Família e Adoção: os novos paradigmas que autorizam a adoção
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Família e Adoção: os novos paradigmas que autorizam a adoção
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE – UNIFLU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADO EM DIREITO RELAÇÕES PRIVADAS E CONSTITUIÇÃO FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS. BRASIL. 1988-2006. CARLA HECHT DOMINGOS CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ 2006 CARLA HECHT DOMINGOS FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS. BRASIL. 1988-2006. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Direito, da Faculdade de Direito de Campos – FDC, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito, na área de concentração Relações Privadas e Constituição. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela Maria Gomes CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ 2006 CARLA HECHT DOMINGOS FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS. BRASIL. 1988-2006. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Direito, da Faculdade de Direito de Campos – FDC, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito, na área de concentração Relações Privadas e Constituição. Aprovada em 08 de agosto de 2006. BANCA EXAMINADORA ____________________________ Dr.ª Rosângela Maria Gomes Orientadora _____________________________ Dr.ª Heloísa Helena Barboza _____________________________ Dr. Eduardo Takemi Kataoka Dedico este trabalho a todos aqueles que tiveram a oportunidade de desfrutar do calor humano de um lar através da adoção, com a esperança de que se tornem cidadãos conscientes e obstinados a tentar modificar essa realidade de abandono e privação. Agradeço primeiramente a Deus que tornou possível a realização deste sonho, e que, além de me conceder um ideal de justiça, me abençoou com o firme propósito de lutar por aqueles que se encontram injustiçados e marginalizados. Aos meus pais pelo carinho e amor com que me educaram; pelo esforço contínuo e, às vezes, sacrificante com que contribuem para minha realização pessoal e profissional; pela confiança e esperança que sempre depositaram no meu trabalho; por tudo o que sou e por tudo que ainda me tornarei, o meu eterno muito obrigada. À minha irmã pelo amor e amizade dispensados a mim nesse período que foram responsáveis por nos unir definitivamente. Ao meu noivo e a minha sobrinha Ana Clara, verdadeiros responsáveis pelo sentido da minha vida. À amiga Bia, pela sua amizade e também por ter colaborado para o aprimoramento deste trabalho. À amiga Angélica, por sua amizade, pelo seu companheirismo e pela força dispensada principalmente no início dessa caminhada. A todos descritos acima e a todos os amigos e familiares queridos, agradeço a compreensão pela ausência neste período. À amiga Danuza Crespo Bastos por toda colaboração com o empréstimo de materiais para a elaboração dessa dissertação e por todos os ensinamentos transmitidos nesse período do Mestrado. À professora e orientadora Dra. Rosângela Gomes, pessoa tão querida e amável, agradeço por me orientar, por todos os ensinamentos, por sua disponibilidade e por toda a tranqüilidade transmitida nesse período tão difícil. Ao Dr. Leonardo Greco, homem admirável e profissional respeitável, agradeço todos os ensinamentos profissionais e humanos. Agradeço também por ter me selecionado entre os bolsistas da CAPES no segundo semestre de 2004, posto que, se não fosse por essa escolha, com certeza esse sonho profissional não se realizaria. A todos da Faculdade de Direito de Campos, em especial ao Dr. Levi Quaresma, à Dra. Gláucia Quaresma e ao Dr. Armando Fahat, agradeço a oportunidade, o carinho e a confiança no meu trabalho. “Se a justiça se obtém pela lei, Cristo morreu em vão.” Gálatas 2:21 RESUMO O objetivo do presente trabalho é demonstrar a possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais. A demonstração dessa possibilidade realizar-se-á quando ficarem evidenciadas várias transformações na sociedade. A primeira certamente ocorreu na família, que por ser uma entidade natural e histórica, seu processo evolutivo molda-se ao momento histórico, social, religioso, político e econômico no qual a sociedade viveu. Conseqüentemente, a adoção também se transformou, posto que o instituto da adoção sempre esteve, e provavelmente sempre estará, diretamente relacionado à família. A adoção inicialmente tinha por finalidade satisfazer aos interesses dos pais; com a evolução, a adoção abandonou esse objetivo e passou a intentar de forma única e, portanto, exclusiva, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Verificar-se-á que o marco das principais modificações referentes à família e à adoção na sociedade brasileira ocorreu com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A Constituição consagrou vários princípios como, por exemplo, o princípio da igualdade, da liberdade e da dignidade humana como essenciais a um Estado Democrático de Direito. Desse modo, constatar-se-á que a Constituição de forma implícita reconheceu a união homossexual como espécie de entidade familiar, uma vez que todos têm o direito de formar a família que melhor atenda às suas necessidades e possibilite a promoção da dignidade humana de seus membros. Além disso, a Constituição transformou as crianças e os adolescentes em sujeitos de direitos, e dentre esses direitos determinou como direito fundamental a convivência familiar e comunitária. Encontra-se nesse âmbito a importância da adoção, pois através dela se viabilizará à criança e ao adolescente o direito fundamental da convivência familiar e comunitária. Sendo assim, realizar-se-á um comparativo entre os inquestionáveis males da institucionalização com os controversos malefícios da convivência de crianças e adolescentes em famílias homossexuais. Isto feito ficará caracterizada a possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais com base em vários princípios constitucionais, mas principalmente com base no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Palavras-chave: homossexuais. melhor interesse; criança; adolescente; adoção; família; ABSTRACT The aim of the current essay is to demonstrate the judicial possibility of adoption by homosexual couples. The demonstration of such a possibility will be made possible when the changes in society become evident. The first change certainly occurred within the family, a natural and historical entity, whose evolving process adjusts to the historical, social, religious, political and economical moment in which our society has lived. Consequently, the adoption process has changed, whereas it has been and will probably always be directly associated to family. Initially adoption has had as aim to satisfy parents´ interests; with evolution, the process has abandoned this objective, coming to only and exclusively aim at the principle of children and teenagers´ best interest. It is observable that the breakthrough of the main modifications referring to family and adoption in Brazilian society occurred with the publishing of the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988. The Constitution has established several principles such as the principle of equality, of liberty and of human dignity as essential to a Lawful Democratic State. Therefore it can be said that the Constitution in an implicit way has recognized the homosexual union as a kind of family entity, since everyone has the right to form the family which best meets their needs and which promotes human dignity of its members. Besides, the Constitution has turned children and teenagers into lawful subjects, and among these rights has determined as fundamental the right to live together with a family in a community. Such is the importance of adoption for through it children and teenagers will reach the fundamental right to live in a family and in a community. So a comparison can be made between the unquestionable harm if institutionalization and the controversial damages of living with a homosexual family. By doing so the judicial possibility of adoption by homosexual couples will be characterized, based on several constitutional principles, but chiefly based on the principle of children and teenager best interest. Key-words : best interest; children; teenagers; adoption; family; homosexual. SUMÁRIO RESUMO/ABSTRACT INTRODUÇÃO...........................................................................................................09 PARTE I – DA FAMÍLIA 1. A evolução e o novo perfil das entidades familiares..............................................13 PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO 2. Antecedentes históricos........................................................................................ 41 3. Análise da adoção na legislação brasileira a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988................................................................................55 4. A questão jurídica da adoção por casais homossexuais.......................................82 CONCLUSÃO...........................................................................................................125 REFERÊNCIAS........................................................................................................130 ANEXO A – Jurisprudência sobre uniões homoafetivas tratadas pelo direito como sociedade de fato....................................................................................141 ANEXO B – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0 Distrito Federal.....................................................................................................145 ANEXO C – Jurisprudência sobre Adoção por casal formado por duas pessoas de mesmo sexo.............................................................................................153 ÍNDICE ....................................................................................................................170 INTRODUÇÃO O Brasil é um país desprovido de programas eficientes de planejamento familiar e de acesso à contracepção pela população mais pobre. Em conseqüência, verifica-se um aumento de crianças abandonadas nas ruas ou nas instituições. Nesse quadro vexatório em que o país encontra-se, o instituto da adoção se apresenta como um meio alternativo, como um remédio subsidiário, e não principal, para a solução dos problemas das crianças e dos adolescentes abandonados. Diante disso, o presente estudo tem por objetivo perfilhar a idéia de que o melhor interesse da criança e do adolescente aliado aos vários princípios constitucionais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – que viabilizam aos indivíduos formarem a família que melhor atenda as suas necessidades – autorizam a possibilidade da adoção por casais homossexuais. A Constituição de 1988 tem, diante disso, papel fundamental e essencial, uma vez que foi a partir dessa que os princípios da dignidade humana, da igualdade, da liberdade entre os sujeitos, dentre outros princípios, consagraram-se na sociedade brasileira. O trabalho em tela é resultado de dois objetivos centrais: a um, busca repensar a família, com todas as suas pluralidades e particularidades; a dois, visa demonstrar a possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais como mais um meio alternativo de viabilizar a inserção familiar daqueles que dela foram privados. 10 Preliminarmente, considerar-se-á a evolução da entidade familiar, desde que se tem notícia da família, até os novos valores que se apresentam na sociedade no século XX e no início do século XXI. A família no Direito Romano originou-se tendo por base a perpetuação do culto aos antepassados, ao passo que no final do século XX sua base passou a ser o afeto, abandonando o modelo familiar tradicional e impondo uma concepção descentralizada, igualitária, desmatrimonializada e plural. Dentro dessa realidade, outras espécies de entidades familiares são reconhecidas explicita e implicitamente pela Constituição de 1988. E para que seja possível a visibilidade das entidades familiares implícitas, faz-se indispensável que sejam analisados, paralelamente às transformações e aos anseios da sociedade, os princípios constitucionais que devem conduzir o intérprete à melhor interpretação em prol da viabilidade da promoção da dignidade humana. Ademais, a dignidade da pessoa humana é a base de todas as normas constitucionais, além de ser o fio condutor para que o Estado se efetive como um Estado Democrático de Direito. Dessa forma, a união homossexual, aqui denominada por união homoafetiva, enquadra-se nas espécies de entidades familiares implicitamente reconhecidas pela Constituição. A família passa a ser, a partir da Constituição de 1988, o elemento indispensável de viabilidade da promoção da dignidade humana. Considerando a união homoafetiva uma espécie de entidade familiar, aparentemente nenhuma controvérsia obstaria que essa espécie de união também pudesse se transformar em uma família substituta; até porque nenhum texto legal traz a definição do que vem a ser uma família substituta, bastando para tanto que 11 seja capaz de promover a dignidade humana das crianças e dos adolescentes, que nem a rua, nem as instituições são capazes de lhes oferecerem. Todavia não é o que se verifica. Além do argumento de que as uniões homoafetivas não são espécies de entidades familiares, existem outros como, por exemplo, o argumento de que essa espécie de adoção, por casais homossexuais, contraria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio Constitucional e Estatutário, graças aos artigos 5º, §3º e 43 respectivamente. Será demonstrado que até se chegar a esse princípio, a adoção não se fundava no interesse da criança e do adolescente, mas e tão somente no interesse dos pretensos pais adotivos. Analisar-se-á que a adoção sofreu inúmeras alterações visíveis nas legislações existentes desde o Código Civil de 1916 até o Código Civil de 2002; e para uma melhor compreensão da evolução do instituto, serão analisadas as transformações desde o direito greco-romano até o direito brasileiro do início do século XXI. Durante muito tempo, a função social da adoção era dar filhos a quem a natureza não dera. Posteriormente, mais precisamente a partir do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a adoção deixou de privilegiar o interesse dos pretendentes à adoção e sobrepôs o melhor interesse da criança e do adolescente a qualquer outro interesse. Logo, a função social da adoção deixou de ser a de dar uma criança para uma família e passou a ser a de dar uma família à criança. Portanto, um dos principais motivos que conduz a interpretação da possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais é considerar que essa adoção atende ao princípio do melhor interesse na exata medida que retira as crianças e os adolescentes das ruas ou das instituições e os insere em um lar. 12 Com isso objetiva-se desmistificar a falácia de que a adoção por homossexuais prejudica o crescimento sadio da criança ou do adolescente. Demonstrar-se-á que essa espécie de adoção contribui para que mais crianças e adolescentes sejam criados e educados em um lar, tendo amor e carinho individualizados, não correndo o risco de crescerem marcados pelo abandono das instituições ou das ruas. Além disso, é prudente lembrar que, conforme dispõe o Estatuto, a adoção possui caráter estritamente excepcional e só deve se efetivar quando cessada toda a possibilidade da criança ou do adolescente permanecer com a família natural. Tornando claro que a adoção apenas deve ser aplicada aos casos de abandono. Isto posto, o que deve ser sopesado não é se a criança ou o adolescente estaria em melhores condições com uma família heterossexual ou com uma família homoafetiva, mas se estaria em melhores condições nas ruas, nas instituições ou com uma família homoafetiva. Destaca-se que não se busca com este trabalho fazer uma apologia à adoção por casais homoafetivos, objetiva-se colocar esses casais nas mesmas condições que os casais heterossexuais, passando por avaliações equivalentes pela equipe interdisciplinar, podendo ser ou não considerados aptos à adoção, mas de maneira alguma terem vetada essa possibilidade simplesmente pela orientação sexual ser diversa da maioria dos casais da sociedade. PARTE I – DA FAMÍLIA 1. A EVOLUÇÃO E O NOVO PERFIL DAS ENTIDADES FAMILIARES. Não se inicia qualquer locução a respeito da família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral [...] a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da 1 própria humanidade. A família é uma entidade natural, histórica, ancestral e mutável, na qual sua história se mescla com a história da humanidade. Destarte, não é possível estudar a história da família de forma linear, pois os seres humanos, ao escolherem a melhor forma de convivência familiar, fazem com que as transformações ocorram de diferentes formas. Diante do momento histórico em que se vive identifica-se o porquê de certas transformações e/ou diferenças na estrutura da família. Para que se possa entender determinadas mutações pelas quais as sociedades passam, faz-se indispensável adequar o processo evolutivo da família ao momento histórico, social, religioso, político e econômico em que esta sociedade vive ou viveu. Acredita-se que os diferentes momentos históricos influenciam e determinam os diversos modelos familiares. “O Direito de Família, mais de que qualquer outro 1 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista do Advogado, n. 62, p. 16-24, mar. 2001. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2001. p. 16. 14 ramo do Direito, está sempre na dependência da evolução dos costumes, e obviamente sujeito às influências ético-sociais.” 2 Sob este prisma, o presente capítulo tem por escopo demonstrar que ao longo da história o perfil da família sofreu gigantescas transformações que desencadearam um processo de reestruturação da família. Fato certo e notório é que a família já não se funda mais nos motivos de outrora. Na sua origem no Direito Romano sua base era a perpetuação do culto aos antepassados; já no final do século XX sua base passou a ser o afeto, elemento sem o qual se justifica a dissolução de uma entidade familiar. Por outro lado, determinadas características estigmatizantes resistem como, por exemplo, a não aceitação das famílias formadas por casais homossexuais, mesmo nesta família reestruturada da primeira década do século XXI. As Constituições Brasileiras anteriores à Constituição da República Federativa do Brasil de 19883 dispunham que a família brasileira constituía-se única e exclusivamente através do casamento. A promulgação da Constituição de 1988 modificou essa situação e outras formas de entidades familiares - além daquelas constituídas pelo matrimônio passaram a ser protegidas Constitucionalmente. Além disso, a Constituição de 1988: ...recepcionou o Estado Democrático, o qual estampa os direitos e garantias fundamentais, porque, somente assim, estar-se-á garantindo o cumprimento dos princípios constitucionais da igualdade, da cidadania e da dignidade da pessoa humana. A base da família do final do século XX e início do século XXI contrapõe-se aos preceitos que alicerçaram a sua origem, passando o afeto a ser o elemento principal, a essência e a razão, da formação das entidades familiares. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 173. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. 35. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005. 3 15 1.1 ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DAS ENTIDADES FAMILIARES E A IMPORTÂNCIA DO AFETO. O estudo da origem e da evolução das entidades familiares torna-se elementar na presente obra. A partir do conhecimento de determinados fatos históricos é que se tornará possível estabelecer o porquê de se estar vivendo, em pleno início do século XXI, sob amarras pré-concebidas na história, transmudando-se de préconceitos, para preconceitos. Apesar de fundamental a análise da história das entidades familiares, esta não se verificará de forma linear, muito menos se pretende totalizar e esgotar o assunto. A dificuldade de comprovação fática dos estágios primitivos da família faz com que cada estudioso utilize-se de formas diversas para explicar como teria se originado a família,4 gerando, por vezes, controvérsias entre os autores e uma veracidade possivelmente discutível. Pretende-se estabelecer, na medida do possível, um raciocínio lógico dos momentos históricos relevantes para se explicar a resistência ao reconhecimento jurídico-social de determinadas entidades familiares, tanto pela ausência de normas expressas no sistema jurídico, como pela própria sociedade que, mesmo na primeira década do século XXI, encontra-se arraigada de preconceitos. Poder-se-ia dizer, utilizando-se da imaginação, que a família teve origem pelo instinto, pela necessidade de “preservação e perpetuação da espécie humana.” 5 Nesse sentido, o impulso natural do instinto sexual teria dado origem à família de modo imediato.” 6 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol.V. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 16. OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Igualdade no casamento e na filiação. Revista do Advogado, n. 58, p. 34-41, mar. 2000. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2000. p. 34. 6 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Constitucional à Família. Revista Brasileira de Direito de Família, vol. 6, n. 23, p. 5-21, abr./maio 2004. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2004. p. 06. 5 16 Os estudos sobre a origem da família são variados e, por vezes, se contradizem. Os historiadores do Direito Romano não explicam como a família se formou, 7 mas, conforme Caio Mário da Silva Pereira, 8 fato comprovado é que a família viveu largo período sob a forma patriarcal, apesar de outras formas de origem da família serem apresentadas por alguns doutrinadores. Nesse sentido, Belmiro Pedro Welter9 explica que existem duas teorias geralmente invocadas para se explicar a origem da família: a patriarcal e a matriarcal. Nesta última, cita o doutrinador que a família seria originária de um estágio inicial de promiscuidade sexual. Contudo, afirma que os pesquisadores ainda não identificaram, e dificilmente conseguirão identificar o estado inicial da instituição familiar. Sustentou, ainda, Caio Mário da Silva Pereira que pecam, às vezes, os historiadores “pelas afirmações generalizadas, que afrontam os mais vivos impulsos da natureza humana”, afirmando que “mais racional seria aceitar como originária a idéia de família monogâmica”, mas que mesmo este raciocínio comporta controvérsias, pois “aceitar como certa a existência de um tipo de família preenchendo todo um período evolutivo (...) parece realmente pouco provável.” 10 A doutrina é unânime ao considerar a civilização greco-romana como o antecedente remoto da família brasileira, podendo-se citar como seguidores desse pensamento: Caio Mário da Silva Pereira, 11 Arnoldo Wald, 12 Luiz Edson Fachin, 13 7 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, vol. I. 9. ed. Tradução e Glossário de Fernando de Aguiar. Lisboa: Livraria Clássica Editora, s/d. p. 54-55. 8 PEREIRA, C., 2002, p. 17. 9 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 3233. 10 PEREIRA, C., op. cit., p. 17. 11 Ibidem, p. 17. 12 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 13. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 09. 13 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de família: curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 27. 17 Guilherme Calmon Nogueira da Gama, 14 Heloísa Helena Barboza, 15 Ricardo Pereira Lira, 16 dentre outros. A família brasileira, por sua vez, além da influência greco-romana, sofreu forte influência do Direito Canônico. Constatou Fustel de Coulanges que o que uniu os membros da família antiga, greco-romana, fora algo mais significante que o nascimento e a força física, tendo sido, pois, a religião doméstica, que também teria ditado as regras do modo de viver das famílias. 17 Acreditavam as antigas gerações que a morte era apenas uma mudança de vida, na qual a alma não se separava do corpo, 18 fazendo-se indispensável que os sucessores vivos cultuassem os antepassados já falecidos. 19 Cada família possuía uma religião e um deus, sendo a maior desgraça desta a interrupção de sua linhagem, pois caso a família se extinguisse, desapareceria da terra a sua religião e todos os mortos daquela família cairiam no esquecimento e na miséria eterna. 20 Fustel de Coulanges define a família greco-romana como “um grupo de pessoas a quem a religião permitia invocar o mesmo lar e oferecer o repasto fúnebre aos mesmos antepassados.” 21 A partir da religião doméstica e da crença do culto aos antepassados, concebeu-se como dever dos vivos satisfazer-lhes esta 14 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de família brasileiro: introdução – abordagem sob a perspectiva civil constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001. p. 17. 15 BARBOZA, Heloísa Helena Gomes. O direito de família brasileiro no final do século XX. p. 87-112. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 89. 16 LIRA, Ricardo Pereira. Breve estudo sobre as entidades familiares. p. 25-46. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 27. 17 COULANGES, s/d, p. 55. 18 Ibidem, p. 11-12. 19 Ibidem, p. 22-28. 20 Ibidem, p. 67-68. 21 Ibidem, p. 56. 18 necessidade, 22 pois “os mortos tinham necessidade de que a sua descendência nunca se extinguisse.” 23 A família tinha por finalidade a perpetuação do culto aos antepassados, porém, somente os filhos homens poderiam dar continuidade a este, pois a mulher antes de casar seguia a religião do seu pai e, após o casamento, passaria a cultuar, juntamente com o marido, os antepassados deste, o deus daquela família. 24 Ademais, não se admitia que uma mesma pessoa honrasse dois deuses ao mesmo tempo. 25 Dentre as regras estabelecidas pela religião doméstica, a primeira instituição estabelecida teria sido o casamento,26 que se fundava na necessidade de perpetuação da religião doméstica. Logo, a primeira forma de entidade familiar constituída foi o casamento. O Direito Romano conhecia três espécies de casamento: confarreatio que era o casamento patrício, de cunho religioso, celebrado com a presença de dez testemunhas, no qual todos acompanhavam a esposa à casa do marido, passando ela da autoridade paterna para a do esposo; coemptio que era um casamento mais civil e menos sacramental, representando uma venda, ficta venditio; e usus que era o casamento plebeu, tinha por idéia central a posse que consolidaria a situação jurídico-matrimonial pelo decurso de um ano consecutivo. 27 A idéia de casamento para o Direito Romano era a de que a affectio maritalis deveria estar presente não apenas no ato da celebração, mas durante toda a 22 COULANGES, s/d, p. 22. Ibidem, p. 66. Ibidem, p. 57. 25 Ibidem, p. 75. 26 Ibidem, p. 56. 27 PEREIRA, C., 2002, p. 37-38. 23 24 19 convivência. A ausência da affectio maritalis poderia acarretar a dissolução do casamento. 28 Fustel de Coulanges29 coloca que se permitia facilmente a dissolução do casamento celebrado por coemptio ou por usus. Contudo, a dissolução do casamento celebrado sob a forma da confarreatio era de difícil dissolução, posto que se tratava de casamento religioso, podendo apenas se desfazer pela disffarreatio. A disffarreatio consistia em uma nova cerimônia religiosa com a finalidade de dissolução do matrimônio, vez que somente a religião poderia desligar aquilo que ela mesma havia ligado. A família era uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional, na qual o patrimônio pertencia à família e era administrado pelo pater, que também administrava a justiça dentro dos limites da casa. 30 “Somente o pater adquiria bens, exercendo a domencia potestas (poder sobre o patrimônio familiar) ao lado e como conseqüência da patria potestas (poder sobre a pessoa dos filhos) e da manus (poder sobre a mulher).” 31 O pater era o ascendente comum mais velho, que exercia sua autoridade sobre todos os seus descendentes, sobre sua esposa e sobre todas as esposas de seus descendentes, modelo patriarcal. 32 Não existe um fundamento que justifique toda essa cultura antiga, a não ser o interior do próprio homem, incompreensível na maioria das vezes; e, como descreve Fustel de Coulanges: “o princípio deste culto está fora da natureza física e encontrase no misterioso pequeno mundo que é o homem.” 33 28 WALD, 2000, p. 12. COULANGES, s/d, p. 64. WALD, op. cit., p. 09-10. 31 PEREIRA, C., 2002, p. 18. 32 WALD, op. cit., p. 09-13. 33 COULANGES, op. cit., p. 40. 29 30 20 A família antiga era, portanto, mais uma associação religiosa do que uma associação da natureza, na qual o afeto, certamente, não era o esteio da família. 34 ”O direito grego como o romano não tomavam na menor conta este sentimento. Podia este realmente existir no íntimo dos corações, mas para o direito não contava, nada era”. 35 Dessa forma, o casamento era obrigatório e era a única forma de constituir família; não tinha por fim o prazer, a felicidade, mas e tão somente objetivava a união de dois seres que cultuariam o mesmo deus e, obrigatoriamente, deveriam dar origem a um terceiro ser que daria continuidade ao culto daquela família. 36 A família tinha, portanto, desde o Direito Romano a função procracional. A entrada do filho na família se dava por ato religioso, antes, porém, era necessário que o pai se pronunciasse afirmando que o recém nascido era ou não da família. A criança era apresentada aos deuses domésticos com dupla finalidade: de purificá-la do pecado maculador; e de apresentá-la ao culto doméstico. 37 A entidade familiar era constituída através do casamento, que existia apenas para perpetuar a família. Nos casos em que o casamento não originasse filhos, gerava, às vezes, o divórcio, outras vezes, a adoção. 38 Verifica-se, pois, que a adoção teve origem no dever de perpetuar o culto aos antepassados, como será analisado mais adiante. A crença da indispensabilidade do culto aos antepassados fazia com que o celibato fosse algo proibido, podendo, inclusive ser considerado como impiedade grave e desgraça. 39 34 COULANGES, s/d, p. 54-55. Ibidem, p. 54. Ibidem, p. 68-69. 37 Ibidem, p. 72. 38 Ibidem, p. 73. 39 Ibidem, p. 68. 35 36 21 Da mesma forma, no Direito da Grécia antiga eram inaceitáveis as uniões de pessoas do mesmo sexo sob o raciocínio da affectio maritalis. Por outro lado, estudos demonstram que a homossexualidade “sempre existiu, em toda parte, desde as origens da história humana.” 40 Assim, a homossexualidade masculina era permitida na cultura grega como uma forma de educação do jovem, tinha, portanto, cunho educativo. 41 Na Grécia antiga, fazia parte das obrigações do preceptado “servir de mulher” ao seu preceptor, e isso sob a justificativa de treiná-lo para as 42 guerras, em que inexistia a presença de mulheres. Indubitavelmente essas relações não caracterizavam entidade familiar, uma vez que a principal função desta era a procriação e perpetuação da família. Mas, por outro lado, não existia discriminação das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo. 43 O fato é que a família tinha por finalidade a perpetuação do culto, logo só poderia ser formada por casal de sexo oposto. Por outro lado, no início do terceiro milênio, a entidade familiar não se funda mais na procriação, mas no afeto que une os membros desta. Todavia, persiste a diversidade de sexo como requisito para o casamento, o que não se pode é fazer com que este requisito seja utilizado para excluir determinadas entidades familiares, diante de novos valores sociais. Cumpre esclarecer que o casamento, assim como a união estável, a família monoparental, dentre outras, são apenas espécies de entidades familiares do qual esta é gênero. 40 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 25. 41 Ibidem, p. 26. 42 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homossexualidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 86. 43 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 31. 22 Ademais, o fundamento da formação de uma entidade familiar está completamente vinculado ao afeto e não mais a procriação, propriamente dita. No que diz respeito ao afeto, não se tem conhecimento de registros que atribuam a ele o principal elemento constitutivo da família. Todavia, historiadores como Fustel de Coulanges44 e Rudolf Von Jhering 45 afirmam ter sido a religião o principal elemento constitutivo da família antiga, perdurando os dogmas da religião doméstica até o triunfo do cristianismo. 46 Ao contrário do Direito Romano e Grego, nos primeiros séculos da era Cristã, antes mesmo do reconhecimento oficial da Igreja Católica Romana, não existia o Matrimônio Cristão, o que se justificava pelo peso da tradição judaica e pela inexistência de regras expressas no Antigo e no Novo Testamento sobre o matrimônio. 47 A Igreja também se recusava a interferir nos assuntos que eram tratados pelo Direito Romano por considerá-los pertinentes ao Estado, logo fora de atuação da Igreja. 48 De forma sutil a Igreja passou a disciplinar o casamento com base em valores éticos e jurídicos, passando a considerá-lo um sacramento com dever de contribuir para afastar a concupiscência49, tentando nas relações pessoais entre os cônjuges, implantar a idéia da igualdade, contrária ao Direito Romano que colocava a mulher em posição inferior, todavia, continuava com o homem a chefia da família, 50 modelo patriarcal. 44 COULANGES, s/d. JHERING, Rudolf Von, apud PEREIRA, C., 2001, p. 168. 46 COULANGES, op. cit., p. 22. 47 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 359. 48 Ibidem, p. 359. 49 Ibidem, p. 360. 50 Ibidem, p. 362. 45 23 Deste modo, tem-se que “o casamento e a família precedem ao Estado e a Igreja, que deles se apropriaram e os converteram em instrumentos de seus respectivos fins.” 51 Na Idade Média, em especial no período que compreende o século X e XV, “as relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único conhecido.” 52 Além disso, a procriação era função exclusiva da família fundada no casamento religioso, da qual resultavam filhos legítimos, configurando, para a família patriarcal essencialmente rural, mais um elemento de força produtiva. 53 O modelo da família romana – unidade política, jurídica, religiosa e patriarcal, que tinha por finalidade a procriação – associado à influência do Direito Canônico, atravessa a Idade Média e se projeta nas Ordenações do Reino e futuramente no Código Civil de 1916. Tem-se que: Em 1446, o Rei de Portugal, D. Afonso IV, mandou compilar e publicar, em cinco livros, todas as fontes jurídicas então vigentes em terras lusas com o 54 fito de dar-lhes uma sistematização mínima. Em 1446 foram elaboradas as Ordenações Afonsinas que estabeleceram sistematicamente todo o Direito Português até o advento do Código Português de 1867. Posteriormente às Ordenações Afonsinas, outras Ordenações foram elaboradas, as Manuelinas (1524) e as Filipinas (1603), contudo, apenas conservavam e aditavam as disposições Afonsinas. 55 51 VILLELA, João Baptista. Família hoje. p. 71-86. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 73. 52 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, vol. VI: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 16. 53 FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família do novo milênio: uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 46. 54 MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 109. 55 Ibidem, p. 109. 24 O Direito de Família Português constituiu-se sob forte influência do Direito Romano e do Direito Canônico, 56 e o fato do Brasil ter sido colonizado por Portugal, fez com que o Direito Brasileiro, na época do Império, conhecesse a princípio apenas o casamento católico, uma vez que essa era a religião oficial. 