A Magia do Natal
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A Magia do Natal
Sumário Ano L - N.º 590 - Dezembro de 2009 Mensagem de Natal do CEME 5 PROPRIEDADE DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO Direcção, Redacção e Administração Largo de S. Sebastião da Pedreira 1069-020 Lisboa Telef: 213 567 700 Fax Civil: 213 567 791 Militar: 414 091 E-mail: [email protected] E-mail: [email protected] E-mail − Intranet: Jornal do Exército Home page: www.exercito.pt DIRECÇÃO Director Coronel de Infantaria José Custódio Madaleno Geraldo Secretária Ass Técnica Teresa Felicíssimo Soldado Condutor RC Pedro Ferreira REDACÇÃO Chefe Tenente-Coronel J. Pinto Bessa Redactores Tenente RC Rico dos Santos Alferes RC Nelson Cavaco 1º Sargento Anjos das Neves Mauro Matias Operadoras Informáticas Ass Técnica Elisa Pio Ass Técnica Guiomar Brito O uso da força nas operações de peacekeeping das Nações Unidas 24 Timor-Leste como se reforma um sector de segurança? 32 Santa Bárbara Padroeira dos Artilheiros Cinquentenário 40 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO Chefe Major Augusto Correia Operadores Informáticos Ass Técnica Tânia Espírito Santo 1.º Cabo Gonçalo Silva Biblioteca Ass Técnica Joana Moita SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS Operador Informático Sargento-Ajudante João Belém Distribuição e Publicidade Sargento-Ajudante Luís Silva Ass Operacional Filomena Remédios SECRETARIA Sargento-Chefe Costa e Silva COLABORAÇÃO FOTOGRÁFICA Lusa - Agência de Notícias de Portugal, SA Centro de Audiovisuais do Exército RCRPP/GabCEME EXECUÇÃO GRÁFICA Europress, Lda Rua João Saraiva, 10-A − 1700-249 Lisboa Telef 218 444 340 − Fax 218 492 061 [email protected] Tiragem − 6 000 exemplares Depósito Legal n.º 1465/82 ISSN 0871/8598 Suplemento VIII – D. Afonso V e a Batalha de Toro Poema de Natal 4 Cibersegurança Uma realidade virtual? 16 Secções Figuras e Factos – 8 a 15 Passatempos de outros tempos – 46 Capa: Ministro da Defesa Nacional visita o Exército – Foto do Alferes Nelson Cavaco Contracapa: Anunciação de Jorge Herold, 1930. Colecção particular Revisão de texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do Exército Português ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60 O Jornal do Exército formula a todos os seus leitores votos de Boas Festas e Feliz Ano Novo A Magia do Natal Na breve escola da vida Festejamos o Natal A mais bela que foi vivida Por Jesus, Homem, imortal. Jesus, O Filho de Deus, Jesus, Filho de Maria, Sémen que desceu dos Céus Na Pomba Branca que luzia. Ilumina o Mundo Inteiro Este Natal que é Cristo. Filho de José, carpinteiro, E de um Deus sempre visto. Porque está em toda a parte É de toda a Humanidade Basta crer, com magia e arte, Natal é eternidade! O Director do JE José Custódio Madaleno Geraldo Coronel de Infantaria 4 Mensagem de Natal do General CEME Militares e Funcionários Civis do Exército. A proxima-se o fim de um ano de intenso trabalho de todos os que têm vindo a cumprir, com esforço, lealdade e determinação, a sua missão no âmbito das diversas áreas funcionais, contribuindo assim para a afirmação do Exército que se assume na actualidade, como uma organização flexível, moderna, internacional e com padrões de funcionamento extremamente exigentes e elevados, que se quer no caminho da excelência. O Comandante do Exército reconhece o significado e o contributo do trabalho desenvolvido durante o ano, no âmbito das actividades que competem a cada Órgão Central deAdministração e Direcção, na transformação do Exército, processo contínuo de melhoria e adaptação, exigindo uma permanente análise e optimização de procedimentos. De igual forma se reconhece o contributo de todos os militares em missões fora de Portugal, nas Forças Nacionais Destacadas, nos Quartéis-Generais Multinacionais e em missões de observação, de ligação e em acções de cooperação técnico-militar, pelo seu profissionalismo, dedicação e patriotismo, com que têm representado o Exército e dignificado o País. Preparamo-nos agora para viver a quadra Natalícia que tradicionalmente se caracteriza pelos valores da fraternidade, da amizade e da solidariedade. São valores que, a par de outros como a camaradagem, procuramos desenvolver em permanência, porque fazem parte da nossa cultura institucional. Sendo por excelência uma festa da Família, é uma oportunidade de fortalecer esses laços que, por força da disponibilidade com que nos entregamos às nossas missões, não raras vezes, saem prejudicados no apoio e no tempo que gostaríamos de lhes dedicar, em especial os homens e mulheres do Exército que, em vários teatros, em operações de apoio à paz, nas forças nacionais destacadas, nos quartéis-generais e nas missões de observação cumprem de forma dedicada a sua missão, longe do convívio das suas famílias. Saúdo todos os militares e funcionários civis, que com enorme espírito de entrega e profissionalismo, trabalham quotidianamente nas nossas unidades, estabelecimentos e órgãos. Este esforço anónimo tem-se constituído como a base do prestígio da instituição que servimos. Relevo ainda a Família Militar que constitui um importante apoio de rectaguarda de forma incondicional e silenciosa e um indiscutível factor de coesão moral e de disponibilidade dos nossos militares. Esta quadra propicia igualmente oportunidade para uma reflexão sobre o passado, sobre as nossas acções e comportamentos, mas também nos impele a projectar o futuro com determinação. Constituem desafios no curto prazo, o projecto de reestruturação das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento e da Manutenção Militar; a dinamização das estruturas de Recrutamento que permitam atrair e ampliar o universo de Voluntários e Contratados, designadamente em Praças, assim como estimular a sua permanência nas fileiras através da aprovação dos diplomas que concretizem o Regime de Contrato Especial, para os militares RV/RC que favoreçam o enquadramento e a operacionalidade do Sistema de Forças Nacional mas igualmente propiciem um desenvolvimento equilibrado entre QP/RV-RC, e permita uma normal progressão de carreira dos Oficiais e Sargentos do Quadro Permanente. É igualmente necessária a publicação do diploma dos Suplementos Remuneratórios e uma reavaliação do Sistema Remuneratório, que valorize, decididamente, a Condição Militar e as Carreiras de Oficial e Sargento e o apoio social que é devido aos militares e à Família Militar, designadamente através da efectiva acção do IASFA neste domínio. Como elemento basilar do Sistema de Forças Nacional, destacam-se também os projectos estruturantes de Reequipamento, que lhe conferem coerência e os que materializam os requisitos operacionais urgentes para as Forças Nacionais Destacadas. Sabendo que nos serão colocados desafios e oportunidades, continuamos firmemente convictos da inequívoca importância da afirmação do Exército, dos seus valores e da grandeza da sua missão e por isso o Comandante do Exército, manifesta o seu optimismo e a sua confiança na determinação, inteligência, dinamismo, ambição e motivação de todos quantos o servem, garantes de que a missão continuará a ser bem cumprida em todas as circunstâncias, para a dignificação e o prestígio do Exército e de Portugal. Formulo votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo para todos os Oficiais, Sargentos, Praças, Civis na situação de activo, reserva e reforma e também para toda a Família Militar e que o ano de 2010 seja um Bom Ano para o Exército. O Chefe do Estado-Maior do Exército José Luís Pinto Ramalho General 5 FIGURAS e FACTOS Ministro da Defesa Nacional visita Exército Português principais exercícios à implementação do ciclo operacional Forças Nacionais Destacadas, envolvendo um vasto conjunto de desafios e projectos estruturantes para o Exército. Seguiu-se uma visita à sala de operações, onde se assistiu a uma video-conferência, com a participação das Brigadas do Exército (Brigada de Reacção Rápida, Brigada de Intervenção e Brigada Mecanizada) e das Forças Nacionais Destacadas (Líbano, Kosovo e Afeganistão). O Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor Doutor Augusto Santos Silva, acompanhado pelo Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Doutor Marcos Perestrello, visitou o Exército Português, no dia 20 de Novembro. A visita decorreu no Comando Operacional das Forças Terrestres, em Oeiras, onde o MDN recebeu as honras militares da Guarda de Polícia e das Forças em Parada. Seguidamente, foi efectuado um briefing do Exército Português, onde foi apresentado um enquadramento deste Ramo, nomeadamente, da Missão do Exército, das suas conflitualidades, dos novos paradigmas, da visão para o Exército e do nível de ambição, optimização e reequipamento das Força Operacionais (FOPE). Foi ainda feita referência à estrutura orgânica do Exército, às suas Brigadas, às forças de apoio geral e às suas zonas militares, ao ponto de situação dos recursos humanos e financeiros, à actividade operacional, desde os 8 A visita foi concluída com a assinatura, do Livro de Honra pelo MDN. FIGURAS e FACTOS Dr. Marcos da Cunha e Lorenha Perestrello de Vasconcellos − Secretário da Defesa Nacional N http://www.mdn.gov.pt/mdn/pt/mdn/sednam/ asceu em Lisboa, em 1971. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, (1994), é advogado de profissão e foi, até recentemente, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa.Assumiu funções de adjunto do Ministro dos Assuntos Parlamentares, em 1995, e de chefe do gabinete do Secretário de Estado da Administração Interna (1999). Em 1998, fez o curso deAuditores de Defesa Nacional. Em 2001, funda e assume a direcção, durante seis anos, do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de SegurosAutomóveis. Em 2004, é eleito membro do Secretariado Nacional do PS e, em 2005, foi eleito deputado da Assembleia da República e vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS. Integrou a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e é eleito membro da Assembleia Parlamentar da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. Assume a vice-presidência da Câmara Municipal de Lisboa, em 2007, sendo vereador da Câmara Municipal de Oeiras (desde 2009). Visita do Comandante do Exército da República de Moçambique ao Exército Português D ecorreu no período de 22 a 27 de Novembro, a visita do Comandante do Exército da República de Moçambique, MajorGeneral Graça Tomás Chongo, a Portugal. O Chefe do Estado-Maior do Exército, General Pinto Ramalho, recebeu-o com honras militares, no Pátio dos Canhões do Estado-Maior, no dia 23 de Novembro, onde mais tarde assistiu a uma exposição sobre o Exército Português. Do restante programa, destacam-se as seguintes visitas: Comando das Forças Terrestres, Brigada de Reacção Rápida, Escola de Tropas Páraquedistas, Escola Prática de Infantaria, Instituto Geográfico do Exército, Academia Militar. Novo Director de Justiça e Disciplina E m 20 de Julho, iniciou funções de Director de Justiça e Disciplina do Comando do Pessoal, no Porto, o Major-General José António Henriques Dinis, nomeado por despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho. O Major-General Henriques Dinis nasceu em 1954, no concelho de Oliveira do Hospital, foi incorporado na Academia Militar em 1973 e promovido ao actual posto em 25 de Novembro de 2008. Anteriormente, exercia funções de Inspector-Adjunto do Inspector-Geral do Exército. 9 FIGURAS e FACTOS Dia Litúrgico de São Nuno de Santa Maria R ealizou-se, no passado dia 6 de Novembro, na Igreja do Santo Condestável, em Lisboa, a Missa Solene do dia de S. Nuno de Santa Maria. A cerimónia foi presidida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo, contando com a presença de várias ilustres entidades civis e militares, nomeadamente o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, General LuísVasco Valença Pinto e o Chefe do EstadoMaior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho. Foi a primeira vez que foi celebrada a festa litúrgica de S. Nuno de Santa Maria, após a canonização por Bento XVI no passado dia 26 de Abril, no Vaticano. Nascido a 24 de Junho de 1360, o novo santo foi um dos portugueses que mais profundamente marcaram a história do nosso país. Depois da sua carreira militar, pediu a admissão, como irmão leigo, na Ordem do Carmo. Tinha grande devoção à Virgem Maria e mostrou sempre grande compaixão para com os pobres. Morreu no Domingo da Ressurreição do ano de 1431 (1 deAbril). Viveu e morreu nesta cidade, amou Portugal, viveu profundamente essa radicalidade pascal. Foi santo porque foi um cristão fiel. Com a sua intercessão e com o seu exemplo, desafia-nos a percorrermos, também nós, o caminho da santidade na fidelidade. (…) Em Nuno Alvares Pereira, numa longa vida, variada nas responsabilidades e nas missões a que foi chamado, sempre se evidenciaram a profundidade da sua fé e a grandeza da caridade, que levou ao extremo do apagamento humano para que só ficasse o amor. Ele continua a dizer-nos que é possível viver com fé todas as realidades humanas, sociais, políticas, militares, familiares, religiosas; continua a dizer-nos que é possível ser santo em todas elas, que se pode viver toda a vida com Deus, que nos vai sugerindo, em cada momento e em cada circunstância, a maneira de acreditar e de amar. D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, Homilia (Igreja de Santo Condestável, 10 de Maio de 2009). Lançamento do livro “A Ascensão da China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?” R ealizou-se no dia 3 de Novembro, na livraria Almedina, em Lisboa, o lançamento do livro “A Ascensão da China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”, da autoria do Coronel Tiago Vasconcelos. O livro explica a lógica da ascensão da China como Potência Mundial, evidenciando factores Geoestratégicos e Político-Culturais, entre outros, procurando responder se a China terá uma acomodação pacífica ou conflituosa quando se afirmar como potência mundial. A obra foi apresentada pelo Tenente-General Abel Cabral Couto e contou com a presença do Professor Doutor Narana Coissoró. O lançamento contou com a presença de diversas e ilustres personalidades militares e civis. TABELA DE PREÇOS PARA 2009 PREÇO DE CAPA • 2,00 ASSINATURA ANUAL (11 números) VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores • 20.00 VIA AÉREA - Países europeus • 45,00; Restantes Países • 65,00 NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 • 4,00; 1970 a 1979 • 4,00; 1980 a 1989 • 3,00; 1990 a 2001 • 2,50; 2002 a 2008 • 2,00 Os preços incluem IVA à taxa de 5% N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 • 4,21; 3000/8000 • 5,79; Açores e Madeira • 6,56. 10 FIGURAS e FACTOS Comemorações do 91.º Aniversário do Armistício e do 86.º Aniversário da Liga dos Combatentes O 91.º aniversário doArmistício da 1.ª Guerra Mundial, o 86.º aniversário da Liga dos Combatentes e o 31.º aniversário da fim da Guerra do Ultramar foram celebrados no dia 14 de Novembro, junto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, no Forte do Bom Sucesso, em Belém. O Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor Doutor Augusto Santos Silva, presidiu à cerimónia e recebeu as honras militares da força composta pelos três ramos das Forças Armadas portuguesas: Exército, Força Aérea e Marinha. As comemorações iniciaram-se com as alocuções proferidas pelo Presidente da Liga dos Combatentes, Tenente-General Chito Rodrigues, pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e pelo Ministro da Defesa Nacional. Na tribuna encontravam-se diversas entidades militares e civis, entre as quais o Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Dr. Marcos Perestrello, o Chefe do Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, o Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Fernando José Ribeiro de Melo Gomes e o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, General Luís Evangelista Esteves de Araújo. Assistiu-se à condecoração de membros da Liga dos Combatentes e à condecoração, a título póstumo, do MajorGeneral Carlos Manuel Costa Lopes Camilo, com a Grã-Cruz da Medalha de Mérito Militar. Foi, de seguida, descerrada uma placa pelo MDN e pelo Presidente da Liga dos Combatentes, com os nomes de 53 combatentes portugueses mortos em combate na guerra da Guiné. Os presentes assistiram, também, à cerimónia que assinalou a transladação dos restos mortais de três soldados mortos na Guiné-Bissau e à evocação doArmistício e aniversário da Liga dos Combatentes, com deposição de coroas de flores no monumento supracitado. Seguiu-se uma homenagem aos mortos em combate pelo Bispo das ForçasArmadas, D. Januário Torgal Mendes Ferreira, na presença dos restos mortais dos soldados transladados da Guiné-Bissau. No final, escutou-se o Hino da Liga dos Combatentes, seguindo-se o desfile das Forças em Parada ao som da Banda da Força Aérea. Terminada a cerimónia, houve uma visita ao Forte do Bom Sucesso, onde estavam patentes exposições estáticas alusivas às efemérides e aos 100 anos da aviação em Portugal. Visita do Comandante das Forças Armadas de S. Tomé e Príncipe ao Exército Português O Estado-Maior do Exército (EME) recebeu, em 17 de Novembro, a visita do Tenente-Coronel deArtilharia, Idalécio Custódio Pachire, Comandante das Forças Armadas de S. Tomé e Príncipe. O Comandante das ForçasArmadas de São Tomé e Príncipe iniciou, dia 16 de Novembro, uma visita oficial a Portugal, a convite do Chefe do Estado-Maior-General das ForçasArmadas (CEMGFA), General LuísVasco Valença Pinto. No primeiro dia da visita manteve um encontro privado com o General CEMGFA, onde foram abordados diversos temas, com destaque para a cooperação bilateral na área militar e a cooperação no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Nos dias que se seguiram, o Tenente-Coronel Pachire cumpriu um programa de visitas a diversas unidades, dos três ramos das Forças Armadas, tendo sido, o Exército o primeiro ramo a ser visitado. No dia 17, foi recebido pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, onde foi feita uma apresentação sobre o Exército, a sua organização e estrutura, visitando posteriormente o Instituto Militar dos Pupilos do Exército. Esta parte da visita prolongou-se por mais dois dias, nos quais o CEMGFA de S. Tomé e Príncipe teve a oportunidade de visitar o Centro de Simulação do Exército, o Depósito Geral de Material do Exército e a Brigada Mecanizada. 11 FIGURAS e FACTOS Chegada da OMLT KCD 01/02 ao TO do Afeganistão N o dia 28 de Setembro partiu para o Teatro de Operações (TO) do Afeganistão a 2.ª Operational Mentor and Liaison Team (OMLT), que vai apoiar a Kabul Capital Division (KCD) do Afghan National Army (ANA), tendo chegado a Cabul no dia 30 de Setembro. A força é comandada pelo Coronel de Infantaria Pára-quedista José dos Santos Correia e é constituída por nove oficiais e oito sargentos, bem como organizada num Estado-Maior com o respectivo Chefe de Estado-Maior e as várias áreas funcionais: G1 (Pessoal), G2 (Informações), G3 (Operações), G4 (Logística), G5 (Planos e CIMIC), G6 (Comunicações) e G7 (Engenharia), um Oficial Médico e ainda um SargentoMor. A missão da OMLT KCD no TO consiste na mentorização da Divisão de Cabul do Exército Nacional Afegão, nomeadamente do seu Comandante, Chefe do Estado-Maior e outras áreas deste, prestando o apoio necessário na ligação, no Comando e Controlo e no planeamento e emprego das sub-unidades da Divisão durante as operações no terreno. Com este tipo de assessoria, pretende-se que a Divisão esteja apta a conduzir operações de forma eficaz e independente. De acordo com estratégia da NATO para o Afeganistão, é fundamental uma evolução sistemática e consistente do ANA, de forma a permitir que o Governo seja capaz de estabelecer e manter um clima de segurança a longo prazo. O factor mais significativo é o apoio prestado pelas OMLT da NATO e pelas Embedded Training Teams (ETT) dos EUA. Assim, numa altura em que o grau de ameaça no TO está «Alto» e que a NATO pretende recuperar a confiança das populações afegãs, a missão das OMLT reveste-se da maior importância para levar a bom termo a estratégia de saída e atingir o estado final desejado para o Afeganistão. A 2.ª OMLT KCD constituiu-se como Força Nacional Destacada e iniciou o seu aprontamento em 15 de Junho nas instalações da Unidade de Aviação Ligeira do Exército em Tancos, sob a responsabilidade das Brigada de Reacção Rápida. Brigadeiro General Taur Matan Ruak visita o Exército Português A convite do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto, 12 decorreu a visita do Brigadeiro General Taur Matan Ruak, Chefe de Estado-Maior General das Falintil – Forças de Defesa de Timor Leste a Portugal, no período compreendido entre 27 de Setembro a 2 de Outubro. Do programa realça-se a visita ao Exército Português no dia 30 de Setembro. O período da manhã foi destinado à visita ao Estado-Maior do Exército, tendo o General Taur Matan Ruak apresentado cumprimentos ao Chefe do Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, que o recebeu com honras militares no Pátio dos Canhões. Seguidamente, no Auditório, foi apresentado um briefing sobre o Exército Português, seguido de uma visita guiada ao Museu Militar. Durante a tarde, visitou a Brigada de Reacção Rápida, no Centro de Tropas Comando, onde pôde apreciar uma demonstração de capacidades. O General Taur Matan Ruak, além de visitar as Forças Armadas ao longo da sua estadia, também visitou a Associação dos Deficientes das Forças Armadas e a Liga dos Combatentes. FIGURAS e FACTOS Rendição de Equipa Médica Militar A terrou no Aeródromo de Transito N.