Família e Adoção: os novos paradigmas que autorizam a adoção

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Família e Adoção: os novos paradigmas que autorizam a adoção
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS
CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE – UNIFLU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADO EM DIREITO
RELAÇÕES PRIVADAS E CONSTITUIÇÃO
FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO
POR CASAIS HOMOSSEXUAIS.
BRASIL. 1988-2006.
CARLA HECHT DOMINGOS
CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ
2006
CARLA HECHT DOMINGOS
FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO
POR CASAIS HOMOSSEXUAIS.
BRASIL. 1988-2006.
Dissertação
apresentada
ao
Programa
de
Pós-Graduação,
Mestrado em Direito, da Faculdade
de Direito de Campos – FDC, como
requisito para obtenção do grau de
Mestre em Direito, na área de
concentração Relações Privadas e
Constituição.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela
Maria Gomes
CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ
2006
CARLA HECHT DOMINGOS
FAMÍLIA E ADOÇÃO: OS NOVOS PARADIGMAS QUE AUTORIZAM A ADOÇÃO
POR CASAIS HOMOSSEXUAIS.
BRASIL. 1988-2006.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Direito, da
Faculdade de Direito de Campos – FDC, como requisito para obtenção do grau de
Mestre em Direito, na área de concentração Relações Privadas e Constituição.
Aprovada em 08 de agosto de 2006.
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Dr.ª Rosângela Maria Gomes
Orientadora
_____________________________
Dr.ª Heloísa Helena Barboza
_____________________________
Dr. Eduardo Takemi Kataoka
Dedico este trabalho a todos aqueles
que tiveram a oportunidade de
desfrutar do calor humano de um lar
através da adoção, com a esperança
de que se tornem cidadãos
conscientes e obstinados a tentar
modificar
essa
realidade
de
abandono e privação.
Agradeço primeiramente a Deus que tornou possível a realização deste sonho,
e que, além de me conceder um ideal de justiça, me abençoou com o firme propósito
de lutar por aqueles que se encontram injustiçados e marginalizados.
Aos meus pais pelo carinho e amor com que me educaram; pelo esforço
contínuo e, às vezes, sacrificante com que contribuem para minha realização
pessoal e profissional; pela confiança e esperança que sempre depositaram no meu
trabalho; por tudo o que sou e por tudo que ainda me tornarei, o meu eterno muito
obrigada.
À minha irmã pelo amor e amizade dispensados a mim nesse período que
foram responsáveis por nos unir definitivamente.
Ao meu noivo e a minha sobrinha Ana Clara, verdadeiros responsáveis pelo
sentido da minha vida.
À amiga Bia, pela sua amizade e também por ter colaborado para o
aprimoramento deste trabalho.
À amiga Angélica, por sua amizade, pelo seu companheirismo e pela força
dispensada principalmente no início dessa caminhada.
A todos descritos acima e a todos os amigos e familiares queridos, agradeço a
compreensão pela ausência neste período.
À amiga Danuza Crespo Bastos por toda colaboração com o empréstimo de
materiais para a elaboração dessa dissertação e por todos os ensinamentos
transmitidos nesse período do Mestrado.
À professora e orientadora Dra. Rosângela Gomes, pessoa tão querida e
amável, agradeço por me orientar, por todos os ensinamentos, por sua
disponibilidade e por toda a tranqüilidade transmitida nesse período tão difícil.
Ao Dr. Leonardo Greco, homem admirável e profissional respeitável, agradeço
todos os ensinamentos profissionais e humanos. Agradeço também por ter me
selecionado entre os bolsistas da CAPES no segundo semestre de 2004, posto que,
se não fosse por essa escolha, com certeza esse sonho profissional não se
realizaria.
A todos da Faculdade de Direito de Campos, em especial ao Dr. Levi
Quaresma, à Dra. Gláucia Quaresma e ao Dr. Armando Fahat, agradeço a
oportunidade, o carinho e a confiança no meu trabalho.
“Se a justiça se obtém pela lei, Cristo
morreu em vão.”
Gálatas 2:21
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a possibilidade jurídica da adoção por
casais homossexuais. A demonstração dessa possibilidade realizar-se-á quando
ficarem evidenciadas várias transformações na sociedade. A primeira certamente
ocorreu na família, que por ser uma entidade natural e histórica, seu processo
evolutivo molda-se ao momento histórico, social, religioso, político e econômico no
qual a sociedade viveu. Conseqüentemente, a adoção também se transformou,
posto que o instituto da adoção sempre esteve, e provavelmente sempre estará,
diretamente relacionado à família. A adoção inicialmente tinha por finalidade
satisfazer aos interesses dos pais; com a evolução, a adoção abandonou esse
objetivo e passou a intentar de forma única e, portanto, exclusiva, o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente. Verificar-se-á que o marco das
principais modificações referentes à família e à adoção na sociedade brasileira
ocorreu com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. A Constituição consagrou vários princípios como, por exemplo, o princípio da
igualdade, da liberdade e da dignidade humana como essenciais a um Estado
Democrático de Direito. Desse modo, constatar-se-á que a Constituição de forma
implícita reconheceu a união homossexual como espécie de entidade familiar, uma
vez que todos têm o direito de formar a família que melhor atenda às suas
necessidades e possibilite a promoção da dignidade humana de seus membros.
Além disso, a Constituição transformou as crianças e os adolescentes em sujeitos
de direitos, e dentre esses direitos determinou como direito fundamental a
convivência familiar e comunitária. Encontra-se nesse âmbito a importância da
adoção, pois através dela se viabilizará à criança e ao adolescente o direito
fundamental da convivência familiar e comunitária. Sendo assim, realizar-se-á um
comparativo entre os inquestionáveis males da institucionalização com os
controversos malefícios da convivência de crianças e adolescentes em famílias
homossexuais. Isto feito ficará caracterizada a possibilidade jurídica da adoção por
casais homossexuais com base em vários princípios constitucionais, mas
principalmente com base no princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente.
Palavras-chave:
homossexuais.
melhor
interesse;
criança;
adolescente;
adoção;
família;
ABSTRACT
The aim of the current essay is to demonstrate the judicial possibility of adoption by
homosexual couples. The demonstration of such a possibility will be made possible
when the changes in society become evident. The first change certainly occurred
within the family, a natural and historical entity, whose evolving process adjusts to
the historical, social, religious, political and economical moment in which our society
has lived. Consequently, the adoption process has changed, whereas it has been
and will probably always be directly associated to family. Initially adoption has had as
aim to satisfy parents´ interests; with evolution, the process has abandoned this
objective, coming to only and exclusively aim at the principle of children and
teenagers´ best interest. It is observable that the breakthrough of the main
modifications referring to family and adoption in Brazilian society occurred with the
publishing of the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988. The
Constitution has established several principles such as the principle of equality, of
liberty and of human dignity as essential to a Lawful Democratic State. Therefore it
can be said that the Constitution in an implicit way has recognized the homosexual
union as a kind of family entity, since everyone has the right to form the family which
best meets their needs and which promotes human dignity of its members. Besides,
the Constitution has turned children and teenagers into lawful subjects, and among
these rights has determined as fundamental the right to live together with a family in
a community. Such is the importance of adoption for through it children and
teenagers will reach the fundamental right to live in a family and in a community. So
a comparison can be made between the unquestionable harm if institutionalization
and the controversial damages of living with a homosexual family. By doing so the
judicial possibility of adoption by homosexual couples will be characterized, based on
several constitutional principles, but chiefly based on the principle of children and
teenager best interest.
Key-words : best interest; children; teenagers; adoption; family; homosexual.
SUMÁRIO
RESUMO/ABSTRACT
INTRODUÇÃO...........................................................................................................09
PARTE I – DA FAMÍLIA
1. A evolução e o novo perfil das entidades familiares..............................................13
PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
2. Antecedentes históricos........................................................................................ 41
3. Análise da adoção na legislação brasileira a partir da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988................................................................................55
4. A questão jurídica da adoção por casais homossexuais.......................................82
CONCLUSÃO...........................................................................................................125
REFERÊNCIAS........................................................................................................130
ANEXO A – Jurisprudência sobre uniões homoafetivas tratadas pelo direito como
sociedade de fato....................................................................................141
ANEXO B – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0 Distrito
Federal.....................................................................................................145
ANEXO C – Jurisprudência sobre Adoção por casal formado por duas pessoas de
mesmo sexo.............................................................................................153
ÍNDICE ....................................................................................................................170
INTRODUÇÃO
O Brasil é um país desprovido de programas eficientes de planejamento
familiar e de acesso à contracepção pela população mais pobre. Em conseqüência,
verifica-se um aumento de crianças abandonadas nas ruas ou nas instituições.
Nesse quadro vexatório em que o país encontra-se, o instituto da adoção se
apresenta como um meio alternativo, como um remédio subsidiário, e não principal,
para a solução dos problemas das crianças e dos adolescentes abandonados.
Diante disso, o presente estudo tem por objetivo perfilhar a idéia de que o
melhor interesse da criança e do adolescente aliado aos vários princípios
constitucionais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 – que viabilizam aos indivíduos formarem a família que melhor atenda as suas
necessidades – autorizam a possibilidade da adoção por casais homossexuais.
A Constituição de 1988 tem, diante disso, papel fundamental e essencial, uma
vez que foi a partir dessa que os princípios da dignidade humana, da igualdade, da
liberdade entre os sujeitos, dentre outros princípios, consagraram-se na sociedade
brasileira.
O trabalho em tela é resultado de dois objetivos centrais: a um, busca repensar
a família, com todas as suas pluralidades e particularidades; a dois, visa demonstrar
a possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais como mais um meio
alternativo de viabilizar a inserção familiar daqueles que dela foram privados.
10
Preliminarmente, considerar-se-á a evolução da entidade familiar, desde que
se tem notícia da família, até os novos valores que se apresentam na sociedade no
século XX e no início do século XXI.
A família no Direito Romano originou-se tendo por base a perpetuação do culto
aos antepassados, ao passo que no final do século XX sua base passou a ser o
afeto, abandonando o modelo familiar tradicional e impondo uma concepção
descentralizada, igualitária, desmatrimonializada e plural.
Dentro dessa realidade, outras espécies de entidades familiares são
reconhecidas explicita e implicitamente pela Constituição de 1988. E para que seja
possível a visibilidade das entidades familiares implícitas, faz-se indispensável que
sejam analisados, paralelamente às transformações e aos anseios da sociedade, os
princípios constitucionais que devem conduzir o intérprete à melhor interpretação em
prol da viabilidade da promoção da dignidade humana.
Ademais, a dignidade da pessoa humana é a base de todas as normas
constitucionais, além de ser o fio condutor para que o Estado se efetive como um
Estado Democrático de Direito. Dessa forma, a união homossexual, aqui
denominada por união homoafetiva, enquadra-se nas espécies de entidades
familiares implicitamente reconhecidas pela Constituição. A família passa a ser, a
partir da Constituição de 1988, o elemento indispensável de viabilidade da promoção
da dignidade humana.
Considerando a união homoafetiva uma espécie de entidade familiar,
aparentemente nenhuma controvérsia obstaria que essa espécie de união também
pudesse se transformar em uma família substituta; até porque nenhum texto legal
traz a definição do que vem a ser uma família substituta, bastando para tanto que
11
seja capaz de promover a dignidade humana das crianças e dos adolescentes, que
nem a rua, nem as instituições são capazes de lhes oferecerem.
Todavia não é o que se verifica. Além do argumento de que as uniões
homoafetivas não são espécies de entidades familiares, existem outros como, por
exemplo, o argumento de que essa espécie de adoção, por casais homossexuais,
contraria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio
Constitucional e Estatutário, graças aos artigos 5º, §3º e 43 respectivamente.
Será demonstrado que até se chegar a esse princípio, a adoção não se
fundava no interesse da criança e do adolescente, mas e tão somente no interesse
dos pretensos pais adotivos.
Analisar-se-á que a adoção sofreu inúmeras alterações visíveis nas legislações
existentes desde o Código Civil de 1916 até o Código Civil de 2002; e para uma
melhor compreensão da evolução do instituto, serão analisadas as transformações
desde o direito greco-romano até o direito brasileiro do início do século XXI.
Durante muito tempo, a função social da adoção era dar filhos a quem a
natureza não dera. Posteriormente, mais precisamente a partir do advento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a adoção deixou de privilegiar o
interesse dos pretendentes à adoção e sobrepôs o melhor interesse da criança e do
adolescente a qualquer outro interesse. Logo, a função social da adoção deixou de
ser a de dar uma criança para uma família e passou a ser a de dar uma família à
criança.
Portanto, um dos principais motivos que conduz a interpretação da
possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais é considerar que essa
adoção atende ao princípio do melhor interesse na exata medida que retira as
crianças e os adolescentes das ruas ou das instituições e os insere em um lar.
12
Com isso objetiva-se desmistificar a falácia de que a adoção por homossexuais
prejudica o crescimento sadio da criança ou do adolescente. Demonstrar-se-á que
essa espécie de adoção contribui para que mais crianças e adolescentes sejam
criados e educados em um lar, tendo amor e carinho individualizados, não correndo
o risco de crescerem marcados pelo abandono das instituições ou das ruas.
Além disso, é prudente lembrar que, conforme dispõe o Estatuto, a adoção
possui caráter estritamente excepcional e só deve se efetivar quando cessada toda
a possibilidade da criança ou do adolescente permanecer com a família natural.
Tornando claro que a adoção apenas deve ser aplicada aos casos de abandono.
Isto posto, o que deve ser sopesado não é se a criança ou o adolescente
estaria em melhores condições com uma família heterossexual ou com uma família
homoafetiva, mas se estaria em melhores condições nas ruas, nas instituições ou
com uma família homoafetiva.
Destaca-se que não se busca com este trabalho fazer uma apologia à adoção
por casais homoafetivos, objetiva-se colocar esses casais nas mesmas condições
que os casais heterossexuais, passando por avaliações equivalentes pela equipe
interdisciplinar, podendo ser ou não considerados aptos à adoção, mas de maneira
alguma terem vetada essa possibilidade simplesmente pela orientação sexual ser
diversa da maioria dos casais da sociedade.
PARTE I – DA FAMÍLIA
1. A EVOLUÇÃO E O NOVO PERFIL DAS ENTIDADES FAMILIARES.
Não se inicia qualquer locução a respeito da família se não se lembrar, a
priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral [...] a família é, por assim
dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da
1
própria humanidade.
A família é uma entidade natural, histórica, ancestral e mutável, na qual sua
história se mescla com a história da humanidade.
Destarte, não é possível estudar a história da família de forma linear, pois os
seres humanos, ao escolherem a melhor forma de convivência familiar, fazem com
que as transformações ocorram de diferentes formas. Diante do momento histórico
em que se vive identifica-se o porquê de certas transformações e/ou diferenças na
estrutura da família.
Para que se possa entender determinadas mutações pelas quais as
sociedades passam, faz-se indispensável adequar o processo evolutivo da família
ao momento histórico, social, religioso, político e econômico em que esta sociedade
vive ou viveu.
Acredita-se que os diferentes momentos históricos influenciam e determinam
os diversos modelos familiares. “O Direito de Família, mais de que qualquer outro
1
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista do Advogado, n. 62, p. 16-24,
mar. 2001. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2001. p. 16.
14
ramo do Direito, está sempre na dependência da evolução dos costumes, e
obviamente sujeito às influências ético-sociais.” 2
Sob este prisma, o presente capítulo tem por escopo demonstrar que ao longo
da história o perfil da família sofreu gigantescas transformações que desencadearam
um processo de reestruturação da família.
Fato certo e notório é que a família já não se funda mais nos motivos de
outrora. Na sua origem no Direito Romano sua base era a perpetuação do culto aos
antepassados; já no final do século XX sua base passou a ser o afeto, elemento sem
o qual se justifica a dissolução de uma entidade familiar.
Por outro lado, determinadas características estigmatizantes resistem como,
por exemplo, a não aceitação das famílias formadas por casais homossexuais,
mesmo nesta família reestruturada da primeira década do século XXI.
As Constituições Brasileiras anteriores à Constituição da República Federativa
do Brasil de 19883 dispunham que a família brasileira constituía-se única e
exclusivamente através do casamento.
A promulgação da Constituição de 1988 modificou essa situação e outras
formas de entidades familiares - além daquelas constituídas pelo matrimônio passaram a ser protegidas Constitucionalmente.
Além disso, a Constituição de 1988:
...recepcionou o Estado Democrático, o qual estampa os direitos e garantias
fundamentais, porque, somente assim, estar-se-á garantindo o cumprimento
dos princípios constitucionais da igualdade, da cidadania e da dignidade da
pessoa humana.
A base da família do final do século XX e início do século XXI contrapõe-se aos
preceitos que alicerçaram a sua origem, passando o afeto a ser o elemento principal,
a essência e a razão, da formação das entidades familiares.
2
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 173.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. 35. ed. atual. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2005.
3
15
1.1 ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DAS ENTIDADES FAMILIARES E A
IMPORTÂNCIA DO AFETO.
O estudo da origem e da evolução das entidades familiares torna-se elementar
na presente obra. A partir do conhecimento de determinados fatos históricos é que
se tornará possível estabelecer o porquê de se estar vivendo, em pleno início do
século XXI, sob amarras pré-concebidas na história, transmudando-se de préconceitos, para preconceitos.
Apesar de fundamental a análise da história das entidades familiares, esta não
se verificará de forma linear, muito menos se pretende totalizar e esgotar o assunto.
A dificuldade de comprovação fática dos estágios primitivos da família faz com que
cada estudioso utilize-se de formas diversas para explicar como teria se originado a
família,4 gerando, por vezes, controvérsias entre os autores e uma veracidade
possivelmente discutível.
Pretende-se estabelecer, na medida do possível, um raciocínio lógico dos
momentos históricos relevantes para se explicar a resistência ao reconhecimento
jurídico-social de determinadas entidades familiares, tanto pela ausência de normas
expressas no sistema jurídico, como pela própria sociedade que, mesmo na primeira
década do século XXI, encontra-se arraigada de preconceitos.
Poder-se-ia dizer, utilizando-se da imaginação, que a família teve origem pelo
instinto, pela necessidade de “preservação e perpetuação da espécie humana.”
5
Nesse sentido, o impulso natural do instinto sexual teria dado origem à família de
modo imediato.” 6
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol.V. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 16.
OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Igualdade no casamento e na filiação. Revista do Advogado, n. 58, p. 34-41, mar. 2000. São
Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2000. p. 34.
6
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Constitucional à Família. Revista Brasileira de Direito de Família, vol. 6, n. 23, p. 5-21,
abr./maio 2004. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2004. p. 06.
5
16
Os estudos sobre a origem da família são variados e, por vezes, se
contradizem. Os historiadores do Direito Romano não explicam como a família se
formou,
7
mas, conforme Caio Mário da Silva Pereira,
8
fato comprovado é que a
família viveu largo período sob a forma patriarcal, apesar de outras formas de
origem da família serem apresentadas por alguns doutrinadores.
Nesse sentido, Belmiro Pedro Welter9 explica que existem duas teorias
geralmente invocadas para se explicar a origem da família: a patriarcal e a
matriarcal. Nesta última, cita o doutrinador que a família seria originária de um
estágio inicial de promiscuidade sexual. Contudo, afirma que os pesquisadores
ainda não identificaram, e dificilmente conseguirão identificar o estado inicial da
instituição familiar.
Sustentou, ainda, Caio Mário da Silva Pereira que pecam, às vezes, os
historiadores “pelas afirmações generalizadas, que afrontam os mais vivos impulsos
da natureza humana”, afirmando que “mais racional seria aceitar como originária a
idéia de família monogâmica”, mas que mesmo este raciocínio comporta
controvérsias, pois “aceitar como certa a existência de um tipo de família
preenchendo todo um período evolutivo (...) parece realmente pouco provável.” 10
A doutrina é unânime ao considerar a civilização greco-romana como o
antecedente remoto da família brasileira, podendo-se citar como seguidores desse
pensamento: Caio Mário da Silva Pereira,
11
Arnoldo Wald,
12
Luiz Edson Fachin,
13
7
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, vol. I. 9. ed. Tradução e Glossário de Fernando de Aguiar. Lisboa: Livraria Clássica
Editora, s/d. p. 54-55.
8
PEREIRA, C., 2002, p. 17.
9
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 3233.
10
PEREIRA, C., op. cit., p. 17.
11
Ibidem, p. 17.
12
WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 13. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 09.
13
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de família: curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 27.
17
Guilherme Calmon Nogueira da Gama,
14
Heloísa Helena Barboza,
15
Ricardo
Pereira Lira, 16 dentre outros.
A família brasileira, por sua vez, além da influência greco-romana, sofreu forte
influência do Direito Canônico.
Constatou Fustel de Coulanges que o que uniu os membros da família antiga,
greco-romana, fora algo mais significante que o nascimento e a força física, tendo
sido, pois, a religião doméstica, que também teria ditado as regras do modo de viver
das famílias. 17
Acreditavam as antigas gerações que a morte era apenas uma mudança de
vida, na qual a alma não se separava do corpo,
18
fazendo-se indispensável que os
sucessores vivos cultuassem os antepassados já falecidos. 19
Cada família possuía uma religião e um deus, sendo a maior desgraça desta a
interrupção de sua linhagem, pois caso a família se extinguisse, desapareceria da
terra a sua religião e todos os mortos daquela família cairiam no esquecimento e na
miséria eterna. 20
Fustel de Coulanges define a família greco-romana como “um grupo de
pessoas a quem a religião permitia invocar o mesmo lar e oferecer o repasto fúnebre
aos mesmos antepassados.”
21
A partir da religião doméstica e da crença do culto
aos antepassados, concebeu-se como dever dos vivos satisfazer-lhes esta
14
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de família brasileiro: introdução – abordagem sob a perspectiva civil
constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001. p. 17.
15
BARBOZA, Heloísa Helena Gomes. O direito de família brasileiro no final do século XX. p. 87-112. In: BARRETTO, Vicente
(Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 89.
16
LIRA, Ricardo Pereira. Breve estudo sobre as entidades familiares. p. 25-46. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova
família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 27.
17
COULANGES, s/d, p. 55.
18
Ibidem, p. 11-12.
19
Ibidem, p. 22-28.
20
Ibidem, p. 67-68.
21
Ibidem, p. 56.
18
necessidade,
22
pois “os mortos tinham necessidade de que a sua descendência
nunca se extinguisse.” 23
A família tinha por finalidade a perpetuação do culto aos antepassados, porém,
somente os filhos homens poderiam dar continuidade a este, pois a mulher antes de
casar seguia a religião do seu pai e, após o casamento, passaria a cultuar,
juntamente com o marido, os antepassados deste, o deus daquela família.
24
Ademais, não se admitia que uma mesma pessoa honrasse dois deuses ao mesmo
tempo. 25
Dentre as regras estabelecidas pela religião doméstica, a primeira instituição
estabelecida teria sido o casamento,26 que se fundava na necessidade de
perpetuação da religião doméstica. Logo, a primeira forma de entidade familiar
constituída foi o casamento.
O Direito Romano conhecia três espécies de casamento: confarreatio que era o
casamento patrício, de cunho religioso, celebrado com a presença de dez
testemunhas, no qual todos acompanhavam a esposa à casa do marido, passando
ela da autoridade paterna para a do esposo; coemptio que era um casamento mais
civil e menos sacramental, representando uma venda, ficta venditio; e usus que era
o casamento plebeu, tinha por idéia central a posse que consolidaria a situação
jurídico-matrimonial pelo decurso de um ano consecutivo. 27
A idéia de casamento para o Direito Romano era a de que a affectio maritalis
deveria estar presente não apenas no ato da celebração, mas durante toda a
22
COULANGES, s/d, p. 22.
Ibidem, p. 66.
Ibidem, p. 57.
25
Ibidem, p. 75.
26
Ibidem, p. 56.
27
PEREIRA, C., 2002, p. 37-38.
23
24
19
convivência. A ausência da affectio maritalis poderia acarretar a dissolução do
casamento. 28
Fustel de Coulanges29 coloca que se permitia facilmente a dissolução do
casamento celebrado por coemptio ou por usus. Contudo, a dissolução do
casamento celebrado sob a forma da confarreatio era de difícil dissolução, posto que
se tratava de casamento religioso, podendo apenas se desfazer pela disffarreatio. A
disffarreatio consistia em uma nova cerimônia religiosa com a finalidade de
dissolução do matrimônio, vez que somente a religião poderia desligar aquilo que ela
mesma havia ligado.
A família era uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional, na qual
o patrimônio pertencia à família e era administrado pelo pater, que também
administrava a justiça dentro dos limites da casa.
30
“Somente o pater adquiria bens,
exercendo a domencia potestas (poder sobre o patrimônio familiar) ao lado e como
conseqüência da patria potestas (poder sobre a pessoa dos filhos) e da manus
(poder sobre a mulher).” 31 O pater era o ascendente comum mais velho, que exercia
sua autoridade sobre todos os seus descendentes, sobre sua esposa e sobre todas
as esposas de seus descendentes, modelo patriarcal. 32
Não existe um fundamento que justifique toda essa cultura antiga, a não ser o
interior do próprio homem, incompreensível na maioria das vezes; e, como descreve
Fustel de Coulanges: “o princípio deste culto está fora da natureza física e encontrase no misterioso pequeno mundo que é o homem.” 33
28
WALD, 2000, p. 12.