57 Quanto à vigência das ordenações lusas no Direito Brasileiro, cumpre observar que se estenderam até o Código Civil de 1916. 58 Tem-se, portanto, que: O Direito Civil Brasileiro esteve, durante mais de 300 anos, regulado pelas disposições do Livro IV das Ordenações Filipinas e por dezenas de outras fontes casuísticas, tais como a Constituição do Arcebispo da Bahia 59 (doravante CAB), leis, alvarás, avisos, assentos e decretos. A partir da incidência de alguns fatos históricos – valendo citar o Movimento Cultural Renascentista, que se desenvolveu na Europa Ocidental ao longo dos séculos XIV e XVI; as Reformas Religiosas, século XVI; e a Revolução Francesa, século XVIII, – a natureza sacramental do casamento se desfez, influenciando para o futuro reconhecimento pelo Estado do casamento civil, transferindo, assim, para esse a regulamentação e o controle das uniões por meio do casamento civil. 60 Assim é que, em 1890, logo após a proclamação da República, é decretada a separação entre Igreja e Estado. Em decorrência dessa separação, a Igreja Católica deixou de ser a religião oficial do Brasil e como efeito o casamento religioso deixou de ser reconhecido pelo Estado. 61 A Constituição da República Brasileira de 1891 passou a reconhecer o casamento civil e a orientação adotada pela lei civil. Disciplinava a Constituição de 1891, no artigo 72 §4º, que a República só reconhecia o casamento civil, além disso, no §7º do mesmo artigo supramencionado, deixava claro que nenhum culto, nem 56 GAMA, 2003, p. 364. PEREIRA, C., 2002, p. 40. MONTEIRO, 2003, p. 109. 59 Ibidem, p. 118. 60 GAMA, 2001, p. 19. 61 SEPARAÇÃO entre Igreja e Estado e liberdade de Cultos. A pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 1980. Disponível em: http://www.permanencia.org.br/revista/politica/episcopado.htm Acesso em: 22 jun. 2006. 57 58 25 nenhuma Igreja gozariam de subvenção oficial, nem teriam relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. Dessa forma o casamento religioso não produzia efeitos civis. Rodrigo da Cunha Pereira afirma que até a proclamação da República era dispensável mencionar o casamento civil como o vínculo constituinte da família, uma vez que, até então, as famílias se constituíam pelo casamento religioso que tinha efeitos civis. 62 Somente com a Constituição de 1934 que o casamento religioso, perante o ministro de qualquer confissão religiosa, e desde que não contrariasse a ordem pública ou os bons costumes, passaria a produzir os mesmos efeitos que o casamento civil, 63 vindo a consolidar-se em 1941, com a denominada Lei de Proteção da Família, decreto-lei 3.200, de 19.04.1941. 64 Sobreleva considerar que o Código Civil Brasileiro de 1916, influenciado pela Constituição de 1891, apenas reconheceu o casamento civil. Posteriormente, em 1973, a lei 6.01565 disciplinou o reconhecimento pelo Estado dos casamentos religiosos, desde que esses respeitassem as normas civis. Salienta-se que o Código Civil de 1916 reproduziu o modelo de um país essencialmente rural, no qual os filhos legítimos representavam “mais um elemento de força produtiva”. 66 Além disso, o Código conferiu à família vários atributos, tais como: estrutura jurídica hierarquizada; patriarcal; centralizada; absolutista; individualista; patrimonialista; matrimonialista; e excludente - exclusão de legitimidade a qualquer 62 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2 ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 09. 63 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934. Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao34.htm Acesso em: 10 mar. 2006. 64 BARBOZA, 1997, p. 88. 65 BRASIL. Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, Dispõe sobre os Registros Públicos e dá outras providências. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil/Leis/L6015.htm Acesso em: 22 jun. 2006. 66 FACHIN, R., 2001, p. 46. 26 outra organização familiar que não se formasse pelo casamento; 67 além desses atributos pode-se acrescentar a posição inferiorizada do afeto diante da moral e dos bons costumes. A família brasileira foi marcada pela valorização econômica e patrimonialista, na qual o afeto mantinha posição insignificante diante da moral e dos bons costumes, a manutenção dos laços conjugais se sobrepunha à felicidade pessoal dos membros da família, pois “a desestruturação familiar significava, em última análise, a desestruturação da própria sociedade”. 68 Portanto, a família almejava, mesmo que através do sacrifício pessoal dos seus membros, a paz doméstica. Segundo Luiz Edson Fachin, o interesse maior a ser tutelado não era o do marido, e sim o da família enquanto instituição, pois no topo da pirâmide não se encontrava o pai, mas a instituição. 69 Dessa forma, os interesses pessoais dos membros da família eram subjugados aos interesses da instituição. “A família servia mais como defesa do patrimônio e perpetuação do que propriamente um manancial de afetividade e prazer.” 70 A prova disso foi o fato do Código Civil de 1916 não ter admitido o divórcio, considerando o casamento indissolúvel, confirmando a idéia de que a felicidade dos membros da família não era o que fundamentava esta, pois, mesmo inexistindo o afeto, o casamento não era passível de extinção. 67 GAMA, 2003, p. 365 e 366. FARIAS, 2004, p. 9. FACHIN, L., 1999, p. 33. 70 ANGELUCI, Cleber Affonso. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica jurídica, ano 53, n. 331, p. 75-85, maio 2005. Porto Alegre: Notadez, 2005. p. 75. 68 69 27 Em 1977, a lei 6.51571 disciplinou a dissolução da sociedade conjugal pelo divórcio, todavia continha um artigo que dispunha ser admitido uma única vez; em 1989, a lei 7.84172 revogou tal dispositivo. O Código Civil de 1916 considerou a mulher, ao casar-se, relativamente incapaz, se já não o era antes do casamento; 73 qualificou de forma discriminatória os filhos, considerando-os: legítimos, quando nascidos de justas núpcias; naturais, aqueles havidos de pessoas sem impedimento para casar; adulterinos, os tidos fora do matrimônio; incestuosos, quando nascidos de pessoas unidas por vínculo de parentesco próximo; adotivos, modalidade de parentesco fictício,74 que será devidamente estudada em capítulo específico. A família, considerada apenas aquela constituída pelo casamento, passou a gozar de proteção Estatal75 e as Constituições de 1934,76 1937,77 194678 e 196779 passaram a conter explicitamente em seus artigos que a família era constituída pelo casamento. Verifica-se que os artigos referentes à constituição da família presentes nas Constituições anteriores à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foram expressos ao restringir o casamento como a única forma de se constituir família. Dessa forma, “as relações sem casamento eram moral, social e civilmente 71 BRASIL. Lei n. 6515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6515.htm Acesso em: 10 mar. 2006. 72 BRASIL. Lei n. 7841, de 17 de outubro de 1989. Revoga o art. 358 da lei n. 3071, de 1º de janeiro de 1916 – Código Civil e altera dispositivos da lei n. 6515, de 26 de dezembro de 1977. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L7841.htm Acesso em: 10 mar. 2006. 73 BARBOZA, 1997, p. 88. 74 LIRA, 1997, p. 31-32. 75 BARBOZA, op. cit., p. 88. 76 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934 Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao34.htm Acesso em: 10 mar. 2006. 77 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, decretada em 10 de novembro de 1937 Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao37.htm Acesso em: 10 mar. 2006. “Art. 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos.” 78 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946 Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao46.htm Acesso em: 10 mar. 2006. “Art. 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.” 79 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1967 Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao67.htm Acesso em: 10 mar. 2006. 28 reprovadas, atingindo diretamente os filhos que eram classificados e conseqüentemente discriminados em função da situação jurídica dos pais.” 80 Aos poucos a legislação esparsa tentou minimizar a discriminação relativa aos filhos, neste sentido, cita-se: o decreto-lei 4.737, de 24.09.1942, dispondo a possibilidade de o filho adulterino ser reconhecido depois do desquite; a lei 883, de 21.10.1949, que viabilizou o reconhecimento do filho havido fora do casamento, desde que dissolvida a sociedade conjugal, além disso, essa lei também reconheceu, aos filhos adulterinos, o direito, a título de amparo social, a metade da herança do filho legítimo ou legitimado; a lei do divórcio, 6.515 de 26.12.1977, por sua vez, estabeleceu que qualquer dos cônjuges poderia, por testamento cerrado, reconhecer o filho havido fora do casamento, determinando o direito à herança, independente da forma de reconhecimento do filho, em igualdade de condições, ao mesmo tempo em que alterou o disposto no Código Civil de 1916 que concedia, ao filho natural, reconhecido na constância do casamento, apenas a metade dos bens do qual o filho legítimo ou legitimado tivesse direito. 81 Posteriormente, a lei 7.250, de 14.11.1984, determinou que, mediante sentença transitada em julgado, o filho tido fora dos laços matrimoniais poderia ser reconhecido pelo cônjuge separado de fato há mais de cinco anos ininterrupto. 82 No que diz respeito à incapacidade da mulher, a lei 4.121, de 1962, Estatuto Civil da Mulher Casada, tratou de dar início à democratização referente à mulher, colocando-a na posição de colaboradora do marido, mantendo este na chefia da sociedade conjugal, o que, por outro lado, demonstrou não ter rompido totalmente com o modelo do Código Civil de 1916, baseado na preservação da unidade familiar. 80 81 82 BARBOZA, 1997, p. 90. LIRA, 1997, p. 32-36. Ibidem, p. 36. 29 Percebe-se que a legislação brasileira lentamente dava início a uma democratização nas relações de família, firmando-se com a promulgação da Constituição de 1988. Ressalta-se ainda que, se de um lado o legislador civil cedia aos fatos impostos pela realidade social; de outro, mantinha-se tímido em relação ao concubinato, que encontrou na legislação previdenciária e acidentária o primeiro reconhecimento legal dos seus efeitos. Neste sentido, a jurisprudência “desprezava completamente a união concubinária, só contemplando direitos patrimoniais calcados em vontade negocial, sob falsa concepção de moral e inadequado sentido de defesa do casamento”, 83 resultando em toda uma construção jurisprudencial voltada ao direito das obrigações. O receio de se reconhecer as relações extramatrimoniais era de comprometer a moral e os bons costumes da família legítima, matrimonializada, como se o fato de ignorá-las contribuísse para que elas deixassem de existir! E mais, como se o fato de não reconhecê-las como entidade familiar, lhes tirasse a sua condição de tal! Gustavo Tepedino84 analisa que, embora a evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa do tratamento jurídico conferido às entidades familiares extramatrimoniais não seja nada linear; torna-se melhor compreendida quando se analisam três fases distintas: a primeira estaria consagrada pelo Código Civil de 1916, através da rejeição pura e simples do concubinato, estigmatizando-o como relação adulterina, passível de assimilação pela jurisprudência apenas no âmbito do direito das obrigações; a segunda fase estaria delineada pelo legislador atribuindose ao concubinato – desde que não fosse adulterino – não mais uma mera relação 83 84 BARBOZA, 1997, p. 103. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 329. 30 obrigacional, conferindo-lhe efeitos jurídicos na esfera assistencial, previdenciária, locatícia, dentre outras, podendo, inclusive ser considerada a fase de inserção do concubinato no direito de família; a terceira e última fase compreenderia a recepção do texto constitucional da união estável como forma de entidade familiar. “À sombra de Constituições que só reconheciam como família a que se constituía pelo casamento e de um Código Civil estruturado pelo e para o casamento, alterava-se o tecido social no Brasil.” 85 As transformações sociais, políticas, culturais e econômicas derivadas certamente de movimentos como: as duas guerras mundiais; a Revolução de 1930; o período Vargas; a ditadura militar; o movimento estudantil; sindical; hippie; a revolução sexual86 - ocasionando “a profunda liberação de costumes ocorrida nas décadas de sessenta/setenta”; questionamento e conseqüente declínio do poder religioso; 88 87 o dentre outros, influenciaram sobremaneira para que, ao longo do século, a face do direito de família fosse alterada, culminando na promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 1.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS ENTIDADES FAMILIARES. As necessidades sociais foram vagarosamente transformando o ideal de família, motivando uma conscientização, gradativa e cautelosa, de que é na família em que geralmente ocorrem as escolhas profissionais, afetivas, além de ser também nesta que o indivíduo compartilha suas angústias, seus problemas e sucessos, 85 BARBOZA, 1997, p. 94. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 91. 87 BARBOZA, op. cit., p. 94. 88 Ibidem, p. 94. 86 31 contribuindo para que o conceito de entidade familiar fosse aos poucos moldado e ampliado conforme a realidade social. Amparado na necessidade de se adequar a lei à realidade da sociedade que, em cinco de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil. A constitucionalização das relações de família determinou novos contornos ao direito de família, tendo como conseqüência o declínio de características presentes na família brasileira até então. Nesse sentido, a felicidade individual dos membros da família - em especial a felicidade e o bem estar da criança e do adolescente – passou a se sobrepor à supremacia da valorização econômica, patrimonialista e da manutenção dos laços conjugais. A base da família passou a ser a afetividade entre seus membros, a assistência mútua, a solidariedade recíproca, o carinho e o aconchego do lar, embora “sua origem e desenvolvimento não estivessem sempre atrelados a este cunho sentimental e assistencial.” 89 O casamento deixou de ser a única forma de constituir família. A Constituição reconheceu outras formas de entidades familiares além da família matrimonializada, que, até então, devido a uma “proposital omissão normativo-constitucional” 90 não existia no mundo jurídico, apesar da existência no mundo dos fatos, o que comprova que a omissão legislativa não impede a existência de outras formas de família, bem como não contribui para preservar a moral e os bons costumes. Serve, apenas, como forma de exclusão, de marginalização social, inclusive de crianças e adolescentes que façam parte dessas famílias marginalizadas. 89 90 ANGELUCI, 2005, p. 75. GAMA, 2001, p. 29. 32 Portanto, o fato de o casamento ter sido, durante séculos, a única forma de se constituir família não inibiu, nem impediu que outras espécies de família fossem formadas. Contudo, apesar dessas outras espécies de famílias terem sido ignoradas no âmbito jurídico, “na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da antropologia, dentre outros saberes, a família não se resumia à constituída pelo casamento.” 91 Destarte, com a Constituição de 1988 outras formas de família, além da família matrimonial, foram reconhecidas explicitamente como entidades familiares; “da família matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente porque afeto não é um dever e a coabitação uma opção, um ato de liberdade.” 92 A família instaura-se prioritariamente como um núcleo de apoio e solidariedade. Percebe-se, em conseqüência, no Direito de Família, um 93 reconhecimento cada vez mais amplo dos efeitos jurídicos do afeto. O aumento dos grupos familiares “ao lado da família cuja Constituição foi selada pelo matrimônio, outras, fundadas em relações de afeto ou na existência de vínculos de filiação passam a integrar o elenco.” 94 O que significa que o Estado passou a reconhecer “que as relações sexuais legítimas (permitidas), não são mais, somente, aquelas praticadas dentro do casamento.” 95 “A pluralidade sucedeu a exclusividade anterior.” 96 Essa pluralidade permite que os membros da família possam escolher o modelo que atenda melhor às necessidades e aos interesses de cada integrante, contribuindo para a realização pessoal de seus membros, tornando-se inquestionável que a estrutura familiar passou a ser fundamental para a formação da personalidade humana. 91 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, ano 3, n. 12, p. 40-55, jan./mar. 2002. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2002. p. 40. 92 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 98. 93 MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 27. 94 CARBONERA, Silvana Maria. Guarda de filhos na família Constitucionalizada. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000. p. 29. 95 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 148. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view Article/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 96 CARBONERA, op. cit., p. 29. 33 Nesse sentido, Gustavo Tepedino coloca que “merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus membros.” 97 A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é uma cláusula geral que possui direitos fundamentais que a consubstanciam, como os direitos à igualdade, à liberdade, à intimidade; além disso, proíbe qualquer forma de discriminação, inclusive o tratamento de modo diverso às pessoas em virtude de sua orientação sexual. 98 Assim é que: ...o reconhecimento da pluralidade de formas de constituição de família é uma realidade, da mesma forma que o reconhecimento de direitos de igualdade, respeito à liberdade e à intimidade de homens e mulheres, assegurando a toda pessoa o direito de constituir vínculos familiares e de manter relações afetivas com outras pessoas, sem qualquer 99 discriminação. O novo perfil da família, instaurado após a Constituição de 1988, juntamente com as transformações culturais, sociais e políticas da sociedade - influenciadas por fatores como, por exemplo, “o ingresso da mulher no mercado de trabalho, os meios contraceptivos e os avanços da engenharia genética no campo da tecnologia” 100 - contribuíram para que fossem abandonadas “todas as posições doutrinárias que, no passado, vislumbraram em institutos do direito de família uma proteção supraindividual.” 101 Foram explicitamente reconhecidas como entidade familiar, além da família matrimonial, a união estável e a família monoparental (art. 226, §3º e §4º da CRFB/1988). 97 TEPEDINO, 2001, p. 329. MORAES, Maria Celina Bodin de. A união de pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 1, vol. 1, p. 89-112, jan./mar. 2000. Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 97. 99 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo; SCHIOCCHET, Taysa. O reconhecimento jurídico das uniões estáveis homoafetivas no direito de família brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz (Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões Controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. p. 319. 100 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. p. 24. 101 TEPEDINO, 2001, p. 328. 98 34 A família matrimonial constitucionalizada nada mais é senão aquela advinda do casamento, civil ou religioso, uma vez que a Constituição conferiu ao casamento religioso efeitos civis (art. 226, §2º da CRFB/1988). A união deve fundar-se no afeto, logo a eventual quebra desse viabiliza separações e divórcios, levando muitos a acreditarem que a família está banalizada em virtude da sua característica, às vezes, efêmera. Todavia, cada vez mais as relações familiares fundam-se no afeto, tornando-se, por causa disso, mais autênticas e mais propensas à realização da felicidade de seus membros, portanto, mais do que nunca, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade governam as relações familiares. Por outro lado, essa aparente “crise” da família – juntamente com a aceitação do sexo fora do casamento, da desvalorização da virgindade da mulher, do aparecimento dos métodos contraceptivos, da evolução da engenharia genética que viabilizou a existência de sexo sem casamento e de procriação sem sexo – demonstra um novo paradigma da família, “num concreto desafio ao Direito e à Sociedade no sentido de conviverem com paradoxos e inquietações e, simultaneamente, abrindo novas perspectivas.” 102 A família monoparental é aquela formada por pai ou mãe e descendentes. O parágrafo quarto do artigo 226 da Constituição dispõe que: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos seus pais e seus descendentes.” A palavra “também” está mais para demonstrar que o rol do artigo 226 é apenas exemplificativo, do que para configurar que se trata de um rol taxativo. Na dúvida, deve-se buscar soluções que respondam melhor ao anseio da sociedade, 102 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Novas entidades familiares. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 4, vol. 16, p. 03-30, out./dez. 2003. Rio de Janeiro: Padma, 2003. p. 30. 35 respeitando-se os princípios da dignidade da pessoa humana, 103 da igualdade e da liberdade – inclusive da liberdade de orientação sexual. Data vênia ao posicionamento de Guilherme Calmon, 104 Rodrigo Lira, 105 dentre outros que defendem a previsão Constitucional taxativa de apenas três formas de entidades familiares – matrimonial, monoparental e união estável (entre homem e mulher) - a presente obra não compartilha com tal posicionamento. Assim é que, em 1990 o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU), definindo em seu preâmbulo o conceito de família: Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas 106 responsabilidades dentro da comunidade. A partir desse conceito, fica claro que a interpretação do artigo 226 caput da Constituição de 1988 não passa de uma cláusula geral de inclusão, posto que não há referência a determinado tipo de família, 107 diferente das Constituições anteriores que, como já fora analisado, continham expressamente que “a família se constituía pelo casamento.” Desse modo, se pretendesse o constituinte de 1988 elencar, de forma taxativa as diversas formas de entidades familiares, o teria feito de forma que não restassem dúvidas acerca de qualquer espécie de exclusão, da mesma forma que não deixou lacunas passíveis de dúvidas nas Constituições anteriores. “Sem dúvida, então, a única conclusão que atende aos reclamos constitucionais é no sentido de que o rol não é – e não pode ser nunca! – taxativo (...).” 108 103 LÔBO, 2002, p. 45. GAMA, 2001. LIRA, 1997. 106 CONVENÇÃO Internacional sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php Acesso em: 23 mar. 2006. 107 LÔBO, op. cit., p. 44. 108 FARIAS, 2004, p. 10. 104 105 36 E, ainda, se o constituinte cogitasse restringir o que seria considerada entidade familiar, certamente teria incluído no caput do artigo 226 as três formas de entidade familiar: “A família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, têm especial proteção do Estado” 109 , o que não foi o caso; e, mesmo se fosse, estaria a Constituição indo contra seus próprios preceitos: igualdade, liberdade, privacidade, intimidade e dignidade da pessoa humana. Portanto, não houve apenas uma inclusão de determinadas entidades familiares, mas o reconhecimento da pluralidade de entidades familiares. Até porque, não parece possível que a dignidade da pessoa humana possa estar assegurada quando a pessoa não se encontrar inserta no seio de uma família. Logo, não parece racional que o constituinte taxasse os tipos de entidades familiares; estaria ele invadindo um espaço privado, que têm por base o afeto e a vida privada que são constitucionalmente invioláveis (CRFB/1988, art. 5º, caput, e inciso X), sendo passiveis de tutela jurisprudencial apenas nos casos de lesão ou ameaça de lesão (CRFB/1988, art. 5º, XXXV). 110 Além do mais, a relação formada pela “convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não-parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito” 111 como, por exemplo: a formada por avô e/ou avó com seu(s) neto(s); a constituída pela madrasta e seu enteado, tendo em vista o falecimento do pai e da mãe biológicos; a formada por tios e sobrinhos, sem qualquer vínculo jurídico, amparados no afeto; a formada por irmãos que ficaram órfãos ou foram abandonados, dentre outras, são nítidos exemplos de que não existem apenas as três espécies de famílias explicitamente previstas na Constituição. 109 LÔBO, 2002, p. 45. TEPEDINO, Gustavo. Cidadania e Direitos da Personalidade. Disponível em: http://www.unibrasil.com.br/publicacoes/02/A. pdf Acesso em: 17 fev. 2006. 111 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 2 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 47. 110 37 Neste sentido dispõe Sérgio Resende de Barros: ...ainda que de modo expresso não hajam albergado outras formas de entidade familiar, não virão opor-se ao reconhecimento legislativo, ou ao menos doutrinário e jurisprudencial, de novas formas de entidade familiar não previstas na enumeração constitucional do art. 226 e seus parágrafos, tais como a família anaparental ou amparental, que se lastreia no afeto familiar, mesmo sem contar com a presença de pai ou mãe, e a família homoafetiva, que também se lastreia no afeto familiar, mesmo sem conjugar um homem com uma mulher. 112 Quase todas as espécies de entidades familiares, apesar de inexistirem expressamente, parecem não causar polêmicas; mas, ao contrário, a família formada por pessoas do mesmo sexo – como será ainda estudado -, denominada por Maria Berenice Dias113 como família homoafetiva, tem trazido constantes discussões e um “rumor” em grande parte da sociedade, quer seja por aqueles que a defendem, quer seja por aqueles que a ignoram ou repugnam. O que se deve, indubitavelmente, ao preconceito que ronda a sociedade. Nesse âmbito Luiz Edson Fachin relata que “a presença dessas pessoas no Direito é, a rigor, a história de uma ausência,” 114 questão que será devidamente exposta. No que diz respeito à última previsão expressa da Constituição quanto as espécies de entidades familiares, encontra-se a união estável, que nada mais é senão “aquele estado de convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, sem vínculo de casamento”, 115com a intenção de formar uma família, na qual inexiste impedimento para o casamento, com exceção da união estável de pessoas, em que um, ou ambos os conviventes estão apenas separados de fato de um casamento anterior. 112 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais aos operacionais. p. 607-620. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, IBDFAM, 2004. p. 616. 113 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 114 FACHIN, Luiz Edson. Direito além do Novo Código Civil: Novas Situações Sociais, Filiação e Família. Revista Brasileira de Direito de Família, ano 5, n. 17, p. 07-35, abr./maio. 2003. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2003. p. 32. 115 LIRA, 1997, p. 40. 38 Contudo, mesmo tendo a Constituição conferido expressamente proteção às uniões estáveis, houve problemas sobre a sua auto-aplicabilidade, resultando na publicação da lei n.º 8.971, de 29.12.1994 - que regula o direito dos companheiros a alimentos e a sucessão - e da lei n.º 9.287, de 10.05.1996 - que regulamentou o dispositivo constitucional referente à união estável. Percebe-se, portanto, que mesmo a Constituição tendo reconhecido a união estável expressamente em seu texto, não bastou para sua aplicabilidade. Logo, a melhor e mais justa interpretação a ser feita do artigo 226 da Constituição de 1988 é que ele apenas dispôs de forma exemplificativa as entidades familiares, não se ateve a taxá-las, pois estaria desrespeitando as diversidades sociais, ao mesmo tempo em que se estaria excluindo outras formas de entidades familiares não dispostas no artigo 226. Seria uma violação aos próprios preceitos constitucionais, posto que todos, indistintamente, são iguais perante a lei e têm garantidos os direitos à privacidade, à intimidade, à liberdade – incluindo aqui a liberdade para formar a entidade familiar que melhor atenda à dignificação dos seus membros -, bem como à realização da felicidade, que viabilizará a promoção da dignidade de cada um de seus membros. É na família que se inicia a moldagem das potencialidades dos seus membros, com o propósito da convivência em sociedade e da busca da realização pessoal. Tornar-se-ia contraditória a Constituição se, ao mesmo tempo em que estabelece um Estado Democrático de Direito – baseado na igualdade, na liberdade e na dignidade da pessoa humana - deixasse à margem determinadas formas de entidades familiares. 39 Até porque, a “afirmação da dignidade de pessoa humana impede qualquer interpretação restritiva das possibilidades de entidade familiar que importaria, no final, na diminuição da tutela do homem.” 116 Ademais, não pode existir uma tipicidade fechada de hipóteses tuteladas, vez que a Constituição de 1988 priorizou a tutela de valores que elencou como prioritários. E o mais relevante entre todos é o valor da pessoa, que só encontra limites na realização de seus interesses e de seus pares, tudo 117 em prol da concretização plena de sua dignidade. O parágrafo oitavo do artigo 226 da Constituição estabelece que é dever do Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um de seus membros, consagrando definitivamente que a felicidade e a integridade de seus membros dentro do seio da família são meios de se alcançar a dignidade humana; rompendo com a idéia de proteção e preservação da instituição familiar em detrimento do bem estar de seus membros, passando a assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, deixando claro que a dignidade humana dos membros da família passa a ser garantida Constitucionalmente. A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. 118 Desta feita, com a constitucionalização das relações familiares, deixou-se de enfocar a preservação da unidade familiar, para se voltar à preocupação da felicidade individual de seus membros, o que se denominou de repersonalização das relações de família, o que significa “valorizarem-se os interesses da pessoa humana mais do que o patrimônio o qual detenham.” 119 116 FARIAS, Cristiano Chaves. A família da pós-modernidade: mais que fotografia, possibilidade de convivência. Disponível em: http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/civil_familia/artfamilia4.pdf Acesso em: 20 fev. 2006. 117 TEIXEIRA, 2003, p. 09. 118 LÔBO, 2002, p. 44. 119 MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Aspectos sociais e jurídicos relativos à família brasileira – de 1916 a 1988. Revista Crítica Jurídica, n. 17, p. 241-250, ago. 2000. p. 245. 40 Ademais, “a repersonalização das relações familiares significa uma preocupação com o desenvolvimento da personalidade das pessoas, sendo fundamental, nesse caminhar, o núcleo afetivo do agrupamento humano.” 120 Neste sentido, prevalece na cultura brasileira na primeira década do século XXI o modelo que “a socióloga Andrée Michel chamou, com toda propriedade, de eudemonista,” 121 no qual a família é marcada pela busca de sua própria realização e de seu próprio bem-estar. Acredita-se, portanto, que a Constituição previu expressamente apenas três formas de entidades familiares, mas que outras existem e devem – da mesma forma que as expressas no texto Constitucional – ser tuteladas pelo Estado; a exclusão destas no mundo jurídico não se deve propriamente ao texto Constitucional, mas, à interpretação do mesmo. No mesmo sentido dispõe Paulo Luiz Netto Lobo: “A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.” 122 120 121 122 MATOS, 2004, p. 16. VILLELA, 1997, p. 72. LÔBO, 2002, p. 44. PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO 2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS. A concepção é o marco indelével do que chamamos de adoção... A mais eloqüente prova desse fato está no nascimento de Jesus, que independeu da relação sexual entre a Virgem Maria e São José, fruto do Divino Espírito Santo, para mostrar ao mundo que não há necessidade do casamento, do congresso carnal e de todas as convenções do homem para 123 que se conceba um pequenino como filho. As primeiras referências acerca do instituto da adoção que se têm notícia foram encontradas no Código de Hamurabi e no Código de Manu. 124 O Código de Hamurabi (1728-1686 antes de Cristo) legislou sobre a adoção nos artigos 185 a 193.125 O Código de Manu já dispunha que: “Aquele a quem a natureza não deu filhos, pode adotar um para que as cerimônias fúnebres não cessem”. 126 Todavia, expandiu-se de forma notória no Direito Romano fundamentando o desenvolvimento do instituto da adoção no direito brasileiro; 127 tornando-se prudente apresentar a origem da adoção no Direito antigo, Romano, uma vez que a legislação brasileira sofreu forte influência deste direito. 123 LIBÓRNI, Siqueira. Adoção: doutrina e jurisprudência. 10. ed. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 2004. p. 30. PEREIRA, C., 2002, p. 229-230. BRAUNER, Maria Cláudia Crespo; AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A Releitura da Adoção sob a Perspectiva da Doutrina da Proteção Integral à Infância e Adolescência. Revista Brasileira de Direito de Família, ano 5, n. 18, p. 30-47, jun./jul. 2003. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2003. p. 32. 126 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção Internacional. Curitiba: Juruá, 2002. p. 15. 127 PEREIRA, C., op. cit., p. 229-230. 124 125 42 A palavra adoção possui o sentido etimológico de origem latina, adoptio, que significa dar seu próprio nome a, pôr um nome em e, em linguagem mais corriqueira, o sentido de acolher alguém. 128 Esse sentido sempre foi o mesmo, e nem poderia ser diferente, porém, o que fundamentou a origem da adoção no Direito Romano está bem distante do que a tem fundamentado desde aproximadamente a metade do século XX até a primeira década do século XXI. A legislação deixou de visar ao interesse da família adotiva e começou a se preocupar em inserir a criança e o adolescente em uma família substituta, capaz de promover-lhes a dignidade humana, que nem a rua, nem as instituições são capazes de lhes oferecerem. Dessa forma, serão apresentadas no presente tópico a origem da adoção no Direito Romano, suas principais influências no Direito Brasileiro, especificamente no Código Civil de 1916 e nas leis posteriores que disciplinaram o instituto. 2.1 A ORIGEM DA ADOÇÃO NO DIREITO ROMANO. Constatou-se, no início do trabalho, que o casamento no direito greco-romano tinha como objetivo a procriação e que essa, por sua vez, tinha por finalidade inviabilizar a extinção da família, perpetuando, assim, o culto aos antepassados. Logo, o que uniu os membros da família antiga greco-romana foi a religião doméstica, e que também, provavelmente, ditou as regras do modo de viver dessas famílias. 129 Dentre essas regras impostas pela religião doméstica encontra-se a preocupação de extinção da família, uma vez que esta tinha por finalidade perpetuar 128 129 LIBERATI, Wilson Donizeti. Adoção Internacional. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 13. COULANGES, s/d, p. 55. 43 o culto aos antepassados. Entretanto, apenas o nascimento do filho homem poderia garantir essa perpetuidade, sendo admitido, na sua impossibilidade, o divórcio e a adoção. O dever de perpetuar o culto doméstico foi o princípio do direito da adoção entre os antigos. 130 Portanto, a adoção servia como forma de velar pela conservação da família, pela continuidade da religião doméstica, pela não cessação das ofertas fúnebres, pelo repouso dos manes dos antepassados. 