º 1, em Figo Maduro, a 8 de Novembro, pelas 15h00, a primeira de três equipas de médicos militares que se encontrava, desde Julho, no Aeroporto de Cabul, no Afeganistão. Esta primeiro grupo, que se fez transportar num C-130 da Força Aérea Portuguesa, é constituído por quinze militares, dos quais dois médicos (um de Clínica Geral e um de Medicina Interna), oito enfermeiros, um é fisioterapeuta, um é técnico de laboratório e três socorristas, que tiveram como missão prestar apoio aos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) no Hospital Militar, em Kaia (Kabul Internacional Airport). Estas equipas irão permanecer ao serviço da Força Internacional de Assistência à Segurança, subordinada à NATO, pelo período de um ano. Com a voz embargada, mas com o sentimento de “dever cumprido”, estes militares reconheceram que o maior desafio da missão foi a saudade que sentiram dos seus familiares. O militar mais antigo da equipa, Tenente Alípio Araújo, salientou que os primeiros meses foram muito complicados, mas que esta missão “correu muito bem” e que, durante quatro meses, foi feito “um excelente trabalho. A adaptação foi dolorosa, mas foi uma experiência muito positiva”, disse aquele militar. 13 FIGURAS e FACTOS 1.ª Grande Gala da Rádio Sim R ealizou-se, a 19 de Outubro, no Teatro Tivoli, em Lisboa, a 1.ª Grande Gala da Rádio Sim, que contou com a especial participação da Orquestra Ligeira do Exército. Com o Tivoli esgotado, foi possível assistir à actuação de grandes nomes da música portuguesa. Vozes que fizeram desfilar canções inesquecíveis. Foi possível voltar a ouvir temas como “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, “Como Posso Ter Ciúmes”, “Kanimanbo”, “E Depois do Adeus”, “Ternura dos Quarenta”, “Regresso”, entre muitas outras canções de sucesso no passado. Subiram ao palco Anita Guerreiro, Paco Bandeira, Maria Valejo, António Calvário, Ada de Castro, Vicente da Câmara, Artur Garcia, Daniel Bacelar, João Maria Tudela, Rodrigo, António Sala, Maria José Valério e Paulo de Carvalho, acompanhados pela Orquestra Ligeira do Exército. Os artistas foram apresentados pelas vozes da Rádio Sim, que falaram em palco sobre os dias desta emissora, que é a mais jovem aposta do Grupo Renascença. Os aplausos foram uma constante durante toda a noite e quem não conseguiu assistir a esta gala pôde acompanhar a emissão em directo. Homenageado em Castelo Branco o Militar mais idoso do Exército Português P or iniciativa do Provedor da Santa Casa da Misericórdia, acompanhado por militares e amigos residentes em Castelo Branco, foi homenageado, naquela instituição, no Dia Nacional do Idoso, o 2.º sargento do Exército, José da Graça Rascão, com 104 anos de idade. Nasceu em Nisa, a 1 de Agosto de 1905, assentou praça no Exército em 1 de Dezembro de 1927 e passou toda a sua vida militar nos Regimentos 6 e 8 de Castelo Branco, terminando a carreira militar no distrito de recrutamento desta cidade. A forma afável e disponível como desempenhou as funções militares e sempre se comportou como cidadão valeu-lhe a admiração de quantos o conhecem, entre os quais desfruta de grande prestígio. A Junta de Freguesia entendeu prestar-lhe, por isso, um público tributo em 2008 e já este ano concedeu-lhe a Medalha de Reconhecimento. Transcrevemos o último louvor da sua vida militar, concedido pelo Comandante da Região Militar Centro, que o Sargento Rascão guarda religiosamente, num excerto bem revelador do seu carácter: “(…) Militar disciplinado e bom camarada com elevado brio profissional e comprovada lealdade e honestidade demonstrou sempre exemplar conduta ao longo dos 49 anos que serviu o Exército. É, pois, com pesar que todos os que trabalharam com o Sargento Rascão, sentem o afastamento do seu convívio a que este distrito de recrutamento fica a dever muito da sua eficiência”. É detentor das medalhas de ouro e prata de Comportamento Exemplar. O 2.º Sargento Rascão (à esquerda), acompanhado pelo Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco, Coronel de Infantaria reformado, José Guardado Moreira, no dia da homenagem. 14 FIGURAS e FACTOS 77º Aniversário do IGeoE palestra proferida pelo Capitão de Artilharia Agostinho Freitas, subordinada ao tema técnico “Uma Base de Dados Geográfica para a Carta Militar de Portugal” e a imposição de condecorações a militares do Instituto. O evento prosseguiu com a visita às instalações, durante a qual foi inaugurada a exposição “Finis Portugalliae = Nos confins de Portugal”. C elebrou-se, no dia 24 de Novembro de 2009, o 77.º aniversário do Instituto Geográfico do Exército (IGeoE). Neste dia festivo pretendeu-se privilegiar a confraternização entre todos aqueles que, com grande devoção, dedicaram parte significativa da sua vida activa à ciência cartográfica e realizar, simultaneamente, a apresentação da realidade técnico-científica às entidades militares e civis presentes, bem como evidenciar o contributo que o IGeoE presta à Cartografia Nacional e ao País. A cerimónia foi presidida pelo Director de Finanças, o Major-General João António Esteves da Silva, em representação do Tenente-General Quartel-Mestre General estando presentes outras altas entidades militares representativas da hierarquia do Exército, Comandantes, Directores ou Chefes de Unidades, Estabelecimentos e Órgãos contíguos ou com afinidades no campo técnicocientífico, bem como entidades civis representativas do espectro cartográfico nacional, representantes de instituições com quem o IGeoE estabeleceu protocolos e que, por razões institucionais ou outras, têm contactos mais assíduos de cooperação com este Instituto. Para comemorar esta importante efeméride, e com a dignidade que merece, também estiveram presentes os anteriores Chefes/Directores e colaboradores do Serviço Cartográfico do Exército /Instituto Geográfico do Exército, como forma de deferência e respeito pelo contributo por eles prestado, sob as mais variadas formas, à Cartografia e ao Exército. Dando continuidade a uma longa tradição que está fortemente arreigada no espírito militar português, o IGeoE desenvolveu um conjunto de actividades inseridas no contexto das comemorações, designadamente o hastear da Bandeira Nacional, a recepção das Altas Entidades convidadas, a alocução pelo Director do Instituto, uma 15 Fotocomposição: Mauro Matias Academia Militar e CIIWAC. Participação dos grupos de trabalho especializados em Segurança da Informação e em Guerra de Informação1 C ientes da necessidade emergente de garantir uma profunda reflexão de âmbito nacional sobre a temática da Cibersegurança, procura-se de forma simples e resumida, numa atitude de mera divulgação e sensibilização, expôr, enquanto grupo de reflexão, o nosso modesto contributo nesta temá16 tica. Salienta-se que as ideias e as situações retratadas no artigo não reflectem qualquer visão doutrinária ou orientação institucional, mas resultam das qualificações académicas e da experiência profissional dos seus elementos e de formação ministrada no âmbito da Pós-Graduação em Guerra de Informação/ Competitive Intelligence pela Academia Militar. Revelada a motivação e a envolvente deste artigo, preparamos um hipotético cenário que, de forma abstracta, permite sistematizar alguns dos principais conceitos envolvidos nesta problemática de natureza virtual. São ainda objectivos essenciais alertar fundamentalmente para a necessidade de desenvolver mecanismos de Segurança da Informação nas Organizações, onde é fundamental garantir a disponibilidade, confidencialidade e integridade da informação que circula nos seus Sistemas de Informação e que alimenta o processo de decisão organizacional. Segundo a UNESCO e citando Balsinhas (2003, p. 8), “o Ciberespaço é um novo ambiente humano e tecnológico de expressão, informação e transacções económicas. É constituído por pessoas de todos os países, de todas as culturas e línguas, de todas as idades e profissões fornecendo e requisitando informação, de uma rede mundial de computadores interligada pela infraestrutura de telecomunicações que permite à informação em trânsito ser processada e transmitida digitalmente”. A Internet, como suporte tecnológico do Ciberespaço e da própria Sociedade em Rede, provoca assim alterações nas dinâmicas de Poder, em virtude de através dela se poder explorar e fazer uso da informação de modo competitivo ou mesmo conflitual. Para além das vantagens funcionais associadas à sua utilização, não é possível ignorar também o facto de ela constituir o suporte ideal para a condução de actividades como o ciberterrorismo, a cibercriminalidade e, fundamentalmente, a cyberwarfare (Nunes, 1999; Martins, 2009 e Nunes, 2009). Consequentemente, a exploração da Internet exige uma atitude responsável por parte dos Estados, das Organizações e dos próprios indivíduos, sob pena das novas ameaças explorarem vulnerabilidades deste meio aberto de interacção e poderem pôr em risco a própria Segurança e Defesa Nacional (Hildreth, 2001; Martins e Nunes, 2008). Em termos simplistas, os ataques às redes de computadores desenvolvem-se em quatro fases (Tipton e Krause, 2004; Young eAitel, 2004; Santos, 2008). Numa primeira fase, denominada de Levantamento (Profiling), procura-se identificar/ localizar a(s) rede(s) da organização a atingir, após o que se verifica numa segunda fase de Pesquisa (Scanning), quais os computadores e serviços activos e vulnerabilidades existentes. A terceira fase, Enumeração (Enumeration), tem como objectivo apoderar-se de contas de utilizador ou de direitos de acesso a partilhas em máquinas da rede (entre outras). Por fim, na fase quatro, Exploração (Exploiting), pretende-se fundamentalmente alterar a disponibilidade2 , confidencialidade 3 ou a integridade4 da informação a que se teve acesso. As duas primeiras fases coincidem com uma possível metodologia de avaliação de segurança de redes, divergindo nas fases seguintes (McNab, 2004 e Clarke, 2005). O Ciberespaço, enquanto espaço de interacção aberto e global, facilita o lançamento de ataques planeados contra Sistemas de Informação via Internet, podendo consequentemente provocar incidentes graves, motivados pela destruição física dos sistemas informáticos ou pela alteração da sua lógica de funcionamento, sendo fundamental garantir a Segurança da Informação nas Organizações (Martins, 2008; Martins, Santos e Nunes 2009). Estamos conscientes que a Segurança e a Economia de um País, bem como o bem-estar dos seus cidadãos dependem de determinadas infraestruturas e dos serviços por elas fornecidos. A destruição ou perturbação de infraestruturas que prestam serviços fundamentais pode implicar a perda de vidas e de bens materiais, bem como um forte abalo da confiança e da moral dos seus cidadãos. O advento da iWar5 reflecte as tendências do novo século: a disseminação da Internet, o acesso a esse poder por parte dos indivíduos e o declínio relativo do poder do Estado no controlo das suas infraestruturas de comunicação.As instruções disponibilizadas on-line e o software necessário de fácil utilização, conferem virtualmente, a qualquer actor com 1 Elementos participantes na elaboração do cenário: TCor António Flambó, TCor António Galindro, Engº Bruno Réne, Cap GNR Carlos Pimentel, TCor Francisco Martins, TCor Luís Pinheiro, Engº Luís Sousa, Pedro Salgueiro – MCSE, Maj Pessoa Dinis, Dr. José Lopes, Engº Jorge Custódio, Cor José Freire, TCor José Martins, Engº Marco Manso, Engº Nuno Guerreiro, Maj Paulo Balsinhas, Maj Paulo Branco e TCor Paulo Nunes. 2 Garantir que os utilizadores autorizados tenham acesso à informação quando necessário. 3 Garantir que a informação seja acessível apenas aqueles que estão autorizados a terem acesso. 4 Garantir que o conteúdo da informação e/ou os métodos de processamento não são modificados de forma inesperada. 5 Guerra da Informação ou seja o conjunto de acções destinadas a preservar os nossos Sistemas de Informação da exploração, corrupção ou destruição, enquanto simultaneamente se explora, corrompe ou destrói os Sistemas de Informação Inimigos (Nunes, 1999). Introdução 17 Arquivo JE Entre os principais actores salientam-se as Entidades e as Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do País. uma ligação à Internet o poder de explorar as vulnerabilidades de adversários ou competidores. Um problema desta natureza pode ser estudado e analisado com base na construção de cenários realistas de Gestão de Crises no Ciberespaço, tendo em conta fundamentalmente as seguintes dimensões: - O enquadramento da situação, onde o Ciberespaço é o palco das relações de poder e onde os actores procuram explorar assimetrias. As suas acções poderão ter expressão ao nível Diplomático, Militar, Económico e da Informação, explorando algumas das vulnerabilidades potenciadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação, especialmente no domínio da Informação e das Infraestruturas Críticas. Neste âmbito, é notória uma certa tipificação de métodos de ataque focalizados em tecnologia e que permitem o aparecimento de cada vez mais actores capazes de empreender ataques de modo isolado. - Os principais actores, entre os quais são normalmente salientados a título exemplificativo as Entidades e as Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do País (Rede Eléctrica, Telecomunicações, Águas e Saneamento Básico, os Transportes, o Sistema Financeiro e de Segurança do Estado). 18 Tendo os Órgãos de Comunicação Social um papel fundamental na gestão correcta da informação em qualquer situação de Crise, a sua acção é determinante para o desenvolvimento de uma percepção e conduta correcta do cidadão, minimizando os impactos negativos no seu quotidiano, especialmente nas actividades diárias, ao nível das transacções comerciais, deslocamentos para o local de trabalho e na utilização de fontes de energia. Face à diversidade e complexidade do espectro da ameaça, o Estado necessita de um Serviço de Informações Nacional activo e capaz de efectuar uma identificação e avaliação dos actores capazes de o poder atingir e fragilizar. Dentro deste contexto, importa também punir os possíveis criminosos, responsabilizando-os pelas consequências dos seus actos. Esta realidade sugere a necessidade de intervenção de algumas das instituições do Estado de modo a garantir uma correcta obtenção da prova de “agressão”, que vise garantir que na evidência6 digital obtida, nenhum dado possa ser adicionado ou removido. Exige-se consequentemente elevada capacidade técnica e científica da Entidade que efectua a obtenção da prova, de forma a suportar legalmente a acusação e posterior actuação. Numa dinâmica de possível Gestão de Crises, a resposta eficaz e eficiente passa por um envolvimento activo dos principais agentes políticos (ex-Governo, Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa, Gabinete Nacional de Segurança), dos Internet Service Provider, das Instituições de monitorização da Internet (ex-Computer Emergency Response Team − CERT) e Institutos de investigação com competências técnicas específicas nesta temática. Principalmente na elaboração e coordenação de um plano de Disaster Recovery (componente de um Plano de Continuidade de Negócio mais alargado), ao nível do Estado, elaborando propostas para mitigar os riscos através da utilização das melhores práticas e do ajustamento criativo de soluções, de forma a garantir a Segurança da Informação e dos activos de suporte. - Os métodos de ataque mais usuais focados em tecnologia e utilizados pelas ameaças até à presente data e que consistem na utilização de Malware7 (ex. Virus, Worms e Trojans), no DoS 8 (denial of service), Packet Sniffer9 , Masquerade10 (ex. IP spoofing) e modificar e apagar mensagens (man-in-the-middle). A narrativa que a seguir se apresenta para caracterizar uma situação de Crise não tem ligação com a presente realidade nacional. Por essa razão, a referência a Empresas, Sistemas ou componentes de Sistemas que surgem associados a este Cenário ao longo do artigo são fictícias. Assumimos o Ciberespaço e os diferentes aspectos associados à Segurança da Informação como tendo o papel central. Iniciamos na primeira secção a caracterização da situação Nacional no ano de 2012. De seguida caracterizamos a Crise na segunda secção, tendo como suporte o Ciberespaço e alguns dos principais actores Nacionais intervenientes no desenrolar do Cenário apresentado. Nas considerações finais procuramos indicar algumas sugestões e propostas para reflexão do leitor. Fotocomposição: Mauro Matias Situação Nacional Portugal começa a evidenciar alguns sinais inquietantes ao nível da Segurança e Criminalidade. Procuramos, com este cenário, antecipar acontecimentos e explorar possíveis e diferentes futuros.Tal como refere Catarina Leal, “o planeamento por cenários deriva da constatação de que dada a impossibilidade de saber de que forma o futuro vai evoluir, uma boa decisão ou estratégia para adoptar é aquela que é escolhida entre vários futuros possíveis. Para encontrar uma estratégia (robusta), são criados cenários, de forma a que cada cenário seja marcadamente divergente dos outros” (2007). 6 É o vestígio (ex. material) que após ser devidamente analisado e interpretado, estabelece a relação inequívoca com o facto de delito e as pessoas com ele relacionadas. 7 Programas maliciosos desenvolvidos por programadores que, como um vírus biológico, infectam o sistema, podendo efectuar cópias de si mesmo e tentando nalguns casos espalhar-se para outros computadores, replicando-se internamente e externamente se o computador estiver ligado em rede. Uma das possíveis acções é impedir a execução de serviços e a destruição de dados, podendo mesmo incapacitar o funcionamento da máquina que afectou. 8 Trata-se de um tipo de ataque em que as redes são bombardeadas com quantidades tão grandes de informação Estamos no início do Outono do ano de 2012, Portugal é hoje um País desenvolvido, economicamente próspero, social e politicamente estável e com índice de desenvolvimento humano elevado. Encontra-se entre os 20 países do mundo com melhor qualidade de vida. Nos últimos tempos, face à crise energética e dos cereais, com a subida repentina dos preços, o País tem sofrido grandes movimentações sociais de protesto. Situado no extremo sudoeste da Península Ibérica, a sua localização ao longo da costa atlântica desde cedo determinou uma vocação marítima.As vantagens naturais de um País de sol radioso e de surpreendente variedade geográfica fizeram de Portugal um destino de eleição, ideal para a prática de desportos náuticos e de golfe, dotado de modernas infraestruturas turísticas e de formas muito tradicionais e personalizadas de acolhimento, como o Turismo de Habitação, os Hotéis de Charme ou as Pousadas. Membro da União Europeia desde 1986, Portugal é hoje uma Nação, que tem conservado através dos séculos o seu maior tesouro: a identidade de um povo hospitaleiro que faz do seu País um porto de simpatia e segurança. No entanto, Portugal começa a evidenciar alguns sinais inquietantes ao nível da Segurança e Criminalidade. O Crime constitui, sem dúvida, um dos fenómenos contemporâneos que mais tem contribuído para um aumento dos níveis de ansiedade e de insegurança existentes na Sociedade Portuguesa. O problema afecta não só Portugal como que ocorre um congestionamento ou estrangulamento, levando à paralisação da rede de computadores. 9 Consiste em capturar dados ou informação que circulam na rede. Existem dispositivos (sniffer) cuja finalidade é analisar o tráfego de rede e identificar áreas de potencial preocupação. Podem analisar um ou mais protocolos de comunicação. A existência de um sniffer com intenção maliciosa na rede pode comprometer a segurança, podendo capturar passwords e informações confidenciais que nela circulam. 10 É o acto de utilizar uma máquina para personificar outra, por exemplo forjando o endereço de origem de um ou mais computadores na sua autenticação numa rede informática. 