitos humanos
foram constituídos pelos direitos humanitários14, que limitaram os poderes
do Estado de forma a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da
pessoa humana.
Outro importante marco foi a Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial. Seu objetivo principal era promover a cooperação,
a paz e a segurança internacional, condenando agressões externas contra a
integridade territorial e a independência política de seus membros e assegurando condições justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e
crianças. A Liga das Nações estabelecia, ainda, sanções econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados
que violassem suas obrigações, o que representou uma redefinição do conceito de soberania estatal absoluta.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também contribuiu
de forma importante para o processo de internacionalização dos direitos
humanos. Foi criada na mesma época da Liga das Nações com o intuito de
promover parâmetros básicos de trabalho e bem-estar social por meio da
regulamentação da condição dos trabalhadores no âmbito mundial.
Entretanto, foi após a Segunda Guerra Mundial que surgiram as mais
profundas preocupações em relação à proteção internacional dos direitos
humanos, culminando na Carta das Nações Unidas de 1945, que possibilitou a responsabilização do Estado no domínio internacional em relação a
suas falhas ou omissões na tarefa de proteção dos direitos humanos. Apesar de conter normas que determinavam a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, a carta
não definiu o conteúdo dessas expressões, que só vieram a ser determina-
14 Direitos aplicados nas hipóteses de guerra, tendo como escopo impor limites à atuação do
Estado e assegurar, dessa forma, a observância dos direitos fundamentais, de modo a
proteger, nesses casos, os militares postos fora de combate e as populações civis, regulando juridicamente o emprego da violência no âmbito internacional e limitando, com isso, a
liberdade e a autonomia dos Estados.
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO DOS DIREITOS HUMANOS
das com precisão quando do surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 194815.
3.1
Liberdade e prosperidade
Após o admirável processo de expansão e universalização da proteção internacional dos direitos humanos, que passaram a ser reconhecidos
como tema de legítimo interesse internacional, especialmente após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a capacidade produtiva da humanidade aumentou. As instituições passaram a atuar em conjunto para tirar os indivíduos da ignorância e dos infortúnios que atrofiaram
a nossa humanidade16.
15 Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela
Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo, considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do
homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o
advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade, considerando ser essencial que os
direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja
compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, considerando ser
essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos do homem
e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em
uma liberdade mais ampla, considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e
liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades, considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância
para o pleno cumprimento desse compromisso”. A Declaração dos Direitos Humanos foi
proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas “como o ideal comum a ser atingido
por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da
educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas
progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros,
quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição”.
16 O socialismo e o comunismo não apenas provocaram um desempenho econômico ruim mas
também atrofiaram o senso de moral. Pessoas comuns foram levadas a cometer atos hediondos por causa do ordenamento institucional. As aspirações originais do comunismo eram
a produção material avançada, a segurança econômica e a harmonia social entre as classes,
mas a realidade era a pobreza e o poder arbitrário. Os líderes políticos do período pósLenin fizeram a escolha da ilusão do poder e a relativa riqueza material da realidade vil de
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Durante boa parte da história humana os indivíduos viveram em estado miserável. Alguns sequer tinham consciência da dimensão de seu próprio sofrimento. A taxa de mortalidade infantil era astronômica e a expectativa de vida era curta, e em nome da melhoria da qualidade de vida foram
travadas muitas batalhas.
A humanidade conseguiu superar o estado de penúria constituindo
instituições que promoveram a liberdade, reconheceram o direito à propriedade, estabeleceram o estado de direito e incrementaram a economia e as
oportunidades de comércio com outros Estados, apesar de grande parte
da população ainda viver em condições subumanas.
De qualquer maneira, é evidente a relação entre liberdade econômica e desenvolvimento. As inovações tecnológicas alteraram o espaço geográfico em todas as escalas – local, nacional e mundial – e transformaram
as relações entre os indivíduos, tornando imprescindível entender e regular
as relações entre os diversos atores desse ambiente global, relações essas
que saíram da esfera econômica e passaram a ser discutidas nos mais diversos ambientes, com efeitos e desdobramentos que implicaram uma nova
percepção social.
Essa evolução empurrou a sociedade para mudanças que envolveram praticamente todos os agentes, com as mais diversas conseqüências
para as nações e seus cidadãos. Dessa forma, foi preciso adaptar-se de
forma contínua às mais diversas forças internas e externas, aprender a lidar
com elas e administrá-las segundo os mais diversos objetivos. Novos mecanismos precisaram ser desenvolvidos para acompanhar essa transformação, pois o homem não sairia impune desse processo de aceleração – está
no mundo da cultura e no que o homem cria; ordena a inter-relação social
por meio da tutela de seus interesses. Assim a sociedade emergiu como
sujeito das relações estabelecidas e com valores que ela própria quer preservar no caso de ter seus bens jurídicos fundamentais violados.
A sociedade, como entidade atuante, sujeito e objeto do ambiente é dinâmica e opera para atingir certos objetivos sociais. Os direitos humanos
surgiram como um estatuto de atuação e limitação da sociedade que atua
conforme seu programa, mas nos limites permitidos, na busca de seu equilíbrio.
uma ideologia fracassada. O comunismo fracassou não porque a humanidade falhou em
viver à altura do seu ideal, mas porque os seus ideais falharam em viver à altura da humanidade (YEFFETH, Glenn. A pílula vermelha: questões de ciência, filosofia e religião em
Matrix. São Paulo: Publifolha, 2003, p. 166 (referência de rodapé).
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO DOS DIREITOS HUMANOS
2.2
Cultura
Do ponto de vista antropológico, cultura é a totalidade de padrões
aprendidos e desenvolvidos pelo ser humano. Segundo a definição pioneira de Edward Burnett Tylor17, da perspectiva da etnologia (ciência relativa
ao estudo da cultura), a cultura seria “o complexo que inclui conhecimento,
crenças, arte, morais, leis, costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos
pelo homem como membro da sociedade”.
A principal característica da cultura é o chamado mecanismo
adaptativo: a capacidade de responder ao meio de acordo com mudança
de hábitos, mais rápida do que uma possível evolução biológica.
Além disso, a cultura é também um mecanismo cumulativo. As modificações trazidas por uma geração passam à geração seguinte, de modo
que a cultura transforma-se, perdendo e incorporando aspectos mais adequados à sobrevivência, reduzindo o esforço das novas gerações.
3
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A Declaração Universal introduziu a chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, reconhecendo a universalidade, indivisibilidade e interdependência desses direitos, prevendo, em um único texto,
direitos civis políticos – artigos 3º a 2118 – e direitos econômicos, sociais e
culturais – artigos 22 a 2819.
17 Edward Burnett Tylor, antropólogo britânico, foi considerado o pai do conceito moderno
de cultura. Tylor filiou-se à escola evolucionista. Sua principal obra é Primitive culture
(1874).
18 Entre os direitos civis estão inseridos o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, o
direito à propriedade, à livre iniciativa e ao comércio; o direito à livre expressão do pensamento; o direito de resistir e, no limite, de rebelar-se contra qualquer opressão, já os direitos
políticos dizem respeito a votar e ser votado, bem como associar-se a partidos políticos
para chegar ao poder. O exercício dos direitos políticos pressupõe a alternância dos governos e a livre escolha dos governantes por meio de eleições periódicas; exige, em suma, o
regime democrático. Ao passo que os direitos civis buscam assegurar as liberdades em
relação ao Estado, os direitos políticos supõem o gozo da liberdade no Estado.
19 Os direitos econômicos podem ser englobados no direito e no trabalho, que estabelece a
liberdade de escolha do emprego; a justa remuneração para homens e mulheres em condições igualitárias; a liberdade de organização e a ação sindical; a proteção contra o desemprego; a segurança e a higiene no trabalho; o descanso semanal; as férias remuneradas; a
oportunidade de promoção na carreira profissional e o direito de greve. Já os direitos
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A importância da Declaração Universal, bem como a repercussão
moral que teve sobre os Estados é inquestionável, mas alguns negaram o
reconhecimento de sua força vinculante por ela não ter sido elaborada na
forma de um tratado internacional; outros reconheceram que ela apresentava força jurídica obrigatória por integrar o direito costumeiro internacional e os princípios gerais do direito.
Para a ONU, se a Declaração Universal dos Direitos Humanos não
era originalmente compulsória, hoje tem força de jus cogens20 e além dos
direitos descritos começaram a ser reclamados os chamados direitos difusos
ou transindividuais21.
Os direitos difusos, denominados direitos de terceira geração, ultrapassam a visão individualista, superando a dicotomia entre o público e o
privado. São aqueles indivisíveis, cujos titulares são pessoas indeterminadas.
Como exemplo, pode-se citar o direito à paz pública, à segurança pública
e ao meio ambiente. Abrange um número indeterminado de pessoas unidas
pelo mesmo fato.
No aspecto subjetivo, os direitos difusos são classificados como
transindividuais – aqueles que não têm titular individual, sendo que a ligação entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância de fato.
Estão posicionados entre o público e o privado, na categoria dos interesses
econômicos indicam o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si e para sua
família, o que inclui alimentação, vestuário, moradia e proteção especial para as parturientes, crianças e adolescentes; o direito à educação, que assegura a todos o acesso ao ensino
fundamental, obrigatório e gratuito; o direito à saúde física e mental, que implica a criação
de condições que possibilitem a todos a assistência médica em caso de enfermidade; e o
direito à previdência social.
20 Direito “que obriga”, que se impõe objetivamente aos Estados por integrar o direito costumeiro internacional.
21 A reivindicação dos direitos denominados difusos ou transindividuais teve origem nos
movimentos políticos e sociais das décadas de 1960 e 1970. Entre eles, o direito a um meio
saudável foi, até o momento, o que mais se firmou no âmbito das relações internacionais,
como resultado do temor, mais do que justificável, da degradação das condições de vida do
planeta. Esse direito pode ser enquadrado na categoria mais geral, e por isso mais indefinida, do direito à qualidade de vida, que engloba as mais diversas reivindicações. Ainda entre
os difusos podem ser incluídos os direitos ao desenvolvimento, à paz internacional e dos
consumidores. A satisfação desses direitos pressupõe uma ativa participação de instituições estatais, particularmente dos tribunais e ministérios públicos. Alguns autores colocam
entre esses novos direitos também o reconhecimento da “diferença da singularidade e da
subjetividade”. Esse último, entretanto, seria mais bem compreendido se situado no processo evolutivo dos chamados direitos culturais.
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sociais em que a sociedade de massa passa a influenciar na gestão estatal.
A soberania estatal é limitada pela soberania social. A sociedade de massa
passa a interagir nas decisões para a definição dos rumos sociais.
4
DIREITOS CULTURAIS
Embora indivisíveis em seu exercício, hoje, no plano internacional,
os direitos humanos podem ser classificados na ordem cronológica em que
os diversos direitos foram sendo reconhecidos ao longo da história moderna. Importante frisar que essa classificação é para fins estritamente analíticos.
O primeiro grupo é aquele informado pelas aspirações à liberdade e
conhecido em conjunto como direitos civis e políticos. O segundo22 grupo
é o dos direitos econômicos, sociais e culturais – ou simplesmente direitos
sociais –, os quais decorrem de aspirações igualitárias historicamente vinculadas a movimentos socialistas e comunistas do século XIX e início do
século XX. Tem por objetivo garantir aos indivíduos condições materiais
consideradas por seus defensores como imprescindíveis para o pleno gozo
dos direitos de primeira geração e, por isso, tendem a exigir do Estado
intervenções na ordem social segundo critérios de justiça distributiva. Finalmente, os direitos do terceiro grupo são aqueles inspirados no ideal de
fraternidade ou solidariedade, interligando e reformulando os valores defendidos pelas gerações anteriores. Por essa razão, são chamados direitos
difusos ou transindividuais.
Os direitos culturais, parte integrante dos direitos humanos, estão
indicados no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e
nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e garantem que todas as pessoas podem exprimir,
criar e difundir seus trabalhos no idioma de sua preferência e, em particular,
na língua materna; todas as pessoas têm o direito à educação e a à formação de qualidade que respeitem plenamente a sua identidade cultural; todas
as pessoas devem poder participar da vida cultural de sua escolha e exercer suas próprias práticas culturais, desfrutar o progresso científico e suas
aplicações, beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais
22 Esse segundo grupo, chamado de segunda geração dos direitos fundamentais, a dos direitos
econômico-sociais, ou simplesmente direitos “sociais”, foi pela primeira vez editada, de
modo significativo, na Constituição alemã de 11 de agosto de 1919, a famosa Constituição
de Weimar.
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decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que sejam autoras.
No âmbito interamericano, os direitos culturais estão indicados no
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
conhecido como Protocolo de São Salvador (1988).
O artigo 13 assegura o direito à educação orientado para o pleno
desenvolvimento da pessoa humana e do sentido de sua dignidade visando
ao fortalecimento e ao respeito pelos direitos humanos, ao pluralismo ideológico, às liberdades fundamentais, à justiça e à paz. O artigo 14 estabelece o direito aos benefícios da cultura, reconhecendo aqueles que decorrem da promoção e desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais em assuntos científicos, artísticos e culturais e, na mesma linha,
comprometendo-se a propiciar maior cooperação internacional. No processo de implementação mundial dos direitos culturais foi adotada pela
Unesco23, em novembro de 2001, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural24. Ao mesmo tempo em que afirma os direitos das pessoas
pertencentes às minorias à livre expressão cultural, observa que ninguém
pode invocar a diversidade cultural para infringir os direitos humanos nem
limitar o seu exercício.
No Brasil, a Constituição de 1988, em seu artigo 215, garante a
todos o pleno exercício dos direitos culturais. Ao definir patrimônio cultural
brasileiro, de forma indireta aponta como direitos culturais as formas de
expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísti23 A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) nasceu
em 16 de novembro de 1945. O mais importante para esse organismo das Nações Unidas
não é construir escolas nos países subdesenvolvidos ou restaurar sítios do patrimônio
mundial. O objetivo proposto pela organização é amplo e ambicioso: construir a paz na
mente dos homens mediante a educação, a cultura, as ciências naturais e sociais e a comunicação.
Todas as pesquisas e avaliações realizadas pela Unesco tratam de temáticas singulares, mas
se encaixam em linhas que se articulam. Baseando-se na combinação de métodos qualitativos e quantitativos, sublinham a percepção dos sujeitos, o lugar da educação e da cultura,
o enfrentamento das violências, a multiplicidade de direitos e a construção de uma cultura
de paz.
24 Reafirmando a sua adesão à plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois pactos internacionais de 1966, um
relativo aos direitos civis e políticos, o outro, aos direitos econômicos, sociais e culturais,
foi proclamada a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural.
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cas e tecnológicas. O livre exercício dos cultos religiosos, a livre expressão
da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, e os direitos
do autor também estão expressamente assegurados na Constituição, no rol
dos direitos e garantias fundamentais no artigo 5º. A educação figura como
direito social disposta no artigo 6º e também como direito cultural nos artigos 205 a 214.
4.1
Antecedentes
Após a Revolução Francesa nasceram as primeiras leis de proteção
ao patrimônio histórico e artístico, os primeiros museus públicos, as bibliotecas, os teatros e arquivos nacionais, além dos conservatórios de artes e
ofícios.
O avanço do conhecimento, a influência dos enciclopedistas franceses e o aumento da democratização da sociedade provocado por esse
movimento fizeram surgir o museu, conceito de coleção como instituição
pública. Assim, o primeiro verdadeiro museu público foi criado, na França,
pelo governo revolucionário (Robespierre), em 1793: o Musée du Louvre
(Museu do Louvre), com coleções acessíveis a todos, com finalidade recreativa e cultural.
No século XIX surgiram muitos dos maiores e mais importantes
museus em todo o mundo. Coleções particulares se tornaram públicas, por
exemplo, o Museu do Prado (Espanha) e o Museu Mauritshuis (Holanda).
Surgiu o primeiro museu histórico, disposto cronologicamente, na Dinamarca (1830). Luís Filipe fundou na França o Museu de Versalhes (1833).
Começaram a ser organizados museus do folclore na Dinamarca (1807),
na Noruega (1828) e na Finlândia (1894).
O desenvolvimento científico, com a teoria evolucionista de Darwin
(1809-1882), fez multiplicar os museus de história natural, como o American
Museum of Natural History (Museu Americano de História Natural). Nos
Estados Unidos, em 1870, foi fundado o Metropolitan Museum of Art
(Museu Metropolitano de Arte), em Nova York.
A partir do século XX foram abertos museus vinculados a instituições e organizações: dos transportes e comunicações, da aviação, dos
hospitais, dos teatros etc. Ao lado desses, surgiram museus destinados a
documentar movimentos políticos ou ideológicos (Museu da Revolução,
em Moscou, 1929; Museu da Paz, em Haia, 1921; Museu do Fascismo,
em Roma, 1930).
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No Brasil, os museus, em sua grande maioria, foram fundados no
século XX, com exceção do Museu do Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico Pernambucano (Pernambuco), que data de 1862, e do Museu
de Mineralogia e Geologia da Escola Nacional de Minas e Metalurgia (Minas Gerais), de 1876.
Destaca-se, no Brasil, pela variedade e qualidade do seu acervo, o
Museu de Arte de São Paulo (Masp), fundado em 1947.
À medida que iam se sucedendo guerras cada vez mais destruidoras,
encontros internacionais aprovavam documentos, como a Convenção de
Haia (1899) e o Pacto de Washington (1935), que estabeleciam princípios
relativos à proteção do patrimônio cultural em caso de conflito armado.
Após a Segunda Guerra Mundial, quando ocorreram verdadeiros saques
ao patrimônio cultural dos países ocupados, proclamou-se a Convenção
sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, documento pelo qual os Estados-Membros da ONU comprometeram-se a respeitar os bens culturais situados nos territórios dos países adversários, assim como proteger seu próprio patrimônio em caso de guerra.
O primeiro direito cultural internacionalmente estabelecido foi o direito autoral por meio da Convenção de Berna para a Proteção das Obras
Literárias e Artísticas (1886). Após o período da industrialização, no século XIX, a evolução das tecnologias de informação fomentou o surgimento
de mecanismos mais modernos de imprensa, fotografia, cinema, gravações
sonoras e rádio que facilitaram a produção, reprodução e distribuição dos
produtos culturais e o surgimento da indústria cultural. Logo surgiram regulamentações internacionais do direito à propriedade industrial – que incide
sobre marcas, patentes, inventos –, que desaguaram em ramos do direito à
propriedade intelectual.
O direito autoral foi internacionalmente reforçado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 27 e, posteriormente, na
Conferência Intergovernamental sobre os Direitos do Autor (1952),
convocada pela Unesco, da qual resultou a Convenção Universal sobre o
Direito de Autor. Em 1967, foi criada a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), transformada em órgão especializado das Nações Unidas em 1974.
Com isso, os direitos autorais tomaram mais força e passaram a ser
encarados como um meio de garantir e proteger fluxos de lucro, sendo
expandidos de acordo com essa visão. Direitos já existentes foram aplica-
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dos a novas mídias e com isso surgiram mais definições em relação às
obras derivadas. Além disso, foram concebidos novos tipos de direitos,
como os direitos morais, que serviram principalmente para tranqüilizar autores, garantindo-lhes que suas obras seriam protegidas de acordo com
seus interesses, em todos os mercados alcançados.
Os avanços nas tecnologias de informação e especialmente da Internet
provocaram mudanças profundas no direito de propriedade intelectual, assim
como a criação dos tipos móveis por Gutemberg fez surgir a indústria do
livro, e o Estatuto da Rainha Ana deu ao autor de livros o direito sobre seu
trabalho de criação.
O segundo direito cultural estabelecido no plano internacional foi o
direito à livre participação na vida cultural. Esse princípio foi detalhado
pelo artigo 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966) pelo qual as partes comprometeram-se a “respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e a atividade criadora” e adotar
medidas “necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da
cultura”.
O movimento ecológico, que ganhou ímpeto a partir da década de
1970, também contribuiu para a elevação desse direito ao plano mundial.
Em 1972, a Unesco aprovou a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural destinada “identificar, proteger, conservar, reabilitar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural situado
em seu território”.
A Convenção do Patrimônio e a Declaração do México sobre as
Políticas Culturais (1982) definiram como patrimônio cultural de um povo
as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, as criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão
sentido à vida, incluindo a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, paisagísticos, arqueológicos e etnológicos, além das instituições dedicadas à proteção desse patrimônio, como arquivos, bibliotecas e museus. Os mesmos documentos reafirmaram o direito dos povos de
proteger o seu patrimônio cultural, vinculando-o à defesa da soberania e da
independência nacionais. A Declaração do México recomendou, inclusive,
que fossem restituídas aos países de origem as obras subtraídas deles durante a colonização, os conflitos armados e as ocupações estrangeiras.
Aos membros dos países onde existem minorias étnicas, religiosas
ou lingüísticas, o direito de ter “sua própria vida cultural, de professar e
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praticar sua própria religião e usar sua própria língua” foi direcionado, em
1992, pela ONU, na Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Lingüísticas, que formulou a obrigação dos Estados de proteger a existência e a identidade
nacional.
Ainda com relação ao direito à identidade, cabe destacar a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. Considerando que a cultura popular deve ser protegida pelo e para o grupo cuja
identidade expressa, e reconhecendo que as tradições evoluem e se modificam, esse documento insiste, basicamente, na recomendação para que os
Estados-Membros apóiem a investigação e o registro dessas manifestações a fim de assegurar o conhecimento, o acesso e a difusão das tradições
populares.
No ano de 1966, os Estados-Membros da Unesco, preocupados
com a paz mundial, proclamaram a Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional e instituíram em seu artigo 5º um novo direito
cultural: “a Cooperação Cultural é um direito e um dever de todos os povos e de todas as nações, que devem compartilhar o seu saber e os seus
conhecimentos”. A Declaração do México aprofundou esses princípios ao
defender ser indispensável reequilibrar o intercâmbio internacional a fim de
que as culturas menos conhecidas “sejam mais amplamente difundidas em
todos os países”. Enfatizou, ainda, a importância do intercâmbio cultural
nos esforços de instauração de uma nova ordem econômica mundial.
Com a ocorrência de lutas políticas e sociais, cujo marco foi o ano
de 1968, os direitos culturais evoluíram bastante. O movimento da
contracultura, que englobou parcialmente o movimento feminista e
ambientalista, foi além da reivindicação de direitos específicos e afirmou o
direito de ser pessoa, e pessoa concreta, singular e integral, parte do mundo objetivo das relações sociais, mas portadora, também de vida interior.
Colocou em xeque todo o “sistema”. Questionou as tradicionais relações
homem/mulher, a família patriarcal e nuclear, o consumismo, a burocratização
da vida, o trabalho alienado, a desumanização das cidades, a guerra nuclear, a medicina alopática, a alimentação com base na carne animal, a moral
católica e a destruição da natureza. Críticas que resultaram em experiências concretas de vida, como as comunidades rurais e urbanas, a prática do
artesanato e da agricultura orgânica, os tratamentos médicos ditos alternativos, a busca de novas crenças religiosas e expressões artísticas. Pode-se
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até mesmo dizer que o movimento da contracultura não se esgotou, apenas
fragmentou-se em diversos outros.
No conjunto, a proposta da contracultura acabou por construir uma
comunidade humana supranacional e transindividual, fundada na solidariedade, no amor e no reatamento do vínculo primordial entre a natureza e a
cultura. Em suma, recolocou a questão da vida, agora em uma dimensão
mais ampla, não só individual, mas coletiva, não apenas no plano da sociedade humana, mas do universo.