131 O Direito Romano conheceu três tipos de adoção: como ato de última vontade (adoptio per testamentum); adoção diretamente realizada entre os interessados (ad rogatio), pela qual o adotado, capaz, desligava-se de sua família, tornando-se um herdeiro do culto da família adotiva; e a adoção de um incapaz, onde a família adotiva recebia o adotando por vontade própria e consentimento do representante deste (alieni iuris). 132 Fustel de Coulanges133 afirmava que o fato da finalidade da adoção ser a de inviabilizar a extinção do culto, só era permitido adotar quem não tinha filhos. Da mesma forma que o filho biológico entrava na família, por meio de ato religioso que tinha por finalidade purificá-lo e iniciá-lo no culto doméstico, também se fazia com o filho adotado: por meio da cerimônia sagrada o filho adotado era admitido no lar e associado à religião. 134 Observa-se que a origem da adoção não tem nada a ver com o interesse do adotado, mas tão somente tinha como finalidade cumprir o que a religião impunha como dever dos vivos: satisfazer as necessidades dos mortos, através da perpetuação do culto aos antepassados. 130 COULANGES, s/d, p. 73. Ibidem, p. 74. 132 PEREIRA, C., 2002, p. 230. 133 COULANGES, op. cit., p. 74. 134 Ibidem, p. 75. 131 44 Assim, a princípio, o filho adotado não poderia retornar à família em que nascera. Outrossim, a lei facultava-lhe o retorno sob a condição de deixar, na família adotiva, um filho seu, pois entendiam que, uma vez assegurada a perpetuidade da família, nada impedia que o filho adotivo dela saísse. 135 Ratifica-se que não era permitido que uma mesma pessoa cultuasse mais de um deus e, sob este mesmo raciocínio, não era possível que o filho adotivo, herdando da família do adotante, herdasse também da família natural. 136 Da mesma forma, o filho adotado que retornava à família natural, renunciando a família adotiva, renunciava também a herança desta. 137 O legislador não aceitava a possibilidade de uma mesma pessoa adquirir duas heranças, isto porque dois cultos domésticos também não podiam ser servidos pela mesma pessoa. 138 Fica claro que tudo girava em torno da religião, do culto, inclusive a adoção. A bíblia também relata casos de adoção como a adoção de Moisés pela filha de Faraó, no Egito139; de Ismael por Sara, filho de seu marido Abrão com sua escrava Agar140, que posteriormente foi revogada141; dos filhos da escrava Bala, por Raquel sua Senhora, filhos estes do marido de Raquel142; de Efraim e Manassés por seu avô Jacó.143 Caio Mário da Silva Pereira destaca o fato de que, a princípio, somente o varão podia adotar, mas “à medida que se enfraquecia o fundamento religioso, foi-se 135 COULANGES, s/d, p. 76. Ibidem, p. 113. 137 Ibidem, p. 113. 138 Ibidem, p. 114. 139 BÍBLIA Sagrada. 96. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1995. Livro do Êxodo 2:10. p. 101-102. 140 Ibidem, Livro de Gênese 16:1-3. p. 61. 141 Ibidem, Livro de Gênese 21:9 -10. p. 66. 142 Ibidem, Livro de Gênese 30:1-7. p. 77. 143 Ibidem, Livro de Gênese 48: 5. p. 97. 136 45 abalando esta exclusividade, até que, já no século VI, o direito justinianeu franqueou-o à mulher que houvesse perdido os filhos.” 144 No século V depois de Cristo aconteceu a invasão dos bárbaros no Império Romano. 145 Mesmo com a invasão “não se deixou de praticar a adoção, posto que por motivação diversa, em que prevalecia o desejo de perpetuar num guerreiro valente os feitos d’armas do adotante.” 146 Com o fim do Império Romano no Ocidente termina a Idade da Civilização Ocidental ou da Antiguidade Clássica, dando início à Idade Média. 147 Na Idade Média, contraditoriamente o instituto da adoção desapareceu, graças ao apogeu do Cristianismo. A Igreja só reconhecia a família e os filhos que adviessem do casamento e, assim, via a adoção nociva aos princípios religiosos. Os sacerdotes viam-na como um meio de suprir o casamento e a constituição de família legítima e, ainda, como uma forma de fraudar as normas que proibiam o reconhecimento de filhos adulterinos. 148 Coube à França, no início do séc. XIX, com o Código de Napoleão, ressuscitar o instituto da adoção, com nítido caráter sucessório, pois o Imperador se interessava em adotar um dos seus sobrinhos para fazê-lo herdeiro do trono, uma vez que sua esposa Josefina era estéril. 149 O Código Francês por sua vez só reconheceu a adoção em relação aos maiores, exigindo por parte do adotante que tivesse alcançado a idade de cinqüenta anos, “tornando a adoção tão complexa e as normas a respeito tão rigorosas, que 144 PEREIRA, C., 2002, p. 230. SÚMULA da história de Portugal. Introdução à história de Santiago. Disponível em: http://terrasdesantiago.planetaclix.pt/intrhistsantiagosumula01.htm Acesso em: 06 abr. 2006. 146 PEREIRA, C., op. cit., p. 230. 147 SÚMULA da história de Portugal. Introdução à história de Santiago. Disponível em: http://terrasdesantiago.planetaclix.pt/intrhistsantiagosumula01.htm Acesso em: 06 abr. 2006. 148 GRISARD FILHO, Waldir. A adoção depois do novo Código Civil. Revista dos Tribunais, ano 92, vol. 816, p. 26-38, out. 2003. São Paulo: RT, 2003. p. 28. 149 Ibidem. 145 46 pouca utilidade passou a ter, sendo rara a sua aplicação.“150 Essas dificuldades encontradas no Código de Napoleão são igualmente encontradas em todas as legislações da época. 151 Tanto é que em Portugal a adoção era referendada pelas Ordenações Reinós, porém, sua utilização era praticamente inexistente e, em conseqüência do desuso, só foi legislada pelo Código Civil de 1966. 152 Mesmo assim, o Código de Napoleão e as Ordenações do Reino de Portugal influenciaram na futura sistematização do instituto no Brasil. 2.2 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E AS LEIS POSTERIORES ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO DE 1988. Apesar de se ter notícia de que a Consolidação das Leis Civis, elaborada pelo jurista Carlos de Carvalho,153 fez referências a respeito da adoção nos artigos 1.635 e 1640,154 pode-se afirmar que a adoção só foi efetivamente sistematizada no Direito Brasileiro com o advento do Código Civil de 1916, em seus artigos 368 a 378; ocasionando o nascimento de uma relação jurídica que tinha por finalidade dar filhos a quem não os pôde ter. 155 Levando-se em consideração que o referido Código sofreu forte influência do Código de Napoleão, Clóvis Beviláqua dispôs que “a adoção destina-se a suprir a falta de filhos. A lei só a faculta a quem não teve a ventura de os possuir, pelo casamento.”156 150 WALD, 2000, p. 199. Ibidem, p. 200. MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Direitos da Criança e Adoção Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 29 e 30. 153 LIBÓRNI, 2004, p. 39. 154 PEREIRA, Tânia da Silva. Da adoção. p. 151-176. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.); PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família e o novo Código Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 157. 155 PEREIRA, C., 2002, p. 231. 156 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. II. 10. ed. atual. por Aquilles Beviláqua. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo LTDA, 1954. p. 270. 151 152 47 O artigo 368 condicionava a adoção só aos maiores de cinqüenta anos, sem filhos, legítimos ou legitimados. O argumento utilizado para justificar essa idade encontrava-se no fato de que a adoção era vista como um meio supletivo de obter filhos e não uma forma natural de constituir família. Ademais, as pessoas antes dos cinqüenta anos que tivessem a intenção de ter filhos deveriam casar-se, até porque depois dessa idade, afirmava Beviláqua, “os casamentos não são para desejar.” 157 Havia também a condição de ser o adotante, pelo menos, dezoito anos mais velho que o adotado, pressupondo que essa distância de idade supunha maior experiência e era suficiente para infundir respeito. 158 O artigo 370 do Código dispunha que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher.” 159 Segundo Clóvis Beviláqua, esta disposição relacionava-se ao fim que a adoção se propunha: imitar a natureza e, ao mesmo tempo, suprir-lhe uma deficiência. 160 O artigo 371 tratava da adoção pelo tutor e pelo curador que só poderia efetivar-se após dar contas da administração e saldar o alcance; o artigo 372 referiase à indispensabilidade do consentimento da pessoa cuja guarda estivesse o adotando menor ou interdito. 161 Ressalta-se que, conforme dispôs Clóvis Beviláqua, “o Código supôs que o consentimento do adotado, quando maior e sui juri era tão intuitivo que se dispensou de mencioná-lo.” 162 O Código Civil de 1916 admitia ao adotado, quando menor, ou interdito, desligar-se da adoção no ano imediato em que cessasse a menoridade ou interdição (art. 373); viabilizava, também, a dissolução da adoção por manifestação de vontade das partes ou por ingratidão do filho comprovada em processo judicial (art. 157 BEVILÁQUA, 1954, p. 270. Ibidem, p. 271. Ibidem, p. 271. 160 Ibidem, p. 272. 161 Ibidem, p. 271-272. 162 Ibidem, p. 273. 158 159 48 374 I e II, respectivamente); efetivava a adoção por escritura pública, não se admitindo condição ou termo (art. 375); só possibilitava existência de vínculo parental entre adotado e adotante, não se estendendo aos demais familiares (art. 376); não extinguia os direitos e deveres resultantes do parentesco natural, exceto o pátrio poder que era transferido do pai natural para o pai adotivo (art. 378). 163 Salienta-se para o fato de que não havia proibição para que se desse a adoção por ascendentes e irmãos do adotando. A adoção produzia efeitos, mesmo que sobreviessem filhos ao adotante, salvo se ficasse comprovado que o filho estava concebido no momento da adoção (art. 377). Assim, caso ficasse comprovado que o filho superveniente foi concebido no momento da adoção, essa seria nula. Ao passo que, se sobreviessem filhos a adoção, o direito do adotado a suceder restringia-se à metade do que caberia ao filho legítimo (art. 1605). ... o resguardo dos interesses do nascituro impedia a manutenção da adoção, pois esta seria prejudicial ao filho legítimo do adotante, além do que o adotante teria praticado ato em fraude à lei por saber da existência de 164 descendência ... Dessa forma, o Código Civil de 1916 regulou o instituto da adoção com natureza privada, imputando-lhe a finalidade de dar filhos a quem a natureza não dera. Alguns autores como Orlando Gomes165 dispunham que não se podia atribuir à adoção a concepção privatista ao ponto de conduzir a interpretação de que se tratava, simplesmente, de um contrato. Posto que, apesar de formar-se como todo contrato, através do concurso de vontades, as partes não tinham liberdade “para a 163 164 165 BEVILÁQUA, 1954, p. 274-277. GAMA, 2003, p. 590. GOMES, Orlando. Direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 371. 49 regulação dos seus efeitos, devendo, necessariamente, aderir ao esquema preestabelecido em lei.” 166 Em 1927, foi criado o primeiro Código de Menores, regulamentando a situação dos menores abandonados. Contudo, tal Código foi omisso quanto às normas sobre adoção. 167 A lei 3.133/57168 alterou os artigos 368, 369, 372, 374 e 377 do Código Civil de 1916, exercendo significativas modificações no instituto, dentre as quais: a possibilidade de adotar-se aos 30 anos; a retirada da exigência de que só os casais sem filhos podiam adotar; a imposição da condição dos casados de adotarem desde que transcorridos cinco anos de casamento; a diferença de idade entre adotante e adotado passou a ser de 16 anos; a dissolução do vínculo da adoção nos casos em que era admitida a deserdação ao invés do que dispunha o inciso II do artigo 374 do texto original do Código Civil de 1916; 169 a inclusão do dispositivo que proibia a adoção sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal sendo este incapaz ou nascituro. No caso do menor encontrar-se em estado de abandono, sem pais ou responsáveis para manifestar o consentimento na adoção, havia necessidade de que alguém manifestasse esse consentimento. Assim, o juiz nomearia um curador que deveria comparecer perante o tabelião, com a finalidade de manifestar a vontade do menor, efetivando a adoção por escritura pública. 170 Ressalta-se, porém, que essa nomeação do curador era precedida de processo regular, no qual o juiz avaliaria se a adoção era de interesse do menor. 171 166 GOMES, 2002, p. 371. CAVALLIERI, Alyrio. Direito do Menor. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1978. p. 281-323. Ibidem, p. 329. 169 Ibidem, p. 329. 170 Ibidem, p. 88-89. 171 Ibidem, p. 90. 167 168 50 Observa-se que, quanto aos direitos sucessórios, o artigo 377 passou a determinar que, nos casos do adotante ter filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção não envolveria a de sucessão hereditária, 172 demonstrando, ainda, preconceito e estigmatização em relação aos filhos adotivos, evidenciando a discriminação entre a filiação biológica e adotiva e a finalidade pela qual a adoção se efetivava: dar filhos a quem não os pôde ter. A condição aos casados de lhes serem permitidas as adoções vinculava-se à necessidade do decurso de cinco anos de casamento, refletindo a intenção do legislador de que este tempo seria importante para caracterizar que os casais “não mais teriam normalmente filhos;”173 por outro lado, a lei retirou o requisito de que apenas casais sem filhos podiam adotar. Assim, ao mesmo tempo em que a lei trouxe exclusão absoluta do direito de suceder do adotado, quando este concorresse com filho legítimo, legitimado, ou reconhecido do adotante; permitiu a adoção por pessoas maiores de 30 anos, independente da existência de prole legítima, legitimada ou reconhecida, facilitando, de certa forma, que mais pessoas fossem adotadas. Em 1965, sob inspiração da legislação francesa, 174 criou-se a legitimação adotiva, lei 4.655. Essa lei condicionava determinados requisitos quanto aos legitimados adotivos, deveriam ser todos menores de sete anos e estar dentre as seguintes situações: exposto, conforme o Código de Menores de 1927; abandonado; dado pelos pais com declaração por escrito; órfão, não reclamado por parentes por mais de um ano; filho natural, reconhecido apenas pela mãe impossibilitada de 172 173 174 CAVALLIERI, 1978, p. 329. WALD, 2000, p. 201. Ibidem, p. 203. 51 prover a sua criação; e desde que quando completou esta idade (sete anos) já se encontrasse sob a guarda dos legitimantes. 175 Ressalta-se que o período de guarda mínimo era de três anos, computava-se, contudo, qualquer período de tempo desde que a guarda tivesse se iniciado antes do menor completar sete anos. Essa legitimação ocorria praticamente da mesma forma que se legitimavam os filhos biológicos. Tratava de instituto que tirava algo da adoção e algo da legitimação, pois, como naquela, estabelecia um liame de parentesco de primeiro grau, em linha reta entre adotante e adotado, e, como na legitimação, este 176 parentesco era igual ao que liga o pai ao filho consangüíneo. Aos legitimantes era possível essa espécie de adoção desde que o casal não tivesse filhos legítimos, legitimados ou naturais reconhecidos, contasse com mais de cinco (5) anos de matrimônio e tivesse pelo menos um dos cônjuges, mais de trinta anos (art. 2º caput). Contudo, tal prazo de casamento era dispensável desde que comprovada a esterilidade de um dos cônjuges e a estabilidade conjugal (art. 2º, parágrafo único). A lei impunha ainda outras condições: o viúvo ou a viúva, excepcionalmente, com mais de trinta e cinco anos de idade que tivesse consigo o menor há mais de cinco anos podia requerer a legitimação (art. 3º); os desquitados que tivessem a guarda do menor no período de prova (3 anos), na constância do casamento, e concordando sobre ela após o término da sociedade conjugal, podiam requerer a legitimação, desde que obedecidos determinados requisitos impostos pela lei, nos artigos 326 e 327 do CC/1916, quanto à guarda e proteção (art. 4º). 177 Ademais, esta lei tinha outras peculiaridades: substituía a família biológica pela família adotiva; integrava a criança à família adotiva; rompia inteiramente o vínculo 175 176 177 CAVALLIERI, 1978, p. 94. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. vol. 6. 27. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 378. CAVALLIERI, op. cit., p. 93. 52 da criança com a família biológica; a legitimação era irrevogável; o vínculo da adoção estendia-se à família dos legitimandos, quando os seus ascendentes houvessem aderido ao ato; era feita por mandado, mas sendo obrigatório processo prévio; o nome de família do legitimado adotivo era alterado; havia a possibilidade de alterar o prenome; havia segredo absoluto sob pena de processo criminal; havia rigorosa sindicância para só se admitir a legitimação no interesse do menor legitimado. 178 Os legitimados adotivos passavam a integrar a família com os mesmos deveres e direitos do filho legítimo (art. 7º), salvo nos casos de sucessão em que concorressem com filho legítimo superveniente à adoção (art. 9º caput), art. 1605, §2º do CC/1916. 179 Situação em que caberia ao filho adotado apenas metade dos bens. Permanecia, portanto, a restrição quanto à sucessão, gerando o aparecimento de situações controvertidas e categorias diversas de filhos adotivos, uns com direito à metade da herança (art. 1605, §2º do CC/1916 e 9º da lei 4.655/65) e outros sem esse direito (art. 377 do CC/1916), respectivamente “quando concorressem à sucessão do adotante filho adotado antes da existência de prole sangüínea, e filho adotado após a existência de prole sangüínea.” 180 Parece que a pretensão do legislador era suprir o parentesco civil, integrando o legitimado adotivo na família adotiva, porém o esforço do legislador, apesar de significativo, não foi suficiente, pois permaneciam várias discriminações referentes à adoção, como o que diz respeito à sucessão. Além disso, o legislador criou duas formas de adoção: a regida pelo Código Civil de 1916, com as devidas modificações trazidas pela lei 3.133/57; e a legitimação adotiva. Ambas já apresentadas. 178 179 180 CAVALLIERI, 1978, p. 92-93. Ibidem, p. 327-329. LIRA, 1997, p. 37. 53 Em 1979 elaborou-se o segundo Código de Menores181 que tinha como prioridade viabilizar à criança abandonada o abrigo. Além disso, substituiu a legitimação adotiva pela adoção plena, com praticamente as mesmas características daquela e, além disso, denominou a adoção disposta no Código Civil de 1916 de adoção simples. O “Código de Menores”, Lei n. 6.697/79, revogou a Lei n. 4.655/65 sem revogar a adoção simples do Código Civil, passando a vigorar duas formas de adoção: a adoção plena nos moldes da legitimação adotiva e a adoção 182 simples pelo Código Civil e pelos artigos 27 e 28 do Código de Menores. Cumpre destacar algumas diferenças entre a adoção plena, prevista no Código de Menores, e a legitimação adotiva anteriormente descrita: o período mínimo de estágio previsto pela legitimação era de três anos, o Código de Menores diminuiu este período para um ano; o período de estágio de convivência para se deferir a adoção plena pelo viúvo ou viúva passou de cinco anos para três anos. Permaneceu a legislação brasileira sendo regida por duas espécies de adoção: a adoção do Código Civil de 1916, 183 com as alterações da lei 3.133/57184; e a adoção do Código de Menores de 1979. A adoção no Código de Menores dependia de autorização judicial que deveria ser feita pelo interessado através de requerimento contendo os apelidos de família que usaria o adotado; estes apelidos deveriam constar do alvará e da escritura de averbação no registro de nascimento do menor, caso fosse deferida a adoção pelo juiz; o estágio de convivência era determinado pelo juiz, podendo ser dispensado quando se tratasse de adotante menor de um ano de idade. A adoção no Código Civil era feita por escritura pública. 181 BRASIL. Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, institui o Código de Menores. Disponível http://www.risolidaria.org.br/vivalei/outrasleis/cod_menor1979.jsp#_Toc61675092 Acesso em: 10 abr. 2006. 182 PEREIRA, T., 2003, p. 158. 183 BRASIL. Lei 3071, de 1º de janeiro de 1916, Código Civil Brasileiro. Disponível http://www.presidencia.gov.br/ccivil/LEIS/L3071.htm Acesso em: 09 abr. 2006. 184 CAVALLIERI, 1978, p. 329. em: em: 54 Outra diferença significativa era quanto à sucessão: o Código de Menores não restringia os direitos sucessórios aos adotados; o artigo 37 dispunha que a adoção plena era irrevogável, ainda que aos adotantes viessem a nascer filhos, aos quais estariam equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres, logo não limitava os direitos sucessórios aos adotados de forma plena, ao passo que na legitimação adotiva existia essa limitação sucessória. A adoção regida pelo Código Civil de 1916 referia-se à adoção de qualquer pessoa, independente da idade, sendo indispensável o consentimento do adotado caso fosse maior de idade, e, quando menor ou nascituro, era indispensável o consentimento do representante legal (art. 372 do CC/1916); era passível de revogação; constituía-se por escritura pública; e mantinha o adotado ligado à família biológica, podendo inclusive conservar o nome, pedir alimentos e herdar da família biológica. Enquanto a adoção no Código de Menores dirigia-se apenas aos menores de sete anos em situação irregular definida pelo artigo 2º, inciso I desse, e atribuía ao adotado a situação de filho, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Diante do exposto, pode-se dizer que a adoção plena substituiu com vantagens a precedente legitimação adotiva, estendendo o vínculo da adoção a toda família do adotante. 185 Contudo, não foi suficiente para proteger os interesses dos menores, que só passariam realmente a importar com a promulgação da Constituição de 1988. 185 GRISARD FILHO, 2003, p. 28. 3. ANÁLISE DA ADOÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. A Constituição de 1988, ao vedar o tratamento discriminatório dos filhos, a partir dos princípios da igualdade e da inocência, veio a consolidar o afeto como elemento de maior importância no que tange o estabelecimento da 186 paternidade. Conforme dispõe Gustavo Tepedino, 187 a partir da Constituição de 1988, a funcionalização das entidades familiares para a realização da personalidade de seus membros, em especial dos filhos, a despatrimonialização das relações entre pais e filhos e a desvinculação da proteção conferida aos filhos com a espécie de relação dos seus genitores, consagrou uma nova tábua de valores em matéria de filiação. O reconhecimento da filiação se desvinculou de quaisquer caracteres, como, por exemplo, o estado civil dos genitores, que impediam o reconhecimento dos filhos. Além disso, não há mais que se distinguir entre filhos legítimos e ilegítimos, adulterinos ou incestuosos e adotivos. A Constituição de 1988 conferiu-lhes igualdade absoluta. Nesse sentido, o reconhecimento do filho e a conseqüente atribuição do status de filho podem ocorrer de duas formas diferentes: voluntária ou judicial. No que diz respeito ao filho biológico, apesar de não ser objeto do trabalho, vale dizer que poderá ser reconhecido tanto pelo ato voluntário quanto pelo ato judicial. 186 187 FACHIN, L., 2003, p. 22. TEPEDINO, 2001, p. 395-396. 56 Mas, quanto à filiação adotiva a atribuição do status de filho só poderá se efetivar judicialmente, por meio de um ato voluntário dos pretensos pais adotivos. Ressalta-se que na adoção encontram-se presentes, de forma praticamente inquestionável, a vontade na paternidade e/ou maternidade e o afeto, elementos que configuram a posse do estado de filho. A posse do estado de filho está sendo utilizada, discretamente, como prova da filiação na falta ou defeito do termo de nascimento. 188 Assim é que, “aquele que toma o lugar dos pais, pratica, por assim dizer, uma ‘adoção de fato’. O ‘pai jurídico’ tem o seu lugar ocupado pelo ‘pai de fato’.”189 A posse de estado de filho vem gradativamente sendo reconhecida pela jurisprudência nacional, ainda que, muitas vezes, sob o manto de outras figuras jurídicas. Claro exemplo é o acórdão (...) em que se reconhece o 190 registro de nascimento de filho não biológico como adoção simulada ... No exemplo acima, a expressão “adoção simulada” escondeu o reconhecimento pela jurisprudência do estado de filho afetivo. Para se caracterizar a posse do estado de filho, faz-se necessária a presença de três elementos: nomen, tractatus e fama.191 ...como “posse de estado de filho” a relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho, exercitando os direitos e 192 assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina. Logo, faz-se indispensável a presença de elementos que devem ser notórios, estáveis e inequívocos: o suposto filho deve se utilizar do nome do suposto pai; deve existir na relação o tratamento de filho; e tem que haver reconhecimento social dessa relação. Esse conjunto de elementos caracteriza a posse de estado de filho. 188 VENCELAU, Rose Melo. O elo perdido da filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vínculo paterno-filial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 118. 189 FACHIN, L., 1996, p. 124. 190 FACHIN, L., 2003, p. 26. Ressalta-se que a expressão adoção simulada nada mais é senão a popularmente conhecida “adoção à brasileira”, em que um determinado casal, ou uma determinada pessoa, registra como seu, o filho de outrem. Essa prática na realidade não se trata propriamente de uma adoção, mas de uma simulação. 191 FACHIN, L., 1996, p. 126. 192 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001. p. 112-113. 57 A doutrina, majoritariamente, dispensa o requisito do nome por entender que o filho geralmente é tratado pelo prenome, bastando a comprovação do tratamento e da reputação. 193 Pode-se aduzir que a Constituição de 1988 ao estabelecer a igualdade entre os filhos, a funcionalização das entidades familiares – tendo como finalidade especial a realização da personalidade dos filhos –, a despatrimonialização das relações entre pais e filhos e a desvinculação da proteção conferida aos filhos com a espécie de relação dos seus genitores, consagrou também o afeto como elo dessas relações. Foi, portanto, a Constituição, o primeiro grande marco de conquistas relevantes para o instituto da adoção. O artigo 227, parágrafos 5º e 6º trouxe alterações significativas dentre as principais destacam-se: previsão constitucional do instituto; obrigatoriedade de assistência pelo Poder Público; previsão de regras diferenciadas para adoção internacional; igualdade absoluta entre os filhos biológicos e adotivos; proibição de qualquer ato discriminatório referente à filiação, passando todos os filhos a gozarem dos mesmos direitos, inclusive os sucessórios. Ademais, a Constituição introduziu direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente, como no caput do artigo 227, deixando claro que passa a ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Esses direitos e necessidades são prioritários porque as crianças e os adolescentes são seres humanos mais vulneráveis e portadores de necessidades 193 WELTER, 2003, p. 157. 58 especiais, em virtude da condição em que se encontram, de pessoas ainda em processo de desenvolvimento de suas potencialidades físicas e emocionais. 194 Esse interesse essencial de criança e adolescentes de formar-se satisfatoriamente como adultos é pré-requisito da própria noção jurídica de 195 personalidade, é inerente à dignidade da pessoa humana. Com a finalidade de viabilizar o disposto na Constituição, impedindo que o texto constitucional se constituísse em letra morta, 196 em 1990 entrou em vigor a lei 8.069 dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente,197 que passou a disciplinar a adoção de crianças e adolescentes, enquanto o Código Civil de 1916 passava a reger a adoção de maiores de dezoito anos. Situação que perdurou até 2003 quando entrou em vigor o Código Civil de 2002,198 que também legislou sobre a adoção, permanecendo a dualidade de regimes. 3.1 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Essa lei foi o segundo grande marco de conquistas importantes no âmbito da infância e da juventude no Brasil, sendo também responsável pela instauração de um novo paradigma no que diz respeito à adoção. Ao corrigir falhas dos sistemas anteriores e avançar em alguns aspectos, o Estatuto passou a representar um passo importante para o que é considerado o maior desafio brasileiro: as crianças carentes, desassistidas e abandonadas do país. 199 194 NERY JÚNIOR, Nelson; MACHADO, Martha de Toledo. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Novo Código Civil à Luz da Constituição Federal: princípio da especialidade e direito intertemporal. Revista de Direito Privado, ano 3, n. 12, p. 0949, out./dez. 2002. São Paulo: RT, 2002. p. 32. 195 Ibidem, p. 20. 196 VERONESE, Josiane Rose Petry. Filiação adotiva. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família contemporâneo: doutrina, jurisprudência, direito comparado e interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 608. 197 BRASIL. Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm Acesso em: 28 dez. 2005. 198 BRASIL. Código Civil, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm Acesso em: 28 dez. 2005. 199 PEREIRA, Tânia da Silva. A estrutura jurídica e social da família após a Constituição de 1988 no Brasil. Direito, Estado e Sociedade – Revista do Departamento de Ciências jurídicas da PUC-Rio, n. 2, p.91-103, jan./jul. 1993. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1993. p. 98. 59 Sob este prisma: Ganhou o instituto da adoção natureza nova, perdendo o caráter puramente assistencial da legislação menorista, para transformar-se em instrumento da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, que norteou o 200 Estatuto. Ao contrário do Código de Menores, o Estatuto, além de disciplinar a situação das crianças e dos adolescentes, transformou-os em sujeitos de direitos e não mais objetos dos direitos dos pais, consagrando, definitivamente, a doutrina jurídica da proteção integral que já havia começado a vigorar no Brasil com a Constituição de 1988. 201 Ser “sujeito de direitos” significa, para a população infanto-juvenil, deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como adultos, titular de 202 direitos juridicamente protegidos. Desta feita, o Estatuto substituiu o Código de Menores, introduzindo inovações à adoção, que passaria a ser sempre plena para os menores de dezoito anos, regulada pelo Estatuto; e simples quando se referisse à adoção de maiores de dezoito anos, disciplinada pelo Código Civil de 1916, com as alterações da lei 3.133/57; permanecendo a dualidade de regimes adotivos. Neste novo contexto, a adoção apresenta-se como uma forma alternativa de acolhimento da criança ou do adolescente em uma família – família substituta –, visando o desenvolvimento ligado a laços afetivos. 203 Isto se deve a uma nova postura que tem como base a idéia de que toda criança e todo adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais, em razão de suas condições específicas de pessoas em desenvolvimento. Dentre as principais transformações do Estatuto referentes à adoção, destacam-se: vedação da efetivação da adoção por procuração (art. 39 parágrafo 200 BARBOZA, Heloísa Helena. O consentimento na adoção de criança e de adolescente. Revista Forense, ano 94, vol. 341, p. 71-75, jan./mar. 1998. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 71. PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O “melhor interesse da criança”. p. 01-102. In: PEREIRA, Tânia da Silva. (Coord.). O melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 14. 202 Ibidem, p. 15. 203 PEREIRA, T., 1993, p. 101. 201 60 único); estabelecimento da idade máxima de dezoito anos para o adotando, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes (art. 40); atribuição da condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com a família biológica, salvo os impedimentos matrimoniais (art. 41); possibilidade de adoção aos maiores de vinte e um anos, independente do Estado Civil (art. 42 caput) e no caso de serem casados ou viverem em união estável, desde que um deles tenha completado vinte e um anos e comprove a estabilidade da família (art. 42 §2º); proibição da adoção por ascendentes e irmãos do adotando (art. 42 §1º); imposição de diferença de idade entre adotante e adotando de dezesseis anos (art. 42 §3º); viabilidade de a adoção ser deferida após falecimento do adotante, no curso do processo, desde que tenha manifestado de forma inequívoca sua vontade em adotar (art. 42 §5º), caso em que a sentença disporá de efeito retroativo à data do óbito (art. 47, §6º do Estatuto). O artigo quarenta e três do Estatuto passou a condicionar a efetivação da adoção, permitindo-a apenas quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos, consagrando definitivamente a doutrina de proteção integral, que será analisada mais adiante. Apesar de a adoção ser considerada instituto de caráter superior aos valores dos pretendentes à adoção, vez que o valor primário e essencial da adoção tem que ser o melhor interesse, não se pode esquecer de atentar para a valoração pormenorizada que deve existir entre o interesse da família adotiva – motivos legítimos – e o melhor interesse da criança e do adolescente. Isto se deve ao fato de que, a família que se propõe a adotar certamente tem interesses pessoais envolvidos, até porque, o que motiva alguém a adotar é, na maioria das vezes, interesses pessoais. 61 Logo, não significa “que seja ilegítimo ou injurídico o interesse daqueles que não tem prole, de a alcançar por meio da adoção; apenas que esse interesse dos adultos está subordinado, no ordenamento, ao interesse da criança.”204 Percebe-se que o verdadeiro sentido da adoção passa a residir no fato de dar uma família à criança desprovida desta, acabar com a situação de sofrimento e abandono do candidato à adoção que se encontra nas ruas, sem teto e sem amor, outras vezes em instituições que têm a finalidade de abrigá-los, mas que são desprovidas do calor humano de um lar. Nesse contexto, o que deve ser avaliado na pretensa família adotiva é a disposição que tem ela de se entregar ao amor e suas condições emocionais de criar e educar a criança ou o adolescente. Tornando-se, portanto, imprescindível que o deferimento da adoção esteja relacionado ao “legítimo interesse” e às “reais vantagens” descritas no artigo 43 do Estatuto. A adoção será precedida de um estágio de convivência que será fixado pela autoridade judiciária, em conformidade com as peculiaridades de cada caso (art.46); esse poderá ser dispensado quando a criança não tiver mais de um ano de idade, ou já se encontrar na companhia do adotante por tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da adoção (art. 46 §1º). No que diz respeito à adoção por estrangeiros residentes e domiciliados no exterior, o estágio de convivência deverá ser no mínimo de quinze dias para as crianças de até dois anos de idade e no mínimo trinta dias quando se tratar de adotando maior de dois anos de idade (art. 46 §2º). O vínculo da adoção se efetivará por sentença judicial que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão (art. 47 caput): a inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus 204 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 31. 