19 potencialmente toda a População da União Europeia, as empresas, os Governos dos Estados-Membros e a União Europeia no seu conjunto. Os efeitos podem ser directos (por exemplo, um atentado terrorista com vítimas mortais), ou indirectos (por exemplo, a perturbação de certos serviços na sequência de problemas numa infraestrutura específica). O Estado Português, através do seu Serviço de Informações Nacional dependente do PrimeiroMinistro e de congéneres europeus, foi informado que vários actores internos e externos estariam a ultimar desenvolvimentos para encetar uma “campanha de Operações Centradas em Rede” com o fim de afectar seriamente a Infraestrutura de Informação Global (IIG). Esta campanha caracterizase principalmente pelo lançamento de ataques levados a cabo através da Internet, em que os alvos são as infraestruturas dos Fornecedores de Serviço de Acesso à Internet, tal como os sítios na WEB que dão acesso aos serviços on-line, explorando também a infra-estrutura de Segurança Nacional. A curto prazo, a iWar coloca uma ameaça crescente aos membros da OTAN ao conferir poder a actores menores e a Governos hostis. Resta saber se a iWar se torna uma ferramenta para os actores estado, ou se os actores menores mantêm a sua capacidade de empreender iWar contra os Estados-Nação. O acesso não autorizado às Local Area Network (LAN) 11 representa um dos maiores riscos para a Segurança das Redes e para os Sistemas de Informação das Organizações. Quando é permitido acesso não autenticado através de computadores pessoais não geridos, as Organizações e os respectivos dados ficam particularmente vulneráveis a ataques de software malicioso (ex. vírus). De acordo com as preocupações formuladas pelo Estado Português (levantadas em abstracto), surgiu a desconfiança de que um ou mais actores internos e externos, tenham desenvolvido a capacidade necessária para aceder e explorar a IIG como um campo de Operações Político-Militares Estratégicas. Esta situação levantou uma grande instabilidade e algumas dúvidas relativamente à Segurança da Infraestrutura de Informação Nacional (IIN) e da Infraestrutura de Informação de Defesa (IID) já em evolução,. As ameaças referenciadas podem utilizar um possível conjunto de diversos métodos de ataque que permitem explorar as vulnerabilidades existentes nos Sistemas de Informação das Instituições Governamentais e das Organizações públicas e privadas do País. Das informações disponibilizadas, podemos considerar que os métodos de ataque mais utilizados pelas ameaças até à presente data consistem na utilização de Malware, no DoS, Packet Sniffer, Masquerade e na 20 modificação e eliminação de mensagens. Uma análise superficial dos resultados apresentados por auditorias externas aos Sistemas de Informação de Empresas, Organizações e Órgãos do Estado permitiu verificar em algumas a inexistência de Políticas de Segurança estruturadas e coordenadas, a inexistência de identificação e avaliação dos riscos, bem como a falta de um modelo de gestão de Segurança da Informação que integre algumas das suas possíveis dimensões da Segurança: tecnológica, física, humana e organizacional. É nesta situação fictícia que surge a Crise no Ciberespaço, cujo desenvolvimento processa-se com a orientação e o enquadramento apresentado na próxima secção. A Crise Na noite de 24 de Dezembro, os sites do Governo Português, com maior incidência os do Ministério da Defesa Nacional (Estado-Maior General das Forças Armadas, Exército, Marinha e ForçaAérea), do Ministério da Administração Interna (PSP e GNR), do Ministério da Justiça e Ministério das Finanças, foram sujeitos a tentativas de DoS e alteração dos seus conteúdos. Na manhã de 25, foram detectadas tentativas de reconhecimento e avaliação da estrutura e organização das suas redes através de Port Scans12 , bem como tentativas de alteração dos dados existentes nas bases de dados dos Sistemas de Informação da PSP e GNR, dos registos de notariado do Ministério Público e das Bases de Dados de IRS do Ministério das Finanças. Face à dimensão dos incidentes foi chamada para efectuar a análise forense computacional a Brigada de Combate ao Crime Informático da Polícia Judiciária apoiada por equipas de especialistas de várias organizações entre as quais salientamos: a Policia Judiciária Militar, a PSP, a GNR, o Centro de Dados da Defesa e uma equipa de especialistas em Segurança Informática do Regimento de Transmissões do Exército. Nesta fase inicial, devido à complexidade técnica do problema foi necessário garantir e coordenar o apoio de especialistas de diversos Centros de Investigação & Desenvolvimento Nacionais, coordenadas pelo Serviço de Resposta a Incidentes de Segurança Informática (CERT.PT), que identificaram a origem dos ataques através dos logs de routers e das firewall13 de algumas organizações atingidas. Foi também necessário contactar alguns dos Internet Service Provider (ISP) Nacionais e Internacionais, face à necessidade de identificar as 11 Redes informáticas locais das Organizações que suportam os seus Sistemas de Informação e as quais na sua maioria se encontram ligadas à Internet. 12 São programas que consultam as “portas” dos computadores e obtêm informações valiosas sobre eles, tais como, que serviços (possíveis vulnerabilidades) estão a ser executados. Estes programas permitem efectuar uma rápida auditoria a centenas ou milhares de computadores num curto espaço de tempo. São excelentes para detectar vulnerabilidades numa rede, mas simultaneamente permitem sensibilizar/educar os Administradores de Rede para os potenciais riscos existentes na sua Rede Informática. 13 É um qualquer dispositivo implementado (hardware ou software), para impedir que estranhos acedam a uma determinada rede informática. As firewalls estão para as redes, assim como as passwords para a autenticação dos utilizadores nos sistemas operativos. 14 É um conjunto de protocolos de comunicação entre computadores em rede. O seu nome provem de dois protocolos, o TCP (Transmission Control Protocol) e o IP (Internet Protocol). 15 Forma de fraude electrónica, caracterizada pela tentativa de adquirir informações confidenciais, tais como por exemplo o número de cartão de crédito, fazendo passar-se por uma pessoa de confiança ou uma empresa, através do envio uma comunicação digital oficial, como uma mensagem de correio electrónico. www.skyscrapercity.com origens de alguns dos ataques efectuados. Simultaneamente, contactou-se o Centro de Excelência da NATO em Ciberdefesa (localizado na Estónia), para apoiar na identificação e análise das intrusões, face à sua experiência com casos análogos. Após estes primeiros eventos e decorrendo um período de alguma acalmia, surgem novos incidentes em Março de 2013, na madrugada do dia 10.A Rede de Energia que serve a região de Lisboa e Vale do Tejo, onde se inclui o Centro de Dados da Defesa, falhou por curtos períodos de 30 minutos, no horário compreendido entre as 05h00 e as 12h00. Embora a energia fosse restaurada rapidamente, uma avaliação da causa da falha indicou a intrusão na sua Rede Informática principal, onde se localizam os Sistemas de Gestão e Controlo da Rede Eléctrica Nacional. Na noite de 12 de Maio, as principais Operadoras de Comunicações Nacionais (PT, TMN, Vodafone e Optimus), sofreram uma série de falhas no seu funcionamento. Simultaneamente, as maiores estações de fornecimento de água do Alentejo e Algarve (Alqueva e Odeleite), tiveram um problema no seu sistema de gestão de funcionamento, permitindo descarregar o seu caudal máximo, reserva essencial para fazer face ao período de seca que se avizinhava. Pelas 19h00 de 14 de Maio, a Rede Telefónica Pública e as principais Operadoras de Comunicações Nacionais sofreram novamente uma série de falhas, dificultando a utilização do número de emergência 112 e, consequentemente, as acções de socorro prestado pelo Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil às vítimas dos diferentes incidentes que ocorriam de Norte a Sul do País e dos quais referimos: 1. Às 20h00, o comboio de passageiros de alta velocidade, TGV Lisboa - Porto embatia num comboio de cargas, aparentemente desgovernado perto do Entrocamento. A PSP constatou que o embate dos comboios vitimou 100 passageiros e feriu gravemente outras 200 pessoas. 2. Pelas 23h30, atacantes cibernéticos criam o pânico no Aeroporto de Lisboa e colocam em risco todo o tráfego aéreo com destino e origem no referido Aeroporto, pela indisponibilidade do Sistema de Controlo deTráfego Aéreo. O objectivo dos atacantes foi a penetração na rede informática interna do Aeroporto e posterior ataque por DoS aos sistemas de ajuda à aterragem das aeronaves, nomeadamente os que indicam a direcção da pista, altura das aeronaves e os radares, sistemas de comunicação rádio e sinalização luminosa, a sua maioria geridos através de uma rede informática que usa o protocolo TCP/IP14. Em simultâneo, foi atacado o web site da principal Transportadora Aérea (TAP), através de Phishing15 com o objectivo de falsificar as informações dos voos, incluindo as reservas, tarifas e horários. Às 20h00, o comboio de passageiros de alta velocidade, TGV Lisboa - Porto, embatia num comboio de cargas 21 A rede ATM 16 deixou de funcionar, lançando o caos nos principais Centros Comerciais. 3. Entre as 22h00 e as 00h30, surgiu uma avaria simultânea nos sistemas de controlo de trânsito das principais cidades do País, do qual resultaram inúmeros acidentes que vitimaram 50 pessoas e feriram gravemente outras 150. Também os Bancos portugueses, durante auditorias de rotina, conduzidas pelas equipas internas, detectaram dispositivos sniffer no seu principal sistema de transferência de fundos, temendo a Administração dos Bancos que indivíduos não autorizados possam agora tentar entrar num sistema que se considerava invulnerável. Durante o dia 17 de Maio, a comunicação Nacional especulou sobre a extensão das vulnerabilidades de Portugal no Ciberespaço, essencialmente sobre as origens dos ataques de iWar sofridos até ao momento e sobre as capacidades Nacionais para enfrentar a Crise. Simultaneamente, com as notícias surgidas, a rede ATM16 deixou de funcionar por volta das 17h00, lançando o caos nos principais Centros Comerciais e paralisando praticamente todo o comércio local. Uma reunião governamental de emergência foi realizada às 21H00 do dia 18 de Maio, para estudar algumas das possíveis recomendações imediatas e de médio prazo para uma resposta concertada a esta “Crise no Ciberespaço” que actualmente afecta Portugal. A reunião abriu com um briefing do Serviço de Informações de Segurança que enfatizou a incerteza existente na determinação da fonte ou das fontes dos ciberataques, seguido por algumas recomendações do Gabinete Nacional da Segurança que fez notar que nesta altura não havia “nenhuma maneira de saber ao certo” se o conjunto de acções registado configura ou não: (1) um teste à capacidade portuguesa de Ciberdefesa desenvolvido por um ou mais actores; (2) ou o início de uma campanha de iWar orientada para perturbar com alguma antecedência a coesão do Governo Português e o funcionamento das Instituições Democráticas. Durante a reunião, o Primeiro-Ministro alertou repetidas vezes os elementos da Comunicação Social presentes para a necessidade de manter a calma e de 22 Arquivo JE diminuir toda a especulação relativamente à extensão das vulnerabilidades de Portugal no Ciberespaço (em virtude da mitigação dos principais riscos já ter sido realizada), quer ao que diz respeito às origens dos ataques deiWar sofridos até ao momento, em especial aqueles que tiveram origem no Território Nacional. Fizeram notar que futuras decisões relacionadas com a crise podiam tornar-se cada vez mais difíceis se existir um pânico generalizado, acrescido pelo empolamento dos efeitos dos ataques por parte dos meios de comunicação. Após encerramento da reunião, o PrimeiroMinistro solicitou ao Ministro da Defesa Nacional que coordenasse um grupo de peritos de Segurança da Informação, de Redes Informáticas e de Computer Network Operations, com o objectivo de gerar ideias novas e criativas capazes de minorar num curto espaço de tempo, os problemas de iWar que suscitam uma maior preocupação na presente Crise no Ciberespaço. Descreveu-lhe as suas principais preocupações e pediu-lhe possíveis recomendações para os problemas encontrados, de modo a garantir a segurança dos Sistemas de Informação que as Organizações Governamentais utilizam ou provavelmente virão a utilizar, reflectindo o seu impacto no domínio Diplomático/Político, no ambiente da Informação Nacional, na área Militar e no domínio Económico (DIME). Uma Possível Resposta… Após a realização de diversas reuniões, a equipa de peritos sugeriu, entre outras, as seguintes propostas fundamentais para o médio prazo: 1. Proceder à implementação de uma Certificção de Segurança da Informação nas Organizações consideradas mais críticas e importantes face à avaliação da sua informação e à identificação e avaliação dos riscos de segurança existentes; 2. Desenvolver e aplicar uma metodologia de auditoria aos Sistemas de Informação implementados, que garanta a sua real Segurança da Informação, com base em indicadores de segurança mensuráveis; 3. Desenvolver um manual de boas práticas de Segurança da Informação para apoiar as Pequenas e Médias Empresas, onde os requisitos principais sejam a facilidade de operacionalização e o custo mínimo de implementação; 4. Sensibilizar os utilizadores das tecnologias de informação para a problemática da Segurança da Informação, evitando desta forma os ataques de Engenharia Social17 mais usuais sobre o elo mais fraco da cadeia de segurança: o elemento humano; No contexto formulado pela equipa de peritos, importa salientar que o importante é o planeamento rigoroso dos controlos de segurança a implementar ao nível das Organizações consideradas críticas, onde a coordenação de esforços e de competências nesta temática é obrigatória, face à complexidade e importância dos assuntos envolvidos. Considerações Finais Enquanto processo de sistematização e instrumento de aplicação dos pressupostos associados à necessidades de qualquer Estado garantir a sua Ciberdefesa, o levantamento de cenários e a própria condução de Exercícios de Gestão de Crises no Ciberespaço representa uma manifesta mais-valia, permitindo: - avaliar as implicações políticas e estratégicas do Ciberespaço e analisar a sua importância como factor decisivo para o planeamento e condução das actividades associadas aos diversos instrumentos de exercício do Poder dos Estados (Diplomático/Político, Informação, Militar e Económico); - estudar metodologias para analisar e gerir o Risco Social, capazes de avaliar ameaças, identificar vulnerabilidades e promover a adopção de contramedidas especialmente orientadas para fazer face aos riscos emergentes da Sociedade de Informação, Comunicação e Conhecimento; - identificar iniciativas que ajudem a desenvolver as capacidades necessárias para minimizar as implicações negativas da ocorrência de Crises no Ciberespaço, permitindo mitigar as suas consequências e reduzir a sua probabilidade de ocorrência; - estimular o desenvolvimento de actividades e iniciativas cooperativas destinadas a melhorar o intercâmbio entre os diversos actores envolvidos na Protecção da IIN, através da análise de assuntos emergentes de interesse mútuo, onde a Segurança e Defesa Nacional se apresentam como temas privilegiados de análise. Apesar de ter surgido num contexto académico, o Cenário aqui apresentado, poderá servir de suporte e permitir a exploração destes objectivos. Tendo por base o Cenário apresentado para reflexão, importa referir que todas as possíveis soluções destinadas a mitigar o risco social no Ciberespaço devem ter por base as boas práticas já existentes em algumas das Instituições/Organizações públicas ou privadas e em estudos já realizados e publicados, garantindo a celeridade no processo e evitando custos desnecessários. No que diz respeito às medidas imediatas a implementar, em artigo posterior serão analisadas as futuras propostas.JE 16 Sistema de máquinas para realizar operações bancárias. Evitando a manipulação dos utilizadores de forma a convencê-los a realizar determinadas acções que visam alterar as propriedades da segurança da informação. 17 Bibliografia BALSINHAS, Paulo (2003). Os Riscos do Ciberespaço - Análise e Gestão dos Riscos nas InfraEstruturas Criticas de Informação, Pós – Graduação em Guerra de Informação / Competitive Intelligence, Academia Militar, Lisboa. CLARKE, Justin and NITESH, Dhanjani (2005). Network Security Tools. O´Reilly. HILDRETH, Steven (2001). Cyberwarfare, Report for Congress U.S. Congressional Research Service, The Library of Congress, United States of America. LEAL, Catarina Mendes (2007). “ Construir Cenários – O Método da Global Business Network”, Documento de Trabalho Nº7, Departamento de Prospectiva e Planeamento e Relações Internacionais, Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, Lisboa. MARTINS, José Carlos L. (2008). Framework de Segurança para um Sistema de Informação, Tese de Mestrado, Escola de Engenharia, Universidade do Minho. 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O peacekeeping foi o expediente de um CS 24 dividido ao qual faltava o consenso para a acção colectiva e que se contentava em usar um instrumento menos poderoso e que não tinha implicações nas relações de poder das superpotências3. No caso de um conflito, o CS pode adoptar medidas provisórias para “evitar o agravar da situação”, dispondo de várias opções que não envolvem o uso da força. Esgotadas as medidas pacíficas do Capítulo VI da Carta, as hipóteses apresentadas foram as sanções (artigo 41.º), uma forma de enforcement não-militar. Se as medidas anteriormente mencionadas não surtirem efeito, o CS “(…) poderá levar a efeito, por meio de forças 1 O artigo 43.º estabelece que os Estados-membros concordam em “(…) proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem (…)” 2 Aquele artigo prevê a criação de forças armadas das NU a serem utilizadas de acordo com planos de acção determinados pelo CS com a assistência da Comissão de Estado-Maior, composta pelos Chefes de Estado-Maior dos membros permanentes do CS (ou respectivos representantes). O Comité reuniu-se entre 1946 e 1948 para estudar, do ponto de vista militar, as implicações do artigo 43.º e avançar com propostas para dar corpo àquele artigo. Devido a desacordos insanáveis, o Comité suspendeu os seus trabalhos em 1948 (v. Derek W. Bowett, United Nations Forces: A Legal Study, NY, Praeger, 1964, pp. 12-18). 3 John Mackinlay e Jarat Chopra, “Second Generation Multinational Operations”, The Washington Quarterly, vol. 15, nº 3, Verão de 1992, p. 114. 4 Alex J. Bellamy et al., Understanding Peacekeeping, Cambridge, Polity Press, 2004, p. 147. 5 Boutros-Ghali, Agenda para a Paz, NY, Nações Unidas, 1992 (ed. em português; a partir de agora, referida como Agenda), § 42. 6 V. Leland M. Goodrich et al., Charter of the United Nations: Commentary and Documents, NY, Columbia U.P, 1969, p. 291. 7 United Nations, The Blue Helmets: A Review of United Nations Peacekeeping, NY, UNDPI, 1996, p. 4. 8 David Rieff cit. in Tom Woodhouse, “The Gentle Hand of Peace?”, International Peacekeeping, vol. 6, n.º 2, Verão de 1999, p. 24. Fonte: UN.org aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar necessária […]. Tal acção poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas” (artigo 42.º). O enforcement militar na Carta da ONU, previsto no artigo 42.º, deriva da necessidade de sustentar o princípio da segurança colectiva. A ideia central do sistema de segurança colectiva é a defesa de certos valores, principalmente o da paz. Contudo, se os meios pacíficos não forem suficientes para assegurar a paz, então a organização poderá recorrer à ameaça e/ou uso efectivo da força4. Na Agenda para a Paz, o ex-Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, afirma: “a essência do conceito de segurança colectiva, tal como contida na Carta, é que se as medidas pacíficas falharem, as medidas previstas no Capítulo VII devem ser usadas, por decisão do Conselho de Segurança, para manter ou restaurar a paz e a segurança internacional, se se estiver face a uma 'ameaça à paz, ruptura de paz ou acto de agressão'.”5 A possibilidade do CS tomar medidas militares foi considerada um progresso notável em relação ao sistema da Sociedade das Nações. Contudo, a importância destas medidas não residia na expectativa ou probabilidade de se recorrer a elas. Efectivamente, “pensava-se que a ameaça de acção militar seria um incentivo importante para fazer com que os Estados implementassem as medidas que o Conselho considerasse necessárias para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais. Também serviria para deter os actos agressivos dos Estados, constituindo um incentivo adicional para resolver as disputas entre os Estados.”6 Voltando ao peacekeeping, este consiste no uso das forças militares, desprovidas, no seu exercício, do uso normal da força, para de-escalar ou pacificar situações de conflito. Boutros-Ghali definiu-o sinteticamente como o “uso não violento da força militar para preservar a paz.”7 O uso de efectivos militares para o desempenho de tarefas de peacekeeping encerra uma contradição nos termos. O uso de militares, canonicamente treinados para a guerra e o combate, parece não se coadunar com tarefas pacíficas que exigem dos militares grande restrição e auto-controlo e um sentido rigoroso de imparcialidade. Apesar disso, a comunidade internacional vê no peacekeeping militar uma “panaceia moldável e infinita para os conflitos mundiais”8. Após o exemplo bem-sucedido da UNEF I I (UN Emergency Force I) para assistir à retirada das forças invasoras do Egipto (1956-67), criou-se a convicção de que o peacekeeping se poderia aplicar indistintamente para implementar cessar-fogos, retiradas militares e verificar acordos de paz.A função original do peacekeeping era monitorar as tréguas e acordos de cessar-fogo com observadores militares da ONU, desarmados ou usando armamento ligeiro, que vigiavam as linhas de fronteira e as zonas-tampão ("buffer zones"). O peacekeeping foi o expediente de um CS dividido ao qual faltava o consenso para a acção colectiva 25 26 Fonte: UN.org O peacekeeping tornou-se o remédio miraculoso para resolver os conflitos que proliferaram na Guerrafria, pela simples razão de que os Estados e as organizações internacionais não conseguiam encontrar outro remédio. Escudados pelos princípios sagrados que os deveriam nortear (a “trindade sagrada”: consentimento, imparcialidade e o uso da força)9, os peacekeepers foram enviados para todo o tipo de missões, até para as mais inverosímeis, como o Congo, o Líbano e a Somália. Se o peacekeeping é desempenhado por militares, em última instância ele remete-nos para a possibilidade de estes usarem da sua prerrogativa natural: a aplicação da força. Na realidade, o peacekeeping assenta, como afirma Findlay, sobre um elemento (implícito e indefinido) de bluff: a de que os capacetes azuis, se confrontados com situações extremas, usarão a força. Este bluff é produtivo se tiver um efeito dissuasor sobre potenciais opositores, isto é, se a parte antagonista se convencer de que tem algo a perder se não respeitar os compromissos que assumiu. Contudo, a capacidade das NU deterem as forças hostis só existe se: se tiver comunicado de forma clara à parte adversária o objectivo da missão, bem como a ameaça da aplicação da força, no caso de incumprimento ou obstrução por parte dos “spoilers”10; se a força de peacekeeping demonstrar a capacidade e a intenção de usar a força. A realidade é que opeacekeeping nunca foi, como idealmente se projectou, uma prática inteiramente pacífica: na UNEF I, a força foi usada logo nos primeiros dias da operação e, no total, a missão registou 89 vítimas11. A questão do consentimento das partes também não tem sido uniforme: embora o Egipto e Israel tivessem aceite a presença da UNEF I e II, tiveram de ser persuadidos a tal. A ONUC (Opération des Nations Unies au Congo, entre 1960 e 1964), foi enviada sem o consentimento das autoridades da província secessionista do Katanga e a Bélgica, potência colonial em retirada, deu o seu consentimento com relutância. A UNIFIL (United Nations Interim Force in Lebanon) trabalha no Líbano desde 1978 com a aquiescência deste país, mas foi frequentemente hostilizada e atingida durante incursões e ataques militares dos israelitas no sul do Líbano. Os Khmers Vermelhos aceitaram com mávontade a entrada da UNTAC (United Nations Transitional Authority in Cambodia) no Cambodja. O mesmo aconteceu com as facções somalis em relação à UNOSOM I e II (UN Operation in Somalia). A Indonésia aceitou a presença da INTERFET (International Force for East Timor) e da UNTAET (UN Transition Authority in East Timor) após fortes pressões da comunidade internacional, inclusive dos EUA. A experiência veio a demonstrar a necessidade de permitir aos capacetes azuis usar a força. O uso da força no peacekeeping, para além da auto-defesa, é viável se a operação for enquadrada no Capítulo VII da Carta, uma vez que este capítulo trata de medidas que o Conselho de Segurança pode impor, como as sanções ou o uso da força militar. Este entendimento foi confirmado por uma sentença do Tribunal Internacional de Justiça, em 1962, que afirmava que as NU têm a capacidade inerente de criar e assumir o comando de forças militares. Contudo, a sentença estabelece que estas só podem usar de “direitos beligerantes” quando autorizadas para tal pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo VII12. O uso da força em auto-defesa é legitimado por várias fontes. O filósofo holandês Hugo Grotius (15831645) defendeu a auto-preservação como um direito inerente e natural do indivíduo que nenhuma lei poderia limitar ou ab-rogar. Também afirmou o direito dos Estados à auto-defesa, um conceito que está consagrado na lei internacional através do artigo 51.