Embora longe de se chegar às metas propostas pela contracultura,
particularmente a paz e a igualdade, é incontestável que houve avanços em
alguns domínios na questão ambiental, na liberdade de opção sexual e nos
direitos das mulheres, dos negros, dos índios e de outras minorias
segregadas. Mesmo tendo havido uma considerável evolução, os direitos
humanos estão sendo construídos aos poucos, com a superação de vários
de obstáculos.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje é importante discutir a superação dos obstáculos para que sejam transformados em prática concreta. É preciso ressaltar que entre a
doutrina e a pratica existe uma distância muito grande. Isso se apresenta
como uma das justificativas da inexistência de uma jurisdição internacional
dotada de autoridade suficiente para exigir de indivíduos, grupos e Estados
nacionais o cumprimento dos direitos humanos; e para puni-los, caso sejam violados. Nessas circunstâncias, a garantia do exercício desses direitos
depende de sua inclusão nas constituições e leis nacionais, das pressões
que partem de uns Estados sobre outros ou de movimentos internacionais
de opinião pública e fortalecimento da cidadania sinalizando para a construção de uma democracia cosmopolita fundada na divisão dos poderes
entre instituições políticas e jurídicas.
Não é, evidentemente, uma tarefa fácil, mesmo porque existe uma
constante tensão entre os postulados da democracia e as práticas e os
efeitos concretos do sistema capitalista mundial. Sabe-se que não há como
separar as questões dos diretos humanos dos grandes problemas da atualidade: a pobreza e a discórdia.
Os direitos culturais são ramificações dos direitos humanos, e o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural estão ligados à busca
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da solidariedade entre os povos, à consciência da unidade do gênero humano e ao desenvolvimento dos intercâmbios culturais.
Os processos de globalização, caracterizados pela rápida evolução
das tecnologias da informação e da comunicação constituem hoje desafios
para a preservação e a promoção dessa diversidade, criando condicionamentos e ameaçando o diálogo permanente entre culturas, civilizações ou
grupos sociais.
É fundamental haver o respeito, a valorização e o convívio harmonioso das diferentes identidades culturais existentes dentro dos territórios
nacionais. O conceito de diversidade cultural nos permite perceber que as
identidades culturais nacionais não são um conjunto único. Ao contrário,
pode-se e deve-se reconhecer e valorizar as diferenças culturais como fator para a coexistência harmoniosa entre os homens.
Como o respeito a eventuais diferenças entre os indivíduos e grupos
humanos é condição da cidadania, deve-se tratar com atenção e eficácia
da promoção da convivência harmoniosa, dos diálogos e dos intercâmbios
entre os povos para a superação da violência e da intolerância entre indivíduos e grupos sociais em nosso planeta.
6
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO DOS DIREITOS HUMANOS
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DIREITOS CULTURAIS: UM BRAÇO DOS DIREITOS HUMANOS
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HERMENÊUTICA DO ARTIGO 122 DA LEI DE
FALÊNCIAS E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
JULIANA FERREIRA MORAIS
Sumário
1. Introdução. 2. A compensação no direito civil. 3. A
compensação no direito falimentar pátrio. 4. A igualdade dos credores e as preferências dos créditos na falência. 5. Pagamento dos credores. 6. O artigo 122 da Lei
nº 11.101/2005. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
Resumo
O objetivo deste trabalho é encontrar melhor interpretação para o
art. 122 da Lei nº 11.101/2005, tornando-o compatível com o espírito da
Lei de Falências e a legislação tributária. Referido dispositivo determina
que a compensação se opere “com preferência sobre todos os demais
credores”, o que pode levar à compensação de um crédito sem a observância do sistema de preferência de pagamento dos créditos na falência,
contrariando o princípio da par condictio creditorum, e disposição do
Código Tributário Nacional (CTN), que disciplina a preferência do crédito
fiscal na falência.
Abstract
The objective of this paper was to find the best interpretation of the
article 122 of the Law nº 11,101/2005, in order to make it compatible with
the Bankruptcy Law and the Tax Legislation spirit. This legal device determines that the compensation should operate “with preference over all the
other creditors”, which could take to a compensation of a credit without the
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 409-420
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JULIANA FERREIRA MORAIS
observance of the preference system of credits’ payments in bankruptcy,
going against the principle of par condictio creditorum, and also the
disposition of the sole paragraph of the article 186 of the National Tax
Code, which disciplines the fiscal credit’s preference in a bankruptcy.
1
INTRODUÇÃO
O Decreto-Lei nº 7.661/1945 tratava da compensação de créditos
na falência em seu art. 46. Ao seguir a disciplina do referido Decreto-Lei, o
art. 122 da atual Lei de Falências – Lei nº 11.101/2005 – continuou admitindo a compensação, no entanto, trouxe inovações que merecem maior
reflexão. Agora a compensação opera-se “com preferência sobre todos os
demais credores”.
2
A COMPENSAÇÃO NO DIREITO CIVIL
Antes de estudar a compensação de créditos na falência, é necessário analisar suas características e aplicação no Direito Civil.
2.1
Fundamentos
A compensação tem existência justificada por duas razões: economia de procedimentos e segurança do crédito.
Economia de procedimentos porque se duas pessoas são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, não faz sentido que se exija de
uma o pagamento integral do que deve para só depois receber da outra seu
crédito, pois haveria gastos desnecessários. E segurança do crédito porque, após o pagamento de um credor-devedor o outro pode tornar-se
insolvente acarretando situação prejudicial ao que cumpriu sua obrigação.
Nos dias atuais, esse instituto ganhou importância econômica e é
muito utilizado entre os estabelecimentos de crédito.
2.2
Conceito
Para Serpa Lopes, a “compensação é a extinção de duas obrigações, na proporção em que se compensarem, desde que inerentes a duas
pessoas, credora e devedora, ao mesmo tempo, uma da outra” (2000, p.
251).
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2.3
Espécies
Há três espécies de compensação: a) Compensação legal: aquela
que se exerce em virtude da lei e só não ocorrerá nos casos determinados
em lei, por acordo ou por renúncia a esse direito; b) Compensação convencional ou facultativa: estipulada por acordo entre as partes; e c) Compensação judicial: é a oposta pelo réu à ação do autor e tem natureza
reconvencional (LOPES, 2000, p. 266).
Entre as espécies, a que mais interessa para o desenvolvimento do
presente estudo é a compensação legal, portanto, dela se passará a tratar.
2.3.1 Compensação legal
São requisitos dessa espécie de compensação: 1) a existência de
duas dívidas e a reciprocidade entre elas; 2) a fungibilidade; e 3) a liquidez
e exigibilidade das duas dívidas recíprocas.
A compensação se realiza entre créditos e débitos de que são titulares as
mesmas pessoas, pois há um encontro de direitos opostos, caracterizados por
dois vínculos jurídicos entre as mesmas partes (ROSENVALD, 2004, p. 199).
Ela se limita aos respectivos débitos. Para que ela ocorra é necessário que os
bens sejam fungíveis entre si (LOPES, 2000, p. 256-257; PEREIRA, 2004, p.
257). No tocante ao terceiro requisito, considera-se líquida a dívida certa quanto
à sua existência e determinada quanto ao seu objeto. Será exigível aquela
dívida que independer de termo ou condição para seu pagamento.
É importante ressaltar que, ainda que presentes os requisitos, a compensação pode não ocorrer em virtude de obrigação por terceiro; cessão
de crédito; renúncia ao direito de compensar; por disposição legal; em
caso de dívidas fiscais e parafiscais; quando houver prejuízo a terceiros; e
quando as dívidas forem pagáveis em locais diferentes:
a) Obrigação por terceiro: dispõe o art. 376 do Código Civil de
2002 que “obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compensar essa dívida com a que o credor dele lhe dever”.
b) Cessão de crédito: é fundamental que haja prévia notificação do
devedor da transferência do crédito ao qual está vinculado para
que ele possa se manifestar, pois, se notificado, ele não se manifestar, entende-se que renunciou ao direito à compensação que,
antes da cessão, poderia opor ao seu devedor. É o que dispõe o
art. 377 do Código Civil de 2002.
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c) Renúncia ao direito de compensar: nessa hipótese, a compensação não ocorrerá, ainda que sejam verificados seus requisitos
legais.
d) Por disposição legal: em atenção à natureza do crédito ou à
qualidade do credor, a lei exclui a possibilidade de compensação
quando, nos termos do art. 373 do Código Civil de 2002, uma
das dívidas provier de esbulho, furto ou roubo; se originar de
comodato, depósito ou alimentos; ou se for de coisa não suscetível de penhora.
e) Dívidas fiscais e parafiscais: o legislador tentou que o Código
Civil de 2002 regulasse a compensação de dívidas fiscais e
parafiscais, porém o art. 374 foi revogado pela Lei nº 10.677/03.
A disciplina do tema fica a cargo das normas tributárias. Explica
Nelson Nery Júnior (2004, 198-214), no entanto, que a compensação em matéria tributária, apesar da revogação do art. 374,
continua regulada pelo Código Civil de 2002, em razão da
inconstitucionalidade da Lei nº 10.677/03. Justifica o autor sua
tese explicando que a MP 104/03, que foi convertida na citada
lei, não poderia ter sido editada, pois, na mesma sessão legislativa
já havia sido editada a MP 75/02 que tratou da mesma questão e
foi rejeitada pelo Congresso Nacional, em virtude disso, não teria
ocorrido legalmente a revogação do art. 374 do Código Civil de
2002.
f) Prejuízo a terceiros: não é admissível a compensação quando
prejudicar terceiros, conforme disposição do art. 380 do Código
Civil de 2002.
g) Dívidas pagáveis em locais diferentes: nessa situação, não há
impossibilidade absoluta de se realizar a compensação, mas apenas relativa, uma vez que o art. 378 do Código Civil de 2002
dispõe que “quando as duas dívidas não são pagáveis no mesmo
lugar, não se podem compensar sem dedução das despesas necessárias à operação”.
2.3.2 Efeitos
Ensina Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 268/296) que, embora
a compensação pertença às modalidades de extinção das obrigações sem
pagamento, ela gera os efeitos de um pagamento: os créditos são total ou
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parcialmente extintos na medida em que tiverem valores equivalentes ou
diversos.
3
A COMPENSAÇÃO NO DIREITO FALIMENTAR PÁTRIO
O Decreto-Lei nº 7.661/1945 dispunha sobre a compensação em
seu art. 46. A atual Lei de Falências – Lei nº 11.101/2005 – dispõe sobre
a compensação em seu art. 122.
É possível a compensação das dívidas do falido que já se encontram
vencidas – e que não foram resgatadas na data convencionada para o pagamento – e também das dívidas que tiveram o vencimento antecipado em
decorrência da sentença falimentar. Nem todos os créditos, porém, são
compensáveis na falência. Essa restrição legal é importante, pois tem por
escopo evitar a prática de manobras fraudulentas usando-se o mecanismo
da compensação.
Apesar da fundamental importância, não se propõe o presente trabalho a delinear a possibilidade ou impossibilidade dos créditos se compensarem na falência em razão do momento em que passaram a ser exigíveis,
ou em razão das hipóteses legais1. O objetivo neste momento é encontrar a
melhor hermenêutica para o art. 122 da Lei nº 11.101/05.
4
A IGUALDADE DOS CREDORES E AS PREFERÊNCIAS
DOS CRÉDITOS NA FALÊNCIA
A garantia dos credores é o patrimônio do devedor, ou seja, em
caso de inadimplência, o credor pode executar o patrimônio do devedor
para receber seu crédito. É possível, no entanto, que o devedor tenha mais
de um credor e seu patrimônio não seja suficiente para o pagamento deles.
Nesse caso, a regra da execução individual não soluciona o problema,
sendo necessário o concurso de credores. O uso da expressão concurso
de credores é reservado apenas para o caso de devedores não-empresários. Para o caso de devedores empresários, usa-se a expressão falência,
apesar de ser a falência também um concurso de credores.
1
A essa “faculdade de cabimento da compensação”, João Baptista Villela (1963, p. 4) dá o
nome de “compensabilidade”.
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4.1
Par condictio creditorum
A falência, como conceitua Waldevino Costa (1994, p. 277-286), é
“a execução coletiva do devedor comerciante que se acha insolvente, promovida por todos os credores comuns, através de procedimento judicial
único”. É possível dizer que é sua característica o interesse coletivo. “No
processo falimentar, os credores dele são partes” (REQUIÃO, 1998, p.
144).
O direito de todos os credores do devedor em se valer da falência,
habilitando seus créditos e acompanhando o desenvolvimento do processo
na tentativa de receber o que têm direito, chama-se par condictio
creditorum. Não se pode confundir, contudo, tratamento paritário com o
direito de todos os credores receberem parcelas iguais de valores no pagamento do seu crédito – o que não existe na falência.
A Lei de Falências, ensina Rubens Sant’anna (1985, p. 110), não
colocou os créditos em um mesmo patamar. Ela estabeleceu “uma ordem
de prioridade ou preferência no quadro geral de credores. Mesmo possuindo a lei o objetivo de colocar todos os credores em posição de igualdade, essa igualdade, na prática, é a dos credores dentro da respectiva classe”.
4.2
Preferências creditícias – privilégios e garantias
Na falência, é possível que um credor receba a integralidade de seu
crédito e outro não, em razão daquele estar previamente protegido por lei
ou por uma garantia estabelecida anteriormente e esse não.
A primeira garantia do credor é o poder geral que dispõe de vinculação
ao patrimônio do devedor (LOPES, 2000, p. 405). Além dessa primeira
garantia, há outras de caráter especial criadas por lei ou por convenção
para assegurar o cumprimento da obrigação de um modo particular, influenciando na ordem de preferência do pagamento do crédito em caso de
concurso de credores. João Baptista Villela (1963, p. 42) explica que “todas as formas de garantia, sejam reais, sejam pessoais, encontram-se neste
substrato comum que é a preferência”.
A preferência de recebimento dos créditos na falência é alicerçada
em duas bases: o privilégio e o direito real de garantia.
O privilégio decorre de lei, já o direito real de garantia é fruto da
diligência do credor que procura dar cobertura ao seu crédito. Os credores privilegiados, para Sérgio Abdalla Semião (2002, p. 59-77),
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São aqueles que, por força da condição jurídica de seus créditos,
têm o direito de preferência no pagamento aos demais credores. Por
aí se vê que todo privilégio deve ser estabelecido por força de lei e,
outrossim, conclui-se que o privilégio não é da pessoa, mas de seu
crédito.
Darcy Bessone (1996, p. 313) leciona que o direito real de garantia
“é direito acessório, no sentido de que aparece ligado a outro direito, este
principal. A garantia é dada a um crédito. O crédito constitui o direito
principal”. Assim, se o crédito se extinguir ou sofrer alterações, o mesmo
ocorrerá com o direito real que lhe é acessório. Também não será possível
a transferência do direito real de garantia se não houver simultânea transferência do crédito.
O credor com garantia real tem direito de preferência no recebimento de seu crédito – segundo ordem de pagamento disciplinada em lei –
quando concorrer com outros credores sem as mesmas garantias. Os direitos reais de garantia são a hipoteca, o penhor, a anticrese e a alienação
fiduciária em garantia.
5
PAGAMENTO DOS CREDORES
A doutrina classifica os credores segundo a natureza dos respectivos
créditos. E é essa natureza do crédito que definirá a ordem de pagamento,
uma vez que, como explica Francisco Satiro de Souza Júnior, comentando
o art. 83 da Lei nº 11.101/05 na obra coordenada por ele e por Antônio
Sérgio A. de Moraes Pitombo:
O tratamento privilegiado de certos credores, obviamente, não pode
basear-se em aspectos pessoais, mas sim em critérios abstratos ligados à natureza dos créditos, sob pena de expressa violação da par
condictio creditorum. (...)
A diferenciação de tratamento através dos privilégios tem sua razão
de ser na necessidade de se prover o equilíbrio dos interesses em
jogo no procedimento concursal. Com efeito, os credores sujeitos
aos efeitos da falência e da recuperação não representam um grupo
homogêneo. São diversas as peculiaridades de seus interesses, suas
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carências e seu grau de ingerência na constituição do crédito. Dessa
forma, sua não satisfação pode acarretar conseqüências proporcional e subjetivamente diversas, com diferentes reflexos, inclusive sociais (SOUZA JÚNIOR; PITOMBO, 2005, p. 355).
A legislação falimentar distingue os credores, segundo a natureza de
seus créditos, em espécies e, dentro das espécies, há divisões em classes e
subclasses. Os pagamentos são feitos na estrita observância dessa classificação.
O pagamento dos credores na falência é realizado pelo administrador judicial. Cada classe de credores deve ser paga segundo a ordem de
preferências do crédito na falência. Após a integral satisfação do valor devido aos credores de uma classe é que o administrador judicial, caso sobrem recursos na massa, realiza o pagamento dos credores da próxima
classe.
6
O ARTIGO 122 DA LEI Nº 11.101/2005
O art. 122 da Lei de Falências carece de melhor interpretação de
modo a torná-lo compatível com o espírito da falência – que se preocupa
com o tratamento paritário dos credores e estabelece uma ordem de pagamento dos créditos segundo sua natureza – e, ainda, com as disposições
do art. 186 do CTN – que estabelece as preferências do crédito tributário.
Para tanto, é necessário responder às seguintes perguntas:
a) É a compensação forma de criação ou de conversão em crédito
extraconcursal?
b) É a compensação forma de preferência creditícia? Em caso positivo, outra pergunta deverá ser feita: É a compensação direito real
de garantia ou privilégio?
6.1
É a compensação forma de criação ou de conversão em
crédito extraconcursal?
Os créditos extraconcursais estão dispostos na atual Lei Falimentar,
em seu art. 84, e no CTN, no art. 188. Caso a compensação fosse forma
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de criação ou de conversão em crédito extraconcursal, ela poderia operarse “com preferência sobre todos os demais credores”, como dispõe o art.
122 da Lei nº 11.101/2005. No entanto, ela não origina um crédito
extraconcursal por duas razões.
Em primeiro lugar, porque a enumeração dos créditos dessa natureza é taxativa, ou seja, só será um crédito extraconcursal aquele que a lei
expressamente previr como tal, assim, não há possibilidade de, por interpretação extensiva, incluir-se a compensação no rol de créditos em que ela
não se encontra.
Em segundo lugar, porque a compensação não é restituição de bem
que não poderia compor o patrimônio do falido, ela advém de uma relação
de crédito/débito entre o falido e um terceiro que com ele contratou.
Assim não se pode justificar a possibilidade de um credor do falido
compensar seu crédito antes de qualquer outro credor sob a alegação de
ser a compensação um crédito extraconcursal.
6.2
É a compensação forma de preferência creditícia?
A preferência de recebimento dos créditos na falência é alicerçada,
como já se disse, em duas bases: privilégio e direito real de garantia.
6.2.1 É a compensação direito real de garantia?
A compensação não pode ser considerada direito real de garantia,
pois ela não é direito acessório que segue o crédito, direito principal. Ela é
modalidade de extinção da obrigação sem pagamento, ou seja, consiste na
extinção de obrigações recíprocas de duas pessoas, na proporção em que
se compensarem.
6.2.2 É a compensação um privilégio?
Privilégios dos credores são prerrogativas de que eles dispõem para
facilitar o recebimento do seu crédito, em detrimento de outros.
Nesse sentido, pode-se dizer que a compensação é um privilégio,
pois o credor-devedor do falido tem possibilidade de ter facilitado o recebimento do seu crédito em razão da sua compensabilidade.
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Falou-se que o privilégio decorre de lei e não da vontade das partes.
Também assim, pode-se afirmar que a compensação é uma espécie de
privilégio, pois há determinação legal no sentido de ser possível a compensação dos créditos na falência: o próprio art. 122 da atual Lei Falimentar.
Portanto, a compensação é um privilégio.
Respondidas as perguntas, resta agora analisar as características da
compensação e do espírito da Lei de Falências e do CTN.
6.3
Hermenêutica do artigo 122 da Lei nº 11.101/2005
A compensação é uma espécie de preferência creditícia, o privilégio,
mas, na falência, há créditos que devem ser saldados antes dos privilegiados. Além do mais, há também uma ordem de pagamento entre os próprios
créditos privilegiados.
Caso a compensação se operasse pura e simplesmente “com preferência sobre todos os demais credores” do devedor, haveria rompimento
da par condictio creditorum e, ainda, desrespeito à Constituição, que
estabelece as matérias objeto de lei complementar.
Como visto, “não se admite a compensação em prejuízo de direito
de terceiro”, nos termos do art. 380 do Código Civil de 2002. Na falência,
há uma ordem de pagamentos que deve ser respeitada, com créditos que
devem ser saldados em preferência aos demais; e, ainda, há lei complementar regulando a preferência do crédito tributário, não sendo possível
que lei ordinária disponha dessa matéria de forma distinta.
Como, então, interpretar o art. 122 da Lei nº 11.101/05 em sintonia
com o espírito da Lei de Falências e com as disposições do Código Tributário Nacional?
Para que haja harmonia entre as normas, deve-se entender que o
citado dispositivo legal cria uma subclasse privilegiada dentro de cada classe de credores da falência: a dos créditos compensáveis.
Assim, primeiramente, todos os créditos – incluindo os compensáveis
– são classificados segundo sua natureza, de acordo com a ordem
estabelecida pela Lei de Falências, e separados em classes e subclasses.
Após a classificação, são verificados os créditos compensáveis que,
por serem privilegiados, devem compensar-se “com preferência sobre todos os demais credores” da mesma classe em que se encontram.
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Entendida a compensação como um privilégio que deve ser exercido
dentro de cada classe, não haveria prejuízo aos demais credores de outras
classes, o princípio da par condictio creditorum seria respeitado e, ainda,
a Lei de Falências não disporia de modo diverso do CTN.
Portanto, pode-se afirmar que o art. 122 da Lei de Falências cria
uma subclasse privilegiada dentro de cada classe de credores do falido: a
classe dos créditos compensáveis e, apenas dentro de cada classe é possível falar-se em compensação com “preferência sobre todos os demais
credores”.
7
CONCLUSÃO
Feitas essas considerações, o art. 122 da Lei de Falências, ao estabelecer que a compensação ocorra “com preferência sobre todos os demais credores” não está determinando que haja desrespeito à ordem de
pagamentos estabelecida pela mesma lei e também pelo CTN, pois há créditos que devem ser pagos antes dos privilegiados e, mesmo entre os privilegiados, há ordem de preferência de pagamento.
O que o art. 122 da Lei nº 11.101/05 realmente faz é criar uma
subclasse privilegiada dentro de cada classe de créditos da falência: a dos
compensáveis. Assim, os credores-devedores do falido poderão exercer
seu direito de compensação antes que os demais credores daquela classe
recebam seus créditos, sem que haja prejuízo de direito de terceiros, rompimento da par condictio creditorum e desrespeito à disposição de lei
complementar.
Dessa forma, não haverá dissonância entre disposição do Código
Tributário Nacional, da Lei nº 11.101/05 e o espírito dessa mesma lei.
8
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EXISTE UM ESTABELECIMENTO EMPRESARIALVIRTUAL?
FELIPE FALCONE PERRUCI
Sumário
1. Introdução. 2. Noções. 3. Aviamento: elemento do
estabelecimento empresarial. 3.1. Definições. 4. Natureza jurídica. 5. A ampliação das perspectivas do empresário: o comércio eletrônico. 6. Estabelecimento virtual. 6.1. O aviamento e o estabelecimento empresarial
virtual. 6.2. Natureza jurídica do estabelecimento virtual. 7. Referências bibliográficas.
Resumo
O desenvolvimento das atividades comerciais depende das organizações dos fatores de produção, com a utilização de todos os bens necessários para o empresário.
Contudo, a natureza jurídica do estabelecimento comercial sempre
foi muito discutida pela doutrina, até a publicação do código Civil de 2002.
Com o desenvolvimento da computação e do comércio eletrônico,
novas perspectivas se abriram para os empresários.
Neste contexto, renova-se a discussão acerca da natureza jurídica
do que poderia ser chamado de estabelecimento empresarial virtual.
O objetivo do presente trabalho é analisar a natureza jurídica do
estabelecimento tradicional para, ao final, concluir sobre a existência ou
não de um estabelecimento empresarial virtual.
Abstract
The development of the commercial activities depends on the
organization of the production factors, with the of all the necessary goods
for the entrepreneur.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
P. 421-436
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2006
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FELIPE FALCONE PERRUCI
However, the legal nature of the commercial establishment was argued
by the doctrine until the publication of the Civil Code/2002.