COULANGES, s/d, p. 64.
WALD, op. cit., p. 09-10.
31
PEREIRA, C., 2002, p. 18.
32
WALD, op. cit., p. 09-13.
33
COULANGES, op. cit., p. 40.
29
30
20
A família antiga era, portanto, mais uma associação religiosa do que uma
associação da natureza, na qual o afeto, certamente, não era o esteio da família.
34
”O direito grego como o romano não tomavam na menor conta este sentimento.
Podia este realmente existir no íntimo dos corações, mas para o direito não contava,
nada era”. 35
Dessa forma, o casamento era obrigatório e era a única forma de constituir
família; não tinha por fim o prazer, a felicidade, mas e tão somente objetivava a
união de dois seres que cultuariam o mesmo deus e, obrigatoriamente, deveriam dar
origem a um terceiro ser que daria continuidade ao culto daquela família.
36
A família
tinha, portanto, desde o Direito Romano a função procracional.
A entrada do filho na família se dava por ato religioso, antes, porém, era
necessário que o pai se pronunciasse afirmando que o recém nascido era ou não da
família. A criança era apresentada aos deuses domésticos com dupla finalidade: de
purificá-la do pecado maculador; e de apresentá-la ao culto doméstico. 37
A entidade familiar era constituída através do casamento, que existia apenas
para perpetuar a família. Nos casos em que o casamento não originasse filhos,
gerava, às vezes, o divórcio, outras vezes, a adoção.
38
Verifica-se, pois, que a
adoção teve origem no dever de perpetuar o culto aos antepassados, como será
analisado mais adiante.
A crença da indispensabilidade do culto aos antepassados fazia com que o
celibato fosse algo proibido, podendo, inclusive ser considerado como impiedade
grave e desgraça. 39
34
COULANGES, s/d, p. 54-55.
Ibidem, p. 54.
Ibidem, p. 68-69.
37
Ibidem, p. 72.
38
Ibidem, p. 73.
39
Ibidem, p. 68.
35
36
21
Da mesma forma, no Direito da Grécia antiga eram inaceitáveis as uniões de
pessoas do mesmo sexo sob o raciocínio da affectio maritalis. Por outro lado,
estudos demonstram que a homossexualidade “sempre existiu, em toda parte,
desde as origens da história humana.” 40
Assim, a homossexualidade masculina era permitida na cultura grega como
uma forma de educação do jovem, tinha, portanto, cunho educativo. 41
Na Grécia antiga, fazia parte das obrigações do preceptado “servir de
mulher” ao seu preceptor, e isso sob a justificativa de treiná-lo para as
42
guerras, em que inexistia a presença de mulheres.
Indubitavelmente essas relações não caracterizavam entidade familiar, uma
vez que a principal função desta era a procriação e perpetuação da família. Mas, por
outro lado, não existia discriminação das relações mantidas entre pessoas do
mesmo sexo. 43
O fato é que a família tinha por finalidade a perpetuação do culto, logo só
poderia ser formada por casal de sexo oposto.
Por outro lado, no início do terceiro milênio, a entidade familiar não se funda
mais na procriação, mas no afeto que une os membros desta. Todavia, persiste a
diversidade de sexo como requisito para o casamento, o que não se pode é fazer
com que este requisito seja utilizado para excluir determinadas entidades familiares,
diante de novos valores sociais.
Cumpre esclarecer que o casamento, assim como a união estável, a família
monoparental, dentre outras, são apenas espécies de entidades familiares do qual
esta é gênero.
40
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006. p. 25.
41
Ibidem, p. 26.
42
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homossexualidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 86.
43
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.
31.
22
Ademais, o fundamento da formação de uma entidade familiar está
completamente vinculado ao afeto e não mais a procriação, propriamente dita.
No que diz respeito ao afeto, não se tem conhecimento de registros que
atribuam a ele o principal elemento constitutivo da família. Todavia, historiadores
como Fustel de Coulanges44 e Rudolf Von Jhering
45
afirmam ter sido a religião o
principal elemento constitutivo da família antiga, perdurando os dogmas da religião
doméstica até o triunfo do cristianismo. 46
Ao contrário do Direito Romano e Grego, nos primeiros séculos da era Cristã,
antes mesmo do reconhecimento oficial da Igreja Católica Romana, não existia o
Matrimônio Cristão, o que se justificava pelo peso da tradição judaica e pela
inexistência de regras expressas no Antigo e no Novo Testamento sobre o
matrimônio. 47
A Igreja também se recusava a interferir nos assuntos que eram tratados pelo
Direito Romano por considerá-los pertinentes ao Estado, logo fora de atuação da
Igreja. 48
De forma sutil a Igreja passou a disciplinar o casamento com base em valores
éticos e jurídicos, passando a considerá-lo um sacramento com dever de contribuir
para afastar a concupiscência49, tentando nas relações pessoais entre os cônjuges,
implantar a idéia da igualdade, contrária ao Direito Romano que colocava a mulher
em posição inferior, todavia, continuava com o homem a chefia da família,
50
modelo
patriarcal.
44
COULANGES, s/d.
JHERING, Rudolf Von, apud PEREIRA, C., 2001, p. 168.
46
COULANGES, op. cit., p. 22.
47
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da
parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 359.
48
Ibidem, p. 359.
49
Ibidem, p. 360.
50
Ibidem, p. 362.
45
23
Deste modo, tem-se que “o casamento e a família precedem ao Estado e a
Igreja, que deles se apropriaram e os converteram em instrumentos de seus
respectivos fins.” 51
Na Idade Média, em especial no período que compreende o século X e XV, “as
relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico, sendo o
casamento religioso o único conhecido.”
52
Além disso, a procriação era função
exclusiva da família fundada no casamento religioso, da qual resultavam filhos
legítimos, configurando, para a família patriarcal essencialmente rural, mais um
elemento de força produtiva. 53
O modelo da família romana – unidade política, jurídica, religiosa e patriarcal,
que tinha por finalidade a procriação – associado à influência do Direito Canônico,
atravessa a Idade Média e se projeta nas Ordenações do Reino e futuramente no
Código Civil de 1916.
Tem-se que:
Em 1446, o Rei de Portugal, D. Afonso IV, mandou compilar e publicar, em
cinco livros, todas as fontes jurídicas então vigentes em terras lusas com o
54
fito de dar-lhes uma sistematização mínima.
Em 1446 foram elaboradas as Ordenações Afonsinas que estabeleceram
sistematicamente todo o Direito Português até o advento do Código Português de
1867. Posteriormente às Ordenações Afonsinas, outras Ordenações foram
elaboradas, as Manuelinas (1524) e as Filipinas (1603), contudo, apenas
conservavam e aditavam as disposições Afonsinas. 55
51
VILLELA, João Baptista. Família hoje. p. 71-86. In: BARRETTO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 73.
52
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, vol. VI: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 16.
53
FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família do novo milênio: uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as
perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 46.
54
MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o processo de codificação civil na
instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 109.
55
Ibidem, p. 109.
24
O Direito de Família Português constituiu-se sob forte influência do Direito
Romano e do Direito Canônico,
56
e o fato do Brasil ter sido colonizado por Portugal,
fez com que o Direito Brasileiro, na época do Império, conhecesse a princípio
apenas o casamento católico, uma vez que essa era a religião oficial. 57
Quanto à vigência das ordenações lusas no Direito Brasileiro, cumpre observar
que se estenderam até o Código Civil de 1916. 58 Tem-se, portanto, que:
O Direito Civil Brasileiro esteve, durante mais de 300 anos, regulado pelas
disposições do Livro IV das Ordenações Filipinas e por dezenas de outras
fontes casuísticas, tais como a Constituição do Arcebispo da Bahia
59
(doravante CAB), leis, alvarás, avisos, assentos e decretos.
A partir da incidência de alguns fatos históricos – valendo citar o Movimento
Cultural Renascentista, que se desenvolveu na Europa Ocidental ao longo dos
séculos XIV e XVI; as Reformas Religiosas, século XVI; e a Revolução Francesa,
século XVIII, – a natureza sacramental do casamento se desfez, influenciando para
o futuro reconhecimento pelo Estado do casamento civil, transferindo, assim, para
esse a regulamentação e o controle das uniões por meio do casamento civil. 60
Assim é que, em 1890, logo após a proclamação da República, é decretada a
separação entre Igreja e Estado. Em decorrência dessa separação, a Igreja Católica
deixou de ser a religião oficial do Brasil e como efeito o casamento religioso deixou
de ser reconhecido pelo Estado. 61
A Constituição da República Brasileira de 1891 passou a reconhecer o
casamento civil e a orientação adotada pela lei civil. Disciplinava a Constituição de
1891, no artigo 72 §4º, que a República só reconhecia o casamento civil, além disso,
no §7º do mesmo artigo supramencionado, deixava claro que nenhum culto, nem
56
GAMA, 2003, p. 364.
PEREIRA, C., 2002, p. 40.
MONTEIRO, 2003, p. 109.
59
Ibidem, p. 118.
60
GAMA, 2001, p. 19.
61
SEPARAÇÃO entre Igreja e Estado e liberdade de Cultos. A pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 1980. Disponível
em: http://www.permanencia.org.br/revista/politica/episcopado.htm Acesso em: 22 jun. 2006.
57
58
25
nenhuma Igreja gozariam de subvenção oficial, nem teriam relações de dependência
ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. Dessa forma o casamento
religioso não produzia efeitos civis.
Rodrigo da Cunha Pereira afirma que até a proclamação da República era
dispensável mencionar o casamento civil como o vínculo constituinte da família, uma
vez que, até então, as famílias se constituíam pelo casamento religioso que tinha
efeitos civis. 62
Somente com a Constituição de 1934 que o casamento religioso, perante o
ministro de qualquer confissão religiosa, e desde que não contrariasse a ordem
pública ou os bons costumes, passaria a produzir os mesmos efeitos que o
casamento civil,
63
vindo a consolidar-se em 1941, com a denominada Lei de
Proteção da Família, decreto-lei 3.200, de 19.04.1941. 64
Sobreleva considerar que o Código Civil Brasileiro de 1916, influenciado pela
Constituição de 1891, apenas reconheceu o casamento civil. Posteriormente, em
1973, a lei 6.01565 disciplinou o reconhecimento pelo Estado dos casamentos
religiosos, desde que esses respeitassem as normas civis.
Salienta-se que o Código Civil de 1916 reproduziu o modelo de um país
essencialmente rural, no qual os filhos legítimos representavam “mais um elemento
de força produtiva”. 66
Além disso, o Código conferiu à família vários atributos, tais como: estrutura
jurídica
hierarquizada;
patriarcal;
centralizada;
absolutista;
individualista;
patrimonialista; matrimonialista; e excludente - exclusão de legitimidade a qualquer
62
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2 ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 09.
63
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934. Disponível em:
https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao34.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
64
BARBOZA, 1997, p. 88.
65
BRASIL. Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, Dispõe sobre os Registros Públicos e dá outras providências. Disponível
em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil/Leis/L6015.htm Acesso em: 22 jun. 2006.
66
FACHIN, R., 2001, p. 46.
26
outra organização familiar que não se formasse pelo casamento;
67
além desses
atributos pode-se acrescentar a posição inferiorizada do afeto diante da moral e dos
bons costumes.
A família brasileira foi marcada pela valorização econômica e patrimonialista,
na qual o afeto mantinha posição insignificante diante da moral e dos bons
costumes, a manutenção dos laços conjugais se sobrepunha à felicidade pessoal
dos membros da família, pois “a desestruturação familiar significava, em última
análise, a desestruturação da própria sociedade”.
68
Portanto, a família almejava,
mesmo que através do sacrifício pessoal dos seus membros, a paz doméstica.
Segundo Luiz Edson Fachin, o interesse maior a ser tutelado não era o do
marido, e sim o da família enquanto instituição, pois no topo da pirâmide não se
encontrava o pai, mas a instituição. 69
Dessa forma, os interesses pessoais dos membros da família eram subjugados
aos interesses da instituição. “A família servia mais como defesa do patrimônio e
perpetuação do que propriamente um manancial de afetividade e prazer.” 70
A prova disso foi o fato do Código Civil de 1916 não ter admitido o divórcio,
considerando o casamento indissolúvel, confirmando a idéia de que a felicidade dos
membros da família não era o que fundamentava esta, pois, mesmo inexistindo o
afeto, o casamento não era passível de extinção.
67
GAMA, 2003, p. 365 e 366.
FARIAS, 2004, p. 9.
FACHIN, L., 1999, p. 33.
70
ANGELUCI, Cleber Affonso. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista Jurídica: órgão
nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica jurídica, ano 53, n. 331, p. 75-85, maio 2005. Porto Alegre: Notadez,
2005. p. 75.
68
69
27
Em 1977, a lei 6.51571 disciplinou a dissolução da sociedade conjugal pelo
divórcio, todavia continha um artigo que dispunha ser admitido uma única vez; em
1989, a lei 7.84172 revogou tal dispositivo.
O Código Civil de 1916 considerou a mulher, ao casar-se, relativamente
incapaz, se já não o era antes do casamento;
73
qualificou de forma discriminatória
os filhos, considerando-os: legítimos, quando nascidos de justas núpcias; naturais,
aqueles havidos de pessoas sem impedimento para casar; adulterinos, os tidos fora
do matrimônio; incestuosos, quando nascidos de pessoas unidas por vínculo de
parentesco próximo; adotivos, modalidade de parentesco fictício,74 que será
devidamente estudada em capítulo específico.
A família, considerada apenas aquela constituída pelo casamento, passou a
gozar de proteção Estatal75 e as Constituições de 1934,76 1937,77 194678 e 196779
passaram a conter explicitamente em seus artigos que a família era constituída pelo
casamento.
Verifica-se que os artigos referentes à constituição da família presentes nas
Constituições anteriores à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
foram expressos ao restringir o casamento como a única forma de se constituir
família. Dessa forma, “as relações sem casamento eram moral, social e civilmente
71
BRASIL. Lei n. 6515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento,
seus
efeitos
e
respectivos
processos,
e
dá
outras
providências.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6515.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
72
BRASIL. Lei n. 7841, de 17 de outubro de 1989. Revoga o art. 358 da lei n. 3071, de 1º de janeiro de 1916 – Código Civil e
altera dispositivos da lei n. 6515, de 26 de dezembro de 1977. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L7841.htm
Acesso em: 10 mar. 2006.
73
BARBOZA, 1997, p. 88.
74
LIRA, 1997, p. 31-32.
75
BARBOZA, op. cit., p. 88.
76
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934 Disponível em:
https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao34.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
77
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, decretada em 10 de novembro de 1937 Disponível em:
https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao37.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
“Art. 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas
serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos.”
78
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946 Disponível em:
https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao46.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
“Art. 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.”
79
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1967 Disponível em:
https://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constituicao67.htm Acesso em: 10 mar. 2006.
28
reprovadas,
atingindo
diretamente
os
filhos
que
eram
classificados
e
conseqüentemente discriminados em função da situação jurídica dos pais.” 80
Aos poucos a legislação esparsa tentou minimizar a discriminação relativa aos
filhos, neste sentido, cita-se: o decreto-lei 4.737, de 24.09.1942, dispondo a
possibilidade de o filho adulterino ser reconhecido depois do desquite; a lei 883, de
21.10.1949, que viabilizou o reconhecimento do filho havido fora do casamento,
desde que dissolvida a sociedade conjugal, além disso, essa lei também
reconheceu, aos filhos adulterinos, o direito, a título de amparo social, a metade da
herança do filho legítimo ou legitimado; a lei do divórcio, 6.515 de 26.12.1977, por
sua vez, estabeleceu que qualquer dos cônjuges poderia, por testamento cerrado,
reconhecer o filho havido fora do casamento, determinando o direito à herança,
independente da forma de reconhecimento do filho, em igualdade de condições, ao
mesmo tempo em que alterou o disposto no Código Civil de 1916 que concedia, ao
filho natural, reconhecido na constância do casamento, apenas a metade dos bens
do qual o filho legítimo ou legitimado tivesse direito. 81
Posteriormente, a lei 7.250, de 14.11.1984, determinou que, mediante sentença
transitada em julgado, o filho tido fora dos laços matrimoniais poderia ser
reconhecido pelo cônjuge separado de fato há mais de cinco anos ininterrupto. 82
No que diz respeito à incapacidade da mulher, a lei 4.121, de 1962, Estatuto
Civil da Mulher Casada, tratou de dar início à democratização referente à mulher,
colocando-a na posição de colaboradora do marido, mantendo este na chefia da
sociedade conjugal, o que, por outro lado, demonstrou não ter rompido totalmente
com o modelo do Código Civil de 1916, baseado na preservação da unidade familiar.
80
81
82
BARBOZA, 1997, p. 90.
LIRA, 1997, p. 32-36.
Ibidem, p. 36.
29
Percebe-se que a legislação brasileira lentamente dava início a uma
democratização nas relações de família, firmando-se com a promulgação da
Constituição de 1988.
Ressalta-se ainda que, se de um lado o legislador civil cedia aos fatos impostos
pela realidade social; de outro, mantinha-se tímido em relação ao concubinato, que
encontrou na legislação previdenciária e acidentária o primeiro reconhecimento legal
dos seus efeitos.
Neste
sentido,
a
jurisprudência
“desprezava
completamente
a
união
concubinária, só contemplando direitos patrimoniais calcados em vontade negocial,
sob falsa concepção de moral e inadequado sentido de defesa do casamento”,
83
resultando em toda uma construção jurisprudencial voltada ao direito das
obrigações.
O receio de se reconhecer as relações extramatrimoniais era de comprometer
a moral e os bons costumes da família legítima, matrimonializada, como se o fato de
ignorá-las contribuísse para que elas deixassem de existir! E mais, como se o fato
de não reconhecê-las como entidade familiar, lhes tirasse a sua condição de tal!
Gustavo Tepedino84 analisa que, embora a evolução doutrinária, jurisprudencial
e
legislativa
do
tratamento
jurídico
conferido
às
entidades
familiares
extramatrimoniais não seja nada linear; torna-se melhor compreendida quando se
analisam três fases distintas: a primeira estaria consagrada pelo Código Civil de
1916, através da rejeição pura e simples do concubinato, estigmatizando-o como
relação adulterina, passível de assimilação pela jurisprudência apenas no âmbito do
direito das obrigações; a segunda fase estaria delineada pelo legislador atribuindose ao concubinato – desde que não fosse adulterino – não mais uma mera relação
83
84
BARBOZA, 1997, p. 103.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 329.
30
obrigacional, conferindo-lhe efeitos jurídicos na esfera assistencial, previdenciária,
locatícia, dentre outras, podendo, inclusive ser considerada a fase de inserção do
concubinato no direito de família; a terceira e última fase compreenderia a recepção
do texto constitucional da união estável como forma de entidade familiar.
“À sombra de Constituições que só reconheciam como família a que se
constituía pelo casamento e de um Código Civil estruturado pelo e para o
casamento, alterava-se o tecido social no Brasil.”
85
As transformações sociais,
políticas, culturais e econômicas derivadas certamente de movimentos como: as
duas guerras mundiais; a Revolução de 1930; o período Vargas; a ditadura militar; o
movimento estudantil; sindical; hippie; a revolução sexual86 - ocasionando “a
profunda liberação de costumes ocorrida nas décadas de sessenta/setenta”;
questionamento e conseqüente declínio do poder religioso;
88
87
o
dentre outros,
influenciaram sobremaneira para que, ao longo do século, a face do direito de
família fosse alterada, culminando na promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
1.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS ENTIDADES FAMILIARES.
As necessidades sociais foram vagarosamente transformando o ideal de
família, motivando uma conscientização, gradativa e cautelosa, de que é na família
em que geralmente ocorrem as escolhas profissionais, afetivas, além de ser também
nesta que o indivíduo compartilha suas angústias, seus problemas e sucessos,
85
BARBOZA, 1997, p. 94.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. p. 91.
87
BARBOZA, op. cit., p. 94.
88
Ibidem, p. 94.
86
31
contribuindo para que o conceito de entidade familiar fosse aos poucos moldado e
ampliado conforme a realidade social.
Amparado na necessidade de se adequar a lei à realidade da sociedade que,
em cinco de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição da República
Federativa do Brasil.
A constitucionalização das relações de família determinou novos contornos ao
direito de família, tendo como conseqüência o declínio de características presentes
na família brasileira até então. Nesse sentido, a felicidade individual dos membros
da família - em especial a felicidade e o bem estar da criança e do adolescente –
passou a se sobrepor à supremacia da valorização econômica, patrimonialista e da
manutenção dos laços conjugais.
A base da família passou a ser a afetividade entre seus membros, a assistência
mútua, a solidariedade recíproca, o carinho e o aconchego do lar, embora “sua
origem e desenvolvimento não estivessem sempre atrelados a este cunho
sentimental e assistencial.” 89
O casamento deixou de ser a única forma de constituir família. A Constituição
reconheceu outras formas de entidades familiares além da família matrimonializada,
que, até então, devido a uma “proposital omissão normativo-constitucional”
90
não
existia no mundo jurídico, apesar da existência no mundo dos fatos, o que comprova
que a omissão legislativa não impede a existência de outras formas de família, bem
como não contribui para preservar a moral e os bons costumes. Serve, apenas,
como forma de exclusão, de marginalização social, inclusive de crianças e
adolescentes que façam parte dessas famílias marginalizadas.
89
90
ANGELUCI, 2005, p. 75.
GAMA, 2001, p. 29.
32
Portanto, o fato de o casamento ter sido, durante séculos, a única forma de se
constituir família não inibiu, nem impediu que outras espécies de família fossem
formadas. Contudo, apesar dessas outras espécies de famílias terem sido ignoradas
no âmbito jurídico, “na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da
antropologia, dentre outros saberes, a família não se resumia à constituída pelo
casamento.” 91
Destarte, com a Constituição de 1988 outras formas de família, além da família
matrimonial, foram reconhecidas explicitamente como entidades familiares; “da
família matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente
porque afeto não é um dever e a coabitação uma opção, um ato de liberdade.” 92
A família instaura-se prioritariamente como um núcleo de apoio e
solidariedade. Percebe-se, em conseqüência, no Direito de Família, um
93
reconhecimento cada vez mais amplo dos efeitos jurídicos do afeto.
O aumento dos grupos familiares “ao lado da família cuja Constituição foi
selada pelo matrimônio, outras, fundadas em relações de afeto ou na existência de
vínculos de filiação passam a integrar o elenco.” 94
O que significa que o Estado passou a reconhecer “que as relações sexuais
legítimas (permitidas), não são mais, somente, aquelas praticadas dentro do
casamento.”
95
“A pluralidade sucedeu a exclusividade anterior.”
96
Essa pluralidade
permite que os membros da família possam escolher o modelo que atenda melhor
às necessidades e aos interesses de cada integrante, contribuindo para a realização
pessoal de seus membros, tornando-se inquestionável que a estrutura familiar
passou a ser fundamental para a formação da personalidade humana.
91
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de
Direito de Família, ano 3, n. 12, p. 40-55, jan./mar. 2002. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2002. p. 40.
92
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 98.
93
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais. Belo Horizonte: Del Rey,
2004. p. 27.
94
CARBONERA, Silvana Maria. Guarda de filhos na família Constitucionalizada. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
2000. p. 29.
95
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 148. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view
Article/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
96
CARBONERA, op. cit., p. 29.
33
Nesse sentido, Gustavo Tepedino coloca que “merecerá tutela jurídica e
especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a
dignidade e a realização da personalidade de seus membros.” 97
A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é uma cláusula geral que possui
direitos fundamentais que a consubstanciam, como os direitos à igualdade, à
liberdade, à intimidade; além disso, proíbe qualquer forma de discriminação,
inclusive o tratamento de modo diverso às pessoas em virtude de sua orientação
sexual. 98
Assim é que:
...o reconhecimento da pluralidade de formas de constituição de família é
uma realidade, da mesma forma que o reconhecimento de direitos de
igualdade, respeito à liberdade e à intimidade de homens e mulheres,
assegurando a toda pessoa o direito de constituir vínculos familiares e de
manter relações afetivas com outras pessoas, sem qualquer
99
discriminação.
O novo perfil da família, instaurado após a Constituição de 1988, juntamente
com as transformações culturais, sociais e políticas da sociedade - influenciadas por
fatores como, por exemplo, “o ingresso da mulher no mercado de trabalho, os meios
contraceptivos e os avanços da engenharia genética no campo da tecnologia”
100
-
contribuíram para que fossem abandonadas “todas as posições doutrinárias que, no
passado, vislumbraram em institutos do direito de família uma proteção supraindividual.” 101
Foram explicitamente reconhecidas como entidade familiar, além da família
matrimonial, a união estável e a família monoparental (art. 226, §3º e §4º da
CRFB/1988).
97
TEPEDINO, 2001, p. 329.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A união de pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional.
Revista Trimestral de Direito Civil, ano 1, vol. 1, p. 89-112, jan./mar. 2000. Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 97.