º da Carta das NU. Uma vez que as forças armadas são as principais defensoras do Estado, tem-se deduzido que o seu direito de auto-defesa colectiva é um prolongamento do direito dos Estados de assegurarem a sua auto-defesa. Tem-se partido do princípio de que os militares desfrutam daquele direito, mesmo quando operam sob comando das NU. Alguns autores defendem que a ONU, tal como os Estados, goza do direito de defesa própria e que o seu pessoal, por extensão, goza do direito de defesa individual e colectiva13. Inicialmente, auto-defesa significava a defesa da pessoa do peacekeeper através das suas armas. Contudo, a experiência veio a demonstrar a necessidade de alargar este entendimento de forma a permi- tir aos capacetes azuis usar a força para: impedir tentativas de os desarmar, defender as suas posições, veículos e equipamento contra ataques armados ou contra tentativas de captura dos capacetes azuis e apoiar outros contingentes da ONU14. Esta concepção foi posteriormente alargada de forma a autorizar os capacetes azuis a defender as agências civis e outro pessoal das NU. Trata-se de uma situação menos clara porque cabe ao comandante da força decidir sobre estas situações numa base casuística. Após 1973, a regra da auto-defesa foi expandida para acomodar a necessidade de “defesa da missão”. A auto-defesa passou assim a incluir a resistência a tentativas, pela força, de impedir os peacekeepers de desempenhar a sua missão15 . Trata-se também aqui de um “terreno pantanoso”, que veio gerar mais confusão e incerteza, principalmente ao nível dos comandantes da força, relativamente à interpretação do sentido de “defesa da sua missão”. Como é sabido, o CS tende a elaborar o mandato das missões no sentido mais amplo e a ser o menos concreto possível em relação a detalhes cruciais e potencialmente comprometedores para o bom funcionamento da missão, como o que fazer se a missão não conseguir desempenhar as tarefas que lhe foram cometidas, se as partes não cooperarem ou deliberadamente oferecerem resistência. Face ao habitual alheamento do CS, a responsabilidade de interpretar a “defesa da missão” é devolvida ao Secretário-Geral/Secretariado. A interpretação do que é a “defesa da missão” depende, obviamente, da natureza e do contexto da missão. Se se tratar essencialmente de uma missão humanitária, então a força pode ser usada para permitir que os capacetes azuis tenham livre acesso às áreas críticas. Se a missão exigir o desarmamento e desmobilização dos beligerantes, o uso da força pode ser mais problemático porque pode desencadear uma espiral de confrontação. A utilização da força em auto-defesa tem limites que estão codificados na lei internacional e têm sido estabelecidos com a prática. Os mais importantes são os critérios da necessidade e da proporcionalidade.A força pode ser empregue se houver necessidade 9 “Holy trinity”, v. Bellamy et al., op. cit., p. 95. Stephen J. Stedman, “Spoiler Problems in Peace Processes”, International Security, vol. 22, n.º 2, 1997. 11 Trevor Findlay, The Use of Force in UN Peace Operations, Estocolmo, SIPRI/Oxford University Press, 2002, p. 44. 12 International Court of Justice, Certain Expenses of the United Nations (Article 17, § 1), Advisory Opinion of 20 July 1962, Reports of Judgements, Advisory Opinions and Orders International Court of Justice, Haia, 1962, p. 177; cit. in Findlay, op. cit., p. 8. 13 Sobre este assunto, v. Findlay, op. cit., p. 15. 14 International Peace Academy, Peacekeeper´s 10 absoluta dela, isto é, em última necessidade. Em segundo lugar, a força usada deve ser proporcional à ameaça. O relatório da ONU, A More Secure World, lançado em Dezembro de 2004, aborda a questão do uso da força sancionado pelas NU. Trata-se, quer de situações de auto-defesa (artigo 51.º), quer de respostas no âmbito das ameaças previstas no Capítulo VII16. Em todos os casos, para ser legítimo, o emprego da força deve obedecer aos seguintes critérios: - Seriedade da ameaça: o mal em causa (contra os Estados, ordem internacional ou segurança humana) é suficientemente claro e sério para justificar, prima facie, o uso da força militar?; - Justo propósito: é claro que o principal objectivo da acção militar é deter ou evitar a ameaça em questão, à parte de outras considerações envolvidas?; - Último recurso: todas as opções não-militares foram exploradas a fundo?; - Meios proporcionais: a escala, duração e intensidade da acção militar são estabelecidas com base no mínimo necessário para fazer frente à ameaça em questão?; - Balanço das consequências: a acção militar tem probabilidades razoáveis de fazer face à ameaça ou as consequências dessa acção podem ser piores do que a falta de acção?. Em relação ao uso da força, os Estados têm demonstrado uma dupla atitude. Por um lado, a insistência para que o mandato das operações ONU preveja o uso da força em auto-defesa de forma a terem alguma garantia de preservação das suas tropas. Por outro, a relutância em que as operações de peacekeeping passem esta fronteira e se envolvam em actividades de enforcement. A relutância em autorizar missões de enforcement prende-se com o facto de nas mesmas haver maior probabilidade de haver vítimas entre os soldados. Além disso, e no que se refere aos grandes Estados, o seu receio é que a organização usurpe o seu monopólio do uso da força17. Apesar disso, as resoluções do Conselho de Handbook, NY, IPA e Pergamon Press, 1984, p. 57. 15 O relatório da ONU, A More Secure World: Our Shared Responsibility (Report of the High-level Panel on Threats, Challenges and Change, 2004), afirma que o uso da força “[…] é amplamente entendido como estendendose à 'defesa da missão””, § 213. 16 Em relação ao Capítulo VII, o relatório faz a distinção entre as ameaças externas (a ameaça que os Estados põem a outros Estados, a povos fora das suas fronteiras e à ordem internacional em geral) e as ameaças internas e a consequente responsabilidade dos Estados de protegerem as suas populações. 17 V. Findlay, op. cit., p. 16. 27 28 linguagem eufemística, como “todas as medidas necessárias” (UNPROFOR, na Bósnia-Herzegovina) ou “todos os meios necessários” (UNOSOM II, na Somália). O enquadramento vago do uso da força tem ainda como consequência não definir o nível ou tipo de força a ser usada na operação específica. O CS não só tem decidido sobre o emprego de medidas de injunção sem as nomear claramente, mas tem-no feito mesmo quando já tem em vista o executor dessas medidas: é o caso das resoluções 83 e 84 sobre a Coreia (1950)22 e da resolução 221 sobre o embargo petrolífero contra a Rodésia do Sul (1966)23. A resolução 83 (27 de Junho de 1950) recomenda que os Estados-membros da ONU forneçam ajuda à Coreia do Sul; a resolução 84 (7 de Julho de 1950) cria um Comando Unificado dirigido pelos EUA.A resolução 221 apela aos Estados-membros que quebrem as relações económicas com a Rodésia do Sul (regime “branco” de Ian Smith) e que implementem um embargo ao petróleo e produtos derivados. A resolução foi criada tendo em mente o Reino Unido, que orquestrou a elaboração da resolução para montar um bloqueio naval destinado a impedir a chegada de petroleiros ao porto da Beira, Moçambique (embargo esse também dirigido pelaRoyal Navy, do Reino Unido). Com o fim da Guerra-fria, as NU começaram a enquadrar as novas missões de peacekeeping explicitamente ao abrigo do Capítulo VII, dando lugar de relevo ao uso da força ou outras medidas de carácter coercivo.Wallensteen e Johansson calcularam que 93% das resoluções adoptadas pelo CS ao abrigo daquele capítulo aconteceram na pós-Guerra-fria24. Desde 1990, 25% das resoluções do CS foram enquadradas no Capítulo VII. Em 2001, a média foi de 35% e em 2002, de 47%. Algumas resoluções fazem referência explícita ao 18 Higgins faz esta observação a propósito das resoluções relativas ao Congo, mas diz que aquelas se reportavam aos artigos 25.º e 49.º para vincar a sua natureza obrigatória e o dever dos Estados-membros de as apoiar: Rosalyn Higgins, The Development of International Law through the Political Organs of the United Nations, Londres, Oxford University Press, 1963, p. 235. 19 Na Resolução 83 do Conselho de Segurança (27 de Junho de 1950) relativa à invasão da Coreia do Sul, o Conselho de Segurança “recomenda que os Estados-membros das Nações Unidas forneçam a assistência à República da Coreia que for necessária para repelir o ataque armado e para restaurar a paz e a segurança internacional na área”. 20 Jerzy Ciechanski, “Enforcement Measures under Chapter VII of the UN Charter: UN Practice after the Cold War”, in Michael Pugh (ed.), The UN, Peace and Force, Londres, Frank Cass, 1997, p. 84. 21 Ver, por exemplo, as sanções contra a África do Sul (resolução 181, de 7 de Agosto de 1963; resolução 182, de 4 de Dezembro de 1963 e resolução 421, de 9 de Dezembro de 1977), Portugal (resolução 180, de 31 de Julho de 1963 e resolução 218, de 23 de Novembro de 1965) e a Rodésia (resolução 216, de 12 de Novembro de 1965 e resolução 217, de 20 de Novembro de 1965). V. Goodrich et al., op. cit., p. 313. 22 Na realidade, o uso da força na Coreia não foi sancionado pelo artigo 42.º: a acção foi tomada com base numa “recomendação” do CS ao abrigo do artigo 39.º V. Goodrich et al., op. cit., p. 315. 23 A resolução fala explicitamente da conivência das autoridades portuguesas com o regime da Rodésia. 24 Entre 1946 e 1989, as NU invocaram o Capítulo VII em 24 ocasiões (v. Bellamy et al., op. cit., pp. 19-20). Entre 1946 e 1986, o CS adoptou oito resoluções ao abrigo do Capítulo VII. Outras sete resoluções eram de natureza obrigatória, embora não invocassem aquele capítulo. 25 A UNCRO foi lançada pela Resolução 981, de 31 de Março de 1995. A UNCRO substituiu a UNPROFOR na Croácia. Tinha como principais funções velar pela tranquilidade na região com vista à integração pacífica das zonas dominadas pelos Sérvios na Croácia (Eslavónia Ocidental e Oriental, a região da Krajina e a península de Prevlaka, e garantir os direitos e a segurança das comunidades minoritárias na Croácia). Em Maio e Agosto de 1995, a Fonte: www.army.cz. Segurança que prevêem o enforcement (sanções e uso da força), raramente o mencionam de forma explícita18. Na operação militar contra a Coreia do Norte, em 1950, por exemplo, embora a operação fosse de enforcement, ela não foi enquadrada ao abrigo do Capítulo VII19. São raras as resoluções, como a 660, de 2 de Agosto de 1990, em resposta à agressão iraquiana contra o Kuwait, em que o Conselho explicitamente afirma agir ao abrigo dos artigos 39.º, 40.º ou 42.º. O artigo 42.º foi invocado em poucas ocasiões: o que se explica por este invocar o uso da força. Também o artigo 39.º, que tem menos implicações, foi referido raramente: este artigo, estabelece que o CS deve determinar se, nos conflitos em consideração, existe qualquer situação de ameaça à paz, ruptura de paz ou acto de agressão. Nas suas resoluções ao abrigo do Capítulo VII, o que o CS geralmente tem feito é a constatação geral da existência (ou da continuação) de uma ameaça à paz internacional, sem referir o artigo 39.º20. Ao qualificar a situação como uma ameaça à paz, ruptura de paz ou acto de agressão, o CS está a lidar com situações delicadas, podendo, em consequência (e dependendo do seu julgamento político do caso), accionar medidas de injunção. O Conselho também aplicou medidas do artigo 41.º sem o citar expressamente e sem ter previamente determinado se a situação em causa era de natureza a requerer medidas ao abrigo do Capítulo VII21. No geral, as resoluções referem que o CS está a agir “ao abrigo do Capítulo VII", uma forma lacónica de autorizar os Estados-membros a usar a força ou a fazer uso de outros instrumentos coercivos. Noutros casos, o CS afirma que se está perante uma ameaça à paz e segurança internacionais. Por vezes, a autorização do uso da força vem encapotado em Croácia conquistou a Eslavónia Ocidental e a Krajina. As NU ficaram reduzidas à presença na Eslavónia Oriental, o último reduto sérvio. A UNTAES (v. a Resolução 1037, de 15 de Janeiro de 1996) foi criada na sequência da assinatura do Basic Agreement on the Region of Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium (parte dos Acordos de Dayton, 1995), que previa a transferência pacífica destas regiões, de população maioritariamente sérvia, para o governo croata. O Acordo solicitava ao CS que estabelecesse uma administração transitória durante 12 meses e que criasse uma força internacional para manter a paz e a segurança nesse período (a operação acabaria por ter a duração de 24 meses). A UNTAES tinha uma componente militar (essencialmente para supervisionar a desmilitarização da região, assegurar o regresso dos refugiados e pessoas deslocadas aos seus locais de origem e manter a segurança em geral) e uma componente civil (para criar e treinar uma força de polícia, organizar eleições, ajudar na reconstrução económica e monitorizar o respeito pelos Direitos Humanos); v. http://www.un.org/ Depts/dpko/dpko/co_mission/untaes_p.htm. É ainda o caso da MINURCA (UN Mission in the Central African Republic), criada em Abril de 1998. A MINURCA foi dotada de um mandato do Capítulo VI, substituindo a operação MISAB (Inter-African Mission to Monitor the Implementation of the Bangui Agreements) que tinha sido dotada de um mandato do Capítulo VII, mas apenas para proteger a segurança e liberdade de movimentos do seu pessoal. A Multinational Protection Force, lançada para a Albânia em 1997, recebeu a mesma autorização de uso da força da MISAB. A MONUC, estabelecida em Novembro de 1999 para o Congo, recebeu um mandato do Capítulo VII em Fevereiro de 2000: para proteger a força, o pessoal da Comissão Conjunta Militar e os civis ameaçados. 26 Caso da resolução 1509, de 19 de Setembro de 2003, que cria a UNMIS para o Sudão. 27 De 21 de Maio de 2004. 28 Ao contrário destas resoluções, a resolução 1479, de 13 de Maio de 2003, que cria a UN Mission in Côte d´Ivoire (MINUCI), não refere explicitamente o Capítulo VII, mas determina “[…] que a situação na Costa do Marfim constitui uma ameaça à paz e segurança internacional na região”. 29 Resolução 807, de 19 de Fevereiro de 1993, e Resolução 815, de 30 de Março de 1993. A UNPROFOR na Macedónia permaneceu como operação de peacekeeping. Fonte: www.gov.east-timor.org. Capítulo VII nas resoluções que criavam. É o caso da UNCRO (UN Confidence Restoration Operation) e da UNTAES (UN Transitional Administration for Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium) que contemplavam, nas resoluções que as instituíam25, o direito de usar a força em auto-defesa (uma redundância, uma vez que, por natureza, o peacekeeping permite o uso da força em auto-defesa). Resoluções mais recentes não só enquadram as operações ao abrigo do Capítulo VII, como determinam ainda a existência de uma situação de “ameaça à paz e à segurança internacional”26. Outras invocam o Capítulo VII e explicitam detalhadamente as situações em que os peacekeepers estão autorizados a “usar todos os meios” para desempenhar o mandato. A resolução 154527, que cria a ONUB (UN Operation in Burundi), enuncia uma lista de nove situações em que os soldados da missão estão autorizados a “usar todos os meios”. Elas vão da monitorização do cessar-fogo, até ao desarmamento e desmobilização dos combatentes, protecção dos civis e protecção do pessoal das NU, das suas instalações e equipamento. A resolução que cria a missão das Nações Unidas no Sudão, a UN Mission in Sudan, é mais concisa, mas paradigmática no que se refere às situações de enforcement tuteladas pelo CS: “Decide que a UNMIS é autorizada a tomar as acções necessárias, dentro das suas possibilidades e na área de posicionamento das suas forças, para proteger o pessoal das Nações Unidas, suas instalações e equipamento; garantir a segurança e liberdade de movimento do pessoal das Nações Unidas, pessoal humanitário, do pessoal do mecanismo de avaliação conjunta e da comissão de avaliação e, sem prejuízo da responsabilidade do governo do Sudão, proteger os civis sob ameaça iminente de violência física”28. Noutros casos, algumas missões lançadas ao abrigo do Capítulo VI foram posteriormente reforçadas com a previsão do uso da força. Trata-se do caso mais comum nos anos 90, em que certas missões se defrontaram com dificuldade continuadas, como a UNPROFOR.A UNPROFOR foi inicialmente lançada como uma missão de peacekeeping. Em Fevereiro de 1993, dois dos seus três segmentos (Croácia e BósniaHerzegovina) transformaram-se em operações do Capítulo VII29. Também a UNOSOM, na Somália, foi uma operação de peacekeeping entre 1992 e Junho de 1993. Nessa altura, o CS rebaptizou a operação (UNOSOM II) e deu-lhe um mandato ao abrigo do Capítulo VII. Em casos mais raros, as missões de peacekeeping dotadas de mandatos ao abrigo do Em casos mais raros, as missões de peacekeeping dotadas de mandatos ao abrigo do Capítulo VII eram na realidade operações de peace enforcement 29 Capítulo VII eram na realidade operações de peace enforcement: casos da UNOSOM II, na Somália, da UNTAET, em Timor, e da UNAMSIL, na Serra Leoa. Modalidades do uso da força Geralmente, o CS não tem usado a força nos moldes previstos no Capítulo VII, isto é, usando as forças militares ao abrigo de acções colectivas como aquelas previstas no artigo 43.º (com o uniforme da ONU e sob o seu comando). Jane Boulden faz a distinção entre operações de puro peace-enforcement e operações de “mandate enforcement”. As primeiras poderiam definir-se com mais precisão como “fullfledged enforcement”, o que “[…] significa conduzir operações ofensivas de combate para impor os termos de um mandato a um malfeitor renitente identificado pelo Conselho de Segurança” (caso da Coreia do Norte e do Iraque)30. As segundas (actualmente denominadas “grey area operations”) situam-se num ponto indefinido algures num percurso que se situa entre o peacekeeping tradicional e o peaceenforcement. Nelas, o uso da força é uma necessidade para assegurar o cumprimento do mandato31. O uso da força autorizado pelo Conselho de Segurança destina-se, por regra, a reforçar a implementação do mandato das operações de paz ou a implementar os acordos entre os beligerantes. Nesse sentido, o peace-enforcement das NU, geralmente, não corresponde ao “full-scale enforcement” de operações, como a intervenção contra o Kuwait de 1991. As operações de enforcement, geralmente, reúnem os seguintes requisitos: - autorização ao abrigo do Capítulo VII da Carta; - autorização para usar a força para fins que vão além da auto-defesa; - respeito pela imparcialidade, o que significa que a operação não tem em conta as reivindicações ou posições das partes no conflito, mas que se rege unicamente pelo respeito do mandato; - o consentimento das partes para a operação não é um pré-requisito32. Em vez disso, o CS tem autorizado certos Estados-Membros ou coligações de Estados a, por sua delegação e em seu nome, usar a força.Aliás, o artigo 42.º não especifica que as forças empregues em operação de enforcement sejam forças da ONU: limitase a autorizar o CS a fazê-lo “[…] por meio de forças aéreas, navais ou terrestres”.Além disso, o artigo 48.º refere expressamente que “[A] acção necessária ao cumprimento das decisões do Conselho de Segurança para a manutenção da paz e da segurança internacionais será levada a efeito por todos os Membros das Nações Unidas ou, por alguns deles, conforme seja determinado pelo Conselho de Segurança.”33 30 O artigo fala ainda do papel que outras organizações internacionais podem desempenhar na execução das “decisões” do CS: “[Essas] decisões serão executadas pelos Membros das Nações Unidas directamente, e, por seu intermédio, nos organismos internacionais apropriados de que façam parte.”34 O artigo 53.