Because of the development of computation and electronic commerce,
new perspectives have been opened for the entrepreneurs.
In this context, the quarrel concerning the legal nature of what could
be called virtual enterprise establishment is renewed.
The objective of this work is to analyze the legal nature of the traditional
establishment and, by the end, to conclude on the existence or not of a
virtual enterprise establishment.
1
INTRODUÇÃO
A informática promoveu profundas alterações nas relações comerciais. Esse desenvolvimento foi denominado por alguns como a “Terceira
Revolução”. A humanidade experimentou um salto que não pode ser comparado a nenhuma outra revolução ocorrida antes.
O rápido desenvolvimento fez com que toda a sociedade se voltasse
para esse novo mecanismo de organização e processamento de dados,
além da divulgação de uma gama de informações jamais imaginadas. Nesse contexto, destaca-se a Internet, que instituiu um caminho virtual percorrido pelas pessoas de regiões distantes que se comunicam e se encontram.
De acordo com essa realidade, o empresariado voltou sua atenção para
um novo mercado que surgia com a consolidação do e-commerce, a venda de produtos ou prestação de serviços realizados por meio da Internet.
Esse cenário de profundas alterações das relações comerciais entre
os particulares trouxe consigo um sem-número de novas questões jurídicas
até então desconhecidas pela doutrina clássica, destacando-se a sistemática que envolve as relações comerciais no ambiente virtual.
A possibilidade de se adquirir produtos e serviços sem que seja necessário o deslocamento do interessado até o local estabelecido de uma
empresa criou uma nova realidade. De acordo com essa nova realidade,
parte da doutrina comercialista passou a defender a existência de uma nova
espécie de estabelecimento: o virtual.
O presente trabalho pretende discutir a existência ou não dessa nova
figura, tomando como parâmetro as tradicionais concepções de estabelecimento comercial, notadamente quanto a seus elementos constitutivos.
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EXISTE UM ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL?
2
NOÇÕES
O desenvolvimento da atividade comercial ao longo dos séculos fez
nascer para o comerciante a necessidade de organizar seu conjunto de
bens como meio para a otimização dos resultados de sua atividade produtiva.
O surgimento dessa organização deu-se por mera intuição empírica
que se impôs e se generalizou por sua comprovada eficiência1.
Com efeito, para o exercício do comércio, mesmo rudimentar e
modesto, três aspectos são necessários: capital, trabalho e organização. O
conjunto dessas coisas que servem ao comerciante para a prática de sua
profissão é denominado estabelecimento comercial2.
A necessidade de organização desses elementos considerados indispensáveis não foi olvidada pelos comerciantes medievos, especialmente no
âmbito das comunas italianas, em que surgiram as aziendas.
No entanto, foi principalmente a partir do século XIX, por força do
grande número de operações que tinha o estabelecimento por objeto, que
começou a chamar a atenção dos juristas e legisladores3.
Para J. X. Carvalho de Mendonça4, o “estabelecimento comercial
designa o complexo dos meios idôneos, materiais e imateriais, pelos quais
o comerciante explora determinada espécie de comércio”.
João Eunápio Borges5, forte em Navarini, sustenta que “é o conjunto, o complexo de várias forças econômicas e dos meios de trabalho
que o comerciante consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma
unidade formal, em relação com a unidade do fim, para que ele o reuniu e
organizou”.
Concluindo sua lição, o autor mineiro, agora amparado nos
ensinamentos de J. X. Carvalho de Mendonça, afirma que “é o instrumento, a máquina de trabalho do comerciante”6.
1
2
3
4
5
6
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 184.
Idem.
REQUIÃO, RUBENS. Curso de direito comercial. (ed. atual.) São Paulo: Saraiva, 1972,
vol. 1, p. 270.
MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de direito comercial., Rio de Janeiro: Forense,
1964, vol. 5, tomo 2, p. 15. ((Está diferente da referência na bibliografia (final). Verificar.
BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 184.
Idem.
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Oscar Barreto Filho7, jurista que dedicou sua tese de doutoramento
ao estudo desse instituto, propõe interessante conceituação após delinear
em sua obra aqueles que seriam seus elementos constitutivos. Para o autor,
o estabelecimento comercial é “o complexo de bens organizados lato sensu
pelo empresário como instrumento para o exercício da atividade empresarial”8.
Interessante notar, como bem observado por Marcia Mallmann
Lippert9, que em todas as definições originárias dos doutrinadores clássicos, a designação complexo de bens é comum para designar os bens
corpóreos e incorpóreos que o empresário se vale para realizar a empresa.
Assim, plasmou-se o que atualmente se conhece como estabelecimento empresarial, conforme indicado no art. 1.142 do Código Civil10.
3
AVIAMENTO: ELEMENTO DO ESTABELECIMENTO
EMPRESARIAL
Embora o estabelecimento empresarial abarque toda a espécie de
bens organizados pelo empresário para o exercício da empresa, convém
destacar que para os objetivos do presente trabalho ganha relevo o estudo
do aviamento.
O estudo dos elementos componentes do fundo de comércio, em
tempos de total omissão legislativa a respeito e absoluta imprecisão jurídica
de sua conceituação, fez Rubens Requião afirmar que o estudo de seus
elementos não constituía matéria infensa a dificuldades.
Todavia, é certo que para a realização de qualquer empreendimento
econômico, independente de seu vulto, são necessárias “três coisas: capital, trabalho e organização”11.
7
8
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 2001, p. 324.
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial. São Paulo: Saraiva, p.
132.
9 LIPPERT, Marcia Mallmann. A empresa no Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, 1988, p. 253.
10 Art. 1.142 – Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.
11 ESTRELLA, Hernani. Curso de direito comercial. Rio de Janeiro: José Konfino Editor,
1973, p. 237.
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A reunião desses elementos poderá ser verificada em quantidades
variáveis e de formas diversas, conforme a natureza da atividade desenvolvida pelo empresário e pela maior ou menor importância do estabelecimento.
O elemento capital, conforme orientação da doutrina clássica, em
todas as ocasiões se desdobrará em dois grupos: o das coisas corpóreas,
ou materiais, e o das coisas incorpóreas, ou direitos12.
3.1
Definições
O aviamento é o atributo que denota o grau de eficiência, a qualidade que tem o estabelecimento para dar lucros a despeito de opiniões em
sentido oposto13.
As doutrinas clássica e moderna são unânimes ao tratar o aviamento
como atributo do estabelecimento, e não como elemento do estabelecimento, merecendo destaque a lição do jurista italiano Alfredo Rocco, que
o considera como “a capacidade do estabelecimento, pela sua composição e pelo impulso dado a sua organização de produzir economicamente e
de dar lucros ao empresário”14.
Com efeito, deve-se atentar para o fato de que o aviamento é elemento de significativa importância para a mensuração do valor do estabelecimento empresarial.
4
NATUREZA JURÍDICA
A doutrina clássica divergiu severamente acerca da elaboração de
uma teoria unitária sobre a natureza jurídica do estabelecimento. Em razão
disso, numerosas são as teorias que procuraram, ao longo do desenvolvimento do direito comercial moderno, definir a natureza jurídica do fundo
de comércio.
12 BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 187. Cf. ESTRELLA, Hernani. Op. cit., p. 238;
MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Op. cit., p. 13; FERREIRA, Waldemar. Tratado de
direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1960, vol. 6, p. 99.
13 BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 192.
14 ROCCO, Alfredo. Princípios de direito comercial. Campinas: LZN, 2001, p. 295.
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A dificuldade na construção de uma teoria unitária pode ser justificada
em decorrência da pluralidade de legislações que regulam o instituto. No
direito positivo brasileiro, a dificuldade era aumentada, tendo em mira a
total ausência de regulamentação da matéria15.
Todavia, com a publicação da Lei nº 10.406/02, que instituiu o Código Civil, não mais se justifica a dificuldade de determinação da natureza
jurídica do instituto no país, posto que o legislador pátrio filiou-se à corrente já predominante da universalidade de fato, que será estudada oportunamente.
Adite-se que o estudo dessa matéria e a definição da natureza jurídica do estabelecimento empresarial são de significativa importância para o
desenvolvimento do trabalho a fim de concluir sobre a juridicidade ou não
do chamado estabelecimento empresarial.
Apesar da grande discussão doutrinária verificada ao longo do desenvolvimento da teoria do estabelecimento, prevaleceu no Brasil, especialmente com a publicação no Código Civil de 2002, a corrente que entende tratar o estabelecimento de verdadeira universalidade de fato16.
15 João Eunápio Borges entende ser natural a pluralidade de teorias, visto que, à época,
tratava-se de “problema de direito positivo, variando as soluções de acordo com a diversidade das legislações”. Op. cit., p. 198.
16 As principais correntes acerca da natureza jurídica do estabelecimento são: TEORIA DA
PERSONALIDADE JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO, tendo como principais expoentes Endemann, seguida de diversas variantes propostas por autores tudescos, como
Rathenau e Haussmann; TEORIA DO ESTABELECIMENTO CONCEBIDO COMO
PATRIMÔNIO AUTÔNOMO, que teve como criador o jurista Brinz e foi amplamente
aplicada por Bekker; TEORIA DA MAISON DE COMMERCE TITULAR DO FUNDO
DE COMÉRCIO, desenvolvida por Valery, na França, que dissociava no estabelecimento
dois conceitos da maison de commerce e de fonds de commerce; TEORIA DO ESTABELECIMENTO COMO NEGÓCIO JURÍDICO, corrente foi originalmente desenvolvida
por Carrara, para quem os estabelecimentos não são nem objeto nem sujeito de direito,
mas, sim, um negócio jurídico, cujos sujeitos seriam o titular, os operários, os empregados,
os fornecedores, ou seja, todos os que mantêm relações jurídicas com o estabelecimento;
TEORIA DO ESTABELECIMENTO COMO INSTITUIÇÃO, formulada pelo mestre
espanhol Joaquim Garriguez e pelo insigne Ferrara, não logrou êxito no direito continental;
TEORIA IMATERIALISTA, desenvolvida na Alemanha, tendo como seu maior defensor
Pisko. Para essa vertente, o estabelecimento empresarial era tido como um bem imaterial,
objeto autônomo de direito, sendo individuado na concepção de organização dos vários
elementos imateriais; TEORIA ATOMISTA considera o estabelecimento como uma
pluralidade de coisas, organizado para o exercício do comércio ou da empresa, cuja primeira
formulação se deve a Vittorino Scialoja. Na concepção dos autores que defendem essa
corrente, são juridicamente relevantes per se os bens componentes do estabelecimento que,
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5
A AMPLIAÇÃO DAS PERSPECTIVAS DO EMPRESÁRIO:
O COMÉRCIO ELETRÔNICO
A atividade comercial sempre caminhou de forma paralela ao desenvolvimento dos meios de transporte e, modernamente, ao dos meios de
comunicação.
A evolução da história do direito comercial evidencia a preocupação
do comerciante com o avanço tecnológico a fim de expandir suas perspectivas de ganhos. Nesse contexto, o direito comercial possui como marco
histórico o desenvolvimento do tráfico mercantil, ainda na Idade Média, o
que evidencia a profunda relação entre o comércio e os transportes.
Após o período de exploração colonial e o esgotamento dos recursos naturais dos territórios do então Novo Mundo teve início a industrialização das nações européias, que culminou com a Revolução Industrial, na
Grã-Bretanha. Houve, então, uma grande ampliação na possibilidade de
obtenção de lucros daqueles que exploravam as indústrias manufatureiras.
O direito não ficou inerte frente a essa nova realidade. A organização
do capital e do trabalho não passou despercebida dos legisladores da época.
Iniciou-se, portanto, o desenvolvimento da teoria da empresa no seio
do direito francês e italiano, culminando com a nova vertente do direito
empresarial moderno, que abarca diversas matérias desconhecidas das
antigas legislações e desprezadas por elas.
Paralelamente a esse desenvolvimento socioeconômico, os meios de
comunicação se tornaram ferramentas de grande importância para a atividade comercial.
não obstante sua destinação econômica unitária, se analisa como uma pluralidade de elementos heterogêneos; TEORIA UNIVERSALISTA predominou na França e na Itália definindo o estabelecimento como uma universalidade de coisas, universitas facti, ao passo que
na Alemanha, reinou a tese que considera o estabelecimento uma universalidade de direito,
universitas juris. A destinação unitária dos elementos que compõem o estabelecimento,
dada pela vontade do comerciante ou empresário, traduz-se pelo conceito de universitas ou
mais precisamente, universalidade de fato. Na universalidade de direito, por sua vez, os
bens são tratados de forma unitária somente em virtude de imposição legal, sendo irrelevante
a vontade do particular. Essa divergência pode ser explicada pela aparente falta de acordo
entre os defensores de cada uma delas, acerca do critério distintivo de cada uma. Destarte,
a teoria predominante acerca da natureza jurídica do estabelecimento calcada na universalidade de fato foi definitivamente consagrada no direito pátrio com a publicação do Código
Civil de 2002.
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Finalmente, surgiu a informática, que promoveu o que alguns chamam de “Terceira Revolução”, em que foram observados progressos extraordinários. A humanidade experimentou um salto que não pode ser comparado a nenhuma outra revolução ocorrida antes.
Nesse contexto, destaca-se a Internet, que instituiu um novo caminho virtual percorrido por pessoas de regiões distantes que se comunicam
e se encontram. Sua precursora foi a Arpanet (Advance Research Projects),
rede que, em 1969, interligou o Departamento de Defesa norte-americano
a universidades e organismos militares. Sua origem encontra-se nos anos
de 1970, quando o Interneting Project padronizou o sistema de transmissão de dados, os protocolos de Internet. Em 1989, foi proposto pelo físico
Berners-Lee um sistema de hipertextos que criava condições para o intercâmbio de quaisquer informações disponíveis nos computadores de todo o
mundo. Em 1993, foi universalizado o acesso à rede por meio da World
Wide Web17.
A expansão da Internet deu-se em um prazo muito pequeno, se considerado o seu alcance. Multiplicaram-se de forma espantosa os provedores de acesso e, atualmente, o custo de implementação do serviço é irrisório em relação aos valores verificados no início da expansão dos serviços.
O mesmo ocorreu com as ferramentas disponíveis no mundo on-line.
Essa realidade fez o empresariado investir agressivamente no desenvolvimento da tecnologia virtual para alcançar novos mercados, dessa forma, vem se consolidando o e-commerce como eficiente ferramenta para a
atividade comercial. O comércio eletrônico passou a ser, pois, a venda de
produtos ou prestação de serviços realizados por meio da Internet18.
Esse cenário de profundas alterações das relações comerciais entre
os particulares, trouxe um enorme número de novas questões jurídicas, até
então desconhecidas pela doutrina clássica de diversos ramos do direito,
como o tributário, o trabalhista, o civil e até mesmo o penal, que culminaram com a criação de um novo ramo jurídico: o direito virtual.
17 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 3, p.
31.
18 Não será abordada neste trabalho a posição, ou natureza, da Internet em função dos
serviços de telecomunicações, apenas será verificada a existência ou não de um estabelecimento virtual conforme defende parte da doutrina, tendo como ponto de partida os elementos componentes do estabelecimento empresarial e sua natureza jurídica.
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EXISTE UM ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL?
Adotando a classificação elaborada por Stuart Biegel, o Prof. Carlos
Alberto Rohrmann, pioneiro no ensino dessa novel disciplina, conceituou e
delineou as principais áreas de enfoque do direito virtual. Afirma que “a
área do Direito conhecida como Direito do Espaço Virtual, ou Direito Virtual, engloba, tipicamente, todos os dispositivos constitucionais, leis e costumes que regulam as relações de pessoas e instituições que se realizarem
com o uso de redes e dispositivos eletrônicos, ‘on-line’, e no espaço
virtual”19.
No campo do direito comercial, o direito virtual focaliza as normas e
os costumes que regulam as transações comerciais no espaço virtual20, destacando-se as novas questões que dizem respeito aos títulos de crédito
virtual, à formação e execução dos contratos de cunho mercantil e, sobretudo, à organização do chamado estabelecimento virtual.
6
ESTABELECIMENTO VIRTUAL
Diante dessa nova realidade, parte da doutrina entende ter21 surgido
um novo instituto de direito comercial: o estabelecimento virtual.
Importa observar que a conceituação tradicional de estabelecimento
empresarial, embora o considere reunião de bens organizados para a exploração de atividade econômica para produção e circulação de bens e
serviços, não dispensava a presença do aspecto físico de sua constituição,
ou seja, a instalação do empresário em algum local físico, acessível aos
consumidores22.
Ocorre que com o desenvolvimento desse novo meio de comunicação e do negócio, entendem alguns que a existência do estabelecimento
virtual fez com que os empresários abrissem mão de um ponto físico onde
19 ROHRMANN, Carlos Alberto. Introdução ao direito virtual. Disponível em: <http://
www.direitodarede.com.br/IntDV.html>. Acesso em: 9 set. 2004.
20 Idem.
21 Este trabalho cingiu-se à posição dos doutrinados de Fábio Ulhoa Coelho, Modesto
Carvalhosa e José Olinto de Toledo Ridolfo, que defendem a existência de um estabelecimento empresarial virtual.
22 Em razão dessa feição física do estabelecimento, muitas foram as sinonímias utilizadas pela
doutrina clássica, como casa de comércio, base física da empresa, fundo mercantil e fundo
de negócios encontradas em BARRETO FILHO, Oscar. Op. cit., p. 65.
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poderiam atuar para oferecer seus produtos por um outro meio, consubstanciado em um endereço virtual23.
Assim, pensam que a distinção entre o estabelecimento empresarial
tradicional e o novo instituto está condicionada ao meio de acesso dos
consumidores aos produtos oferecidos no mercado24.
Nesse contexto, conclui Modesto Carvalhosa25 que “o site da
Internet, por meio do qual são disponibilizados os produtos e serviços,
pode ser considerado um estabelecimento autônomo e, como não poderia
deixar de ser, virtual”.
Amparado nessas razões, José Olinto Toledo Ridolfo26 entende ser
possível a classificação do que chama de “Estabelecimento Comercial Digital”, em clara referência ao meio em que se realizam os negócios desse
jaez, em duas categorias distintas.
A primeira categoria proposta pelo autor consiste no “Estabelecimento Comercial Digital Originário”, cuja criação, implantação e desenvolvimento estão vinculados a uma atividade formal e organizada que o preceda.
A segunda consiste no “Estabelecimento Comercial Digital Derivado”, expressão que denota uma atividade empresarial formal e organizada
preexistente, que passa a utilizar o meio eletrônico para desenvolvimento
complementar de suas atividades mercantis, sendo, portanto, uma simples
extensão do estabelecimento comercial clássico27.
Interessante observar que Modesto Carvalhosa28, ao tratar do tema,
apresenta posição divergente. Entende o autor que “o local onde o empresário comanda e supervisiona as operações desse site consistirá em estabelecimento diverso, no caso a matriz da empresa, e assim por diante”.
23 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, vol.
13, p. 624.
24 Para Fábio Ulhoa Coelho, “Com o comércio eletrônico, surge uma nova espécie de estabelecimento, fisicamente inacessível: o consumidor ou adquirente devem manifestar a aceitação por meio de transmissão eletrônica de dados. É o estabelecimento virtual”. (COELHO,
Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 34).
25 CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 625.
26 RIDOLFO, José Olinto de Toledo. Aspectos de valoração do estabelecimento comercial de
empresas da nova economia. In: Direito e Internet – Aspectos relevantes. Edipro: São
Paulo, 2000, p. 259.
27 RIDOLFO, José Olinto de Toledo. Op. cit., p. 259.
28 CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 625.
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6.1
O aviamento e o estabelecimento empresarial virtual
O aviamento, identificado por toda a doutrina comercialista como
atributo do estabelecimento, representado por seu potencial de lucratividade,
não é bem delimitado por aqueles que defendem a existência de um estabelecimento virtual.
Na verdade, a análise desse elemento é decisiva para a identificação
da existência ou não de um estabelecimento empresarial virtual autônomo
em relação a sua tradicional concepção.
Fábio Ulhoa Coelho29 entende que “o estabelecimento virtual pode
ter fundo de empresa, ou seja, valor agregado ao conjunto de bens que o
compõe. No ambiente virtual o aviamento é mensurado pelo mercado como
a quantidade diária média de pessoas que transitam pelo site”.
Enquanto Modesto Carvalhosa não se dignou a enfrentar a questão,
José Olinto de Toledo Ridolfo acaba por confundir os conceitos básicos de
clientela e aviamento, reputando-os como meros elementos do estabelecimento30. O autor justifica sua posição isolada em função dos retornos
financeiros e estratégicos muito superiores aos que até então se podia supor, pelo que o “aviamento e a clientela assumem papel relevante na correta valoração das empresas da Nova Economia”31.
A confusão terminológica não se limita ao conceito de empresa e
atinge a definição de estabelecimento.
29 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 35.
30 Importante observar, entretanto, que o autor trabalha com o conceito de empresa de forma
equivocada, contrariamente ao consagrado no art. 966 do Código Civil que se extrai da
caracterização do empresário. Não guardando, pois, qualquer relação com a concepção de
estabelecimento, visto que esse é o instrumento pelo qual o empresário explora economicamente a empresa. É o complexo de bens organizado para a produção e circulação de bens
e serviços, conforme indicado no art. 1.142 do diploma civil. Embora a empresa e o
estabelecimento sejam institutos distintos, a compreensão da teoria da empresa adotada
pelo Código Civil de 2002, a exemplo do que ocorreu na reforma legislativa italiana, reclama
a análise e interação de três elementos: empresa, estabelecimento e empresário.
31 Importante observar que a doutrina, à unanimidade, reputa a clientela e o aviamento como
atributos de significativa importância para a avaliação do estabelecimento. Contudo o autor
entende que a diferença entre uma empresa da chamada “Velha Economia”, representada
pelo “Estabelecimento Comercial Clássico”, e uma empresa da “Nova Economia”, expressa pelo “Estabelecimento Comercial Digital”, reside na compreensão de que o aviamento e
a clientela convertem-se em elementos constitutivos primários das empresas da “Nova
Economia” e, portanto, do “Estabelecimento Digital”.
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Como desdobramento desse equívoco, o autor entende ser o aviamento e a clientela elementos da empresa32, quando, na verdade, são meros atributos e elementos do estabelecimento.
Como corolário dessas incorreções, afirma o autor que “O Aviamento Digital é a expressão jurídica da Criatividade Eficaz” entendida como
uma espécie “de ativo de maior valor agregado existente”, consubstanciado
na capacidade criativa de um indivíduo em produzir resultados positivos33.
Convém, então, concluir que os defensores da existência do estabelecimento virtual não conseguiram definir o aviamento, segundo o aspecto
virtual, senão utilizando sua clássica definição.
6.2
Natureza jurídica do estabelecimento virtual
A definição da natureza jurídica do estabelecimento virtual é
determinante para a conclusão acerca de sua existência no plano jurídico.
Os autores que sustentam sua existência baseiam-se em teorias jurídicas diametralmente opostas. José Olinto de Toledo Ridolfo baseia toda
sua construção teórica acerca da natureza jurídica do estabelecimento virtual nos pilares das teorias imaterialistas criadas por Pisko e há muito superadas34. Essa posição é justificada por sua completa negação da presença
de bens materiais, ou corpóreos, no rol dos elementos componentes do
estabelecimento virtual. Nesse sentido, os bens imateriais do estabelecimento
clássico seriam ordenados e estruturados de tal forma que lhes seria conferida
a possível denominação de “Estabelecimento Comercial Digital”35.
Outra justificativa da filiação do autor à teoria imaterialista ressai da
posição pouco ortodoxa esposada no que toca à classificação do aviamento e da clientela como elementos do estabelecimento.
Contudo, tal teoria não se sustenta pelo simples fato de que se equivoca ao confundir o bem com o interesse pelo qual o bem vem configurado
32 São elementos da empresa, entendida como atividade, apenas o capital, o trabalho e a
organização.
