Gnash, um toro plano!
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Gnash, um toro plano!
Gnash, um toro plano! Vincent Borrelli Professor Universitário na Université Lyon I Sessenta anos depois, as descobertas de um génio gabarola, finalmente, perante nós… Provocando um gabarola “Nash, se és assim tão bom, porque não resolves o problema de encontrar as aplicações isométricas das variedades riemannianas?” [1] Quem se atreve a desafiar o futuro Prémio Nobel da Economia [2] é, não só e apenas, do que o seu colega de gabinete, Warren Ambrose. Estamos em 1953 num laboratório de Matemática no MIT e Ambrose, exasperado pelas constantes fúrias de John Nash – a quem apelidou de ‘Gnash’ [3] – está determinado a ensinar uma lição de modéstia a este jovem e impetuoso matemático. Pondo de lado a terminologia técnica, o problema que Warren lhe lança tem uma reputação que desencoraja o mais bravo. Resistiu a ataques dos mais proeminentes matemáticos desde a sua formulação, ou seja, mais ou menos, desde que o grande Riemann, na sua famosa dissertação, em 1854, mudou completamente a imagem da geometria, criando o que agora é chamada de Geometria Riemanniana. Mas Nash, inseguro, gostaria de acreditar que este problema está ao nível das suas ambições. Para se convencer a si próprio anuncia que o resolveu, observa o efeito desta declaração nos seus colegas matemáticos, e começa a trabalhar. O ecrã-‐prisão Um único exemplo é suficiente para mostrar o grau de dificuldade do desafio lançado por Ambrose a Nash: o toro quadrado plano! Quem é entusiasta de jogos de computador já deve ter notado que, em alguns deles, as personagens com liberdade de movimento, continuam Uma visão bidimensional de um toro quadrado plano. aprisionadas no ecrã. Se saem pelo topo do ecrã, reaparecem pela base do ecrã. Da mesma forma, se saem pela direita, reaparecem pela esquerda, etc. Mas então, qual é a forma desta estranha gaiola que emprisiona personagens de computador? Para entender a ideia, temos que, concretamente, torcer o ecrã do computador e fazer uma junção, necessária para que se obtenha o movimento contínuo, na terceira dimensão. A base deve juntar-‐se ao topo e a esquerda à direita. À custa O mergulho de um toro quadrado plano. O resultado no espaço é um toro. desta grande distorção do quadrado, que representa o ecrã do computador, a arquitetura da forma emerge: é um donut! As personagens do computador, forçadas a movimentarem-‐se nesta superfície, não têm escapatória. Em Matemática, o ecrã de computador, quando emprisiona assim as suas personagens, é chamado de toro quadrado plano, superfície de um donut, que é o toro quadrado plano no espaço tridimensional e é, cientificamente chamado de toro de revolução. Esta superfície representa o mundo que as personagens do computador habitam. É possível perceber imediatamente a estrutura invisível desta gaiola, contudo sofre de uma grande falha que a separa do mundo plano do ecrã do computador, isto é, distorce as distâncias, os comprimentos. Por exemplo, as linhas horizontais, no toro quadrado plano, têm todas o mesmo comprimento, mas as suas correspondentes latitudes no toro 3D têm comprimentos diferentes. O toro não nos dá uma representação verdadeira do toro quadrado plano, porque não mantem as distâncias. No toro, as distâncias verticais e horizontais não são mantidas. Podemos corrigir este defeito, isto é, encontrar uma superfície que representa o toro quadrado plano sem que as distâncias, os comprimentos, sejam alterados? Parece ser extremamente difícil senão impossível… contudo esta questão é uma variação do desafio de Ambrose. Considerando que o toro quadrado plano é um exemplo do que os especialistas chamam de variedade Riemanniana, e que se chama mergulho isométrico a uma aplicação que respeita as distâncias, podemos formular uma versão, mais simples mas não menos difícil, do desafio de Ambrose: ‘Nash, se és assim tão bom, então tenta representar um toro quadrado plano sem distorcer os seus comprimentos!’ Os feitos de um impostor genial E Nash era…. ‘tão bom’ ou mais do que isso, era extremamente brilhante! Imaginando uma abordagem e técnicas completamente novas, não só resolve, dali a alguns anos, o problema dos mergulhos isométricos como também destrói as certezas estabelecidas pelos matemáticos sobre o assunto. Mikhail Gromov, ele próprio considerado um dos grandes matemáticos contemporâneos, escreveu sobre Nash, em 1994: ‘Muitos de nós têm a John Nash e Nicolaas Kuiper habilidade de desenvolver ideias. Seguimos por caminhos definidos por outros. Mas quase nenhum de nós consegue produzir algo semelhante ao que Nash produziu […] Mudou completamente a perspetiva […] [4]’ O que Nash descobre é incrível: embora a intuição sugira o contrário, mergulhos isométricos não são raros, são incrivelmente numerosos. Se não os conseguimos ver, se sistematicamente nos escapam