º afirma que o CS pode lançar mão de acordos ou organizações regionais para “[…] uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade.” O uso da força, autorizado pelo Conselho de Segurança, tem revestido as seguintes modalidades: - coligações lideradas pelos Americanos: Coreia (1950), Iraque-Kuwait (1990), Somália (1992), Haiti (1994); - autorizações a países a título individual para organizar e comandar uma força multinacional: A França, no Ruanda (“Operação Turquesa”, 1994), a Itália, na Albânia (“Operação Alba”, em 1997) e a Austrália, emTimor-Leste (INTERFET, 1999); - a delegação do uso da força em entidades regionais: É o caso das acções militares da NATO na Bósnia-Herzegovina em 1994-5, em especial a “Operação Deliberate Force”. Um exemplo recente foi a criação da Multinational Force to Liberia, composta por membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e destinada a restabelecer a segurança no país após o reacender do conflito em inícios de 2003. É ainda o caso da missão da Interim Emergency Multinational Force (conhecida como “Operação Artémis”, em 2003), lançada pela União Europeia para a República Democrática do Congo a fim de permitir às Nações Unidas reforçarem a MONUC35; - as operações da NATO autorizadas pelo Conselho de Segurança na Bósnia-Herzegovina: na sequência dos Acordos de Dayton, de Novembro de 1995, foram lançadas a Implementation Force, em 1995 (IFOR), e a Stabilization Force, em 1996 (SFOR); - o uso da força em certas operações de peacekeeping, como a UN Operation in Somalia II (UNOSOM II) e a UN Mission in Sierra Leone (UNAMSIL); - autorização do uso da força concedida a missões que não são da ONU: é o caso da autorização concedida a uma força autorizada pela ONU, a International Security Assistance Force, ISAF no Afeganistão. Trata-se de uma força constituída nos moldes de uma “coalition of the willing”, criada com a autorização do CS mas organizada fora do âmbito da ONU36. Foi mandatada para providenciar a segurança na área em torno de Cabul, para apoiar a Autoridade Transitória do Afeganistão, o Governo Provisório (eleito em Janeiro de 2005) e para auxiliar as actividades da UN Assistance Mission to Afghanistan (UNAMA), bem como outras agências humanitárias. 30 Donald C. F. Daniel e Bradd C. Hayes, Securing Observance of UN Mandates Through the Employment of Military Force, in Pugh, op. cit., p. 108. 31 Jane Boulden, The United Nations and Mandate Enforcement, Kingston, Ontário, Centre for International Relations/Institut Quebécois des Hautes Études Internationales, 1999, p. 3. 32 Id., p. 4. 33 Meu itálico. 34 Artigo 48.º § 2 (meu itálico). 35 UN Organization Mission in the Democratic Republic of Congo; Resolução 1484 de 30 de Maio de 2003. 36 Inicialmente, certos Estados ofereceram-se para liderar a ISAF numa base semestral. O primeiro foi o Reino Unido, seguido pela Turquia. A terceira missão da ISAF, a partir de Fevereiro de 2003, foi liderada conjuntamente pela Alemanha e pela Holanda, com o apoio da NATO. Desde 11 de Agosto de 2003, a ISAF é liderada pela NATO e financiada pelos EstadosMembros que contribuem com tropas (v. http://www.nato.int/ issues/afghanistan/evolution.htm e http://www.afnorth. nato.int/ISAF/about/about/_history.htm).). 37 Mackinlay e Chopra, op. cit., p. 118. 38 Também designadas como “Capítulo VI+”, “Capítulo VI e Meio”, “Segundo Nível”, “Wider Peacekeeping” e “Peacekeeping Musculado ou Robusto”: v. Robert M. Cassidy, “Armed Humanitarian Operations”, Working Paper da CIAONET, 1998, p. 1. V. Peter Viggo Jakobsen, “The Emerging Consensus on Grey Area Peace Operations Doctrine: Will It Last and Enhance Operational Effectiveness?”, International Peacekeeping, vol. 7, nº 3, Outono de 2000, pp. 38-47. V. também a posição de Michael Pugh, “From Mission Cringe to Mission Creep?”, in Pugh (ed.), op. cit., p. 191. 39 Sir Brian Urquhart, “Who Can Stop Civil Wars?”, The New York Times, 29 de Dezembro de 1991, secção 4, p. 9. 40 Sir Michael Rose, “Military Aspects of Peacekeeping”, in Wolfgang Biermann e Martin Vadset (eds.), UN Peacekeeping in Trouble: Lessons Learned from the Former Yugoslavia, Aldershot, Ashgate, 1998, p. 159. 41 Ibid. Foto: arquivo JE As intervenções da ONU após a Guerra-fria (Cambodja, Somália, Bósnia-Herzegovina e Ruanda) ocorreram em ambientes voláteis, de alto risco e incerteza e em guerras civis de contornos mutáveis. Nestas operações, é fundamental que os contornos do uso da força sejam definidos sem margem para ambiguidades. É necessário “[…] que decisões políticas claras precedam e sustentem um mandato […] na execução das tarefas, a importância da eficácia militar cresce à medida que a intensidade da operação aumenta, até que no limiar do enforcement colectivo, se torna a chave principal do sucesso.”37 Trata-se de operações que têm vindo a ser designadas, na gíria, como missões de “middle ground” ou “grey area operations” por se encontrarem a meio caminho entre o peacekeeping tradicional e opeace-enforcement38. Brian Urquhart, um dos artífices do peacekeeping onusiano, admitiu a necessidade de encontrar uma opção intermédia que se situe entre o binário peacekeeping - peaceenforcement: “É necessária uma terceira categoria de operações internacionais militares algures entre o peacekeeping e o enforcement em larga escala. Seria destinada a pôr fim à violência descontrolada e a criar um grau razoável de paz e ordem, de forma a que o trabalho humanitário possa prosseguir e que o processo de reconciliação possa ter início […] ao contrário das forças de peacekeeping, tais tropas incorreriam, pelo menos inicialmente, em alguns riscos em combate para controlar a violência: consistiriam essencialmente em acções armadas de polícia.”39 O uso da força em missão de peacekeeping é uma matéria polémica e os debates em curso sobre esta matéria não são sempre definitivos. O General Michael Rose, antigo comandante da UNPROFOR, inventou a expressão “linha de Mogadíscio” (“Mogadishu line”) − que depois se popularizou nos debates da área − para transmitir a ideia dos riscos que se incorre ao ultrapassar a fronteira que separa o peacekeeping do enforcement. O General Rose diz que o nível de força que supera os requerimentos do peacekeeping é como “[…] atravessar a fronteira - a linha de Mogadíscio - que separa os não-combatentes dos combatentes.” O General Rose afirma que “[…] é óbvio que, quando uma força militar está ao serviço de uma missão humanitária de peacekeeping, estálhe interdito, pela sua natureza e regras de empenhamento, actuar como combatente.”40 O General Rose conclui que “[…] a necessidade de manter o consentimento e a imparcialidade, por um lado, e a necessidade de usar a força, por outro, devem ser reconciliados, se a comunidade internacional pretender que o peacekeeping continue a ser uma opção viável para a resolução internacional de conflitos.”41 JE Foto: arquivo JE 31 Mestre Mónica Ferro A centralidade dos programas de Governação e Reforma do Sector de Segurança (RSS) nas agendas da cooperação internacional e, mormente, nos esforços de reconstrução pósconflito ou de processos de transição democrática ficou a dever-se a uma alteração paradigmática: a segurança não é mais exclusiva do Estado, nem como referente, nem como fornecedor; a segurança é humana. Isto trouxe implicações bem mais profundas do que aquelas que iremos abordar, mas do ponto de vista do sector de segurança isto significou a introdução de padrões e normas de governação, transparência e responsabilização, do primado do estado de direito, da sujeição da acção destas forças a agendas de direitos humanos e ao controlo civil, e à reconversão do modo como um sector de segurança é pensado, funciona e é monitorizado. O nexo segurança e desenvolvimento, a demonstração que sem paz não há desenvolvimento e que o desenvolvimento sem paz é apenas temporário, fez com que a comunidade internacional reconhecesse que tem que dar resposta a ambos os desafios, em simultâneo. A reforma dos sectores de segurança surge inserida neste esforço mais global de optimizar a eficácia da ajuda, tratar as causas profundas dos conflitos e perceber o que faz uma sociedade constituir-se com resiliência, como espaço democrático, de paz e com um projecto de desenvolvimento sustentável. Em Timor-Leste este é um projecto para gerações. Portugal é um parceiro privilegiado nesta construção e, não obstante os sucessos limitados até agora, há um caminho que deve continuar a ser percorrido, com ajustes, mas sempre com a certeza de que a viabilidade do estado, o desenvolvimento do país e a segurança do povo implicam uma profunda revisão e consequente reforma do sector de segurança. Da assistência militar tradicional à reforma do sector de segurança Os programas de RSS são novos na história da cooperação entre os Estados. O que é novo é o facto de a reestruturação e assistência nestas matérias ter deixado de ser vista como um exclusivo dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, altamente politizada e focada na segurança do Estado e na assistência técnica e desenvolvimento de capacidades tecnológico-militares; e ter cessado a abordagem de soma-zero aos gastos militares, isto é, a ideia de que cortes nos gastos 32 www.un.org (Reuters Photo by Cheryl Ravelo) militares se converteriam imediatamente em recursos disponíveis para o desenvolvimento. Enquanto a primeira abordagem é sintoma de Guerra Fria, a segunda traduz uma lógica simplista, datada, de certos programas, como os de ajustamento estrutural do Banco Mundial, em que a redução das despesas militares era, em si, uma coisa boa e proporcionaria ganhos de desenvolvimento. Foi o fim da Guerra Fria e a demonstração de que tal ligação entre a redução dos aparelhos de segurança e os ganhos em estabilidade política e em desenvolvimento era, na melhor das hipóteses, contingente, e, com frequência, causa de mais instabilidade, podendo até levar à destruição dos aparelhos de segurança, tornando-os incapazes de garantirem a segurança interna e a defesa contra as ameaças externas, a ascensão de sociedades civis livres e organizadas, a afirmação do paradigma da segurança humana e de um novo pensamento sobre a RSS que fez desta o ponto de entrada privilegiado para a consolidação e fortalecimento de estados numa qualquer situação de fragilidade. Os países da Europa Central e de Leste, após 1989, foram os primeiros a executarem RSS em sentido actual, quando reorientaram as suas sociedades e as reformaram para poderem aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e à União Europeia (UE); para além de reorganizarem e reestruturarem as suas forças armadas e aparelhos de defesa, tiveram que desenvolver estruturas civis de monitorização e supervisão, reescrever conceitos e doutrinas, promover o envolvimento dos parlamentos no processo e mudar toda uma atitude e mentalidade típica do período bipolar que se encerrava. Esta RSS foi potenciada, desenvolvida em padrões, normas, boas práticas e inserida na agenda do desenvolvimento graças a iniciativas dos países nórdicos e da Holanda e do Departamento para o Desenvolvimento Internacional do governo britânico, e por organizações como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que tem desenvolvido um trabalho conceptual e programático notável.A ONU e, mais recentemente, a UE têm levado a cabo projectos de RSS, bem como a NATO, a União Africana e outras organizações regionais, mas sem uma doutrina policial e militar que os sustente conceptualmente. O que é Reforma do Sector de Segurança A RSS é um conceito normativo e programático que visa reformar ou reconstruir o sector de segurança dos estados. Tem como ponto de partida um sector disfuncional que não garante a segurança ao estado e ao povo, ou ainda, sectores de segurança que são fontes de insegurança em si. A RSS é um esforço sistematizado, holístico abordando segurança e desenvolvimento como se de dois gémeos virtuosos se tratassem, de construir, reconstruir, reformar ou transformar sectores de segurança (onde se incluem todos os actores envolvidos no mesmo desde o Parlamento que faz as leis, aos Ministérios que as executam, aos agentes que a aplicam e aos organismos que supervisionam a 33 No que diz respeito à Polícia, que após a crise de 2006 tem recebido o grosso da atenção e dos recursos, é, mais uma vez Portugal que, ao lado da UNMIT e da UNPOL, mais apoia o processo de reforma fim último. Em Timor-Leste, a agenda de reforma é uma agenda típica de cenários de reconstrução pós-conflito, com tarefas como desarmamento, desmobilização e reintegração de antigos combatentes, desminagem, combate ao tráfico de armas ligeiras, justiça transitória, reforço do estado de direito, reforma da Polícia e das Forças Armadas, boas práticas para o sector de segurança e construção de um enquadramento legislativo adequado. A Reforma do Sector de Segurança em Timor-Leste O Sector de Segurança em TimorLeste O sector de segurança em Timor-Leste é o produto de factores resultantes da ocupação indonésia, da 34 UN Photo - Martine Perret democraticidade e transparência deste processo e, ainda, às forças de segurança que operam à margem deste quadro de referência), tornando-os mais adequados aos desafios que os países têm que enfrentar: o desenvolvimento humano sustentável e a consolidação da paz. A governação do sector de segurança, de todas as entidades com um mandato legítimo para o exercício da força, e de todas as estruturas que a exercem à margem da lei ou mesmo competindo com o poder legítimo, num quadro de governação democrática de provisão de segurança humana é, por conseguinte, o A construção da Polícia Nacional de Timor Leste foi outra das prioridades do mandato da UNTAET. desmobilização da resistência, da actuação da Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET) na construção de um estado timorense e das decisões pós-independência. A construção das forças armadas de Timor-Leste foi feita com a desmobilização dos antigos combatentes das FALINTIL – que actuava na clandestinidade e em que muitos dos seus elementos, embora tivessem alguma experiência de combate, não tinham treino militar nem disciplina ou coesão, típicos de uma força organizada. Para além disso, alguns combatentes não “puderam ser integrados no novo exército, deixando-os ressentidos por terem sido deixados de fora e a sentirem-se desprezados1 ”. Decidir quem ficava e com que posto no pequeno exército timorense foi uma fonte constante de tensões2 . E mesmo a criação de forças armadas foi uma decisão pressionada pela evolução dos acontecimentos. Sérgio Vieira de Mello, o administrador transitório de Timor-Leste, reconheceu que antes de Setembro de 1999 a opção da equipa das Nações Unidas que acompanhava Timor era por um modelo tipo Costa Rica3 . E, quando a violência de Setembro eclode, essa opção é afastada sem que essa equipa estivesse preparada para decidir o que fazer com as forças de guerrilha das FALINTIL, e para sequer pensar como criar um aparelho militar para um pequeno pobre país vizinho de um gigante4 . A construção da Polícia Nacional de Timor Leste (PNTL) foi outra das prioridades do mandato da UNTAET5 . Também aqui as Nações Unidas tinham experiência, mas não tinham doutrina ou filosofia própria, e tiveram que criar a PNTL com indivíduos sem experiência relevante e com elementos que tinham sido membros da polícia indonésia acusados de corrupção e violações de direitos humanos. A PNTL acabou por incluir antigos membros da polícia indonésia ao lado de recrutas sem qualquer experiência e alguns postos elevados, incluindo o de comandante, foram ocupados por timorenses que tinham pertencido à polícia indonésia6 . As sementes para as cisões e tensões dentro das forças de segurança estavam lançadas. A falta de estatuto da Polícia (que estava mal equipada e mal preparada), o descontentamento generalizado pelos salários baixos e falta de infra-estruturas e equipamento adequado, o ressentimento contra os que tinham trabalhado nas forças indonésias e as evidentes tensões entre os protagonistas políticos timorenses, em especial entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, alimentaram um clima de instabilidade e frustração social. A crise de 2006, a chamada “crise dos peticionários”, apenas veio juntar a este contexto as acusações de discriminação e politizar um conflito que nunca havia sido relevante: as rivalidades inter-regionais entre loromunus e lorosaes. desacreditado, disfuncional e um pedido de apoio internacional para a reposição da ordem e da paz em Timor. Timor-Leste não foi capaz de lidar com os problemas que esta crise pôs a descoberto; as demissões de Xanana Gusmão e de Mari Alkatiri levaram o país a eleições antecipadas e os problemas do sector de segurança foram relegados para segundo plano, preparando o cenário para os atentados de Fevereiro de 2008 e prolongando a situação das pessoas internamente deslocadas que apenas agora regressaram a casa. Um exemplo cabal de que procrastinar apenas torna a solução mais difícil. A Revisão e Reforma do Sector de Segurança O mês de Abril de 2006 revelou a ausência de uma política de segurança nacional e graves falhas na legislação sobre segurança; uma polícia com baixo prestígio e um excesso de interferência política na sua actuação; falta de transparência e de mecanismos de controlo político, tais como supervisão parlamentar e judicial para ambas as forças de segurança. Uma crise que estava à espera de acontecer. A Crise dos peticionários Ao estabelecer a untaet-cap www.diggerhistory.info.jpg U N M I T, o Foi a crise de 2006, a tal dos Conselho de peticionários, que fez com que a questão Segurança da Reforma do Sector de Segurança advoga explisubisse ao topo da agenda timorense com citamente carácter de urgência. necessidade A crise de 2006 é profundamente de uma complexa e teve como catalisador revisão inteo despedimento de cerca de 600 grada do secsoldados das F-FDTL, em tor de seguMarço de 2006, que 8 rança . O relareivindicavam não terem tório do SG, do mesmo mês, sido promovidos por afirma que a superação da crise motivos de discriminação. recente implicava uma abordagem As manifestações em Díli, emAbril, holística ao sector de segurança, em que rapidamente revelaram que os se identificassem as necessidades e futuros manifestantes estavam altamente politizados, alinhados partidariamente e que a questão tinha mais papéis da polícia e das forças armadas, bem como as a ver com o controlo do poder político no país do formas pelas quais se pudesse transformar uma 9 e 10 que com a alegada discriminação. A mobilização de relação competitiva numa relação cooperativa . Está assim montado o palco para que a RSS fosse grupos de jovens foi o corolário da exploração política do descontentamento provocado pela falta de a protagonista dos esforços de cooperação emprego e de oportunidades de uma larga maioria internacional. Em Timor-Leste estão em curso vários programas da população. Em 28 de Abril, quando a violência eclodiu, as imagens de jovens, polícias e forças ar- de RSS executados por organizações internacionais madas combatendo nas ruas deixou prever o pior: ou bilateralmente. A falta de coordenação entre que a mais jovem nação do mundo estivesse a doadores internacionais tem-se revelado contraprocaminho de se tornar no seu mais recente Estado ducente e apenas o novo paradigma que parece surgir, em que o governo se apropria dessa falhado7 . O saldo final da crise foi um sector de segurança coordenação, parece poder resgatar alguma eficácia 35 O forte investimento que o Governo está a fazer em infraestruturas e equipamento para as forças de segurança melhorará a eficácia das mesmas e aumentará a auto-estima dos seus elementos. 