62 ascendentes (art. 47 §1º); o mandado judicial será arquivado, cancelando-se o registro original do adotado (art. 47 §2º); nenhuma observação poderá constar nas certidões do registro (art. 47 §3º); somente a critério da autoridade judiciária poderá ser fornecida certidão para salvaguarda de direitos (art. 47 §4º); a sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar a modificação do prenome (art. 47 §5º); a adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença (art. 47 §6º). Portanto, o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial (art. 47) que, após o trânsito em julgado, torna-se irrevogável (art. 48); não se admitindo o restabelecimento do “pátrio poder” dos pais naturais nem mesmo com a morte dos adotantes (art. 49). O Estatuto dispôs como dever da autoridade judiciária manter, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção (art. 50 caput). O deferimento da inscrição será precedido de consulta aos órgãos técnicos, ouvido o Ministério Público (art. 50 §1º); sendo inviabilizada a inscrição se o interessado não satisfizer os requisitos legais ou for verificado qualquer das hipóteses previstas no artigo 29 (art. 50 §2º). O Estatuto também disciplinou a adoção por estrangeiros, conforme a Constituição determinou. Assim, a colocação em família substituta estrangeira só será possível na modalidade de adoção (art. 31 e 51 caput); o candidato deverá comprovar sua habilitação à adoção de acordo com as leis do seu país, apresentando estudo psicossocial elaborado por agência especializada e credenciada no país de origem (art. 51 §1º); poderá a autoridade judiciária requerer, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, a apresentação do texto pertinente 63 à legislação estrangeira, acompanhado de prova de sua respectiva vigência (art. 51 §2º); os documentos de língua estrangeira deverão ser juntados aos autos, devidamente autenticados pela autoridade consular, observando sempre os tratados e convenções internacionais, sempre acompanhados da respectiva tradução por tradutor público e juramentado (art. 51 §3º); antes de deferida a adoção não será permitida a saída do adotando do território nacional (art. 51 §4º). Além disso, a adoção internacional poderá ser condicionada a estudo prévio e análise de uma comissão estadual judiciária de adoção que fornecerá o laudo de habilitação para instruir o processo competente (art. 52 caput); competindo também a essa comissão manter registro centralizado de interessados estrangeiros (art. 52 parágrafo único). Constata-se que a finalidade pela qual o instituto originou-se - interesse do adotante -, deu lugar ao princípio do melhor interesse (art. 43 do Estatuto). Assim, a adoção não mais pode ser para suprir as necessidades do adotante, mas sim do adotado, por isso, a adoção é a forma privilegiada de dar uma família à criança desprovida desta e, por isso, a sua efetivação está diretamente relacionada ao melhor interesse da criança e do adolescente e ao legítimo interesse da família adotiva. Sobre o exposto sobreleva considerar que após a Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma inovadora, garantiu às crianças e aos adolescentes tornarem-se sujeitos de direitos, titulares de direitos próprios, dotados de individualidade e autonomia, além disso, gozam de todos os direitos fundamentais próprios da pessoa humana. 64 Dentre esses direitos próprios da criança e do adolescente pode-se citar o direito de serem criados e educados no seio de sua família natural e excepcionalmente em uma família substituta. Ressalta-se que quando assegurado o direito à convivência familiar sadia, todos os demais direitos certamente estarão protegidos, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade, à convivência comunitária, ao esporte, ao lazer, ao respeito (art. 4º do Estatuto). Ademais, a convivência familiar sadia também viabiliza o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, conforme determina o artigo 3º do Estatuto. Dito isso, torna-se evidente a importância do novo perfil que o Estatuto trouxe para a vida das crianças e dos adolescentes, abandonou o caráter assistencial da legislação menorista e transformou-se em instrumento eficaz de proteção integral à infância e juventude. Portanto, a adoção apresenta-se, a partir do Estatuto, como uma forma alternativa de proteção da criança e do adolescente desprovidos de um lar, devendo prevalecer em todos os casos o princípio do melhor interesse da criança. Nesse sentido, a adoção exerce uma forma privilegiada de dar uma família à criança desprovida desta. Permaneceu o Estatuto e o Código Civil de 1916 regulando a adoção até a promulgação do Código Civil de 2002, lei 10.406/2002, que em um primeiro momento pareceu pretender unificar a legislação acerca da adoção. Contudo, suas disposições não foram suficientes para essa unificação, continuando a adoção com uma dualidade de regimes: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002. 65 3.2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O CÓDIGO CIVIL DE 2002. Com a promulgação do Código Civil de 2002 a adoção simples foi abolida da legislação brasileira, tornando inaplicável “qualquer adjetivação ou qualificação, devendo ambas ser chamadas simplesmente de adoção.” 205 O Código Civil trouxe a redução da idade para o exercício pleno dos atos da vida civil, denominada capacidade absoluta, passando de 21 anos para 18 anos; tendo como conseqüência, no que se refere à adoção, a redução da capacidade civil para adotar de 21 anos para 18 anos. Cumpre ressaltar que isso se deve a orientação do Estatuto em condicionar a capacidade para adotar à maioridade civil, independente de estado civil (art. 42 caput). 206 Assim, o ECA 42 § 2º tem de ser lido de acordo com as novas regras sobre capacidade de gozo, matéria típica de teoria geral do direito privado e, portanto, objeto de regulamento pelo Código Civil, a que a lei especial de 207 proteção integral da criança e do adolescente (ECA) deve-se subordinar. Ademais, estabeleceu o Código Civil de 2002 que a adoção de maiores também se efetivará por processo judicial, dependendo igualmente da assistência do Poder Público e de sentença constitutiva (art. 1.623 caput e parágrafo único do CC/2002). Tânia da Silva Pereira208 alerta sobre a impropriedade do artigo dez do Código Civil que dispõe sobre a averbação em registro público dos ‘atos extrajudiciais de adoção’. Ressalta-se que o novo diploma legal passou a exigir procedimento judicial para a adoção de menores e maiores de idade, tornando-se inexistente a adoção por atos extrajudiciais, conseqüentemente inadequada a disposição do artigo dez do Código. 205 GONÇALVES, 2005, p. 333. PEREIRA, T., 2003, p. 159. 207 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 34. 208 PEREIRA, T., op. cit., p. 162. 206 66 No que se refere à espécie de procedimento a ser utilizada na adoção, o Código Civil de 2002 dispôs que deverão ser observados os requisitos estabelecidos nele; ao passo que o Estatuto previu procedimentos comuns (artigos 165 a 170 do Estatuto) para os processos de adoção. O que conduz à interpretação de que o Código Civil “teria sido mais coerente se se referisse às condições para o processo judicial de adoção”209, ao invés de referir-se aos procedimentos estabelecidos por ele. Inovou também ao atribuir a condição de filho ao adotado maior de 18 anos, com os mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com a família biológica, salvo os impedimentos matrimoniais (art. 1626 caput do CC/2002 e art. 41 caput do Estatuto), uma vez que o Código de 1916 não viabilizava tal direito. Ressalta-se, porém, que a Constituição Federal já havia igualado todos os filhos em 1988. Waldyr Grisard Filho coloca que: A adoção passa a ser uma só - simplesmente adoção, sem qualificações -, independente da idade do adotando. De outra forma, todas as regras e princípios para a adoção de menores de idade valem igualmente para a adoção de maiores de idade, que, agora, se integram totalmente na família do adotante, assumindo a situação de filho, sem restrições de ordem 210 pessoal ou patrimonial (art. 227, § 6.º, da CF e art. 1.626 do novo CC). Por outro lado, se comparado às disposições do Estatuto, o Código Civil de 2002 não traz relevantes modificações ao instituto, transcrevendo apenas alguns de seus dispositivos, sem, contudo, abrangê-lo na sua totalidade, permanecendo o Estatuto, por sua especialidade e completude, a regular o instituto, “cuja vigência perdura integralmente em face do caráter de lei especial e harmônica com a Constituição Federal.” 211 209 PEREIRA, T., 2003, p. 161. GRISARD FILHO, 2003. p. 33. 211 FACHIN, Luiz Edson; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil, vol. XVIII: do direito de família e do direito pessoal das relações de parentesco. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 150. 210 67 Destarte, o Código Civil de 2002 repetiu alguns dispositivos do Estatuto, como: diferença de idade entre adotante e adotado, na qual o adotante deve ser no mínimo 16 anos mais velho que o adotado (art. 1619 do CC/20002 e 42 §3º do Estatuto); necessidade do consentimento dos pais ou dos representantes legais de quem se deseja adotar e da concordância deste, se contar com mais de doze anos (art. 1621 caput do CC/2002 e 45 caput e §2º do Estatuto); dispensa do consentimento em relação à criança ou ao adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar, lembrando que este dispositivo no Estatuto utilizase do termo “pátrio poder” (art. 1621 §1º do CC/2002 e 45 §1º do Estatuto); imposição de que a decisão da adoção confere ao adotado o sobrenome do adotante, podendo determinar também a modificação do seu prenome, a pedido do adotante ou do adotado, quando o adotante for ainda menor (art. 1627 do CC/2002 e art. 47 §5º do Estatuto). Atenta-se para o disposto no artigo 1621 caput do CC/2002 que suprimiu a palavra técnica “nascituro” que existia no Código de 1916 no artigo 372, gerando divergências doutrinárias acerca da possibilidade jurídica da adoção do nascituro. Uns defendem a possibilidade da adoção por nascituro, afirmando que “é de grande relevância, pela possibilidade de se lhe proporcionar alimentos – em sentido lato, alimentos civis, nos quais se inclui a adequada assistência pré-natal – a serem promovidos pelo adotante.”212 Outros são contra a adoção de nascituro, argumentando que: a Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993 (decreto Legislativo nº 63, de 19.04.1995), relativa à adoção internacional, impede, implicitamente, a sua realização, ao referir, em seu art. 4º, letra c, nº 4, a necessidade de as autoridades competentes do estado de origem assegurarem-se de “que o consentimento da mãe, quando exigido, tenha sido manifestado após o 213 nascimento da criança”. 212 CHINELATO, Silmara Juny. Adoção de nascituro e a quarta era dos direitos: razões para se alterar o caput do artigo 1.621 do novo Código Civil. p. 355-372. In: DELGADO, Mário Luiz (Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões Controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. p. 364. 213 BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 42. 68 O artigo 1624 do CC/2002 dispõe sobre a desnecessidade do consentimento do representante legal do menor, caso fique provado que se trata de infante exposto, ou de menor cujos pais sejam desconhecidos, estejam desaparecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar, sem nomeação de tutor; ou de órfão não reclamado por qualquer parente, por mais de um ano. Na opinião de Nelson Nery e Martha de Toledo Machado214 esse artigo trouxe a possibilidade da adoção ser deferida sem o consentimento dos pais, ainda que conhecidos. De acordo com o raciocínio desses doutrinadores, quando o artigo se refere a pais desaparecidos e à criança ou ao adolescente “exposto”, significa que são conhecidos os pais, pois a lei não contém palavras inúteis. Logo, o referido artigo afronta, além das garantias constitucionais de que são titulares os pais biológicos, o direito de filiação da criança e seu direito fundamental de convivência familiar. 215 Note-se, por oportuno, que não são tão raras as hipóteses de seqüestro de crianças para colocação informal em família substituta, neste imenso Brasil. Como são bem freqüentes as situações de crianças de tenra idade que se perdem dos pais, no gigantismo de nossas metrópolis, com suas 216 complexidades. Inovou, ainda, o Código Civil de 2002 quando previu a possibilidade de revogação do consentimento até a publicação da sentença constitutiva da adoção previsto no caput do artigo 1621. Por outro lado, silenciou quanto à questão da irrevogabilidade, levando a uma interpretação, a contrario sensu do dispositivo acima mencionado: uma vez que, sendo possível a revogação do consentimento até a publicação da sentença, a partir dessa, o ato passa a ser irrevogável. 217 Assim como o Estatuto, o Código Civil de 2002 possibilitou a adoção: ao tutor ou ao curador do adotando, desde que, antes da adoção, dê contas de sua 214 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 41-43. Ibidem, p. 42. 216 Ibidem, p. 43. 217 JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Comentários sobre a adoção no novo Código Civil. Revista do Advogado, ano 22, n. 68, p. 127-134, dez. 2002. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2002. p. 132. 215 69 administração e salde o débito (art. 1620 do CC/2002 e art. 44 do Estatuto); conjuntamente aos divorciados ou judicialmente separados desde que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha se iniciado na constância da sociedade conjugal (art. 1622 parágrafo único e 42 §4º do Estatuto); dos cônjuges ou companheiros do filho do outro, mantendo os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou companheiro do adotante e os respectivos parentes (art. 1626 parágrafo único do CC/2002 e art. 41 §1º do Estatuto); após o falecimento do adotante, mas no curso do procedimento, caso em que a sentença disporá de efeito retroativo à data do óbito (art. 1628 do CC/2002 e art. 47, §6º do Estatuto). Salienta-se que nos demais casos os efeitos da adoção começam a partir do trânsito em julgado da sentença. Pode parecer que o artigo 43 do Estatuto e o artigo 1625 do Código Civil de 2002 versam sobre a mesma coisa, porém o Estatuto refere-se a “reais vantagens” enquanto o Código Civil a “efetivo benefício”, a diferença é que a real vantagem veio pelo Estatuto bem pormenorizada, enquanto que o efetivo benefício do Código Civil é muito mais genérico, encontrando-se isolado na lei civil. 218 Além disso, o Código Civil não disciplinou, como o Estatuto, a questão dos “motivos legítimos”, dispondo apenas da expressão “efetivo benefício”. Ademais, a motivação legítima prevista no Estatuto como um dos requisitos para a adoção, autoriza a avaliação técnico-pericial dessa motivação. 219 Note-se também que o Código Civil não se expressou acerca da impossibilidade da adoção por ascendentes e irmãos do adotando como o fez o 218 219 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 36. Ibidem, p. 37. 70 Estatuto (art. 42 § 1º). Todavia, por se tratar de lei especial em face de lei geral, o dispositivo do Estatuto não está sujeito à regra de revogação temporal. 220 No que diz respeito à adoção de maiores, deve-se analisá-la de forma diversa, pois, sendo capazes e maiores, nada justifica que o interesse de um prevaleça sobre o do outro. 221 Neste sentido dispõe Guilherme Calmon Nogueira da Gama: ... a princípio poderia conduzir ao equívoco de que houve extensão do princípio do melhor interesse da criança para abranger todos os adotandos independente de idade ou maturidade. Logicamente que esta não é a melhor interpretação à luz da Constituição de 1988 no que se refere ao princípio constitucional do melhor interesse da criança, mas reflete a preocupação da legislação infraconstitucional a respeito da função social do 222 instituto da adoção. Foi demonstrado anteriormente que independente do estado civil podem as pessoas adotar e que tanto as pessoas divorciadas como as separadas judicialmente também podem adotar, desde que a convivência com o adotado tenha se iniciado ainda na vigência do casamento. Todavia, o Código Civil de 2002 e o Estatuto (art. 1622 caput e parágrafo único e 42 §4º respectivamente) não previram explicitamente a possibilidade dos ex-companheiros adotarem. Mesmo assim, não se pode excluir desses artigos a possibilidade dos ex-companheiros também poderem adotar, desde que sejam acertadas regras de guarda e visitação, 223 até porque, estaria quebrada a simetria se não se autorizasse a adoção por excompanheiros a exemplo do que ocorre com os ex-cônjuges. 224 Manteve o Código Civil, no artigo 1622, o dispositivo que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”, acrescentando ao artigo do Código Civil de 1916 apenas os casais que viverem em união estável. 220 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 39. Ibidem, p. 38. 222 GAMA, 2003, p. 587. 223 PEREIRA, T., 2003, p. 161. 224 GRISARD FILHO, 2003, p. 33. 221 71 No que diz respeito à adoção internacional o Código Civil, ao versar sobre essa, impôs que a medida obedecerá aos casos e às condições que forem estabelecidos em lei (art. 1629 do CC/2002), prevalecendo a regulamentação dos artigos 51 e 52 do Estatuto. Diante de todo o exposto, entende-se que o Estatuto continua em vigor nas questões que não divergem do Novo Código Civil e, ao mesmo tempo, o complementa, onde este se omite, seguindo, portanto, o disposto no art. 2º e parágrafos da Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 2.º Não se destinando a vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. §1.º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. §2.º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. Neste diapasão descreve Waldyr Grisard Filho: Como o novo Código não esgotou a regulamentação do instituto (...), podese afirmar que seguirão aplicáveis nesses e em outros temas as atuais disposições do ECA, entendendo-se, todavia, revogados os dispositivos 225 incompatíveis com a nova lei. Fazendo uma síntese do exposto conclui-se que ainda subsistem as normas sobre adoção do Estatuto no que se refere: à vedação de adoção por procuração; ao estágio de convivência; à irrevogabilidade da adoção; à restrição da adoção por ascendentes e irmãos do adotando; aos critérios para a expedição de mandado e respectivo registro no termo de nascimento do adotado; aos critérios para a adoção internacional. Em 2002 foi elaborado o Projeto de lei n. 6.960 propondo a alteração de alguns artigos do Código Civil. Uma das finalidades do referido projeto era incorporar ao novo Código Civil os dispositivos do Estatuto que versam sobre a adoção, para assim, existir apenas um diploma legal regulando a adoção que versaria sobre a 225 GRISARD FILHO, 2003, p. 33. 72 adoção de criança e adolescente e também de maiores, mas não obteve sucesso e acabou sendo arquivado. 226 Em conformidade com a opinião de Nelson Nery Júnior e Martha de Toledo Machado227, parece mais coerente que o instituto da adoção permaneça no microssistema do Estatuto que tem como corolário fundamental o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, sendo, portanto, superior ao Código Civil que trata do instituto de forma genérica. Ademais, teria sido mais prudente que o legislador tivesse se limitado a legislar acerca da adoção de maiores. Destarte, a visão apresentada pelo instituto da adoção, inicialmente e de forma tímida no Código de Menores de 1979, e posteriormente de forma mais precisa, a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, faz com que sua perspectiva seja diferente da até então predominante. A adoção passa a ser praticada baseando-se no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, considerando todos os aspectos físicos e psicológicos desse. Trata-se, portanto, de “um princípio especial, o qual, a exemplo dos princípios gerais de direito, deve ser considerado fonte subsidiária na aplicação da norma.” 228 3.3 A FUNÇÃO SOCIAL E O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O instituto da adoção exerceu diversas funções sociais ao longo da história, mas “atualmente a adoção desempenha uma função social, principalmente naqueles países que não dispõem de condições para garantir a proteção e o sustento das crianças órfãs e desamparadas.” 229 226 NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 43. Ibidem, p. 44. 228 PEREIRA, T., 2003, p. 166. 229 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Problemas e perspectivas da adoção internacional em face do estatuto da Criança e do Adolescente. Revista de Informação Legislativa, ano 31, n. 122, p. 169-181, maio/jul. 1994. p. 173. 227 73 Nesse sentido, paralelamente às transformações apresentadas até aqui, serão identificadas as funções sociais correspondentes. Assim é que, à época da sua origem, mais precisamente no direito romano, a função social do instituto era inviabilizar a extinção da família, a quem a natureza não dera filhos, perpetuando o culto aos antepassados. “Todos tinham, pois, enorme interesse em deixar um filho, convencidos de que, com este facto, tornavam feliz a sua imortalidade.” 230 Na Idade Média o instituto praticamente desapareceu em virtude do apogeu do Cristianismo, que apenas reconhecia a família e os filhos advindos do casamento, reconhecendo a adoção como forte adversária do matrimônio sagrado, uma vez que a possibilidade das pessoas terem seus filhos adotivos poderia representar um desestímulo ao casamento, chegando ao ponto do Direito Canônico não disciplinála. 231 O desuso da adoção na Idade Média torna difícil o exame da função social da adoção naquele período; mas, ao que tudo indica, para a Igreja Católica a função social da adoção deveria ser a de infringir as sagradas leis do matrimônio e, ao mesmo tempo, desestimulá-lo. Ademais, relatam alguns autores, como Libórni Siqueira232 e Waldyr Grisard Filho, 233 que a Igreja também se manifestava contra a adoção porque era comum, naquela época, pessoas ricas morrerem sem filhos ou herdeiros, deixando todo o patrimônio para as congregações religiosas, fato este que se tornaria menos comum caso a adoção fosse incentivada ou aprovada pela Igreja. Sob a influência francesa a adoção ressurgiu no século XIX no Código de Napoleão, influenciando o Código Civil Brasileiro de 1916 que deixava evidente, 230 COULANGES, s/d, p. 67. GRISARD FILHO, 2003, p. 28. 232 SIQUEIRA, 2004, p. 41. 233 GRISARD FILHO, op. cit., p. 28. 231 74 como já se pôde perceber, a preocupação de possibilitar a quem a natureza havia negado filhos, o direito de adotá-los. A partir daí, três correntes doutrinárias formaram-se em relação à Proteção da Infância no Brasil desde o século XIX. 234 A primeira foi a Doutrina do Direito Penal do Menor, que vigorava na época de promulgação do Código Civil de 1916, estava diretamente relacionada aos Códigos Penais de 1830 e 1890. Preocupava-se exclusivamente com a delinqüência praticada pelo menor, imputando-lhe responsabilidade com base em uma “’pesquisa de discernimento’ – que consistia em imputar a responsabilidade ao menor em função de seu entendimento quanto à prática de um ato criminoso.” 235 A segunda Doutrina passou a vigorar com o advento do Código de Menores de 1979, era a Doutrina Jurídica do Menor em Situação Irregular. Tinha como questão básica a situação irregular do menor, marcada, ainda, por uma política assistencialista, fundada na proteção do menor abandonado ou infrator. 236 O Código de Menores herdou do regime militar sua influência na concepção da Doutrina da Situação Irregular, protegendo-se mais os interesses dos adultos, inclusive no que diz respeito à adoção, em que procuravam crianças para satisfazer os interesses e as exigências dos pais adotivos. 237 Durante muito tempo na história, a função social da adoção estava voltada para fatores desvinculados dos interesses das crianças e dos adolescentes, estando, pois, mais relacionada a satisfazer os interesses dos pais adotivos, sem preocuparse, propriamente, com o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. Mas, a função social da adoção estava destinada a se transformar. A preocupação 234 com a criança PEREIRA, T., 1999, p. 11. Ibidem, p. 11. 236 Ibidem, p. 13. 237 BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 39. 235 tornou-se uma realidade mundial, gerando 75 manifestações no âmbito mundial: em 1924, na Declaração de Genebra, declarou-se “a necessidade de proclamar à criança uma proteção especial”; em 1948 coube à Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas declarar que a criança possui “o direito a cuidados e assistência especiais”; em 1959 a Declaração Universal dos Direitos da Criança, dentre outras disposições, determinou que “a criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”; em 1969 destacou-se a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que estabeleceu que “toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado.”238 Dito isso, pode-se aduzir que a Doutrina de Proteção Integral adentrou no sistema jurídico brasileiro inicialmente através da Constituição Federal de 1988, que no seu artigo 5º, §2º, determinou que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados nas condições estabelecidas pela Constituição devem ser equivalentes às emendas constitucionais. Posteriormente, em 1989, aprovou-se a Convenção Internacional dos Direitos da Criança que veio a ser ratificada pelo Brasil em novembro de 1990, através do decreto 99.710. Destaca-se dentre as suas disposições o artigo 3.1 no qual “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas 238 PEREIRA, T., 1999, p. 04-05. 76 de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.”239 Portanto, em 1990, através do Estatuto e do decreto 99.710, ratificou-se definitivamente no sistema jurídico brasileiro a Doutrina de Proteção Integral. Com o advento do Estatuto, o ato de adotar passou a requerer dos interessados a disponibilidade para se entregar ao amor, não se coadunando mais com o assistencialismo até então reinante. Além disso, o Estatuto tornou o abrigo medida excepcional e transitória, sendo prioritária a inserção da criança ou do adolescente em uma família substituta, diferente do Código de Menores que priorizava o abrigo às crianças abandonadas.240 A evolução doutrinária no campo da infância e da juventude trouxe certa rejeição241 no que diz respeito à expressão “menor”. Essa intolerância deve-se ao fato de que antes do Estatuto essa palavra era utilizada praticamente para se referir às crianças em situação irregular. Depreende-se aqui, a contrario sensu, que a palavra “menor” apenas denota aquela criança ou aquele adolescente menor de 18 anos, não importando, no entanto, que se utilize a expressão menor ou criança e adolescente, até porque, toda criança e todo adolescente são menores no sentido literal da palavra. O que importa realmente é que seus direitos sejam garantidos e respeitados e que, além de se reconhecer a família como núcleo indispensável ao saudável crescimento psíquico, social e moral do menor, seja garantida também a todas as crianças e a todos os adolescentes a convivência familiar. 239 240 241 PEREIRA, T., 1999, p. 05-06. TEIXEIRA, 2003, p. 10. GIRARDI, 2005, p. 101. 77 É neste contexto que se encaixa a adoção, como único sistema alternativo de proteção à criança capaz de cumprir com todas as funções que caracterizam uma família e que, por isso, contribui para o crescimento psíquico, social e moral da criança. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consolidou, em seu artigo 227, os direitos fundamentais à infância, deixando ainda expresso no artigo 5º, §2º a inclusão dos direitos e das garantias dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Em 1990 o Brasil ratificou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, através do decreto 99.710, ressaltando que em todas as ações referentes às crianças deve-se considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.242 Ao ratificar essa Convenção e promulgar a lei 8.069 - Estatuto da Criança e do Adolescente –, ambos em 1990, o Brasil consolidou, definitivamente, a terceira Doutrina: a Doutrina de Proteção Integral. Esta, por sua vez, instituiu o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente como um dos parâmetros indispensáveis a ser utilizado em todos os casos relativos à criança e ao adolescente. Rosana Amara Girardi Fachin esclarece que: A busca do atendimento aos “interesses da criança” está positivada no Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem tais interesses como regra fundamental, inspirada no texto constitucional, que estatuiu a garantia de 243 um desenvolvimento digno e sadio, em exortação à dignidade humana. De acordo com a Doutrina de Proteção Integral, as crianças e os adolescentes são protegidos em razão de serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, considerados sujeitos de direitos juridicamente tutelados. 242 243 244 PEREIRA, T., 1999, p. 04-05. FACHIN, R., 2001, p. 145. PEREIRA, T., op. cit., p. 14-15. 244 78 Portanto, “a noção do melhor interesse da criança é no sentido do seu melhor equilíbrio físico e psicológico e jamais econômico.”245 Apesar do avanço estrondoso que essa Doutrina trouxe ao tratamento da infância, percebe-se que ainda não é precisa a definição do que seja o melhor interesse. Atenta-se para o perigo de aplicação desse princípio tendo por base a subjetividade de cada juiz; e, visando minimizar esta problemática, alguns autores estabelecem determinados fatores a serem considerados para tentar se verificar o que de fato representa o melhor interesse da criança e do adolescente. Neste sentido, alguns fatores relevantes podem ser citados, como: o amor e os laços afetivos entre o pretendente à adoção e a criança ou o adolescente; a possibilidade do pretenso pai de prover a criança com comida, abrigo, vestuário e assistência médica; a saúde do pretenso pai; o lar, a escola, a comunidade e os laços religiosos que a criança ou o adolescente terá; a preferência da criança, se ela tem idade suficiente para ter opinião; a propensão do pai em encorajar contato e comunicação saudável com a criança. Além desses fatores acima apresentados, acrescenta-se “valores que envolvem afinidade (possibilidade de convivência), afetividade (dedicação), relacionamento humanitário, o caráter e a personalidade dos interessados.” 246 Apesar do princípio do “melhor interesse” envolver uma idéia vaga, ele é fundamental nesta nova fase de proteção à infância e à juventude, fazendo-se indispensável redefinir seus parâmetros e fixar as diretrizes em face dos demais princípios legais. 247 245 NOGUEIRA, 2001, p. 174. LISBOA, Sandra Maria. Adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente (doutrina e jurisprudência). Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 65. 247 PEREIRA, T., 1999, p. 18. 246 79 Desse modo, “como princípio ou novo paradigma, o ‘melhor interesse’ apresenta-se em nosso sistema jurídico com seus próprios indicadores. Ao aplicá-lo, há que se considerar sua base constitucional e legal”. 248 Levando-se em consideração que o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 dispôs que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e à convivência familiar e comunitária, há que se observar, com maior prudência no presente trabalho, a questão das crianças e dos adolescentes cujos pais, ou seja, a família, não lhes garantiu a convivência familiar, situação em que caberá à sociedade e ao Estado garantir-lhes tal direito. Assim, “constatada a impossibilidade de a criança permanecer junto à sua família de origem, a adoção, como forma de família substituta, surge como uma possibilidade de reconstrução do direito à convivência familiar.“249 Isto se deve também ao fato de que “as famílias substitutas e os pais sociais cumprem também a função de suprir o desamparo e o abandono, ou pelo menos parte dele, das crianças e dos adolescentes que não tiveram o amparo de seus pais biológicos.” 250 Nesse contexto de abandono e privação da convivência familiar, enquadra-se, a partir da Constituição de 1988, o novo perfil da função social da adoção. Pois de todas as espécies de colocação em família substituta – tutela, guarda e adoção -, a adoção é a única que cumpre com todas as funções que caracterizam uma família, lembrando que a família deve ser o instrumento capaz de viabilizar aos seus membros a promoção da dignidade humana. Desse modo, a convivência familiar, resultante da adoção, tornará possível que a criança e o adolescente tenham seus direitos e garantias fundamentais 248 PEREIRA, T., 1999, p. 27. BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 36. 250 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? p. 575-586. In: PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 585. 249 80 assegurados – como o direito à convivência familiar e comunitária, o direito de ter uma família, dentre outros – tornando-se viável o sadio desenvolvimento psíquico, social e moral, contribuindo para a formação de um indivíduo apto à convivência comunitária. Por outro lado, a adoção deve ser encarada como um remédio subsidiário, e não principal, à solução dos problemas das crianças e/ou dos adolescentes, abandonados, institucionalizados, enfim, desamparados. Posto que, àqueles que foram adotados provavelmente tiveram o problema do abandono solucionado, mas ainda existem os que aguardam a adoção e permanecem desamparados. Em outras palavras, funciona como um remédio que cura, mas somente àqueles que dele puderam beber. Mas para a sociedade, em geral, funciona como um remédio paliativo, pois, ao mesmo tempo em que cura um indivíduo, não impede que outros permaneçam doentes ou adoeçam. Portanto, a adoção apresenta-se somente como uma alternativa e não como uma solução para a problemática social, assumindo um papel de extrema relevância social; tornando-se inquestionável a sua importância, quer seja no âmbito privado – quando viabiliza a satisfação da família adotiva –, quer seja no âmbito público – quando integra a criança ou o adolescente no seio de uma família. A adoção, mesmo não sendo a solução do desamparo, não perde seu caráter humanitário e social, pois na medida em que uma adoção é efetivada, uma pessoa deixa de ter violado o seu direito à convivência familiar e deixa de estar à margem da sociedade, contribuindo para uma sociedade menos injusta e desigual. Dessa forma, a verdadeira função social do instituto da adoção consiste em tornar possível à criança e ao adolescente, privados de um lar, a sua inserção em 81 uma família, contribuindo para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, viabilizando a felicidade destes. Ressalta-se, entretanto, que a adoção só cumprirá sua função social se estiver alicerçada no afeto e na possibilidade de promoção da dignidade humana do adotado. O princípio do melhor interesse está diretamente relacionado à promoção da dignidade humana da criança e do adolescente, portanto, realizar-se-á o melhor interesse na medida em que forem respeitados todos os direitos e as garantias Constitucionais referentes à criança e ao adolescente os quais viabilizarão a promoção da dignidade humana destes. Em face do exposto, toda adoção deve ser realizada tendo como objetivo a promoção da dignidade humana da criança e do adolescente, ponderando-se para o fato de que a instituição que abriga a criança ou o adolescente, por mais que corresponda a um “exemplo de instituição”, jamais terá a capacidade de proporcionar a dignidade humana destes. Destarte, enquanto não se descobrem elementos mais precisos caracterizadores do melhor interesse da criança, deve o jurista atentar para o melhor bem estar do menor e analisar cada caso de modo diferente, com as peculiaridades inerentes, garantindo, aos pequeninos, sujeitos de direitos, a possibilidade de viver em uma família capaz de promover-lhes a dignidade humana e a realização de suas personalidades. 4. A QUESTÃO JURÍDICA DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS. Saber ver e respeitar a diversidade é o mínimo ético que se exige de quem vive em um estado democrático, regido por uma Constituição que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, baseada 251 nos princípios da igualdade e da liberdade. Para se chegar ao entendimento de que a adoção por homossexuais, quer seja singularmente ou em conjunto, é um fato em que o direito não pode se abster de analisar, faz-se imperiosa a observação dos princípios e das garantias fundantes da Constituição. Os princípios e as garantias constitucionais asseguram às pessoas o direito à liberdade, igualdade, livre orientação sexual, intimidade, bem como à promoção da dignidade da pessoa humana. Ressalta-se que para se efetivar a promoção da dignidade humana, faz-se indispensável que às pessoas seja viabilizada à formação da entidade familiar que melhor atenda e satisfaça os interesses dos seus membros. A dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral que para efetivar-se necessita de que às pessoas sejam garantidos os direitos fundamentais, fazendo-se necessário que tenham assegurado também a proibição de qualquer forma de discriminação, inclusive em virtude de sua orientação sexual. Diante da previsão constitucional da dignidade da pessoa humana, não se deve permitir que, no início do século XXI, as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo sejam tratadas simplesmente como sociedades de fato, da mesma 251 DIAS, 2004, p. 29. 