despercebidos quando estão à nossa frente, é simplesmente porque a nossa intuição é muito ponderada, muito civilizada para imaginar a sua presença. É este o caso do toro quadrado plano. Nicolaas Kuiper mostrou, na sequência do trabalho de Nash, que é possível representa-‐ lo numa infinidade de maneiras diferentes sem distorcer os comprimentos! Mas como já dito, essas representações não são nem ‘ponderadas’, nem ‘civilizadas’. As suas propriedades geométricas impedem-‐nas de terem formas suaves e macias como a superfície do donut que vimos anteriormente. De facto, até a representação destas formas é um desafio à imaginação. Matemáticos mostraram que estas formas devem ser simultaneamente enrugadas e macias, um diabólico paradoxo no qual a mente se perde irremediavelmente. Outra mente excecional Uma forma eficaz de entender o aspeto paradoxal destas representações seria, simplesmente, vê-‐las, usando, por exemplo, um computador caso os cálculos provassem ser demasiado complexos ou morosos. Alias, se Nash e Kuiper conseguiram revelar a presença de uma verdadeira armada de mergulhos isométricos, as suas demonstrações matemáticas não permitem uma fácil manipulação destes objetos, e logo não estão prontos a serem mostrados. Estamos, portanto, perante uma situação frustrante: sabemos que há uma infinidade de representações que respeitam os comprimentos do toro quadrado plano mas não conseguimos desenhar uma! Uma mente brilhante [5] vai promover um avanço no estado do conhecimento: Mikhail Gromov. Nos anos 70-‐80 este matemático inveta uma tecnica, a integração convexa, que sistematiza e generaliza drasticamente o processo de construção dos mergulhos isométricos. Além de ser uma generalização, esta tecnica mostrou uma nova perspectiva Mikhail Gromov sobre o trabalho de Nash e Kuiper tornando-‐os imediatamente compreendidos. Mostrou, de facto, que um único motor conduzia toda a maquinaria que produz os mergulhos isométricos. A construção não se tornou mais fácil, mas a partir de agora, seria possível compreendê-‐ la globalmente, entendê-‐la mais profundamente. A barreira psicológica foi levantada: era agora possível dominar a intidante máquina de Nash e Kuiper. Entretanto, verificou-‐se que a ligeira mudança feita nessa maquinaria produziu outras superficies famosas com propriedades surpreendentes, por exemplo, a eversão de uma esfera descoberta por Stephen Smale em 1958. Em resumo, a tecnica da integração convexa provou ser brilhante e unificadora. Ver para crer! De entre muitas das vantagens deste método está uma que passou despercebida: as suas caracteristicas algoritmicas. Esta vantagem abriu caminho à visualisação dos mergulhos isométricos pois permitiu a aplicação da integração convexa. Com três colegas [6], decidimos concretizar esta aplicação para obtermos as primeiras imagens do mergulho isométrico do toro quadrado plano e, claro, entender a enigmática geometria macia e rugosa. O toro antes e depois das corrugações O programa que implementamos gera uma sequência de mergulhos do toro quadrado plano, que passo a passo, e no seu limite, se aproxima de um mergulho isométrico. Esta sequência começa com um pequeno mergulho que é, por assim dizer, um mergulho do toro quadrado plano A acumulação de corrugações no espaço tridimensional que encolhe todos os comprimentos. Este mergulho é depois deformado por uma serie infinita de enrugamentos. Estas ondas, chamadas corrugações, têm o efeito de gradualmente deformarem os comprimentos em diferentes direções até se chegar a uma aproximação da isometria. As corrugações saõ feitas sucessivamente com amplitudes cada vez mais pequenas e frequencias cada vez mais altas, sendo que todas são calculadas para reduzir continuamente a diferença isometrica. Este processo continuado indifinidamente, constroi, no limite, um mergulho isométrico de um toro quadrado plano. Claro, que o programa só consegue produzir um número finito de passos. Paramos depois de quatro passos. À quinta onda de corrugações, a amplitude de oscilação era tão pequena que se tornou invisível a olho nu. Desta forma a imagem abaixo, obtida depois de quatro etapas, representa na realidade um mergulho isométrico do toro quadrado plano. Mostra como a superficie se torna enrugada pela acumulação de corrugações e ainda assim mantém uma aparência macia graças ao rápido decrescimento das amplitudes dessas corrugações. Um m ergulho isométrico de um toro quadrado plano (duas vistas, de dentro e de fora) O aspeto geral faz lembrar um fractal, ou seja um objeto infinitamente fraturado independentemente da escala a que se observa, com a diferença de que neste caso as fraturas são subsituidas por rugas. Por onde quer que se observe, o mergulho isométrico parece ser infinitamete ondulado e não se observam quebras ou ribas. Decidimos chamar a tal objeto geometrico, meio fractal meio superficie macia e comum, de fractal