36 UN Photo - Martine Perret Ramos-Horta declarou que o modelo da GNR é o que melhor se adequa a Timor-Leste. justiça. Da perspectiva da acção multilateral, a UNMIT tem uma Unidade de Apoio à RSS e a equipa das Nações Unidas no terreno gere três programas exclusivamente centrados no sector de segurança. Como já referimos, a RSS é definida pela ONU como uma área fundamental para a consolidação do estado e na resolução que estende o mandato da UNMIT até Fevereiro de 2010 é reafirmada a importância de clarificar os papéis e responsabilidades das F-FDTL e da PNTL, de modo a fortalecer os quadros legais e melhorar os mecanismos civis de fiscalização e responsabilização de ambas as UN Photo - Martine Perret dos processos em curso. As áreas de reforma mais activas são a das forças armadas, da polícia, do sistema de justiça, a inclusão de uma dimensão de género e de direitos humanos nas boas práticas para o sector, a justiça transitória com ênfase no apuramento da verdade e o fim da impunidade e, ainda, a criação de capacidades nacionais para a governação do sector de segurança 11. A reforma das F-FDTL tem sido executada no âmbito da cooperação bilateral com Portugal, ao lado da Austrália, a serem os grandes parceiros de Timor. Portugal tem disponibilizado recursos, consultores e formadores e todo o tipo de assistência solicitada. O Secretário de Estado da Defesa timorense afirma que o modelo para a formação militar básica em Timor será o “sistema português, o qual se rege pelos padrões da NATO, podendo a formação especializada basear-se no sistema de outros países”12 . Também o Brasil e a China se posicionam como interessados em aprofundar a cooperação nestas áreas. No que diz respeito à Polícia, que após a crise de 2006 tem recebido o grosso da atenção e dos recursos, é mais uma vez Portugal que, ao lado da UNMIT e da UNPOL13 , mais apoia o processo de reforma. A liderança timorense favorece um sistema de polícia tipo português (Ramos-Horta já declarou publicamente que o modelo da Guarda Nacional Republicana é o que melhor se adequa a TimorLeste) e Portugal tem prestado aconselhamento nas várias fases de constituição da Polícia, desde o processo legislativo até o recrutamento, certificação e formação. Austrália e Nova Zelândia são, também, parceiros relevantes nesta matéria. A inclusão de uma dimensão de género na Polícia, de uma cultura de direitos humanos nas forças armadas são processos de formação demorados e cujos resultados poderemos aferir a médio prazo. A realização de workshops e de acções de formação têm dado frutos muito limitados. A questão do apuramento da verdade e fim da impunidade é um assunto que tem sido muito controverso, sobretudo face à ausência de quaisquer consequências das conclusões da Comissão de Acolhimento, Verdade e Recepção, e à inclinação, de alguma liderança timorense para uma prática de amnistias que em nada favorece a justiça transitória, não contribui para a reconciliação nacional e gera, na população, a sensação de que os elementos das forças de segurança e do governo estão imunes à instituições de segurança, é solicitado à UNMIT que continue a apoiar o Governo de Timor-Leste nestes esforços15 . Para este efeito, destacamos o programa de revisão e levantamento das necessidades do sector de segurança16, o programa de apoio ao desenvolvimento de uma capacidade nacional para uma boa governação do sector de segurança17 e, ainda, o Projecto de Justiça também do PNUD18 . De facto, há uma evidente abundância de parceiros e de programas de RSS em Timor-Leste sem que a coordenação esteja assegurada ou a sobreposição seja evitada. Neste sentido, os esforços recentes do governo de apropriação do processo parecem-nos um passo na direcção certa. RSS made in Timor-Leste O governo timorense, no seu programa (com uma parte intitulada especificamente Reforma do Sector de Segurança) na forma como constitui o seu organograma e nas suas declarações revela vontade de construir uma capacidade nacional para gestão e governação do seu sector de segurança. Esta evolução é resultado de dois fluxos de sinal divergente: por um lado, a desejável timorização do processo que significa que têm que ser os timorenses, em processos inclusivos, apartidários, a consensualizarem quais são as suas necessidades de segurança e quais os meios que deverão ser cativados para garantia da mesma; pelo outro, algum desconforto e descrédito na forma como os actores internacionais o têm estado a fazer, de cima para baixo, de fora para dentro, mais orientados pelas suas agendas do que para as necessidades do beneficiário19 . A criação do Grupo para a Reforma e Desenvolvimento do Sector de Segurança é sintomático desta mudança de paradigma. Para além desta, há várias reformas a destacar: o Decreto-Lei que aprova a Lei Orgânica do Ministério da Defesa e da Segurança, a Proposta de Lei de Segurança Nacional (que regulamenta a cooperação entre a PNTL, as F-F-DTL e a Protecção Civil), a Revisão da Lei do Serviço Militar (e respectiva regulamentação), a Proposta de Lei de Defesa Nacional. Em fase de aprovação encontramse diplomas relevantes, tais como a Lei da Programação Militar e o Código de Justiça Militar; a definição de um novo Conceito e Sistema de Formação e a criação de um novo Conceito de Emprego das Forças Armadas. O forte investimento que o Governo está a fazer em infra-estruturas e equipamento para as forças de segurança melhorará a eficácia das mesmas e aumentará a auto-estima dos seus elementos. São passos no caminho certo, mas que não dispensam a monitorização e aconselhamento internacional no que diz respeito a ajudar os timorenses a escolherem o melhor modelo para o seu sector de segurança e a sujeição destes a boas práticas identificadas. O caminho em diante O caminho em diante foi o título do primeiro relatório de desenvolvimento humano de TimorLeste, em 2002. Além de ter identificado a pobreza como o principal desafio que Timor-Leste teria que vencer, o Relatório demonstra como um compromisso com o desenvolvimento humano pode pôr o país num caminho de paz e prosperidade. É esse compromisso que tem que ser recuperado, reconhecendo que sem segurança nenhum dos dividendos da paz será sustentável, como a destruição de infra-estruturas e o elevado número de pessoas internamente deslocadas, provocados pela crise de 2006, tão bem demonstraram. Construir um sector de segurança eficiente e eficaz, profissional, integrando todos grupos diferenciados do país, cumprindo uma agenda de direitos humanos, sujeito ao primado do direito e a mecanismos de controlo parlamentar e civil e a padrões e normas internacionais de boa governação é uma missão quase impossível, sobretudo num estado em situação de fragilidade como é TimorLeste. Uma reforma tão profunda como a que é necessária implicaria uma espécie de pausa na segurança – uma situação em que o país pararia e cessariam as necessidades de segurança enquanto se procederia à reforma. Na impossibilidade deste cenário, as forças de segurança têm que ser reformadas enquanto executam o seu papel que também vai sendo reformado, acrescentando mais desafios a um processo que nunca é simples, nem rápido, nem passível de ser aprendido num sítio e aplicado a outro, de tão distintas que são as condições no terreno. Não obstante estes constrangimentos, há uma série de recomendações que Timor-Leste e os seus parceiros podem seguir tentando optimizar recursos e resultados. A RSS é um processo de longa duração, de gerações, com medidas de impacto rápido, mas que devem ser sempre pensadas para cada caso concreto e de forma sustentável. Esta sustentabilidade é garantida pelo empenho das lideranças nacionais, pela definição de objectivos claros, pela programação e financiamento adequados, mas também por alguma flexibilidade do projecto original que permita adapta-lo às dinâmicas de cada caso. Como Timor-Leste já o demonstrou antes, a vontade de devolver o poder e as responsabilidades 37 UN Photo - Martine Perret A vontade de devolver o poder e as responsabilidades às autoridades nacionais não deve traduzir-se em saídas precipitadas e sem estratégia. às autoridades nacionais não deve traduzir-se em saídas precipitadas e sem estratégia. Isto significa que os doadores internacionais devem estar preparados para sair, mas apenas quando os padrões internacionais tiverem sido atingidos.A programação deve ter este desígnio muito presente. As organizações internacionais que não tenham doutrinas militares e policiais definidas (não obstante os recursos e a experiência que possuam) devem abster-se de liderar missões de construção de capacidade nacionais para boa governação do sector de segurança. Em Timor, uma das críticas que se ouve é que cada acção de formação tem a marca da nacionalidade do formador, precisamente porque as Nações Unidas não têm uma doutrina que os enquadre a todos. Aqui, a competição entre modelos e agendas nacionais é uma constante. A coordenação internacional deverá ser preparada desde o planeamento e não tentada no terreno. O que as experiências demonstram é que os doadores não comunicam entre si e raramente reconhecem que o modelo do outro é melhor do que o seu. Assim, a apropriação nacional dos programas e da sua coordenação, possibilitada pela construção de capacidades nacionais para o efeito, parece ser a resposta a essa descoordenação. Esta preparação do governo para assumir as suas responsabilidades passa por uma mudança de atitude da comunidade de doadores que deverá permitir que sejam os próprios timorenses a escolher quais os modelos de polícia, de forças armadas, de sistema judicialque preferem, bem como de quem querem que os ajude a implementá-los. A solução chave na mão, 38 do tipo aqui têm um modelo e um agente de implementação, e que tem sido seguida em relação a Timor, tem sido rejeitada pelas lideranças políticas e militares locais. Mais uma vez a solução é timorizar o processo: construir capacidades para que o governo, o parlamento, o sistema judicial, a sociedade civil e todos os outros actores saibam identificar as suas necessidades de segurança, escolher de entre todas as opções disponíveis o modelo que melhor se lhes adapta e, de acordo com normas internacionais exigentes, escolherem e trilharem o seu próprio caminho. O caminho em diante é cheio de obstáculos, mas fazendo justiça e reforçando o estado de direito, a boa governação e reforma do seu sector de segurança serão uma consequência e uma etapa para um TimorLeste mais desenvolvido, mais pacífico e mais seguro. O preço de não escolher este caminho será a próxima crise.JE 1 Initiative for Peacebuilding, Country Case Study: TimorLeste, Security Sector Reform in Timor-Leste, Junho 2009, p. 8. 2 Mónica Ferro, “Chasing Failure Away in Timor-Leste,” DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos, 12, 2007, Instituto do Oriente, Lisboa, http://ioriente. iscsp.utl.pt/revista_12.pdf p. 94 3 Idem. 4 Sérgio Vieira de Mello, UNTAET: Lessons to learn for future United Nations Peace Operations, Presentation to the Oxford University European Affairs Society, Oxford, 26 de Outubro de 2001 5 Cfr. UNTAET Press Office, Fact Sheet 6 – Law and Order, Abril 2002. 6 Initiative for Peacebuilding, SSR in Timor-Leste, op. cit., p. 9. 7 Mark Forbes, “A nation ruled by the gun,” The Age, 21 Maio 2006. 8 S/RES/2006/1704, 25 Agosto 2006. 9 S/RES/2006/628, para. 62 10 A Comissão de Inquérito que investigou as causas da crise de 2006 concluiu que o governo não tinha sido suficientemente proactivo no tratamento da falta de uma política nacional de segurança e dos problemas evidentes entre a polícia e as forças armadas. “Report of the United Nations Independent Special Commission of Inquiry for Timor-Leste (CoI)”, 2 Outubro 2006 disponível in www.ohchr.org/english/countries/tp/docs/CoIReportEnglish.pdf 11 Mónica Ferro, Reinaldo Hermenegildo Saraiva, “Re/ Formação do Sector de Segurança em Timor-Leste,” DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos, 14, 2009, no prelo. 12 Júlio Tomás Pinto, “A Reforma do Sector de Segurança, Enfrentado desafios, alcançando o progresso de TimorLeste”, 20 de Agosto de 2009, disponível in http://forumhaksesuk.blogsopt.com/2009/08/reforma-do-sector-daseguranca.html 13 A UNPOL é chefiada pelo Intendente Luís Carilho. Para uma análise e crítica da actuação da UNPOL na reabilitação, reconstrução e reforma (RRR) da PNTL ver, entre outros, Nicolas Lemay-Hébert, “UNPOL and Police Reform in Timor-Leste: Accomplishments and Setbacks,” International Peacekeeping, 16:3, pp. 393-406. 14 A S/2009/72, para. 21., estabelece como critérios para essa transferência a capacidade de a polícia nacional responder adequadamente ao ambiente de segurança num determinado distrito; a certificação final de pelo menos 80% dos oficiais de polícia nacional elegíveis num determinado distrito ou unidade; a existência de certos requisitos iniciais operacionais e logísticos; e estabilidade institucional que inclui, entre outros, a capacidade para exercer o comando, controlo e a sua aceitação pela comunidade. 15 S/RES/1867 (2009), 26 de Fevereiro de 2009. 16 Security Sector Review in Timor-Leste, Disponível in http://unmit.unmissions.org/Portals/UNMIT/SSR/ Project%20document%20for%20SSR%20signed% 2013June2008.pdf. 17 Projecto coordenado pela União Europeia e pelo PNUD, executado pelo PNUD em Timor-Leste, intitulado: Security Sector Review in Timor-Leste – Capacity Development Facility, assinado em Dezembro de 2008. 18 PNUD “Enhancing the Democratic Rule of Law through Strengthening the Justice System in Timor-Leste” programme,” assinado em Dezembro de 2008. 19 Yoshino Funaki, The UN and Security Sector Reform in Timor-Leste: A Widening Credibility Gap, Center on International Cooperation, Maio 2009, disponível in http:// fundasaunmahein.files.wordpress.com/2009/07/funakitimor-ssr-final.pdf. 39 Tenente-Coronel de Artilharia Joaquim Luís Correia Lopes N ão será necessário trovejar para evocarmos Santa Bárbara, porque estará sempre presente na memória de todos e fundamentalmente, na dos Artilheiros − a sua Santa protectora e Padroeira. Mas, talvez na memória dos mais novos (artilheiros), se possa depreender que Santa Bárbara sempre foi a Padroeira da Artilharia Portuguesa, porque na realidade fez exactamente cinquenta anos que, por despacho de 14 de Abril de 1959, o Sub-secretário de Estado do Exército, escolheu Santa Bárbara como Padroeira da Artilharia Portuguesa e 4 de Dezembro, o dia da Escola Prática de Artilharia. Parafraseando as palavras do Coronel de Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, nos seus comentários na Revista de Artilharia de Agosto de 1959 (pág. 59), diríamos “vamos recolocar os pontos nos ii”. 40 Santa Bárbara viveu na época do imperador romano Diocleciano. Nascido em 244 na costa da Dalmácia (Croácia), Diocleciano era de origem muito humilde. Seu pai foi escriba, talvez mesmo um antigo escravo de um rico senador. Aparentemente, recebeu pouca educação para além daquela tida, no seu tempo, como elementar. Os primeiros anos de vida de Diocleciano foram vividos em contexto de falência do Império Romano, graça a desmazelos internos e externos. Os imperadores sucediam-se com frequência, sendo assim a presença de “Deus na Terra” marcada pela instabilidade e diversidade; concediam grandes aumentos aos militares ou a quem militasse nos seus Exércitos, a fim de “comprar o seu apoio”. Neste contexto, Diocleciano procurou também a fortuna nas legiões. Durante esse período, provou ser astuto, hábil e ambicioso. Foi nomeado “dux da Mésia” (uma província na margem do baixo Danúbio), com responsabilidades na defesa das fronteiras do império. Era um oficial prudente e metódico, tendo sido mais tarde promovido a comandante de Cavalaria da guarda pessoal imperial − posto este que o colocava na condição de virtual candidato ao trono imperial e mais tarde, por volta de 283, foi nomeado cônsul. Com a morte do Imperador Caro, o poder ficou entregue aos seus dois jovens filhos, Numeriano no Leste e Carino no Ocidente. Num curto período Foi na primeira metade do século XIV que se iniciou o culto dos militares à gloriosa Santa Bárbara de tempo, Numeriano morreu sob circunstâncias misteriosas e, em 285, Carino foi morto em combate perto de Belgrado passando, desde então, Diocleciano a controlar todo o império. Diocleciano reabilitou as velhas tradições, incentivando o culto dos deuses antigos. Perseguiu os maniqueus, que praticavam uma religião de origem persa. Empreendeu aquela que é conhecida por alguns historiadores eclesiásticos como a penúltima grande perseguição levada a cabo pelo Império Romano contra o Cristianismo: foi a Era dos Mártires. A primeira perseguição a todo o espaço imperial aconteceu sob o “governo” de Maximino, mas o seu clímax deu-se no tempo de Diocleciano, no final do século III e início do IV. Esta é considerada a maior de todas as perseguições. Proibiu as práticas cristãs e emitiu ordem de prisão ao clero. Aquela perseguição intensificou-se até que ordenou a todos os cristãos do Império que se sacrificassem aos deuses imperiais, sob pena de execução em caso de recusa. O termo “Mártir”, de origem grega, que significa “testemunha”, é aplicado àqueles que morrem defendendo o Evangelho. Corria então o ano de 303, em que os cristãos foram perseguidos, na justa medida da sua rejeição aos deuses do Império Romano e ao culto do imperador. Destas perseguições e consequentes mártires, dois nomes se evidenciaram, sendo venerados até aos nossos dias, particularmente pelos Artilheiros: Santa Bárbara e São Sebastião. Santa Bárbara Foi em Nicomédia (hoje Izmit), capital da antiga província romana da Bitínia (território actualmente integrado na Turquia), no séc. III, que nasceu e viveu Santa Bárbara, sendo também testemunho do seu martírio. Os artilheiros escolheram-na como a Santa Padroeira no início de 1529. fonte: wikimedia.commons Santa Bárbara viveu na época do imperador romano Diocleciano fonte: www.infopedia.pt 41 42 Fonte: almocreve.blogs.sapo.pt Bárbara era filha única de Dióscoro, um rico comerciante.Ambos eram pagãos. Cioso da beleza de sua filha, para que ela não tivesse contacto com algum jovem diferente do tipo que pretendia para seu genro e para que não sofresse a influência do Cristianismo, Dióscoro mandou construir uma torre na sua propriedade e para lá enviou Bárbara. A vigiá-la, colocou pajens e damas de companhia, seus leais seguidores, alegando que a filha precisava de recolhimento para se entregar aos estudos. Após a instalação de Bárbara na torre, Dióscoro partiu para uma longa viagem de negócios pelas ilhas do mar Egeu, permanecendo fora de casa aproximadamente um ano. Entretanto, Entrementes, o velho cristão preceptor de retórica, instruía Bárbara nas verdades cristãs, o que a levou a aceitar o Cristianismo, a pedir e a receber o baptismo. Quando o pai voltou encontrou Bárbara, exuberante nos seus 20 anos, mas logo foi informado das transformações ocorridas na vida da filha, incluindo a sua recusa em casar, o que o terá levado a repreendê-la severamente. Bárbara, conhecendo a ira do pai, fugiu de casa, mas rapidamente foi encontrada. Sabendo pela própria filha que se tornara cristã, acusou-a perante as autoridades e entregou-a para ser presa. Houve tentativas fracassadas para fazê-la mudar de ideias, incluindo torturas horríveis. Bárbara, todavia, permanecia impassível. Foi então condenada à decapitação. Alguns historiadores afirmam que o próprio Dióscoro teria solicitado ao governador Marciano para ser o executor da sentença. Outros, referem que o governador, surpreso diante da obstinação de Bárbara, teria insinuado que o pai era o principal acusador da filha e fosse também o seu algoz, o seu executor. Bárbara foi então decapitada pelo próprio pai, Dióscoro. Conta-se, então, que após a execução da mártir, no alto de uma colina, uma tremenda tempestade se abateu sobre o local. Naquele instante, seu pai foi atingido por um raio, tendo morte imediata. Por isso, devido às circunstâncias em que ocorreu o seu martírio, Santa Bárbara é invocada como protectora contra tempestades, temporais e tormentas. O martírio de Bárbara aconteceu em Nicomédia, a 4 de Dezembro, provavelmente no ano de 235, primeiro ano do reinado do cruel Maximino. Santa Bárbara foi homenageada desde os tempos antigos, pelos sírios, gregos e latinos. Inicialmente, como uma protectora das obras e torres fortificadas, tornando-se padroeira dos militares, após a invenção da pólvora. Foi a divina protectora dos soldados que detinham a força e os depósitos das armas de guerra, bem como dos marinheiros que tinham à sua guarda os explosivos existentes a bordo dos navios. Bárbara foi decapitada pelo próprio pai, Dióscoro. De salientar que, embora a pólvora negra fosse já conhecida pelos chineses nos primeiros séculos da Era cristã, apenas era utilizada em fogos de artifício, aparecendo na Europa como pólvora e como um meio de destruição só no século XIV. Foi precisamente na primeira metade deste século que se iniciou o culto dos militares à gloriosa Santa Bárbara. Os artilheiros escolheram-na como a Santa Padroeira no início de 1529. O Papa Pio XII, em 4 de Dezembro de 1951, proclamou solenemente Santa Bárbara de Nicomédia, Celestial Padroeira dos Artilheiros, Marinheiros, Engenheiros e Bombeiros, estendendo-se mais tarde o culto da Santa aos doentes e a todas as pessoas com deficiência, tais como os leprosos e os moribundos. Na iconografia cristã, Santa Bárbara é geralmente apresentada como uma virgem, alta, majestosa, com uma palma que significa o martírio, um cálice como símbolo de sua protecção em favor dos moribundos e, ao lado, uma espada, instrumento da sua morte. No século VI, as relíquias de Santa Bárbara foram transladadas para Constantinopla. No século XII, a filha do Imperador Bizantino Aleixo Comenes, a princesa Bárbara, após contrair matrimónio com o príncipe russo Miguel Izyaslavich, transladou-as para Kiev, capital da actual Ucrânia, local onde hoje as suas santas relíquias descansam na Catedral de São Valdomiro. foi retirar o corpo de Sebastião a fim de lhe dar uma sepultura digna e, para surpresa sua, viu que estava vivo. Sebastião depois de curado, não só não fugiu para longe do Império, como se pôs a confirmar e a proclamar a fé cristã, levando outros a crerem em Jesus. Tendo recebido a notícia de que Sebastião estava vivo e a provocar os deuses, Diocleciano ordenou que o aprisionassem; preso, foi condenado ao espancamento até a morte e decapitado no dia 20 de Janeiro, sendo o seu corpo lançado numa fossa. Sabendo do ocorrido, uma cristã, chamada Lucina, descobriu onde estava o corpo, foi buscá-lo e sepultou-o no lugar chamado ad catacumbas, na Via Ápia. Nessas catacumbas, fora dos muros da cidade São Sebastião e Nossa Senhora da Saúde Sebastião era um soldado que se alistou no exército romano por volta de 283 com a única intenção de afirmar o coração dos cristãos. Diocleciano e Maximino, que o queriam sempre próximo; ignorando tratar-se de um cristão, designaram-no capitão da sua guarda pessoal − a Guarda Pretoriana. Por volta de 286, a sua conduta branda para com os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua execução. Entregue a um grupo de arqueiros da Mauritânia, para que se divertissem atirando flechas para o seu corpo amarrado a um tronco, foi crivado daqueles artefactos e depois abandonado como morto, para ser devorado pelos abutres, conforme também era habitual nessa altura. Uma cristã, Irene, em segredo, São Sebastião, de Guido Rurei (séc XVII), Museu do Palácio Rosso de Génova Fonte: S.Sebastião, 1535-40 Museu de Grão Vasco Viseu, Portugal São Sebastião nasceu em França no ano de 256. Era originário de Narbonne, mas foi criado pela sua mãe na cidade de Milão, em Itália. O seu nome deriva do grego Sebastós, que significa divino, venerável. Sebastião era um soldado