99
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo; SCHIOCCHET, Taysa. O reconhecimento jurídico das uniões estáveis homoafetivas no
direito de família brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz (Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões Controvertidas no
novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. p. 319.
100
GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. p. 24.
101
TEPEDINO, 2001, p. 328.
98
34
A família matrimonial constitucionalizada nada mais é senão aquela advinda do
casamento, civil ou religioso, uma vez que a Constituição conferiu ao casamento
religioso efeitos civis (art. 226, §2º da CRFB/1988).
A união deve fundar-se no afeto, logo a eventual quebra desse viabiliza
separações e divórcios, levando muitos a acreditarem que a família está banalizada
em virtude da sua característica, às vezes, efêmera. Todavia, cada vez mais as
relações familiares fundam-se no afeto, tornando-se, por causa disso, mais
autênticas e mais propensas à realização da felicidade de seus membros, portanto,
mais do que nunca, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade governam as
relações familiares.
Por outro lado, essa aparente “crise” da família – juntamente com a aceitação
do sexo fora do casamento, da desvalorização da virgindade da mulher, do
aparecimento dos métodos contraceptivos, da evolução da engenharia genética que
viabilizou a existência de sexo sem casamento e de procriação sem sexo –
demonstra um novo paradigma da família, “num concreto desafio ao Direito e à
Sociedade no sentido de conviverem com paradoxos e inquietações e,
simultaneamente, abrindo novas perspectivas.” 102
A família monoparental é aquela formada por pai ou mãe e descendentes. O
parágrafo quarto do artigo 226 da Constituição dispõe que: “Entende-se, também,
como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos seus pais e seus
descendentes.”
A palavra “também” está mais para demonstrar que o rol do artigo 226 é
apenas exemplificativo, do que para configurar que se trata de um rol taxativo. Na
dúvida, deve-se buscar soluções que respondam melhor ao anseio da sociedade,
102
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Novas entidades familiares. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 4, vol. 16, p. 03-30,
out./dez. 2003. Rio de Janeiro: Padma, 2003. p. 30.
35
respeitando-se os princípios da dignidade da pessoa humana,
103
da igualdade e da
liberdade – inclusive da liberdade de orientação sexual.
Data vênia ao posicionamento de Guilherme Calmon,
104
Rodrigo Lira,
105
dentre outros que defendem a previsão Constitucional taxativa de apenas três
formas de entidades familiares – matrimonial, monoparental e união estável (entre
homem e mulher) - a presente obra não compartilha com tal posicionamento.
Assim é que, em 1990 o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (ONU), definindo em seu preâmbulo o conceito de família:
Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e
ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus
membros, e em particular das crianças, deve receber a proteção e
assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas
106
responsabilidades dentro da comunidade.
A partir desse conceito, fica claro que a interpretação do artigo 226 caput da
Constituição de 1988 não passa de uma cláusula geral de inclusão, posto que não
há referência a determinado tipo de família, 107 diferente das Constituições anteriores
que, como já fora analisado, continham expressamente que “a família se constituía
pelo casamento.”
Desse modo, se pretendesse o constituinte de 1988 elencar, de forma taxativa
as diversas formas de entidades familiares, o teria feito de forma que não restassem
dúvidas acerca de qualquer espécie de exclusão, da mesma forma que não deixou
lacunas passíveis de dúvidas nas Constituições anteriores. “Sem dúvida, então, a
única conclusão que atende aos reclamos constitucionais é no sentido de que o rol
não é – e não pode ser nunca! – taxativo (...).” 108
103
LÔBO, 2002, p. 45.
GAMA, 2001.
LIRA, 1997.
106
CONVENÇÃO Internacional sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php
Acesso em: 23 mar. 2006.
107
LÔBO, op. cit., p. 44.
108
FARIAS, 2004, p. 10.
104
105
36
E, ainda, se o constituinte cogitasse restringir o que seria considerada entidade
familiar, certamente teria incluído no caput do artigo 226 as três formas de entidade
familiar: “A família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, têm especial
proteção do Estado”
109
, o que não foi o caso; e, mesmo se fosse, estaria a
Constituição indo contra seus próprios preceitos: igualdade, liberdade, privacidade,
intimidade e dignidade da pessoa humana.
Portanto, não houve apenas uma inclusão de determinadas entidades
familiares, mas o reconhecimento da pluralidade de entidades familiares. Até
porque, não parece possível que a dignidade da pessoa humana possa estar
assegurada quando a pessoa não se encontrar inserta no seio de uma família.
Logo, não parece racional que o constituinte taxasse os tipos de entidades
familiares; estaria ele invadindo um espaço privado, que têm por base o afeto e a
vida privada que são constitucionalmente invioláveis (CRFB/1988, art. 5º, caput, e
inciso X), sendo passiveis de tutela jurisprudencial apenas nos casos de lesão ou
ameaça de lesão (CRFB/1988, art. 5º, XXXV). 110
Além do mais, a relação formada pela “convivência entre parentes ou entre
pessoas, ainda que não-parentes, dentro de uma estruturação com identidade de
propósito”
111
como, por exemplo: a formada por avô e/ou avó com seu(s) neto(s); a
constituída pela madrasta e seu enteado, tendo em vista o falecimento do pai e da
mãe biológicos; a formada por tios e sobrinhos, sem qualquer vínculo jurídico,
amparados no afeto; a formada por irmãos que ficaram órfãos ou foram
abandonados, dentre outras, são nítidos exemplos de que não existem apenas as
três espécies de famílias explicitamente previstas na Constituição.
109
LÔBO, 2002, p. 45.
TEPEDINO, Gustavo. Cidadania e Direitos da Personalidade. Disponível em: http://www.unibrasil.com.br/publicacoes/02/A.
pdf Acesso em: 17 fev. 2006.
111
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 2 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 47.
110
37
Neste sentido dispõe Sérgio Resende de Barros:
...ainda que de modo expresso não hajam albergado outras formas de
entidade familiar, não virão opor-se ao reconhecimento legislativo, ou ao
menos doutrinário e jurisprudencial, de novas formas de entidade familiar
não previstas na enumeração constitucional do art. 226 e seus parágrafos,
tais como a família anaparental ou amparental, que se lastreia no afeto
familiar, mesmo sem contar com a presença de pai ou mãe, e a família
homoafetiva, que também se lastreia no afeto familiar, mesmo sem conjugar
um homem com uma mulher. 112
Quase todas as espécies de entidades familiares, apesar de inexistirem
expressamente, parecem não causar polêmicas; mas, ao contrário, a família
formada por pessoas do mesmo sexo – como será ainda estudado -, denominada
por Maria Berenice Dias113 como família homoafetiva, tem trazido constantes
discussões e um “rumor” em grande parte da sociedade, quer seja por aqueles que
a defendem, quer seja por aqueles que a ignoram ou repugnam. O que se deve,
indubitavelmente, ao preconceito que ronda a sociedade. Nesse âmbito Luiz Edson
Fachin relata que “a presença dessas pessoas no Direito é, a rigor, a história de uma
ausência,” 114 questão que será devidamente exposta.
No que diz respeito à última previsão expressa da Constituição quanto as
espécies de entidades familiares, encontra-se a união estável, que nada mais é
senão “aquele estado de convivência duradoura, pública e contínua, de um homem
e uma mulher, sem vínculo de casamento”, 115com a intenção de formar uma família,
na qual inexiste impedimento para o casamento, com exceção da união estável de
pessoas, em que um, ou ambos os conviventes estão apenas separados de fato de
um casamento anterior.
112
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais aos operacionais. p. 607-620. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de
Família. Belo Horizonte: Del Rey, IBDFAM, 2004. p. 616.
113
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006.
114
FACHIN, Luiz Edson. Direito além do Novo Código Civil: Novas Situações Sociais, Filiação e Família. Revista Brasileira de
Direito de Família, ano 5, n. 17, p. 07-35, abr./maio. 2003. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2003. p. 32.
115
LIRA, 1997, p. 40.
38
Contudo, mesmo tendo a Constituição conferido expressamente proteção às
uniões estáveis, houve problemas sobre a sua auto-aplicabilidade, resultando na
publicação da lei n.º 8.971, de 29.12.1994 - que regula o direito dos companheiros a
alimentos e a sucessão - e da lei n.º 9.287, de 10.05.1996 - que regulamentou o
dispositivo constitucional referente à união estável.
Percebe-se, portanto, que mesmo a Constituição tendo reconhecido a união
estável expressamente em seu texto, não bastou para sua aplicabilidade. Logo, a
melhor e mais justa interpretação a ser feita do artigo 226 da Constituição de 1988 é
que ele apenas dispôs de forma exemplificativa as entidades familiares, não se
ateve a taxá-las, pois estaria desrespeitando as diversidades sociais, ao mesmo
tempo em que se estaria excluindo outras formas de entidades familiares não
dispostas no artigo 226.
Seria uma violação aos próprios preceitos constitucionais, posto que todos,
indistintamente, são iguais perante a lei e têm garantidos os direitos à privacidade, à
intimidade, à liberdade – incluindo aqui a liberdade para formar a entidade familiar
que melhor atenda à dignificação dos seus membros -, bem como à realização da
felicidade, que viabilizará a promoção da dignidade de cada um de seus membros.
É na família que se inicia a moldagem das potencialidades dos seus membros,
com o propósito da convivência em sociedade e da busca da realização pessoal.
Tornar-se-ia contraditória a Constituição se, ao mesmo tempo em que estabelece
um Estado Democrático de Direito – baseado na igualdade, na liberdade e na
dignidade da pessoa humana - deixasse à margem determinadas formas de
entidades familiares.
39
Até porque, a “afirmação da dignidade de pessoa humana impede qualquer
interpretação restritiva das possibilidades de entidade familiar que importaria, no
final, na diminuição da tutela do homem.” 116
Ademais, não pode existir uma tipicidade fechada de hipóteses tuteladas,
vez que a Constituição de 1988 priorizou a tutela de valores que elencou
como prioritários. E o mais relevante entre todos é o valor da pessoa, que
só encontra limites na realização de seus interesses e de seus pares, tudo
117
em prol da concretização plena de sua dignidade.
O parágrafo oitavo do artigo 226 da Constituição estabelece que é dever do
Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um de seus membros,
consagrando definitivamente que a felicidade e a integridade de seus membros
dentro do seio da família são meios de se alcançar a dignidade humana; rompendo
com a idéia de proteção e preservação da instituição familiar em detrimento do bem
estar de seus membros, passando a assegurar a assistência à família na pessoa de
cada um dos que a integram, deixando claro que a dignidade humana dos membros
da família passa a ser garantida Constitucionalmente.
A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da
realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é
constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e
desenvolvimento da pessoa humana. 118
Desta feita, com a constitucionalização das relações familiares, deixou-se de
enfocar a preservação da unidade familiar, para se voltar à preocupação da
felicidade individual de seus membros, o que se denominou de repersonalização das
relações de família, o que significa “valorizarem-se os interesses da pessoa humana
mais do que o patrimônio o qual detenham.” 119
116
FARIAS, Cristiano Chaves. A família da pós-modernidade: mais que fotografia, possibilidade de convivência. Disponível em:
http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/civil_familia/artfamilia4.pdf Acesso em: 20 fev. 2006.
117
TEIXEIRA, 2003, p. 09.
118
LÔBO, 2002, p. 44.
119
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Aspectos sociais e jurídicos relativos à família brasileira – de 1916 a 1988. Revista Crítica
Jurídica, n. 17, p. 241-250, ago. 2000. p. 245.
40
Ademais,
“a
repersonalização
das
relações
familiares
significa
uma
preocupação com o desenvolvimento da personalidade das pessoas, sendo
fundamental, nesse caminhar, o núcleo afetivo do agrupamento humano.” 120
Neste sentido, prevalece na cultura brasileira na primeira década do século XXI
o modelo que “a socióloga Andrée Michel chamou, com toda propriedade, de
eudemonista,”
121
no qual a família é marcada pela busca de sua própria realização
e de seu próprio bem-estar.
Acredita-se, portanto, que a Constituição previu expressamente apenas três
formas de entidades familiares, mas que outras existem e devem – da mesma forma
que as expressas no texto Constitucional – ser tuteladas pelo Estado; a exclusão
destas no mundo jurídico não se deve propriamente ao texto Constitucional, mas, à
interpretação do mesmo. No mesmo sentido dispõe Paulo Luiz Netto Lobo: “A
exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.” 122
120
121
122
MATOS, 2004, p. 16.
VILLELA, 1997, p. 72.
LÔBO, 2002, p. 44.
PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS.
A concepção é o marco indelével do que chamamos de adoção...
A mais eloqüente prova desse fato está no nascimento de Jesus, que
independeu da relação sexual entre a Virgem Maria e São José, fruto do
Divino Espírito Santo, para mostrar ao mundo que não há necessidade do
casamento, do congresso carnal e de todas as convenções do homem para
123
que se conceba um pequenino como filho.
As primeiras referências acerca do instituto da adoção que se têm notícia foram
encontradas no Código de Hamurabi e no Código de Manu.
124
O Código de
Hamurabi (1728-1686 antes de Cristo) legislou sobre a adoção nos artigos 185 a
193.125 O Código de Manu já dispunha que: “Aquele a quem a natureza não deu
filhos, pode adotar um para que as cerimônias fúnebres não cessem”. 126
Todavia, expandiu-se de forma notória no Direito Romano fundamentando o
desenvolvimento do instituto da adoção no direito brasileiro;
127
tornando-se
prudente apresentar a origem da adoção no Direito antigo, Romano, uma vez que a
legislação brasileira sofreu forte influência deste direito.
123
LIBÓRNI, Siqueira. Adoção: doutrina e jurisprudência. 10. ed. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 2004. p. 30.
PEREIRA, C., 2002, p. 229-230.
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo; AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A Releitura da Adoção sob a Perspectiva da Doutrina
da Proteção Integral à Infância e Adolescência. Revista Brasileira de Direito de Família, ano 5, n. 18, p. 30-47, jun./jul. 2003.
Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2003. p. 32.
126
FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção Internacional. Curitiba: Juruá, 2002. p. 15.
127
PEREIRA, C., op. cit., p. 229-230.
124
125
42
A palavra adoção possui o sentido etimológico de origem latina, adoptio, que
significa dar seu próprio nome a, pôr um nome em e, em linguagem mais corriqueira,
o sentido de acolher alguém. 128
Esse sentido sempre foi o mesmo, e nem poderia ser diferente, porém, o que
fundamentou a origem da adoção no Direito Romano está bem distante do que a
tem fundamentado desde aproximadamente a metade do século XX até a primeira
década do século XXI. A legislação deixou de visar ao interesse da família adotiva e
começou a se preocupar em inserir a criança e o adolescente em uma família
substituta, capaz de promover-lhes a dignidade humana, que nem a rua, nem as
instituições são capazes de lhes oferecerem.
Dessa forma, serão apresentadas no presente tópico a origem da adoção no
Direito Romano, suas principais influências no Direito Brasileiro, especificamente no
Código Civil de 1916 e nas leis posteriores que disciplinaram o instituto.
2.1 A ORIGEM DA ADOÇÃO NO DIREITO ROMANO.
Constatou-se, no início do trabalho, que o casamento no direito greco-romano
tinha como objetivo a procriação e que essa, por sua vez, tinha por finalidade
inviabilizar a extinção da família, perpetuando, assim, o culto aos antepassados.
Logo, o que uniu os membros da família antiga greco-romana foi a religião
doméstica, e que também, provavelmente, ditou as regras do modo de viver dessas
famílias. 129
Dentre essas regras impostas pela religião doméstica encontra-se a
preocupação de extinção da família, uma vez que esta tinha por finalidade perpetuar
128
129
LIBERATI, Wilson Donizeti. Adoção Internacional. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 13.
COULANGES, s/d, p. 55.
43
o culto aos antepassados. Entretanto, apenas o nascimento do filho homem poderia
garantir essa perpetuidade, sendo admitido, na sua impossibilidade, o divórcio e a
adoção.
O dever de perpetuar o culto doméstico foi o princípio do direito da adoção
entre os antigos.
130
Portanto, a adoção servia como forma de velar pela
conservação da família, pela continuidade da religião doméstica, pela não cessação
das ofertas fúnebres, pelo repouso dos manes dos antepassados. 131
O Direito Romano conheceu três tipos de adoção: como ato de última vontade
(adoptio per testamentum); adoção diretamente realizada entre os interessados (ad
rogatio), pela qual o adotado, capaz, desligava-se de sua família, tornando-se um
herdeiro do culto da família adotiva; e a adoção de um incapaz, onde a família
adotiva recebia o adotando por vontade própria e consentimento do representante
deste (alieni iuris). 132
Fustel de Coulanges133 afirmava que o fato da finalidade da adoção ser a de
inviabilizar a extinção do culto, só era permitido adotar quem não tinha filhos.
Da mesma forma que o filho biológico entrava na família, por meio de ato
religioso que tinha por finalidade purificá-lo e iniciá-lo no culto doméstico, também se
fazia com o filho adotado: por meio da cerimônia sagrada o filho adotado era
admitido no lar e associado à religião. 134
Observa-se que a origem da adoção não tem nada a ver com o interesse do
adotado, mas tão somente tinha como finalidade cumprir o que a religião impunha
como dever dos vivos: satisfazer as necessidades dos mortos, através da
perpetuação do culto aos antepassados.
130
COULANGES, s/d, p. 73.
Ibidem, p. 74.
132
PEREIRA, C., 2002, p. 230.
133
COULANGES, op. cit., p. 74.
134
Ibidem, p. 75.
131
44
Assim, a princípio, o filho adotado não poderia retornar à família em que
nascera. Outrossim, a lei facultava-lhe o retorno sob a condição de deixar, na família
adotiva, um filho seu, pois entendiam que, uma vez assegurada a perpetuidade da
família, nada impedia que o filho adotivo dela saísse.
135
Ratifica-se que não era permitido que uma mesma pessoa cultuasse mais de
um deus e, sob este mesmo raciocínio, não era possível que o filho adotivo,
herdando da família do adotante, herdasse também da família natural. 136 Da mesma
forma, o filho adotado que retornava à família natural, renunciando a família adotiva,
renunciava também a herança desta. 137
O legislador não aceitava a possibilidade de uma mesma pessoa adquirir duas
heranças, isto porque dois cultos domésticos também não podiam ser servidos pela
mesma pessoa.
138
Fica claro que tudo girava em torno da religião, do culto,
inclusive a adoção.
A bíblia também relata casos de adoção como a adoção de Moisés pela filha
de Faraó, no Egito139; de Ismael por Sara, filho de seu marido Abrão com sua
escrava Agar140, que posteriormente foi revogada141; dos filhos da escrava Bala, por
Raquel sua Senhora, filhos estes do marido de Raquel142; de Efraim e Manassés por
seu avô Jacó.143
Caio Mário da Silva Pereira destaca o fato de que, a princípio, somente o varão
podia adotar, mas “à medida que se enfraquecia o fundamento religioso, foi-se
135
COULANGES, s/d, p. 76.
Ibidem, p. 113.
137
Ibidem, p. 113.
138
Ibidem, p. 114.
139
BÍBLIA Sagrada. 96. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1995. Livro do Êxodo 2:10. p. 101-102.
140
Ibidem, Livro de Gênese 16:1-3. p. 61.
141
Ibidem, Livro de Gênese 21:9 -10. p. 66.
142
Ibidem, Livro de Gênese 30:1-7. p. 77.
143
Ibidem, Livro de Gênese 48: 5. p. 97.
136
45
abalando esta exclusividade, até que, já no século VI, o direito justinianeu
franqueou-o à mulher que houvesse perdido os filhos.” 144
No século V depois de Cristo aconteceu a invasão dos bárbaros no Império
Romano. 145 Mesmo com a invasão “não se deixou de praticar a adoção, posto que
por motivação diversa, em que prevalecia o desejo de perpetuar num guerreiro
valente os feitos d’armas do adotante.”
146
Com o fim do Império Romano no
Ocidente termina a Idade da Civilização Ocidental ou da Antiguidade Clássica,
dando início à Idade Média. 147
Na Idade Média, contraditoriamente o instituto da adoção desapareceu, graças
ao apogeu do Cristianismo. A Igreja só reconhecia a família e os filhos que
adviessem do casamento e, assim, via a adoção nociva aos princípios religiosos. Os
sacerdotes viam-na como um meio de suprir o casamento e a constituição de família
legítima e, ainda, como uma forma de fraudar as normas que proibiam o
reconhecimento de filhos adulterinos. 148
Coube à França, no início do séc. XIX, com o Código de Napoleão, ressuscitar
o instituto da adoção, com nítido caráter sucessório, pois o Imperador se interessava
em adotar um dos seus sobrinhos para fazê-lo herdeiro do trono, uma vez que sua
esposa Josefina era estéril. 149
O Código Francês por sua vez só reconheceu a adoção em relação aos
maiores, exigindo por parte do adotante que tivesse alcançado a idade de cinqüenta
anos, “tornando a adoção tão complexa e as normas a respeito tão rigorosas, que
144
PEREIRA, C., 2002, p. 230.
SÚMULA
da
história
de
Portugal.
Introdução
à
história
de
Santiago.
Disponível
em:
http://terrasdesantiago.planetaclix.pt/intrhistsantiagosumula01.htm Acesso em: 06 abr. 2006.
146
PEREIRA, C., op. cit., p. 230.
147
SÚMULA
da
história
de
Portugal.
Introdução
à
história
de
Santiago.
Disponível
em:
http://terrasdesantiago.planetaclix.pt/intrhistsantiagosumula01.htm Acesso em: 06 abr. 2006.
148
GRISARD FILHO, Waldir. A adoção depois do novo Código Civil. Revista dos Tribunais, ano 92, vol. 816, p. 26-38, out.
2003. São Paulo: RT, 2003. p. 28.
149
Ibidem.
145
46
pouca utilidade passou a ter, sendo rara a sua aplicação.“150 Essas dificuldades
encontradas no Código de Napoleão são igualmente encontradas em todas as
legislações da época. 151
Tanto é que em Portugal a adoção era referendada pelas Ordenações Reinós,
porém, sua utilização era praticamente inexistente e, em conseqüência do desuso,
só foi legislada pelo Código Civil de 1966. 152 Mesmo assim, o Código de Napoleão e
as Ordenações do Reino de Portugal influenciaram na futura sistematização do
instituto no Brasil.
2.2 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E AS LEIS POSTERIORES ANTERIORES À
CONSTITUIÇÃO DE 1988.
Apesar de se ter notícia de que a Consolidação das Leis Civis, elaborada pelo
jurista Carlos de Carvalho,153 fez referências a respeito da adoção nos artigos 1.635
e 1640,154 pode-se afirmar que a adoção só foi efetivamente sistematizada no Direito
Brasileiro com o advento do Código Civil de 1916, em seus artigos 368 a 378;
ocasionando o nascimento de uma relação jurídica que tinha por finalidade dar filhos
a quem não os pôde ter. 155
Levando-se em consideração que o referido Código sofreu forte influência do
Código de Napoleão, Clóvis Beviláqua dispôs que “a adoção destina-se a suprir a
falta de filhos. A lei só a faculta a quem não teve a ventura de os possuir, pelo
casamento.”156
150
WALD, 2000, p. 199.
Ibidem, p. 200.
MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Direitos da Criança e Adoção Internacional. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002. p. 29 e 30.
153
LIBÓRNI, 2004, p. 39.
154
PEREIRA, Tânia da Silva. Da adoção. p. 151-176. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.); PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.).
Direito de família e o novo Código Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 157.
155
PEREIRA, C., 2002, p. 231.
156
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. II. 10. ed. atual. por Aquilles Beviláqua. Rio
de Janeiro: Paulo de Azevedo LTDA, 1954. p. 270.
151
152
47
O artigo 368 condicionava a adoção só aos maiores de cinqüenta anos, sem
filhos, legítimos ou legitimados. O argumento utilizado para justificar essa idade
encontrava-se no fato de que a adoção era vista como um meio supletivo de obter
filhos e não uma forma natural de constituir família. Ademais, as pessoas antes dos
cinqüenta anos que tivessem a intenção de ter filhos deveriam casar-se, até porque
depois dessa idade, afirmava Beviláqua, “os casamentos não são para desejar.” 157
Havia também a condição de ser o adotante, pelo menos, dezoito anos mais
velho que o adotado, pressupondo que essa distância de idade supunha maior
experiência e era suficiente para infundir respeito. 158
O artigo 370 do Código dispunha que “ninguém pode ser adotado por duas
pessoas, salvo se forem marido e mulher.”
159
Segundo Clóvis Beviláqua, esta
disposição relacionava-se ao fim que a adoção se propunha: imitar a natureza e, ao
mesmo tempo, suprir-lhe uma deficiência. 160
O artigo 371 tratava da adoção pelo tutor e pelo curador que só poderia
efetivar-se após dar contas da administração e saldar o alcance; o artigo 372 referiase à indispensabilidade do consentimento da pessoa cuja guarda estivesse o
adotando menor ou interdito.
161
Ressalta-se que, conforme dispôs Clóvis Beviláqua,
“o Código supôs que o consentimento do adotado, quando maior e sui juri era tão
intuitivo que se dispensou de mencioná-lo.” 162
O Código Civil de 1916 admitia ao adotado, quando menor, ou interdito,
desligar-se da adoção no ano imediato em que cessasse a menoridade ou interdição
(art. 373);
viabilizava, também, a dissolução da adoção por manifestação de
vontade das partes ou por ingratidão do filho comprovada em processo judicial (art.