83 forma que eram tratadas as uniões estáveis, entre homem e mulher, antes da Constituição de 1988. A união estável entre homem e mulher era considerada sociedade de fato antes do advento da Constituição de 1988, que por sua vez consagrou-a expressamente em seu texto, artigo 226, §3º, como entidade familiar. Todavia, não bastou a abrangência da união estável na Constituição para que essa fosse reconhecida como tal no âmbito jurídico; foram necessárias leis que a regulamentassem. Dito isso, cumpre observar que a primeira análise a ser realizada no âmbito da questão jurídica da adoção por homossexuais está diretamente ligada às garantias e aos direitos que a Constituição assegurou aos cidadãos brasileiros. Além disso, a adoção transformou-se com a evolução da sociedade, fazendose indispensável que se conceitue de forma diferente a adoção após a promulgação da Constituição e o advento do Estatuto. Assim é que o instituto passou a ser definido como: uma forma alternativa de dar uma família à criança desprovida desta; sendo uma forma não biológica de se constituir um vínculo parental, de criar laços, não por consangüinidade, mas, e tão somente, pelo amor, através do qual se oportunizará ao adotado desenvolver-se física, moral e espiritualmente, contribuindo para a promoção da sua dignidade humana. Para que se possa compreender o porquê da possibilidade jurídica da adoção por homossexuais, deve-se partir do pressuposto de que a união homoafetiva é uma espécie de entidade familiar – desde que presentes a afetividade, a estabilidade, a publicidade e a affectio maritalis – e como tal, deve ter assegurado o direito à adoção nos mesmos moldes em que é assegurado às entidades familiares heterossexuais. 84 Ressalta-se que uma vez respeitados os dispositivos constitucionais, nada mais lógico do que a justiça repugnar quaisquer argumentos contrários ou a favor da adoção que utilizem como base a opção sexual do adotante, posto que esse não serve, de forma alguma, de parâmetro para tal julgamento. Assim, os fatos devem se impor perante o direito, contribuindo para “dissolver a ‘névoa de hipocrisia’ que encobre a negação de efeitos jurídicos à orientação sexual.” 252 Desse modo, demonstrar-se-á que caberá ao judiciário e ao legislativo tornar possível que às uniões homoafetivas, bem como à adoção por homossexuais, seja viabilizado um tratamento em conformidade com os princípios constitucionais que abrangem todos os cidadãos e não apenas os heterossexuais. Destarte, assim como é permitido aos casais heterossexuais adotarem, desde que tenham condições de promover a dignidade humana da criança e/ou do adolescente, também deve ser viabilizada aos casais homoafetivos essa possibilidade, nas mesmas condições em que são permitidas as adoções aos casais heterossexuais. Nesse âmbito, nada mais sensato do que a aplicação dos princípios e das garantias encampados no texto constitucional brasileiro de 1988 para desmistificar a impossibilidade da adoção simplesmente pela condição da sexualidade dos pretendentes. 4.1 OS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS QUE ASSEGURAM À UNIÃO HOMOAFETIVA O STATUS DE ENTIDADE FAMILIAR. A interpretação do texto constitucional não pode impedir às pessoas com orientação homossexual que tenham tutelada a família que melhor atenda as necessidades de seus membros. 252 FACHIN, L., 1999, p. 96-97. 85 Portanto, a interpretação mais coerente das novas formas de entidade familiar deve estar de acordo com o que ocorre no dia-a-dia das pessoas, viabilizando que o direito retrate verdadeiramente os fatos sociais. 253 Em conformidade com a opinião de Paulo Luiz Netto Lôbo, existem três características que, quando presentes, qualificam uma entidade familiar: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; c) ostensibilidade, o que se pressupõe uma unidade familiar que se 254 apresente assim publicamente. Sendo assim, considerar-se-á entidade familiar toda aquela que esteja amparada na afetividade, na estabilidade, na publicidade e tenha a intenção de constituir família, affectio maritalis, promovendo a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, independente da orientação sexual. Portanto, o mais importante é que as pessoas estejam unidas pela afetividade e reciprocidade, proporcionando aos seus membros a estrutura familiar indispensável à sua formação como cidadão. 255 Até porque ninguém se realiza como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, a livre orientação sexual, da mesma forma que ninguém se realiza quando lhe falta qualquer dos direitos fundamentais. 256 A Constituição Federal de 1988 possui seus alicerces em princípios que não podem ser ignorados, porém, não se manifestou contra a união homoafetiva ou contra o casamento homoafetivo. Além disso, “os princípios constitucionais são fios 253 CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. p. 183-211. In: OLIVEIRA, J.M. Leoni Lopes de (Coord.). Temas de Direito Privado. Rio de Janeiro: Lúmen Jures, 2001. p. 194. 254 LÔBO, 2002, p. 42. 255 TEIXEIRA, 2003, p. 08. 256 DIAS, Maria Berenice. Liberdade sexual e Direitos Humanos. p. 85-88. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e Cidadania. O novo Código Civil Brasileiro e a vacatio legis. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2002. p. 85-86. 86 condutores da interpretação à Lei Maior, pois se irradiam por todo o ordenamento jurídico, condicionando, inclusive o trabalho legislativo.”257 Portanto, nada obsta que, com base no princípio da igualdade, da mesma forma como ocorreu com as relações heterossexuais, garanta-se aos homossexuais a possibilidade de escolha, entre viver um relacionamento informal – união homoafetiva – e ter um relacionamento formal – casamento homoafetivo. Salientase, ainda, para o fato de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo 16, 1 dispõe que “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio.”258 Contudo, o objetivo do presente subitem é apenas o de demonstrar que as uniões homoafetivas são entidades familiares e, como tal, também têm garantido o direito de adotar. Todo e qualquer Estado que se diga “Estado Democrático de Direito”, necessariamente terá que se adaptar às transformações das relações humanas. A família no final do século XX e início do século XXI deixa completamente desprovido o argumento de que não se deve conferir status de família às uniões homoafetivas, uma vez que estas podem promover a dignidade e a realização da personalidade de seus membros. As famílias homoafetivas tornar-se-ão ainda mais capazes de promover a dignidade humana de seus membros, na exata medida em que for respeitada a liberdade de escolha para se constituir a entidade familiar que melhor corresponda à realização existencial do indivíduo. Além do mais, a liberdade na orientação sexual dos indivíduos é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. 257 PERES, Ana Paula Ariston Barion. A adoção por homossexuais: fronteiras da família na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 15. 258 DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm Acesso em: 21 jun. 2006. 87 Nesse diapasão dispõe Maria Celina Bodin de Moraes: A atitude preconceituosa do meio social é, sabidamente, causa de problemas graves, resultando muitas vezes em isolamento, dificultando suas vidas no trabalho, na família, nos relacionamentos pessoais e pondo 259 em risco sua estabilidade emocional. Constatou-se que as entidades familiares contidas expressamente na Constituição não abrangem, de forma alguma, todas as entidades familiares existentes na sociedade brasileira e que as uniões homoafetivas são também entidades familiares merecedoras de tutela estatal, uma vez que “a norma de inclusão do art. 226 da Constituição apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões.“ 260 Logo, o fato da Constituição não colocar de forma expressa no seu texto as uniões homoafetivas como entidades familiares, não significa a inexistência destas, nem configura a ausência do status de família, muito menos caracteriza a inviabilidade da tutela Estatal; bastando para tanto que efetivamente promovam a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes, da mesma forma que compete a todas as entidades familiares. O que importa, em verdade, é o enfoque personalístico da afetividade – da comunhão de vida, do exercício do ônus da criação dos filhos, da realização pessoal e do desenvolvimento da personalidade de seus membros –, 261 podendo estar presente em diversas formas de constituição da família. Sob este prisma, mesmo o projeto de parceria civil de autoria da ex-Deputada Marta Suplicy, projeto de lei n.1.151, de 1995,262 não resolveria a questão do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, uma vez que disciplinaria apenas as questões de cunho patrimonial que envolvem os parceiros da união homoafetiva. 259 MORAES, 2000, p. 96. LÔBO, 2002, p. 51-52. 261 MATOS, 2004, p. 16-17. 262 BRASIL. Projeto de Lei n. 1151 de 1995. Disciplina a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências. Disponível em: http://mixbrasil.uol.com.br/pride/pcr.htm Acesso em: 21 jun. 2006. 260 88 Reconhecer efeitos apenas patrimoniais à união entre homossexuais é negar a comunhão de afeto existente entre eles, é violar o princípio da igualdade. Lembrando que se aos cidadãos não forem dadas as mesmas condições jurídicas, o princípio da igualdade – que é indispensável a um estado democrático de direito – inexistirá e, conseqüentemente, inviabilizará a democracia. 263 Inicialmente esse projeto não se referia à adoção por um casal homoafetivo, contudo, o relator no substitutivo do projeto264, à época o Deputado Roberto Jefferson, vedou expressamente a possibilidade de adoção, tutela ou guarda. Ressalta-se que, apesar de o projeto supracitado não abranger da forma que deveria as uniões homoafetivas, uma vez que, se aprovado, não conferiria a essas uniões o status de entidade familiar, nem mesmo a possibilidade da adoção ao casal homoafetivo, “poucos projetos de lei, na história do Brasil, foram tão comentados e discutidos,”265 tendo sido vários os argumentos para inviabilizar a sua aprovação. No meio legislativo, falou-se que aqueles que votassem a favor do Projeto Marta Suplicy, estariam legislando em causa própria. No meio religioso, invocaram o pecado e o fogo do inferno para os parlamentares e seguidores dessa idéia. Há também os defensores da ofensa à moralidade pública. Outros ainda chegam a afirmar que seria um incentivo ao homossexualismo, pois os filhos de homossexuais seriam homossexuais, esquecendo-se de que se seguíssemos essa lógica, não haveriam homossexuais, pois os filhos de heterossexuais seriam necessariamente 266 heterossexuais. Indispensável reconhecer que, na maioria das vezes, os deputados e senadores, movidos por interesses políticos, não possuem a imparcialidade necessária, nem se interessam em se posicionar em assuntos tão polêmicos, que seriam capazes de taxá-los, de forma negativa, por uma parcela considerável de eleitores. 263 SILVA, Tatiana Nascimento da. Um novo paradigma para atribuição de efeitos jurídicos às uniões entre homossexuais. Revista Justiça do Direito da Universidade de Passo Fundo, vol. 2, ano16, p. 433-439, 2002. Passo Fundo: UPF Editora, 2002. p. 435. 264 DIAS, 2006, p. 166-168. 265 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 153. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view Article/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 266 Ibidem. 89 Nesse sentido também dispõe Maria Berenice Dias ao afirmar que: É demorada a aprovação de leis destinadas a segmentos com pouca expressão numérica e que são alvo de uma forte rejeição da maioria do eleitorado. A possibilidade de comprometer sua mantença no poder intimida 267 o legislador. Por outro lado, o fato de que “toda a manifestação legislativa pode ser um veículo situado no reconhecimento de uma mudança de padrões dentro e fora da família,” 268 deveria fazer com que o legislativo se sentisse responsabilizado em reconhecer a importância de não ignorar um assunto tão relevante na vida de determinados grupos sociais. O fato é que os juízes, a partir de sua imparcialidade e vitaliciedade inerentes, não podem deixar de analisar a situação tendo como base a dignidade humana, “sob pena do Direito falhar como Ciência e, o que é pior, como Justiça.”269 Encontrase nesse contexto a importância da doutrina e da jurisprudência: transformar os conceitos estagnados da sociedade. 270 Portanto, é essencial que os juízes se sensibilizem e atribuam juridicidade às situações que não dispõem do respaldo legal, 271 até porque o que os tribunais aceitam “como merecedor da tutela jurídica acaba recebendo a aceitação social, gerando, por conseqüência, a possibilidade de cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida.” 272 Assim, o não reconhecimento do direito das minorias acaba gerando exclusão e marginalização, contribuindo para que, cada vez mais, a sociedade hostilize as minorias. Que entre o preconceito e a justiça, fique o estado com a justiça e, para tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando velhos preconceitos. Esses novos conceitos a doutrina já os está elaborando, como o conceito de união estável homoafetiva como uma outra espécie de união 273 estável, ao lado da união estável heterossexual. 267 DIAS, 2004, p. 20. FACHIN, L., 1999, p. 99. DIAS, 2002, p. 87. 270 Ibidem, p. 86. 271 DIAS, 2004, p. 20. 272 Ibidem, p. 27. 273 DIAS, 2002, p. 87. 268 269 90 Lamentavelmente, muitos julgados (ANEXO A) manifestam-se em relação às uniões homoafetivas no mesmo sentido que outrora se posicionaram em relação a união estável, conferindo-lhes a condição de sociedade de fato. Todavia, “que ‘sociedade de fato’ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?”274 Assim é que as questões decorrentes das uniões homoafetivas devem ser resolvidas à luz do direito de família e não do direito das obrigações. Portanto, a orientação sexual dos indivíduos não pode interferir no tratamento que esses devem receber, quer seja na sociedade, quer seja na justiça. Nesse sentido, “a orientação sexual não pode ser um rótulo que, aposto dos indivíduos, interfira em suas relações sociais e, por conseqüência, seja capaz de gerar-lhes tratamento diferenciado.” 275 Entretanto, alguns doutrinadores276 não reconhecem as uniões homoafetivas como entidades familiares. Todavia, deixar “à margem da lei, sem tutela jurídica, por motivos totalmente destituídos de caráter objetivo, é negar que a ordem jurídica possa orientar para a vida de todos os grupos sociais.”277 Maria Celina Bodin de Moraes ressalta que a união entre pessoas do mesmo sexo encontra-se implicitamente tutelada pela Constituição e que, em virtude disso, não necessita de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro. 278 Contudo, acredita-se que, da mesma forma que foi indispensável a regulamentação da união estável - apesar dessa se encontrar explicitamente prevista no texto constitucional -, também faz necessária a regulamentação expressa das uniões homoafetivas, uma vez que se teme a permanência, assim 274 LÔBO, 2002, p. 50. SILVA, 2002, p. 435. 276 LIRA, 1997, p. 45-46; GAMA, 2001, p. 42. 277 SILVA, op. cit., p. 439. 278 MORAES, 2000, p. 109. 275 91 como à época do concubinato, de divergências doutrinárias capazes de causar prejuízos à vida dessas pessoas, podendo se dar por emenda constitucional, que equipare-as às uniões estáveis ou que viabilize o casamento, ou, ainda, por lei que disciplinem tais uniões. De acordo com Ana Carla Harmatiuk Matos As uniões homoafetivas são, portanto, fatos sociais que reclamam uma resposta jurídica. Tal demanda se justifica devido a uma significativa mudança de mentalidade acerca do tema. A discriminação ainda sensível é fruto de preconceitos injustificáveis. O Direito já não pode fechar os olhos para uma relação de tamanha visibilidade, ponderando-se, até mesmo, que os aspectos exteriores e interiores das relações homoafetivas não se 279 distanciam dos traços das famílias heterossexuais. Mas, enquanto essa regulamentação não se concretiza por motivos meramente políticos, religiosos e/ou culturais, não pode o judiciário se omitir em reconhecer o direito. Deve-se, portanto, aplicar, a partir de uma interpretação analógica, as leis 8.971/94 e 9.278/96 às relações entre pessoas do mesmo sexo, de modo que sejam reconhecidos tanto seus efeitos patrimoniais, como pessoais. Nesse diapasão, dispõe Luiz Edson Fachin que “pode ser um caminho, enquanto a norma específica não vier, para que os resultados buscados, dentro ou fora do Judiciário, sejam mais justos.” 280 Maria Berenice Dias coloca que: Enquanto não surgirem normas constitucionais e legais que tratem especificamente da união estável homossexual é de aplicar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares, sobretudo no referente à união estável heterossexual, que, por analogia, é perfeitamente extensível as uniões 281 homossexuais. Todavia, salienta-se para o fato de que as uniões homoafetivas, imbuídas de publicidade, continuidade e estabilidade, não são uniões estáveis, uma vez que a Constituição deixou muito claro que a união estável existe apenas entre o homem e a mulher. 279 280 281 MATOS, 2004, p. 65. FACHIN, L., 1999, p. 100. DIAS, 2004, p. 81. 92 Dessa forma, a união homoafetiva não pode ser considerada união estável nos mesmos moldes do que a Constituição Brasileira de 1988 definiu por união estável. Entretanto, salienta-se que, enquanto não existem leis próprias regulamentadoras da união homoafetiva, deve-se tratar por analogia às uniões estáveis, pois muito mais se assemelham a uma união estável do que a uma sociedade de fato. 282 Sob esse diapasão, baseando-se nos princípios constitucionais, a união homoafetiva é inquestionavelmente uma entidade familiar e isso basta para que a um casal homossexual seja viabilizada a possibilidade de adotar. Outrossim, se todos têm direito à liberdade, todos têm direito à orientação sexual, ao mesmo tempo em que devem ter assegurado o direito à intimidade, à privacidade e igualdade de tratamento, sendo inadmissível o preconceito em função da orientação sexual. Ao passo que todos também têm o direito à realização pessoal, que só se efetivará se formarem a família que melhor atenda as suas necessidades e, uma vez que todos têm direito à família, o Estado não pode limitar as espécies de famílias; bastando que estejam baseadas no afeto e tenham a condição de promover a dignidade humana de seus membros para que mereçam proteção estatal. Sobre o assunto dispõe Belmiro Pedro Welter: Caso não for admitida a união estável aos homossexuais, o princípio da justiça não estará sendo aplicado, porquanto inatendido os princípios da igualdade, do direito à opção sexual, da privacidade, da sociedade justa, solidária e fraterna, do reconhecimento do afeto como valor jurídico e do 283 pluralismo jurídico. Faz-se indispensável lançar mão de uma alternativa que seja capaz de viabilizar os direitos inerentes das relações homossexuais, que são tão relevantes para o direito quanto para a sociedade, uma vez que tratam de relacionamentos entre cidadãos brasileiros. Além disso, não é apenas a aplicação da analogia, dos 282 Nesse sentido: BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.º 70013801592, Relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Sétima Câmara Cível, Comarca de Bagé. Apelante: Ministério Público. Apelado: LI. M. B. G. Julgado em: 05 abr. 2006. Disponível em: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php Acesso em: 20 jun. 2006. 283 WELTER, 2003, p. 63. 93 costumes e dos princípios gerais de direito que garantem à união homoafetiva o status de entidade familiar, mas principalmente os direitos e garantias fundamentais que são a base do Estado Democrático de Direito. 284 Negar existência ou efeitos jurídicos às famílias formadas por homossexuais é negar que o direito regule a vida humana em sociedade. 285 Logo, o grande desafio que se apresenta “não é mais o de reconhecer novos modelos de grupos familiares, mas de protegê-los.”286 Até porque, Todos aqueles que são objeto de discriminações e preconceitos, como, de regra, ocorre também com negros, judeus, índios, isto é, com integrantes de todas as minorias sofrem muito mais profundamente se não vêem seus direitos fundamentais reconhecidos e tutelados pelo ordenamento 287 jurídico. De forma próspera manifestou-se o Supremo Tribunal Federal (ANEXO B) em fevereiro de 2006288, quando – em uma medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), visando à inconstitucionalidade do artigo 1º da lei n.º 9.278/96, apesar de ter reconhecido a inviabilidade de tal ação por se alegar norma legal derrogada pelo artigo 1.723 do Código Civil de 2002 –, reconheceu a necessidade de se discutir o tema das uniões homoafetivas para efeito de sua subsunção ao conceito de entidade familiar; destacando vários doutrinadores favoráveis a tal reconhecimento e a relevância desses segmentos na sociedade; ressaltando a supremacia do tema como questão constitucional e a extrema importância jurídico-constitucional; levantando, ainda, a possibilidade da matéria ser veiculada em sede de ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Constitucional). 284 DIAS, 2004, p. 25. SILVA, 2002, p. 439. 286 FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 12, p. 25-38, out./dez. 2002. Rio de Janeiro: Padma, 2002. p. 33. 287 MORAES, 2000, p.97. 288 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0. Distrito Federal. Relator Min. Celso de Mello. Requerente: Associação de Incentivo à educação e saúde de São Paulo e outro (a/s). Requerido: Presidente da República/ Congresso Nacional. Julgado em: 03 fev. 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf Acesso em: 20 mar. 2006. 285 94 A ADPF, segundo Maria Berenice Dias, teria significado ainda maior que a ADI, uma vez que “não se limita ao exame da legislação ordinária frente à Constituição, mas de exame de todo o sistema legal diante dos preceitos fundantes do Estado Democrático de Direito.”289 Tudo indica que não tardará para que a lei regulamente definitivamente as uniões homoafetivas como entidades familiares e, conseqüentemente, sejam protegidos os direitos inerentes desses grupos de pessoas. Mas, enquanto esse reconhecimento não se consagra, faz-se indispensável que o magistrado não se abstraia de dizer o direito, pois não pode o juiz, alegando ausência ou não-vigência de norma legal, deixar de tutelar o direito, negar a jurisdição. 290 Assim, da mesma forma que a ausência de lei não é impedimento para que essas uniões sejam reconhecidas como entidades familiares - tornando-se autoaplicável o art. 226 da CF -, a aparente impossibilidade de filhos também não. Salienta-se que, além da procriação não ser a finalidade das famílias, nada impede que essas famílias utilizem-se do instituto da adoção, como será analisado mais adiante, até porque a adoção não depende do estado civil dos adotantes, nem da opção sexual dos mesmos. Dessa forma, deve-se, por meio de uma hermenêutica construtiva, interpretar os princípios – da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade – e as garantias constitucionais – direito à família, à privacidade, à intimidade –, bem como o artigo 226 da Constituição de forma aberta, sistemática e integrativa. Portanto, à luz do que se trilhou, impõe-se reconhecer as uniões homoafetivas como entidades familiares, que merecem tutela estatal, ainda que não regulamentadas, sob pena de violência constitucional gravíssima. 289 DIAS, Maria Berenice. Entrevista: judiciário sem tabus. Boletim IBDFAM, ano 6, n. 37, mar./abr. 2006. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006. p. 03-04. 290 DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais Limitações ao Direito de Amar. p. 265-282. In: DELGADO, Mário Luiz (Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões Controvertidas no novo Código Ciivil. São Paulo: Método, 2004. p. 267. 95 4.2 A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS E O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Preliminarmente, cabe lembrar que a família sofreu uma grande evolução no curso da história. Na primeira parte desse trabalho, examinou-se essa evolução bem como o novo perfil das entidades familiares, instaurado efetivamente após a Constituição Brasileira de 1988. Nesse sentido, averiguou-se que a família brasileira sofreu forte influência da família greco-romana, de um modelo patriarcal e matrimonializado cuja função primordial estava relacionada a um fim procriativo. Além disso, a família só se constituía pelo casamento, em que ”sacrificava-se a felicidade pessoal em nome da manutenção da “família estatal”, ainda que com prejuízo à formação de crianças e adolescentes e da violação da dignidade dos cônjuges,”291 tudo em prol da tão “sagrada” paz doméstica. Após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988 foram reconhecidas, expressa e implicitamente, outras formas de entidades familiares. Desse modo, não existem apenas as espécies de entidades familiares expressamente previstas na Constituição; sendo perfeitamente possível a existência de outras entidades familiares que, por sua vez, não se encontram expostas no artigo 226 da Constituição de 1988, como por exemplo: a formada por avô e/ou avó com seu(s) neto(s); a constituída por tios e sobrinhos, sem qualquer vínculo jurídico, mas amparadas no afeto; a formada por pessoas do mesmo sexo, desde que seja um relacionamento durável, público, contínuo e com o objetivo de constituir família. Dentre as principais transformações sofridas pela família que tornam possível a adoção por homossexuais, singular ou conjuntamente, vale destacar os novos perfis da família, como: o perfil eudemonista – no qual a família caracteriza-se pela busca 291 FARIAS, 2004, p. 09. 96 de sua própria realização e de seu próprio bem-estar –; a repersolização das relações familiares – que se trata de uma preocupação com o desenvolvimento dos membros da família. Além disso, ressalta-se que a finalidade da família não é mais procriativa; a família tem por escopo viabilizar a promoção da dignidade humana das pessoas que a compõem. João Baptista Villela ressalta que a procriação passou a ser “algo que os parceiros de uma experiência afetiva buscam espontaneamente e não mais algo a que não se podem subtrair, seja por imposição social, seja como salário do sexo.”292 Esse talvez seja um dos motivos a justificar que a filiação sócio-afetiva tornou-se o grande peso para a identificação dos vínculos de parentalidade. Deve-se considerar que: A família é uma construção sócia organizada através de regras culturalmente elaboradas, que conformam modelos de comportamento, e as designações de parentesco não se relacionam necessariamente com o 293 vínculo biológico. Portanto, a partir do final do século XX até o início do século XXI, a família deixou de ter como finalidade exclusiva a procriação, ganhando espaço a felicidade individual de seus membros. Logo, não se considera nem a prole, nem a capacidade procriativa, conseqüentemente, nem a diferença de sexos, pressupostos para que a união entre duas pessoas mereça tutela jurídica. A família constitucionalizada passa a receber um conceito flexível e instrumental, que tem como elo substancial o amor. Sendo assim, toda família que efetivamente tiver condições de promover a dignidade humana de seus membros merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado. 294 292 293 294 VILLELA, 1997, p. 72. MADALENO, Rolf. Direito de família em pauta. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004. p. 18. No mesmo sentido: TEPEDINO, 2001, p. 329. 97 Ressalta-se que a Constituição no seu artigo 227 assegurou à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar e comunitária. Portanto, cessada toda e qualquer possibilidade de convivência familiar com a família biológica, a adoção apresenta-se como a única medida protetiva relativa à criança e ao adolescente que cumpre com todas as finalidades pertinentes a uma família. Daí sua relevância na vida de quem não tem um lar e na sociedade como um todo. Contudo, nem sempre a adoção apresentou-se como uma medida protetiva, sendo possível verificar modificações intensas no instituto que certamente contribuirão para a interpretação da viabilidade da adoção por homossexuais. Constatou-se que a adoção surgiu no direito greco-romano com a finalidade de que os filhos adotados perpetuassem o culto aos deuses da família adotiva. Assim, a adoção surgiu como o meio pelo qual a família, que não tinha filhos homens, assegurava a perpetuação do culto, uma vez que apenas os descendentes masculinos do morto podiam dar-lhe continuidade ao culto. Portanto, o objetivo principal da adoção era o de satisfazer o interesse dos pais adotivos. Mesmo com a evolução das sociedades e com a decadência desses rituais, a adoção permaneceu tendo por finalidade satisfazer as necessidades daqueles que a natureza não dera filhos. Dada essa finalidade, o Código Civil de 1916, primeira legislação brasileira a sistematizar a adoção, regulamentou-a com cunho extremamente direcionado ao interesse da família adotiva. As leis que o sucederam, lei n. 3.133/57 e 4.655/65, não modificaram essa finalidade. Ressalta-se ainda que a lei 3.133/57 alterou dispositivos do Código Civil de 1916, enquanto que a lei 4.655/65 criou a legitimação adotiva. A adoção, no Brasil, passou a ser regida por duas legislações, como já oportunamente analisadas. 98 Todavia, permanecia a discriminação entre a filiação biológica e adotiva, da mesma forma que o objetivo principal continuava o mesmo: dar filhos a quem não os pôde ter. Posteriormente surgiu o Código de Menores de 1979 que, como já se analisou, substituiu com louvores a legitimação adotiva e ampliou o direito dos adotados, mas que tinha por escopo viabilizar à criança abandonada o abrigo, o que impossibilitou uma satisfatória proteção ao menor, posto que o abrigo não tinha, e nem tem, condições de satisfazer todas as necessidades psíquicas da criança e do adolescente. Somente com o advento da Constituição de 1988, que igualou os filhos adotivos e os biológicos, que se pôde vislumbrar uma futura legislação capaz de proteger, de forma efetiva, o interesse da criança e do adolescente. A Constituição marcou o momento em que seus direitos passaram a ser garantidos, inclusive como dever do Estado, e que a adoção deixou de ter caráter predominantemente privado, passando a possuir normas de ordem pública. Ademais, tornou as crianças e os adolescentes titulares de direitos, dentre os quais se pode citar: o direito à convivência familiar e comunitária (art. 227 caput da Constituição de 1988). Direitos esses que as crianças e os adolescentes não encontrarão nas instituições, nem muito menos nas ruas. Em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente substituiu o Código de Menores e consagrou, definitivamente, a doutrina de proteção do melhor interesse da criança e do adolescente. Ratificou também o direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, já assegurado constitucionalmente, priorizando, dessa forma, a inserção da criança e do adolescente em um lar substituto à institucionalização. 99 A partir da Constituição de 1988 e do Estatuto, a adoção ganhou um novo perfil, as inovações trazidas modificaram a sua finalidade – de dar filhos a uma família para a de dar uma família à criança – e consagraram definitivamente o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Além disso, o princípio do melhor interesse da criança aliado ao princípio da dignidade humana e da proibição da discriminação, inclusive por orientação sexual, tornou-se possível vislumbrar, juridicamente, a adoção por homossexuais, quer seja singular ou em conjunto. O Estatuto, diversamente do Código Civil de 1916 e 2002 (artigos 370 e 1622 respectivamente), não estabelece que a adoção por duas pessoas está condicionada ao casamento ou à vivência em união estável. Ao contrário, determinou no artigo 42 que a adoção independe do estado civil. Atenta-se ainda para o fato de que o Estatuto não definiu o que vem a ser família substituta, da mesma forma que a Constituição de 1988 não definiu o quem vem a ser família, conforme anteriormente demonstrado. Ambos limitaram-se a dispor que à criança e ao adolescente deve ser assegurado o direito à convivência familiar e comunitária. Por outro lado, o Estatuto definiu no artigo 25 o conceito de família natural, mas não definiu o que vem a ser família substituta. Ana Paula Ariston Barion Peres295 esclarece que não se deve estender o conceito de família natural ao conceito de família substituta, uma vez que cada uma possui sua especificidade, o que acaba por lhes impor diferenças estruturais. Deve-se, portanto, a partir do princípio basilar da Constituição – dignidade humana da pessoa – considerar que a união homoafetiva trata-se de uma espécie própria de entidade familiar, desde que, da mesma forma que a união estável entre 295 PERES, 2006, p. 83. 100 homem e mulher, possua afetividade, estabilidade, publicidade e tenha condições de promover a dignidade humana de seus membros. Além disso, o artigo 29 do Estatuto dispõe que “não se deferirá colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.” Salienta-se que a orientação homossexual, de um ou de ambos os pretendentes, não se enquadra nessa dita “incompatibilidade com a natureza do instituto.” Para uma melhor compreensão cabe a análise de que só existe a “incompatibilidade com a natureza do instituto” porque existe a “compatibilidade com a natureza do instituto.” Somente sendo possível compreender do que se trata a incompatibilidade, se primeiramente for analisado o que vem a ser a “compatibilidade”. Assim, traduz-se por compatibilidade um ambiente familiar adequado, estruturado, repleto de amor, carinho, atenção e cuidados, no qual os pais tenham idoneidade moral, saibam exercer a paternidade e a maternidade. Dispõe Enézio de Deus Silva Júnior296 que os psicólogos e assistentes sociais por estarem mais preocupados com o bem-estar integral do adotando, demonstramse seguros e bem informados quanto ao essencial em uma educação: a dosagem suficiente de amor e o equilíbrio emocional frente às situações que a maternidade e a paternidade suscitam, citando como exemplo a necessidade de impor limites. Diante dessa colocação cabe um questionamento: seria privilégio apenas das relações heterossexuais viabilizarem essa educação para a criança ou o adolescente? Certamente não. Os atributos da paternidade e da maternidade não são exclusivos das pessoas com orientação heterossexual. 296 SILVA JÚNIOR, Enésio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. Curitiba: Juruá, 2005. p 108. 