33 RIDOLFO, José Olinto de Toledo. Op. cit., p. 258.
34 RIDOLFO, José Olinto de Toledo. Aspectos da valoração do estabelecimento comercial e
de empresas da nova economia. In: Direito e Internet Aspectos Relevantes. São Paulo,
Edipro, 2000..
35 RIDOLFO, José Olinto de Toledo. Op. cit., p. 262.
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e tutelado pela lei, ou seja, o objeto da norma com a finalidade visada pelo
legislador ao editar a norma.
É óbvio que, se o legislador configurou o estabelecimento como um
bem distinto dos bens que dele fazem parte, assim agiu para tutelar novo
interesse que corresponde ao maior valor que o próprio complexo apresenta em relação a cada um dos bens considerados individualmente. Esse
interesse corresponde justamente ao aviamento, fruto do trabalho do empresário.
Vale transcrever o entendimento do mestre Hernani Estrella36 acerca
do tema:
Essa engenhosa criação tem como suporte fático o nexo que unifica
ou interliga os singulares e diferentes elementos integrativos do fundo
de comércio. Ou, com menos palavras, a organização sobre que já
se falou. Esta seria um plus, a sobrepairar em valia às diferentes cousas
reunidas no estabelecimento, de sorte a constituir-se, por si só, num
bem autônomo, objeto de direito específico, inconfundível com os
diferentes direitos que podem existir sobre cada um dos componentes do fundo de comércio.
Lado outro, deve-se notar que dos autores que defendem a existência do estabelecimento virtual, apenas Fábio Ulhoa Coelho dignou-se a
enfrentar a sua natureza jurídica. Afirma categoricamente que “o estabelecimento eletrônico, em suma, possui idêntica natureza jurídica que o físico,
podendo-se falar, inclusive, em fundo de empresa”, embora existam diferenças decorrentes da virtualidade do acesso.
Dessa forma, a natureza jurídica do estabelecimento virtual seria a
universalidade de fato, que consiste na reunião por iniciativa no empresário
de todos os bens necessários para a exploração da empresa.
Note-se que para o autor não há distinção entre os bens integrantes
do estabelecimento virtual em relação ao estabelecimento clássico, tampouco
quanto à natureza jurídica de ambos. A diferença residiria apenas no meio
de acesso dos consumidores aos produtos oferecidos no mercado.
36 ESTRELLA, Hernani. Op. cit., p. 250.
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Sendo assim, tem-se que os elementos integrantes do estabelecimento virtual são, na verdade, partes integrantes do estabelecimento clássico.
Nessa ordem de idéias, a virtualidade no acesso dos consumidores
aos produtos oferecidos ao mercado é, na verdade, apenas a exteriorização
de um dos elementos da concepção tradicional de estabelecimento: a organização.
Com efeito, esse novo tipo de acesso ofertado pelo empresário é
resultado do alto grau de organização dos fatores de produção da empresa, em função do atual estágio de desenvolvimento tecnológico.
Nesse contexto, a expressão digital de uma atividade empresarial,
operacionalizada pela virtualidade do acesso é, portanto, o que Hernani
Estrella já chamava de “bom aviamento”37.
7
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva,
2003, vol. 3.
ESTRELLA, Hernani. Curso de direito comercial. São Paulo: José Konfino
Editor, 1973.
37 ESTRELLA, Hernani. Op. cit., p. 241.
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O AVAL NO CÓDIGO CIVIL
MARCÍLIA DUARTE COSTA DE AVELAR
Sumário
1. Introdução. 2. Do aval. 3. Aval parcial. 4. Limitação
do aval. 5. Aval póstumo. 6. Outras considerações. 7.
Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
Resumo
Com a promulgação do Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro
de 2002, os títulos de crédito foram inseridos em seu corpo sistêmico,
trazendo disposições gerais, a possibilidade de criação de títulos de crédito
atípicos e disposições específicas sobre títulos ao portador, títulos à ordem
e títulos nominativos.
Apresentam inovações, como a limitação expressa do aval e a possibilidade de emissão de títulos a partir de caracteres criados em computador.
O presente artigo visa analisar os dispositivos sobre aval, introduzidos no Código Civil.
Abstract
With the promulgation of the Civil Code, Law 10,406, on the 10th of
January of 2002, the negociable papers were inserted in its systemic body,
bringing general disposition, the possibility of creating atypical credit
instruments and specific dispositions about bearer bonds, order bonds and
registered bonds.
Present innovations, like the expressed limitation of the co-signer’s
and the possibility of emission of securities through characters created by
computers.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 13
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MARCÍLIA DUARTE COSTA DE AVELAR
The present article seeks to analyse the regarding the guarantee
introduced in the Civil Code.
1
INTRODUÇÃO
O crédito constitui a confiança de que uma pessoa venha a cumprir,
no futuro, uma obrigação assumida no presente. A possibilidade e a necessidade de circulação desse crédito fizeram surgir os títulos de crédito. É
inquestionável a importância do sistema cambial para a evolução da economia. Através de um só título, vários negócios são realizados, e estes
representam o instituto do Direito Comercial que mais contribuiu para a
mobilização de riquezas.
O Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, teve sua
fonte inspiradora no Código Civil de 1942. Uma das principais inovações
trazidas em relação ao Código Civil de 1916 refere-se à introdução da
disciplina dos títulos de crédito, que, obedecendo a princípios cambiários,
conferem ao seu titular, um direito autônomo e independente, representado
pelo próprio título, porém, cria a possibilidade de criação de títulos de
créditos atípicos ou inominados.
Tal inovação pretende fornecer, à sociedade em geral e aos empresários em particular, mais uma ferramenta destinada a facilitar, de forma
segura e eficiente, a mobilização de créditos e obrigações, observando-se
os requisitos mínimos ali previstos, amparados por institutos já consagrados pela prática cambiária.
Aval é uma garantia cambiária típica de pagamento e quanto a ele o
código trouxe inovações onde as leis especiais eram silentes.
2
DO AVAL
Aquele que presta aval é chamado avalista ou dador do aval, e o
beneficiário, cuja obrigação se reforça, chama-se avalizado. Para dar aval,
basta a assinatura da pessoa, ou de mandatário especial, no verso ou no
anverso do título para que se torne obrigado.
Ressalta-se que o avalista, pessoa que presta o aval, assume responsabilidade solidária pelo pagamento do título, ou seja, se o título não for
pago no dia de vencimento, o credor poderá cobrá-lo diretamente do
avalista, se assim desejar.
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O aval é uma declaração formal, autônoma e independente que decorre da simples assinatura no título. Assim, sendo executado em virtude
da obrigação avalizada, o avalista não pode opor-se ao pagamento exceções pessoais do avalizado.
O Código Civil, em seu art. 897, preceitua no mesmo sentido: “o
pagamento de título de crédito, que contenha obrigação de pagar soma
determinada, pode ser garantido por aval”. Entretanto, o legislador foi
omisso quanto à possibilidade de o aval ser prestado por um dos signatários do título ou por terceiro.
Alguns doutrinadores, como José Antônio Saraiva1, entendem que
não é possível pessoa que já é signatária ser avalista para não agravar suas
responsabilidades além dos limites fixados por lei.
Carvalho de Mendonça,2 entende que “o avalista não deveria ser um
dos coobrigados do título, uma vez que a sua responsabilidade em nada
mudaria com o fato de prestar o aval”.
Entretanto, assim não deve ser entendido. Um endossante, por exemplo, que avalize o título pelo aceitante, sofre uma substancial alteração em
sua posição, passando a ser um obrigado principal para benefício dos demais obrigados de regresso e do portador, que com isso ganha mais um
obrigado principal, cuja responsabilidade não é condicional, mas absoluta,
independente de protesto ou notificação e sujeita a uma prescrição de prazo mais amplo.
Aquele que se obriga no título não pode restringir ou agravar sua
responsabilidade3, senão em virtude da lei, mas, pelo princípio da autonomia, nada impede que o coobrigado assuma outra obrigação, que é autônoma e independente das demais. Além disso, nas leis especiais,4 há previsão expressa da possibilidade de o avalista ser um terceiro ou um dos já
obrigados no título.
1
2
3
4
SARAIVA, José Antônio. A cambial. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1947. V. I, § 93.
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. 5.ed. Rio
de Janeiro: Freitas de Bastos, 1955. v. 5, n. 753.
Art. 44 da LUG-LC: “Para efeitos cambiais, são consideradas não escritas: (...) IV – a
cláusula excludente ou restritiva da responsabilidade e qualquer outra beneficiando o devedor ou o credor, além dos limites fixados em lei”.
Segunda parte do art. 30 da LUG-LC: “(...) Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo
por um signatário da letra” e segunda parte do art. 29 “(...) por aval prestado por terceiro,
exceto sacado, ou mesmo por signatário do título”.
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Quanto ao local de lançamento do aval no título, tanto as leis especiais quanto o Código Civil determinam de forma semelhante quando o aval
for dado na parte frontal. O art. 898 dispõe que: “O aval deve ser dado no
verso ou no anverso do próprio título. § 1º Para a validade do aval, dado
no anverso do título, é suficiente a simples assinatura do avalista (...)”. Assim, na parte da frente do título, no anverso, para sua validade, basta assinatura do avalista, a lei é bem clara.
Ressalta-se que não se pode confundir a assinatura dada na parte
frontal do título com a assinatura do emitente, sacado ou sacador. Caso
estes venham a ser avalistas, a assinatura deverá ser lançada no verso.
Quando o aval for dado na parte posterior, ou seja, no verso do
título, a lei é omissa. Pelo art. 31 da LUG-LC e art. 30 da Lei do Cheque,
quando se tratar de aval no verso, é necessária a utilização da expressão
“por aval”, ou outra equivalente. Assim, no silêncio da legislação o artigo
necessita de interpretação.
Rossi, citado por Newton de Lucca,5 defende que a simples assinatura lançada no verso sem qualquer referência não terá qualquer valor
cambiário, ou seja, não poderá ser considerada como aval por falta requisito essencial da forma – a cláusula de garantia.
Outra interpretação é a de que a simples assinatura lançada no
verso, se não for aval, seria endosso em branco – transferindo a propriedade do título, e o aval garante. Porém, essa interpretação não pode ser
considerada. Ao analisar as assinaturas constantes do título, uma assinatura lançada sem qualquer referência, se for considerada endosso em
branco, indubitavelmente interromperá a cadeia de endosso, e isso não é
possível.
Desta forma, como o legislador, no § 1º do art. 898, considera suficiente a simples assinatura do avalista no anverso, e como nada dispõe
sobre o verso, deve-se entender que não basta a simples assinatura para
não confundir com endosso em branco.
O § 2º do art. 898 estabelece que “considera-se não escrito a aval
cancelado”. Esse dispositivo veio suprir uma omissão das leis especiais em
relação ao cancelamento do aval, já que estabelecem normas somente quan5
Guido Rossi apud Newton de Lucca. Comentários ao novo Código Civil. Coordenador
Sálvio de Figueiredo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. V. XII p. 201.
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to ao cancelamento do endosso, art. 16 da LUG-LC 6, e cancelamento do
aceite, art. 29 do mesmo diploma.
Por força do art. 903 do Código Civil, “Salvo disposição diversa em
lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”,
aplicando-se, portanto, o § 2º do art. 898 tanto aos títulos de crédito típicos quanto aos atípicos.
3
AVAL PARCIAL
O parágrafo único do art. 887 determina que o aval deve ser total,
sendo vedado o aval parcial, ou seja, o avalista não pode garantir apenas
uma parte da obrigação, deve garantir o título por inteiro.
Existe uma contradição entre o Código Civil e as legislações especiais. O art. 30 da LUG-LC permite que “o pagamento de uma letra pode
ser no todo ou em parte garantido por aval”; o art. 25 da LUG-C e o art.
29 da Lei do Cheque dispõem que “o pagamento do cheque pode ser
garantido, no todo ou em parte, por aval (...)”; preceituando os dois últimos a possibilidade de aval parcial. A Lei de Duplicatas é omissa quanto ao
aval parcial, mas, dispõe em seu art. 12 que “o pagamento da duplicata
poderá ser assegurado por aval (...)” e determina em seu art. 25 que “aplicam-se à duplicata e à triplicata, no que couber, os dispositivos da legislação sobre emissão, circulação e pagamento das Letras de Câmbio”. Assim, como o aval é uma garantia de pagamento, entende-se que o dispositivo da Lei Uniforme de Genebra sobre letras de câmbio e notas promissórias se aplica às duplicatas.
Entretanto, existem dispositivos que inutilizam o aval parcial, por entender que a pessoa que garante deve fazê-lo da mesma forma que seu
avalizado, ou seja, “o avalista se obriga da mesma maneira que seu
avalizado”.7
Quanto a este impasse, Wille Duarte Costa8 ensina:
6
7
8
Art. 16 da LUG-LC: “(...) os endossos riscados consideram-se, para este efeito, como não
escritos. (...) e art. 29 “Se o sacado, antes da restituição da letra, riscar o aceite que tiver
dado, tal aceite é considerado como recusado. Salvo prova em contrário, a anulação do
aceite considera-se feita antes da restituição da letra”.
Art. 31 da Lei 7.357/1985 e art.32 da LUG-LC.
COSTA. Wille Duarte. Títulos de crédito de acordo com o Código Civil. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. 30.
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(...) tal aval revela-se da maior inutilidade. Ninguém, exigindo um
aval no título, vai permitir que este seja parcial, porque é o credor
quem conduz isso e exige do devedor a garantia que quiser, sob
pena de não realizar o negócio. Por isso, não é direito de devedor
algum impor ao credor o aval parcial.
Concorda Newton de Lucca9 com o doutrinador anterior, porém
percebe que, para os títulos atípicos instituídos pelo Código Civil, poderia
ser admissível:
Fica um tanto quanto difícil, com efeito, conciliar a idéia de que
o aval parcial seja possível nos títulos de crédito existentes –
letra de câmbio, nota promissória, cheques e duplicatas – e não
possa ser justamente nos títulos de créditos atípicos ou inominados para os quais, presumivelmente, toda e qualquer garantia
adicional, ainda que meramente parcial, deveria ser tida por bem
vinda.
Já Pedro Martins10 entende que essa vedação não deveria prosperar, como explica:
(...) o aval é a declaração cambial não essencial e ato de liberdade
que coloca o avalista na condição de devedor solidário e autônomo,
deveria ficar ao arbítrio do garantidor a oportunidade de decidir sobre os limites de sua responsabilidade cartular.
Destarte, o aval parcial, mesmo para os títulos de crédito típicos,
nunca ocorre, porque nenhum credor, ao exigir uma garantia, aceitará parte
do valor garantido e parte não garantida, a vedação deve persistir para
evitar possíveis danos, tornando-se passível de dúvida quanto a extensão
da garantia dada.
9
DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo Código Civil. Coordenador Sálvio de Figueiredo.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. XII, p. 193.
10 MARTINS, Pedro A. Batista. RODRIGUES, Frederico Viana (coord.). Direito de empresa
no código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 566.
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LIMITAÇÃO DO AVAL
Com o advento do Código Civil, o aval passa a sofrer limitação.
Sendo o avalista casado sob o regime de comunhão universal11 ou parcial12, o Código Civil estabelece a necessidade da outorga marital ou uxória,
como dispõe o art. 1.64713:
Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode,
sem autorização do outro, exceto no regime de separação absoluta:
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III – prestar fiança ou aval;
IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou
dos que possam integrar futura meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos
quando casarem ou estabelecerem economia separada.
Esse dispositivo prevalece em relação aos títulos de créditos atípicos
e aos títulos típicos regulados por leis especiais, já que estas, por força do
art. 903 do Código Civil14, não tratam do assunto.
A meação do cônjuge vinha sendo preservada por força do art. 3º do
Estatuto da Mulher Casada15, mas, apesar de não dispor expressamente sobre
11 O regime de comunhão universal está disposto no art. 1.667 do Código Civil e assim
estabelece: “O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens
presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte”.
12 Art. 1.658 do CC/2002: “No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que
sobrevivem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes”.
13 No Código Civil de 1916, nos arts. 235 e 242, independente do regime de bens, sem outorga
marital, o cônjuge não podia praticar nenhum dos atos estabelecidos no art. 1.648 do
Código de 2002, com exceção do aval, cuja vedação é novidade.
14 Art. 903 do CC/2002: “Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de
crédito pelo disposto neste Código”.
15 A mulher era considerada relativamente incapaz pelo Código Civil de 1916, não tendo os
mesmos direitos civis dos homens. Somente com a participação do Brasil na Convenção
Interamericana de Bogotá, em 1948, surgiu a possibilidade da igualdade entre homens e
mulheres, que veio a se concretizar em 1962 com o advento do Estatuto da Mulher Casada.
Lei 4.121/1962, art. 3º. “Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um só
dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão
os bens particulares do signatário e os comuns até o limite da meação”.
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o aval, na prática os bancos já exigiam tal procedimento para se resguardar da
possibilidade oposição de embargos pelo cônjuge que não deu o aval.
O artigo tenta proteger o patrimônio familiar nos casamentos celebrados em regime que não for o de separação absoluta de bens, fazendose necessária à anuência marital.
Desta forma, caso o aval seja dado somente por um dos cônjuges,
não sendo o regime de casamento o da separação absoluta, o outro cônjuge pode demandar a invalidação do aval. Entretanto, essa ação só pode
ser proposta por aquele a quem caiba conceder a outorga uxória ou por
seus herdeiros, como prescreve o art. 1.650 do Código Civil.16
Observa-se que o juiz pode suprir a outorga quando um dos cônjuges se negue a prestá-la sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedêla, como coloca o art. 1.648 do Código Civil. O juiz analisará caso a caso
a recusa e decidirá se ela é justa ou injusta, ou se há realmente impossibilidade de dar o consentimento.
Caso o juiz não autorize, o ato praticado pelo cônjuge sem o consentimento do outro é anulável.17 A anulação só pode ser demandada no prazo
legal, que é de dois anos a contar da dissolução conjugal. Contudo, a ratificação do ato praticado pelo próprio cônjuge ou pelo juiz, torna válido o ato,
desde que feita por instrumento público ou particular, autenticado.18
Ao terceiro prejudicado com a anulação do aval fica garantida ação
de regresso,19 como dispõe o art. 1.646 do Código Civil: “no caso dos
incisos III e IV20 do art. 1.642, o terceiro prejudicado com a sentença
16 Art. 1.650 do CC/ 2002: “A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem
consentimento, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem
caiba concedê-la, ou seus herdeiros”.
17 Ato anulável é o ato jurídico que, sendo praticado ou executado com ofensa às formalidades
legais, pode ser anulado por quem tem interesse na sua ineficácia. Eles são ratificáveis, isto
é, podem ser reafirmados, aí se tornando perfeitos.
18 Art. 1.649 do CC/2002. “A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária
(art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a
anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Parágrafo único. A
aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público ou particular,
autenticado”. Deve-se entender que instrumento particular autêntico é o documento particular com firma reconhecida em cartório.
19 Ação de regresso é a ação que o beneficiário de um título tem contra os coobrigados
anteriores do mesmo, desde que devidamente protestado.
20 Inciso IV do art. 1.942 do CC/2002: “(...) demandar a rescisão dos contratos de fiança e
doação, ou a invalidação do aval, realizados pelo outro cônjuge com infração do disposto
nos incisos III e IV do art. 1.647".
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favorável ao autor, terá direito regressivo contra o cônjuge, que realizou o
negócio jurídico, ou seus herdeiros”.
A união estável é a convivência, sob o mesmo teto ou não, entre
homem e mulher, não unidos pelo casamento, mas, como se assim fosse. A
Lei 8.971/1994 estabelece que teria proteção somente a união de pessoas
solteiras, separadas judicialmente, divorciadas ou viúvos. O Código Civil
acrescentou os separados de fato nesta lista, conforme art. 1.723. Deste
modo, como a união estável tem como objetivo é a constituição de família
e por força do art. 1.725 “na união estável, salvo contrato escrito entre os
companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime
da comunhão parcial de bens”, aplicam-se a ela os dispositivos quanto à
necessidade de outorga uxória para aval.
Como nas leis especiais não há qualquer previsão neste sentido para
os títulos de crédito típicos, por força do art. 903 do Código Civil, que
dispõe: “salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de
crédito pelo disposto neste Código”, aplicam-se subsidiariamente a estes
as normas sobre a outorga marital no aval.
5
AVAL PÓSTUMO
Aval póstumo é aquele prestado após o vencimento do título. As leis
cambiárias existentes são silentes quanto ao tema, manifestando-se somente sobre endosso póstumo, salvo a Lei de Duplicatas, que no parágrafo
único do art. 1221 prevê expressamente a possibilidade do aval, como ocorre
no art. 900 do Código Civil22.
Na legislação pertinente, quando o endosso é dado após o vencimento mas antes do protesto, o endosso tem os mesmos efeitos do endosso anterior. Porém, se for dado após o protesto ou expirado o prazo para
fazê-lo, terá efeito de cessão de crédito.23
Fazendo-se uma analogia com o endosso, o aval dado após o vencimento terá o mesmo efeito do anterior, porque o vencimento não muda a
21 Parágrafo único do art. 12 da Lei 5.474/1968: “O aval posterior ao vencimento do título
produzirá os mesmos efeitos que o prestado anteriormente àquela ocorrência”.
22 Art. 900 do CC/2002: “O aval posterior ao vencimento produz os mesmos efeitos do
anteriormente dado”.
23 Cessão de crédito é o ato pelo qual o credor transfere a terceiro seu direito de crédito contra
o devedor.
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natureza da obrigação. Porém, se for dado após o protesto, deverá ser
considerado fiança, contanto que preencha os requisitos formais, ou seja,
ela só se perfaz mediante instrumento escrito.
Destarte, entende-se que o aval dado após o vencimento estará garantindo o pagamento do título e se responsabilizando da mesma maneira
que a pessoa avalizada, produzindo os mesmos efeitos prestados anteriormente.
6
OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Apesar de a obrigação do avalista ser autônoma e independente da
obrigação de seu avalizado, por força caput do art. 899, “o avalista equipara-se àquele cujo nome indicar, na falta de indicação, ao emitente ou
devedor final”, conclui-se que o aval parcial seria inviável.
Nas legislações especiais está expresso que na falta de indicação da
pessoa a quem se dá o aval, essa pessoa é o emitente ou sacador, como
prescreve o art. 31 da LUG-LC24, contudo o Código Civil descreve que
será o emitente ou o devedor final.
Mercado Júnior25 critica o legislador quando introduz a expressão
“devedor final” no final do caput do art. 889, argumentando se tratar de
uma expressão muito vaga. Pode ser entendido que devedor final seja qualquer dos coobrigados do título, por causa da solidariedade existente entre
eles, conforme estabelecido no art. 47 da LUG-LC26, como sendo sinônimo de emitente ou sacador, ou ainda, como sinônimo de obrigado principal, que no caso do cheque e nota promissória, emitente e obrigado principal
se confunde, o que não acontece com a letra de câmbio e a duplicata onde
o obrigado principal é o aceitante.
24 Art. 31 da LUG-LC, Decreto 57.663/1966: “(...) O aval deve indicar a pessoa por quem se
dá. Na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador”.
25 MERCADO JÚNIOR, Antônio. Observações sobre o anteprojeto de Código Civil, quanto
à matéria “Dos títulos de crédito”, constante da parte especial, Livro I, Título VIII. Revista
de Direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais,
1973, v. 9, ano XII, p. 123.
26 Art. 47 da LUG-LC: “Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são
todos solidariamente responsáveis para o portador. O portador tem o direito de acionar
todas estas pessoas individualmente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se
obrigaram. O mesmo direito possui qualquer dos signatários de uma letra quando a tenha
pago”.
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Entende-se, portanto, que o legislador ao introduzir a expressão “devedor final” equipara este ao obrigado principal, porque emitente já está
expresso.