157
BEVILÁQUA, 1954, p. 270.
Ibidem, p. 271.
Ibidem, p. 271.
160
Ibidem, p. 272.
161
Ibidem, p. 271-272.
162
Ibidem, p. 273.
158
159
48
374 I e II, respectivamente); efetivava a adoção por escritura pública, não se
admitindo condição ou termo (art. 375); só possibilitava existência de vínculo
parental entre adotado e adotante, não se estendendo aos demais familiares (art.
376); não extinguia os direitos e deveres resultantes do parentesco natural, exceto o
pátrio poder que era transferido do pai natural para o pai adotivo (art. 378). 163
Salienta-se para o fato de que não havia proibição para que se desse a adoção
por ascendentes e irmãos do adotando.
A adoção produzia efeitos, mesmo que sobreviessem filhos ao adotante, salvo
se ficasse comprovado que o filho estava concebido no momento da adoção (art.
377).
Assim, caso ficasse comprovado que o filho superveniente foi concebido no
momento da adoção, essa seria nula. Ao passo que, se sobreviessem filhos a
adoção, o direito do adotado a suceder restringia-se à metade do que caberia ao
filho legítimo (art. 1605).
... o resguardo dos interesses do nascituro impedia a manutenção da
adoção, pois esta seria prejudicial ao filho legítimo do adotante, além do que
o adotante teria praticado ato em fraude à lei por saber da existência de
164
descendência ...
Dessa forma, o Código Civil de 1916 regulou o instituto da adoção com
natureza privada, imputando-lhe a finalidade de dar filhos a quem a natureza não
dera.
Alguns autores como Orlando Gomes165 dispunham que não se podia atribuir à
adoção a concepção privatista ao ponto de conduzir a interpretação de que se
tratava, simplesmente, de um contrato. Posto que, apesar de formar-se como todo
contrato, através do concurso de vontades, as partes não tinham liberdade “para a
163
164
165
BEVILÁQUA, 1954, p. 274-277.
GAMA, 2003, p. 590.
GOMES, Orlando. Direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 371.
49
regulação dos seus efeitos, devendo, necessariamente, aderir ao esquema
preestabelecido em lei.” 166
Em 1927, foi criado o primeiro Código de Menores, regulamentando a situação
dos menores abandonados. Contudo, tal Código foi omisso quanto às normas sobre
adoção. 167
A lei 3.133/57168 alterou os artigos 368, 369, 372, 374 e 377 do Código Civil de
1916, exercendo significativas modificações no instituto, dentre as quais: a
possibilidade de adotar-se aos 30 anos; a retirada da exigência de que só os casais
sem filhos podiam adotar; a imposição da condição dos casados de adotarem desde
que transcorridos cinco anos de casamento; a diferença de idade entre adotante e
adotado passou a ser de 16 anos; a dissolução do vínculo da adoção nos casos em
que era admitida a deserdação ao invés do que dispunha o inciso II do artigo 374 do
texto original do Código Civil de 1916;
169
a inclusão do dispositivo que proibia a
adoção sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal sendo este
incapaz ou nascituro.
No caso do menor encontrar-se em estado de abandono, sem pais ou
responsáveis para manifestar o consentimento na adoção, havia necessidade de
que alguém manifestasse esse consentimento. Assim, o juiz nomearia um curador
que deveria comparecer perante o tabelião, com a finalidade de manifestar a
vontade do menor, efetivando a adoção por escritura pública.
170
Ressalta-se,
porém, que essa nomeação do curador era precedida de processo regular, no qual o
juiz avaliaria se a adoção era de interesse do menor. 171
166
GOMES, 2002, p. 371.
CAVALLIERI, Alyrio. Direito do Menor. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1978. p. 281-323.
Ibidem, p. 329.
169
Ibidem, p. 329.
170
Ibidem, p. 88-89.
171
Ibidem, p. 90.
167
168
50
Observa-se que, quanto aos direitos sucessórios, o artigo 377 passou a
determinar que, nos casos do adotante ter filhos legítimos, legitimados ou
reconhecidos, a relação de adoção não envolveria a de sucessão hereditária,
172
demonstrando, ainda, preconceito e estigmatização em relação aos filhos adotivos,
evidenciando a discriminação entre a filiação biológica e adotiva e a finalidade pela
qual a adoção se efetivava: dar filhos a quem não os pôde ter.
A condição aos casados de lhes serem permitidas as adoções vinculava-se à
necessidade do decurso de cinco anos de casamento, refletindo a intenção do
legislador de que este tempo seria importante para caracterizar que os casais “não
mais teriam normalmente filhos;”173 por outro lado, a lei retirou o requisito de que
apenas casais sem filhos podiam adotar.
Assim, ao mesmo tempo em que a lei trouxe exclusão absoluta do direito de
suceder do adotado, quando este concorresse com filho legítimo, legitimado, ou
reconhecido do adotante; permitiu a adoção por pessoas maiores de 30 anos,
independente da existência de prole legítima, legitimada ou reconhecida, facilitando,
de certa forma, que mais pessoas fossem adotadas.
Em 1965, sob inspiração da legislação francesa,
174
criou-se a legitimação
adotiva, lei 4.655. Essa lei condicionava determinados requisitos quanto aos
legitimados adotivos, deveriam ser todos menores de sete anos e estar dentre as
seguintes situações: exposto, conforme o Código de Menores de 1927; abandonado;
dado pelos pais com declaração por escrito; órfão, não reclamado por parentes por
mais de um ano; filho natural, reconhecido apenas pela mãe impossibilitada de
172
173
174
CAVALLIERI, 1978, p. 329.
WALD, 2000, p. 201.
Ibidem, p. 203.
51
prover a sua criação; e desde que quando completou esta idade (sete anos) já se
encontrasse sob a guarda dos legitimantes. 175
Ressalta-se que o período de guarda mínimo era de três anos, computava-se,
contudo, qualquer período de tempo desde que a guarda tivesse se iniciado antes
do menor completar sete anos.
Essa legitimação ocorria praticamente da mesma forma que se legitimavam os
filhos biológicos.
Tratava de instituto que tirava algo da adoção e algo da legitimação, pois,
como naquela, estabelecia um liame de parentesco de primeiro grau, em
linha reta entre adotante e adotado, e, como na legitimação, este
176
parentesco era igual ao que liga o pai ao filho consangüíneo.
Aos legitimantes era possível essa espécie de adoção desde que o casal não
tivesse filhos legítimos, legitimados ou naturais reconhecidos, contasse com mais de
cinco (5) anos de matrimônio e tivesse pelo menos um dos cônjuges, mais de trinta
anos (art. 2º caput). Contudo, tal prazo de casamento era dispensável desde que
comprovada a esterilidade de um dos cônjuges e a estabilidade conjugal (art. 2º,
parágrafo único).
A lei impunha ainda outras condições: o viúvo ou a viúva, excepcionalmente,
com mais de trinta e cinco anos de idade que tivesse consigo o menor há mais de
cinco anos podia requerer a legitimação (art. 3º); os desquitados que tivessem a
guarda do menor no período de prova (3 anos), na constância do casamento, e
concordando sobre ela após o término da sociedade conjugal, podiam requerer a
legitimação, desde que obedecidos determinados requisitos impostos pela lei, nos
artigos 326 e 327 do CC/1916, quanto à guarda e proteção (art. 4º). 177
Ademais, esta lei tinha outras peculiaridades: substituía a família biológica pela
família adotiva; integrava a criança à família adotiva; rompia inteiramente o vínculo
175
176
177
CAVALLIERI, 1978, p. 94.
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. vol. 6. 27. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 378.
CAVALLIERI, op. cit., p. 93.
52
da criança com a família biológica; a legitimação era irrevogável; o vínculo da
adoção estendia-se à família dos legitimandos, quando os seus ascendentes
houvessem aderido ao ato; era feita por mandado, mas sendo obrigatório processo
prévio; o nome de família do legitimado adotivo era alterado; havia a possibilidade
de alterar o prenome; havia segredo absoluto sob pena de processo criminal; havia
rigorosa sindicância para só se admitir a legitimação no interesse do menor
legitimado. 178
Os legitimados adotivos passavam a integrar a família com os mesmos deveres
e direitos do filho legítimo (art. 7º), salvo nos casos de sucessão em que
concorressem com filho legítimo superveniente à adoção (art. 9º caput), art. 1605,
§2º do CC/1916.
179
Situação em que caberia ao filho adotado apenas metade dos
bens.
Permanecia, portanto, a restrição quanto à sucessão, gerando o aparecimento
de situações controvertidas e categorias diversas de filhos adotivos, uns com direito
à metade da herança (art. 1605, §2º do CC/1916 e 9º da lei 4.655/65) e outros sem
esse direito (art. 377 do CC/1916), respectivamente “quando concorressem à
sucessão do adotante filho adotado antes da existência de prole sangüínea, e filho
adotado após a existência de prole sangüínea.” 180
Parece que a pretensão do legislador era suprir o parentesco civil, integrando o
legitimado adotivo na família adotiva, porém o esforço do legislador, apesar de
significativo, não foi suficiente, pois permaneciam várias discriminações referentes à
adoção, como o que diz respeito à sucessão. Além disso, o legislador criou duas
formas de adoção: a regida pelo Código Civil de 1916, com as devidas modificações
trazidas pela lei 3.133/57; e a legitimação adotiva. Ambas já apresentadas.
178
179
180
CAVALLIERI, 1978, p. 92-93.
Ibidem, p. 327-329.
LIRA, 1997, p. 37.
53
Em 1979 elaborou-se o segundo Código de Menores181 que tinha como
prioridade viabilizar à criança abandonada o abrigo. Além disso, substituiu a
legitimação adotiva pela adoção plena, com praticamente as mesmas características
daquela e, além disso, denominou a adoção disposta no Código Civil de 1916 de
adoção simples.
O “Código de Menores”, Lei n. 6.697/79, revogou a Lei n. 4.655/65 sem
revogar a adoção simples do Código Civil, passando a vigorar duas formas
de adoção: a adoção plena nos moldes da legitimação adotiva e a adoção
182
simples pelo Código Civil e pelos artigos 27 e 28 do Código de Menores.
Cumpre destacar algumas diferenças entre a adoção plena, prevista no Código
de Menores, e a legitimação adotiva anteriormente descrita: o período mínimo de
estágio previsto pela legitimação era de três anos, o Código de Menores diminuiu
este período para um ano; o período de estágio de convivência para se deferir a
adoção plena pelo viúvo ou viúva passou de cinco anos para três anos.
Permaneceu a legislação brasileira sendo regida por duas espécies de adoção:
a adoção do Código Civil de 1916,
183
com as alterações da lei 3.133/57184; e a
adoção do Código de Menores de 1979.
A adoção no Código de Menores dependia de autorização judicial que deveria
ser feita pelo interessado através de requerimento contendo os apelidos de família
que usaria o adotado; estes apelidos deveriam constar do alvará e da escritura de
averbação no registro de nascimento do menor, caso fosse deferida a adoção pelo
juiz; o estágio de convivência era determinado pelo juiz, podendo ser dispensado
quando se tratasse de adotante menor de um ano de idade. A adoção no Código
Civil era feita por escritura pública.
181
BRASIL. Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, institui o Código de Menores. Disponível
http://www.risolidaria.org.br/vivalei/outrasleis/cod_menor1979.jsp#_Toc61675092 Acesso em: 10 abr. 2006.
182
PEREIRA, T., 2003, p. 158.
183
BRASIL.
Lei
3071,
de
1º
de
janeiro
de
1916,
Código
Civil
Brasileiro.
Disponível
http://www.presidencia.gov.br/ccivil/LEIS/L3071.htm Acesso em: 09 abr. 2006.
184
CAVALLIERI, 1978, p. 329.
em:
em:
54
Outra diferença significativa era quanto à sucessão: o Código de Menores não
restringia os direitos sucessórios aos adotados; o artigo 37 dispunha que a adoção
plena era irrevogável, ainda que aos adotantes viessem a nascer filhos, aos quais
estariam equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres, logo não
limitava os direitos sucessórios aos adotados de forma plena, ao passo que na
legitimação adotiva existia essa limitação sucessória.
A adoção regida pelo Código Civil de 1916 referia-se à adoção de qualquer
pessoa, independente da idade, sendo indispensável o consentimento do adotado
caso fosse maior de idade, e, quando menor ou nascituro, era indispensável o
consentimento do representante legal (art. 372 do CC/1916); era passível de
revogação; constituía-se por escritura pública; e mantinha o adotado ligado à família
biológica, podendo inclusive conservar o nome, pedir alimentos e herdar da família
biológica. Enquanto a adoção no Código de Menores dirigia-se apenas aos menores
de sete anos em situação irregular definida pelo artigo 2º, inciso I desse, e atribuía
ao adotado a situação de filho, desligando-o de qualquer vínculo com pais e
parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
Diante do exposto, pode-se dizer que a adoção plena substituiu com vantagens
a precedente legitimação adotiva, estendendo o vínculo da adoção a toda família do
adotante.
185
Contudo, não foi suficiente para proteger os interesses dos menores,
que só passariam realmente a importar com a promulgação da Constituição de
1988.
185
GRISARD FILHO, 2003, p. 28.
3. ANÁLISE DA ADOÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A PARTIR DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.
A Constituição de 1988, ao vedar o tratamento discriminatório dos filhos, a
partir dos princípios da igualdade e da inocência, veio a consolidar o afeto
como elemento de maior importância no que tange o estabelecimento da
186
paternidade.
Conforme dispõe Gustavo Tepedino,
187
a partir da Constituição de 1988, a
funcionalização das entidades familiares para a realização da personalidade de seus
membros, em especial dos filhos, a despatrimonialização das relações entre pais e
filhos e a desvinculação da proteção conferida aos filhos com a espécie de relação
dos seus genitores, consagrou uma nova tábua de valores em matéria de filiação.
O reconhecimento da filiação se desvinculou de quaisquer caracteres, como,
por exemplo, o estado civil dos genitores, que impediam o reconhecimento dos
filhos. Além disso, não há mais que se distinguir entre filhos legítimos e ilegítimos,
adulterinos ou incestuosos e adotivos. A Constituição de 1988 conferiu-lhes
igualdade absoluta.
Nesse sentido, o reconhecimento do filho e a conseqüente atribuição do status
de filho podem ocorrer de duas formas diferentes: voluntária ou judicial. No que diz
respeito ao filho biológico, apesar de não ser objeto do trabalho, vale dizer que
poderá ser reconhecido tanto pelo ato voluntário quanto pelo ato judicial.
186
187
FACHIN, L., 2003, p. 22.
TEPEDINO, 2001, p. 395-396.
56
Mas, quanto à filiação adotiva a atribuição do status de filho só poderá se
efetivar judicialmente, por meio de um ato voluntário dos pretensos pais adotivos.
Ressalta-se que na adoção encontram-se presentes, de forma praticamente
inquestionável, a vontade na paternidade e/ou maternidade e o afeto, elementos que
configuram a posse do estado de filho.
A posse do estado de filho está sendo utilizada, discretamente, como prova da
filiação na falta ou defeito do termo de nascimento.
188
Assim é que, “aquele que
toma o lugar dos pais, pratica, por assim dizer, uma ‘adoção de fato’. O ‘pai jurídico’
tem o seu lugar ocupado pelo ‘pai de fato’.”189
A posse de estado de filho vem gradativamente sendo reconhecida pela
jurisprudência nacional, ainda que, muitas vezes, sob o manto de outras
figuras jurídicas. Claro exemplo é o acórdão (...) em que se reconhece o
190
registro de nascimento de filho não biológico como adoção simulada ...
No
exemplo
acima,
a
expressão
“adoção
simulada”
escondeu
o
reconhecimento pela jurisprudência do estado de filho afetivo.
Para se caracterizar a posse do estado de filho, faz-se necessária a presença
de três elementos: nomen, tractatus e fama.191
...como “posse de estado de filho” a relação de afeto, íntimo e duradouro,
exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança,
que se comportam e se tratam como pai e filho, exercitando os direitos e
192
assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina.
Logo, faz-se indispensável a presença de elementos que devem ser notórios,
estáveis e inequívocos: o suposto filho deve se utilizar do nome do suposto pai; deve
existir na relação o tratamento de filho; e tem que haver reconhecimento social
dessa relação. Esse conjunto de elementos caracteriza a posse de estado de filho.
188
VENCELAU, Rose Melo. O elo perdido da filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do
vínculo paterno-filial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 118.
189
FACHIN, L., 1996, p. 124.
190
FACHIN, L., 2003, p. 26. Ressalta-se que a expressão adoção simulada nada mais é senão a popularmente conhecida
“adoção à brasileira”, em que um determinado casal, ou uma determinada pessoa, registra como seu, o filho de outrem. Essa
prática na realidade não se trata propriamente de uma adoção, mas de uma simulação.
191
FACHIN, L., 1996, p. 126.
192
NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo:
Memória Jurídica, 2001. p. 112-113.
57
A doutrina, majoritariamente, dispensa o requisito do nome por entender que o
filho geralmente é tratado pelo prenome, bastando a comprovação do tratamento e
da reputação. 193
Pode-se aduzir que a Constituição de 1988 ao estabelecer a igualdade entre os
filhos, a funcionalização das entidades familiares – tendo como finalidade especial a
realização da personalidade dos filhos –, a despatrimonialização das relações entre
pais e filhos e a desvinculação da proteção conferida aos filhos com a espécie de
relação dos seus genitores, consagrou também o afeto como elo dessas relações.
Foi, portanto, a Constituição, o primeiro grande marco de conquistas relevantes
para o instituto da adoção. O artigo 227, parágrafos 5º e 6º trouxe alterações
significativas dentre as principais destacam-se: previsão constitucional do instituto;
obrigatoriedade de assistência pelo Poder Público; previsão de regras diferenciadas
para adoção internacional; igualdade absoluta entre os filhos biológicos e adotivos;
proibição de qualquer ato discriminatório referente à filiação, passando todos os
filhos a gozarem dos mesmos direitos, inclusive os sucessórios.
Ademais, a Constituição introduziu direitos fundamentais específicos da criança
e do adolescente, como no caput do artigo 227, deixando claro que passa a ser
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Esses direitos e necessidades são prioritários porque as crianças e os
adolescentes são seres humanos mais vulneráveis e portadores de necessidades
193
WELTER, 2003, p. 157.
58
especiais, em virtude da condição em que se encontram, de pessoas ainda em
processo de desenvolvimento de suas potencialidades físicas e emocionais. 194
Esse interesse essencial de criança e adolescentes de formar-se
satisfatoriamente como adultos é pré-requisito da própria noção jurídica de
195
personalidade, é inerente à dignidade da pessoa humana.
Com a finalidade de viabilizar o disposto na Constituição, impedindo que o
texto constitucional se constituísse em letra morta,
196
em 1990 entrou em vigor a lei
8.069 dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente,197 que passou a
disciplinar a adoção de crianças e adolescentes, enquanto o Código Civil de 1916
passava a reger a adoção de maiores de dezoito anos. Situação que perdurou até
2003 quando entrou em vigor o Código Civil de 2002,198 que também legislou sobre
a adoção, permanecendo a dualidade de regimes.
3.1 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
Essa lei foi o segundo grande marco de conquistas importantes no âmbito da
infância e da juventude no Brasil, sendo também responsável pela instauração de
um novo paradigma no que diz respeito à adoção. Ao corrigir falhas dos sistemas
anteriores e avançar em alguns aspectos, o Estatuto passou a representar um passo
importante para o que é considerado o maior desafio brasileiro: as crianças
carentes, desassistidas e abandonadas do país. 199
194
NERY JÚNIOR, Nelson; MACHADO, Martha de Toledo. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Novo Código Civil à
Luz da Constituição Federal: princípio da especialidade e direito intertemporal. Revista de Direito Privado, ano 3, n. 12, p. 0949, out./dez. 2002. São Paulo: RT, 2002. p. 32.
195
Ibidem, p. 20.
196
VERONESE, Josiane Rose Petry. Filiação adotiva. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família contemporâneo:
doutrina, jurisprudência, direito comparado e interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 608.
197
BRASIL. Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
providências. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm Acesso em: 28 dez. 2005.
198
BRASIL.
Código
Civil,
Lei
n.
10.406,
de
10
de
janeiro
de
2002.
Disponível
em:
http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm Acesso em: 28 dez. 2005.
199
PEREIRA, Tânia da Silva. A estrutura jurídica e social da família após a Constituição de 1988 no Brasil. Direito, Estado e
Sociedade – Revista do Departamento de Ciências jurídicas da PUC-Rio, n. 2, p.91-103, jan./jul. 1993. Rio de Janeiro:
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1993. p. 98.
59
Sob este prisma:
Ganhou o instituto da adoção natureza nova, perdendo o caráter puramente
assistencial da legislação menorista, para transformar-se em instrumento da
doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, que norteou o
200
Estatuto.
Ao contrário do Código de Menores, o Estatuto, além de disciplinar a situação
das crianças e dos adolescentes, transformou-os em sujeitos de direitos e não mais
objetos dos direitos dos pais, consagrando, definitivamente, a doutrina jurídica da
proteção integral que já havia começado a vigorar no Brasil com a Constituição de
1988. 201
Ser “sujeito de direitos” significa, para a população infanto-juvenil, deixar de
ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como adultos, titular de
202
direitos juridicamente protegidos.
Desta feita, o Estatuto substituiu o Código de Menores, introduzindo inovações
à adoção, que passaria a ser sempre plena para os menores de dezoito anos,
regulada pelo Estatuto; e simples quando se referisse à adoção de maiores de
dezoito anos, disciplinada pelo Código Civil de 1916, com as alterações da lei
3.133/57; permanecendo a dualidade de regimes adotivos.
Neste novo contexto, a adoção apresenta-se como uma forma alternativa de
acolhimento da criança ou do adolescente em uma família – família substituta –,
visando o desenvolvimento ligado a laços afetivos.
203
Isto se deve a uma nova
postura que tem como base a idéia de que toda criança e todo adolescente são
merecedores de direitos próprios e especiais, em razão de suas condições
específicas de pessoas em desenvolvimento.
Dentre as principais transformações do Estatuto referentes à adoção,
destacam-se: vedação da efetivação da adoção por procuração (art. 39 parágrafo
200
BARBOZA, Heloísa Helena. O consentimento na adoção de criança e de adolescente. Revista Forense, ano 94, vol. 341, p.
71-75, jan./mar. 1998. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 71.
PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O “melhor interesse da criança”. p. 01-102. In: PEREIRA, Tânia da Silva. (Coord.). O
melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 14.
202
Ibidem, p. 15.
203
PEREIRA, T., 1993, p. 101.
201
60
único); estabelecimento da idade máxima de dezoito anos para o adotando, salvo se
já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes (art. 40); atribuição da condição de
filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios,
desligando-o de qualquer vínculo com a família biológica, salvo os impedimentos
matrimoniais (art. 41); possibilidade de adoção aos maiores de vinte e um anos,
independente do Estado Civil (art. 42 caput) e no caso de serem casados ou viverem
em união estável, desde que um deles tenha completado vinte e um anos e
comprove a estabilidade da família (art. 42 §2º); proibição da adoção por
ascendentes e irmãos do adotando (art. 42 §1º); imposição de diferença de idade
entre adotante e adotando de dezesseis anos (art. 42 §3º); viabilidade de a adoção
ser deferida após falecimento do adotante, no curso do processo, desde que tenha
manifestado de forma inequívoca sua vontade em adotar (art. 42 §5º), caso em que
a sentença disporá de efeito retroativo à data do óbito (art. 47, §6º do Estatuto).
O artigo quarenta e três do Estatuto passou a condicionar a efetivação da
adoção, permitindo-a apenas quando apresentar reais vantagens para o adotando e
fundar-se em motivos legítimos, consagrando definitivamente a doutrina de proteção
integral, que será analisada mais adiante.
Apesar de a adoção ser considerada instituto de caráter superior aos valores
dos pretendentes à adoção, vez que o valor primário e essencial da adoção tem que
ser o melhor interesse, não se pode esquecer de atentar para a valoração
pormenorizada que deve existir entre o interesse da família adotiva – motivos
legítimos – e o melhor interesse da criança e do adolescente.
Isto se deve ao fato de que, a família que se propõe a adotar certamente tem
interesses pessoais envolvidos, até porque, o que motiva alguém a adotar é, na
maioria das vezes, interesses pessoais.
61
Logo, não significa “que seja ilegítimo ou injurídico o interesse daqueles que
não tem prole, de a alcançar por meio da adoção; apenas que esse interesse dos
adultos está subordinado, no ordenamento, ao interesse da criança.”204
Percebe-se que o verdadeiro sentido da adoção passa a residir no fato de dar
uma família à criança desprovida desta, acabar com a situação de sofrimento e
abandono do candidato à adoção que se encontra nas ruas, sem teto e sem amor,
outras vezes em instituições que têm a finalidade de abrigá-los, mas que são
desprovidas do calor humano de um lar.