101 Nesse sentido dispôs Taísa Ribeiro Fernandes: Os que combatem a adoção por casais homossexuais, impressionados com o fato de os adotantes serem pessoas do mesmo sexo, esquecem que a paternidade ou maternidade é, antes de tudo, uma função, um papel que se 297 exerce, não estando vinculada, necessariamente, ao sexo dos pais. Acrescenta ainda a autora supracitada298 que um pai pode exercer o papel de pai e mãe, enquanto que a mãe também pode exercer o papel de mãe e pai, o que é muito comum no Brasil, posto que muitas vezes a mãe cria, sozinha, os filhos, exercendo o papel feminino, de mãe, e o masculino, de pai. Ademais, cumpre observar que nem todas as pessoas homossexuais e nem todos os casais homossexuais, da mesma forma que nem todos os indivíduos heterossexuais e nem todos os casais heterossexuais dispõem do “dom” de ser pai ou de ser mãe. Em virtude disso, existe a avaliação da equipe interdisciplinar – psicólogos, assistentes sociais, magistrado, promotor de justiça – que tem por finalidade avaliar se a pretensa família adotiva possui estrutura para adotar. Nesse diapasão dispõe Luiz Carlos de Barros Figueiredo: Só analisando profundamente cada caso é que se terá condições de se responder se existe ambiente familiar inadequado ou se foram constatados 299 fatos impedientes para a natureza da medida. Deverão analisar também a maturidade dos pretendentes à adoção – e nesse caso, em especial, dos pretendentes homossexuais, independente da adoção estar sendo requerida individualmente ou em conjunto – no que diz respeito à forma como lidam com a sexualidade e a capacidade de lidarem com os preconceitos conseqüentes da vida em sociedade. Se ficar caracterizado um despreparo dos pretendentes à adoção, poderá o juiz determinar que o período de guarda seja acompanhado de assistência psicológica, tanto para o adotante quanto para o adotado, por tempo que os profissionais da área 297 298 299 FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004. p. 111. Ibidem. FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1. ed., 5ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2005. p. 89. 102 julgarem necessário, para posteriormente deferir-se ou não a adoção. Ademais, poderá também determinar acompanhamento psicológico em qualquer caso que permeie dúvidas a respeito do sadio desenvolvimento da criança ou do adolescente. Enézio de Deus Silva Júnior adverte ainda que a experiência dos pais homossexuais “demonstra a dosagem de amor e o diálogo franco sobre a afetividade como os elementos preponderantes, para o enfrentamento de incidentes discriminatórios.”300 Constatou-se, portanto, que não é a orientação sexual que determinará a capacidade do indivíduo para adotar, até porque: ...o sucesso da colocação de um menor, no seio de uma família homoafetiva (e, outrossim, heterossexual), dependerá do rigor na análise do ambiente no qual o menor poderá ser educado e, em especial, da interpretação precisa e personalizada de cada pretensão, pela equipe multidisciplinar, pelo magistrado e pelo promotor de justiça, com isenção de 301 quaisquer preconceitos e primando pelo superior interesse do adotando. Além disso, por se tratar de uma regra ampla que permite a análise pormenorizada de cada caso, todos encarregados da análise deverão verificar concretamente se o pretendente, ou se os pretendentes, preenche todos os requisitos para o deferimento da adoção, dentre eles se oferece ambiente familiar adequado e se estará assegurado o melhor interesse da criança ou do adolescente. Quanto ao melhor interesse da criança e do adolescente, o artigo 43 do Estatuto prevê que a adoção deve ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. O melhor interesse da criança e do adolescente tem que ser a diretriz norteadora para se ajustar o preceito legal às exigências do caso concreto. Pode ocorrer do pretendente à adoção preencher todos os requisitos legais necessários 300 301 SILVA JÚNIOR, 2005, p. 115. Ibidem, p. 109. 103 para o deferimento do pedido de adoção e o magistrado indeferi-lo por não vislumbrar atendimento a esses interesses. 302 Desta feita, cabe esclarecer que se atingirá o melhor interesse da criança ao se perquirir a real motivação da adoção em ambos os pretendentes à adoção. 303 Os motivos passam a ser legítimos quando a intenção do adotante está em perfeita harmonia com a finalidade do próprio instituto. A intenção do adotante deve corresponder em essência às aspirações reais, morais e às necessidades sociais do instituto, que tem como meta maior o alcance do 304 bem-estar do menor. Tentando tornar menos subjetivo o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente no que diz respeito aos casos de adoção por homossexuais, é que se analisarão alguns estudos sobre o efeito da institucionalização e da convivência de crianças e adolescentes em lares homoafetivos. Torna-se relevante demonstrar a unanimidade dos estudos sobre os efeitos da institucionalização na vida dessas pessoas, para que mais adiante se estabeleça o melhor interesse da criança e do adolescente em determinadas situações. Salienta-se que por ser a família a base da sociedade, é “impossível compreendê-la, senão à luz da interdisciplinaridade”.305 Assim, vale observar a disposição do psiquiatra Maurício Lougon: A experiência brasileira neste campo demonstra, com demasiada freqüência, que os desvios de comportamento que originavam as assim chamadas instituições normatizadoras (SAM, FUNABEM, etc.) eram por essas últimas multiplicados e cristalizados, gerando adultos com mutilações 306 psicológicas irreversíveis. Afirma o doutrinador e psiquiatra acima citado307 que não é difícil encontrar um grande elenco de pesquisadores com constatações semelhantes a essa, o que se deve ao fato de ser inquestionável o consenso dos estudiosos a respeito dos 302 LISBOA, 1996, p. 65. MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Motivação interna da decisão de adotar: adoção por casais e por pessoas singulares. Revista Brasileira de Direito de Família, ano IV, n. 14, p. 43-50, ju./set. 2002. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2002. p. 45. 304 LISBOA, op. cit., p. 64. 305 FARIAS, 2002, p. 26. 306 LOUGON, Maurício. A saúde mental e o Direito à Convivência Familiar em face do Melhor Interesse. p. 433-466. In: PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 435. 307 Ibidem, p. 435. 303 104 malefícios causados pela institucionalização. Segundo o psiquiatra, o pesquisador Barton, 1974, demonstrou que a institucionalização causa transtornos psíquicos, identificados por ele como ”neurose institucional”, causados por delongas em instituições. Dentre esses transtornos, algumas pesquisas realizadas demonstram a ligação da institucionalização com a prática de atos infracionais pelos institucionalizados. A pesquisadora Vera Vanin308, por exemplo, constatou que é freqüente que os adolescentes em conflito com a lei sejam oriundos de abrigos e instituições. Dito isso, conclui-se que a institucionalização é responsável pelo grande número de adolescentes que praticam atos infracionais, ainda mais quando se percebe que grande parte dos jovens infratores passou meses e até anos de suas vidas institucionalizados, sendo que vários deles se iniciaram nas drogas quando ainda se encontravam nas instituições, o que comprova o despreparo das instituições. 309 Constatou-se na pesquisa ora citada que “mais de 90% deles é usuário de drogas que vão desde o “cheirinho da loló” até o “craque”, passando pela maconha e cocaína.”310 Outro mal da institucionalização é o fato de ocorrer o afastamento de crianças e adolescentes do convívio social. E, em decorrência disso, as crianças institucionalizadas tornam-se os exemplos mais perfeitos dos resultados devastadores da ausência de um amor direcionado, de uma relação de afetividade estável e permanente. Ademais, na maioria das vezes essas crianças não foram 308 VANIN, Vera. O reflexo da institucionalização frente à prática do ato infracional. p. 697-717. In: PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 697. A autora fez um levantamento do perfil de adolescentes que circulam com freqüência pela Vara da Infância e da Juventude de Caxias do Sul, apurando dados significativos referentes às conseqüências da institucionalização. 309 Ibidem, p. 698. 310 Ibidem, p. 698. 105 desejadas pelos pais e, ao nascer, já se encontram privadas de direitos básicos indispensáveis à promoção de sua dignidade humana. A partir daí deduz-se que A realidade das crianças e dos adolescentes que testemunhamos a nossa volta, nada mais é, portanto, que a própria realidade por nós criada ou por nós mantida com nossos hábitos individuais, com nossos usos coletivos e 311 com nossos costumes tradicionais. Portanto, a importância de se ter uma família vai de encontro à importância de se ter amor, carinho, atenção, respeito e cuidados viabilizados de forma individualizada, devendo-se prevalecer na família pretensa à adoção a prédisposição e habilidade em proporcionar à criança um ambiente familiar saudável, equilibrado e estável. Assim é que: A identidade pessoal da criança e do adolescente tem vínculo direto com sua identidade no grupo familiar e social. Seu nome e seus apelidos o localizam em seu mundo. Sua expressão externa é a sua imagem, que irá compor a sua individualização como pessoa, fator primordial em seu 312 desenvolvimento. Além disso, a convivência familiar e comunitária viabilizará que a criança e o adolescente desenvolvam sua individualidade e cidadania, benefícios que a institucionalização não é capaz de oferecer. 313 Ratifica-se que a colocação da criança em um lar substituto, nesse estudo em especial através da adoção, somente poderá se efetivar quando estiver cessada toda e qualquer chance de permanência da criança e do adolescente na família de origem (art. 92, inciso II do Estatuto). Essa característica também é muito importante quando se analisa a questão da adoção por um casal homoafetivo. Diz-se isso pelo fato de que esse casal, assim como qualquer outro, ao decidir adotar passa pelo crivo da avaliação técnico-pericial e se dessa obteve o aval para a adoção é porque certamente possui uma pré-disposição e boas condições para 311 312 313 SEDA, Edon. Construir o Passado. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 09. PEREIRA, T., 1999, p. 15. PERES, 2006, p. 144. 106 exercer a paternidade ou maternidade. Ao passo que as crianças e os adolescentes institucionalizados encontram-se em um estado de abandono latente, mesmo que estejam em instituições consideradas de boa qualidade, estão privados de uma educação e um amor direcionados, estão privados da convivência familiar e comunitária, estão em estado de abandono emocional, marcado pela impessoalidade institucional. Portanto, para essas crianças ou esses adolescentes, o fato de ter uma ou duas mães, um ou dois pais é muito mais sadio e relevante emocionalmente que permanecer em estado de abandono nas instituições, até que alguém considerado hipocritamente com orientação sexual sadia resolva adotá-lo. Rodrigo da Cunha Pereira314 adverte que todos insistem na busca de uma normalidade sexual, como se fosse possível estigmatizar a orientação sexual como certa e errada. 315 De acordo com Ana Carla Harmatiuk Matos316 o homossexual, assim como o canhoto, faz parte de uma minoria presente em todas as sociedades, em qualquer época, não havendo motivos para considerar a homossexualidade mais contrária à natureza do que o uso da mão esquerda pelo canhoto. O que se verifica na estigmatização é o peso histórico dos prejulgamentos e das distorções na concepção sobre sexualidade (de um modo geral), como lastro subjacente, que justifica tamanho dimensionamento de realidades com as quais a sociedade já convive há muito e, em alguns casos, à margem da legalidade – não raro, de forma velada, por fugirem dos padrões estabelecidos, culturalmente, 317 para a sexualidade, como normais ou institucionais. Parte-se do pressuposto de que se deve priorizar a família à institucionalização, uma vez que a institucionalização, conforme demonstrado, não 314 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/ viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 315 Cumpre observar que em 1985, em uma das revisões periódicas, a OMS publicou circular na qual o homossexualismo deixou de ser doença – constava antes disso na Classificação Internacional de Doenças n. 9 (CID 9), de 1975, no capítulo das Doenças Mentais, como “Desvios e Transtornos Sexuais”, sob o código 302. Conseqüentemente em 1995, na CID 10 desapareceram as referências à homossexualidade como doença. MORAES, 2000, p. 95-96. 316 MATOS, 2004, p. 45. 317 SILVA JÚNIOR, 2005, p. 92-93. 107 cumpre com a proteção e com o desenvolvimento psíquico e sadio do menor; e, considerando que a união homoafetiva é uma entidade familiar – desde que seja um lar respeitável, duradouro e que esteja presente a affectio maritalis –, deve-se priorizá-la à institucionalização. No que diz respeito ao receio da convivência das crianças e dos adolescentes com famílias homoafetivas, cumpre observar que muitas pesquisas apresentadas sobre o assunto, demonstram que as crianças ou os adolescentes criados por casais homoafetivos não possuem nada de diferente das crianças ou dos adolescentes criados por casais heterossexuais. Contudo, ainda não existem conclusões definitivas se a orientação sexual dos pais interfere na educação de crianças e adolescentes, mas fato certo e demonstrado pelas pesquisas existentes é que além de não demonstrar nenhum prejuízo para essas crianças, demonstra que o afeto e a sólida estrutura emocional são elementos indispensáveis e preponderantes ao saudável desenvolvimento da prole. 318 O texto seguinte foi retirado de uma pesquisa coordenada por Ellen C. Perrin na Academia Americana de Pediatria,319 também utilizado pelo desembargador Luiz Felipe Brasil Santos ao relatar a pioneira decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que ratificou o deferimento da adoção de duas menores à companheira da mãe adotiva dessas320, segue o abstract da pesquisa: A growing body of scientific literature demonstrates that children who grow up with 1 or 2 gay and/or lesbian parents fare as well in emotional, cognitive, social, and sexual functioning as do children whose parents are heterosexual. Children’s optimal development seems to be influenced more by the nature of the relationships and interactions within the family unit than 321 by the particular structural form it takes. 318 SILVA JÚNIOR, 2005, p. 93. PERRIN, Ellen C. Technical Report: Coparente or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parentes. PEDIATRICS, vol. 109 n.º 2, February 2002, p. 341-344. Disponível em: http://aappolicy.aappublications.org/cgi/content/full/pediatrics;109/2/341 Acesso em: 04 jun. 2006. 320 Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf Acesso em: 20 mar. 2006. 321 PERRIN, op. cit., p. 341-344. 319 108 Ademais, a Academia Americana de Pediatria322 reconhece que as crianças adotadas apenas por uma pessoa homossexual, mas que na verdade são criadas pelo casal do mesmo sexo, necessitam ter reconhecida legalmente a paternidade ou maternidade de ambos. Assim dispôs o artigo: Children who are born to or adopted by 1 member of a same-sex couple deserve the security of 2 legally recognized parents. … The American Academy of Pediatrics recognizes that a considerable body of professional literature provides evidence that children with parents who are homosexual can have the same advantages and the same expectations for health, adjustment, and development as can children whose parents are heterosexual. When 2 adults participate in parenting a child, they and the 323 child deserve the serenity that comes with legal recognition. No mesmo sentido concluiu a pesquisa de María del Mar González: Por lo que sabemos a partir de distintas investigaciones, los aspectos clave más bien están relacionados con el hecho de que en ese hogar se aporte a chicos y chicas buenas dosis de afecto y comunicación, se sea sensible a sus necesidades presentes y futuras, se viva una vida estable con normas razonables que todos intentan respetar, al tiempo que se mantengan unas relaciones armónicas y relativamente felices. Por tanto, y particularizando en los objetivos de este estudio, la orientación sexual de los progenitores, en sí misma, no parece ser una variable relevante a la hora de determinar el modo en que se construye el desarrollo y ajuste psicológico de hijos e 324 hijas. Outros estudos, como o de Melvis, Levis, Fred e Wolkmar325 e de Susan Golombok e Fiona Tasker326, demonstram que a grande maioria das crianças que se desenvolvem em famílias lésbicas, identifica-se como heterossexual: “the large majority of children who grew up in lesbian families identified as heterosexual.” 327 Se a orientação sexual dos pais influenciasse na orientação sexual dos filhos, certamente todos os homossexuais seriam filhos de homossexuais, mas ao que tudo indica esse raciocínio não possui nenhuma ligação. 322 SMITH, Karen (Coord. ). Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents. PEDIATRICS, vol. 109 No. 2 February 2002, p. 339-340. Disponível em: http://pediatrics.aappublications.org/cgi/content/full/109/2/339 Acesso em: 04 jun. 2006. 323 Ibidem. 324 GONZÁLEZ , María del Mar. Dinámicas familiares, organización de la vida cotidiana y desarrollo infantil y adolescente en familias homoparentales. Disponível em: http://www.felgt.org/WebPortal/_felgt/archivos/137_es_Desarrollo%20infantil%20y% 20adolescente%20en%20familias%20homoparentales.pdf Acesso em: 05 jun. 2006. p. 56. 325 MELVIS, LEVIS, FRED E WOLKMAR. Aspectos clínicos do desenvolvimento da infância e da adolescência. 3 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 99. Apud DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 114. 326 GOLOMBOK, Susan; TASKER, Fiona. Developmental Psychology. 1996 Jan. vol 32 (1) 3-11. Disponível em: http://content.apa.org/journals/dev/32/1/3 Acesso em: 04 jun. 06. 327 Ibidem. 109 Além disso, os filhos também não convivem apenas com os pais, mas com a sociedade. Sendo assim, será que os filhos que são homossexuais e que não possuem pais homossexuais conviveram com uma sociedade predominantemente homossexual? Provavelmente não. Mais uma vez resta a conclusão de que o meio homo ou heterossexual não influência na orientação sexual do indivíduo. Rodrigo da Cunha Pereira328 observa que mesmo se a criança conviver com o ambiente doméstico homossexual, as relações mais amplas em que ela deverá se inserir, certamente estarão marcadas por relações heterossexuais. Maria Berenice Dias também cita em uma de suas obras329 o resultado de pesquisas realizadas na Califórnia, desde 1970, em que se objetivava o estudo de famílias não-convencionais, dentre elas as formadas por casais do mesmo sexo. Concluiu-se que as crianças que são criadas nessas famílias são tão ajustadas quanto as crianças de casais heterossexuais, nada havendo de incomum quanto ao desenvolvimento dos seus papéis sexuais. Demonstrou-se que as pesquisas existentes sobre a influência da convivência de crianças e adolescentes em famílias homoafetivas revelaram que essas crianças não apresentam nada de diferente, muito menos de prejudicial quando comparadas às crianças e aos adolescentes que vivem em famílias heterossexuais. Dessa forma, torna-se inconcebível que seja inviabilizado a adoção aos casais homossexuais com base em justificativas não comprovadas, mas apenas de cunho especulatório e preconceituoso. Até porque, quando se nega a adoção aos casais homoafetivos, leva-se em consideração a questão da homossexualidade e não a capacidade no desempenho da paternidade ou da maternidade. 328 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 153. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/ viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 329 DIAS, 2004, p. 97. 110 Contrabalanceando o resultado das pesquisas que apresentam a institucionalização como responsável por danos incalculáveis na vida dos institucionalizados, juntamente com o resultado das pesquisas que revelam que a convivência de crianças e adolescentes em famílias homoafetivas não apresenta nenhum dano se comparado àqueles que crescem em famílias heterossexuais, fica evidente que a proibição da adoção por casais homoafetivos afronta de forma agressiva o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Estaria em melhores condições a criança ou o adolescente que vive em uma instituição ou em uma família homoafetiva? Parece que se posicionar de forma contrária à adoção por homossexuais é preferir conviver com a alta probabilidade dos institucionalizados de se drogarem, de praticarem atos infracionais e de se tornarem “perigosos” para a sociedade, a imaginar que esse menor pode sofrer influência homossexual, mesmo que as pesquisas desmistifiquem essa suposição. Esclarece Enézio de Deus Silva Júnior que “entre um lar afetivo e materialmente bem estruturado e a realidade excludente, aponta o bom senso para a relevância do primeiro em prol do bem-estar do adotando.”330 Portanto, Dificultar, burocratizar ou impedir a adoção por homossexuais, na verdade, é negar às crianças, abandonadas pelos pais, ou que foram delas retiradas em razão de violência, o direito de serem colocadas em famílias substitutas, 331 onde poderiam ter o carinho e o cuidado de que necessitam. Apesar de todo o exposto, muitos ainda são contra a adoção por casais homoafetivos, podendo-se citar como exemplos: Maria Celina Bodin de Moraes,332 Eduardo de Oliveira Leite 333 e Luiz Carlos de Barros Figueiredo. 334 330 SILVA JÚNIOR, 2005, p. 115. DIAS, 2006, p. 109. MORAES, 2000, p. 110-111. 333 LEITE, Eduardo de Oliveira. Adoção por homossexuais e o interesse das crianças. p. 101-143. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade. Adoção: aspectos jurídicos e metajurídicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 334 FIGUEIRÊDO, 2005, p. 94. 331 332 111 Maria Celina Bodin de Moraes335 entende que a união homoafetiva deve ser considerada como uma espécie particular de entidade familiar. Todavia, nega que se deve estender o direito à adoção aos casais homoafetivos, apesar de reconhecer que na realidade, por se permitir a adoção individual, muitas crianças convivam com o parceiro de quem as adotou juridicamente. Além disso, explica também que a condição de homossexual, nos casos de adoção individual, não poderia servir de empecilho para que se deferisse uma adoção. Por outro lado, segundo a autora supramencionada: Os fundamentos ético-jurídicos que determinam que se atribua relevância jurídica às uniões civis, como espécie particular de entidade familiar, quais sejam, o princípio da dignidade humana da pessoa, a realização de um direito de liberdade individual e a paridade de pessoas homossexuais não se mostram suficientes para que se estenda esta relevância também à 336 filiação. Ao que tudo indica, a autora posiciona-se dessa forma por entender que ao sopesar o interesse individual de ter filhos com o melhor interesse da criança, esse último deve ter relevância superior ao outro. 337 Entretanto, os direitos que devem ser sopesados não são esses apresentados pela autora, mas se a criança ou o adolescente estará melhor em uma família substituta, hetero ou homossexual, ou em uma instituição? E ainda se estará garantido o seu melhor interesse quando for adotado por apenas um homossexual, mas na realidade conviver com o casal? Justamente por ter relevância maior o melhor interesse da criança e do adolescente que qualquer outro interesse é que se deve permitir às crianças e aos adolescentes a possibilidade de serem adotados por uma família, quer seja hetero ou homossexual, capaz de viabilizar-lhes a promoção da dignidade humana. 335 336 337 MORAES, 2000, p. 110. Ibidem, p. 110. Ibidem, p. 111. 112 Eduardo de Oliveira Leite338, por seu turno, acredita que quando se fala na adoção de uma criança o que vem à cabeça é uma relação triangular, envolvendo três personagens: pai, mãe e criança. Afirma também o autor que um casal que não pode ter filhos, adota e deixa de ser casal e adentra em um novo estado jurídico, o familiar. Dispõe ainda que “só homem e mulher podem adotar uma criança” 339 , estando, assim, excluída qualquer possibilidade de adoção por homossexuais. 340 Diante de tudo que se estudou sobre a evolução do instituto da adoção, desde sua origem até início do século XXI, constatou-se que sua finalidade não é a mesma de outrora. A adoção tem por finalidade, antes de dar uma criança a uma família, dar uma família a uma criança. Ademais, se a adoção efetivamente simbolizasse uma triangularização, conforme dispõe Eduardo de Oliveira Leite, a adoção singular não existiria, nem nunca haveria existido. Ressalta-se ainda que em decorrência da evolução das entidades familiares, a prole deixou de ser elemento indispensável à formação das famílias, sendo muito comum famílias sem filhos, o que não as descaracteriza como entidade familiar. Luiz Carlos de Barros Figueiredo sustenta que, embora a adoção singular por pessoa homossexual seja possível uma vez que não há vedação total a quem quer que seja para adotar, sendo a análise da pretensão realizada à luz das regras genéricas do Estatuto,341 a adoção por casais homossexuais é impossível, uma vez que, por mais estável que seja a união homossexual não foi reconhecida pela Constituição de 1988 como entidade familiar.342 Contudo, verificou-se no decorrer do estudo que em virtude do novo perfil da família e em consonância com os princípios constitucionais, a união homoafetiva, 338 LEITE, 2005. p. 109. Ibidem, p. 109. 340 Ibidem, p. 109. 341 FIGUEIRÊDO, 2005, p. 83. 342 Ibidem, p. 94. 339 113 apesar de não expressamente prevista no texto constitucional, deve ser considerada uma entidade familiar e como tal deve ter garantido o direito à adoção. O próprio autor supracitado343 dispõe que existem quatro circunstâncias legais mais que suficientes para analisar se o caso concreto recomenda ou não o deferimento da adoção e, apesar de se posicionar de forma contrária à possibilidade jurídica da adoção por casais homoafetivos, não colocou a diversidade de sexo como elemento indispensável ao casal que pretende adotar. Dispôs assim, como circunstâncias indispensáveis: ambiente familiar adequado; não revelar incompatibilidade com a natureza da medida; pleito fundado em motivos legítimos; pleito que apresente real vantagem para o adotando. Tem-se, portanto, que se são esses os elementos indispensáveis a serem preenchidos pelos pretendentes à adoção, também os casais homoafetivos podem preenchê-los. O Tribunal do Rio Grande do Sul, de forma pioneira, confirmou a decisão da Comarca de Bagé contestada pelo Ministério344 (ANEXO C), na qual se deferiu a adoção à companheira da mãe adotiva de duas menores. O relatório elaborado pelo desembargador Felipe Brasil Santos, contém os argumentos utilizados pelo Ministério Público. Esses argumentos são, na maioria das vezes, os mesmos que todos se utilizam para contrariar a adoção por casais homossexuais: consideração de que a adoção deve imitar a filiação biológica; vedação legal à adoção por duas pessoas, salvo se forem casadas ou viverem em união estável (art. 1622 do Código Civil de 2002); não reconhecimento da união homoafetiva como uma espécie de entidade familiar; receio de que essa convivência com um casal homoafetivo cause 343 FIGUEIRÊDO, 2005, p. 100. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0. Distrito Federal. Relator Min. Celso de Mello. Requerente: Associação de Incentivo à educação e saúde de São Paulo e outro (a/s). Requerido: Presidente da República/ Congresso Nacional. Julgado em: 03 fev. 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf Acesso em: 20 mar. 2006. 344 114 efeitos danosos na criança ou no adolescente, como ter tendências homossexuais, além do receio de que essas crianças e adolescentes sejam alvo de chacotas e piadas passando por constrangimentos gerados pelo preconceito da sociedade. Sobre esse último argumento vale citar uma colocação de Roger Raupp Rios: Idéias desse tipo já foram utilizadas, por exemplo, para impedir casamentos entre raças diferentes, para justificar segregação em escolas de brancos e de negros, para impedir a criação e a adoção de crianças de raça, cor ou 345 etnia diversa da dos adotantes. Rodrigo da Cunha Pereira observa também que a história já demonstrou que “critérios de inclusão e exclusão trazem consigo um traço ideológico que não pode mais ser desconsiderado pelo direito sob pena de se continuar repetindo injustiças e reproduzindo ainda muito sofrimento.”346 Logo, essas práticas são inaceitáveis em um Estado Democrático de Direito uma vez que elas colaboram para a discriminação e exclusão social. Sobre o preconceito que o adotado estará sujeito, dispõe Ana Paula Ariston Barion Peres que: ...a assistência profissional por psicólogos ou assistentes sociais e o próprio amor da família farão com que supere essa dificuldade, que é apenas mais uma entre tantas outras que ocorrerão no decurso da vida e que, se trabalhadas corretamente, contribuirão para que se torne um adulto mais 347 forte e preparado. No que se refere à idéia da adoção ter por finalidade imitar a natureza, pode-se afirmar que essa idéia advém da época em que se adotava para satisfazer um interesse da família adotiva. O instituto da adoção estava diretamente relacionado aos interesses, necessidades ou carências dos adotantes; o adotado servia apenas para resolver o problema da infertilidade. Por esse motivo, “durante séculos da vida da humanidade, a adoção serviu de instrumento para dar filhos a quem não os tinha, 345 RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 143. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/ viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 347 PERES, 2006, p. 144. 346 115 daí afirmar-se: adoptio natura imitatur, isto é, a adoção imita a natureza.”348Dessa forma, os casais que não tinham filhos recorriam à adoção como forma de imitar a natureza, imitar a capacidade procriativa, até porque um dos objetivos do casamento era a procriação. Ademais, a adoção sempre foi uma ficção jurídica e como tal não tem ligação direta com a realidade, mas, e tão somente, a partir da constitucionalização e do Estatuto, com o afeto que une pais e filhos adotivos e que gera um vínculo parental que não corresponde à realidade biológica. 349 Maria Berenice Dias350 salienta que existe também o distanciamento da verdade nos casos em que o registro é levado a efeito somente pela mãe, o que não quer dizer que o registrando não tem pai. Sendo assim, tanto na adoção como no caso do registro ser realizado apenas pela mãe, o fato não condiz com a realidade. Desse modo, a partir da Constitucionalização do instituto e do advento do Estatuto, não mais se admite a idéia de que a adoção deve imitar a natureza, posto que a finalidade da adoção não é mais a de dar uma criança a uma família, mas sim de dar uma família a uma criança, analisando-se sempre o melhor interesse da criança e do adolescente. Logo, melhor a criança estar inserida em uma família hetero ou homoafetiva, que tenha condições de promover a sua dignidade humana, do que permanecer institucionalizada e, conseqüentemente, propensa a todos os malefícios causados pela institucionalização. Outra questão também polêmica diz respeito à forma que ficará o registro de nascimento da criança e/ou do adolescente. Ana Paula Ariston Barion Peres351 dispõe que a palavra “pais” contida no artigo 47, §1º do Estatuto e 54, 7º da lei 6.015 de 1973, se interpretada literalmente, conduz o intérprete à diversidade de sexo dos 348 FERNANDES, 2004, p. 101. DIAS, 2006, p. 110. 350 Ibidem, p. 110. 351 PERES, 2006, p. 80-81. 349 116 pais. Todavia, segundo a autora supramencionada, a interpretação dos dispositivos ora mencionados deve ocorrer de modo a compatibilizá-los com a Constituição e seus princípios. Portanto, não se trata de banir a palavra “pais”, mas de interpretá-la de forma condizente com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e com todos os princípios constitucionais. Nesse sentido, ressalta-se a relevância de se interpretar a norma e os princípios constitucionais de forma a que se lhe emprestem a maior eficácia possível. 352 A ausência de lei não é impedimento, pois o art. 226 da CF é auto-aplicável. A impossibilidade de filhos também não, pois a procriação não é a finalidade indeclinável, famílias sem filhos também são protegidas e a adoção não 353 depende do estado civil dos adotantes. O fato de a união homoafetiva não ser considerada entidade familiar foi desmistificado quando se verificou que a dignidade humana da pessoa, consagrada pela Constituição, necessita, para se realizar, que os direitos fundamentais da pessoa estejam assegurados, tais como: o direito à privacidade, intimidade, orientação sexual, igualdade, liberdade, incluindo-se a liberdade para formar a entidade familiar que melhor realize a felicidade de seus membros. Nesse sentido, “de nada adianta reconhecer ao cidadão a liberdade de se autodeterminar sexualmente se, logo em seguida, promove-se contra ele discriminação fundada no direito que lhe foi constitucionalmente garantido.”354 Quanto ao artigo 1622 do C/C de 2002, que praticamente repete um dispositivo do C/C de 1916, verifica-se que esse dispositivo contraria de forma grosseira os princípios constitucionais, principalmente quando se contrabalanceia os malefícios comprovados da institucionalização com os argumentos infundados e apenas 352 353 354 FARIAS, 2004, p. 12. BRAUNER; SCHIOCCHET, 2004, p. 320. SILVA, 2002, p. 435. 117 estimados dos malefícios da convivência da criança e do adolescente com pais homossexuais. Parece que a preocupação do legislador ao inserir este dispositivo no Código Civil de 1916 era zelar pelo casamento e pelos costumes morais da época; e, no que diz respeito à permanência desse dispositivo no Código Civil de 2002, a única explicação é a insistente preocupação do legislador com “a moral e os bons costumes”, proibindo, assim, em um primeiro momento, a adoção por casais homossexuais. Clóvis Beviláqua já afirmava, na época em que interpretou a redação original do Código Civil de 1916, que: O que não permite o Código é que mais de uma pessoa, não sendo cônjuges, possam adotar o mesmo filho (...). Assim como ninguém pode ter mais de um pai pela natureza, também não o poderá ter pela lei, que pretende com o instituto da adoção, imitar a natureza e suprir-lhe uma 355 deficiência. Contudo, não se pode, no início do século XXI, dar a mesma interpretação ao instituto que fora dada no início do século XX, até porque a finalidade do instituto não é a mesma de outrora. Não tem mais o instituto a intenção de imitar a natureza concedendo filhos a quem não os teve por meio natural, mas e tão somente dar uma família a quem não a tem. Acredita-se que tal dispositivo encontra-se eivado de inconstitucionalidade, uma vez que, considerando a união homoafetiva protegida constitucionalmente, desde que seja capaz de promover a dignidade de seus membros, nada obsta que a essa família seja viabilizada a adoção. Mesmo não considerando o artigo 1622 do CC/2002 inconstitucional, deve-se atentar para o fato de que mais grave que violar uma regra é transgredir um 355 BEVILÁQUA, 1954, p. 272. 118 princípio. 356 E nesse caso em especial haveria transgressão gravíssima de vários princípios, como o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e outros princípios constitucionais, como o princípio da igualdade e da liberdade, por exemplo. Esse dispositivo, na prática, gera o pleitear de uma adoção singular que na realidade inexistirá. 357 O fato de existirem crianças e adolescentes vivendo em lares cujo pai ou mãe adotivo é homossexual conduz a realidade da convivência dessa criança e/ou adolescente com duas mães ou dois pais adotivos, mesmo que apenas um deles o tenha adotado efetivamente, ou melhor, juridicamente. Isso se deve ao fato de que a legislação brasileira não proíbe a adoção singular por uma pessoa homossexual, posto que a orientação sexual do adotante não pode ser pressuposto, nem requisito para a adoção. Por isso, a adoção individual por homossexual é “menos controvertida”358 que a adoção por casais homossexuais. Ademais, a adoção não pode estar condicionada à preferência sexual do adotante, sob pena de infringir-se o respeito à dignidade humana,359 o princípio da igualdade e da vedação de tratamento discriminatório por orientação sexual. Essa realidade demonstra que é inútil, e prejudicial à criança e ao adolescente, a negativa da adoção ao casal homossexual, posto que a convivência, que é o objeto principal do receio da maioria que se diz contrária à adoção por casais homoafetivos, existirá independente da legalização. Além do mais, cumpre observar que o receio da criação de crianças ou adolescentes por casais homoafetivos, além de ser um argumento destituído de caráter jurídico frente aos princípios constitucionais, nunca é exposto com 356 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 230. MONACO, 2002, p. 46. 