O § 1º do art. 899 dispõe que: “pagando o título, tem o avalista ação
de regresso contra seu avalizado e demais coobrigados anteriores”. Ação
de regresso é aquela dirigida aos devedores indiretos, como o sacador na
letra de câmbio ou da duplicata, endossantes e seus respectivos avalistas,
mas, para tanto, deve ser procedido o protesto do título.
Além desta ação, pode também ocorrer ação direta, que é a ação
proposta contra o obrigado principal, ou seja, emitente na nota promissória, aceitante na letra de câmbio, sacado na duplicata, emitente do cheque
e seus respectivos avalistas. Para executá-las não é preciso protestar.
Nota-se, portanto, que o legislador foi omisso quanto à ação direta.
Para os títulos atípicos o aval cancelado será considerado não escrito, e para os títulos típicos, por força do art. 903 do Código Civil, “salvo
disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”. Entende-se que o § 2º do art. 898 se aplica aos
títulos regidos por leis especiais quando o cancelamento do aval se der por
motivo diverso ao pagamento.
7
CONCLUSÃO
A subsidiariedade contida no art. 903 do Código Civil: “Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código” inspirou-se no art. 2001 do Código Civil italiano, que
assim dispõe: “Reenvio às disposições especiais: as regras deste título se
aplicam a tudo o que não estiver regulado diferentemente por este Código
ou por leis especiais”.
Com a propositura do Código Civil muito se questionou quanto ao
objetivo de se introduzirem normas gerais sobre títulos de crédito e esclareceu-se que o objetivo era dar amparo legal aos documentos usados nas
relações empresariais, que, embora não estejam em lei especial, possam
ser enquadrados como títulos de crédito e gozar de seus efeitos, como
também, subsidiariamente, ministrar soluções nas lacunas existentes nas leis
especiais.
Desta forma, a partir da promulgação do Código Civil, passa a existir uma dualidade de legislação. Os títulos de crédito típicos continuam a
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ser regidos pelas suas respectivas leis especiais, enquanto os títulos atípicos
subordinam-se às normas do Código Civil, desde que se enquadrem no
disposto no art. 887 do diploma.27 Entretanto, entende-se que as normas
do Código Civil serão aplicadas supletivamente aos títulos típicos sempre
que a lei especial for omissa e não haja contradição com seus princípios.
Assim, o Código Civil inova ao limitar o aval dado sem o consentimento do outro cônjuge tanto nos título atípicos quanto aos típicos por
força de seu art. 903.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA. Wille Duarte. Títulos de crédito de acordo com o Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
ITÁLIA. Código Civil. Disponível em: <http://www.jus.unitn.it/cardozo/
Obiter_dictum/ codciv/home.htmlTITOL>. Acesso em: 14 de outubro de
2005.
ITÁLIA. Código Civil italiano, traduzido por Souza Diniz. Rio de Janeiro: Distribuidora Record Editora, 1961.
LUCCA, Newton de. Comentários ao novo Código Civil. Coord. Sálvio
de Figueiredo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v.XII.
MARTINS, Pedro A. Batista. RODRIGUES, Frederico Viana (coord.).
Direito de empresa no Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial
brasileiro. 5.ed. Rio de Janeiro: Freitas de Bastos, 1955. v.5.
MERCADO JÚNIOR, Antônio. Observações sobre o anteprojeto de
Código Civil, quanto à matéria “Dos títulos de crédito”, constante da
parte especial, Livro I, Título VIII. Revista de Direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, RT, 1973, v.9, ano XII.
SARAIVA, José Antônio. A cambial. Rio de Janeiro: José Konfino Editor,
1947. V. I e III.
27 Art. 887 do CC/2002: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito
literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da
lei”.
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33
DELINEATING CONTRACT AND TREATY CLAIMS IN
INTERNATIONAL INVESTMENTARBITRATION
ARUN SASI
Sumário
1. Introduction. 2. The concept of Treaty claims and
Contract Claims. 3. Broadly phrased Dispute Resolution
Clause: Jurisdiction of the tribunal. 4. The Umbrella
clauses. 5. Conclusion. 6. References.
Abstract
This article analyses a burning debate in international investment
arbitration i.e., whether international arbitral tribunals have jurisdiction over
contractual claims and to what extent. Because of the nascent origin of the
jurisprudence, different tribunals have taken different stance on the issue.
This paper is an analysis of inconsistent decisions by various tribunals. The
paper focuses on the following: the concept of treaty claims and contract
claims trying to differentiate between two; the effect of broadly phrased
dispute resolution clauses on the jurisdiction of the tribunal, and; umbrella
clauses, i.e. to what degree will sanctity clause elevate contractual claims to
international claims
Resumo
Este artigo analisa um debate efervescente na arbitragem de investimentos internacionais, qual seja, se tribunais arbitrais internacionais têm
jurisdição sobre questões contratuais e qual seria a extensão dela. Devido
á origem nascente da jurisprudência, tribunais diferentes tomaram decisões
diferentes sobre o assunto. Este artigo é uma análise das decisões inconsisREV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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tentes de vários tribunais. Este artigo foca em:: o conceito de reivindicações
de tratados e reivindicações contratuais, com a tentativa de diferenciar as
duas; os efeitos de cláusulas de resoluções de disputas muito amplas na
jurisdição do tribunal e, cláusula guarda-chuva, qual seja, até qual extensão
tais cláusulas levarão as reivindicações contratuais a serem reivindicações
internacionais.
1
INTRODUCTION
International investment arbitration is cardinal to the growth of foreign
investments as it provides an investor a safe and impartial option of dispute
resolution. Since the late 1990s, there has been a drastic increase in the
number of investment cases. The number of disputes brought before arbitral
tribunals has risen from 5 in 1994 to 219 in 2005. Two thirds of the investment
arbitrations are brought before World Bank’s International Centre for
Settlement of Investment Disputes (ICSID) tribunals; the rest are brought
before UNICITRAL, ICC, SCC, and other adhoc tribunals.
Obscurity in jurisprudence has lead arbitrators to take inconsistent decisions in precisely delineating the principle elements of
international investment law - contractual agreements and international
investment agreements. This remains the most highly debated and
ambiguous issues in international treaty arbitration. This issue is not
trivial as the presence of a treaty claim or a treaty breach related to a
contract breach may divest the tribunal of jurisdiction or leave the
case with out merits. The fork in the road clauses and the states’
international responsibility could depend on whether the dispute comes in the ambit of contract or treaty.
The arbitral tribunals have clearly differentiated between purely treaty
claims having it base on a contract and purely contractual claims. The scope
of this paper will include the following:
1 Analysis of the concept of treaty claims and contract claims trying
to differentiate between two.
2 The effect of broadly phrased dispute resolution clauses on the
jurisdiction of the tribunal
3 Umbrella clauses
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2
THE CONCEPT OF TREATY CLAIMS AND CONTRACT
CLAIMS
Generally a treaty claim can be defined as a claim which is based on
a treaty and governed by the provisions of the treaty, the host states domestic
law and applicable international law. Whereas a contract claim can be defined
as one based on a contract and generally governed by the law of the host
state.
The differences is simple to state but this has caused substantial
difficulty in practice especially when treaty claims find their roots in contracts
This is evidenced by the explanation of the arbitral tribunal in SGS v.
Philippines (2004),”…investments are characteristically entered into by
means of contract or other agreements with host state and local investment
partner …”
The fundamental question is of delineating the disputes in which
international arbitral tribunal can exercise jurisdiction. One of the land mark
cases which addressed this question was Aguas del Aconquija v. Argentina(2000) popularly known as Vivandis case ,the arbitration arose from a
complex dispute pertaining to concession contract signed by French
company, Compagnie Générale des Eaux, and its Argentine affiliate,
Compañía de Aguas del Aconquija with Tucuman a province of Argentina.
Argentina was not a party to the contract but it had a BIT with France.
Article 16.4 of the contract gave exclusive jurisdiction to Administrative
tribunals of Tucuman over the disputes. The ICSID arbitral tribunal affirmed
its jurisdiction characterising it as a treaty claim but considering the crucial
connection of the alleged BIT to concession contract and the fact that forum
selection clause has assigned the jurisdiction to interpret the contract to
municipal courts the tribunal refused to determine the dispute and dismissed
the claim. Claimants submitted an application of annulment and the Ad-hoc
committee (2002) adopted a diametrically opposite view. The committee
observed that a treaty claim may include contractual issues and that such
issues should not undermine the tribunal’s power to entertain treaty claims.
It also observed that a state can have an exhaustion of local remedy clause
in BIT as a precondition for ICSID arbitration in the absence of such a
clause existence of such a clause cannot be presumed. The committee
differentiated claims as:
1 Purely contractual which does not amount to treaty breaches
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2 Purely treaty breaches
3 Contract breaches which amount to treaty breaches
It observed that contract claims and treaty claims are based on different
legal bases and are assessed according to different standards. This principle
of different jurisdictional bases has been reiterated in a plethora of decisions
and has served as a backbone for the jurisdiction of tribunal in disputes
involving contractual claims for example In Azurix Corp v. the Argentine
Republic(2003) the tribunal asserted that “The point is that the rights
under the concession Agreement and under the BIT are not the same”
The tribunal in SGS v. Pakistan (2003) observed that “As a matter of
general principle ,the same set of facts can give rise to different claims
grounded on different legal orders : the municipal and international
legal orders”. This conceptual difference is accepted as norm in investment
law In Byinder v. Islamic republic of Pakistan(2005) tribunal observed
that” treaty claims are juridically distinct from claims for breach of
contract, even where they arise out of the same facts. The Tribunal
considers that this principle is now well established “. Hence a treaty
based arbitral tribunal can rule on a contractual dispute while ruling on
substantive treaty provisions
The Vivandi Adhoc committee propounded an essential bases test
for determining jurisdictions in dispute involving treaty claim and contract
claim it observed that “In a case where the essential basis of a claim
brought before an international tribunal is a breach of contract, the
tribunal will give effect to any valid choice of forum clause in the
contract… [but] where the “fundamental basis of the claim” is a treaty
laying down an independent standard by which the conduct of the parties
is to be judged, the existence of an exclusive jurisdiction clause …
cannot operate as a bar to the application of the treaty standard.”
The threshold in which a contractual breach should also be considered
as a treaty breach is increasingly hard to analyse. It has to be analysed in a
case by case basis. The fair and equitable treatment standard which is a
general principle of international law has been construed occasionally so as
to protect contractual undertakings. It is widely accepted that breach of
legitimate expectation of the investor when he enters into the investment
violates the fair and equitable treatment. The contractual breach which
violates the principle of legitimate expectation of investor while entering into
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investment and if the breach has a substantial impact on ability to recoup the
investment and obtain a reasonable profit from it ,can be endorsed the
mandate of treaty breach.
The most widely accepted criterion for distinguishing between a simple
contract breach and a contractual breach that will lead to a treaty breach is
whether the state has acted in a sovereign capacity or commercial capacity.
If it is merely commercial there is no reason to treat the state differently from
non-state operators involved in commercial transaction. Sometimes, a
complimentary test is being used for distinguishing between the two, i.e.
whether the government has abused its powers which have lead to the breach
of contract. It is actually a two-step test first determining whether if it was a
sovereign or a commercial function and secondly if the government has
legitimately used its powers in a general and non-discriminatory way.
3
BROADLY PHRASED DISPUTE RESOLUTION CLAUSE:
JURISDICTION OF THE TRIBUNAL
Dispute Resolution clauses draw up the boundaries of the tribunals
jurisdiction precisely demarcating the kind of claims the tribunal can entertain.
The effect of broadly phrased dispute resolution clauses is highly disputed
currently in international investment law forums and has been considered by
various arbitral tribunals.
The question as to whether jurisdiction of arbitral tribunals constituted
on the basis of a treaty is limited to substantive provisions of the treaty or
whether it extends to provisions of an investment contract when there is a
broad dispute resolution clause has divided the whole spectrum of investment
law into two. The restrictive approach is that the broad wording of a dispute resolution clause does not endorse the jurisdiction on purely contractual
claim but under a more liberal approach when the dispute resolution clause
is drafted in sufficiently broad language to extend to any disputes, including
dispute in relation to the performance of a contract the tribunal has jurisdiction
over mere contractual claims
One of the first decision pertaining to the question was in saline v.
Morocco (2001). The dispute resolution clause of the applicable BIT allowed
for international arbitration with respect to”.…all disputes or differences
… between a contracting party and an investor of other contracting
party concerning investment “the tribunal held that the terms of other
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provisions were very general and that the reference to expropriation and
nationalisation measures which are matters coming under unilateral will of a
state cannot be interpreted to exclude a claim based in contract from the
scope of application of this article. However, the tribunal restricted its
jurisdiction to only such contractual claims that arose out of a “breach of a
contract that binds the state directly. Subsequently, certain arbitral tribunals
have adopted an even wider approach.
In Vivandi v. Argentina annulment decision, the ad-hoc committee
was called upon to decide the scope of a dispute resolution clause providing
for international arbitration as regards dispute “relating to investments
made under the agreement between one contracting party and an
investor of other contracting party” The committee held that the provision
does not use a narrow construction and it does not necessitate that the
claimant allege a breach of the BIT itself it is sufficient that the dispute relate
to an investment made under the BIT. The same position has been reiterated
in a catena of decisions including SGS v. Philippines in which the tribunal
observed that “the term dispute with relations to investments….. is not
limited by reference to a legal classification of the claim that is made
“it further observed that “the phrase ‘dispute with respect to investment’
naturally includes contractual dispute”. However, because the relevant
investment agreement contained its own exclusive dispute resolution clause
the tribunal identified two different issues:
1 Interpretation of the general phrase ’dispute with respect to
investment in BIT’s,
2 Impact of such a phrase on jurisdiction of BIT tribunal over contract
claims.
The tribunal observed that contract. it is not plausible to suggest that
general language in BITs dealing with all investment disputes should be limited
because in some investment contracts the parties stipulate exclusively for
different dispute settlement arrangements., it is possible for BIT tribunals to
give effect to the parties contracts by interpreting the treaty provisions in the
light of objects and principles enshrined in the contract ,it concluded that in
principle it was open to SGS to refer the present dispute as contractual
dispute to ICSID arbitration. However, it viewed the exercise of the parallel
contractual dispute resolution mechanism as an admissibility requirement
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before the claim could be submitted to the treaty based tribunal. It stayed
the ICSID proceeding and referred the party to contractual dispute resolution
mechanism.
It is interesting to note that having construed the dispute resolution
widely and affirming the principle that the jurisdiction of a treaty based tribunal could extend to purely contractual claims on the basis of a broadly
based bilateral treaty none of the aforesaid tribunals affirmed its jurisdiction
over the contractual claims at hand.
Other tribunals have taken a restrictive approach. In SGS v. Pakistan
(2003) the tribunal held that a broad dispute resolution clause in a BIT does
not provide sufficient basis for a treaty –based tribunal to have jurisdiction
over purely contractual claims. The requirement that contractual claims
brought before a treaty based tribunal must also amount to a violation of the
treaty standard was re-emphasised in a catena of decisions including LESIDipenta v. Algeria (2005)in which the tribunal observed that contracting
parties consent is not given ,extensively, for all rights and claims that could
be related to an investment. It is a requirement that the measures complained
of amount to violation of the bilateral Agreement ,which means in particular
that they be of an unjustified or discriminatory nature ,in law or in fact. This
is not the case of any breach of contract
The broad construction bases its justification on intention of the parties
and the fact that some treaties expressly restrict the jurisdiction of the treaty
based tribunal to breaches of the substantive standards contained in the
treaty which suggests that broader language is intended to include other
type of disputes such as contractual ones. The wording any dispute with
respect to investment may be contrasted with that of other dispute resolution
provisions which limits the scope of the arbitration to disputes concerning
an obligation of the (host state) under this agreement such as Art 26(1) of
the Energy charter Treaty which reads:
“Disputes between a Contracting Party and an Investor of another
Contracting Party relating to an Investment of the latter in the
Area of the former, which concern an alleged breach of an
obligation of the former under Part III shall, if possible, be settled
amicably.”
On the contrary various scholars have put forth the argument that
should the contracting parties wish to extend their jurisdiction to contractual
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claims the language of the dispute resolution provision should be drafted so
for example Art 24 of the U.S Model BIT which reads “In the event that
a disputing party considers that an investment dispute cannot be settled
by consultation and negotiation
[...] (b) the claimant, on behalf of an enterprise of the respondent that
is a juridical person that the claimant owns or controls directly or
indirectly, may submit to arbitration under this Section a claim
(i) that the respondent has breached
[…] C) An investment agreement “
According to Gallard (2005), latter approach may be preferred in
the light of the fact that investment protection treaties are international law
instruments that create substantive standards of international law. Absent
specific language to the contrary, it may seem odd to interpret a treaty as
creating a jurisdictional basis for a treaty based tribunal where it is not called
upon to rule on alleged violations of the treaty
4
THE UMBRELLA CLAUSES
Bilateral treaties commonly contain specific clauses aimed at providing
investors with further assurance that the obligations and commitments
assumed by the host state will be honoured. such clauses are called Umbrella
clauses or “observance of undertaking clause” and are also occasionally
called mirror effect, elevator parallel and sanctity of contract clause. Umbrella
clauses have been included in approximately 40% of the 2000 BITs
concluded till now. Many times, umbrella clauses are the basis of substantive
claim between investor and state. The predominant view is that Umbrella
clauses elevate contractual commitments into international one how ever
the precise scope of elevation has been an issue of hot debate.
One of the first disputes that addressed this issue was SGS v. Pakistan
(2003). The dispute arose from a Pre shipment inspection agreement made
between republic of Pakistan and a Swiss company SGS. On differences
Pakistan Unilaterally terminated the contract. SGS claiming wrongful
repudiation commenced proceeding before Swiss court which dismissed
the claim on the basis of Pakistan’s sovereign immunity. The Government of
Pakistan commenced proceeding in Pakistan. Subsequently SGS
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commenced an ICSID arbitration. It based its claim on an Umbrella clause
enshrined under Art 11.1 of Swiss-Pak BIT which stated: “Either
contracting party shall constantly guarantee the observance of the
commitments it has entered into with respect to the investments of the
other contracting parties”
SGS argued that the effect of this Article was to elevate all of its
contractual claims against Pakistan to the level of breach of a treaty. Emmanuel
Gallard who was the counsel for SGS referred it as a “mirror effect clause”,
which makes the violation of the contract a violation of the treaty. The tribunal rejected the arguments of SGS and held that it has no jurisdiction on
claims found exclusively on alleged breaches of PSI agreement which also
did not amount to breaches of substantive treaty provisions, and that Art
11.1 does not elevate a simple contract breach to the level of breach of a
BIT. It observed that for construing the provision as elevating the contractual claim to the mandate of treaty claims clear and convincing evidence has
to be adduced by the claimant to show that such was the intend of the
contracting parties to the Swiss- Pakistan BIT, in incorporating Art 11.1. t
observed that no such evidences can be traced from the text itself of Art 11.
Tribunal justified its decision on various grounds:
1 Broad interpretation would lead to a situation wherein any violation
of Unlimited number of state contracts and other instruments setting
out state commitments could be treated as a breach of treaty
2 It would render substantive provisions of the treaty superfluous
since it would no longer be necessary to demonstrate a breach of
those substantive treaty standards if a simple breach of contract
by itself constitutes a treaty violation
3 Investor would render worthless any dispute resolution clause
contained in a contract made with a state by pressing his claim
under dispute resolution clauses in investment treaties
4 Finally it observed that Umbrella clause in Swiss-Pakistan BIT
was located towards the end of the treaty whereas all the other
substantive protections awarded to investors were set out earlier
in the text of the treaty.
The SGS asserted that this decision is a manifest negation of the fundamental International rules on treaty interpretation. ‘ut res magis valeat
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quam pereatie’ ie a useful meaning be assigned to treaty language The
tribunal made two points to shun this assertion and give examples of instances
when the umbrella clause will be active.
1 It observed that Art 11.1 clause signalled an implied affirmative
commitment on the part of the state to enact implementing rules or
legislation necessary to give effects to its contractual or statutory
undertaking
2 it observed that under exceptional circumstances a violation of a
certain provisions of a contract will amount to a treaty violation by
infringing a clause like Art 11.1 and cited an example of a situation
where the state took steps to impede the ability of the investor to
pursue its contractual claims under a forum chosen under the contractual dispute resolution clause.
Six months after the SGS v.Pakistan (2003) decision, another ICSID
tribunal was asked to rule on the umbrella clause of the Swiss-Philippines
BIT. The dispute involved the same claimant. Umbrella clause was enshrined
under Article X (2) of the applicable it read: “Each contracting party
shall observe any obligation it has assumed with regards to specific
investments in its territory by investors of the other contracting party”
The tribunal observed that Article X(2) elevates contractual claims to
the mandate of investment claims it interpreted the provision by asserting
that because of the object and purpose of the BIT was promotion and
reciprocal protection of investment it was legitimate to resolve uncertainties
in its interpretation so as to favour the investor. The tribunal criticised the
decision of SGS v Pakistan (2003) for failing to give any clear meaning to
Umbrella clause. The tribunal observed about the two examples given by
SGS v. Pakistan tribunal in which such a clause will be operative - that it
was not appropriate for jurisdiction to be conferred by way of implied
affirmative commitment or through characterisation of a circumstance as
exceptional. However as discussed before, it declined to affirm its jurisdiction
on the matter it was seized with.
Other tribunals have also addressed the issue. Tribunal in Fedax v.
Venezula (1998) interpreted the Umbrella clause so as to elevate a plain
non-payment of promissory notes, a breach that on its face did not qualify
as a sovereign act. In Joy Mining v. Egypt. The Tribunal ruled that umbrella
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clause may elevate contractual claims into treaty claims in as much as the
contract violation is of such magnitude so as to trigger the treaty’s protection.
In Eureko v. Poland (2005), the tribunal admitted that the umbrella clause
enshrined in article 3.5 of the Netherlands –Poland BIT protected the
investors against the states breach of any obligations undertaken with regards
to investments even though the case appeared to deal with states sovereign
measures.
The tribunals, as well as majority of the scholars, were in favour of a
broad interpretation of umbrella clauses. This inclination for a broad
interpretation of the clause has some what been negated by a recent ICSID
decision El Paso v. Argentina(2006), the dispute was pertaining to a unilateral revision of the public contract with El Paso by Argentinean
government. The El Paso tribunal started by setting out the approach to
interpretation. In some previous occasions for example by UNICITRAL
Arbitral tribunal in Methanex corporation v. U.S.A .it was argued that
interpretation of the umbrella clause should be in the favour of a state whereas
in a plethora of other decisions including SGS v. Philippines (2004), it was
argued that interpretation should be in favour of the investor. The tribunal in
El Paso rejected both the arguments and stated that a balanced interpretation
is necessary taking into account sovereignty and state responsibility of the
state and also keeping in mind the necessity to protect foreign investment.
This neutral approach is in consonance with Art 31 (1) of Vienna
convention on the law of treaties which reads:” A treaty shall be interpreted
in good faith in accordance with ordinary meaning to be given to the
terms of the treaty in their context and in the light of its object and
purpose”.
The tribunal concurred with the decision of SGS v. Pakistan and
was highly critical of the reasons relied on by the Philippines tribunal. It
observed that if the interpretation of the SGS v. Philippines (2004) tribunal
is followed the violation of any legal obligation of a state, and not only of any
contractual obligation with respect to investment is a violation of BIT
whatever the source of the obligation or whatever the seriousness of the
breach – it would be sufficient to include Umbrella clause and a dispute
settlement mechanism.