Nesse contexto, o que deve ser avaliado na pretensa família adotiva é a
disposição que tem ela de se entregar ao amor e suas condições emocionais de
criar e educar a criança ou o adolescente. Tornando-se, portanto, imprescindível que
o deferimento da adoção esteja relacionado ao “legítimo interesse” e às “reais
vantagens” descritas no artigo 43 do Estatuto.
A adoção será precedida de um estágio de convivência que será fixado pela
autoridade judiciária, em conformidade com as peculiaridades de cada caso (art.46);
esse poderá ser dispensado quando a criança não tiver mais de um ano de idade,
ou já se encontrar na companhia do adotante por tempo suficiente para que seja
possível avaliar a conveniência da adoção (art. 46 §1º). No que diz respeito à
adoção por estrangeiros residentes e domiciliados no exterior, o estágio de
convivência deverá ser no mínimo de quinze dias para as crianças de até dois anos
de idade e no mínimo trinta dias quando se tratar de adotando maior de dois anos de
idade (art. 46 §2º).
O vínculo da adoção se efetivará por sentença judicial que será inscrita no
registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão (art. 47 caput): a
inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus
204
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 31.
62
ascendentes (art. 47 §1º); o mandado judicial será arquivado, cancelando-se o
registro original do adotado (art. 47 §2º); nenhuma observação poderá constar nas
certidões do registro (art. 47 §3º); somente a critério da autoridade judiciária poderá
ser fornecida certidão para salvaguarda de direitos (art. 47 §4º); a sentença conferirá
ao adotado o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar a modificação
do prenome (art. 47 §5º); a adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em
julgado da sentença (art. 47 §6º).
Portanto, o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial (art. 47) que,
após o trânsito em julgado, torna-se irrevogável (art. 48); não se admitindo o
restabelecimento do “pátrio poder” dos pais naturais nem mesmo com a morte dos
adotantes (art. 49).
O Estatuto dispôs como dever da autoridade judiciária manter, em cada
comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de
serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção (art. 50 caput). O
deferimento da inscrição será precedido de consulta aos órgãos técnicos, ouvido o
Ministério Público (art. 50 §1º); sendo inviabilizada a inscrição se o interessado não
satisfizer os requisitos legais ou for verificado qualquer das hipóteses previstas no
artigo 29 (art. 50 §2º).
O Estatuto também disciplinou a adoção por estrangeiros, conforme a
Constituição determinou. Assim, a colocação em família substituta estrangeira só
será possível na modalidade de adoção (art. 31 e 51 caput); o candidato deverá
comprovar sua habilitação à adoção de acordo com as leis do seu país,
apresentando
estudo
psicossocial
elaborado
por
agência
especializada
e
credenciada no país de origem (art. 51 §1º); poderá a autoridade judiciária requerer,
de ofício ou a requerimento do Ministério Público, a apresentação do texto pertinente
63
à legislação estrangeira, acompanhado de prova de sua respectiva vigência (art. 51
§2º); os documentos de língua estrangeira deverão ser juntados aos autos,
devidamente autenticados pela autoridade consular, observando sempre os tratados
e convenções internacionais, sempre acompanhados da respectiva tradução por
tradutor público e juramentado (art. 51 §3º); antes de deferida a adoção não será
permitida a saída do adotando do território nacional (art. 51 §4º).
Além disso, a adoção internacional poderá ser condicionada a estudo prévio e
análise de uma comissão estadual judiciária de adoção que fornecerá o laudo de
habilitação para instruir o processo competente (art. 52 caput); competindo também
a essa comissão manter registro centralizado de interessados estrangeiros (art. 52
parágrafo único).
Constata-se que a finalidade pela qual o instituto originou-se - interesse do
adotante -, deu lugar ao princípio do melhor interesse (art. 43 do Estatuto). Assim, a
adoção não mais pode ser para suprir as necessidades do adotante, mas sim do
adotado, por isso, a adoção é a forma privilegiada de dar uma família à criança
desprovida desta e, por isso, a sua efetivação está diretamente relacionada ao
melhor interesse da criança e do adolescente e ao legítimo interesse da família
adotiva.
Sobre o exposto sobreleva considerar que após a Constituição de 1988 e o
Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma inovadora, garantiu às crianças e
aos adolescentes tornarem-se sujeitos de direitos, titulares de direitos próprios,
dotados de individualidade e autonomia, além disso, gozam de todos os direitos
fundamentais próprios da pessoa humana.
64
Dentre esses direitos próprios da criança e do adolescente pode-se citar o
direito de serem criados e educados no seio de sua família natural e
excepcionalmente em uma família substituta.
Ressalta-se que quando assegurado o direito à convivência familiar sadia,
todos os demais direitos certamente estarão protegidos, como o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à
liberdade, à convivência comunitária, ao esporte, ao lazer, ao respeito (art. 4º do
Estatuto). Ademais, a convivência familiar sadia também viabiliza o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade,
conforme determina o artigo 3º do Estatuto.
Dito isso, torna-se evidente a importância do novo perfil que o Estatuto trouxe
para a vida das crianças e dos adolescentes, abandonou o caráter assistencial da
legislação menorista e transformou-se em instrumento eficaz de proteção integral à
infância e juventude.
Portanto, a adoção apresenta-se, a partir do Estatuto, como uma forma
alternativa de proteção da criança e do adolescente desprovidos de um lar, devendo
prevalecer em todos os casos o princípio do melhor interesse da criança. Nesse
sentido, a adoção exerce uma forma privilegiada de dar uma família à criança
desprovida desta.
Permaneceu o Estatuto e o Código Civil de 1916 regulando a adoção até a
promulgação do Código Civil de 2002, lei 10.406/2002, que em um primeiro
momento pareceu pretender unificar a legislação acerca da adoção. Contudo, suas
disposições não foram suficientes para essa unificação, continuando a adoção com
uma dualidade de regimes: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil
de 2002.
65
3.2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O CÓDIGO CIVIL DE
2002.
Com a promulgação do Código Civil de 2002 a adoção simples foi abolida da
legislação brasileira, tornando inaplicável “qualquer adjetivação ou qualificação,
devendo ambas ser chamadas simplesmente de adoção.” 205
O Código Civil trouxe a redução da idade para o exercício pleno dos atos da
vida civil, denominada capacidade absoluta, passando de 21 anos para 18 anos;
tendo como conseqüência, no que se refere à adoção, a redução da capacidade civil
para adotar de 21 anos para 18 anos. Cumpre ressaltar que isso se deve a
orientação do Estatuto em condicionar a capacidade para adotar à maioridade civil,
independente de estado civil (art. 42 caput). 206
Assim, o ECA 42 § 2º tem de ser lido de acordo com as novas regras sobre
capacidade de gozo, matéria típica de teoria geral do direito privado e,
portanto, objeto de regulamento pelo Código Civil, a que a lei especial de
207
proteção integral da criança e do adolescente (ECA) deve-se subordinar.
Ademais, estabeleceu o Código Civil de 2002 que a adoção de maiores
também se efetivará por processo judicial, dependendo igualmente da assistência do
Poder Público e de sentença constitutiva (art. 1.623 caput e parágrafo único do
CC/2002).
Tânia da Silva Pereira208 alerta sobre a impropriedade do artigo dez do Código
Civil que dispõe sobre a averbação em registro público dos ‘atos extrajudiciais de
adoção’. Ressalta-se que o novo diploma legal passou a exigir procedimento judicial
para a adoção de menores e maiores de idade, tornando-se inexistente a adoção
por atos extrajudiciais, conseqüentemente inadequada a disposição do artigo dez do
Código.
205
GONÇALVES, 2005, p. 333.
PEREIRA, T., 2003, p. 159.
207
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 34.
208
PEREIRA, T., op. cit., p. 162.
206
66
No que se refere à espécie de procedimento a ser utilizada na adoção, o
Código Civil de 2002 dispôs que deverão ser observados os requisitos estabelecidos
nele; ao passo que o Estatuto previu procedimentos comuns (artigos 165 a 170 do
Estatuto) para os processos de adoção. O que conduz à interpretação de que o
Código Civil “teria sido mais coerente se se referisse às condições para o processo
judicial de adoção”209, ao invés de referir-se aos procedimentos estabelecidos por
ele.
Inovou também ao atribuir a condição de filho ao adotado maior de 18 anos,
com os mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios, desligando-o de
qualquer vínculo com a família biológica, salvo os impedimentos matrimoniais (art.
1626 caput do CC/2002 e art. 41 caput do Estatuto), uma vez que o Código de 1916
não viabilizava tal direito. Ressalta-se, porém, que a Constituição Federal já havia
igualado todos os filhos em 1988.
Waldyr Grisard Filho coloca que:
A adoção passa a ser uma só - simplesmente adoção, sem qualificações -,
independente da idade do adotando. De outra forma, todas as regras e
princípios para a adoção de menores de idade valem igualmente para a
adoção de maiores de idade, que, agora, se integram totalmente na família
do adotante, assumindo a situação de filho, sem restrições de ordem
210
pessoal ou patrimonial (art. 227, § 6.º, da CF e art. 1.626 do novo CC).
Por outro lado, se comparado às disposições do Estatuto, o Código Civil de
2002 não traz relevantes modificações ao instituto, transcrevendo apenas alguns de
seus dispositivos, sem, contudo, abrangê-lo na sua totalidade, permanecendo o
Estatuto, por sua especialidade e completude, a regular o instituto, “cuja vigência
perdura integralmente em face do caráter de lei especial e harmônica com a
Constituição Federal.” 211
209
PEREIRA, T., 2003, p. 161.
GRISARD FILHO, 2003. p. 33.
211
FACHIN, Luiz Edson; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil, vol. XVIII: do direito de
família e do direito pessoal das relações de parentesco. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 150.
210
67
Destarte, o Código Civil de 2002 repetiu alguns dispositivos do Estatuto, como:
diferença de idade entre adotante e adotado, na qual o adotante deve ser no mínimo
16 anos mais velho que o adotado (art. 1619 do CC/20002 e 42 §3º do Estatuto);
necessidade do consentimento dos pais ou dos representantes legais de quem se
deseja adotar e da concordância deste, se contar com mais de doze anos (art. 1621
caput do CC/2002 e 45 caput e §2º do Estatuto); dispensa do consentimento em
relação à criança ou ao adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham
sido destituídos do poder familiar, lembrando que este dispositivo no Estatuto utilizase do termo “pátrio poder” (art. 1621 §1º do CC/2002 e 45 §1º do Estatuto);
imposição de que a decisão da adoção confere ao adotado o sobrenome do
adotante, podendo determinar também a modificação do seu prenome, a pedido do
adotante ou do adotado, quando o adotante for ainda menor (art. 1627 do CC/2002 e
art. 47 §5º do Estatuto).
Atenta-se para o disposto no artigo 1621 caput do CC/2002 que suprimiu a
palavra técnica “nascituro” que existia no Código de 1916 no artigo 372, gerando
divergências doutrinárias acerca da possibilidade jurídica da adoção do nascituro.
Uns defendem a possibilidade da adoção por nascituro, afirmando que “é de
grande relevância, pela possibilidade de se lhe proporcionar alimentos – em sentido
lato, alimentos civis, nos quais se inclui a adequada assistência pré-natal – a serem
promovidos pelo adotante.”212 Outros são contra a adoção de nascituro,
argumentando que:
a Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993 (decreto Legislativo nº 63, de
19.04.1995), relativa à adoção internacional, impede, implicitamente, a sua
realização, ao referir, em seu art. 4º, letra c, nº 4, a necessidade de as
autoridades competentes do estado de origem assegurarem-se de “que o
consentimento da mãe, quando exigido, tenha sido manifestado após o
213
nascimento da criança”.
212
CHINELATO, Silmara Juny. Adoção de nascituro e a quarta era dos direitos: razões para se alterar o caput do artigo 1.621
do novo Código Civil. p. 355-372. In: DELGADO, Mário Luiz (Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões
Controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. p. 364.
213
BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 42.
68
O artigo 1624 do CC/2002 dispõe sobre a desnecessidade do consentimento
do representante legal do menor, caso fique provado que se trata de infante exposto,
ou de menor cujos pais sejam desconhecidos, estejam desaparecidos ou tenham
sido destituídos do poder familiar, sem nomeação de tutor; ou de órfão não
reclamado por qualquer parente, por mais de um ano.
Na opinião de Nelson Nery e Martha de Toledo Machado214 esse artigo trouxe
a possibilidade da adoção ser deferida sem o consentimento dos pais, ainda que
conhecidos.
De acordo com o raciocínio desses doutrinadores, quando o artigo se refere a
pais desaparecidos e à criança ou ao adolescente “exposto”, significa que são
conhecidos os pais, pois a lei não contém palavras inúteis. Logo, o referido artigo
afronta, além das garantias constitucionais de que são titulares os pais biológicos, o
direito de filiação da criança e seu direito fundamental de convivência familiar. 215
Note-se, por oportuno, que não são tão raras as hipóteses de seqüestro de
crianças para colocação informal em família substituta, neste imenso Brasil.
Como são bem freqüentes as situações de crianças de tenra idade que se
perdem dos pais, no gigantismo de nossas metrópolis, com suas
216
complexidades.
Inovou, ainda, o Código Civil de 2002 quando previu a possibilidade de
revogação do consentimento até a publicação da sentença constitutiva da adoção
previsto no caput do artigo 1621. Por outro lado, silenciou quanto à questão da
irrevogabilidade, levando a uma interpretação, a contrario sensu do dispositivo
acima mencionado: uma vez que, sendo possível a revogação do consentimento até
a publicação da sentença, a partir dessa, o ato passa a ser irrevogável. 217
Assim como o Estatuto, o Código Civil de 2002 possibilitou a adoção: ao tutor
ou ao curador do adotando, desde que, antes da adoção, dê contas de sua
214
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 41-43.
Ibidem, p. 42.
216
Ibidem, p. 43.
217
JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Comentários sobre a adoção no novo Código Civil. Revista do Advogado, ano 22, n. 68,
p. 127-134, dez. 2002. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2002. p. 132.
215
69
administração e salde o débito (art. 1620 do CC/2002 e art. 44 do Estatuto);
conjuntamente aos divorciados ou judicialmente separados desde que acordem
sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha se
iniciado na constância da sociedade conjugal (art. 1622 parágrafo único e 42 §4º do
Estatuto); dos cônjuges ou companheiros do filho do outro, mantendo os vínculos de
filiação entre o adotado e o cônjuge ou companheiro do adotante e os respectivos
parentes (art. 1626 parágrafo único do CC/2002 e art. 41 §1º do Estatuto); após o
falecimento do adotante, mas no curso do procedimento, caso em que a sentença
disporá de efeito retroativo à data do óbito (art. 1628 do CC/2002 e art. 47, §6º do
Estatuto). Salienta-se que nos demais casos os efeitos da adoção começam a partir
do trânsito em julgado da sentença.
Pode parecer que o artigo 43 do Estatuto e o artigo 1625 do Código Civil de
2002 versam sobre a mesma coisa, porém o Estatuto refere-se a “reais vantagens”
enquanto o Código Civil a “efetivo benefício”, a diferença é que a real vantagem veio
pelo Estatuto bem pormenorizada, enquanto que o efetivo benefício do Código Civil
é muito mais genérico, encontrando-se isolado na lei civil.
218
Além disso, o Código
Civil não disciplinou, como o Estatuto, a questão dos “motivos legítimos”, dispondo
apenas da expressão “efetivo benefício”. Ademais, a motivação legítima prevista no
Estatuto como um dos requisitos para a adoção, autoriza a avaliação técnico-pericial
dessa motivação. 219
Note-se também que o Código Civil não se expressou acerca da
impossibilidade da adoção por ascendentes e irmãos do adotando como o fez o
218
219
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 36.
Ibidem, p. 37.
70
Estatuto (art. 42 § 1º). Todavia, por se tratar de lei especial em face de lei geral, o
dispositivo do Estatuto não está sujeito à regra de revogação temporal. 220
No que diz respeito à adoção de maiores, deve-se analisá-la de forma diversa,
pois, sendo capazes e maiores, nada justifica que o interesse de um prevaleça sobre
o do outro. 221 Neste sentido dispõe Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
... a princípio poderia conduzir ao equívoco de que houve extensão do
princípio do melhor interesse da criança para abranger todos os adotandos
independente de idade ou maturidade. Logicamente que esta não é a
melhor interpretação à luz da Constituição de 1988 no que se refere ao
princípio constitucional do melhor interesse da criança, mas reflete a
preocupação da legislação infraconstitucional a respeito da função social do
222
instituto da adoção.
Foi demonstrado anteriormente que independente do estado civil podem as
pessoas adotar e que tanto as pessoas divorciadas como as separadas
judicialmente também podem adotar, desde que a convivência com o adotado tenha
se iniciado ainda na vigência do casamento. Todavia, o Código Civil de 2002 e o
Estatuto (art. 1622 caput e parágrafo único e 42 §4º respectivamente) não previram
explicitamente a possibilidade dos ex-companheiros adotarem. Mesmo assim, não
se pode excluir desses artigos a possibilidade dos ex-companheiros também
poderem adotar, desde que sejam acertadas regras de guarda e visitação,
223
até
porque, estaria quebrada a simetria se não se autorizasse a adoção por excompanheiros a exemplo do que ocorre com os ex-cônjuges. 224
Manteve o Código Civil, no artigo 1622, o dispositivo que “ninguém pode ser
adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união
estável”, acrescentando ao artigo do Código Civil de 1916 apenas os casais que
viverem em união estável.
220
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 39.
Ibidem, p. 38.
222
GAMA, 2003, p. 587.
223
PEREIRA, T., 2003, p. 161.
224
GRISARD FILHO, 2003, p. 33.
221
71
No que diz respeito à adoção internacional o Código Civil, ao versar sobre
essa, impôs que a medida obedecerá aos casos e às condições que forem
estabelecidos em lei (art. 1629 do CC/2002), prevalecendo a regulamentação dos
artigos 51 e 52 do Estatuto.
Diante de todo o exposto, entende-se que o Estatuto continua em vigor nas
questões que não divergem do Novo Código Civil e, ao mesmo tempo, o
complementa, onde este se omite, seguindo, portanto, o disposto no art. 2º e
parágrafos da Lei de Introdução ao Código Civil:
Art. 2.º Não se destinando a vigência temporária, a lei terá vigor até que
outra a modifique ou revogue.
§1.º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare,
quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria
de que tratava a lei anterior.
§2.º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já
existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
Neste diapasão descreve Waldyr Grisard Filho:
Como o novo Código não esgotou a regulamentação do instituto (...), podese afirmar que seguirão aplicáveis nesses e em outros temas as atuais
disposições do ECA, entendendo-se, todavia, revogados os dispositivos
225
incompatíveis com a nova lei.
Fazendo uma síntese do exposto conclui-se que ainda subsistem as normas
sobre adoção do Estatuto no que se refere: à vedação de adoção por procuração; ao
estágio de convivência; à irrevogabilidade da adoção; à restrição da adoção por
ascendentes e irmãos do adotando; aos critérios para a expedição de mandado e
respectivo registro no termo de nascimento do adotado; aos critérios para a adoção
internacional.
Em 2002 foi elaborado o Projeto de lei n. 6.960 propondo a alteração de alguns
artigos do Código Civil. Uma das finalidades do referido projeto era incorporar ao
novo Código Civil os dispositivos do Estatuto que versam sobre a adoção, para
assim, existir apenas um diploma legal regulando a adoção que versaria sobre a
225
GRISARD FILHO, 2003, p. 33.
72
adoção de criança e adolescente e também de maiores, mas não obteve sucesso e
acabou sendo arquivado. 226
Em conformidade com a opinião de Nelson Nery Júnior e Martha de Toledo
Machado227, parece mais coerente que o instituto da adoção permaneça no
microssistema do Estatuto que tem como corolário fundamental o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente, sendo, portanto, superior ao Código
Civil que trata do instituto de forma genérica. Ademais, teria sido mais prudente que
o legislador tivesse se limitado a legislar acerca da adoção de maiores.
Destarte, a visão apresentada pelo instituto da adoção, inicialmente e de forma
tímida no Código de Menores de 1979, e posteriormente de forma mais precisa, a
partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
de 1990, faz com que sua perspectiva seja diferente da até então predominante.
A adoção passa a ser praticada baseando-se no princípio do melhor interesse
da criança e do adolescente, considerando todos os aspectos físicos e psicológicos
desse. Trata-se, portanto, de “um princípio especial, o qual, a exemplo dos princípios
gerais de direito, deve ser considerado fonte subsidiária na aplicação da norma.” 228
3.3 A FUNÇÃO SOCIAL E O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
O instituto da adoção exerceu diversas funções sociais ao longo da história,
mas “atualmente a adoção desempenha uma função social, principalmente naqueles
países que não dispõem de condições para garantir a proteção e o sustento das
crianças órfãs e desamparadas.” 229
226
NERY JÚNIOR; MACHADO, 2002, p. 43.
Ibidem, p. 44.
228
PEREIRA, T., 2003, p. 166.
229
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Problemas e perspectivas da adoção internacional em face do estatuto da Criança e do
Adolescente. Revista de Informação Legislativa, ano 31, n. 122, p. 169-181, maio/jul. 1994. p. 173.
227
73
Nesse sentido, paralelamente às transformações apresentadas até aqui, serão
identificadas as funções sociais correspondentes.
Assim é que, à época da sua origem, mais precisamente no direito romano, a
função social do instituto era inviabilizar a extinção da família, a quem a natureza
não dera filhos, perpetuando o culto aos antepassados. “Todos tinham, pois, enorme
interesse em deixar um filho, convencidos de que, com este facto, tornavam feliz a
sua imortalidade.” 230
Na Idade Média o instituto praticamente desapareceu em virtude do apogeu do
Cristianismo, que apenas reconhecia a família e os filhos advindos do casamento,
reconhecendo a adoção como forte adversária do matrimônio sagrado, uma vez que
a possibilidade das pessoas terem seus filhos adotivos poderia representar um
desestímulo ao casamento, chegando ao ponto do Direito Canônico não disciplinála. 231
O desuso da adoção na Idade Média torna difícil o exame da função social da
adoção naquele período; mas, ao que tudo indica, para a Igreja Católica a função
social da adoção deveria ser a de infringir as sagradas leis do matrimônio e, ao
mesmo tempo, desestimulá-lo.
Ademais, relatam alguns autores, como Libórni Siqueira232 e Waldyr Grisard
Filho,
233
que a Igreja também se manifestava contra a adoção porque era comum,
naquela época, pessoas ricas morrerem sem filhos ou herdeiros, deixando todo o
patrimônio para as congregações religiosas, fato este que se tornaria menos comum
caso a adoção fosse incentivada ou aprovada pela Igreja.
Sob a influência francesa a adoção ressurgiu no século XIX no Código de
Napoleão, influenciando o Código Civil Brasileiro de 1916 que deixava evidente,
230
COULANGES, s/d, p. 67.
GRISARD FILHO, 2003, p. 28.
232
SIQUEIRA, 2004, p. 41.
233
GRISARD FILHO, op. cit., p. 28.
231
74
como já se pôde perceber, a preocupação de possibilitar a quem a natureza havia
negado filhos, o direito de adotá-los.
A partir daí, três correntes doutrinárias formaram-se em relação à Proteção da
Infância no Brasil desde o século XIX. 234
A primeira foi a Doutrina do Direito Penal do Menor, que vigorava na época de
promulgação do Código Civil de 1916, estava diretamente relacionada aos Códigos
Penais de 1830 e 1890. Preocupava-se exclusivamente com a delinqüência
praticada pelo menor, imputando-lhe responsabilidade com base em uma “’pesquisa
de discernimento’ – que consistia em imputar a responsabilidade ao menor em
função de seu entendimento quanto à prática de um ato criminoso.” 235
A segunda Doutrina passou a vigorar com o advento do Código de Menores de
1979, era a Doutrina Jurídica do Menor em Situação Irregular. Tinha como questão
básica a situação irregular do menor, marcada, ainda, por uma política
assistencialista, fundada na proteção do menor abandonado ou infrator. 236
O Código de Menores herdou do regime militar sua influência na concepção da
Doutrina da Situação Irregular, protegendo-se mais os interesses dos adultos,
inclusive no que diz respeito à adoção, em que procuravam crianças para satisfazer
os interesses e as exigências dos pais adotivos. 237
Durante muito tempo na história, a função social da adoção estava voltada para
fatores desvinculados dos interesses das crianças e dos adolescentes, estando,
pois, mais relacionada a satisfazer os interesses dos pais adotivos, sem preocuparse, propriamente, com o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
Mas, a função social da adoção estava destinada a se transformar. A
preocupação
234
com
a
criança
PEREIRA, T., 1999, p. 11.
Ibidem, p. 11.
236
Ibidem, p. 13.
237
BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 39.
235
tornou-se
uma
realidade
mundial,
gerando
75
manifestações no âmbito mundial: em 1924, na Declaração de Genebra, declarou-se
“a necessidade de proclamar à criança uma proteção especial”; em 1948 coube à
Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas declarar que a
criança possui “o direito a cuidados e assistência especiais”; em 1959 a Declaração
Universal dos Direitos da Criança, dentre outras disposições, determinou que “a
criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem
estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física,
mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em
condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração
fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”; em 1969
destacou-se a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, mais conhecida
como Pacto de São José da Costa Rica, que estabeleceu que “toda criança tem
direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da
família, da sociedade e do Estado.”238
Dito isso, pode-se aduzir que a Doutrina de Proteção Integral adentrou no
sistema jurídico brasileiro inicialmente através da Constituição Federal de 1988, que
no seu artigo 5º, §2º, determinou que os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos aprovados nas condições estabelecidas pela Constituição devem
ser equivalentes às emendas constitucionais.