que se alistou no exército romano por volta de 283 com a única intenção de afirmar o coração dos cristãos, enfraquecidos diante das torturas. Era apreciado pelos imperadores de Roma, em 288, tinham sido exumadas as relíquias dos apóstolos Pedro e Paulo e foi aí que o apóstolo dos mártires foi também sepultado. Corriam os primeiros anos do século IV, talvez o ano 303-304, quando São Sebastião se tornou Mártir. Mais tarde, no ano de 680, as suas relíquias foram solenemente transportadas para a Basílica de S. Paulo, construída pelo Imperador Constantino, onde se encontram até aos dias de hoje. Naquela altura, Roma estava assolada por uma terrível peste que vitimou muita gente. Curiosamente, a epidemia desapareceu a partir do momento da transladação dos restos mortais deste mártir, pelo que 43 44 Fonte: Judah Benoliel, 1958, Arquivo Municipal de Lisboa – AFML A43114 passou a ser venerado como padroeiro contra a peste, a fome e a guerra. Foi sobretudo no século XVI que o culto a São Sebastião se intensificou no nosso País. D. Sebastião foi, aliás, baptizado com o seu nome, em 1554, por ter nascido em 20 de Janeiro, dia em que se assinala a morte do mártir. São Sebastião constitui-se, assim como o patrono de todos osArtilheiros desde o início do séc. XVI. No princípio do século XVI, a classe militar foi particularmente atingida pela peste, pelo que os artilheiros invocaram o auxílio de São Sebastião, tido como protector contra a peste, a fome e a guerra. À data, os artilheiros da Corte, instalados no Castelo de S. Jorge, em Lisboa, agradeceram ao seu santo protector por os ter poupado e constituíram a Irmandade de São Sebastião. Os artilheiros da Guarnição de Lisboa, denominados por bombardeiros, mandaram erguer em 1505, uma pequena ermida dedicada a São Sebastião, padroeiro e advogado da peste, em cumprimento da promessa feita ao mártir pelo fim da epidemia, que nesse ano assolou toda a cidade, tendo vitimado muitos habitantes. Mais tarde, em 1569, a peste provocou novamente uma enorme mortandade em Lisboa: morreram 50 a 60 mil pessoas, numa população de 120 mil habitantes. Segundo relatos da época, registavam-se por dia mais de 600 funerais.A epidemia era de tal ordem que, como havia falta de gente para enterrar os mortos, foi necessário libertar os presos para esta missão. El-Rei D. Sebastião e parte da Corte refugiaram-se em Sintra e a rainha D. Catarina, sua avó, foi paraAlenquer. Em pânico, o povo e a nobreza de Lisboa invocaram em seu auxílio a Mãe do Céu. Por esse motivo, D. Sebastião terá pedido uma relíquia significativa de S. Sebastião, para que a mortandade provocada pela cólera tivesse um fim, pelo que terá sido enviado de Roma um braço de São Sebastião. Assim, e após a chegada das relíquias de São Sebastião, a peste reduziu-se e como foram atendidos nas suas preces, mandaram, em prova de gratidão, fazer uma imagem da Virgem, que foi benzida com o nome de Nossa Senhora da Saúde. A imagem ficou então exposta à veneração pública na ermida do Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos. A 20 de Abril de 1570, teve lugar a primeira procissão em honra de Nossa Senhora da Saúde, decorrendo sem interrupções, durante 341 anos − desde 1570 até 1910, sempre com grande pompa religiosa e militar (apelidada variadíssimas vezes por Procissão dos Artilheiros). Com a implantação da República, seguiu-se um interregno que perdurou até 21 de Abril de 1940, data em que se reatou esta antiga manifestação de fé e de religiosidade, permanecendo até aos dias de hoje. Ermida de Nossa Senhora da Saúde. Padroeira da Artilharia Por volta de 1959, o debate sobre quem deveria ser a padroeira da Artilharia entrou na temática dos números 405 e 406 da Revista de Artilharia. Num artigo da autoria do General Monteiro do Amaral, questionava-se qual o dia daArma, qual a padroeira e qual o patrono da Artilharia Portuguesa. Por fim, emAgosto de 1959 no número 407/408 da Revista de Artilharia, o Coronel de Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, num artigo intitulado “Pontos nos ii”, levanta e responde à temática iniciada pelo General MonteiroAmaral referindo: “Sabemos que por proposta do Exmº General Correia Leal, quando ocupava o lugar de Director da Arma, foi indicada Santa Bárbara para padroeira da artilharia portuguesa. Essa proposta foi enviada ao Estado-Maior do Exército e mandada submeter ao estudo da Comissão de História Militar, que lhe deve ter dado parecer favorável, visto que foi já oficialmente considerada como padroeira da Artilharia Portuguesa, afirmação esta baseada na leitura da Ordem de Serviço nº 106 de 4 de Maio último, da Escola Prática de Artilharia, assinada pelo seu Comandante, Coronel Carlos Vidal de Campos Andrada, que diz”: Art.º 17 − Dia Festivo da E.P.A. Segundo comunica o Q.G. da 4ª R.M. em nota nº 137/1− P.º 219.2 de 27-4-59, foi o seguinte o despacho de Sua Excelência acerca do assunto em epígrafe: “1 − Informo V. Ex.ª que, por despacho de 14 do corrente de Sua Excelência o Subsecretário de Estado do Exército, é considerada Santa Bárbara como padroeira da Artilharia Portuguesa. 2 − Deve, portanto o dia da E.P.A. ser transferido para 4 de Dezembro − Dia daquele Santo − e não para 20 de Janeiro.” que a Escola Prática deArtilharia, como escola mais antiga do Exército Português, celebrará em 18 de Março de 2011 os seus 150 anos de existência.JE Biografia Joaquim Luís Correia Lopes, Tenente-Coronel de Artilharia, ingressou na Academia Militar em 1984. Prestou serviço em várias Unidades, nomeadamente: Escola Prática de Artilharia, Centro de Classificação e Selecção de Lisboa, Campo Militar de Santa Margarida e Quartel General da RMS. Presentemente desempenha as funções de Chefe da Secção de Logística da EPA. Bibliografia Interior da Capela Real, na EPA. Em 4 de Dezembro de 1959, realizou-se a cerimónia de entronização da imagem de Santa Bárbara, na capela da Escola Prática deArtilharia, em Vendas Novas. No passado dia 4 de Dezembro de 2009, comemorou-se, assim, o cinquentenário da designação de Santa Bárbara como Padroeira da Artilharia Portuguesa e da sua casa Mãe. É, igualmente, de salientar FERRIL, Arther - A Queda do Império Romano, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989 FINLEY, Moses I. - "O Imperador Diocleciano", in Aspectos da Antiguidade, Lisboa, Edições 70, 1989 http://portalapui.com.br/paroquia/?page_id=5 SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, Dicionário da História de Lisboa, 1.ª ed., http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/ 002_B1.aspx ) http://www.ordemengenheiros.pt/Default.aspx? tabid=1761 http://www.jf-sspedreira.pt/ Estatutos da Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde Revistas de Artilharia n.º 405, 406, 407 e 408, Junho e Agosto de 1959 45 PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS in Jornal do Exército n.º 2 de Fevereiro de 1961 Soluções deste número: 1 - Sold. com pistola-metr. ao ombro; 2 - Idem sem polainitos; 3 - Cabo clarim com gravata, em camisa; 4 - Sentinela de bivaque; 5 - Faxina com capote; 6 - Idem sem cinturão; 7 - Ordenança com sabre no lado direito; 8 - Esporas do Oficial de dia. Pretendo assinar o Jornal do Exército Para encomendar basta fotocopiar o cupão e enviar para ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO – Secção de Logística, Rua dos Remédios, n.º 202 – 1140-065 LISBOA Nome: ____________________________________________________ Profissão: _________________ Morada: ______________________________________________________________________________ Código Postal: __________________ Localidade: ___________________ Telefone: _______________ (Só para Militares) Posto: _________________ Ramo das FA: _______________ NIF: _____________ Assinatura Anual – Continente e Ilhas: € 20.00 - Via Aérea: Países Europeus € 45.00 - Restantes Países € 65.00 Para pedido de números atrasados, ou encadernações, contacte-nos para: Largo S. Sebastião da Pedreira - 1069-020 Lisboa, Tel: 213 567 700 ou via email: [email protected] PARA PAGAMENTO DA MINHA ASSINATURA TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA: Nacional 0781 0112 0112 0011 6976 9 – D.G.T. CHEQUE: junto envio o Cheque n.º - ________________ s/Banco - ______________________ à ordem da Secção de Logística do Estado-Maior do Exército. VALE POSTAL: junto envio o vale postal n.º ______________ no valor de ___________________________ 46 D. Afonso V e a Batalha de Toro 1432 (Janeiro) – Nasce, em Sintra, o infante D. Afonso. 1438 (Novembro) – Afonso V, com seis anos de idade, é aclamado rei de Portugal, por morte de D. Duarte; Infante D. Pedro regente do reino. 1448 (Agosto) – D. Afonso V assume a governação do reino. 1449 (Maio) – Batalha da Alfarrobeira e morte do Infante D. Pedro. 1452 – Descoberta das ilhas ocidentais dos Açores (Flores e Corvo). 1458 (Outubro) – Conquista de Alcácer Ceguer. 1461-62 – Descobrimento das ilhas de Cabo Verde. 1469 – Arrendamento do comércio da Guiné a Fernão Gomes. 1471 – Conquista de Arzila (após insucesso em 1463) e ocupação de Tânger. 1472 – Descoberta dos Camarões e da Ilha Formosa. 1475 (Maio) – Invasão e guerra contra Castela; casa com a princesa D. Joana e proclama-se rei de Portugal, Leão e Castela. 1475 (Setembro) – Tratado de aliança com a França de Luís XI. 1476 (1 de Março) – Batalha de Toro. 1479 (Setembro) – Firma o Tratado de Alcáçovas com os reis Católicos. 1481 (Agosto) – Morte de D. Afonso V. O Comandante F ilho de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão, D. Afonso V é aclamado com apenas seis anos de idade, tornando-se no décimo terceiro Rei de Portugal e terceiro da Dinastia de Avis. O seu reinado surge marcado, internamente, pelo regresso a uma mentalidade feudal mediante o fortalecimento das casas senhoriais em detrimento da Coroa. A acção governativa de D. Afonso V divide-se em três períodos distintos: o primeiro decorre desde a sua aclamação ao trono (1438) até ao desfecho da batalha da Alfarrobeira (1449); o segundo é marcado pelas expedições ao Norte de África, que lhe fazem merecer o epíteto de «O Africano» e acrescentar ao título de «Rei de Portugal e dos Algarves», a referência «de aquém e além-mar em África»; a terceira fase integra a tentativa de união ibérica sob o ceptro português, chegando a intitular-se rei “per graça de Deus Rei de Castela e de Léon e de Portugal e de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdoba e de Múrcia e de Jaen e dos Algarves daquém e de Além-mar em África e dasAljariza e de Gibraltar e senhor de Biscaia e de Molina”. Com uma situação interna estável, D. Afonso V concentra-se na expansão no Norte de África, que adia devido à queda de Constantinopla (1453) e à penetração otomana na Europa, correspondendo ao apelo de cruzada lançado pelo Papa Calisto III (1456) com a preparação de um exército de cerca de 12 000 homens. Contudo, a morte do Papa cancela o projecto e D. Afonso V recupera a ideia de conquista no Norte de África. Consequentemente, conquista Alcácer Ceguer (1458) e ocupa Arzila e Tânger (1471). A sua presença no comando dos exércitos no norte de África granjeia-lhe grande prestígio por toda a Europa. Para além destes feitos, D. Afonso V subsidia as explorações no oceano Atlântico e arrenda o comércio na Guiné a Fernão Gomes, comerciante de Lisboa, por duzentos mil réis anuais, na condição de descobrir todos os anos cem léguas de costa da Serra Leoa para sul (1469). Desta forma, a exploração da costa africana atinge o cabo de Santa Catarina (Gabão), em 1475. GOMES, Saul, D. Afonso V, Circulo de Leitores, 2006 Cronologia D. Afonso V. A empresa das conquistas africanas com que de D. Afonso V «cravou» o estandarte português nas terras entre o rio do Ouro e o cabo de Santa Catarina foi, depois, abandonada em detrimento do projecto de união ibérica, aproveitando uma crise sucessória na coroa castelhana e a aproximação desta a Aragão. Neste contexto, a aura vitoriosa do rei de Portugal e as liberdades concedidas à fidalguia portuguesa motivaram uma franja da nobreza castelhana a solicitar a sua intervenção. D. Afonso V aproxima-se, então, da França de Luís XI, negociando uma aliança ofensiva contra Aragão, em 1475, e ataca nesse mesmo ano território castelhano. A batalha de Toro é o culminar de todo o processo. Será a desastrosa campanha militar em Castela a causa da perda da influência de D. Afonso V ante a nobreza castelhana, o rei Luís XI de França e o Sumo Pontífice. A recuperação do prestígio da Coroa portuguesa caberá ao filho e sucessor, D. João II, que privilegiará a estratégia política em detrimento da militar. 73 SÁNCHEZ, Aurélio Valdês, Artillería y Fortificaciones en la corona de Castilla durante el reinado de Isabel la Católica. Secretaria General Técnica del Ministério de Defensa, 2004. Cerco de Arzila. Enquadramento Político-Estratégico Portugal, no segundo quartel do século XV, é um Estado que começa a firmar-se na modernidade. Para isso muito contribui a regência do infante D. Pedro, marcada por uma política de reforço dos laços comerciais com áreas e países economicamente desenvolvidos (Borgonha, Flandres, Inglaterra, Mar do Norte e Mediterrâneo) e pelo afastamento relativamente ao binómio Castela - Aragão. Será esta “visão arejada”, no quadro da política externa, a razão pela qual eclode um clima de hostilidade para com a regência por parte de determinadas franjas da nobreza. O clima de guerra civil (incitado pela rainha D. Leonor e pelo duque de Bragança) e o desapego que o regente tem pelas conquistas africanas motivam D. Afonso V, após atingir a 74 maioridade, a dispensar os serviços de D. Pedro. Depois, impulsionado pela fidalguia e com o apoio do Duque de Bragança, combate o tio na Batalha da Alfarrobeira (14 de Maio de 1449), onde este último morre. Livre “do importuno censor”, o monarca português lança-se na cruzada africana. As conquistas no norte de África representam, para Afonso V, o reconhecimento perante a Cristandade da cruzada encetada por Portugal. Mas, para a Coroa, esta empresa era politicamente complexa, dela não advindo riquezas que compensassem a perda de vidas e energias, constituindo a erosão do erário real um facto incontornável. Acresce que a conquista de Marrocos, enquanto ponto decisivo para atingir Jerusalém, também se mostrou estéril. Contudo, as conquistas portuguesas no norte de África concorrem para evitar agitações internas, garantindo à nobreza e à população em geral serviço em prol de uma causa colectiva e uma “escola de guerra”. O vector ibérico, abandonado por D. Pedro em consonância com a tradicional política de Avis, passa, com D. Afonso V, a ter outro entendimento. Em 1455, promove o casamento da sua irmã, D. Joana, com Henrique IV de Castela, lançando as bases de uma política orientada para a Península Ibérica. Desta união nasce a princesa Joana que, após um longo período de esterilidade do rei de Castela, faz levantar a questão da paternidade da princesa. A discussão do assunto introduz uma marcada hostilidade sócio-política relativamente ao monarca castelhano, chegando a assumir contornos insurreccionais. Esta é uma questão decisiva, que dividirá Castela em dois partidos antagónicos, “legitimistas” e “Isabelistas”. Os primeiros, compostos na essência pela alta nobreza, vêm na princesa Joana, (depreciativamente denominada pelos opositores de “A Beltraneja”) a legítima herdeira da Coroa. Os segundos, viam no infante Afonso (irmão de Henrique IV) a solução para conduzir os destinos de Castela. Porém, este sentimento esmoreceu após a morte prematura do infante Afonso, sendo este apoio transferido para a infanta Isabel (sua irmã), que anui assumir o trono após a morte de Henrique IV, ocorrida em Dezembro de 1474. Entretanto, ainda em 1474, Isabel casa com Fernando, herdeiro do trono de Aragão (contrariando a tradicional política de alianças peninsulares), faz-se aclamar rainha de Castela, em Segóvia, e prepara-se para sustentar as suas pretensões contra os partidários da “Beltraneja”. A inserção de Portugal na conjuntura e o ensejo de D. Afonso V em cingir as coroas ibéricas completam o xadrez estratégico peninsular. A questão da sucessão ao trono de Castela, tal como ocorrera em Portugal em 1383, ficava em aberto e à mercê do “partido” politicamente mais hábil e militarmente mais forte. Aproveitando as solicitações feitas pela fidalguia castelhana apoiante de Joana, D. Afonso V fica com “via aberta” para intervir em proveito próprio. Porém, a aliança de Castela com Aragão introduziu um factor destabilizador na balança de poderes da região. Por um lado, colocava Portugal numa situação de inferioridade face ao bloco castelhano-aragonês e, por outro, a França, que mantinha com Aragão um diferendo em relação ao Rossilhão, passava a contar com um adversário de peso junto à fronteira ocidental. Consequentemente, convinha a D. Afonso V a entrada da França numa hipotética campanha, que obrigaria João II de Aragão a desviar atenções militares para a fronteira francoaragonesa, fragilizando a frente interna de apoio ao filho e herdeiro Fernando. Dessa forma, D. Afonso V garantia a liberdade de acção necessária para intervir na região, sujeitando o bloco castelano-aragonês a uma guerra em duas frentes. Assim, D. Afonso V dá início a negociações com Luís XI em Janeiro de 1475, sendo o Tratado de Liga Ofensiva entre Luís XI e D. Afonso V contra o reino de Aragão assinado em Setembro daquele ano. Em Abril de 1475, D. Afonso V enceta os preparativos para dar início à campanha militar, reunindo em Arronches um exército para o efeito, nomeia o príncipe D. João para a regência do reino e marcha para Plasencia, onde realiza esponsais com Joana “a Beltraneja” (não materializados) e recebe apoios dos partidários desta. Iniciava-se a operação “conquista de Castela”. A erosão do tesouro real, que as exageradas doações à fidalguia provocou, aconselhava que a campanha fosse conduzida com muita racionalidade. Para o efeito, dever-se-ia consolidar, inicialmente, os apoios em Castela e, então, defrontar as forças leais aos futuros Reis Católicos. Mas a inépcia política e as irresoluções militares do monarca português deitarão tudo a perder. Desde logo, a espera por reforços em Arévalo (onde sofreu enormes baixas resultantes da peste), permitem a Fernando de Aragão o tempo necessário para reunir “um exército de más tropas” que lança cerco, durante nove meses, a Burgos, leal ao partido da “Beltraneja”. Percepcionando a falta de capacidade operacional para socorrer aquela praça, D. Afonso V abandona-a à sua sorte e dirige-se a Toro que entretanto, se lhe entrega. Mas o episódio de Burgos marca, de forma significativa, a sorte do partido de Isabel que, aos poucos, fruto da irresoluta actividade militar de D. Afonso V, favorece a transferência dos apoios de Joana. Em Dezembro de 1475, forças de Fernando de Aragão lançam cerco a Zamora, leal ao partido do «Africano», dando início a um período de impasse na condução das operações militares. Incapaz de fazer levantar o cerco a Zamora, D. Afonso V pede auxílio ao príncipe D. João que, a partir de Portugal e com o apoio do clero da Beira, organiza uma hoste para reforçar o exército do pai. Com as suas forças regeneradas, e numa tentativa dar batalha a Fernando, “o Africano”, acomete sobre Zamora, localidade que, mais uma vez, estaria no centro das grandes decisões políticas da Península. 