The tribunal observed that it was necessary to distinguish between a
state acting as a merchant and state acting as a sovereign. It was essentially
only from the state acting as a sovereign that a foreign investor wished to be
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protected by the provisions of a treaty and hence only those acts of state in
its capacity as a sovereign if leads to any contract claims can be elevated to
the mandate of treaty claims by an Umbrella clause
The ambiguity surrounding the issue has been addressed to some
extent by the tribunal in El Paso v. Argentina (2006), but it is not the last
word on the issue. Since there is no doctrine of precedent applicable to
such disputes, different interpretations are bound to occur
5
CONCLUSION
As in any other developing jurisprudence, there are no conclusive or
strict standards that can be applied for delineating the jurisdiction of treaty
based tribunal. The issue is in a state of constant flux and it cannot be
concluded effectively. The Arbitral tribunals have given very inconsistent
decisions, but the current norms as it is manifest from arbitral decisions can
be stated as:
1 The treaty claim may include contractual issues and such issues
shall not undermine the power of the tribunals to entertain a treaty
claim,
2 The treaty and contractual claims even if stems up from the same
facts have different jurisdictional bases and the dispute which
contains contractual claim and treaty claim essential bases of the
treaty would be considered and if the essential base is a contract
tribunal will give effect to any valid choice of forum clause and if
the bases is a treaty even in the presence of a contrary exclusive
jurisdiction clause in the contract the tribunal will seize jurisdiction.
3 The inclination of the tribunals in interpreting a broadly phrased
dispute resolution clause has been very inconsistent but the
better position in my opinion would be that if the parties wish
to extend the jurisdiction of the tribunal to contract claims that
should be expressly mentioned in the dispute resolution clause
in the treaty.
4 Umbrella clauses should be given a balanced interpretation and it
only elevates only those contractual claims which are related to
sovereign function of the state to the level of international claims.
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It is paramount for the future of the institution of investment arbitration
that the tribunals take consistent decisions to avoid ambiguity.
6
REFERENCES
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AN APPRAISAL OF THE DISPUTE RESOLUTION
MECHANISMS UNDER THE NIGERIAN
TELECOMMUNICATION ACT
JANET MWUESE ASAGH
Sumário
1. Introduction. 2. Dispute Continuum. 3. Perspectives
on Dispute Resolution. 4. Dispute Resolution
Mechanisms under the Act. 5. Appraisal of the Dispute
Resolution Mechanism. 6. Conclusion. 7. References.
Abstract
The changes in Nigeria’s fast growing telecommunications industry
have thrown up issues capable of generating disputes among operators,
between operators and regulators and operators and consumers. This has
reinforced the need for comprehensive dispute resolution mechanism for
the industry. The provisions of the Nigerian Communications Act 2003 and
subsidiary legislation seek to achieve this objective. This paper appraises
the legislation and its subsidiary instruments. It identifies its strengths and
weaknesses and makes recommendations for expanding their scope and
strengthening their efficacy with a view to institutionalising these mechanisms
in the telecommunications sector in line with global perspectives.
Resumo
As mudanças na indústria e telecomunicação da Nigéria que cresce
rapidamente, trouxeram assuntos que geram disputas entre operadoras, e
reguladores e entre operadores e consumidores. Isto reforçou a necessidade de um mecanismo de resolução de controversas para a indústria. As
provisões lei de comunicações nigerianas de 2003 e da legislação subsidiáREV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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JANET MWUESE ASAGH
ria buscam atingir tal objetivo. E este artigo trata da legislação e de seus
instrumentos subsidiários. Ele identifica seus pontos fortes e fraco e faz
recomendações para a expansão de seu escopo e o fortalecimento da eficácia com vistas a institucionalização de tais mecanismos no setor de telecomunicações devidamente alinhados com as perspectivas globais.
1
INTRODUCTION
Telecommunication infrastructure is a key factor to the development
and sustenance of any modern economy. Access to it is therefore significant
not only to the people but the overall development of all aspects of a nation‘s
economy. Although telecommunication services were introduced in Nigeria
as early as 1886 when the country was under British colonial rule, the aim
was merely to facilitate the effective discharge of its administrative functions
rather than advancing the socio-economic development of the
country.(National Policy on Telecommunications, 2000) It was therefore
not surprising that at independence in 1960, the telecommunication network
consisted of 121 (one hundred and twenty-one) exchanges, with a total
number of 18,724 lines for an estimated population of about 40million people.
This translated to a dismal teledensity of about 0.5 telephone lines per 1,000
people. This ratio is quite below the ITU specification of 1:100
The emergent political class could not keep abreast with global trends
and developments in the telecommunication sector, mainly because the
industry operated as a state monopoly. To improve on the existing
infrastructure and quality of service delivery, it became imperative for
Nigeria to deregulate her telecommunication industry so as to allow private
sector participation in the provision of telecommunication services
nationwide. This was achieved under the new ideology which placed
emphasis on deregulation, commercialization and liberalization culminating
in the enactment of the Nigerian Communications Commission Decree
No 75 of 1992, which established the Nigerian Communications
Commission (NCC) as the regulator for the telecommunications sector.
The Decree liberalized the telecommunication industry and opened the
gate for private sector participation in the industry. The Nigerian
Communications Act No. 19 of 2003 (NCA, 2003) further strengthened
the Nigerian Communications Commission by empowering it to act as an
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independent and impartial regulatory authority for the Nigerian
telecommunication industry in the era of deregulation and privatisation.
The industry has as a result of the deregulation witnessed a transformation
from virtual government monopoly to a deregulated or liberalized operating
environment. Liberalization in this context means a process of both
deregulation and re-regulation; it entails a removal of traditional control
on the ability to provide telecommunication services and the establishment
of new anti-competitive mechanisms.
It is within the context of this environment of competing players in the
industry that a wide array of disputes may arise. Indeed, certain spheres of
the industry are prone to disputes. For instance, disputes between operators
involving interconnectivity agreements, traffic agreements or technology
leasing agreements. Disputes may also arise between regulatory agencies
and operators over pricing, quality of service, numbering, or the correct
interpretation of licence terms. Disputes between Operators and Consumers
may also involve complaints of poor service and certain practices such as
incorrect billing. These disputes are better resolved speedily because they
invariably have public interest implications that go beyond the economic
interest of the parties involved. Therefore, many regulatory agencies including
the NCC maintain a role in ensuring that the disputes are resolved in a way
that serves the public interest.
Ultimately, the test of a successful dispute resolution mechanism is its
impact on investment, growth and development in the sector. Successful
dispute resolution is important for all countries that seek to facilitate the
rapid diffusion of new communications infrastructure and ICT services. It is
particularly crucial for countries that have historically experienced a lack of
investment and growth. The rapid and effective resolution of disputes is
therefore a key component in bridging the “digital divide.” (Bruce, R. R.,
Rory M, Timothy St. J. E., Intven, H., Miedema T.2003)
In Nigeria, the NCC as the regulatory agency of the telecommunication sector is saddled with the responsibility of resolving disputes in the industry. The NCC is empowered by section 4(1) (p) of the NCA
2003 to examine and resolve complaints and disputes in the industry using
dispute resolution methods. The aim of this paper is to examine the adequacy
or otherwise of these mechanisms with a view to proffering possible options
and recommendations.
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2
DISPUTE CONTINUUM
Disputes may arise in various circumstances but those with the greatest
impact on sector investment and growth as outlined by Robert, R. B., Rory
M, Timothy St. J. E., Hank, I., Theresa M. at a symposium for regulators in
Geneva 2003 include:
Disputes related to liberalization
Introducing competition often undermines established financial and
business interests of incumbent operators. Many disputes arise from the
incumbent’s desire to protect its dominant position in the market. Reduction
or termination of exclusive rights has frequently led to legal and regulatory
disputes. For example, in Nigeria the dominant operator before liberalizationthe Nigerian Telecommunications Limited (NITEL) the gateway operator,
was reluctant to grant access to new licensees, (MTN and ECONET
Wireless now Celtel International). The NCC had to intervene to resolve
the impasse.
Investment and trade dispute
Disputes may arise where regulatory reforms diminish the value of
private sector interests. These include complaints by investors, operators
and service providers about early termination of exclusive rights, licensing
of new competitors, new rate-setting structures and changes to licenses.
Among other grounds, claims have been contractual based on alleged
breaches of legal or policy commitments. The recent introduction of unified
licensing of telecommunication services in Nigeria might raise such issues.
The Unified License costs a mere N260 million ($2.1 million approximately)
compared to the $285 million paid by MTN, ECONET and M-Tel in
February 2001. The fear is that incumbents might feel disadvantaged under
the new framework which ended their exclusive rights especially as they
had paid a higher licensing fee.
Interconnection disputes
These are the most common type of dispute between service providers.
New technologies have given rise to a myriad of different network
alternatives for providing services, including fixed, mobile, wireless local
loop, limited mobility variations and WiFi. Preventing and resolving technical,
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operational and pricing disputes is vital to the development of competitive
markets. Asymmetric market power on the part of dominant operators often
makes regulatory intervention necessary. Regulators are increasingly providing
advance guidelines for the negotiation of interconnection arrangements. They
are also developing specialized adjudicatory procedures to resolve
interconnection disputes. Where regulators lack information and expertise,
they are turning to international benchmarking and outside expert consultants
for assistance. In Nigeria the NCC had to use the adjudicatory powers
bestowed on it by section 73 of the Act to intervene in the interconnectivity
disputes between MTN and Vmobile, and MTN and MTel. These disputes
basically centred on the non payment of interconnectivity fees.
Consumer disputes
Disputes between service providers and consumers are common,
particularly in basic telephone markets. Consumers can be disadvantaged
due to their lack of bargaining power or competitive options. Regulators
are using a variety of mechanisms to ensure effective resolution of consumer
disputes, normally by the service providers in the first instance, with
appropriate supervision and appeal provisions. Informal mechanisms are
sometimes, used, such as ombudsmen schemes. Consumer disputes are
often dealt with by consumer’s protection agencies as well as regulators.
The Nigerian regulator (NCC) has fashioned an innovative monthly
‘Consumer Parliament’- a gathering of operators, consumers and regulators
in the telecommunication industry. The Parliament hears and resolves
consumer complaints between operators and consumers with the NCC
serving as the arbiter.
Radio frequency disputes
Radio frequency allocation and assignment disputes are dealt with
internationally through mechanisms available through the ITU. Domestically,
disputes arise relating to interference with frequencies and disputes over
license conditions and pricing.
3
PERSPECTIVES ON DISPUTE RESOLUTION
The Telecommunications Department Bureau of the ITU has outlined
some key perspectives that are most relevant in designing dispute resolution
processes. These include:
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Changing patterns and assumptions
The Telecommunications sector is changing rapidly due to new
technologies and convergence among technologies and services. The dispute resolution field is also changing and introducing alternative methods for
resolving disputes. These trends provide opportunities for telecommunication
regulators to use alternative dispute resolution methods. Both trends suggest
regulators should re-evaluate assumptions about the rules of regulators and
market participants in resolving disputes.
Economics of dispute resolution
In evaluating the success of the dispute resolution processes, it is important
to consider economic cost to the sector as a whole. Costs may result from
delays and lack of transparency and predictability. At a ‘micro’ level, the
emergence of a ‘market’ for dispute resolution techniques and professionals is
likely to improve them. In Nigeria for example, the regulator is providing parties
with a choice of alternative dispute resolution procedures such as the Short
Form Procedure for Small Claims Consumer Disputes, the Mediation
Procedure Rules and Rules for the Arbitration of Interconnection Issues and
Disputes prescribed under the Dispute Resolution Guidelines. In managing dispute resolution processes, it is important to design appropriate economic incentives for the parties to disputes. The allocation of responsibility for the costs
of disputes, for example, can affect the manner in which parties behave.
Market power asymmetries
The appropriate choice of dispute resolution technique in any situation
depends partly on the comparative levels of parties- market power. Some
regulators take the view that they can encourage the employment of ADR
techniques where disputing parties have similar levels of market power;
where the parties are more likely to negotiate solutions that meet their mutual
on-going commercial interests. Regulatory intervention is more often
considered necessary where disparities in market power mean that one
party effectively requires the protection of the official sector from abuse of
process by the other.
Confidentiality and transparency
Balancing the competing priorities of protecting confidential business
information and publishing reasoned decision-making is as relevant to dispute resolution as to any other aspect of regulation.
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Dealing with complexity
Many disputes involve complex webs of interrelated issues that defy
simple categorization. Pricing, technical, operational, licensing and policy
issues must all be considered when regulatory regimes are in transition.
Jurisdictional overlaps among telecommunications sector, competition and
consumer authorities, as well as between national, regional and international
authorities are making disputes more complicated. A co-coordinated or
integrated view is often required to prevent delays and fragmented resolution
of disputes. Consensus building measures are particularly well suited to
traversing categorical and jurisdictional boundaries to resolve underlying
problems affecting sector development.
4
DISPUTE RESOLUTION MECHANISMS
UNDER THE ACT
The dominant mode of resolving disputes in Nigeria is through the
formal courts system. However, the judicial system has been characterized
by undue trial delays and other bureaucratic bottlenecks, which occasion
untold hardships and huge costs on parties to the dispute. (Adeyemi, 1996)
noted with dismay the menace of trial delays and congestion in the courts
and attributed it to inadequate funding of the justice institutions, poor and
inadequate physical facilities, shortages of and obsolete equipment, shortages
and inadequate utilization of available staff etc.
The telecommunication sector being a vibrant sector, the nature of
disputes arising within it requires prompt resolution. There is therefore a
need for an expeditious way of resolving disputes; such means should take
into account, the need for timeliness and efficiency, certainty, transparency,
confidentiality, cost-effectiveness and enforcement. This is because, unlike
other jurisdictions such as United Kingdom, Denmark and other European
countries where the court requires the parties to enter into arbitration before
the case is heard, there is no such prescription under Nigerian Law. Pretrial arbitration clauses are usually provided by contractual means or
agreements. In recognition of these factors; the NCC Act has prescribed
specific disputes resolution mechanisms for the telecommunication sector in
pursuance to the provisions of Sections 75(2) of the NCA 2003 which
states as follows:
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“The commission may publish guidelines setting out the principles and
procedures that it may take into account in resolving disputes or a
class of disputes under this part”
Furthermore, section 76 (1) and (2) of the Act provides:
(1) Subject to the objects of this Act and any guidelines issued by the
Commission under this part, the Commission may resolve the dispute
in such manner including but not limited to Alternative Dispute
Resolution processes and upon such terms and conditions as it may
deem fit.
(2) The Commission, in carrying out its functions under Subsection
(1) of this section, shall always be guided by the objective of establishing
a sustained dispute-resolution process that is fair, just, economical
and effective and that shall not be bound by technicalities, legal form
or rules of evidence and that shall at all times act according to the
ethics of justice and the merits of each case.
These provisions clearly empower the NCC to adopt Alternative
Dispute Resolution (ADR) measures in resolving disputes in the
telecommunications sector.
In pursuance of these provisions, the NCC in 2004 published
guidelines and rules for dispute regulation. The guidelines and rules
were made pursuant to the powers conferred on the Nigerian
Communications Commission (NCC) under Section 4(1) (p) of the NCA
2003 which provides as part of the NCC’s functions the following:
“… examining and resolving complaints and objections filed by and
disputes between licensed operators, subscribers or any other person
involved in the communications industry, using such dispute-resolution
methods as the commission may determine from time to time including
mediation and arbitration”
The guidelines state that the object of arbitration in the sector is to
obtain a fair resolution of disputes by an impartial arbitrator without
unnecessary delay and expense, and that the procedure is designed to provide
a forum for inexpensive, fair, impartial and effective arbitration as a means
of resolving consumer-related disputes in the telecommunications sector.
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Chapter one of the guidelines is intended for small claims consumer
disputes involving amounts not exceeding N1, 000,000 (approximately $8
,000). They are not designed to deal with complicated disputes; the procedure
is therefore simple, quick, informal and inexpensive. The applicable rules
are the NCC Short Form Consumer Dispute Resolution Guidelines.
Chapter two of the Guidelines lay down the Nigerian Communications
Commission Arbitration Rules. The Arbitration Rules are divided into eight
parts. (Part one is the introduction, two commencement of the arbitration,
three submission agreement, four appointment of arbitrators, five arbitration
procedures, six communication between the parties and the arbitrator, seven
costs and eight miscellaneous.)
Chapter Three lays down the Nigerian Communications Commission
Mediation Rules; these rules are divided into fifteen parts. (These include
application of the rules; approach to the commission; the mediator; mediation
procedure; participants; exchange of information; date, time and place of
mediation; record of proceedings; settlement; confidentiality and privilege;
privacy; termination; exclusion of liability; fees expenses and costs; stay of
proceedings and post mediation function.). It is apposite to state that the
guidelines are not designed to deal with complicated disputes; these are to
be dealt with by more formal oral hearing and evidence to ensure their
proper resolution. The Commission reserves the discretion to decide on the
applicability of the procedure to any matter.
From the foregoing, it is clear that the NCC has acknowledged
categorically, the disputes resolution mechanisms to be used as including
arbitration and mediation. However, this may be interpreted to read ‘including
but not limited to arbitration and mediation’ since the section does not
foreclose the possibility of using other ADR mechanisms, especially as other
disputes resolution mechanisms exist.
Although these guidelines were published since2004, no dispute has
been resolved under them. The reason was that neutral evaluators have
not until recently been appointed by the NCC. At the time of writing, the
Panel of Neutrals appointed by the NCC was undergoing sensitization
workshop. The NCC has thus been using its adjudicatory powers granted
under section 73 of the NCC Act 2003 to resolve disputes in the sector. As
at the last count, a total of four disputes have been resolved by the Legal
Department of the NCC. Three had to do with interconnectivity issues while
the fourth bothered on call termination rates.
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APPRAISAL OF THE DISPUTE RESOLUTION
MECHANISM
Unfortunately disputes in the telecommunication sector in Nigeria
seldom comes for resolution by ADR methods, this could be attributed to
the lack of a comprehensive legal framework to regulate the processes or
lack of awareness by consumers of the available mechanisms to address
their grievances. The innovative monthly consumer parliament is not effective
since the issues resolved there are for the public eye and may not be binding
on the operators. Another reason could be lack of requisite expertise required
to take up issues with either the operators or regulator since the ordinary
person may not have the technical know-how to present their case. This
accounts for the few matters that are resolved among operators and between
the regulating agency and operators. However, the recent appointment of a
panel of neutrals who will be assigned disputes for arbitration will alleviate
this difficulty. Furthermore there is no institutional support from the
government such as call centres provided by the regulatory agency to answer
consumer questions and resolve complaints, as is the case in other
jurisdictions. For example the Federal Communications Commission of the
United States of America operates consumer call centres in Washington
D.C Gettysburg, and Pennsylvania.
The framework in place is the dispute resolution guidelines published
by the NCC which contain rules for only mediation and arbitration. This is
likely to create an impression that other dispute resolution processes are
not applicable (since the NCC has failed to publish guidelines regulating the
use of the other modes), or that the specific mention of arbitration and
mediation excludes the other methods of dispute resolution.
It is however, our contention that for a comprehensive dispute
resolution mechanism to be put in place, other ADR mechanisms such as
Negotiation, Conciliation, Mini-trial, Early Neutral Evaluation, Judge as
Mediator, Special or Settlement Master etc. (Palmer, M. and Roberts, S.
1998) should be incorporated especially in non-contentious cases and for
cases involving monies over one million naira.
Given that the environment is a highly technical one, the need for a
neutral third party versed in telecommunications issues cannot be
overemphasised. The recent appointment of a panel of neutrals by the NCC
is therefore a step in the right direction. Although the criteria used to appoint
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such neutrals were not made public, it is expected that they must be persons
versed in the industry and possess the requisite integrity needed to perform
their functions fairly.
The dispute resolution mechanism is designed to rid the process of
technicalities that have overtime made litigation a poor option for dispute
resolution. This explains why the provisions of sections 4(1)(p) and 76 of
the NCA 2003 and subsection 2 of section 76 expressly provides that the
process must be devoid of technicalities, legal form or rules of evidence and
at all times act according to the ethics of justice and the merits of the case.
As much as the use of disputes resolution mechanisms saves time,
costs less, is flexible, leads to a more effective use of experts in the resolution
of disputes, is private and promotes confidentiality, one must not loose sight
of its downside. This is because the very attributes that make ADR attractive
may be responsible for it’s unmaking if not properly monitored. For example,
its flexibility may lead to uncertainty and adverse consequences, especially
where there are no useful precedents; it is also not binding with consequences
for enforcement.
The only statutory enactment in Nigeria on dispute resolution is the
Arbitration and Conciliation Act Cap A18 Laws of the Federation of Nigeria
2004, other ADR processes are yet to enjoy express statutory recognition.
Given the state of development in the country, the need for statutory
recognition for these processes cannot be overlooked as it will encourage
their effective use.
6
CONCLUSION
We have identified the dispute resolution mechanism prescribed by
the NCC Act and other types that could be used and have noted, the
inadequacy of the institutional framework of the government in terms of
redress mechanism available to redress consumer complaints such as poor
service delivery and dissatisfaction with tariffs, network failure, loss of credit
units prepaid etc. The need to address these issues was also emphasised.
To improve on the existing legal and institutional framework, the following
suggestions have been put forward.
First, Nigeria should adopt best practices from other jurisdictions
with regards to telecommunication dispute resolution options. A good
example is the informal agency complaints (IAC), available to all United
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States consumers, interest or advocacy groups, or service providers. This
could be initiated by telephone calls, letters, or the NCC’s website. The
IAC could be used to address consumer complaints (billing, quality of service
issues) or questions about new rules. The NCC’s intervention may lead to
investigations, fines, non-binding remedies such as mediation, or formal
complaints.
Second, the NCC should also establish and operate call centres to
answer consumers’ questions and resolve complaints. At the NCC
headquarters, staff should be able to answer enquiries, complaints or
comments addressed to the NCC Chairman or Commissioners. The public
should be sensitised to form interest and advocacy groups to air complaints
and provide input to agency decisions.
Third, the Conciliation and Arbitration Act should be reformed to
take cognisance of new developments as they relate to dispute resolution.
NCC should also: publish adjudicatory decisions and facilitate access to
such decisions through the Internet and other means to provide resources
for regulators and other adjudicators as well as disputing parties and their
advisors.
Fourth, the NCC should encourage the use of other ADR processes
by endorsing their usage in their guidelines and legal framework and interface
with other regulators internationally to share experiences on dispute resolution
processes. In this respect, new on-line resources and services can be
harnessed to assist policy makers and regulators to improve dispute resolution
techniques.
Finally, collaborating with educational institutions such as the
Universities and training institutions such as the National Judicial Institute,
Chartered Institute of Arbitrators, Chartered Institute of Mediators and
Conciliators etc. and the e-business community will also offer the opportunity
to build consultative networks where ideas, precedent and information can
be shared.
7
REFERENCES
1. Adeyemi, A. (1996). The challenges of Administration of Justice in Nigeria
for the Twenty-First Century. In Umezurike & Nweke (Eds.), Perspectives
in Law and Justice (p200) Enugu, New dimensions publishers.
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AN APPRAISAL OF THE DISPUTE RESOLUTION MECHANISMS UNDER THE ...
2. Bruce, R. R., Rory M, Timothy St. J. E., Hank, I., Theresa M. (2003).
Dispute Resolution in the Telecommunications Sector: Current Practices
and Future Directions. Presented at the Global Symposium for Regulators
and the World Summit on the Information Society at Geneva, Switzerland,
8-9 December
3. Palmer, M. and Roberts, S. (1998) Dispute Processes ADR and the
Primary Forms of Decision Making, (p.70)London, Butterworths
4. Nigerian Communications Act, No. 19, 2003
5. Nigerian Communications Commission Decree, No. 75 of 1992.
6. Nigerian Communications Commission, Dispute Resolution Guidelines,
published 2004
7. The National Telecommunications Policy, 2000 p.11
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TRABALHO DIGNO: VALOR-FONTE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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TRABALHO DIGNO:
VALOR-FONTE DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
GABRIELA NEVES DELGADO
Sumário
1. Introdução. 2. Os direitos de indisponibilidade absoluta no Direito do Trabalho 2.1. Fundamentação filosófica 2.2. Fundamentação trabalhista 2.3. O patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho digno 3.