Posteriormente, em 1989, aprovou-se a Convenção Internacional dos Direitos
da Criança que veio a ser ratificada pelo Brasil em novembro de 1990, através do
decreto 99.710. Destaca-se dentre as suas disposições o artigo 3.1 no qual “todas
as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas
238
PEREIRA, T., 1999, p. 04-05.
76
de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos,
devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.”239
Portanto, em 1990, através do Estatuto e do decreto 99.710, ratificou-se
definitivamente no sistema jurídico brasileiro a Doutrina de Proteção Integral.
Com o advento do Estatuto, o ato de adotar passou a requerer dos
interessados a disponibilidade para se entregar ao amor, não se coadunando mais
com o assistencialismo até então reinante.
Além disso, o Estatuto tornou o abrigo medida excepcional e transitória, sendo
prioritária a inserção da criança ou do adolescente em uma família substituta,
diferente
do
Código
de
Menores
que
priorizava
o
abrigo
às
crianças
abandonadas.240
A evolução doutrinária no campo da infância e da juventude trouxe certa
rejeição241 no que diz respeito à expressão “menor”. Essa intolerância deve-se ao
fato de que antes do Estatuto essa palavra era utilizada praticamente para se referir
às crianças em situação irregular.
Depreende-se aqui, a contrario sensu, que a palavra “menor” apenas denota
aquela criança ou aquele adolescente menor de 18 anos, não importando, no
entanto, que se utilize a expressão menor ou criança e adolescente, até porque,
toda criança e todo adolescente são menores no sentido literal da palavra. O que
importa realmente é que seus direitos sejam garantidos e respeitados e que, além
de se reconhecer a família como núcleo indispensável ao saudável crescimento
psíquico, social e moral do menor, seja garantida também a todas as crianças e a
todos os adolescentes a convivência familiar.
239
240
241
PEREIRA, T., 1999, p. 05-06.
TEIXEIRA, 2003, p. 10.
GIRARDI, 2005, p. 101.
77
É neste contexto que se encaixa a adoção, como único sistema alternativo de
proteção à criança capaz de cumprir com todas as funções que caracterizam uma
família e que, por isso, contribui para o crescimento psíquico, social e moral da
criança.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consolidou, em seu
artigo 227, os direitos fundamentais à infância, deixando ainda expresso no artigo 5º,
§2º a inclusão dos direitos e das garantias dos tratados internacionais em que o
Brasil seja parte.
Em 1990 o Brasil ratificou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança,
através do decreto 99.710, ressaltando que em todas as ações referentes às
crianças deve-se considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.242
Ao ratificar essa Convenção e promulgar a lei 8.069 - Estatuto da Criança e do
Adolescente –, ambos em 1990, o Brasil consolidou, definitivamente, a terceira
Doutrina: a Doutrina de Proteção Integral. Esta, por sua vez, instituiu o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente como um dos parâmetros
indispensáveis a ser utilizado em todos os casos relativos à criança e ao
adolescente.
Rosana Amara Girardi Fachin esclarece que:
A busca do atendimento aos “interesses da criança” está positivada no
Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem tais interesses como regra
fundamental, inspirada no texto constitucional, que estatuiu a garantia de
243
um desenvolvimento digno e sadio, em exortação à dignidade humana.
De acordo com a Doutrina de Proteção Integral, as crianças e os adolescentes
são
protegidos
em razão
de
serem pessoas em
condição
peculiar de
desenvolvimento, considerados sujeitos de direitos juridicamente tutelados.
242
243
244
PEREIRA, T., 1999, p. 04-05.
FACHIN, R., 2001, p. 145.
PEREIRA, T., op. cit., p. 14-15.
244
78
Portanto, “a noção do melhor interesse da criança é no sentido do seu melhor
equilíbrio físico e psicológico e jamais econômico.”245
Apesar do avanço estrondoso que essa Doutrina trouxe ao tratamento da
infância, percebe-se que ainda não é precisa a definição do que seja o melhor
interesse.
Atenta-se para o perigo de aplicação desse princípio tendo por base a
subjetividade de cada juiz; e, visando minimizar esta problemática, alguns autores
estabelecem determinados fatores a serem considerados para tentar se verificar o
que de fato representa o melhor interesse da criança e do adolescente.
Neste sentido, alguns fatores relevantes podem ser citados, como: o amor e os
laços afetivos entre o pretendente à adoção e a criança ou o adolescente; a
possibilidade do pretenso pai de prover a criança com comida, abrigo, vestuário e
assistência médica; a saúde do pretenso pai; o lar, a escola, a comunidade e os
laços religiosos que a criança ou o adolescente terá; a preferência da criança, se ela
tem idade suficiente para ter opinião; a propensão do pai em encorajar contato e
comunicação saudável com a criança.
Além desses fatores acima apresentados, acrescenta-se “valores que
envolvem
afinidade
(possibilidade
de
convivência),
afetividade
(dedicação),
relacionamento humanitário, o caráter e a personalidade dos interessados.” 246
Apesar do princípio do “melhor interesse” envolver uma idéia vaga, ele é
fundamental nesta nova fase de proteção à infância e à juventude, fazendo-se
indispensável redefinir seus parâmetros e fixar as diretrizes em face dos demais
princípios legais. 247
245
NOGUEIRA, 2001, p. 174.
LISBOA, Sandra Maria. Adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente (doutrina e jurisprudência). Rio de Janeiro:
Forense, 1996. p. 65.
247
PEREIRA, T., 1999, p. 18.
246
79
Desse modo, “como princípio ou novo paradigma, o ‘melhor interesse’
apresenta-se em nosso sistema jurídico com seus próprios indicadores. Ao aplicá-lo,
há que se considerar sua base constitucional e legal”. 248
Levando-se em consideração que o artigo 227 da Constituição Federal de 1988
dispôs que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e à convivência familiar e
comunitária, há que se observar, com maior prudência no presente trabalho, a
questão das crianças e dos adolescentes cujos pais, ou seja, a família, não lhes
garantiu a convivência familiar, situação em que caberá à sociedade e ao Estado
garantir-lhes tal direito.
Assim, “constatada a impossibilidade de a criança permanecer junto à sua
família de origem, a adoção, como forma de família substituta, surge como uma
possibilidade de reconstrução do direito à convivência familiar.“249 Isto se deve
também ao fato de que “as famílias substitutas e os pais sociais cumprem também a
função de suprir o desamparo e o abandono, ou pelo menos parte dele, das crianças
e dos adolescentes que não tiveram o amparo de seus pais biológicos.” 250
Nesse contexto de abandono e privação da convivência familiar, enquadra-se,
a partir da Constituição de 1988, o novo perfil da função social da adoção. Pois de
todas as espécies de colocação em família substituta – tutela, guarda e adoção -, a
adoção é a única que cumpre com todas as funções que caracterizam uma família,
lembrando que a família deve ser o instrumento capaz de viabilizar aos seus
membros a promoção da dignidade humana.
Desse modo, a convivência familiar, resultante da adoção, tornará possível que
a criança e o adolescente tenham seus direitos e garantias fundamentais
248
PEREIRA, T., 1999, p. 27.
BRAUNER; AZAMBUJA, 2003, p. 36.
250
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? p. 575-586. In: PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse
da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 585.
249
80
assegurados – como o direito à convivência familiar e comunitária, o direito de ter
uma família, dentre outros – tornando-se viável o sadio desenvolvimento psíquico,
social e moral, contribuindo para a formação de um indivíduo apto à convivência
comunitária.
Por outro lado, a adoção deve ser encarada como um remédio subsidiário, e
não principal, à solução dos problemas das crianças e/ou dos adolescentes,
abandonados, institucionalizados, enfim, desamparados. Posto que, àqueles que
foram adotados provavelmente tiveram o problema do abandono solucionado, mas
ainda existem os que aguardam a adoção e permanecem desamparados.
Em outras palavras, funciona como um remédio que cura, mas somente
àqueles que dele puderam beber. Mas para a sociedade, em geral, funciona como
um remédio paliativo, pois, ao mesmo tempo em que cura um indivíduo, não impede
que outros permaneçam doentes ou adoeçam.
Portanto, a adoção apresenta-se somente como uma alternativa e não como
uma solução para a problemática social, assumindo um papel de extrema relevância
social; tornando-se inquestionável a sua importância, quer seja no âmbito privado –
quando viabiliza a satisfação da família adotiva –, quer seja no âmbito público –
quando integra a criança ou o adolescente no seio de uma família.
A adoção, mesmo não sendo a solução do desamparo, não perde seu caráter
humanitário e social, pois na medida em que uma adoção é efetivada, uma pessoa
deixa de ter violado o seu direito à convivência familiar e deixa de estar à margem
da sociedade, contribuindo para uma sociedade menos injusta e desigual.
Dessa forma, a verdadeira função social do instituto da adoção consiste em
tornar possível à criança e ao adolescente, privados de um lar, a sua inserção em
81
uma família, contribuindo para a promoção da dignidade e a realização da
personalidade de seus membros, viabilizando a felicidade destes.
Ressalta-se, entretanto, que a adoção só cumprirá sua função social se estiver
alicerçada no afeto e na possibilidade de promoção da dignidade humana do
adotado.
O princípio do melhor interesse está diretamente relacionado à promoção da
dignidade humana da criança e do adolescente, portanto, realizar-se-á o melhor
interesse na medida em que forem respeitados todos os direitos e as garantias
Constitucionais referentes à criança e ao adolescente os quais viabilizarão a
promoção da dignidade humana destes.
Em face do exposto, toda adoção deve ser realizada tendo como objetivo a
promoção da dignidade humana da criança e do adolescente, ponderando-se para o
fato de que a instituição que abriga a criança ou o adolescente, por mais que
corresponda a um “exemplo de instituição”, jamais terá a capacidade de
proporcionar a dignidade humana destes.
Destarte,
enquanto
não
se
descobrem
elementos
mais
precisos
caracterizadores do melhor interesse da criança, deve o jurista atentar para o melhor
bem estar do menor e analisar cada caso de modo diferente, com as peculiaridades
inerentes, garantindo, aos pequeninos, sujeitos de direitos, a possibilidade de viver
em uma família capaz de promover-lhes a dignidade humana e a realização de suas
personalidades.
4. A QUESTÃO JURÍDICA DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS.
Saber ver e respeitar a diversidade é o mínimo ético que se exige de quem
vive em um estado democrático, regido por uma Constituição que consagra
como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, baseada
251
nos princípios da igualdade e da liberdade.
Para se chegar ao entendimento de que a adoção por homossexuais, quer seja
singularmente ou em conjunto, é um fato em que o direito não pode se abster de
analisar, faz-se imperiosa a observação dos princípios e das garantias fundantes da
Constituição.
Os princípios e as garantias constitucionais asseguram às pessoas o direito à
liberdade, igualdade, livre orientação sexual, intimidade, bem como à promoção da
dignidade da pessoa humana. Ressalta-se que para se efetivar a promoção da
dignidade humana, faz-se indispensável que às pessoas seja viabilizada à formação
da entidade familiar que melhor atenda e satisfaça os interesses dos seus membros.
A dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral que para efetivar-se
necessita de que às pessoas sejam garantidos os direitos fundamentais, fazendo-se
necessário que tenham assegurado também a proibição de qualquer forma de
discriminação, inclusive em virtude de sua orientação sexual.
Diante da previsão constitucional da dignidade da pessoa humana, não se
deve permitir que, no início do século XXI, as uniões formadas por pessoas do
mesmo sexo sejam tratadas simplesmente como sociedades de fato, da mesma
251
DIAS, 2004, p. 29.
83
forma que eram tratadas as uniões estáveis, entre homem e mulher, antes da
Constituição de 1988.
A união estável entre homem e mulher era considerada sociedade de fato
antes do advento da Constituição de 1988, que por sua vez consagrou-a
expressamente em seu texto, artigo 226, §3º, como entidade familiar. Todavia, não
bastou a abrangência da união estável na Constituição para que essa fosse
reconhecida como tal no âmbito jurídico; foram necessárias leis que a
regulamentassem.
Dito isso, cumpre observar que a primeira análise a ser realizada no âmbito da
questão jurídica da adoção por homossexuais está diretamente ligada às garantias e
aos direitos que a Constituição assegurou aos cidadãos brasileiros.
Além disso, a adoção transformou-se com a evolução da sociedade, fazendose indispensável que se conceitue de forma diferente a adoção após a promulgação
da Constituição e o advento do Estatuto. Assim é que o instituto passou a ser
definido como: uma forma alternativa de dar uma família à criança desprovida desta;
sendo uma forma não biológica de se constituir um vínculo parental, de criar laços,
não por consangüinidade, mas, e tão somente, pelo amor, através do qual se
oportunizará ao adotado desenvolver-se física, moral e espiritualmente, contribuindo
para a promoção da sua dignidade humana.
Para que se possa compreender o porquê da possibilidade jurídica da adoção
por homossexuais, deve-se partir do pressuposto de que a união homoafetiva é uma
espécie de entidade familiar – desde que presentes a afetividade, a estabilidade, a
publicidade e a affectio maritalis – e como tal, deve ter assegurado o direito à
adoção nos mesmos moldes em que é assegurado às entidades familiares
heterossexuais.
84
Ressalta-se que uma vez respeitados os dispositivos constitucionais, nada
mais lógico do que a justiça repugnar quaisquer argumentos contrários ou a favor da
adoção que utilizem como base a opção sexual do adotante, posto que esse não
serve, de forma alguma, de parâmetro para tal julgamento. Assim, os fatos devem se
impor perante o direito, contribuindo para “dissolver a ‘névoa de hipocrisia’ que
encobre a negação de efeitos jurídicos à orientação sexual.” 252
Desse modo, demonstrar-se-á que caberá ao judiciário e ao legislativo tornar
possível que às uniões homoafetivas, bem como à adoção por homossexuais, seja
viabilizado um tratamento em conformidade com os princípios constitucionais que
abrangem todos os cidadãos e não apenas os heterossexuais.
Destarte, assim como é permitido aos casais heterossexuais adotarem, desde
que tenham condições de promover a dignidade humana da criança e/ou do
adolescente, também deve ser viabilizada aos casais homoafetivos essa
possibilidade, nas mesmas condições em que são permitidas as adoções aos casais
heterossexuais.
Nesse âmbito, nada mais sensato do que a aplicação dos princípios e das
garantias encampados no texto constitucional brasileiro de 1988 para desmistificar a
impossibilidade da adoção simplesmente pela condição da sexualidade dos
pretendentes.
4.1 OS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS QUE ASSEGURAM À
UNIÃO HOMOAFETIVA O STATUS DE ENTIDADE FAMILIAR.
A interpretação do texto constitucional não pode impedir às pessoas com
orientação homossexual que tenham tutelada a família que melhor atenda as
necessidades de seus membros.
252
FACHIN, L., 1999, p. 96-97.
85
Portanto, a interpretação mais coerente das novas formas de entidade familiar
deve estar de acordo com o que ocorre no dia-a-dia das pessoas, viabilizando que o
direito retrate verdadeiramente os fatos sociais. 253
Em conformidade com a opinião de Paulo Luiz Netto Lôbo, existem três
características que, quando presentes, qualificam uma entidade familiar:
a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com
desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os
relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão
de vida; c) ostensibilidade, o que se pressupõe uma unidade familiar que se
254
apresente assim publicamente.
Sendo assim, considerar-se-á entidade familiar toda aquela que esteja
amparada na afetividade, na estabilidade, na publicidade e tenha a intenção de
constituir família, affectio maritalis, promovendo a dignidade e a realização da
personalidade de seus membros, independente da orientação sexual.
Portanto, o mais importante é que as pessoas estejam unidas pela afetividade
e
reciprocidade,
proporcionando
aos
seus
membros
a
estrutura
familiar
indispensável à sua formação como cidadão. 255
Até porque ninguém se realiza como ser humano se não tiver assegurado o
respeito ao exercício da sexualidade, a livre orientação sexual, da mesma forma que
ninguém se realiza quando lhe falta qualquer dos direitos fundamentais. 256
A Constituição Federal de 1988 possui seus alicerces em princípios que não
podem ser ignorados, porém, não se manifestou contra a união homoafetiva ou
contra o casamento homoafetivo. Além disso, “os princípios constitucionais são fios
253
CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. p. 183-211. In: OLIVEIRA, J.M.
Leoni Lopes de (Coord.). Temas de Direito Privado. Rio de Janeiro: Lúmen Jures, 2001. p. 194.
254
LÔBO, 2002, p. 42.
255
TEIXEIRA, 2003, p. 08.
256
DIAS, Maria Berenice. Liberdade sexual e Direitos Humanos. p. 85-88. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e
Cidadania. O novo Código Civil Brasileiro e a vacatio legis. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo
Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2002. p. 85-86.
86
condutores da interpretação à Lei Maior, pois se irradiam por todo o ordenamento
jurídico, condicionando, inclusive o trabalho legislativo.”257
Portanto, nada obsta que, com base no princípio da igualdade, da mesma
forma como ocorreu com as relações heterossexuais, garanta-se aos homossexuais
a possibilidade de escolha, entre viver um relacionamento informal – união
homoafetiva – e ter um relacionamento formal – casamento homoafetivo. Salientase, ainda, para o fato de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo
16, 1 dispõe que “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de
raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio.”258
Contudo, o objetivo do presente subitem é apenas o de demonstrar que as
uniões homoafetivas são entidades familiares e, como tal, também têm garantido o
direito de adotar.
Todo e qualquer Estado que se diga “Estado Democrático de Direito”,
necessariamente terá que se adaptar às transformações das relações humanas. A
família no final do século XX e início do século XXI deixa completamente desprovido
o argumento de que não se deve conferir status de família às uniões homoafetivas,
uma vez que estas podem promover a dignidade e a realização da personalidade de
seus membros.
As famílias homoafetivas tornar-se-ão ainda mais capazes de promover a
dignidade humana de seus membros, na exata medida em que for respeitada a
liberdade de escolha para se constituir a entidade familiar que melhor corresponda à
realização existencial do indivíduo. Além do mais, a liberdade na orientação sexual
dos indivíduos é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.
257
PERES, Ana Paula Ariston Barion. A adoção por homossexuais: fronteiras da família na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 15.
258
DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm
Acesso em: 21 jun. 2006.
87
Nesse diapasão dispõe Maria Celina Bodin de Moraes:
A atitude preconceituosa do meio social é, sabidamente, causa de
problemas graves, resultando muitas vezes em isolamento, dificultando
suas vidas no trabalho, na família, nos relacionamentos pessoais e pondo
259
em risco sua estabilidade emocional.
Constatou-se que as entidades familiares contidas expressamente na
Constituição não abrangem, de forma alguma, todas as entidades familiares
existentes na sociedade brasileira e que as uniões homoafetivas são também
entidades familiares merecedoras de tutela estatal, uma vez que “a norma de
inclusão do art. 226 da Constituição apenas poderia ser excepcionada se houvesse
outra norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões.“ 260
Logo, o fato da Constituição não colocar de forma expressa no seu texto as
uniões homoafetivas como entidades familiares, não significa a inexistência destas,
nem configura a ausência do status de família, muito menos caracteriza a
inviabilidade da tutela Estatal; bastando para tanto que efetivamente promovam a
dignidade e a realização da personalidade de seus componentes, da mesma forma
que compete a todas as entidades familiares.
O que importa, em verdade, é o enfoque personalístico da afetividade – da
comunhão de vida, do exercício do ônus da criação dos filhos, da realização
pessoal e do desenvolvimento da personalidade de seus membros –,
261
podendo estar presente em diversas formas de constituição da família.
Sob este prisma, mesmo o projeto de parceria civil de autoria da ex-Deputada
Marta Suplicy, projeto de lei n.1.151, de 1995,262 não resolveria a questão do
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, uma vez que
disciplinaria apenas as questões de cunho patrimonial que envolvem os parceiros da
união homoafetiva.
259
MORAES, 2000, p. 96.
LÔBO, 2002, p. 51-52.
261
MATOS, 2004, p. 16-17.
262
BRASIL. Projeto de Lei n. 1151 de 1995. Disciplina a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e dá outras
providências. Disponível em: http://mixbrasil.uol.com.br/pride/pcr.htm Acesso em: 21 jun. 2006.
260
88
Reconhecer efeitos apenas patrimoniais à união entre homossexuais é negar a
comunhão de afeto existente entre eles, é violar o princípio da igualdade.
Lembrando que se aos cidadãos não forem dadas as mesmas condições jurídicas, o
princípio da igualdade – que é indispensável a um estado democrático de direito –
inexistirá e, conseqüentemente, inviabilizará a democracia. 263
Inicialmente esse projeto não se referia à adoção por um casal homoafetivo,
contudo, o relator no substitutivo do projeto264, à época o Deputado Roberto
Jefferson, vedou expressamente a possibilidade de adoção, tutela ou guarda.
Ressalta-se que, apesar de o projeto supracitado não abranger da forma que
deveria as uniões homoafetivas, uma vez que, se aprovado, não conferiria a essas
uniões o status de entidade familiar, nem mesmo a possibilidade da adoção ao casal
homoafetivo, “poucos projetos de lei, na história do Brasil, foram tão comentados e
discutidos,”265 tendo sido vários os argumentos para inviabilizar a sua aprovação.
No meio legislativo, falou-se que aqueles que votassem a favor do Projeto
Marta Suplicy, estariam legislando em causa própria. No meio religioso,
invocaram o pecado e o fogo do inferno para os parlamentares e seguidores
dessa idéia. Há também os defensores da ofensa à moralidade pública.
Outros ainda chegam a afirmar que seria um incentivo ao
homossexualismo, pois os filhos de homossexuais seriam homossexuais,
esquecendo-se de que se seguíssemos essa lógica, não haveriam
homossexuais, pois os filhos de heterossexuais seriam necessariamente
266
heterossexuais.
Indispensável reconhecer que, na maioria das vezes, os deputados e
senadores, movidos por interesses políticos, não possuem a imparcialidade
necessária, nem se interessam em se posicionar em assuntos tão polêmicos, que
seriam capazes de taxá-los, de forma negativa, por uma parcela considerável de
eleitores.
263
SILVA, Tatiana Nascimento da. Um novo paradigma para atribuição de efeitos jurídicos às uniões entre homossexuais.
Revista Justiça do Direito da Universidade de Passo Fundo, vol. 2, ano16, p. 433-439, 2002. Passo Fundo: UPF Editora, 2002.
p. 435.
264
DIAS, 2006, p. 166-168.
265
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 153. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view
Article/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
266
Ibidem.
89
Nesse sentido também dispõe Maria Berenice Dias ao afirmar que:
É demorada a aprovação de leis destinadas a segmentos com pouca
expressão numérica e que são alvo de uma forte rejeição da maioria do
eleitorado. A possibilidade de comprometer sua mantença no poder intimida
267
o legislador.
Por outro lado, o fato de que “toda a manifestação legislativa pode ser um
veículo situado no reconhecimento de uma mudança de padrões dentro e fora da
família,”
268
deveria fazer com que o legislativo se sentisse responsabilizado em
reconhecer a importância de não ignorar um assunto tão relevante na vida de
determinados grupos sociais.
O fato é que os juízes, a partir de sua imparcialidade e vitaliciedade inerentes,
não podem deixar de analisar a situação tendo como base a dignidade humana,
“sob pena do Direito falhar como Ciência e, o que é pior, como Justiça.”269 Encontrase nesse contexto a importância da doutrina e da jurisprudência: transformar os
conceitos estagnados da sociedade. 270
Portanto, é essencial que os juízes se sensibilizem e atribuam juridicidade às
situações que não dispõem do respaldo legal,
271
até porque o que os tribunais
aceitam “como merecedor da tutela jurídica acaba recebendo a aceitação social,
gerando, por conseqüência, a possibilidade de cobrar do legislador que regule as
situações que a jurisprudência consolida.”
272
Assim, o não reconhecimento do
direito das minorias acaba gerando exclusão e marginalização, contribuindo para
que, cada vez mais, a sociedade hostilize as minorias.
Que entre o preconceito e a justiça, fique o estado com a justiça e, para
tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando velhos
preconceitos. Esses novos conceitos a doutrina já os está elaborando, como
o conceito de união estável homoafetiva como uma outra espécie de união
273
estável, ao lado da união estável heterossexual.
267
DIAS, 2004, p. 20.
FACHIN, L., 1999, p. 99.
DIAS, 2002, p. 87.
270
Ibidem, p. 86.
271
DIAS, 2004, p. 20.
272
Ibidem, p. 27.
273
DIAS, 2002, p. 87.