358 PERES, 2006, p. 84. 359 DIAS, 2004, p. 127. 357 119 fundamentos passíveis de comprovação de que a convivência da criança e/ou do adolescente em uma família homoafetiva é prejudicial ao seu sadio desenvolvimento. Destarte, sempre advém com concepções morais e religiosas, que vão de encontro a um preconceito que deve ser banido de um Estado Democrático de Direito que se tem por laico. Inviabilizar a adoção ao casal homossexual apenas mascara a realidade. Um adotará e a criança e/ou o adolescente conviverá com o casal. Trata-se, portanto, de uma grave violação ao melhor interesse da criança e do adolescente uma vez que serão criados e educados em lares homossexuais, em famílias homossexuais, mas apenas terão direitos em relação ao adotante legal. Sendo assim, não terão assegurados – em caso de separação ou morte do indivíduo que não pôde adotá-lo juridicamente – alguns direitos como: alimentação; visitação; benefícios previdenciários e sucessão. Faz-se imperiosa a necessidade de uma maior atenção a essa realidade, pois “o intuito de resguardar e preservar a criança resta por lhe subtrair a possibilidade de usufruir de direitos que de fato possui, limitação que afronta a própria finalidade protetiva decantada na Carta Constitucional e perseguida pelo ECA.”360 Gustavo Mônaco361 afirma que nesses casos – de morte ou separação do casal homoafetivo – a criança estará sujeita a uma espécie de “loteria”, na qual quem mais sofrerá prejuízos será ela própria, posto que, como já aludido, não terá direitos em relação àquele que não a pôde adotar. Não se trata apenas de efeitos patrimoniais, mas de efeitos pessoais como, por exemplo, o direito aos alimentos – que, por ter 360 361 DIAS, 2004, p. 116. MONACO, 2002, p. 46. 120 “estreita relação com a vida em si e suas condições materiais”362não se reveste apenas de conteúdo patrimonial – e à visitação. Sobreleva considerar que o direito aos alimentos Relaciona-se não apenas ao direito à vida e à integridade física da pessoa, mas, principalmente, à realização da Dignidade Humana, proporcionando ao necessitado condições materiais de manter a sua subsistência. Seu conteúdo está expressamente atrelado à tutela da pessoa e à satisfação de 363 suas necessidades fundamentais. Sob esse aspecto, a inexistência do dever alimentar daquele que adotou de fato, mas não de direito, acaba inviabilizando que a dignidade humana da criança ou do adolescente esteja garantida, visto que o direito aos alimentos relaciona-se diretamente com a realização da dignidade humana do indivíduo. No que diz respeito à visitação, essa também é indispensável ao sadio desenvolvimento da criança e/ou do adolescente, além de ser por meio dela que se atenua a dor pela perda da convivência diária do adotado com ambos os “pais”. Logo, a visitação não é um direito dos pais de terem seus filhos em companhia, mas sim dos filhos de terem a companhia dos “pais”. Dito isso, chega-se ao entendimento que, sendo a criança ou o adolescente adotado judicialmente apenas por um indivíduo homossexual, mas convivendo com o casal homoafetivo, terá violado direitos pessoais indispensáveis ao seu desenvolvimento e, conseqüentemente, à realização da sua dignidade humana. Apesar de Luiz Carlos de Barros Figueiredo ser contrário à adoção conjunta por homossexuais, contraditoriamente afirma que “o olhar não deve ser dirigido para a orientação sexual do pretendente e sim, se, no caso concreto, o deferimento corresponde ou não o superior interesse da criança.” 364 362 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Teoria geral dos alimentos. p. 01-20. In: CAHALI, Francisco José (Coord.); PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Alimentos no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 03. 363 Ibidem, p. 01-02. 364 FIGUEIRÊDO, 2005, p. 90. 121 Assim, diante de todo o exposto pode-se aduzir que a adoção por casais homoafetivos pode, da mesma forma que a adoção por casais heterossexuais, corresponder ou não ao melhor interesse da criança e do adolescente, dependendo da avaliação do caso concreto. Dessa forma, apenas a leitura atenta e pormenorizada de cada pretensão, seja de adoção singular ou conjunta por homo ou heterossexuais, pela equipe técnica que se assegurará a boa aplicação da lei ao caso concreto. Ademais, ...está na hora de abandonar a hipocrisia e reconhecer que os filhos biológicos, adotivos ou gerados pelos modernos métodos de reprodução assistida devem ser registrados em nome de quem exerce as funções 365 parentais, seja um ou dois pais, uma ou duas mães! Em decorrência do exposto, torna-se evidente que o mais prejudicado nessa relação será o adotado. Portanto, “o preconceito, a prevenção quanto á orientação sexual do adotante, além de ser injusta, retrógrada e inconstitucional, não pode prevalecer diante das necessidades, expectativas e proteção do adotado.”366 A adoção homoafetiva é muito mais que um direito da família homoafetiva, é um direito dos que estão em abandono de serem inseridos em um lar. É preciso ter em mente a prioridade de se buscar uma família substituta para a criança ou o adolescente. Deve-se contrabalancear se o melhor interesse da criança encontra-se em fazer parte de uma família homoafetiva, ou permanecer em instituições que deveriam ser capazes de promover a dignidade humana dos institucionalizados, mas efetivamente não cumprem sua função. Verifica-se que “as demandas sociais devem receber uma solução a qual leve em consideração todo o ordenamento jurídico, e não somente o artigo de lei 365 366 DIAS, 2004, p. 15. FERNANDES, 2004, p. 105. 122 específico para o tema.”367 Nesse sentido, não se deve considerar o disposto no artigo 1622 do C/C de 2002 e desconsiderar essa realidade, pois se estaria desconsiderando o próprio princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, uma vez que essa negação de direitos prejudica mais as crianças e os adolescentes do que propriamente os casais homoafetivos. As crianças e os adolescentes privados do direito de terem dois pais ou duas mães são privados do direito de ter reconhecida a família que os ama e protege, direito fundamental deles. Ao passo que os pais adotivos homossexuais têm violado o direito à paternidade e maternidade, direito personalíssimo que é transgredido em virtude da opção sexual. Toda essa violação de direitos afronta diretamente a Constituição de 1988 que não compactua, mas, ao contrário, repugna qualquer forma de aniquilação de direitos. Dessa feita, conforme dispõe Gustavo Tepedino: “os tribunais devem rejeitar prontamente quaisquer argumentos contrários ou a favor da adoção, que tenham como base a opção sexual do adotante.” 368 O interesse fundamental a ser protegido deve ser o do melhor interesse da criança e do adolescente, sendo inadmissível que a inserção da criança e do adolescente no meio social e familiar seja afastada com base no preconceito sexual. 369 Deve-se levar em consideração que o indeferimento da adoção com base em preconceito pode destruir uma relação preexistente de afetividade e afinidade, podendo ainda ser capaz de conduzir o adotando a um abrigo, situação que deve sempre que possível ser evitada dado o risco potencial da institucionalização na vida das crianças e dos adolescentes. 367 MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 103. 368 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Minorias no Direito Civil Brasileiro. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Família:primeira série. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004. p. 108. 369 Ibidem, p. 108. 123 Logo, a interpretação da adoção no Estatuto deve considerar os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (art. 6º do Estatuto), que necessitam, inquestionavelmente, de crescer no seio de uma família, seja ela heterossexual ou homoafetiva. Maria Berenice Dias ressalta que “a valorização da dignidade humana, elemento fundamental do estado democrático de direito, não pode chancelar qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais.”370 Além disso, permitir tal intento é violar a democracia e o desenvolvimento sadio dos futuros cidadãos brasileiros. Nesse sentido, ...se a dignidade do ser humano é o valor convergente do atual sistema, descabem concepções de Direito que abarquem um tratamento jurídico inferior a determinadas pessoas em função de seu especial modo de ser – 371 já não há espaço para as discriminações por orientação sexual. Em conformidade com a opinião de Rodrigo da Cunha Pereira: “um dos principais critérios de expropriação da cidadania sempre foi o de desconsiderar o diferente”.372 Nesse sentido, deve o legislador adaptar a lei aos costumes e comportamentos da sociedade, respeitando as escolhas pessoais, 373 até porque, deve-se considerar que as transformações na sociedade possuem uma maior visibilidade e uma presença mais marcante das pessoas com orientação homossexual, ocasionando uma evolução na aceitação dessas pessoas pela sociedade. Atribui-se, à sociedade, como um todo, e principalmente àqueles que detêm o poder de julgar e legislar, a obrigação de transformar os pré-conceitos em conceitos 370 DIAS, 2004, p. 97. MATOS, 2004, p. 57. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/ viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 373 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Reinventando o Direito de Família: novos espaços de conjugalidade e parentalidade. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, vol. 18, p. 79-107, abr./jun. 2004. Rio de Janeiro: Padma, 2004. p. 106. 371 372 124 evoluídos, para se chegar ao ponto de banir da sociedade brasileira qualquer raciocínio que impeça a um indivíduo promover sua dignidade humana. Porém, é ao direito que compete dizer a justiça, não se intimidando diante dos posicionamentos morais ou religiosos de determinados grupos, “descabe confundir questões jurídicas com questões morais ou religiosas.”374 Quando o direito da criança de ter uma família é violado, resta, a partir de então, que a criança compreenda quão significativa é a hipocrisia da sociedade e que ela faz parte de uma minoria e que, além disso, “todas as minorias são alvos de exclusão social e jurídica.” 375 Além disso, “é a partir das diferenças e da convivência com a alteridade que se faz a verdadeira democracia e torna-se possível estar mais próximo do ideal de justiça.376 374 DIAS, 2004, p. 120. Ibidem, p. 15. 376 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 151. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/ viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006. 375 CONCLUSÃO Procurou-se, através desta pesquisa, demonstrar a possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais. Seria impossível a realização desse estudo se primeiro não fossem observadas as transformações ocorridas na família e na adoção. Verificou-se que, ao longo da história, o perfil da família sofreu incalculáveis transformações que desencadearam um processo de reestruturação da família. A partir da Constituição de 1988, a família abandonou o modelo patriarcal, hierarquizado e matrimonializado, que tinha como finalidade precípua a procriação e apresentou-se plural, eudemonista e repersonalizada. A base da família do final do século XX e início do século XXI não corresponde a mesma que alicerçou sua origem. Nessa família pós Constituição de 1988 o afeto passou a ser o elemento principal, a essência e a razão da formação das entidades familiares, sendo relevante na exata medida em que contribui para a felicidade de seus membros e, conseqüentemente, para a realização da dignidade humana destes. Portanto, a família caracteriza-se pela busca de sua própria realização, do bem-estar de seus membros. Sobreleva ratificar que a dignidade humana é uma cláusula geral que necessita, para se efetivar, que direitos fundamentais estejam assegurados, como, 126 nesse caso, o direito de ter uma família capaz de atender às necessidades dos seus membros. Neste contexto, não há como deixar de incluir a união homoafetiva, calcada no sentimento, como uma espécie de entidade familiar, uma vez que a felicidade individual dos membros dessa união representa uma importante e indispensável ferramenta para que seja promovida a dignidade humana deles. Logo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar fundado em princípios constitucionais – liberdade, igualdade, proibição de discriminação em virtude de orientação sexual – impossibilita que a essas uniões não seja conferido o status de entidade familiar. Ademais, se não for conferido a essas uniões o status de entidade familiar, encontrar-se-á indisponível a possibilidade de promoção da dignidade humana desses grupos, uma vez que, como já se demonstrou, a realização dessa está diretamente relacionada a efetiva garantia de direitos fundamentais. Diante disso, parece claro que o não reconhecimento da união homoafetiva contribui, de forma essencial, para que a essas pessoas seja inviabilizada a promoção da dignidade humana. No que diz respeito à adoção, constatou-se que o dever de perpetuar o culto doméstico foi o princípio do direito da adoção entre os antigos. As famílias que não tinham filhos homens adotavam para assegurar a perpetuação do culto doméstico. Sendo assim, a adoção realizava-se embasada no interesse dos pais adotivos. Mesmo com o declínio da religião doméstica, a adoção permaneceu tendo por objetivo satisfazer os interesses dos pais adotivos. O Código Civil de 1916 foi a primeira legislação brasileira a sistematizar efetivamente a adoção, apresentando-a como uma forma de suprir a falta de filhos, como um meio supletivo de obter filhos e 127 não uma forma natural de constituir família, ao mesmo tempo em que sua finalidade era imitar a natureza. Várias legislações surgiram depois do Código Civil – a lei 3.133 de 1957, a legitimação adotiva, o Código de Menores de 1979 – e de forma tímida, aos poucos, começavam a visar ao interesse do adotando, mas, em sua essência, continuavam visando à satisfação do interesse dos pais adotivos. Somente a partir da Constituição de 1988, art. 5º, §2º, de Declarações e Convenções Internacionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, que o melhor interesse da criança e do adolescente se sobrepôs a qualquer outro direito. Sob esse novo panorama, a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direitos e não mais objetos dos direitos dos adultos, assim, lhes foram assegurados, dentre outros direitos, o direito à convivência familiar e comunitária. Dessa forma, o Estatuto assegurou que toda criança tem o direito de ser criada e educada no seio da família natural e, quando esgotados os recursos de manutenção com a família de origem, tem o direito à família substituta. Nesses moldes a adoção, além de ser uma espécie de família substituta, apresenta-se como uma forma alternativa de viabilizar à criança e ao adolescente, desprovidos de um lar, a convivência familiar e comunitária, capaz de promover-lhes a dignidade humana. Isto posto, chama-se a atenção para o fato de que o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem direta relação com a viabilidade de promoção da dignidade humana desses. Assim, toda família que tenha a capacidade de promover a dignidade humana de seus membros, tem também o direito de adotar. 128 Verificando que a família homoafetiva possui condições inquestionáveis para viabilizar a promoção da dignidade humana de seus membros, nada obsta que a essa família seja garantido o direito de adotar. Ressalta-se, entretanto, que essa possibilidade deve respeitar os mesmos pressupostos e passar pelas mesmas avaliações que está sujeita a família heterossexual. Dessa forma, o princípio do melhor interesse não pode ser analisado como um entrave à possibilidade da adoção por casais homossexuais, ao contrário, deve ser o norteador da viabilidade das adoções, quer seja por singulares, por casais heterossexuais ou homossexuais. Jamais deve haver vedação à adoção por casais homossexuais pela orientação sexual dos pretendentes, até porque todas as adoções devem se basear na análise interdisciplinar dos profissionais. Assim, o princípio do melhor interesse aliado ao princípio da dignidade humana e da proibição da discriminação, inclusive por orientação sexual, possibilitou que se vislumbrasse, juridicamente, a adoção por homossexuais, quer seja singular ou em conjunto. Portanto, a viabilidade dessa espécie de adoção possui alicerces baseados na dignidade da pessoa humana, no direito de ter garantido, na prática, os princípios norteadores da constituição. Além disso, há que se considerar que a inviabilidade da adoção por casais homossexuais não torna extinta a convivência das crianças e dos adolescentes em famílias homoafetivas. Isto se deve ao fato de que não existe nenhum dispositivo legal que proíba adoção singular por homossexual. Assim sendo, essa proibição apenas acarretará prejuízos às crianças e aos adolescentes que forem privados de uma família ou forem adotados por apenas uma pessoa, mas que estiverem, na realidade, convivendo com uma família homoafetiva. No caso do casal se separar, a criança e o adolescente não terão direitos à visitação 129 e aos alimentos, direitos que contribuem para a promoção da dignidade humana deles. Além disso, se vier a falecer o que adotou apenas de fato, o adotado não terá assegurado direitos previdenciários, sendo estes apenas exemplos das inúmeras conseqüências negativas que podem advir da ausência de tutela específica. Dito isso, compete concluir que o debate em torno da possibilidade jurídica da adoção paira no fato de se romper com antigos dogmas referentes à família e à adoção. É chegada a hora de se repelir qualquer espécie de preconceito, de se admitir que se encontram em melhores condições as crianças e os adolescentes que vivem em famílias homoafetivas que aqueles que estão institucionalizados. Fadados a uma vida que lhes priva o direito básico e fundamental da convivência familiar. Acredita-se que a inviabilidade da adoção por casais homossexuais além de representar mais uma forma de exclusão para os homossexuais, representa uma exclusão ainda mais prejudicial para as crianças e os adolescentes, pois impedem que eles usufruam de direitos fundamentais. A vedação à adoção por casais homossexuais viola direitos da criança e do adolescente, princípios constitucionais e, além disso, dificulta, desde cedo, a viabilidade da promoção da dignidade humana. Após todas as considerações realizadas, percebe-se a impropriedade de se continuar pensando com preconceitos, com idéias conservadoras. Ao jurista cabe pensar conceitos jurídicos, fundamentos jurídicos capazes de direcionar a sociedade à igualdade, ao respeito às diferenças, à justiça. O princípio da dignidade humana deve prevalecer sobre os valores morais e religiosos, para não se correr o risco da aplicação da justiça ficar condicionada a esses conceitos. REFERÊNCIAS ANGELUCI, Cleber Affonso. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica jurídica, ano 53, n. 331, p. 75-85, maio 2005. Porto Alegre: Notadez, 2005. BARBOZA, Heloísa Helena. O consentimento na adoção de criança e de adolescente. Revista Forense, ano 94, vol. 341, p. 71-75, jan./mar. 1998. Rio de Janeiro: Forense, 1998. ______. O direito de família brasileiro no final do século XX. p. 87-112. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. BARROS, Sérgio Resende de. 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NORMA LEGAL DERROGADA PELA SUPERVENIÊNCIA DO ART. 1.723 DO NOVO CÓDIGO CIVIL (2002), QUE NÃO FOI OBJETO DE IMPUGNAÇÃO NESTA SEDE DE CONTROLE ABSTRATO. INVIABILIDADE, POR TAL RAZÃO, DA AÇÃO DIRETA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA, DE OUTRO LADO, DE SE PROCEDER À FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE NORMAS CONSTITUCIONAIS ORIGINÁRIAS (CF, ART. 226, § 3º, NO CASO). DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA (STF). NECESSIDADE, CONTUDO, DE SE DISCUTIR O TEMA DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS, INCLUSIVE PARA EFEITO DE SUA SUBSUNÇÃO AO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR: MATÉRIA A SER VEICULADA EM SEDE DE ADPF? DECISÃO: A Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo e a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo - que sustentam, de um lado, o caráter fundamental do direito personalíssimo à orientação sexual e que defendem, de outro, a qualificação jurídica, como entidade familiar, das uniões homoafetivas - buscam a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.278/96, que, ao regular o § 3º do art. 226 da Constituição, reconheceu, unicamente, como entidade familiar, “a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (grifei). As entidades autoras da presente ação direta apóiam a sua pretensão de inconstitucionalidade na alegação de que a norma ora questionada (Lei nº 9.278/96, art. 1º), em cláusula impregnada de conteúdo discriminatório, excluiu, injustamente, 146 do âmbito de especial proteção que a Lei Fundamental dispensa às comunidades familiares, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas por relações homoafetivas. Impõe-se examinar, preliminarmente, se se revela cabível, ou não, no caso, a instauração do processo objetivo de fiscalização normativa abstrata. É que ocorre, na espécie, circunstância juridicamente relevante que não pode deixar de ser considerada, desde logo, pelo Relator da causa. Refiro-me ao fato de que a norma legal em questão, tal como positivada, resultou derrogada em face da superveniência do novo Código Civil, cujo art. 1.723, ao disciplinar o tema da união estável, reproduziu, em seus aspectos essenciais, o mesmo conteúdo normativo inscrito no ora impugnado art. 1º da Lei nº 9.278/96. Uma simples análise comparativa dos dispositivos ora mencionados, considerada a identidade de seu conteúdo material, evidencia que o art. 1.723 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) efetivamente derrogou o art. 1º da Lei nº 9.278/96: Código Civil (2002) “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” Lei nº 9.278/96 “Art. 1º. É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.” Extremamente significativa, a tal respeito, a observação de CARLOS ROBERTO GONÇALVES (“Direito Civil Brasileiro – Direito de Família”, vol. VI/536, item n. 3, 2005, Saraiva): “Restaram revogadas as mencionadas Leis n. 8.971/94 n. 9.278/96 em face da inclusão da matéria no âmbito do Código Civil de 2002, que fez significativa mudança, inserindo o título referente à união estável no Livro de Família e incorporando, em cinco artigos (1.723 a 1.727), os princípios básicos das aludidas leis, bem como introduzindo disposições esparsas em outros capítulos quanto a certos efeitos, como nos casos de obrigação alimentar (art. 1.694).” (grifei) 147 A ocorrência da derrogação do art. 1º da Lei nº 9.278/96 – também reconhecida por diversos autores (HELDER MARTINEZ DAL COL, “A União Estável perante o Novo Código Civil”, “in” RT 818/11-35, 33, item n. 8; RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, “Comentários ao Novo Código Civil”, vol. XX/3-5, 2004, Forense) – torna inviável, na espécie, porque destituído de objeto, o próprio controle abstrato concernente ao preceito normativo em questão. É que a regra legal ora impugnada na presente ação direta já não mais vigorava quando da instauração deste processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. O reconhecimento da inadmissibilidade do processo de fiscalização normativa abstrata, nos casos em que o ajuizamento da ação direta tenha sido precedido – como sucede na espécie – da própria revogação do ato estatal que se pretende impugnar, tem o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema (RTJ 105/477, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 111/546, Rel. Min. SOARES MUÑOZ – ADI 784/SC, Rel. Min. MOREIRA ALVES): “Constitucional. Representação de inconstitucionalidade. Não tem objeto, se, antes do ajuizamento da argüição, revogada a norma inquinada de inconstitucional.” (RTJ 107/928, Rel. Min. DECIO MIRANDA - grifei) “(...) também não pode ser a presente ação conhecida (...), tendo em vista que a jurisprudência desta Corte já firmou o princípio (...) de que não é admissível a apreciação, em juízo abstrato, da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de norma jurídica revogada antes da instauração do processo de controle (...).” (RTJ 145/136, Rel. Min. MOREIRA ALVES grifei) Cabe indagar, neste ponto, embora esse pleito não tenha sido deduzido pelas entidades autoras, se se mostraria possível, na espécie, o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade proposta com o objetivo de questionar a validade jurídica do próprio § 3º do art. 226 da Constituição da República. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de não admitir, em sede de fiscalização normativa abstrata, o exame de constitucionalidade 148 de uma norma constitucional originária, como o é aquela inscrita no § 3º do art. 226 da Constituição: “- A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida. - Na atual Carta Magna, ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, ‘caput’), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. - Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida, por impossibilidade jurídica do pedido.” (RTJ 163/872873, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno - grifei) Vale assinalar, ainda, a propósito do tema, que esse entendimento – impossibilidade jurídica de controle abstrato de constitucionalidade de normas constitucionais originárias – reflete-se, por igual, no magistério da doutrina (GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição Constitucional”, p. 178, item n. 2, 4ª ed., 2004, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.333/2.334, item n. 1.8, 2ª ed., 2003, Atlas; OLAVO ALVES FERREIRA, “Controle de Constitucionalidade e seus Efeitos”, p. 42, item n. 1.3.2.1, 2003, Editora Método; GUILHERME PEÑA DE MORAES, “Direito Constitucional – Teoria da Constituição”, p. 192, item n. 3.1, 2003, Lumen Juris; PAULO BONAVIDES, “Inconstitucionalidade de Preceito Constitucional”, “in” “Revista Trimestral de Direito Público”, vol. 7/58-81, Malheiros; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/287-288 e 290-291, item n. 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora). Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância 149 jurídico-social da matéria – cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas (LUIZ EDSON FACHIN, “Direito de Família – Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro”, p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar; LUIZ SALEM VARELLA/IRENE INNWINKL SALEM VARELLA, “Homoerotismo no Direito Brasileiro e Universal – Parceria Civil entre Pessoas do mesmo Sexo”, 2000, Agá Juris Editora, ROGER RAUPP RIOS, “A Homossexualidade no Direito”, p. 97/128, item n. 4, 2001, Livraria do Advogado Editora – ESMAFE/RS; ANA CARLA HARMATIUK MATOS, “União entre Pessoas do mesmo Sexo: aspectos jurídicos e sociais”, p. 161/162, Del Rey, 150 2004; VIVIANE GIRARDI, “Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: a possibilidade jurídica da Adoção por Homossexuais”, Livraria do Advogado Editora, 2005; TAÍSA RIBEIRO FERNANDES, “Uniões Homossexuais: efeitos jurídicos”, Editora Método, São Paulo; JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, “in” “Revista da AJURIS” nº 88, tomo I, p. 224/252, dez/2002, v.g.). Cumpre referir, neste ponto, a notável lição ministrada pela eminente Desembargadora MARIA BERENICE DIAS (“União Homossexual: O Preconceito & a Justiça”, p. 71/83 e p. 85/99, 97, 3ª ed., 2006, Livraria do Advogado Editora), cujas reflexões sobre o tema merecem especial destaque: “A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso. Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção. Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetiva - como já fez a maioria dos países do mundo civilizado -, incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita 151 desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. (...).” (grifei) Vale rememorar, finalmente, ante o caráter seminal de que se acham impregnados, notáveis julgamentos, que, emanados do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, acham-se consubstanciados em acórdãos assim ementados: “Relação homoerótica – União estável – Aplicação dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade – Analogia – Princípios gerais do direito – Visão abrangente das entidades familiares – Regras de inclusão (...) – Inteligência dos arts. 1.723, 1.725 e 1.658 do Código Civil de 2002 – Precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas.” (Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, 7ª Câmara Civil - grifei) “(...) 6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. 7. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do individuo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana. 8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. 9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. 10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. 11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores daconstituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (...), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílioreclusão.” 152 (Revista do TRF/4ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira - grifei) Concluo a minha decisão. E, ao fazê-lo, não posso deixar de considerar que a ocorrência de insuperável razão de ordem formal (esta ADIN impugna norma legal já revogada) torna inviável a presente ação direta, o que me leva a declarar extinto este processo (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175), ainda que se trate, como na espécie, de processo de fiscalização normativa abstrata (RTJ 139/67), sem prejuízo, no entanto, da utilização de meio processual adequado à discussão, “in abstracto” – considerado o que dispõe o art. 1.723 do Código Civil –, da relevantíssima tese pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se. Brasília, 03 de fevereiro de 2006. Ministro CELSO DE MELLO Relator ANEXO C ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LFBS Nº 70013801592 2005/Cível APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotandose uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. APELAÇÃO CÍVEL SÉTIMA CÂMARA CÍVEL Nº 70013801592 COMARCA DE BAGÉ MINISTERIO PUBLICO APELANTE LI. M. B. G. APELADO ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao apelo. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE) E DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL. Porto Alegre, 05 de abril de 2006. 154 DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, Relator. RELATÓRIO DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR) Trata-se de recurso de apelação interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, irresignado com sentença que deferiu a adoção dos menores P.H. R.M. (3 anos e 6 meses) e J.V.R.M. (2 anos e 3 meses) a LI. M. B.G., companheira da mãe adotiva dos menores L. R.M. Sustenta que: (1) há vedação legal (CC, art. 1622) ao deferimento de adoção a duas pessoas, salvo se forem casadas ou viverem em união estável; (2) é reconhecida como entidade familiar a união estável, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família, entre homem e mulher; (3) nem as normas constitucionais nem as infraconstitucionais albergam o reconhecimento jurídico da união homossexual; (4) de acordo com a doutrina, a adoção deve imitar a família biológica, inviabilizando a adoção por parelhas do mesmo sexo. Pede provimento. Houve resposta. Nesta instância o Ministério Público opina pelo conhecimento e provimento do apelo. É o relatório. VOTOS DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR) A requerente LI.M.B.G., fisioterapeuta e professora universitária, postula a adoção dos menores P.H.R.M., nascido em 07.09.2002, e J.V.R.M., nascido em 26.12.2003. Relata que ambos são filhos adotivos de L.R.M., com quem a ora 155 requerente mantém um relacionamento aos moldes de entidade familiar há oito anos. Em anexo estão os processos em que foi deferida a adoção de ambos os menores, que são irmãos biológicos, a L.R.M.. Sinale-se que as crianças são cuidadas por L. desde o nascimento. A r. sentença recorrida julgou procedente o pleito. O recurso é do Ministério Público e se baseia na impossibilidade de ser deferida a adoção conjunta a duas pessoas, salvo se forem casadas ou mantiverem união estável (art. 1.622 do Código Civil), o que não se configura no caso, diante do fato de que a pretendente da adoção e a mãe já adotiva das crianças são pessoas do mesmo sexo. O parecer ministerial nesta instância é no sentido do provimento (ressalvado o erro material evidente na conclusão, ao dizer que opina pelo “improvimento”). Com efeito, o art. 1.622 do Código Civil dispõe: Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou viverem em união estável. No caso destes autos, L. (que já é mãe adotiva dos meninos) e LI. (ora pretendente à adoção) são mulheres, o que, em princípio, por força do art. 226, § 3º, da CF e art. 1.723 do Código Civil, obstaria reconhecer que o relacionamento entre elas entretido possa ser juridicamente definido como união estável, e, portanto, afastaria a possibilidade de adoção conjunta. No entanto, a jurisprudência deste colegiado já se consolidou, por ampla maioria, no sentido de conferir às uniões entre pessoas do mesmo sexo tratamento em tudo equivalente ao que nosso ordenamento jurídico confere às uniões estáveis. Dentre inúmeros outros julgados, vale colacionar, a título meramente exemplificativo, o seguinte: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. 156 É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. 1 Com efeito, o tratamento analógico das uniões homossexuais como entidades familiares segue a evolução jurisprudencial iniciada em meados do séc. XIX no Direito francês, que culminou no reconhecimento da sociedade de fato nas formações familiares entre homem e mulher não consagradas pelo casamento. À época, por igual, não havia, no ordenamento jurídico positivo brasileiro, e nem no francês, nenhum dispositivo legal que permitisse afirmar que união fática entre homem e mulher constituía família, daí por que o recurso à analogia, indo a jurisprudência inspirar-se em um instituto tipicamente obrigacional como a sociedade de fato. Houve resistências inicialmente? Certamente sim, como as há agora em relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo. O fenômeno é rigorosamente o mesmo. Não se está aqui a afirmar que tais relacionamentos constituem exatamente uma união estável. O que se sustenta é que, se é para tratar por analogia, muito mais se assemelham a uma união estável do que a uma sociedade de fato. Por quê? Porque a affectio que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é muito mais a affectio conjugalis do que a 1 AC 70009550070, J.EM 17.11.2004, Rel. Maria Berenice Dias. 157 affectio societatis. Elas não estão ali para obter resultados econômicos da relação, mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de afeto, com o partilhamento de uma vida em comum, é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união estável, mas é uma entidade familiar à qual devem ser atribuídos iguais direitos. Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva da família eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade. É uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia esta acerca da qual a ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e, como tal, deve ser respeitada. Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem é o amor. São relações de amor, cercadas, ainda, por preconceitos. Como tal, são aptas a servir de base a entidades familiares equiparáveis, para todos os efeitos, à união estável entre homem e mulher. Em contrário a esse entendimento costuma-se esgrimir sobretudo com o argumento de que as entidades familiares estão especificadas na Constituição Federal, e que dentre elas não se alinha a união entre pessoas de mesmo sexo. Respondendo vantajosamente a tal argumento, colaciono aqui preciosa lição de Maria Celina Bodin de Moraes2 , onde aquela em. jurista assim se manifesta : O argumento jurídico mais consistente, contrário à natureza familiar da união civil entre pessoas do mesmo sexo, provém da interpretação do Texto Constitucional. Nele encontram-se previstas expressamente três formas de configurações familiares: aquela fundada no casamento, a união estável entre um homem e uma mulher com ânimo de constituir família (art. 226, §3º), além da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Alguns autores, em respeito à literalidade da dicção constitucional e com argumentação que guarda certa coerência lógica, entendem que ‘qualquer outro tipo de entidade familiar que se queira criar, terá que ser feito via emenda constitucional e não por projeto de lei’. 2 A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional. In RTDC. v. 1.p. 89/112. 158 O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da ‘norma geral exclusiva’ segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os demais comportamentos3. Como se salientou em doutrina, a teoria da norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos ordenamentos jurídicos , há uma outra norma geral (denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos não previstos na norma, desde que 4 semelhantes a ele, de maneira idêntica . De modo que, frente a uma lacuna, cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou analógico. Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação, verificou-se que outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas , muito especialmente para interpretação dos textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da segunda metade deste século. Sustenta a melhor doutrina, modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que levem em conta trata-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila. Daí ser imprescindível enfatizar, no momento interpretativo, a especificidade da normativa constitucional – composta de regras e princípios –, e considerar que os preceitos constitucionais são, essencialmente, muito mais indeterminados e elásticos do que as demais normas e, portanto, ‘não predeterminam, de modo completo, em nenhum caso, o ato de aplicação, mas este se produz ao amparo de um sistema normativo que abrange 5 diversas possibilidades’ . Assim é que as normas constitucionais estabelecem, através de formulações concisas, ‘apenas os princípios e os valores fundamentais do estatuto das pessoas na comunidade, que hão de 6 ser concretizados no momento de sua aplicação’ . Por outro lado, é preciso não esquecer que segundo a perspectiva metodológica de aplicação direta da Constituição às relações intersubjetivas, no que se convencionou denominar de ‘direito civilconstitucional’, a normativa constitucional, mediante aplicação direta dos princípios e valores antes referidos, determina o iter interpretativo das normas de direito privado – bem como a colmatação de suas lacunas –, tendo em vista o princípio de solidariedade que transformou, completamente, o direito privado vigente anteriormente, de cunho marcadamente individualístico. No Estado democrático e social de Direito, as relações jurídicas privadas ‘perderam o caráter estritamente privatista e inserem-se no contexto mais abrangente de relações a serem dirimidas, tendo-se em vista, em última instância, no ordenamento constitucional. Seguindo-se estes raciocínios hermenêuticos, o da especificidade da interpretação normativa civil à luz da Constituição, cumpre verificar se por que a norma constitucional não previu outras formas de entidades familiares, estariam elas automaticamente excluídas do ordenamento jurídico, sendo imprescindível, neste caso, a via emendacional para garantir proteção jurídica às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, ou se, ao contrário, tendo-se em vista a similitude das situações, estariam essas uniões abrangidas pela expressão constitucional ‘entidade familiar’. Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988, além dos dispositivos enunciados em tema de família, consagrou, no art. 1º, III, entre os seus princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, ‘impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status 3 E.Zietelman, Lüken im Recht, (1903) e D. Donati. Il problema delle ordinamento giuridico (1910) apud N. Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico, (1950), Brasília-São Paulo: Ed. UNB-Polis, 1989, p. 132 e ss. 4 N. Bobbio. Teoria do Ordenamento. Op. cit. p.135. 5 E. Alonso Garcia. La Interpretacion de la Constituición. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 16. 6 J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 120. 159 7 constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família’ . Assim sendo, embora tenha ampliado seu prestígio constitucional, a família, como qualquer outra comunidade de pessoas, ‘deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na media em que se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da 8 personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes’ . É o fenômeno da ‘funcionalização’ das comunidades intermediárias – em 9 especial da família – com relação aos membros que as compõem . A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à ‘forma’ familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes. Se a família, através de adequada interpretação dos dispositivos constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’, não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que, embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmo fundamentos e com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras formas de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera seja a proibição de qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas, especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se configura como direito personalíssimo –, seja a razão maior de que o legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, CF), tutelando-a onde quer que sua personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição brasileira, assim como a italiana, inspirou-se no princípio solidarista, sobre o qual funda a estrutura da República, significando dizer que a dignidade da pessoa é preexistente e a antecedente a qualquer outra forma de organização social. O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união estável’ o legislador constitucional impôs o requisito da diversidade de sexo parece insuficiente para fazer concluir que onde vínculo semelhante se estabeleça, entre pessoas do mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre entre heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser tutelados de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos semelhantes e, portanto, também, os deveres correspondentes. A prescindir da veste formal, a ser dada pelo legislador ordinário, a jurisprudência – que, em geral, espelha a sensibilidade e as convenções da sociedade civil –, vem respondendo afirmativamente. A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou tendência não configura doença de qualquer espécie – a ser, portanto, curada e destinada a desaparecer –, mas uma manifestação particular do ser humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio fundamental da dignidade da pessoa, ao qual está definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação sexual, parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo devem merecer status semelhante às demais comunidade de afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar. Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais 7 8 9 G.Tepedino. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.350. Idem P. Perlingieri. Il diritto civille nella legalitá constituzionale. Camerino-Napoli. ESI, 1984. p. 558. 160 exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, §8º). Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família deve ser o mesmo que é atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a essas pessoas o direito de adotar em conjunto. É preciso atentar para que na origem da formação dos laços de filiação prepondera, acima do mero fato biológico, a convenção social. É Villela10 que assinala: se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir. Na mesma senda, leciona Héritier11: Não existem, até nossos dias, sociedades humanas que sejam fundadas unicamente sobre a simples consideração da procriação biológica ou que lhe tenham atribuído a mesma importância que a filiação socialmente definida. Todas consagram a primazia do social – da convenção jurídica que funda o social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, jamais um simples derivado da procriação. Além de a formação do vínculo de filiação assentar-se predominante na convenção jurídica, mister observar, por igual, que nem sempre, na definição dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social. Neste passo, é Nadaud que nos reporta: Indépendamment de la forme de la filiation, on remarque que ce lien de filiation n’est qu’exceptionnellement, au regard de l’étendue des societés humaines, superposable à l’engendrement biologique ou à la procréation: il existe em effet une”‘dissociation entre la ‘verité bilogique de l’engendrement’ et la filiation”. Ce point est essentiel car il explique pourquoi, dans la plupart 10 VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte. ano 27, n. 21, 1979. 11 Héritier, Françoise. A Coxa de Júpiter – reflexões sobre os novos modos de procriação. In:Estudos Feministas. ano 8, 1º sem 2000. p. 98. 161 des societés, l’engendrement et la parenté sont deux choses distinctes. De la même façon, quand on parle de père et de mère, et donc d’un individu masculin ou féminin, il faut differencier ce qui est le sexe biologique de ce qui est le sexe social, lesquels, bien souvant, sont loin de se recouper: bon nombre de sociétés dissocient ainsi le sexe biologique du genre dans la 12 genèse des liens de filiation. Melhor esclarecendo essa perspectiva, é novamente Héritier12 quem nos traz da antropologia um exemplo que evidencia que em organizações sociais tidas por primitivas o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo do sexo masculino: Num caso particularmente interessante encontrado entre os Nuer, é uma mulher, considerada como homem, que enquanto pai, se vê atribuir uma descendência. Nesta sociedade, com efeito, as mulheres que provam, depois de terem sido casadas por tempo suficientemente longo, sua esterilidade definitiva, retornam a sua linhagem de origem, onde são consideradas totalmente como homens. Este é apenas um dos exemplos em que a mulher estéril, longe de ser desacreditada por não poder cumprir seu destino feminino, é creditada com essência masculina. A ‘bréhaigne’, como mostra a etiologia proposta por Littré, é uma mulher-homem (de ‘barus’ = ‘vir’ em baixo latim), mas, pode-se, segundo a cultura, tirar dessa assimilação conclusões radicalmente diferentes. Para os Nuer, a mulher ‘brehaigne’ acede ao status masculino. Como todo casamento legítimo é sancionado por importantes transferências de gado da família do marido à da esposa, este gado é repartido entre o pai e os tios paternos desta. De volta à casa de seus irmãos, a mulher estéril se beneficia, então, na qualidade de tio paterno, de parte do gado da compensação dada para suas sobrinhas. Quando ela, dessa forma, constitui um capital, ela pode, por sua vez, fornecer uma compensação matrimonial e obter uma esposa da qual ela se torna o marido. Essa relação conjugal não leva a relações homossexuais: a esposa serve seu marido e trabalha em seu benefício. A reprodução é assegurada graças a um criado, a maior parte das vezes de uma etnia estrangeira, que cumpre tarefas pastoris mas assegura também o serviço de cama junto à esposa. Todas as crianças vindas ao mundo são do ‘marido’, que a transferência do gado designou expressamente, segundo a lei social que faz a filiação. Elas portam seu nome, chamam-na ‘pai’, a respeitam e não se estabelece nenhum laço particular com seu genitor, que não possui direitos sobre elas e se vê recompensado por seu papel pelo ganho de uma vaca, por ocasião do casamento das filhas, vaca que é o prêmio por engendrar. Estatutos e papéis masculinos e femininos são aqui, portanto, independentes do sexo: é a fecundidade feminina ou sua ausência que cria a linha de separação. Levado ao extremo, esta representação que faz da mulher estéril um homem a autoriza a representar o papel de homem em toda sua extensão social. 12 EM TRADUÇÃO LIVRE: Independentemente da forma da filiação, observa-se que esse laço não é senão excepcionalmente, em vista da diversidade das sociedades humanas, superponível ao engendramento biológico ou à procriação: existe, com efeito, uma “dissociação entre a ‘verdade biológica do engendramento’ e a filiação”. Este ponto é essencial pois explica porque, na maior parte das sociedades, o engendramento e a parentalidade são coisas distintas. Do mesmo modo, quando se fala de pai e de mãe, e, portanto, de um indivíduo masculino ou feminino, é preciso diferenciar o sexo biológico do social, os quais, freqüentemente, estão longe de coincidir: bom número de sociedades dissociam o sexo biológico do gênero na gênese dos laços de filiação. 13 Héritier, Françoise. Op. cit. pp. 108/109. 162 Como se vê, nada há de novo sob o sol, quando se cogita de reconhecer a duas pessoas de mesmo sexo (no caso, duas mulheres), que mantém uma relação tipicamente familiar, o direito de adotar conjuntamente. Resta verificar se semelhante modalidade de adoção constitui efetivo benefício aos adotandos, critério norteador insculpido no art. 1.625 do Código Civil. Nadaud14, em sua tese de doutorado, realizou estudo sobre uma população de infantes criados em lares de homossexuais, constatando que: (...) globalement, leurs comportements ne varient pas fondamentalement de ceux de la population générale. Il ne s’agit donc pas d’affirmer que tous les enfants de parents homosexuels “vont bien”, mais d’apporter uma pierre supplémentaire à l’édifice des études qui montrent déjá que leurs comportements correspondent à ceux des autres enfants de leur âge. Ce qui revient absolutament pas à nier leur spécificité. Não é diferente a conclusão a que chegaram Tasker e Golombok15: Ce qui apparait clairement dans la présente étude, c’est que les enfants qui grandissent dans une famille lesbienne n’auront pas necessairement de problèmes liés à cela à l’âge adulte. De fait, les resultats de la présente étude montrent que les jeunes gens élevés par une mère lesbienne reussissent bien à l’âge adulte et ont de bonnes relations avec leurs famille, leurs amie e leurs partenaires. Dans les décisions de justice que statuent sur la capacité ou l’incapacité d’um adulte à élever um enfant, il conviendrait de ne plus se fonder sur l’orientation sexuelle de la mère pour évaluer l’intérêt de l’enfant. Idêntica é a pesquisa de CJ. Patterson16, da Universidade de Virgínia (USA), ao afirmar que: Em resume, il n’existe pas de données que permettraient d’avancer que les lesbiennes et les gays ne sont pas des parents adéquats ou encore que le devoloppement psychosocial des enfants de gays ou de lesbiennes soit 14 EM TRADUÇÃO LIVRE: (...) globalmente, seus comportamentos não variam fundamentalmente daqueles da população em geral. Não se trata de afirmar que todos os filhos de pais homossexuais “estão bem”, mas de acrescentar uma pedra suplementar ao edifício dos estudos que mostram que seus comportamentos correspondem aos das outras crianças de sua idade. O que não significa, absolutamente, negar sua especificidade. Nadaud, Stéphane. Op. cit. p. 302. 15 EM TRADUÇÃO LIVRE : O que aparece claramente no presente estudo, é que as crianças que crescem em uma família de lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados a isso na idade adulta. De fato, os resultados do presente estudo mostram que os jovens cuidados por uma mãe lésbica alcançam bem a idade adulta e têm boas relações com suas famílias, seus amigos e seus parceiros. As decisões da justiça que avaliam a capacidade de um adulto em criar de uma criança não devem se fundar sobre a orientação sexual da mãe para avaliar o interesse da criança. Tasker, Fiona L. e Susan Golombok – Grandir Dans une Famille Lesbienne. In: Homoparentalités, état des lieux. Coord.: Martine Gross. Paris: Éditions érès, 2005. p. 170. 16 EM TRADUÇÃO LIVRE: Em resumo, não há dados que permitam afirmar que as lésbicas e os gays não são pais adequados ou mesmo que o desenvolvimento psicossocial dos filhos de gays e lésbicas seja comprometido sob qualquer aspecto em relação aos filhos de pais heterossexuais. Nenhum estudo constata que os filhos de pais gays ou lésbicas são deficitários em qualquer domínio significativo, em relação aos filhos de pais heterossexuais. Além disso, os resultados atuais deixam pensar que os relacionamentos familiares fornecidos pelos pais gays e lésbicas são suscetíveis de sustentar e ajudar o amadurecimento psicossocial dos filhos do mesmo modo que aqueles fornecidos pelos pais heterossexuais. CJ. PATTERSON. Resultats des Recherches concernants l’homoparentalité. Texto cedido, por via eletrônica, pela Dra. Elizabeth Zambrano. 163 compromis, sous quelques aspect que ce soit, par rapport à celui des enfants de parents hétérosexuels. Pas une seule étude n’a constate que les enfants de parents gays ou lesbiens sont handicapés, dans quelques domaine significatif que se soit, par rapport aux enfants de parents hetérosexuels. De plus, les résultats à ce jour laissent penser que les environnements familiaux fournis par les parents gays et lesbiens sont suscetibles de soutenir et d’aider la maturation psychosociale des enfants de la même manière que ceux fournis par les parents hétérosexuels. Na Universidade de Valência (ESP), o estudo de Navarro, Llobell e Bort17 aponta na mesma direção: Los resultados ofrecen de forma unánime datos que son coherentes com el postulado de la parentalidad como un proceso bidireccional padres-hijos que no está relacionado com la orientación sexual de los padres. Educar y criar a los hijos de forma saludable lo realizan de forma semejante los padres homosexuales y los padres heterosexuales. Também a Academia Americana de Pediatria (American Academy of Pediatrics), em estudo coordenado por Ellen C. Perrin18, concluiu: A growing body of scientific literature demonstrates that children who grow up with 1 or 2 gay and/or lesbian parents fare as well in emotional, cognitive, social, and sexual functioning as do children whose parents are heterosexual. Children’s optimal development seems to be influenced more by the nature of the relationships and interactions within the family unit than by the particular structural form it takes. Como se vê, os estudos especializados não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores. É, portanto, hora de abandonar de vez os preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da 17 EM TRADUÇÃO LIVRE: Os resultados oferecem de forma unânime dados que são coerentes com o postulado da parentalidade como um processo bidirecional que não está relacionado com a orientação sexual dos pais. Educar e criar os filhos de forma saudável o realizam semelhantemente os pais homossexuais e os heterosexuais. Frias Navarro, Pascual Llobell e Monterde Bort. Hijos de padres homosexuales: qué les diferencia. Texto cedido, em meio eletrônico, pela Dra. Elizabeth Zambrano. 18 EM TRADUÇÃO LIVRE: Um crescente conjunto da literatura cientifíca demonstra que a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto a criança cujos pais são heterossexuais. O bom desenvolvimento das crianças parece ser influenciado mais pela natureza dos relacionamentos e interações dentro da unidade familiar do que pela forma estrutural específica que esta possui. Ellen C. Perrin : Technical Report: Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents. Texto cedido, em meio eletrônico, pela Dra. Elizabeth Zambrano. 164 absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Como assinala Rolim19 : Temos, no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de mortificação e desamor até completarem 18 anos porque estão fora da faixa de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo aquilo que ele oferece de violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra, ser adotadas por casais homossexuais. Alguém poderia me dizer por quê? Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: - "Sim, é preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem adotadas por casais homossexuais" ? Ora, tenham a santa paciência. O que todas as crianças precisam é cuidado, carinho e amor. Aquelas que foram abandonadas foram espancadas, negligenciadas e/ou abusadas sexualmente por suas famílias biológicas. Por óbvio, aqueles que as maltrataram por surras e suplícios que ultrapassam a imaginação dos torturadores; que as deixaram sem terem o que comer ou o que beber, amarradas tantas vezes ao pé da cama; que as obrigaram a manter relações sexuais ou atos libidinosos eram heterossexuais, não é mesmo? Dois neurônios seriam, então, suficientes para concluir que a orientação sexual dos pais não informa nada de relevante quando o assunto é cuidado e amor para com as crianças. Poderíamos acrescentar que aquela circunstância também não agrega nada de relevante, inclusive, quanto à futura orientação sexual das próprias crianças, mas isso já seria outro tema. Por hora, me parece o bastante apontar para o preconceito vigente contra as adoções por casais homossexuais com base numa pergunta: - "que valor moral é esse que se faz cúmplice do abandono e do sofrimento de milhares de crianças?" Postas as premissas, passo ao exame do caso, a fim de verificar se estão aqui concretamente atendidos os interesses dos adotandos. E também sob esse aspecto, a resposta é favorável à apelada. Como ressalta o relatório de avaliação, de fls. 13/17 : Li. de 39 anos e L. de 31 anos, convivem desde 1998. Em abril de 2003 L. teve a adoção de P.H. deferida e, em fevereiro de 2004 foi deferida a adoção de J.V.. Na época Li. participou da decisão e de todo o processo de adoção auxiliando nos cuidados e manutenção das crianças. Elas relatam que, procuram ser discretas quanto ao seu relacionamento afetivo, na presença das crianças. Participam igualmente nos cuidados e educação dos meninos, porém, é Li. que se envolve mais no deslocamento deles, quando depende de carro, pois é ela quem dirige. Li., diz que, é mais metódica e rígida do que L. e observou-se que é mais atenta na imposição de limites. Segundo a Sra. Iara, mãe de Li., a família aceita e apóia Li. na sua orientação sexual, “ela é uma filha que nunca deu problemas para a família, acho que as crianças tiveram sorte, pois têm atenção, carinho e tudo o que necessitam, Li. os trata como filhos” (SIU). Coloca que Lí. e L. se relacionam 19 Rolim, Marcos. Casais homossexuais e adoção. Disponível em: http://www.rolim.com.br/cronic162.htm. Acesso em: 31 mar. 06. 165 bem. Observou-se fotos dos meninos e de Li. na casa dos pais dela, eles costumam visitá-la aos finais de semana, quando almoçam todos juntos e convivem mais com as crianças e L.. Com a família de L. a convivência é mais freqüente, pois a mãe de L. auxilia no cuidado a J.V.. Com relação às crianças: Os meninos chamam Li. e L. de mãe. P.H. está com 2 anos e 6 meses, freqüenta a Escolinha particular Modelando Sonhos, a tarde. A professora dele, L. B. F., informou que o menino apresenta comportamento normal para sua faixa etária, se relaciona bem e adaptou-se rapidamente. Li. e L. estão como responsáveis na escola e participam juntas nos eventos na escolinha, sendo bem aceitas pelos demais pais de alunos. Observou-se que, P.H. é uma criança com aparência saudável, alegre e ativo. J.V. faz tratamento constante para bronquite e, apesar dos problemas de saúde iniciais, apresenta aparência saudável e desenvolvimento normal para sua faixa etária. Durante a tarde, ele fica sob os cuidados da mãe de L. enquanto L. e Li. trabalham. A Sra. N. coloca que os meninos são muito afetivos com as mães e vice-versa. L. coloca que até agora, não sentiu nenhuma discriminação aos filhos e, P.H. costuma ser convidado para ir brincar na casa de coleguinhas da escolinha. São convidados para festas de aniversário de filhas de colegas de trabalho e amigos. Situação atual: Li. coloca que sempre pensou em adotar, o que se acentuou com a convivência com L. e as crianças, pois se preocupa com o futuro dos meninos, já que L. é autônoma e possui problema de saúde. E, ela já pensou em uma situação mais estável, trabalha com vínculo empregatício como professora da URCAMP, possuindo convênios de saúde e vantagens para o acesso dos meninos ao ensino básico e superior. Coloca “a minha preocupação não é criar polêmica mais resguardá-los para o futuro” (SIU). Li. relata que, quando não está trabalhando, se dedica ao cuidado das crianças. Refere-se à personalidade de cada um, demonstrando os vínculos e convivência intensa que possui com os meninos. Diz que costuma limitar a vida social às condições de saúde das crianças, principalmente J.V.. (...) Parecer: De acordo com o exposto acima, s.m.j., parece que, Li. tem exercido a parentalidade adequadamente. Com relação às vantagens da adoção para estas crianças, especificamente, conhecendo-se a família de origem, pode-se afirmar que, quanto aos efeitos sociais e jurídicos são inegáveis, quanto aos efeitos subjetivos é prematuro dizer, porém existem fortes vínculos afetivos que indicam bom prognóstico. (GRIFEI) Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio Edon Franco, ao determinar na sentença que no assento de nascimento das crianças conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai ou mãe. Ante o exposto, por qualquer ângulo que se visualize a controvérsia, outra conclusão não é possível obter a não ser aquela a que também chegou a r. sentença, que, por isso, merece ser confirmada. 166 Nego, assim, provimento ao apelo. DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL (REVISOR) - De acordo. DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE) A Justiça tem por finalidade julgar os fatos da vida. E hoje temos diante dos olhos um fato: dois meninos têm duas mães. Esse fato a Justiça não pode deixar de enxergar. Desde que nasceram, essas crianças foram entregues pela mãe biológica ao casal de lésbicas e por elas são criadas. Para criarem um vínculo jurídico, para assumirem a responsabilidade decorrente da maternidade, fizeram uso – como bem disse o Relator – de um subterfúgio: uma delas buscou a adoção. Mas passaram eles a ser criados por ambas, reconhecem as duas como mães, assim as chamam. Consideram-se filhos de ambas, ou seja, detêm com relação a elas a posse de estado de filho, estabelecendo com suas mães um vínculo de filiação. De há algum tempo a Justiça já vem emprestando maior prestígio ao vínculo afetivo. É este que é reconhecido como o prevalente ao biológico. Paulo Lôbo, um dos nossos juristas maiores, inclusive encontra, em cinco normas constitucionais, fundamento de que a filiação não é estabelecida pelo critério biológico, mas pelo critério afetivo. Essa foi a escolha do legislador constitucional. Ao dizer a Constituição que todos os filhos são iguais independentemente de sua origem, não está preocupado com a verdade biológica (CF § 6º do art. 227). Ao estabelecer nos §§ 5º e 6º do mesmo artigo a igualdade de direitos, também faz uma escolha pela filiação afetiva. Ao referir à “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, inclui os filhos adotivos, com a mesma dignidade da família constitucionalmente protegida, não sendo relevante a origem ou a existência de um outro pai, que seria o genitor (CF, § 4º do art. 226). O direito à convivência familiar e 167 não à origem genética constitui prioridade absoluta de crianças e adolescentes (CF, art. 227, caput). Igualmente o legislador, ao impor a todos os membros da família o dever de solidariedade de uns aos outros: dos pais para os filhos e dos filhos para os pais e de todos em relação aos idosos, também não está priorizando a filiação biológica (CF arts. 229 e 230).20 Assim, tem assento constitucional a priorização da filiação afetiva ou socioafetiva, como alguns preferem dizer. Então, mister reconhecer que as duas mães mantêm um vínculo de filiação com essas crianças. Uma delas tem vínculo jurídico decorrente da adoção, buscando a outra o reconhecimento em juízo da filiação para assumir as responsabilidades decorrentes do poder familiar. Fazem isso porque são sabedoras das dificuldades que a ausência desse vínculo pode gerar aos filhos, eis que todos os pais responsáveis querem preservar sua prole. Ao depois, a apelada tem vínculo laboral, que garantirá maior segurança a eles. É funcionária pública e professora universitária, ao contrário de sua parceira, que, inclusive, tem problemas de saúde. Quer dar aos filhos a segurança de que, se vier a falecer, terão direitos. Também quer ter a certeza, de que se vier a falecer a mãe adotiva, terá a possibilidade de ficar com a guarda dos filhos, porque, se não tiver vínculo nenhum, quiçá, nem com a guarda dos filhos poderá permanecer. Então, a pretensão desta mãe é a de se impor obrigações e assegurar direitos aos filhos, estabelecendo um vínculo jurídico com eles. Em face disso é que a única observação que eu faria ao detalhado e preciso voto do eminente Relator é um questionamento sobre a legitimidade do Ministério Público em veicular o recurso de apelação contra a sentença que deferiu a adoção. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre as funções do Ministério 20 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Afeto, ética e família e o novo Código Civil brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 515. 168 Público, está o de (art. 201, inc. VIII): “zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis”. Assim, inclusive, creio que teria o Ministério Público legitimidade era para ingressar com ação de adoção cada vez que se defrontasse com esta situação consolidada para regulamentar a situação jurídica das crianças. É chegada a hora de acabar com a hipocrisia e atender ao comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes. Como há enorme resistência de admitir a adoção por um par homossexual, mas não há impedimento a que uma pessoa sozinha adote alguém, resolvendo o casal constituir família, somente um busca a adoção. Não revela sua identidade sexual e no estudo social que é levado a efeito, não são feitos questionamentos a respeito disso. A companheira ou o companheiro não é submetido à avaliação e a casa não é visitada. Via de conseqüência, o estudo social não é bem feito. Para a habilitação deveria atentar-se a tudo isso, para assegurar a conveniência da adoção. Aliás, este foi o subterfúgio utilizado pelas mães dessas crianças. Ora, ao acolher-se eventualmente o recurso interposto por quem tem o dever legal de proteger crianças e adolescentes, o que isto mudaria? Afinal, o que quer o agente ministerial? Que essas crianças sejam institucionalizadas? Que as mãe se separem? Pelo jeito é isso que pretende o recorrente pois toda a linha de argumentação que é vertido no recurso é de que a convivência poderia gerar conseqüências de ordem comportamental ou na identidade sexual das crianças. Ora, se é perniciosa a convivência o que quer o recorrente é acabar com o convívio, é afastar os filhos de 169 suas mães. Quem sabe colocá-las em um abrigo ou entregá-las em adoção a um casal heterossexual. Então, não consigo encontrar outra justificativa para o recurso a não ser o preconceito. A falta de lei nunca foi motivo para a Justiça deixar de julgar ou de fazer justiça. A omissão do legislador não serve de fundamento para deixar de reconhecer a existência de direitos. O certo é que o acolhimento da apelação deixaria as crianças ao desabrigo de um vínculo de filiação que já existe. Ao não se manter a filiação dessas crianças com a sua mãe, estaríamos mantendo esta feia imagem da Justiça, que é a da Justiça cega, com os olhos vendados. Temos de continuar, cada vez mais, buscando uma Justiça mais rente à realidade da vida. O voto do eminente Relator, que é uma decisão pioneira no Brasil, bem retratou esta realidade. Acompanho-o, em todos os seus termos. É como voto. DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70013801592, Comarca de Bagé: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: MARCOS DANILO EDON FRANCO ÍNDICE RESUMO/ABSTRACT INTRODUÇÃO........................................................................................................................09 PARTE I – DA FAMÍLIA 1. A evolução e o novo perfil das entidades familiares...........................................................13 1.1 Análise da evolução das entidades familiares e a importância do afeto....................15 1.2 A constitucionalização das entidades familiares.........................................................30 PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO 2. Antecedentes históricos......................................................................................................41 2.1 A origem da adoção no Direito Romano.....................................................................42 2.2 O Código Civil de 1916 e as leis posteriores anteriores à Constituição de 1988.......46 3. Análise da adoção na legislação brasileira a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988..................................................................................................55 3.1O Estatuto da Criança e do Adolescente.....................................................................58 3.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002............................65 3.3 A Função Social e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.......72 4. A questão jurídica da adoção por casais homossexuais....................................................82 4.1 Os princípios e garantias Constitucionais que asseguram à união homoafetiva o status de entidade familiar......................................................................................................84 4.2 A possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais e o melhor interesse da criança e do adolescente........................................................................................................95 CONCLUSÃO.......................................................................................................................125 REFERÊNCIAS....................................................................................................................130 ANEXO A – Jurisprudência sobre uniões homoafetivas tratadas pelo direito como sociedade de fato...........................................................................................................141 ANEXO B – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0 Distrito Federal..........................................................................................................145 ANEXO C – Jurisprudência sobre Adoção por casal formado por duas pessoas de mesmo sexo...............................................................................................................153 ÍNDICE..................................................................................................................................170
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