A evolução jurídico-axiológica do Direito do Trabalho
4. A regulamentação jurídica do Direito do Trabalho
4.1. A regulamentação jurídica das relações de emprego 4.2. A regulamentação jurídica das relações de trabalho 4.3. A regulamentação jurídica das relações
sindicais 4.3.1. Âmbito internacional 4.3.2. Âmbito nacional 5. Referências Bibliográficas
A proposta do artigo é a de reiterar o valor trabalho digno na perspectiva do Estado Democrático de Direito propondo, para tanto, a utilização de instrumentos jurídicos que viabilizem sua afirmação ética, enquanto
elemento indispensável para a constituição, crescimento e realização do
sujeito-trabalhador em sua identidade social e honradez.
This article proposes to demonstrate the value of the dignity of the
work under the perspective of the Democratic State and the Rule of Law,
and so, the use of legal instruments that make possible the ethic affirmation
of the work, as a mandatory element for the constitution, the growth and
the realization of the subject-work in its social identity and honor.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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GABRIELA NEVES DELGADO
1
INTRODUÇÃO
No âmbito da vida real o trabalho deve revelar o homem em sua
dimensão maior de ser humano. Por isso, parte-se do pressuposto de que
o trabalho, enquanto direito universal fundamental, deve se orientar pelo
referencial axiológico da dignidade do ser humano.
A formulação de conceito que seja atual sobre a dignidade da pessoa humana1 é uma das tarefas mais tortuosas apresentadas pelas doutrinas
filosófica e constitucional.
Conforme explica Sarlet, não há definição consensual e acima de tudo
universal sobre a temática, a não ser o entendimento de que a dignidade revela a
própria condição humana, apresentando-se no gênero humano sem fronteiras.2
Apesar disso, o autor propõe formulação jurídica do conceito de
dignidade da pessoa humana, destacando, todavia, que, por ser o tema
vago e impreciso, seu, conceito encontra-se em permanente processo de
construção e desenvolvimento. Nesse sentido, disserta:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.3 (Grifos do autor)
O conceito apresentado procura destacar a dignidade enquanto qualidade intrínseca do ser humano, o que, por si só, indica os atributos de
irrenunciabilidade e inalienabilidade que lhe são inerentes.
É o que explica Sarlet: por ser a dignidade uma qualidade de todo e
qualquer ser humano, não há como existir pretensão de se ter concedida
dignidade. Parte-se do pressuposto de que ela é subjacente ao homem, à
sua condição humana.4
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TRABALHO DIGNO: VALOR-FONTE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Importante ressaltar, como faz o autor, que a dignidade não pode ser
concedida, eis que já pertence ao homem enquanto ser humano (o que não
significa que ela não possa ser protegida e reconhecida).
Assim, tem-se que a dignidade não pode ser retirada do homem,
porque é condição intrínseca à pessoa humana; todavia, considerada a dinâmica concreta é que se deve admitir que ela poderá ser violada.5
Dada a possibilidade de sua violação é que Sarlet identifica a dignidade como "limite e tarefa do Estado e da comunidade".6
Neste mesmo contexto é importante esclarecer que a proteção e a
promoção da dignidade apresentam-se em relação à pessoa concreta e
individualmente considerada. O que não quer dizer, diga-se de passagem,
que o homem não deva respeitar a dignidade do outro. Por isso mesmo é
que a dignidade também é reconhecida em sua dimensão intersubjetiva.7
Com efeito, a defesa de uma construção normativa objetiva que possa,
ao mesmo tempo, promover e proteger a dignidade da pessoa apresentase como diretriz calcada na segurança jurídica, elemento introjetado no
paradigma do Estado Democrático de Direito.
Reitera-se, mais uma vez, que para se ter dignidade não é preciso
necessariamente ter direitos positivados, visto ser a dignidade uma condição intrínseca do homem. De toda forma, quanto à sua proteção, reconhece-se a importância da atividade do Estado de promovê-la pela via
normativa.
A Constituição Federal de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito,
“[...] reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em
função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” .8
Este entendimento pautado no ser humano enquanto centro convergente de direitos, porque fim em si mesmo, deve orientar inclusive as relações de trabalho e seu correspondente: o Direito do Trabalho.
No desempenho das relações sociais, onde se destacam as trabalhistas, deve ser vedada a violação da dignidade, o que significa que o ser
humano jamais poderá ser utilizado como objeto ou meio para a realização
do querer alheio. O que também indica que o sistema de valores a ser
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GABRIELA NEVES DELGADO
utilizado como diretriz do Estado Democrático de Direito não poderá se
revelar utilitarista. Deverá, em contrapartida, concentrar-se no ser humano
enquanto pessoa.
Reportando-se à doutrina de Kant, Salgado esclarece a orientação
de que o homem, enquanto sujeito de liberdade, não pode ser considerado
meio, mas apenas fim em si mesmo. Sendo assim, sua valoração faz-se não
pela utilidade, mas sim pela sua qualidade de ser humano. E é em função de
sua condição humana que o homem tem o direito de participar da riqueza
social, provendo sua vida das necessidades materiais e espirituais básicas.9
Orientado pela doutrina kantiana, mas propondo uma releitura de suas
premissas, Sarlet afirma que o homem poder ser instrumentalizado quando
servir espontaneamente a outra pessoa, mas desde que seu trabalho não viole
ou degrade a sua condição humana. Caso contrário, haverá violação da dignidade e afronta expressa ao valor do trabalho digno. Nesse sentido, sustenta:
Ainda nesta perspectiva, já se apontou – com razão, no nosso sentir
–, para o fato de que o desempenho das funções sociais em geral
encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a
dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da
instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoísta disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar
outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma
violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações,
convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de
instrumentalizar (coisificar) o outro.10 (Grifos nossos)
Entende-se que o trabalho não violará o homem enquanto fim em si
mesmo, desde que prestado em condições dignas. O valor da dignidade
deve ser o sustentáculo de qualquer trabalho humano.
Por esta razão é que se impõe a necessidade de que, pelo menos, os
direitos alçados à qualidade de indisponibilidade absoluta estejam assegurados a todo e qualquer trabalhador.
Onde o direito ao trabalho não for minimamente assegurado (por
exemplo, com o respeito à integridade física e moral do trabalhador, o
direito à contraprestação pecuniária mínima), não haverá dignidade humana que sobreviva.
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Se existe um direito fundamental, deve também existir um dever fundamental de proteção. Quando o Direito utiliza-se da regulamentação jurídica significa, antes de tudo, que ele servirá como suporte de valor para
proteger o homem em seus direitos.
Por isso, a declaração e a efetivação dos direitos fundamentais
devem ser compreendidas como o ponto de chegada do momento ético de um Estado Democrático de Direito.
Ressalte-se que, apesar de o Direito do Trabalho demarcar precisamente sua seara de proteção (qual seja, a relação de emprego e, por expressa determinação constitucional, as relações de trabalho avulsas), isso
não significa que deva ser compreendido como uma área jurídica estanque
e, portanto, isenta de reformulações. Pelo contrário, para que seja sempre
dinâmico e condizente com a realidade, torna-se necessário que seu objeto
de investigação seja permanentemente investigado e reinterpretado.
Nesse sentido é que o artigo propõe uma reconstrução jurídica da
proteção ao trabalho, por meio da introdução de nova fundamentação à seara justrabalhista, baseada na orientação filosófica de que
todo trabalho digno deve ser efetivamente protegido pelo Direito do
Trabalho.
Se o trabalho é um direito fundamental, deve se pautar na dignidade da pessoa humana. Por isso, quando a Constituição Federal de
1988 refere-se ao direito ao trabalho, já está compreendido, implicitamente, que o trabalho valorizado pelo texto constitucional é o trabalho digno.
Primeiro, devido ao nexo lógico existente entre direitos fundamentais (direito fundamental ao trabalho, por exemplo) e o fundamento nuclear do Estado Democrático de Direito que é a dignidade
da pessoa humana. Segundo, porque apenas o trabalho exercido em
condições dignas é instrumento capaz de construir a identidade social
do trabalhador.
Ao se reconhecer o trabalho digno como valor e direito fundamental,
é necessário também torná-lo viável. Apesar de seguir na contramão da
proposta mais comum de exaltação da autonomia privada nas relações de
trabalho para se atender às exigências do capital, considera-se que é função estatal proteger e preservar o valor do trabalho digno por meio da
regulamentação jurídica.
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Mas a regulamentação jurídica proposta deve ser objetiva e direta,
visando ao aperfeiçoamento do Direito do Trabalho. Isso significa que pelo
menos os direitos de indisponibilidade absoluta devem ser assegurados a
todo e qualquer trabalhador.
Nesse sentido é que se defende o papel do Direito em reconhecer
toda e qualquer manifestação do valor do trabalho digno, ou seja, o Direito
do Trabalho deve considerar todas as formas de inserção do homem em
sociedade que se façam pelo trabalho e que possam dignificá-lo.
Portanto, os direitos de indisponibilidade absoluta devem ser considerados patamar mínimo para a preservação da dignidade do trabalhador.
É essa a diretriz fundamental para a legitimação da universalidade do Direito do Trabalho.
2
OS DIREITOS DE INDISPONIBILIDADE ABSOLUTA
NO DIREITO DO TRABALHO
2.1
Fundamentação filosófica
Os direitos de indisponibilidade absoluta constituem o centro convergente dos direitos humanos porque se revelam, em essência, como
direitos fundamentais do homem.
No momento em que os direitos fundamentais ingressam no
ordenamento jurídico, eles devem ser compreendidos enquanto direitos de
indisponibilidade absoluta, já que são direitos inatos ao ser humano.
De toda forma, na medida em que a ordem jurídica é construída e
permanentemente reconstruída em distintos momentos históricos, é possível concluir-se que o padrão de direitos de indisponibilidade absoluta
em uma determinada época não se repita, com a mesma intensidade e
extensão, em outra época histórica bastante diferenciada. De todo modo,
em cada uma dessas épocas, eles sempre terão o status de direito de
indisponibilidade absoluta e nessa qualidade é que se impõem ao mundo
social.
Os direitos de indisponibilidade absoluta, enquanto direitos humanos, fundamentam-se na teoria da interdependência e da indivisibilidade
dos direitos fundamentais.
O reconhecimento da interdependência e da indivisibilidade dos direitos fundamentais, além da necessidade de sua promoção efetiva e res482
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peito universal, foram estabelecidos expressamente em vários instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil,
como, por exemplo, a, Declaração Universal dos Direitos Humanos
(ratificada em 10/12/1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ratificado em 24/1/1992), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ratificado em 24/1/1992), a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de Pacto de San José
da Costa Rica (ratificado em 25/9/1992), além do Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais ou Protocolo de San Salvador (ratificado
em 21/8/1996).
O Protocolo de San Salvador, em seu preâmbulo, reafirma o
propósito de consolidação, nas instituições democráticas, dos direitos essenciais do homem, através da idéia de indivisibilidade dos direitos fundamentais:
Considerando a estreita relação que existe entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais e a dos direitos civis e políticos,
porquanto as diferentes categorias de direitos constituem um todo
indissolúvel que encontra sua base no reconhecimento da dignidade
da pessoa humana, pelo qual exigem uma tutela e promoção permanente, com o objetivo de conseguir sua vigência plena, sem que jamais possa justificar-se a violação de uns a pretexto da realização de
outros.
Para se melhor compreender a idéia de indivisibilidade dos direitos
fundamentais, exemplifica-se: não há como se concretizar o direito à vida
digna se o homem não for livre e tiver acesso ao direito fundamental ao
trabalho também digno. Da mesma forma, não há possibilidade real do
exercício do trabalho digno se não houver verdadeira preservação do direito fundamental à vida digna.
A partir dessa noção de interdependência dos direitos fundamentais
alçados à condição de indisponibilidade absoluta, eis que direitos humanos, duas características centrais se destacam: primeiro, no sentido de que
todo direito de indisponibilidade absoluta é direito essencial do ser humano; segundo, no sentido de que todo direito de indisponibilidade absoluta é
essencial para a concretização de outros direitos fundamentais do homem.
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2.2
Fundamentação trabalhista
O direito fundamental ao trabalho digno, enquanto Direito Humano,
é alçado à condição de indisponibilidade absoluta por todos os instrumentos internacionais já destacados.11
A indisponibilidade do direito ao trabalho digno é também considerada regra prevalecente no Direito do Trabalho brasileiro.12
Segundo a moderna doutrina justrabalhista, os direitos trabalhistas
podem estar revestidos de indisponibilidade absoluta ou relativa. Delgado
assim classifica a indisponibilidade de direitos:
Absoluta será a indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado merecer uma tutela
de interesse público por traduzir um patamar civilizatório mínimo firmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o
que ocorre, como já apontado, ilustrativamente, com o direito à assinatura de CTPS, ao salário mínimo, à incidência de normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador. [...]. Relativa será a
indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou bilateral simples, que não caracterize um padrão civilizatório geral mínimo
firmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o
que se passa, ilustrativamente, com a modalidade de salário paga ao
empregado ao longo da relação de emprego (salário fixo versus salário variável, por exemplo): essa modalidade salarial pode se alterar, licitamente, desde que não produza prejuízo efetivo ao trabalhador.13
O autor explica, à luz do princípio da indisponibilidade dos direitos
trabalhistas, que as parcelas de indisponibilidade absoluta jamais podem
ser renunciadas. As parcelas de indisponibilidade relativa podem ser objeto de transação pelas partes, desde que as concessões recíprocas firmadas
não resultem em prejuízo direto ou indireto ao empregado, sob pena de
nulidade.14 Além disso, para que a transação ocorra regularmente, também
é necessário o respeito aos elementos jurídico-formais ou requisitos do
contrato de trabalho (manifestação de vontade, capacidade, objeto lícito e
forma prescrita ou não defesa em lei).
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2.3
O patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho
digno
Apresentados os pressupostos filosóficos e jurídicos sobre os direitos de indisponibilidade absoluta, ainda compete o enfrentamento de relevante temática: é necessário estabelecer, expressamente, quais são, no caso
brasileiro, os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta capazes de
assegurar ao trabalhador o patamar civilizatório mínimo do direito fundamental ao trabalho digno.
Entende-se que os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta
estão previstos em três grandes eixos jurídicos, positivados pelo Direito do
Trabalho brasileiro.15
Vale dizer que os eixos de proteção, a seguir analisados, são necessariamente complementares e interdependentes. De toda forma, na eventual hipótese de conflito, aplicar-se-á o diploma jurídico mais favorável ao
trabalhador, aquele que possa garantir-lhe as melhores condições de trabalho, nos termos da teoria do conglobamento.
Há que se enfatizar ainda que os eixos, a seguir apresentados, não se
revelam apenas para a defesa do cumprimento das necessidades vitais de
sobrevivência do trabalhador. Na realidade, revelam em seu conteúdo um
prisma ético, já que exaltam o homem em sua condição valorosa e superior
de ser humano, o que significa, em outra medida, o direito de viver em
elevadas condições de dignidade.
O primeiro eixo, de amplitude universal, refere-se aos direitos trabalhistas estabelecidos nas normas de tratados e convenções internacionais
ratificadas pelo Brasil.
Além dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, ratificados pelo Estado brasileiro, também integram o primeiro eixo
as convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) ratificadas pelo País.
Referidos instrumentos internacionais destacam um patamar
civilizatório universal de direitos para o ser humano trabalhador, reconhecendo o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis para que possa levar uma vida digna.
Asseguram, especialmente, o direito à remuneração que promova a
existência digna do próprio trabalhador e de sua família; o direito à segu485
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rança e à higiene no trabalho; a proteção ao trabalho e ao emprego; o
direito a períodos de descanso e ao lazer; o direito à limitação razoável das
horas de trabalho; o direito à remuneração dos feriados; o direito de greve
e o direito de os trabalhadores organizarem sindicatos e de se filiarem ou
não a eles.
O segundo eixo dos direitos de indisponibilidade absoluta dos trabalhadores está previsto na Constituição Federal,16 marco jurídico da
institucionalização dos direitos humanos no Brasil.
No entender deste artigo, quando o art. 7º, caput, da Constituição
Federal de 1988, elenca direitos constitucionais trabalhistas, ele o faz para
todo e qualquer trabalhador, e não apenas para os empregados urbanos e
rurais.
É claro que a concessão dos direitos constitucionais trabalhistas será
assegurada a cada trabalhador conforme a possibilidade da própria estrutura de trabalho estabelecida, o que não significa a defesa de discriminações, mas, pelo contrário, o respeito às diferenças estruturais que se estabelecem no mundo do trabalho.
Finalmente, o terceiro eixo de direitos de indisponibilidade absoluta
está presente nas normas infraconstitucionais, como, por exemplo, na Consolidação das Leis do Trabalho, que estabelece preceitos indisponíveis relativos à saúde e à segurança no trabalho, à identificação profissional, à
proteção contra acidentes de trabalho, entre outros.
3
A EVOLUÇÃO JURÍDICO-AXIOLÓGICA DO DIREITO
DO TRABALHO
A ordem jurídica cria patamares jurídicos distintos de proteção: o
Direito do Trabalho corresponde ao nível mais aprimorado de garantias,
direcionado a uma relação trabalhista específica, que é a relação de emprego. Embora esta seja a mais importante no sistema capitalista, ela não
engloba em si todos os tipos de relações de trabalho situadas historicamente em sociedade.
O Direito do Trabalho, ao excluir de sua tutela as relações trabalhistas lato sensu (com exceção para a relação de trabalho avulsa, no caso
brasileiro), promove uma discriminação entre as relações de trabalho existentes no cenário capitalista contemporâneo, excluindo-as da tutela trabalhista em favor da relação de emprego.
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Assim, simultaneamente, o Direito do Trabalho promove dentro de
seu sistema jurídico diretrizes de inclusão (da relação de emprego) e de
exclusão (das outras relações de trabalho). É essa omissão normativa do
Direito do Trabalho que deve impulsionar o intérprete a questioná-la.
A partir dessa constatação é que se declara a expectativa de regulamentação de toda e qualquer relação de trabalho que se demonstre digna,
por meio da universalização da proteção direcionada pelo Direito do Trabalho.
Isso significa que o critério de exclusão que deve ser tolerado pelo
Direito do Trabalho refere-se apenas às relações de trabalho que não sejam capazes de dignificar o homem, como, por exemplo, o trabalho escravo.
Na realidade, o que se defende é a ampliação da consciência
axiológica para se proteger juridicamente não apenas o trabalho formal
como valor, mas qualquer trabalho digno (agora, paradoxalmente, ao se
proteger o trabalho como valor, a melhor alternativa é a de proteção por
meio da formalização jurídica).
Os parâmetros de conduta social, no que concerne ao direito e
ao dever do trabalho, devem ser garantidos e formulados pelo Direito, através de seus densos e complexos institutos, princípios e regras
jurídicas.
O Direito do Trabalho corresponde, pois, no mínimo, ao direito a um
trabalho digno, o que significa dizer o direito a um trabalho minimamente
protegido. Tudo isso quer dizer que a concepção do Direito do Trabalho
deve ser elastecida, em comparação ao padrão jurídico hoje assentado.
Normas trabalhistas garantidoras de vantagens jurídicas tidas como
de indisponibilidade absoluta devem ser estendidas a toda prestação de
trabalho, sem prejuízo da preservação do modelo jurídico mais complexo
e minucioso para a relação de emprego.
A própria ordem jurídica, hoje, já demonstra como isso é possível: a
relação de emprego padrão é regida pelo vasto complexo de normas do
direito positivo trabalhista brasileiro. Entretanto, a mesma ordem jurídica
defere a uma relação empregatícia considerada muito especial (a relação
doméstica) um conjunto mais reduzido de direitos – tudo sem que se verifique qualquer antinomia grave no conjunto do sistema.
A Constituição Federal de 1988 já induz a ordem jurídica na direção
ora exposta. Ilustrativamente, o caput do art. 7º refere-se a trabalhadores,
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e não estritamente a empregados. O texto magno abre caminho à extensão
de, pelo menos, parte do Direito do Trabalho a grupos não empregatícios
de trabalhadores.
Essa indução constitucional repete-se na recente Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, que estende a competência da Justiça
do Trabalho para lides envolvendo relações de trabalho, e não mais apenas
para a relação de emprego.17
Embora se trate, sem dúvida, de preceito de direito processual (já
que amplia a competência material da Justiça do Trabalho), o surgimento
do novo dispositivo aponta a intenção da Constituição Federal de 1988 de
estender o Direito material do Trabalho, ainda que por indução cultural, vez
que a Justiça do Trabalho há várias décadas é rigorosamente especializada
na aplicação do segmento jurídico trabalhista.18
A redefinição dos âmbitos de aplicação do Direito do Trabalho também é proposta por Baylos:
Partindo desta perspectiva de reformulação das linhas essenciais do
Direito do Trabalho, apresenta-se imediatamente o problema da
reunificação das duas coletividades do trabalho, insiders e outsiders
desiguais, um “exército de excluídos” que compreende não somente
os desempregados, subempregados e trabalhadores temporários,
como também uma crescente legião de falsos autônomos, alheios ao
sistema de garantias que funda o ordenamento jurídico-trabalhista,
simbolizando o fracasso da sua própria idéia igualitária. No amplo
debate sobre o “reequilíbrio” da tutela realizada pelo Direito do Trabalho, a alternativa não parece ser nem o enfraquecimento das garantias já conferidas, nem a extensão uniforme do protótipo normativo
básico do trabalho em jornada integral e por um período indeterminado
de tempo. A “redefinição” do trabalho, objeto do Direito do Trabalho, pode ser alcançada através de projetos de reforma que procurem formalizar um núcleo mínimo de tutela para qualquer atividade
produtiva – “trabalho sem adjetivos” – associado a uma série de
tipologias contratuais. Entre estas, o contrato de trabalho por tempo
indeterminado funcionaria como o lugar no qual se aplica na íntegra e
de modo incondicional o “máximo” de tutela, tal como foi gerado
historicamente. Este é o modo como, atualmente, este tema vem sendo tratado no debate juslaboralista italiano.19 (Grifos do autor)
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No mesmo sentido, segue a proposta de Viana:
Para alguns estudiosos, entre os quais nos incluímos, é preciso recuperar de algum modo a unidade de proteção, recolhendo numa espécie de rede todos os trabalhadores que se encontram em estado
de dependência econômica. Desse modo, a proteção alcançaria as
múltiplas situações – emprego, desemprego, subemprego,
informalidade – que hoje se alternam na vida do trabalhador. Apenas
o grau dessa proteção é que seria variável.20 (Grifo do autor)
Também Antônio Álvares da Silva defende a ampliação da tutela do
Direito do Trabalho, em favor de uma proteção universal das relações de
trabalho. No entanto, vai além, pois acredita que os desempregados também devem ser protegidos pelo Direito do Trabalho.21
Nesse sentido disserta:
O moderno Direito do Trabalho já não é mais o mesmo do passado.
Não pode restringir-se mais apenas ao trabalho subordinado. Outras categorias de trabalho e de trabalhadores surgiram. Se quer fazer jus ao nome e tornar-se uma ciência que abriga de fato todo o
trabalho humano realizado pessoalmente, tem que ampliar suas bases e reformular seus objetivos. Não deve rejeitar as novas realidades, mas acolhê-las, dando-lhes tratamento jurídico apropriado.22
À guisa de conclusão, a proposta é a de evolução do Direito do Trabalho pela universalização de sua abrangência normativa, ainda que respeitados patamares distintos de proteção jurídica às relações de trabalho. Se ao
empregado urbano, por exemplo, é assegurado o FGTS, ao trabalhador
autônomo, em razão do tipo de prestação de serviços – pelo menos, por
exemplo, se esgotar-se em um único ato ou grupo de atos em um único dia –,
pode não fazer sentido conceder tal direito, em vista do procedimento altamente burocratizado da operação deste. Isso não significa que o trabalhador
autônomo seja menos valorizado que o trabalhador empregado.
O objetivo proposto é o de universalização dos direitos trabalhistas
para os inúmeros e diversificados tipos de trabalhadores, além do clássico
empregado. Contudo, obviamente, como natural no Direito, algumas exceções ou adequações deverão ser feitas, exatamente em decorrência da
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diferença, às vezes grande, do modus operandi de cada uma das modalidades de trabalho existentes.