75 Caracterização dos Aparelhos Militares O efeito contrário ao espírito da cavalaria medieva introduzido pela besta e pela alabarda nos campos de batalha exponencia-se, a partir do século XV, com a utilização da arma de fogo. Assim, a cavalaria perde importância militar e mantém a sobranceria nobiliárquica, a infantaria ganha dignidade militar, mas permanece na base da pirâmide social, a artilharia anula a característica de baluarte defensivo do castelo e redu-lo a casa senhorial, a engenharia desenvolve as futuras fortalezas abaluartadas enquanto anti-arma dos projécteis de ferro. Porém, a diminuta mobilidade e a baixa cadência de tiro, aliadas à reduzida eficácia demonstrada no número de baixas causadas no província de acordo com os bens e classe social, insere o recrutamento dos artilheiros, por contrato, na classe dos mesteirais dos burgos. As primeiras notícias do emprego deste novo tipo de armamento, em batalha, são na malograda tentativa de conquistar Tânger (1437), na qual os espingardeiros não estariam, ainda, organizados num corpo autónomo, combatendo por isso lado a lado com besteiros. A regência de D. Pedro reveste-se de especial importância no que concerne à organização militar e à aquisição de material oriundo, principalmente, do Norte da Europa. É com o Infante que surge a função de Vedor-Mor da Artilharia (1446), reconfirmada posteriormente por Afonso V (1449), cujas competências eram sobretudo territoriais: identificar as peças de artilharia pertencentes à Coroa e que andassem Serpentina e Falconete. DUARTE, Luís Miguel, “1549-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003 inimigo, leva a que a artilharia raramente seja usada em batalhas campais. Já as armas de fogo individuais (espingardas de mecha), colectivas ligeiras (bombardas de mão ou colibrina) ou colectivas pesadas (canhões como a serpentina e o falconete montados em carretas) conheceram uma forma relativamente eficaz de emprego em batalha. A introdução das armas de fogo em Portugal coincide com o início da dinastia de Avis. D. Duarte, pelo Regimento de Coudéis, para além de definir as obrigações de cada súbdito e 76 extraviadas, fazendo-as recolher aos armazéns régios; requisitar, aos juízes locais, meios de locomoção (em geral, animais), bem como carros e barcas para o transporte das peças; controlar a entrega das peças nos referidos armazéns para emprego da hoste real; garantir o pagamento a mesteirais (bombardeiros, carpinteiros, pedreiros e ferreiros) destacados para o serviço da artilharia; garantir que os castelos e respectivos armazéns estivessem devidamente providos de artilharia (peças, munições e pólvora) e que esta fosse bem DUARTE, Luís Miguel, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003 Espingarda. usada e cuidada. É na segunda metade do século XV que, decorrente dos empenhamentos no Norte de África, se encontra uma preocupação de organizar os espingardeiros para combate. O seu emprego nas campanhas marroquinas deve-se, provavelmente, à generalização da espingarda que, em 1460, já se fabricava em Portugal, ainda que a importação deste armamento tivesse um peso significativo em termos de geração de forças. Deste modo, os espingardeiros encontravamse organizados em corpo próprio e o recrutamento e treino era dirigido pelo Anadel-Mor dos espingardeiros, cargo criado à semelhança do que existia para a bestaria de conto. De facto, a importância que esta nova força possui em batalha verifica-se com o seu emprego na batalha de Toro, quer do lado castelhano (ainda que o seu emprego só fosse generalizado nas primeiras duas décadas do século XVI), quer do lado português. Em batalha, a principal tarefa destas armas era de desorganizar a cavalaria inimiga, de forma a criar brechas para perturbar e enfraquecer o efeito do choque da carga inicial. Isso é visível em Toro, onde a primeira salva dos espingardeiros castelhanos paralisou e assustou os cavalos portugueses e os disparos dos espingardeiros do príncipe D. João facilitou o trabalho das lanças que romperam com grande ímpeto a formação castelhana. Não obstante, a introdução das armas de fogo teve, inicialmente, efeitos bastante penosos para os exércitos. O A Pólvora e a Transformação da Guerra O aparecimento da pólvora nos campos de batalha representou o fim de uma era e constitui a primeira (e porventura maior) transformação dos assuntos militares. Trata-se de um acontecimento “revolucionário”, desenvolvido ao longo de décadas, que impeliu a profundas alterações políticas (centralização do poder do estado e do príncipe), sociais/mentalidades (fim da exclusividade guerreira da cavalaria e consequente “democratização” da guerra com a crescente importância do infante), económicos (porque os novos meios técnicos eram dispendiosos e os exércitos se sobredimensionaram, os poderes passaram a ponderar o binómio custos/objectivos) e militares (readaptações de planeamento estratégico, organização dos dispositivos, novas concepções tácticas). Com a utilização da pólvora nos meios de coacção militares entra-se, assim, na época técnica da arte da guerra, em que a tendência latente é a eliminação, simultaneamente física e moral, do adversário. A bravura cede o lugar à mecânica, pois aquele que brandir a melhor arma e dela souber tirar o máximo proveito técnico e táctico é o adversário mais temível, qualquer que seja a sua situação social ou a sua coragem. Desta forma, a cavalaria, renitente em adaptar-se aos novos tempos e à novas armas, vê a sua importância decair, não compreendendo que a pólvora transformara o modo de vida cristão da Idade Média. A guerra deixara de ser uma prova moral pela batalha, um julgamento de Deus que a Igreja arbitrava em seu nome; agora, era um meio de que os governantes se socorriam para atingir fins políticos. aumento assinalável dos efectivos dos exércitos (para além dos homens, a necessidade de transportar o armamento, munições e pólvora careceu de um aumento no número de animais) associado a uma incapacidade sanitária de processar os resíduos, que por certo inquinariam fontes de água e alimentos frescos, levaram para ao campo de batalha a peste, um inimigo invisível e quase impossível de combater. 77 78 79 Descrição da Batalha Situada a meio caminho entre Zamora e Tordesilhas (localidades leonesas emblemáticas na História de Portugal), Toro é uma pequena vila que D. Afonso V transformou em base operacional da campanha em Castela. Em meados de Fevereiro de 1476, o monarca sai de Toro e marcha para Zamora, que Fernando de Aragão submete a um cerco a partir das muralhas a norte. Sem capacidade militar para romper o assédio do adversário e levar auxílio aos sitiados no castelo, D. Afonso V monta arraial na margem esquerda do Douro, junto da ponte e em linha de vista com a porta sul, fortificando o terreno. Dessa forma, controlando o itinerário de exfiltração e mantendo o exército de Fernando sob pressão, D. Afonso V espera provocar batalha. No campo contrário, Fernando, enquanto recebe reforços de Isabel, a partir de Burgos, e “mede” a força de D. Afonso V, propõe tréguas, que resultam inócuas face às exigências territoriais do rei português. Decorridos cerca de quinze dias e perante o impasse, agravado por condições climatéricas adversas que minam o moral da tropa, a 1 de Março D. Afonso V levanta o arraial e decide recolher a Toro. É nesta altura que Fernando, liberto de pressão, abandona Zamora e marcha na peugada do inimigo. Envia uma força de cavalaria ligeira a esclarecer a situação, que estreita contacto com a guarda da retaguarda e é repelida. Então, perto do fim da tarde, o grosso do exército castelhano depara-se com o exército português na veiga de Toro, nas cercanias de Peleagonzalo. Feito o contacto, os dois exércitos “medem-se” e os respectivos comandantes determinam dar batalha, conscientes que o seu resultado decidirá a sorte da guerra. A região de Peleagonzalo, relativamente plana, é delimitada a Norte e a Oeste pelo rio Douro, e a Sul pelas elevações de Castro Queimado. Com a frente para Sudoeste, o exército de Afonso V adoptou a seguinte ordem de batalha: na vanguarda, com peças artilhadas à sua frente, estava o senhor da Feria com os seus homens de armas, no centro da qual se posicionou o «Africano» com o estandarte real; na ala direita, apoiada no rio Douro, estava o arcebispo de Toledo, com as suas lanças, e as forças do Duque de Guimarães e de Vila Real; na ala esquerda, apoiado nas cercanias da serra, o príncipe D. João organizou uma força menos numerosa que as restantes, mas “cortesaã e mui 80 limpa”, que contava com os espingardeiros do bispo de Évora, que lhe guarneciam o flanco direito, e um grupo de fiéis da “sua casa” e de besteiros, que sustentavam o flanco esquerdo; a reserva estava sob o comando do Conde de Monsanto que, juntamente com os quatro corpos de peonagem, foi colocada na retaguarda, junto ao Rio Douro. A hoste castelhana, cujo potencial se equivalia ao português (cerca de 10 000 homens), posicionou-se da seguinte forma: na vanguarda, a guarda real, comandada pelo mordomo-mor Henrique, onde se distribuíram os espingardeiros; na ala direita, sob o comando de Álvaro de Mendoza, seis pequenos troços de homens de armas, fronteiro ao contingente de D. João; a ala esquerda, comandada pelo Duque de Alba, estava no enfiamento do Arcebispo de Toledo e compreendia cavalaria e espingardeiros; a peonagem encontrava-se à retaguarda da vanguarda, preenchendo os seus intervalos, sob o comando de D. Fernando; a “encerrar” o dispositivo encontrava-se uma pequena reserva. Portanto, os dois exércitos organizados para a batalha encaixavam um no outro: formavam em duas linhas, a vanguarda e as alas consistiam em troços de cavalaria e espingardeiros, a segunda linha, apeada, era constituída por piqueiros e besteiros, enquanto um pequeno núcleo de reserva montada (superior no dispositivo português) aguardava as contingências da batalha. As diferenças estavam na peonagem, que no caso português se situava à retaguarda da reserva e, principalmente, ao nível dos comandantes, pois D. Afonso V estava na linha da frente, enquanto D. Fernando se resguardou na linha de peonagem. Debaixo de chuva e na fase crepuscular de um frio dia de Inverno, as trombetas dos contendores dão o sinal de início da batalha e os gritos de guerra impelem os homens a medir forças. Iniciava-se a batalha de Toro, marcada pela confusão de decisões contraditórias e ataques simultâneos que redundou no seu fraccionamento, com resultados divergentes. Assim, enquanto as vanguardas se entrechocam, do lado do rio o Duque de Alba acomete a força do Arcebispo de Toledo e, na direcção oposta, D. João irrompe contra o flanco de Álvaro de Mendoza. O ataque da cavalaria e dos espingardeiros do Duque de Alba rompe a ala direita portuguesa, desorganizando-a, criando uma situação de Autores Croqui da batalha. desequilíbrio passível de envolver o dispositivo. Esta acção criou a desordem nas forças da retaguarda e colocou a vanguarda portuguesa na iminência de combater numa frente invertida, que lhe seria fatal. Perante a rotura da sua força, a impotência da segunda linha e a inacção da reserva, que se colocam maioritariamente em fuga na direcção do rio, D. Afonso V, desconhecendo o que se passava no “combate de D. João”, dá a batalha como perdida e abandona o campo, recolhendo à fortaleza de Castro Nuño. Contudo, no “outro lado da batalha” os acontecimentos favoreciam as armas portuguesas. Detendo a iniciativa, D. João, apoiado pelos espingardeiros do bispo de Évora, caiu sobre os seis troços dos homens de armas de Álvaro de Mendoza, que desbaratou e empurrou para dentro das linhas inimigas, seguindo-se uma fuga desordenada na direcção dos montes sobranceiros, debaixo de perseguição das tropas do príncipe. No entanto, não tendo conhecimento do desenrolar da batalha no seu todo, D. João troca a exploração do sucesso e regressa à posição inicial, reorganizando as suas forças na posição, onde se lhe junta o remanescente da ala direita desarticulada pela ofensiva do Duque de Alba. Porém, o tempo perdido na perseguição ao contingente de Álvaro de Mendoza gorara, eventualmente, a oportunidade de anular o sucesso do ataque do Duque de Alba às tropas de D. Afonso V. Decorridas três horas de batalha e com a noite a velar o campo, Fernando de Aragão, que assistiu à retirada de D. Afonso V, à derrota de Álvaro de Mendoza e acompanha a actuação de D. João, receia o desenlace da batalha e retira para Zamora, deixando a condução das operações ao Duque de Alba, que não terá consequências. D. João é senhor do campo, onde permanece simbolicamente durante três horas, a conselho do Arcebispo de Toledo, e se posiciona como vencedor, mandando acender fogueiras e tocar trombetas. Só então retirou para Toro, onde entrou de forma triunfante e soube da “sorte” do pai, conseguindo mitigar o caos que grassava na cidade. 81 82 Batalha de Toro. contrariamente à primeira, é bem sucedida na refrega inicial. Porém, a falta de coordenação e de comando e controlo impedem uma acção de conjunto do “grupo” de D. João, desconhecedor das ocorrências da batalha no seu todo. Fernando de Aragão, numa posição resguardada, deixa ao livre arbítrio do comandante da sua vanguarda o desenrolar da acção. Neste sentido, se o combate inicial terá resultados positivos para o partido castelhano, em virtude da manobra de envolvimento produzida pela sua ala esquerda, a ausência do rei é determinante para a retirada do contestável de Castela, impossibilitado de fazer a exploração do sucesso. Esta retirada castelhano-aragonesa permite a D. João permanecer no campo de batalha, por três horas, dando, perante os costumes, a vitória aos portugueses. Toro é, acima de tudo, uma batalha de grandes feitos individuais mas, militarmente, uma derrota de ambos os contendores e uma prova da “pequenez” táctica dos dois comandantes, que se permitiram abandonar o campo de batalha como desconhecedores do seu desenlace. D. J http://www.vidaslusofonas.pt A importância da batalha de Toro visualiza-se na proeminência dos chefes militares presentes, concretamente, o rei e o príncipe de Portugal, de um lado, o príncipe herdeiro de Aragão e o condestável de Castela, do outro. Toro é uma batalha em que dois exércitos de potencial equivalente se defrontam na procura de um resultado politicamente definitivo. Porém, apesar do valor individual demonstrado, o resultado é militarmente indefinido. Para isso muito contribuíram as condições em que a batalha se desenrolou. O terreno, relativamente plano e empapado, conjugado com as condições meteorológicas adversas e o cair da noite apresentam-se como um factor multiplicador dos desacertos tácticos de ambos os contendores. A ausência de planeamento fica patente nos esquemas de manobra adoptados por ambos os adversários em Peleagonzalo. A opção de uma reserva fraca, no centro do dispositivo de Fernando, indicia o conhecimento que este detém da ameaça portuguesa, permitindo-lhe colocar o máximo potencial na frente. Para D. Afonso V, o desconhecimento do potencial de combate do inimigo é notório. Por isso necessita de uma reserva forte situada o mais próximo possível da frente, de modo a reduzir os prazos de intervenção e, assim, assegurar a necessária flexibilidade durante a batalha. Além do mais, a reserva situa-se num local servido de caminhos que facilitam a sua intervenção e cumulativamente garante profundidade ao dispositivo na ala direita. O resultado indeciso da batalha começa a desenhar-se logo pós o soar das trombetas. Em Toro denota-se falta de coesão nos dispositivos, que é maximizada pela ausência de comando e controlo por parte dos dois monarcas. Afonso V, ao mais puro estilo medieval, coloca-se junto da vanguarda, o que lhe retira capacidade de tomar decisões durante o desenrolar da batalha, permitindo que cada “troço” combata de per si. A ala direita é rompida e coloca-se em fuga, desorganizando a reserva e a peonagem que estava na sua retaguarda. Falta de liderança? Moral baixa? O facto é que esta retirada se apresentou fatal para a vanguarda. Sem possibilidade de repor a frente na ala direita, D. Afonso V vê-se envolvido e colocado perante a contingência de combater em duas direcções. A ala esquerda, http://purl.pt Análise da Batalha oão II. SARAIVA, José Hermano (coord.), História de Portugal, (Vol. III, Quidnovi, 2004 Tratado de Alcáçovas. Consequências Se a batalha de Toro foi militarmente inconclusiva, as consequências políticas resultantes da campanha portuguesa em Castela foram definitivas. D. Afonso V viu esvair-se o objectivo de união das coroas de Portugal, Castela e Leão sob o seu ceptro. Após a batalha, D. João recolhe a Portugal de modo a garantir a defesa da fronteira do Alentejo, sujeita a assédios nos anos seguintes. Enquanto isso D. Afonso V, tendo a percepção da dificuldade de derrotar Isabel e Fernando sozinho, retira de Castela em Junho de 1476. No final desse ano, o «Africano» manda preparar uma armada e parte para França, com o objectivo de solicitar o cumprimento do Tratado luso-francês de 1475, ou seja, motivar a França a auxiliar Portugal na campanha contra o bloco castelhanoaragonês. Porém, com Toro tudo havia mudado. O prestígio de “O Africano” diluiu-se junto de Luís XI, não obtendo disponibilidade para a empresa. Entretanto, Isabel firma-se como rainha de Castela, unindo o estrato social do reino, enquanto Fernando sobe ao trono de Aragão em 1479. Do enlace matrimonial entre os dois e da união das duas coroas surgirá, posteriormente, a Espanha, onde o prestígio dos Reis Católicos sobe de patamar, particularmente junto de Roma, com a conquista de Granada em 1492. Assim, D. Afonso V vê diminuir o peso relativo de Portugal face ao conjunto peninsular por oposição à dinastia castelhana-aragonesa, perde credibilidade política junto da França e desperdiça as “boas graças” do sumo pontífice. Tal situação é suficiente para o monarca português entrar num estado de letargia, que o impele à vontade de resignar em nome do filho. E, de facto, a partir de 1477, é D. João quem governa, em nome do pai. Portanto, Toro desligou, definitivamente, Castela de Portugal e criou um clima de agressividade que se estendeu ao mar, passando os castelhanos a atacar os entrepostos comerciais portugueses em África e a disputar o domínio da rota da Guiné. D. Afonso V reconhece, então, os Reis Católicos como soberanos legítimos de Castela e abandona as pretensões às Canárias, enquanto que Castela anula as reivindicações a tudo o que fica para sul deste arquipélago, até à Guiné. A estratégia portuguesa passou a residir no domínio marítimo desde a costa portuguesa à Guiné e no exercício do esforço negocial com a Santa Sé. Assim, Em 1479, Portugal celebra com Castela a paz de Alcáçovas, que põe fim à guerra peninsular e aos diferendos ultramarinos, através de uma primeira delimitação, em latitude, dos espaços marítimos das duas potências. Conjuntamente com o Tratado de Alcáçovas, no sentido de serem dadas garantias recíprocas de paz, assinava-se também o Tratado das Terçarias de Moura, no qual D. Afonso, primogénito de D. João, casaria com a Princesa D. Isabel, filha dos reis Católicos, e D. Joana de Portugal casaria com o príncipe D. João de Castela. O «Africano» morreria acalentando o sonho de união Ibérica. O que não se havia sido conseguido pelas armas mostrava-se, agora, possível através do engenho diplomático do Príncipe Perfeito, apresentado internamente como o vencedor de Toro. Após 1481, D. João II é rei de Portugal que, de acordo com as suas palavras, e fruto das liberdades que o pai concedera à fidalguia, “era rei das estradas do reino”. Mas tudo iria mudar nos anos seguintes, para quem a centralização régia e a estratégia de “conter Castela em terra e batê-la no mar” seriam o normativo da governação. 83 Curiosamente, a batalha de Toro, segundo as crónicas da época, teve dois vencedores. Efectivamente, o cronista castelhano Hernando del Pulgar, e o português Rui de Pina, enfatizam a vitória memorável da sua bandeira. O mesmo acontece quando Fernando de Aragão a relata por carta aos dignitários do reino, a partir de Zamora (logo a 2 de Março de 1476) e D. João II, como rei, o faz à Câmara do Porto (11 de Março de 1482). Estrondosa vitória, que justifica, em ambos os reinos, efusivas e solenes festas religiosas em acção de graças, que se arrastam por anos, e mercês aos valorosos combatentes que dignificaram as armas reais. Curioso paradoxo. Contudo, a batalha de Toro releva, sobretudo, de actos de heroísmo individuais, que merecem perdurar na memória colectiva. D. Duarte de Almeida, o Decepado, é, sem dúvida, um desses heróis que timbraram com honra o sangue vertido no campo de batalha. No final da tarde de 1 de Março de 1476, em Castro Queimado, na fase mais dura da peleja, D. Duarte de Almeida, alferes-mor do reino e a quem estava confiado o pendão real, viu-se cercado de inimigos que procuravam capturar a balsa portuguesa. Nesse sentido, uma lâmina castelhana desfere um golpe, amputando a mão direita do valoroso alferes. D. Duarte passou o pendão real para a mão esquerda que, resultante da acção de outra lâmina castelhana, não tardou a ser cortada. No entanto, perante a dor, a resistência daquele cavaleiro não fraquejou e, conforme relata Sousa Viterbo, “com os côtos e com os dentes, no phrenesi da honra e do patriotismo, oppunha ainda a mais tenaz resistência”. Incapaz de resistir, o pendão real foi, então, arrebatado ao decepado, depois de este ser derrubado da sua montada. O alferes-mor terá sido levado como prisioneiro para Zamora e as suas armas e arnês para a Igreja de Santa Maria de Toledo. Mas o pendão real português, arrancado «a ferros» do http://nelsonas.do.sapo.pt Curiosidades Episódio de “O Decepado”. alferes-mor, não se manteve em posse castelhana o tempo suficiente para que o inimigo pudesse tirar partido da glória alcançada. Efectivamente, Gonçalo Peres, posteriormente apelidado de Bandeira, um simples soldado sem o nome inscrito no rol da nobreza, é outro dos nomes associados a Toro. O assédio dos cavaleiros castelhanos a D. Duarte de Almeida foi, provavelmente, presenciado pelo escudeiro Gonçalo Peres, que se colocou no caminho daquele que transportava a balsa régia portuguesa (um fidalgo castelhano de sobrenome Sottomayor) e “tão rijo golpe lhe deu, que o derrubou e aprisionou, tomando-lhe o precioso trophéo, que foi logo apresentar ao principe, cujo contentamento bem se póde imaginar” (Viterbo). O prémio a Gonçalo Peres surgiu cerca de sete anos depois dos acontecimentos de Toro pela mão de D. João II sob a forma de carta de fidalgo, onde atribuía um brasão de armas e a possibilidade de acrescentar, ao seu nome, o apelido de Bandeira. Toro não foi apenas uma batalha de resultado indefinido, foi acima de tudo uma batalha medieval no alvor da época moderna onde o valor individual se sobrepôs ao valor do todo. Os exemplos de coragem, lealdade e abnegação traduzidos nas acções de D. Duarte de Almeida e de Gonçalo Peres Bandeira e tantos outros heróis de Toro são, ainda hoje, reconhecidos e lembrados. Autores: Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada, Professor de História Militar do IESM. Major Luís Falcão Escorrega, Professor de Estratégia do IESM. Major António Cordeiro Menezes, Professor de Táctica do IESM. Bibliografia - DUARTE, António Paulo, Equilíbrio Ibérico. Séc. XI – XX. História e Fundamentos, Lisboa, Edições Cosmos e Instituto de Defesa Nacional, 2003. - DUARTE, Luís Miguel, “1495-1549: o Triunfo da Pólvora”, in Nova História Militar, Direcção de Themudo Barata e Severiano Teixeira, Vol. 1, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2003. - DURO, Cesáreo Fernandez,”La Batalla de Toro (1476). Datos y Documentos Para su Monografía Histórica”, in Boletin de la Real Academia de La Historia, Tomo 38, Cuaderno IV, Abril de 1901. - GOMES, Saul António, D. Afonso V, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2006. - RODRIGUES, Barros, Organização dos Exércitos, Organização Militar Portuguesa, Estratégia, Geografia e História, Secção IV, História Militar, Lisboa, Escola do Exército, 1935-1936. - VITERBO, Sousa, “A Batalha de Toro. Alguns dados e documentos para a sua monographia histórica”, in Revista Militar, Ano LII, nº 6, Lisboa, Março de 1900. 84