268
269
90
Lamentavelmente, muitos julgados (ANEXO A) manifestam-se em relação às
uniões homoafetivas no mesmo sentido que outrora se posicionaram em relação a
união estável, conferindo-lhes a condição de sociedade de fato. Todavia, “que
‘sociedade de fato’ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões
de afetividade, sem interesse de lucro?”274
Assim é que as questões decorrentes das uniões homoafetivas devem ser
resolvidas à luz do direito de família e não do direito das obrigações. Portanto, a
orientação sexual dos indivíduos não pode interferir no tratamento que esses devem
receber, quer seja na sociedade, quer seja na justiça.
Nesse sentido, “a orientação sexual não pode ser um rótulo que, aposto dos
indivíduos, interfira em suas relações sociais e, por conseqüência, seja capaz de
gerar-lhes tratamento diferenciado.” 275
Entretanto, alguns doutrinadores276 não reconhecem as uniões homoafetivas
como entidades familiares. Todavia, deixar “à margem da lei, sem tutela jurídica, por
motivos totalmente destituídos de caráter objetivo, é negar que a ordem jurídica
possa orientar para a vida de todos os grupos sociais.”277
Maria Celina Bodin de Moraes ressalta que a união entre pessoas do mesmo
sexo encontra-se implicitamente tutelada pela Constituição e que, em virtude disso,
não necessita de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro. 278
Contudo, acredita-se que, da mesma forma que foi indispensável a
regulamentação da união estável - apesar dessa se encontrar explicitamente
prevista no texto constitucional -, também faz necessária a regulamentação
expressa das uniões homoafetivas, uma vez que se teme a permanência, assim
274
LÔBO, 2002, p. 50.
SILVA, 2002, p. 435.
276
LIRA, 1997, p. 45-46; GAMA, 2001, p. 42.
277
SILVA, op. cit., p. 439.
278
MORAES, 2000, p. 109.
275
91
como à época do concubinato, de divergências doutrinárias capazes de causar
prejuízos à vida dessas pessoas, podendo se dar por emenda constitucional, que
equipare-as às uniões estáveis ou que viabilize o casamento, ou, ainda, por lei que
disciplinem tais uniões.
De acordo com Ana Carla Harmatiuk Matos
As uniões homoafetivas são, portanto, fatos sociais que reclamam uma
resposta jurídica. Tal demanda se justifica devido a uma significativa
mudança de mentalidade acerca do tema. A discriminação ainda sensível é
fruto de preconceitos injustificáveis. O Direito já não pode fechar os olhos
para uma relação de tamanha visibilidade, ponderando-se, até mesmo, que
os aspectos exteriores e interiores das relações homoafetivas não se
279
distanciam dos traços das famílias heterossexuais.
Mas, enquanto essa regulamentação não se concretiza por motivos meramente
políticos, religiosos e/ou culturais, não pode o judiciário se omitir em reconhecer o
direito. Deve-se, portanto, aplicar, a partir de uma interpretação analógica, as leis
8.971/94 e 9.278/96 às relações entre pessoas do mesmo sexo, de modo que sejam
reconhecidos tanto seus efeitos patrimoniais, como pessoais.
Nesse diapasão, dispõe Luiz Edson Fachin que “pode ser um caminho,
enquanto a norma específica não vier, para que os resultados buscados, dentro ou
fora do Judiciário, sejam mais justos.” 280
Maria Berenice Dias coloca que:
Enquanto não surgirem normas constitucionais e legais que tratem
especificamente da união estável homossexual é de aplicar-se a legislação
pertinente aos vínculos familiares, sobretudo no referente à união estável
heterossexual, que, por analogia, é perfeitamente extensível as uniões
281
homossexuais.
Todavia, salienta-se para o fato de que as uniões homoafetivas, imbuídas de
publicidade, continuidade e estabilidade, não são uniões estáveis, uma vez que a
Constituição deixou muito claro que a união estável existe apenas entre o homem e
a mulher.
279
280
281
MATOS, 2004, p. 65.
FACHIN, L., 1999, p. 100.
DIAS, 2004, p. 81.
92
Dessa forma, a união homoafetiva não pode ser considerada união estável nos
mesmos moldes do que a Constituição Brasileira de 1988 definiu por união estável.
Entretanto, salienta-se que, enquanto não existem leis próprias regulamentadoras da
união homoafetiva, deve-se tratar por analogia às uniões estáveis, pois muito mais
se assemelham a uma união estável do que a uma sociedade de fato. 282
Sob esse diapasão, baseando-se nos princípios constitucionais, a união
homoafetiva é inquestionavelmente uma entidade familiar e isso basta para que a
um casal homossexual seja viabilizada a possibilidade de adotar.
Outrossim, se todos têm direito à liberdade, todos têm direito à orientação
sexual, ao mesmo tempo em que devem ter assegurado o direito à intimidade, à
privacidade e igualdade de tratamento, sendo inadmissível o preconceito em função
da orientação sexual. Ao passo que todos também têm o direito à realização
pessoal, que só se efetivará se formarem a família que melhor atenda as suas
necessidades e, uma vez que todos têm direito à família, o Estado não pode limitar
as espécies de famílias; bastando que estejam baseadas no afeto e tenham a
condição de promover a dignidade humana de seus membros para que mereçam
proteção estatal. Sobre o assunto dispõe Belmiro Pedro Welter:
Caso não for admitida a união estável aos homossexuais, o princípio da
justiça não estará sendo aplicado, porquanto inatendido os princípios da
igualdade, do direito à opção sexual, da privacidade, da sociedade justa,
solidária e fraterna, do reconhecimento do afeto como valor jurídico e do
283
pluralismo jurídico.
Faz-se indispensável lançar mão de uma alternativa que seja capaz de
viabilizar os direitos inerentes das relações homossexuais, que são tão relevantes
para o direito quanto para a sociedade, uma vez que tratam de relacionamentos
entre cidadãos brasileiros. Além disso, não é apenas a aplicação da analogia, dos
282
Nesse sentido: BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.º 70013801592, Relator Des. Luiz
Felipe Brasil Santos. Sétima Câmara Cível, Comarca de Bagé. Apelante: Ministério Público. Apelado: LI. M. B. G. Julgado em:
05 abr. 2006. Disponível em: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php Acesso em: 20 jun. 2006.
283
WELTER, 2003, p. 63.
93
costumes e dos princípios gerais de direito que garantem à união homoafetiva o
status de entidade familiar, mas principalmente os direitos e garantias fundamentais
que são a base do Estado Democrático de Direito. 284
Negar existência ou efeitos jurídicos às famílias formadas por homossexuais é
negar que o direito regule a vida humana em sociedade.
285
Logo, o grande desafio
que se apresenta “não é mais o de reconhecer novos modelos de grupos familiares,
mas de protegê-los.”286 Até porque,
Todos aqueles que são objeto de discriminações e preconceitos, como, de
regra, ocorre também com negros, judeus, índios, isto é, com integrantes de
todas as minorias sofrem muito mais profundamente se não vêem seus
direitos fundamentais reconhecidos e tutelados pelo ordenamento
287
jurídico.
De forma próspera manifestou-se o Supremo Tribunal Federal (ANEXO B) em
fevereiro de 2006288, quando – em uma medida cautelar em Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI), visando à inconstitucionalidade do artigo 1º da lei n.º
9.278/96, apesar de ter reconhecido a inviabilidade de tal ação por se alegar norma
legal derrogada pelo artigo 1.723 do Código Civil de 2002 –, reconheceu a
necessidade de se discutir o tema das uniões homoafetivas para efeito de sua
subsunção ao conceito de entidade familiar; destacando vários doutrinadores
favoráveis a tal reconhecimento e a relevância desses segmentos na sociedade;
ressaltando a supremacia do tema como questão constitucional e a extrema
importância jurídico-constitucional; levantando, ainda, a possibilidade da matéria ser
veiculada em sede de ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito
Constitucional).
284
DIAS, 2004, p. 25.
SILVA, 2002, p. 439.
286
FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista
Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 12, p. 25-38, out./dez. 2002. Rio de Janeiro: Padma, 2002. p. 33.
287
MORAES, 2000, p.97.
288
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0. Distrito Federal. Relator Min. Celso de
Mello. Requerente: Associação de Incentivo à educação e saúde de São Paulo e outro (a/s). Requerido: Presidente da
República/ Congresso Nacional. Julgado em: 03 fev. 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf
Acesso em: 20 mar. 2006.
285
94
A ADPF, segundo Maria Berenice Dias, teria significado ainda maior que a ADI,
uma vez que “não se limita ao exame da legislação ordinária frente à Constituição,
mas de exame de todo o sistema legal diante dos preceitos fundantes do Estado
Democrático de Direito.”289
Tudo indica que não tardará para que a lei regulamente definitivamente as
uniões homoafetivas como entidades familiares e, conseqüentemente, sejam
protegidos os direitos inerentes desses grupos de pessoas. Mas, enquanto esse
reconhecimento não se consagra, faz-se indispensável que o magistrado não se
abstraia de dizer o direito, pois não pode o juiz, alegando ausência ou não-vigência
de norma legal, deixar de tutelar o direito, negar a jurisdição. 290
Assim, da mesma forma que a ausência de lei não é impedimento para que
essas uniões sejam reconhecidas como entidades familiares - tornando-se autoaplicável o art. 226 da CF -, a aparente impossibilidade de filhos também não.
Salienta-se que, além da procriação não ser a finalidade das famílias, nada
impede que essas famílias utilizem-se do instituto da adoção, como será analisado
mais adiante, até porque a adoção não depende do estado civil dos adotantes, nem
da opção sexual dos mesmos.
Dessa forma, deve-se, por meio de uma hermenêutica construtiva, interpretar
os princípios – da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade – e as
garantias constitucionais – direito à família, à privacidade, à intimidade –, bem como
o artigo 226 da Constituição de forma aberta, sistemática e integrativa.
Portanto, à luz do que se trilhou, impõe-se reconhecer as uniões homoafetivas
como
entidades
familiares,
que
merecem
tutela
estatal,
ainda
que
não
regulamentadas, sob pena de violência constitucional gravíssima.
289
DIAS, Maria Berenice. Entrevista: judiciário sem tabus. Boletim IBDFAM, ano 6, n. 37, mar./abr. 2006. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2006. p. 03-04.
290
DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais Limitações ao Direito de Amar. p. 265-282. In: DELGADO, Mário Luiz
(Coord.); ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões Controvertidas no novo Código Ciivil. São Paulo: Método, 2004. p. 267.
95
4.2 A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS E
O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
Preliminarmente, cabe lembrar que a família sofreu uma grande evolução no
curso da história. Na primeira parte desse trabalho, examinou-se essa evolução bem
como o novo perfil das entidades familiares, instaurado efetivamente após a
Constituição Brasileira de 1988.
Nesse sentido, averiguou-se que a família brasileira sofreu forte influência da
família greco-romana, de um modelo patriarcal e matrimonializado cuja função
primordial estava relacionada a um fim procriativo. Além disso, a família só se
constituía pelo casamento, em que ”sacrificava-se a felicidade pessoal em nome da
manutenção da “família estatal”, ainda que com prejuízo à formação de crianças e
adolescentes e da violação da dignidade dos cônjuges,”291 tudo em prol da tão
“sagrada” paz doméstica.
Após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988 foram reconhecidas,
expressa e implicitamente, outras formas de entidades familiares. Desse modo, não
existem apenas as espécies de entidades familiares expressamente previstas na
Constituição; sendo perfeitamente possível a existência de outras entidades
familiares que, por sua vez, não se encontram expostas no artigo 226 da
Constituição de 1988, como por exemplo: a formada por avô e/ou avó com seu(s)
neto(s); a constituída por tios e sobrinhos, sem qualquer vínculo jurídico, mas
amparadas no afeto; a formada por pessoas do mesmo sexo, desde que seja um
relacionamento durável, público, contínuo e com o objetivo de constituir família.
Dentre as principais transformações sofridas pela família que tornam possível a
adoção por homossexuais, singular ou conjuntamente, vale destacar os novos perfis
da família, como: o perfil eudemonista – no qual a família caracteriza-se pela busca
291
FARIAS, 2004, p. 09.
96
de sua própria realização e de seu próprio bem-estar –; a repersolização das
relações familiares – que se trata de uma preocupação com o desenvolvimento dos
membros da família.
Além disso, ressalta-se que a finalidade da família não é mais procriativa; a
família tem por escopo viabilizar a promoção da dignidade humana das pessoas que
a compõem.
João Baptista Villela ressalta que a procriação passou a ser “algo que os
parceiros de uma experiência afetiva buscam espontaneamente e não mais algo a
que não se podem subtrair, seja por imposição social, seja como salário do sexo.”292
Esse talvez seja um dos motivos a justificar que a filiação sócio-afetiva tornou-se o
grande peso para a identificação dos vínculos de parentalidade.
Deve-se considerar que:
A família é uma construção sócia organizada através de regras
culturalmente elaboradas, que conformam modelos de comportamento, e as
designações de parentesco não se relacionam necessariamente com o
293
vínculo biológico.
Portanto, a partir do final do século XX até o início do século XXI, a família
deixou de ter como finalidade exclusiva a procriação, ganhando espaço a felicidade
individual de seus membros. Logo, não se considera nem a prole, nem a capacidade
procriativa, conseqüentemente, nem a diferença de sexos, pressupostos para que a
união entre duas pessoas mereça tutela jurídica.
A família constitucionalizada passa a receber um conceito flexível e
instrumental, que tem como elo substancial o amor. Sendo assim, toda família que
efetivamente tiver condições de promover a dignidade humana de seus membros
merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado. 294
292
293
294
VILLELA, 1997, p. 72.
MADALENO, Rolf. Direito de família em pauta. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004. p. 18.
No mesmo sentido: TEPEDINO, 2001, p. 329.
97
Ressalta-se que a Constituição no seu artigo 227 assegurou à criança e ao
adolescente o direito à convivência familiar e comunitária. Portanto, cessada toda e
qualquer possibilidade de convivência familiar com a família biológica, a adoção
apresenta-se como a única medida protetiva relativa à criança e ao adolescente que
cumpre com todas as finalidades pertinentes a uma família. Daí sua relevância na
vida de quem não tem um lar e na sociedade como um todo.
Contudo, nem sempre a adoção apresentou-se como uma medida protetiva,
sendo possível verificar modificações intensas no instituto que certamente
contribuirão para a interpretação da viabilidade da adoção por homossexuais.
Constatou-se que a adoção surgiu no direito greco-romano com a finalidade de
que os filhos adotados perpetuassem o culto aos deuses da família adotiva. Assim, a
adoção surgiu como o meio pelo qual a família, que não tinha filhos homens,
assegurava a perpetuação do culto, uma vez que apenas os descendentes
masculinos do morto podiam dar-lhe continuidade ao culto. Portanto, o objetivo
principal da adoção era o de satisfazer o interesse dos pais adotivos.
Mesmo com a evolução das sociedades e com a decadência desses rituais, a
adoção permaneceu tendo por finalidade satisfazer as necessidades daqueles que a
natureza não dera filhos.
Dada essa finalidade, o Código Civil de 1916, primeira legislação brasileira a
sistematizar a adoção, regulamentou-a com cunho extremamente direcionado ao
interesse da família adotiva. As leis que o sucederam, lei n. 3.133/57 e 4.655/65, não
modificaram essa finalidade.
Ressalta-se ainda que a lei 3.133/57 alterou dispositivos do Código Civil de
1916, enquanto que a lei 4.655/65 criou a legitimação adotiva. A adoção, no Brasil,
passou a ser regida por duas legislações, como já oportunamente analisadas.
98
Todavia, permanecia a discriminação entre a filiação biológica e adotiva, da
mesma forma que o objetivo principal continuava o mesmo: dar filhos a quem não os
pôde ter.
Posteriormente surgiu o Código de Menores de 1979 que, como já se analisou,
substituiu com louvores a legitimação adotiva e ampliou o direito dos adotados, mas
que tinha por escopo viabilizar à criança abandonada o abrigo, o que impossibilitou
uma satisfatória proteção ao menor, posto que o abrigo não tinha, e nem tem,
condições de satisfazer todas as necessidades psíquicas da criança e do
adolescente.
Somente com o advento da Constituição de 1988, que igualou os filhos
adotivos e os biológicos, que se pôde vislumbrar uma futura legislação capaz de
proteger, de forma efetiva, o interesse da criança e do adolescente.
A Constituição marcou o momento em que seus direitos passaram a ser
garantidos, inclusive como dever do Estado, e que a adoção deixou de ter caráter
predominantemente privado, passando a possuir normas de ordem pública.
Ademais, tornou as crianças e os adolescentes titulares de direitos, dentre os quais
se pode citar: o direito à convivência familiar e comunitária (art. 227 caput da
Constituição de 1988). Direitos esses que as crianças e os adolescentes não
encontrarão nas instituições, nem muito menos nas ruas.
Em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente substituiu o Código de
Menores e consagrou, definitivamente, a doutrina de proteção do melhor interesse
da criança e do adolescente. Ratificou também o direito fundamental da criança e do
adolescente à convivência familiar e comunitária, já assegurado constitucionalmente,
priorizando, dessa forma, a inserção da criança e do adolescente em um lar
substituto à institucionalização.
99
A partir da Constituição de 1988 e do Estatuto, a adoção ganhou um novo
perfil, as inovações trazidas modificaram a sua finalidade – de dar filhos a uma
família para a de dar uma família à criança – e consagraram definitivamente o
princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
Além disso, o princípio do melhor interesse da criança aliado ao princípio da
dignidade humana e da proibição da discriminação, inclusive por orientação sexual,
tornou-se possível vislumbrar, juridicamente, a adoção por homossexuais, quer seja
singular ou em conjunto.
O Estatuto, diversamente do Código Civil de 1916 e 2002 (artigos 370 e 1622
respectivamente), não estabelece que a adoção por duas pessoas está
condicionada ao casamento ou à vivência em união estável.
Ao contrário,
determinou no artigo 42 que a adoção independe do estado civil.
Atenta-se ainda para o fato de que o Estatuto não definiu o que vem a ser
família substituta, da mesma forma que a Constituição de 1988 não definiu o quem
vem a ser família, conforme anteriormente demonstrado. Ambos limitaram-se a
dispor que à criança e ao adolescente deve ser assegurado o direito à convivência
familiar e comunitária.
Por outro lado, o Estatuto definiu no artigo 25 o conceito de família natural, mas
não definiu o que vem a ser família substituta. Ana Paula Ariston Barion Peres295
esclarece que não se deve estender o conceito de família natural ao conceito de
família substituta, uma vez que cada uma possui sua especificidade, o que acaba
por lhes impor diferenças estruturais.
Deve-se, portanto, a partir do princípio basilar da Constituição – dignidade
humana da pessoa – considerar que a união homoafetiva trata-se de uma espécie
própria de entidade familiar, desde que, da mesma forma que a união estável entre
295
PERES, 2006, p. 83.
100
homem e mulher, possua afetividade, estabilidade, publicidade e tenha condições de
promover a dignidade humana de seus membros.
Além disso, o artigo 29 do Estatuto dispõe que “não se deferirá colocação em
família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a
natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.” Salienta-se que a
orientação homossexual, de um ou de ambos os pretendentes, não se enquadra
nessa dita “incompatibilidade com a natureza do instituto.”
Para uma melhor compreensão cabe a análise de que só existe a
“incompatibilidade com a natureza do instituto” porque existe a “compatibilidade com
a natureza do instituto.” Somente sendo possível compreender do que se trata a
incompatibilidade,
se
primeiramente
for
analisado
o
que
vem
a
ser
a
“compatibilidade”.
Assim, traduz-se por compatibilidade um ambiente familiar adequado,
estruturado, repleto de amor, carinho, atenção e cuidados, no qual os pais tenham
idoneidade moral, saibam exercer a paternidade e a maternidade.
Dispõe Enézio de Deus Silva Júnior296 que os psicólogos e assistentes sociais
por estarem mais preocupados com o bem-estar integral do adotando, demonstramse seguros e bem informados quanto ao essencial em uma educação: a dosagem
suficiente de amor e o equilíbrio emocional frente às situações que a maternidade e
a paternidade suscitam, citando como exemplo a necessidade de impor limites.
Diante dessa colocação cabe um questionamento: seria privilégio apenas das
relações heterossexuais viabilizarem essa educação para a criança ou o
adolescente? Certamente não. Os atributos da paternidade e da maternidade não
são exclusivos das pessoas com orientação heterossexual.
296
SILVA JÚNIOR, Enésio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. Curitiba: Juruá, 2005. p 108.
101
Nesse sentido dispôs Taísa Ribeiro Fernandes:
Os que combatem a adoção por casais homossexuais, impressionados com
o fato de os adotantes serem pessoas do mesmo sexo, esquecem que a
paternidade ou maternidade é, antes de tudo, uma função, um papel que se
297
exerce, não estando vinculada, necessariamente, ao sexo dos pais.
Acrescenta ainda a autora supracitada298 que um pai pode exercer o papel de
pai e mãe, enquanto que a mãe também pode exercer o papel de mãe e pai, o que é
muito comum no Brasil, posto que muitas vezes a mãe cria, sozinha, os filhos,
exercendo o papel feminino, de mãe, e o masculino, de pai.
Ademais, cumpre observar que nem todas as pessoas homossexuais e nem
todos os casais homossexuais, da mesma forma que nem todos os indivíduos
heterossexuais e nem todos os casais heterossexuais dispõem do “dom” de ser pai
ou de ser mãe. Em virtude disso, existe a avaliação da equipe interdisciplinar –
psicólogos, assistentes sociais, magistrado, promotor de justiça – que tem por
finalidade avaliar se a pretensa família adotiva possui estrutura para adotar.
Nesse diapasão dispõe Luiz Carlos de Barros Figueiredo:
Só analisando profundamente cada caso é que se terá condições de se
responder se existe ambiente familiar inadequado ou se foram constatados
299
fatos impedientes para a natureza da medida.
Deverão analisar também a maturidade dos pretendentes à adoção – e nesse
caso, em especial, dos pretendentes homossexuais, independente da adoção estar
sendo requerida individualmente ou em conjunto – no que diz respeito à forma como
lidam com a sexualidade e a capacidade de lidarem com os preconceitos
conseqüentes da vida em sociedade.
Se ficar caracterizado um despreparo dos pretendentes à adoção, poderá o juiz
determinar que o período de guarda seja acompanhado de assistência psicológica,
tanto para o adotante quanto para o adotado, por tempo que os profissionais da área
297
298
299
FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004. p. 111.
Ibidem.
FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1. ed., 5ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2005. p. 89.
102
julgarem necessário, para posteriormente deferir-se ou não a adoção. Ademais,
poderá também determinar acompanhamento psicológico em qualquer caso que
permeie dúvidas a respeito do sadio desenvolvimento da criança ou do adolescente.
Enézio de Deus Silva Júnior adverte ainda que a experiência dos pais
homossexuais “demonstra a dosagem de amor e o diálogo franco sobre a
afetividade como os elementos preponderantes, para o enfrentamento de incidentes
discriminatórios.”300
Constatou-se, portanto, que não é a orientação sexual que determinará a
capacidade do indivíduo para adotar, até porque:
...o sucesso da colocação de um menor, no seio de uma família
homoafetiva (e, outrossim, heterossexual), dependerá do rigor na análise do
ambiente no qual o menor poderá ser educado e, em especial, da
interpretação precisa e personalizada de cada pretensão, pela equipe
multidisciplinar, pelo magistrado e pelo promotor de justiça, com isenção de
301
quaisquer preconceitos e primando pelo superior interesse do adotando.
Além disso, por se tratar de uma regra ampla que permite a análise
pormenorizada de cada caso, todos encarregados da análise deverão verificar
concretamente se o pretendente, ou se os pretendentes, preenche todos os
requisitos para o deferimento da adoção, dentre eles se oferece ambiente familiar
adequado e se estará assegurado o melhor interesse da criança ou do adolescente.
Quanto ao melhor interesse da criança e do adolescente, o artigo 43 do
Estatuto prevê que a adoção deve ser deferida quando apresentar reais vantagens
para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.
O melhor interesse da criança e do adolescente tem que ser a diretriz
norteadora para se ajustar o preceito legal às exigências do caso concreto. Pode
ocorrer do pretendente à adoção preencher todos os requisitos legais necessários
300
301
SILVA JÚNIOR, 2005, p. 115.
Ibidem, p. 109.
103
para o deferimento do pedido de adoção e o magistrado indeferi-lo por não
vislumbrar atendimento a esses interesses. 302
Desta feita, cabe esclarecer que se atingirá o melhor interesse da criança ao se
perquirir a real motivação da adoção em ambos os pretendentes à adoção. 303
Os motivos passam a ser legítimos quando a intenção do adotante está em
perfeita harmonia com a finalidade do próprio instituto. A intenção do
adotante deve corresponder em essência às aspirações reais, morais e às
necessidades sociais do instituto, que tem como meta maior o alcance do
304
bem-estar do menor.
Tentando tornar menos subjetivo o princípio do melhor interesse da criança e
do adolescente no que diz respeito aos casos de adoção por homossexuais, é que
se analisarão alguns estudos sobre o efeito da institucionalização e da convivência
de crianças e adolescentes em lares homoafetivos.
Torna-se relevante demonstrar a unanimidade dos estudos sobre os efeitos da
institucionalização na vida dessas pessoas, para que mais adiante se estabeleça o
melhor interesse da criança e do adolescente em determinadas situações.