Ressalte-se que a presença de patamares distintos de proteção não
significa o respaldo a discriminações entre trabalhadores e entre tipos de
relações de trabalho. Significa, somente, o respeito à pluralidade típica da
vida social, o respeito à diferença substantiva entre os diversos tipos de
vínculos de trabalho.
A proposta apresentada não é, portanto, orientada por razões de mercado. Na realidade, encontra-se na contramão da política até então dominante, de flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho, que
procura fragilizar, ao máximo, o Direito do Trabalho e o homem que labora.
O argumento da flexibilização não é um argumento ético, mas sim
estratégico, porque trata o sujeito trabalhador como meio para a consecução de determinado fim. Por isso é que se pode afirmar que a flexibilização
é instrumento artificial, incapaz de viabilizar a construção da identidade social pelo homem trabalhador.
A proteção jurídica do trabalhador e das relações de trabalho deve
ser vista como fundamento para a viabilização do homem como fim em si
mesmo, preservada sua identidade social.
A intenção é a de valorizar o Direito do Trabalho, reconstruindo seu
conceito por meio da inserção da tutela estatal, dentro do possível (e para
isso consideradas as diferenças estruturais das diversas relações de trabalho) para toda e qualquer relação de trabalho que possa dignificar o homem.
O que se propõe é um novo modelo de Direito do Trabalho, que se
realize pela passagem do modelo atual de Direito do Trabalho (que não é
universal, já que regulamenta apenas a relação de emprego e por exceção
os trabalhadores avulsos), para um modelo universal de Direito do Trabalho, que seja capaz de tutelar todo trabalho livre e digno, consagrando,
portanto, o direito universal ao trabalho digno.
O critério de regência normativa do trabalho avulso pode ser
inspirador, de certo modo, do critério de aplicação do Direito do Trabalho
a trabalhadores exclusivamente autônomos ou eventuais.
Sabe-se que o Órgão Gestor de Mão-de-Obra realiza os pagamentos mensais ao trabalhador avulso, proporcionalmente ao período efetivamente trabalhado, pagando-lhe as verbas imperativas, além de realizar os
recolhimentos legais.
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Ora, basta que se fixe mensalmente, por norma jurídica, o valor
mínimo-hora do trabalho humano no Brasil, relativamente a trabalhadores não empregados autônomos e eventuais. Nesse valor mínimohora já estarão englobadas todas as vantagens que a ordem jurídica
considere necessárias ao patamar do trabalho digno. Em conseqüência, será inválido o pagamento por trabalho humano inferior a esse
patamar legal.
O Direito do Trabalho deve ser considerado, portanto, um mecanismo de construção social (mesmo que em outra medida artificial) da igualdade entre os trabalhadores. Igualdade essa que se revelará pela proteção
normativa das diversas formas de prestação de serviços existentes na
contemporaneidade.
As mais complexas, como, por exemplo, a relação de emprego, serão protegidas com toda a tutela jurídica assegurada pelo ordenamento
pátrio. As relações de trabalho de menor grau de complexidade (o que não
significa menor importância no sistema econômico) serão preservadas, pelo
menos, quanto aos direitos de indisponibilidade absoluta.
A igualdade, no tocante ao direito de proteção normativa de toda e
qualquer relação trabalhista (consideradas, é claro, as diferenças estruturais já apresentadas), revelar-se-á na construção de um sistema jurídico
capaz de legitimar o direito universal ao trabalho digno. E será este direito
referência maior para a possível estabilização das relações sociais de trabalho firmadas no contexto do sistema capitalista contemporâneo.
4
A REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA DO DIREITO DO
TRABALHO
É preciso que sejam estabelecidos contornos jurídicos em favor da
sedimentação ética do trabalho no marco do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, entende-se que a efetividade da proteção ao trabalhador e a viabilização do trabalho digno como direito e valor fundamental
poderão ser melhor alcançadas por meio da regulamentação jurídica – pelo
menos, mas sobretudo – dos direitos de indisponibilidade absoluta, essenciais a qualquer trabalhador, como, por exemplo, a preservação da saúde e
da segurança no trabalho e a garantia de uma contraprestação pecuniária
que possibilite ao ser humano a manutenção de seu “mínimo existencial”.23
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A regulamentação das relações de trabalho, sobretudo em tempos
de flexibilização e desregulamentação de direitos, deve ser considerada
instrumento jurídico-social necessário para viabilizar a consolidação da identidade social do trabalhador.
Proteger materialmente o trabalho (qualquer que seja ele), por meio da
regulamentação jurídica, exige, portanto, direcionamentos distintos: o primeiro
deve considerar a regulamentação do trabalho já existente, que no Brasil se
opera por meio do emprego; o segundo deve pautar-se em todas as outras
relações de trabalho que não são protegidas juridicamente pelo Direito do Trabalho ou por qualquer outro segmento do Direito; finalmente, o terceiro deve
considerar a dinâmica inerente às relações coletivas de trabalho.24
Adverte-se o leitor, todavia, que as propostas de regulamentação a
seguir formuladas, dada a variedade e complexidade do tema, não pretendem exauri-lo em termos de direito positivo do trabalho, mas sim estabelecer fundamentações teóricas capazes de consolidar a necessidade de configuração, no plano jurídico, de uma nova noção, que se faça universal, da
proteção ao trabalho.
4.1
A regulamentação jurídica das relações de emprego
O primeiro direcionamento, conforme ressaltado, destaca o emprego, por ser uma das formas mais amplas, abrangentes e democráticas de
concretização da dignidade do ser humano na sociedade capitalista. Não
bastasse, é também forma de se garantir subsistência com certa tranqüilidade para o trabalhador.
Note-se que a importância da vinculação do emprego ao valor da
dignidade humana acentua-se pelo fato de ser a dignidade fundamento e
valor-fonte para o Estado Democrático de Direito. Ora, a concepção contemporânea de dignidade humana envolve, sem dúvida, a dimensão social
do indivíduo, vez que é inviável supor-se a presença do respeito à dignidade em um ser humano radicalmente excluído de qualquer inserção
socioeconômica na sociedade.
A propósito, não se desconhece que o emprego pode ser regulado
com maior ou menor extensão, segundo cada experiência histórica vivenciada
na sociedade contemporânea.
Exemplo de regulamentação que talvez tenha se destacado como a
experiência mais avançada e democrática do Direito do Trabalho no Oci492
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dente é a co-gestão, sistema que limita o poder unilateral do empregador e
concede aos empregados o direito de participar das decisões empresariais
que lhes serão atribuídas.25
Para alguns doutrinadores, como Bihr, o movimento deflagrado deveria ser o da autogestão das unidades de produção pelos próprios trabalhadores, o que seria viável através do desenvolvimento de uma rede de
empresas alternativas baseadas no critério da finalidade social.26
No entender deste artigo, no marco do Estado Democrático de Direito, considerada a prevalência do sistema socioeconômico capitalista, a cogestão apresenta-se como alternativa preferencial para promover a participação dos empregados na gestão das empresas e dos estabelecimentos.
No Brasil, apesar da existência de extensa regulamentação dos direitos trabalhistas previstos tanto na Constituição Federal como na CLT e
em inúmeras legislações esparsas, o que se percebe, sobretudo a partir de
meados do século XX, é a tentativa de precarização e de flexibilização das
normas justrabalhistas e, via de conseqüência, do valor do trabalho formal
(que no Brasil se opera por meio do emprego) até então incorporado à
cultura e à consciência de seu povo.
Pretende-se, portanto, como forma de se privilegiar a regulamentação jurídica do emprego, estabelecer critérios e limites para as hipóteses
de flexibilização normativa já existentes.
A Constituição Federal de 1988 permite, via negociação coletiva,
que haja a redução salarial.27 Evidentemente que há limites para tal poder
negocial coletivo, sob pena de o próprio texto constitucional ter criado
possibilidades jurídicas de a sociedade civil desestruturar profundamente o
mesmo Direito do Trabalho que incentivou a consolidar.
Entre tais limites desponta o fixado, por exemplo, pela Lei n. 4.923,
de 1965, que estipula circunstâncias adversas específicas incidindo sobre a
empresa para viabilizar a redução salarial, além de estabelecer limites temporais estreitos à regra redutora.
Outro limite que se pode inferir da Constituição é a necessidade de a
negociação coletiva contrapor à diminuição salarial outras vantagens trabalhistas efetivas (como a garantia de emprego, ilustrativamente). É que a
Carta Magna inspira-se na idéia de negociação, mas não na idéia de renúncia a direitos trabalhistas.
Em relação à flexibilização da jornada de trabalho em turnos
ininterruptos de revezamento, entende-se que mesmo pela via coletiva so493
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mente é possível a ampliação da duração do trabalho em conformidade ao
padrão constitucional de 8 horas diárias e 44 horas semanais, além da preservação dos intervalos trabalhistas já regulamentados pela CLT.
A previsão de limites à flexibilização da jornada de trabalho em turnos ininterruptos de revezamento guarda absoluta correspondência com o
direito à preservação da saúde e da segurança do trabalhador no ambiente
de trabalho, ambos alçados à condição de indisponibilidade absoluta.28
Ainda como proposta de proteção à saúde e à segurança do empregado, no contexto da relação de emprego, de forma a eliminar ou ao menos reduzir os riscos de sua atividade profissional, prioriza-se a necessidade de se evitar o trabalho repetitivo e estritamente mecanizado.
Alternativa que também protegeria os empregados em relação à sua
saúde e segurança seria, conforme propõe Viana, a “proibição expressa
de horas extras, salvo nas hipóteses de grave necessidade da empresa,
previstas no artigo 61 da CLT”.29 (Grifo do autor)
A redução da jornada de trabalho também seria alternativa para possibilitar o fomento nas empresas de novas contratações empregatícias.
Ainda na seara do Direito Individual do Trabalho, Viana destaca a
importância da proteção ao emprego, que no Brasil opera por meio de
dispositivo de caráter transitório, assegurando ao empregado, na extinção
contratual sem justa causa, indenização de 40%, calculada sobre os depósitos mensais do FGTS.30
Na realidade, a extinção contratual por interesse empresarial deveria
fundamentar-se em motivo justificado, centrado na pessoa do empregado
(algum motivo pessoal do empregado, desde que não discriminatório e que
também seja diferente das hipóteses de justa causa), ou relacionado ao
empregador (motivos técnicos, estruturais e econômicos ligados à empresa), conforme preceitua a Convenção 158 da OIT. Portanto, a causa da
dispensa deveria ser motivada, de modo a proteger a figura do empregado,
mas sem inibir o empregador quanto ao uso de seu jus variandi .31
Finalmente, para que todos esses direitos sejam de fato efetivados, é necessário, como condição intrínseca à relação de emprego, que
os trabalhadores empregados estejam formalmente identificados, inserindo-se, com plenitude, no sistema trabalhista e previdenciário do País
(por meio da assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social –
CTPS – ou por outro documento de identificação profissional que a
legislação venha a criar).
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Será por meio da identificação profissional que o trabalhador oficialmente pertencerá à estrutura de produção econômica do País e da Seguridade
Social. Caso contrário, estará fadado a não receber direitos trabalhistas e
previdenciários, sob a justificativa de encontrar-se excluído do sistema oficial.
A problemática da falta de identificação profissional do trabalhador,
com seus efeitos perversos de exclusão social, pode ser aferida, no Brasil,
através dos percentuais veiculados no Censo Demográfico do ano de 2000,
pelo IBGE: no conjunto dos empregados do país, 36,8% não foram
registrados, sendo este percentual de 29,3% na região Sudeste e 49,1% na
região Nordeste. Quanto aos trabalhadores domésticos, 70,2% não tinham
a carteira de trabalho assinada. No contingente dos empregados sem registro, somente 9,4% eram contribuintes da Previdência Social.32
No Brasil, a identidade social dos empregados é formalizada pela
assinatura da CTPS, o que significa que o desrespeito a este preceito constitucional de indisponibilidade absoluta, além de colocar o trabalhador à
margem da lei, gera insegurança, fazendo-o sentir-se excluído da sociedade em que vive e labora.
Não revelar a relação de emprego em sua formalização legal expressa,
em outra medida, o arbítrio da força sobre o direito, o trabalho sem cidadania.
4.2
A regulamentação jurídica das relações de trabalho
A proteção formal ao trabalho, via relação de emprego, não é mais,
no mundo contemporâneo, a forma preponderante de inserção econômico-social do indivíduo trabalhador no mercado de trabalho.
Na realidade, conforme já visto, houve, em meados do século XX,
verdadeira reformulação das relações de trabalho e de suas contratações,
tanto nos países do eixo do capitalismo central como nos periféricos.
No Brasil, segundo dados do IBGE, 43,6% da população economicamente ativa (PEA) ocupa empregos formais, com assinatura da carteira
de trabalho; 27,5% labora sem carteira (seja em razão de fraude à lei e aos
direitos trabalhistas ou para violar a tributação incidente sobre a força de
trabalho, por exemplo) e 23,3% são identificados como trabalhadores autônomos. Portanto, a grande maioria dos trabalhadores (50,8%) encontrase fora da relação de emprego, o que implica um grau de informalidade no
mercado de trabalho maior que o da formalidade.33
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O mercado de trabalho revela, objetivamente, um cenário
socioeconômico excludente, desrespeitando, em grande medida, os
parâmetros da formalidade, cenário que por razões axiológicas e jurídicas
não pode ser ignorado pelo Direito do Trabalho.
Certo é que o emprego não é o único instrumento capaz de assegurar
função socioeconômica, bem como sentido de pertencimento e de inclusão
social. Outras relações de trabalho (o trabalho autônomo, por exemplo) também permitem a inclusão e participação dos trabalhadores na sociedade.34
Diante disso, entende-se que as relações de trabalho que formalmente não se encontram hoje regidas pelo Direito do Trabalho também
precisam ser reconhecidas como objeto de efetiva tutela jurídica, para que
o trabalhador que as exerça possa, por meio da proteção jurídica, alcançar
espaço de cidadania, com o efetivo exercício de seus direitos.
Um possível instrumento de proteção aos trabalhadores autônomos
(que, comumente, em função da natureza dos serviços prestados devem
lidar com a instabilidade e a insegurança do recebimento de contraprestação
pecuniária) seria a fixação legal de um valor mínimo-hora a ser pago, em
razão da oferta da força de trabalho.
A tese é a de que no valor mínimo-hora estejam englobadas todas as
vantagens que a ordem jurídica considere necessárias ao patamar do trabalho
digno (ilustrativamente, além da retribuição pecuniária pela própria hora de
disponibilidade, demais frações concernentes a outros direitos trabalhistas, tais
como adicional noturno, repouso semanal remunerado, férias com 1/3, etc.).
Para aumentar a efetividade de tal direito, seria importante inserir,
com as devidas adequações, o princípio da irredutibilidade salarial nos moldes
da relação de emprego, para também orientar as relações de trabalho lato
sensu. Ou seja, seria proibida a redução do valor mínimo-hora recebido
pelos trabalhadores, em qualquer hipótese e circunstância. Aliás, os princípios que compõem o núcleo basilar do Direito Individual do Trabalho devem ser incorporados, regra geral, às relações de trabalho lato sensu, consideradas as adaptações necessárias aos casos concretos.
Ou seja, é preciso estabelecer limites e perspectivas de ingerência
democrática no mundo do trabalho contemporâneo. É claro que tais limites
e perspectivas de ingerência normativa devem ser definidos com base no
núcleo cardeal de princípios individuais do Direito do Trabalho. Enfim, o
que se busca é resgatar a função teleológica trabalhista, pautada na melhoria
das condições de trabalho em favor do obreiro.
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Quanto ao trabalhador eventual que labora para público indefinido,
a proteção, para ser mais substantiva, dependerá de sua própria filiação
aos quadros da Previdência Social, em categoria própria, com a devida
contribuição.
Aliás, a baixa taxa de contribuição previdenciária dos trabalhadores
com atuação profissional própria é evidência da necessidade permanente
de políticas de inclusão social.
No Brasil, por exemplo, apenas 13,9% dos trabalhadores por conta
própria contribuíram para a Previdência Social no ano de 2002. No Nordeste, apenas 4,2% desses trabalhadores contribuíram pra a Previdência,
ao passo que no Sudeste este percentual foi de 22,1%.35
Esclareça-se, em conclusão, que, não obstante se possa inferir a
extensão de tal patamar de direitos trabalhistas da própria ordem constitucional brasileira (o art. 7º, caput, da Carta Magna se refere, afinal, a trabalhadores e não exatamente a empregados), considera-se recomendável a
elaboração de legislação específica, apta a produzir as adequações necessárias à ampla diversidade de situações concretas existentes no País.
4.3
A regulamentação jurídica das relações sindicais
4.3.1 Âmbito internacional
Resta claro que também os sindicatos devem contribuir para a proteção jurídica das relações trabalhistas. Para isso, é necessário que se faça
uma reformulação da estrutura sindical interna e internacional.
Considerando o cenário internacional, tem sido bastante claro que o
sindicalismo não conseguiu acompanhar, nos últimos 30 anos do século
XX e início do XXI, as mudanças no próprio sistema capitalista, em especial, decorrentes do processo de globalização.
Em contraponto à crescente e quase incontrolável influência das
corporações empresariais ao longo do globo terrestre, a par da enorme força demonstrada pelos organismos internacionais de gestão dos
interesses empresariais (por exemplo, Banco Mundial e FMI), o
sindicalismo não tem sido capaz de criar fórmulas e instituições que
elevem seu potencial de influência neste mesmo cenário de
globalização. Apenas isto já demonstra seus problemas estruturais e
conjunturais na atual fase histórica.
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Há várias críticas à estrutura e à operação dos sindicatos, mesmo
nos países desenvolvidos. Bihr, por exemplo, critica a estrutura vertical do
sindicalismo, que privilegia a dimensão da categoria profissional. Propõe,
em contrapartida, a criação de um sindicalismo com estruturas horizontais,
que privilegie a dimensão interprofissional, organizando ao mesmo tempo
"trabalhadores permanentes, instáveis e desempregados".36
Defende, ainda, a organização internacional do proletariado como uma
“[...] necessidade vital para a continuidade de sua luta de classe”.37
A transnacionalização do sindicato seria parte de um processo já
desenvolvido no mundo capitalista contemporâneo. Foi assim que ocorreu
com a transnacionalização do capital, mediante o fortalecimento das empresas multinacionais, como também pela estruturação e desenvolvimento
das instituições financeiras de gestão da economia mundial.38
O sindicato transnacional representaria, portanto, a tentativa de unificação da proteção jurídica ao trabalho no plano comunitário e internacional, evidenciando, em patamar mais amplo e significativo, os marcos de
solidariedade que justificaram sua criação séculos atrás na história do capitalismo e que hoje fundamentam o Estado Democrático de Direito.39
4.3.2 Âmbito nacional
No Brasil existem dois critérios jurídicos de agregação dos trabalhadores aos sindicatos.
O primeiro deles, denominado de sindicato de categoria diferenciada, reúne os trabalhadores em função da similitude do ofício ou profissão
realizada.40 É o caso, por exemplo, do professor, que, laborando no ensino
médio, fundamental, técnico ou superior, exerce a mesma profissão do colega, ou seja, o ensino (respeitadas, é claro, as diferenças pedagógicas e
metodológicas que cada professor define no transcorrer de suas aulas).41
O quadro de atividades e profissões em vigor, tipificadas como pertencentes ao grupo de categorias diferenciadas, está arrolado ao final da
CLT, conforme previsão do art. 577, destacando-se, além dos professores, os motoristas, aeronautas, aeroviários, jornalistas profissionais, músicos profissionais, entre outros.42
O segundo modelo de sindicato, previsto pelo ordenamento jurídico
brasileiro, é também o mais utilizado no País. Conhecido pela expressão
sindicato por categoria profissional,43 tem como ponto de agregação dos
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trabalhadores o vínculo com determinado tipo de empregador. Significa que,
neste caso, a similitude laboral ou de atividade que exerce o obreiro não é
tida como pressuposto para a associação. Ao inverso, o vínculo é estabelecido segundo a atividade econômica, similar ou conexa do empregador.44
É o caso do trabalhador terceirizado, cujo enquadramento sindical definese pela atividade empresarial da empresa prestadora dos serviços. Vincula-se o
terceirizado, pois, ao sindicato obreiro da empresa prestadora dos serviços.
Apesar dos critérios jurídicos de agregação dos trabalhadores aos
sindicatos já consolidados no País, defende-se a tese de que as negociações coletivas devem considerar toda a coletividade de trabalhadores existentes num cenário de produção, estejam eles inseridos em relações de trabalho precárias ou não. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores terceirizados,
que deveriam ser enquadrados na categoria dos empregados pertencentes
à empresa tomadora de serviços.45
Ainda quanto à temática da regulamentação jurídica das relações sindicais,
é preciso destacar o valor do princípio da adequação setorial negociada como
verdadeira alternativa de combate à flexibilização trabalhista na seara coletiva.
Delgado, discorrendo sobre aludido princípio, conceitua-o como
verdadeiro instrumento de controle civilizatório dos direitos trabalhistas,
vez que proíbe que as normas autônomas coletivas implementem padrão
de direitos inferior àqueles previstos na legislação heterônoma (o que implicaria transação lesiva aos empregados) e que transacionem parcelas
imantadas de indisponibilidade absoluta. Ou seja, apenas parcelas de
indisponibilidade relativa poderão ser transacionadas por instrumento coletivo e, mesmo assim, desde que o resultado seja mais favorável ao segmento coletivo de empregados.46
Resta claro, enfim, que a ordem jurídica não pode recusar sua interferência civilizatória no contexto da dinâmica socioeconômica inerente ao
trabalho em sociedade. Desse modo, a regulamentação das relações de
trabalho que possam dignificar o homem deve ser exigência não somente
jurídica, como também social e democrática nos estados contemporâneos.
5
CONCLUSÃO
É imprescindível reconhecer a importância do trabalho digno e a necessidade de que seu ramo jurídico norteador – o Direito do Trabalho –
renove-se em seu paradigma, no sentido de incluir e de alargar seu manto
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de proteção, considerada a diversidade típica das relações de trabalho
inseridas no sistema contemporâneo.
Aceitar que a estrutura tradicional do Direito do Trabalho pode ser
renovada (apesar da preservação de toda a proteção jurídica à relação de
emprego) reflete sensibilidade e respeito à dignidade do homem, valor capaz de expressar, com exatidão, o sentido do trabalho.
A questão, portanto, é a de se saber qual deve ser hoje o compromisso do Direito do Trabalho com a dignidade humana, a de se saber qual
deve ser a medida de sua atuação.
Entende-se que o Direito do Trabalho precisa transgredir, para possibilitar a consolidação da essência humana pelo trabalho digno, permitindo
que o trabalhador compreenda amplamente qual é o sentido de ser parte e
de ter direitos na sociedade em que vive.
A existência de um patamar mínimo de direitos trabalhistas é condição para a viabilidade do valor da dignidade no trabalho e para a afirmação
social do sujeito que labora. É por isso que as propostas de
desregulamentação e de flexibilização trabalhista, além de romperem com
a diretriz tuitiva do Direito do Trabalho, também fragilizam o sentido de
dignidade que deve ser inerente a qualquer tipo de prestação de serviços,
eis que valor-fonte para qualquer Estado democrático de direito.
Como se procurou demonstrar, o Direito do Trabalho é importante
instrumento a propor o equilíbrio das questões do trabalho. Isso não significa que o intérprete deva reconhecê-lo em sua integralidade de forma
absoluta e imutável, sem ao menos propor mudanças que sejam mais
favoráveis ao homem trabalhador.
A conscientização social implica, pois, possibilidades de discussão e
de alteração da estrutura jurídica até então formulada. De toda forma, entende-se que qualquer mudança operada na legislação trabalhista, na
contemporaneidade do Direito, deverá pautar-se numa visão humanitária e
universal do Direito do Trabalho.
5
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