C1. O simbolo C1 é uma notação matemática que indica o grau de maciez do mergulho isometrico. Informalmente, há a tentação de criar umo novo paradoxo – desta vez não tão diabolico, porque resolve a a aparente contardição entre enrugado e macio – um fractal macio. Como o mergulho é isométrico, significa que, em particular, estas curvas correspondentes a linhas verticais e horizontais do toro quadrado plano têm o mesmo comprimento. A figura abaixo mostra como um meridiano e uma latitude do toro foram corrugados para atingirem o mesmo comprimento: o meridiano é muito mais curto do Imagem de um mergulho isométrico de uma linha horizontal, vertical e de dois círculos com o m esmo raio. que a latitude, e foi sugeito a corrugações de maior amplitude. Da mesma forma, os circulos vermelhos e azuis foram transformados em curvas corrugadas de igual comprimento. E agora? O método usado para construir um mergulho isometrico de um toro quadrado plano produz muitos outros. Simplesmente, deforma um toro inicial, e depois Douvilleiceras mammillatum: duas corrugações sobrepostas? aplica infinitamente o processo de corregações. O método de integração convexa produz então um novo merulho isométrico do toro quadrado plano cuja aparência geral lembra (vagamente!) o toro inicial. Na realidade, o método de construção usado é muito flexivel e podemos pensar que num futuro proximo, aplicando-‐o para visualizar outras superficies paradoxais, como por exemplo, para representar as chamadas esferas de NAsh-‐Kuiper. Estas superficies obtêm-‐se deformando uma esfera de raio 1 isometricamente – isto é, sem mudar os comprimentos das curvas desenhadas na esfera – e que estão noutras esferas de menor raio. As esferas de Nash-‐Kuiper nunca foram vistas, e este algoritmo poderia ser adaptado a este caso especial. Há outros objetos que aguardam visualização, como por exemplo os megulhos isométricos do espaço hiperbólico ou de outras superficies de curvatura negativa constante [7]. Estas visualizações irão, certamente, mostrar uma superficie fractal macia porque esta geometria é naturalmente gerada por integração convexa. Uma questão interessante é a ocorrência destas estruturas para além da matemática e no mundo natural como em [8]. Apesar da reputação de ser tenazmente abstrata, a teoria da integração convexa oferece uma forma exequível de, numericamente, resolver um número de problemas matemáticos. Não há dúvida de que este método inspirará outras aplicações. Para os nossos olhos apenas Para terminar este artigo, aqui estão 3 imagens excluisvas do mergulho isométrico de um toro quadrado plano… em honra a John Nash e Nicolaas Kuiper, claro, que se atreveram a imaginar estes objetos à quase 60 anos atrás. Clicar nas imagens para aumentar Uma versão HD das duas últimas imagens está disponível aqui e aqui. PS: Obrigado a FlavienK, Jacques Lafontaine, mjchopperboy e Nguyen Dinh pela revisão e comentários construtivos. Notas [1] Fonte: Sylvia Nasar, A Beautiful Mind, Calmann-‐Lévy, 2001. [2] O prémio do Banco da Suécia em ciências económicas em memória da Alfred Novel para os puristas… [3] O gnash significa triturar em ingles. [4] fonte: Sylvia Nasar, Ibid. [5] Referencia ao filme com o mesmo nome de Ron Howard, que apresenta uma biografia (aligeirada) de John Nash. [6] Francis Lazarus, Said Jabrane e Boris Thibert do projeto Hevea. [7] Ou seja, as superfícies definidas pela geometria hiperbólica. [8] Obrigado ao meu irmão Lawrence por me ter mostrado a Douvilleiceras mammillatum, um tipo de amonite que mostra uma corrugação dupla. Créditos das Imagens Imagem de título -‐ V. Borrelli, S. Jabrane F. Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert Uma visão bidimensional de um toro quadrado plano -‐ Vincent Borrelli O mergulho de um toro quadrado plano. O resultado no espaço é um toro -‐ Vincent Borrelli No toro, as distâncias verticais e horizontais não são mantidas -‐ Vincent Borrelli Mikhail Gromov -‐ Oberwolfach Photo Collection John Nash and Nicolaas Kuiper -‐ Paul Halmos and Oberwolfach Photo Collection img_8008 -‐ V. Borrelli, S. Jabrane, F.Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert O toro antes e depois das corrugações -‐ V. Borrelli, S. Jabrane, F.Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert Douvilleiceras mammillatum: duas corrugações sobrepostas? – Coll. M. e M. Lavault, foto A. Dumur. Um mergulho isométrico de um toro quadrado plano (duas vistas, de dentro e de fora) -‐ V. Borrelli, S. Jabrane F. Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert Acumulação de corrugações -‐ Borrelli, S. Jabrane F. Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert img_8009 -‐ V. Borrelli, S. Jabrane, F. Lazarus, D.Rohmer, B. Thibert img_8011 -‐ V. Borrelli, S. Jabrane, F.Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert img_8030 -‐ V. Borrelli, S. Jabrane, F. Lazarus, D. Rohmer, B. Thibert