Salienta-se que por ser a família a base da sociedade, é “impossível
compreendê-la, senão à luz da interdisciplinaridade”.305 Assim, vale observar a
disposição do psiquiatra Maurício Lougon:
A experiência brasileira neste campo demonstra, com demasiada
freqüência, que os desvios de comportamento que originavam as assim
chamadas instituições normatizadoras (SAM, FUNABEM, etc.) eram por
essas últimas multiplicados e cristalizados, gerando adultos com mutilações
306
psicológicas irreversíveis.
Afirma o doutrinador e psiquiatra acima citado307 que não é difícil encontrar um
grande elenco de pesquisadores com constatações semelhantes a essa, o que se
deve ao fato de ser inquestionável o consenso dos estudiosos a respeito dos
302
LISBOA, 1996, p. 65.
MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Motivação interna da decisão de adotar: adoção por casais e por pessoas
singulares. Revista Brasileira de Direito de Família, ano IV, n. 14, p. 43-50, ju./set. 2002. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2002.
p. 45.
304
LISBOA, op. cit., p. 64.
305
FARIAS, 2002, p. 26.
306
LOUGON, Maurício. A saúde mental e o Direito à Convivência Familiar em face do Melhor Interesse. p. 433-466. In:
PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 435.
307
Ibidem, p. 435.
303
104
malefícios causados pela institucionalização. Segundo o psiquiatra, o pesquisador
Barton, 1974, demonstrou que a institucionalização causa transtornos psíquicos,
identificados por ele como ”neurose institucional”, causados por delongas em
instituições.
Dentre esses transtornos, algumas pesquisas realizadas demonstram a ligação
da institucionalização com a prática de atos infracionais pelos institucionalizados. A
pesquisadora Vera Vanin308, por exemplo, constatou que é freqüente que os
adolescentes em conflito com a lei sejam oriundos de abrigos e instituições.
Dito isso, conclui-se que a institucionalização é responsável pelo grande
número de adolescentes que praticam atos infracionais, ainda mais quando se
percebe que grande parte dos jovens infratores passou meses e até anos de suas
vidas institucionalizados, sendo que vários deles se iniciaram nas drogas quando
ainda se encontravam nas instituições, o que comprova o despreparo das
instituições. 309
Constatou-se na pesquisa ora citada que “mais de 90% deles é usuário de
drogas que vão desde o “cheirinho da loló” até o “craque”, passando pela maconha e
cocaína.”310
Outro mal da institucionalização é o fato de ocorrer o afastamento de crianças
e adolescentes do convívio social. E, em decorrência disso, as crianças
institucionalizadas
tornam-se
os
exemplos
mais
perfeitos
dos
resultados
devastadores da ausência de um amor direcionado, de uma relação de afetividade
estável e permanente. Ademais, na maioria das vezes essas crianças não foram
308
VANIN, Vera. O reflexo da institucionalização frente à prática do ato infracional. p. 697-717. In: PEREIRA, Tânia da Silva. O
melhor interesse da Criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 697. A autora fez um levantamento
do perfil de adolescentes que circulam com freqüência pela Vara da Infância e da Juventude de Caxias do Sul, apurando dados
significativos referentes às conseqüências da institucionalização.
309
Ibidem, p. 698.
310
Ibidem, p. 698.
105
desejadas pelos pais e, ao nascer, já se encontram privadas de direitos básicos
indispensáveis à promoção de sua dignidade humana.
A partir daí deduz-se que
A realidade das crianças e dos adolescentes que testemunhamos a nossa
volta, nada mais é, portanto, que a própria realidade por nós criada ou por
nós mantida com nossos hábitos individuais, com nossos usos coletivos e
311
com nossos costumes tradicionais.
Portanto, a importância de se ter uma família vai de encontro à importância de
se ter amor, carinho, atenção, respeito e cuidados viabilizados de forma
individualizada, devendo-se prevalecer na família pretensa à adoção a prédisposição e habilidade em proporcionar à criança um ambiente familiar saudável,
equilibrado e estável. Assim é que:
A identidade pessoal da criança e do adolescente tem vínculo direto com
sua identidade no grupo familiar e social. Seu nome e seus apelidos o
localizam em seu mundo. Sua expressão externa é a sua imagem, que irá
compor a sua individualização como pessoa, fator primordial em seu
312
desenvolvimento.
Além disso, a convivência familiar e comunitária viabilizará que a criança e o
adolescente desenvolvam sua individualidade e cidadania, benefícios que a
institucionalização não é capaz de oferecer. 313
Ratifica-se que a colocação da criança em um lar substituto, nesse estudo em
especial através da adoção, somente poderá se efetivar quando estiver cessada
toda e qualquer chance de permanência da criança e do adolescente na família de
origem (art. 92, inciso II do Estatuto). Essa característica também é muito importante
quando se analisa a questão da adoção por um casal homoafetivo.
Diz-se isso pelo fato de que esse casal, assim como qualquer outro, ao decidir
adotar passa pelo crivo da avaliação técnico-pericial e se dessa obteve o aval para a
adoção é porque certamente possui uma pré-disposição e boas condições para
311
312
313
SEDA, Edon. Construir o Passado. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 09.
PEREIRA, T., 1999, p. 15.
PERES, 2006, p. 144.
106
exercer a paternidade ou maternidade. Ao passo que as crianças e os adolescentes
institucionalizados encontram-se em um estado de abandono latente, mesmo que
estejam em instituições consideradas de boa qualidade, estão privados de uma
educação e um amor direcionados, estão privados da convivência familiar e
comunitária,
estão
em
estado
de
abandono
emocional,
marcado
pela
impessoalidade institucional.
Portanto, para essas crianças ou esses adolescentes, o fato de ter uma ou
duas mães, um ou dois pais é muito mais sadio e relevante emocionalmente que
permanecer em estado de abandono nas instituições, até que alguém considerado
hipocritamente com orientação sexual sadia resolva adotá-lo.
Rodrigo da Cunha Pereira314 adverte que todos insistem na busca de uma
normalidade sexual, como se fosse possível estigmatizar a orientação sexual como
certa e errada.
315
De acordo com Ana Carla Harmatiuk Matos316 o homossexual,
assim como o canhoto, faz parte de uma minoria presente em todas as sociedades,
em qualquer época, não havendo motivos para considerar a homossexualidade mais
contrária à natureza do que o uso da mão esquerda pelo canhoto.
O que se verifica na estigmatização é o
peso histórico dos prejulgamentos e das distorções na concepção sobre
sexualidade (de um modo geral), como lastro subjacente, que justifica
tamanho dimensionamento de realidades com as quais a sociedade já
convive há muito e, em alguns casos, à margem da legalidade – não raro,
de forma velada, por fugirem dos padrões estabelecidos, culturalmente,
317
para a sexualidade, como normais ou institucionais.
Parte-se
do
pressuposto
de
que
se
deve
priorizar
a
família
à
institucionalização, uma vez que a institucionalização, conforme demonstrado, não
314
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/
viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
315
Cumpre observar que em 1985, em uma das revisões periódicas, a OMS publicou circular na qual o homossexualismo
deixou de ser doença – constava antes disso na Classificação Internacional de Doenças n. 9 (CID 9), de 1975, no capítulo das
Doenças Mentais, como “Desvios e Transtornos Sexuais”, sob o código 302. Conseqüentemente em 1995, na CID 10
desapareceram as referências à homossexualidade como doença. MORAES, 2000, p. 95-96.
316
MATOS, 2004, p. 45.
317
SILVA JÚNIOR, 2005, p. 92-93.
107
cumpre com a proteção e com o desenvolvimento psíquico e sadio do menor; e,
considerando que a união homoafetiva é uma entidade familiar – desde que seja um
lar respeitável, duradouro e que esteja presente a affectio maritalis –, deve-se
priorizá-la à institucionalização.
No que diz respeito ao receio da convivência das crianças e dos adolescentes
com famílias homoafetivas, cumpre observar que muitas pesquisas apresentadas
sobre o assunto, demonstram que as crianças ou os adolescentes criados por casais
homoafetivos não possuem nada de diferente das crianças ou dos adolescentes
criados por casais heterossexuais.
Contudo, ainda não existem conclusões definitivas se a orientação sexual dos
pais interfere na educação de crianças e adolescentes, mas fato certo e
demonstrado pelas pesquisas existentes é que além de não demonstrar nenhum
prejuízo para essas crianças, demonstra que o afeto e a sólida estrutura emocional
são elementos indispensáveis e preponderantes ao saudável desenvolvimento da
prole. 318
O texto seguinte foi retirado de uma pesquisa coordenada por Ellen C. Perrin
na Academia Americana de Pediatria,319 também utilizado pelo desembargador Luiz
Felipe Brasil Santos ao relatar a pioneira decisão do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul que ratificou o deferimento da adoção de duas menores à
companheira da mãe adotiva dessas320, segue o abstract da pesquisa:
A growing body of scientific literature demonstrates that children who grow
up with 1 or 2 gay and/or lesbian parents fare as well in emotional, cognitive,
social, and sexual functioning as do children whose parents are
heterosexual. Children’s optimal development seems to be influenced more
by the nature of the relationships and interactions within the family unit than
321
by the particular structural form it takes.
318
SILVA JÚNIOR, 2005, p. 93.
PERRIN, Ellen C. Technical Report: Coparente or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parentes. PEDIATRICS, vol. 109
n.º 2, February 2002, p. 341-344. Disponível em: http://aappolicy.aappublications.org/cgi/content/full/pediatrics;109/2/341
Acesso em: 04 jun. 2006.
320
Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf Acesso em: 20 mar. 2006.
321
PERRIN, op. cit., p. 341-344.
319
108
Ademais, a Academia Americana de Pediatria322 reconhece que as crianças
adotadas apenas por uma pessoa homossexual, mas que na verdade são criadas
pelo casal do mesmo sexo, necessitam ter reconhecida legalmente a paternidade ou
maternidade de ambos. Assim dispôs o artigo:
Children who are born to or adopted by 1 member of a same-sex couple
deserve the security of 2 legally recognized parents.
…
The American Academy of Pediatrics recognizes that a considerable body of
professional literature provides evidence that children with parents who are
homosexual can have the same advantages and the same expectations for
health, adjustment, and development as can children whose parents are
heterosexual. When 2 adults participate in parenting a child, they and the
323
child deserve the serenity that comes with legal recognition.
No mesmo sentido concluiu a pesquisa de María del Mar González:
Por lo que sabemos a partir de distintas investigaciones, los aspectos clave
más bien están relacionados con el hecho de que en ese hogar se aporte a
chicos y chicas buenas dosis de afecto y comunicación, se sea sensible a
sus necesidades presentes y futuras, se viva una vida estable con normas
razonables que todos intentan respetar, al tiempo que se mantengan unas
relaciones armónicas y relativamente felices. Por tanto, y particularizando
en los objetivos de este estudio, la orientación sexual de los progenitores,
en sí misma, no parece ser una variable relevante a la hora de determinar el
modo en que se construye el desarrollo y ajuste psicológico de hijos e
324
hijas.
Outros estudos, como o de Melvis, Levis, Fred e Wolkmar325 e de Susan
Golombok e Fiona Tasker326, demonstram que a grande maioria das crianças que se
desenvolvem em famílias lésbicas, identifica-se como heterossexual: “the large
majority of children who grew up in lesbian families identified as heterosexual.” 327
Se a orientação sexual dos pais influenciasse na orientação sexual dos filhos,
certamente todos os homossexuais seriam filhos de homossexuais, mas ao que tudo
indica esse raciocínio não possui nenhuma ligação.
322
SMITH, Karen (Coord. ). Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents. PEDIATRICS, vol. 109 No. 2 February
2002, p. 339-340. Disponível em: http://pediatrics.aappublications.org/cgi/content/full/109/2/339 Acesso em: 04 jun. 2006.
323
Ibidem.
324
GONZÁLEZ , María del Mar. Dinámicas familiares, organización de la vida cotidiana y desarrollo infantil y adolescente en
familias homoparentales. Disponível em: http://www.felgt.org/WebPortal/_felgt/archivos/137_es_Desarrollo%20infantil%20y%
20adolescente%20en%20familias%20homoparentales.pdf Acesso em: 05 jun. 2006. p. 56.
325
MELVIS, LEVIS, FRED E WOLKMAR. Aspectos clínicos do desenvolvimento da infância e da adolescência. 3 ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 99. Apud DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 3 ed. rev. e
atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 114.
326
GOLOMBOK, Susan; TASKER, Fiona. Developmental Psychology. 1996 Jan. vol 32 (1) 3-11. Disponível em:
http://content.apa.org/journals/dev/32/1/3 Acesso em: 04 jun. 06.
327
Ibidem.
109
Além disso, os filhos também não convivem apenas com os pais, mas com a
sociedade. Sendo assim, será que os filhos que são homossexuais e que não
possuem pais homossexuais conviveram com uma sociedade predominantemente
homossexual? Provavelmente não. Mais uma vez resta a conclusão de que o meio
homo ou heterossexual não influência na orientação sexual do indivíduo.
Rodrigo da Cunha Pereira328 observa que mesmo se a criança conviver com o
ambiente doméstico homossexual, as relações mais amplas em que ela deverá se
inserir, certamente estarão marcadas por relações heterossexuais.
Maria Berenice Dias também cita em uma de suas obras329 o resultado de
pesquisas realizadas na Califórnia, desde 1970, em que se objetivava o estudo de
famílias não-convencionais, dentre elas as formadas por casais do mesmo sexo.
Concluiu-se que as crianças que são criadas nessas famílias são tão ajustadas
quanto as crianças de casais heterossexuais, nada havendo de incomum quanto ao
desenvolvimento dos seus papéis sexuais.
Demonstrou-se que as pesquisas existentes sobre a influência da convivência
de crianças e adolescentes em famílias homoafetivas revelaram que essas crianças
não apresentam nada de diferente, muito menos de prejudicial quando comparadas
às crianças e aos adolescentes que vivem em famílias heterossexuais.
Dessa forma, torna-se inconcebível que seja inviabilizado a adoção aos casais
homossexuais com base em justificativas não comprovadas, mas apenas de cunho
especulatório e preconceituoso. Até porque, quando se nega a adoção aos casais
homoafetivos, leva-se em consideração a questão da homossexualidade e não a
capacidade no desempenho da paternidade ou da maternidade.
328
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 153. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/
viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
329
DIAS, 2004, p. 97.
110
Contrabalanceando
o
resultado
das
pesquisas
que
apresentam
a
institucionalização como responsável por danos incalculáveis na vida dos
institucionalizados, juntamente com o resultado das pesquisas que revelam que a
convivência de crianças e adolescentes em famílias homoafetivas não apresenta
nenhum dano se comparado àqueles que crescem em famílias heterossexuais, fica
evidente que a proibição da adoção por casais homoafetivos afronta de forma
agressiva o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
Estaria em melhores condições a criança ou o adolescente que vive em uma
instituição ou em uma família homoafetiva? Parece que se posicionar de forma
contrária à adoção por homossexuais é preferir conviver com a alta probabilidade
dos institucionalizados de se drogarem, de praticarem atos infracionais e de se
tornarem “perigosos” para a sociedade, a imaginar que esse menor pode sofrer
influência homossexual, mesmo que as pesquisas desmistifiquem essa suposição.
Esclarece Enézio de Deus Silva Júnior que “entre um lar afetivo e
materialmente bem estruturado e a realidade excludente, aponta o bom senso para
a relevância do primeiro em prol do bem-estar do adotando.”330
Portanto,
Dificultar, burocratizar ou impedir a adoção por homossexuais, na verdade,
é negar às crianças, abandonadas pelos pais, ou que foram delas retiradas
em razão de violência, o direito de serem colocadas em famílias substitutas,
331
onde poderiam ter o carinho e o cuidado de que necessitam.
Apesar de todo o exposto, muitos ainda são contra a adoção por casais
homoafetivos, podendo-se citar como exemplos: Maria Celina Bodin de Moraes,332
Eduardo de Oliveira Leite 333 e Luiz Carlos de Barros Figueiredo. 334
330
SILVA JÚNIOR, 2005, p. 115.
DIAS, 2006, p. 109.
MORAES, 2000, p. 110-111.
333
LEITE, Eduardo de Oliveira. Adoção por homossexuais e o interesse das crianças. p. 101-143. In: LEITE, Eduardo de
Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade. Adoção: aspectos jurídicos e metajurídicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
334
FIGUEIRÊDO, 2005, p. 94.
331
332
111
Maria Celina Bodin de Moraes335 entende que a união homoafetiva deve ser
considerada como uma espécie particular de entidade familiar. Todavia, nega que se
deve estender o direito à adoção aos casais homoafetivos, apesar de reconhecer
que na realidade, por se permitir a adoção individual, muitas crianças convivam com
o parceiro de quem as adotou juridicamente. Além disso, explica também que a
condição de homossexual, nos casos de adoção individual, não poderia servir de
empecilho para que se deferisse uma adoção.
Por outro lado, segundo a autora supramencionada:
Os fundamentos ético-jurídicos que determinam que se atribua relevância
jurídica às uniões civis, como espécie particular de entidade familiar, quais
sejam, o princípio da dignidade humana da pessoa, a realização de um
direito de liberdade individual e a paridade de pessoas homossexuais não
se mostram suficientes para que se estenda esta relevância também à
336
filiação.
Ao que tudo indica, a autora posiciona-se dessa forma por entender que ao
sopesar o interesse individual de ter filhos com o melhor interesse da criança, esse
último deve ter relevância superior ao outro. 337
Entretanto, os direitos que devem ser sopesados não são esses apresentados
pela autora, mas se a criança ou o adolescente estará melhor em uma família
substituta, hetero ou homossexual, ou em uma instituição? E ainda se estará
garantido o seu melhor interesse quando for adotado por apenas um homossexual,
mas na realidade conviver com o casal?
Justamente por ter relevância maior o melhor interesse da criança e do
adolescente que qualquer outro interesse é que se deve permitir às crianças e aos
adolescentes a possibilidade de serem adotados por uma família, quer seja hetero
ou homossexual, capaz de viabilizar-lhes a promoção da dignidade humana.
335
336
337
MORAES, 2000, p. 110.
Ibidem, p. 110.
Ibidem, p. 111.
112
Eduardo de Oliveira Leite338, por seu turno, acredita que quando se fala na
adoção de uma criança o que vem à cabeça é uma relação triangular, envolvendo
três personagens: pai, mãe e criança. Afirma também o autor que um casal que não
pode ter filhos, adota e deixa de ser casal e adentra em um novo estado jurídico, o
familiar. Dispõe ainda que “só homem e mulher podem adotar uma criança”
339
,
estando, assim, excluída qualquer possibilidade de adoção por homossexuais. 340
Diante de tudo que se estudou sobre a evolução do instituto da adoção, desde
sua origem até início do século XXI, constatou-se que sua finalidade não é a mesma
de outrora. A adoção tem por finalidade, antes de dar uma criança a uma família, dar
uma família a uma criança. Ademais, se a adoção efetivamente simbolizasse uma
triangularização, conforme dispõe Eduardo de Oliveira Leite, a adoção singular não
existiria, nem nunca haveria existido. Ressalta-se ainda que em decorrência da
evolução das entidades familiares, a prole deixou de ser elemento indispensável à
formação das famílias, sendo muito comum famílias sem filhos, o que não as
descaracteriza como entidade familiar.
Luiz Carlos de Barros Figueiredo sustenta que, embora a adoção singular por
pessoa homossexual seja possível uma vez que não há vedação total a quem quer
que seja para adotar, sendo a análise da pretensão realizada à luz das regras
genéricas do Estatuto,341 a adoção por casais homossexuais é impossível, uma vez
que, por mais estável que seja a união homossexual não foi reconhecida pela
Constituição de 1988 como entidade familiar.342
Contudo, verificou-se no decorrer do estudo que em virtude do novo perfil da
família e em consonância com os princípios constitucionais, a união homoafetiva,
338
LEITE, 2005. p. 109.
Ibidem, p. 109.
340
Ibidem, p. 109.
341
FIGUEIRÊDO, 2005, p. 83.
342
Ibidem, p. 94.
339
113
apesar de não expressamente prevista no texto constitucional, deve ser considerada
uma entidade familiar e como tal deve ter garantido o direito à adoção.
O próprio autor supracitado343 dispõe que existem quatro circunstâncias legais
mais que suficientes para analisar se o caso concreto recomenda ou não o
deferimento da adoção e, apesar de se posicionar de forma contrária à possibilidade
jurídica da adoção por casais homoafetivos, não colocou a diversidade de sexo
como elemento indispensável ao casal que pretende adotar. Dispôs assim, como
circunstâncias
indispensáveis:
ambiente
familiar
adequado;
não
revelar
incompatibilidade com a natureza da medida; pleito fundado em motivos legítimos;
pleito que apresente real vantagem para o adotando.
Tem-se, portanto, que se são esses os elementos indispensáveis a serem
preenchidos pelos pretendentes à adoção, também os casais homoafetivos podem
preenchê-los.
O Tribunal do Rio Grande do Sul, de forma pioneira, confirmou a decisão da
Comarca de Bagé contestada pelo Ministério344 (ANEXO C), na qual se deferiu a
adoção à companheira da mãe adotiva de duas menores. O relatório elaborado pelo
desembargador Felipe Brasil Santos, contém os argumentos utilizados pelo
Ministério Público. Esses argumentos são, na maioria das vezes, os mesmos que
todos se utilizam para contrariar a adoção por casais homossexuais: consideração
de que a adoção deve imitar a filiação biológica; vedação legal à adoção por duas
pessoas, salvo se forem casadas ou viverem em união estável (art. 1622 do Código
Civil de 2002); não reconhecimento da união homoafetiva como uma espécie de
entidade familiar; receio de que essa convivência com um casal homoafetivo cause
343
FIGUEIRÊDO, 2005, p. 100.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0. Distrito Federal. Relator Min. Celso de
Mello. Requerente: Associação de Incentivo à educação e saúde de São Paulo e outro (a/s). Requerido: Presidente da
República/ Congresso Nacional. Julgado em: 03 fev. 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ADI3300.pdf
Acesso em: 20 mar. 2006.
344
114
efeitos danosos na criança ou no adolescente, como ter tendências homossexuais,
além do receio de que essas crianças e adolescentes sejam alvo de chacotas e
piadas passando por constrangimentos gerados pelo preconceito da sociedade.
Sobre esse último argumento vale citar uma colocação de Roger Raupp Rios:
Idéias desse tipo já foram utilizadas, por exemplo, para impedir casamentos
entre raças diferentes, para justificar segregação em escolas de brancos e
de negros, para impedir a criação e a adoção de crianças de raça, cor ou
345
etnia diversa da dos adotantes.
Rodrigo da Cunha Pereira observa também que a história já demonstrou que
“critérios de inclusão e exclusão trazem consigo um traço ideológico que não pode
mais ser desconsiderado pelo direito sob pena de se continuar repetindo injustiças e
reproduzindo ainda muito sofrimento.”346 Logo, essas práticas são inaceitáveis em
um Estado Democrático de Direito uma vez que elas colaboram para a discriminação
e exclusão social.
Sobre o preconceito que o adotado estará sujeito, dispõe Ana Paula Ariston
Barion Peres que:
...a assistência profissional por psicólogos ou assistentes sociais e o próprio
amor da família farão com que supere essa dificuldade, que é apenas mais
uma entre tantas outras que ocorrerão no decurso da vida e que, se
trabalhadas corretamente, contribuirão para que se torne um adulto mais
347
forte e preparado.
No que se refere à idéia da adoção ter por finalidade imitar a natureza, pode-se
afirmar que essa idéia advém da época em que se adotava para satisfazer um
interesse da família adotiva. O instituto da adoção estava diretamente relacionado
aos interesses, necessidades ou carências dos adotantes; o adotado servia apenas
para resolver o problema da infertilidade. Por esse motivo, “durante séculos da vida
da humanidade, a adoção serviu de instrumento para dar filhos a quem não os tinha,
345
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 143.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/
viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
347
PERES, 2006, p. 144.
346
115
daí afirmar-se: adoptio natura imitatur, isto é, a adoção imita a natureza.”348Dessa
forma, os casais que não tinham filhos recorriam à adoção como forma de imitar a
natureza, imitar a capacidade procriativa, até porque um dos objetivos do casamento
era a procriação.
Ademais, a adoção sempre foi uma ficção jurídica e como tal não tem ligação
direta com a realidade, mas, e tão somente, a partir da constitucionalização e do
Estatuto, com o afeto que une pais e filhos adotivos e que gera um vínculo parental
que não corresponde à realidade biológica. 349
Maria Berenice Dias350 salienta que existe também o distanciamento da
verdade nos casos em que o registro é levado a efeito somente pela mãe, o que não
quer dizer que o registrando não tem pai. Sendo assim, tanto na adoção como no
caso do registro ser realizado apenas pela mãe, o fato não condiz com a realidade.
Desse modo, a partir da Constitucionalização do instituto e do advento do
Estatuto, não mais se admite a idéia de que a adoção deve imitar a natureza, posto
que a finalidade da adoção não é mais a de dar uma criança a uma família, mas sim
de dar uma família a uma criança, analisando-se sempre o melhor interesse da
criança e do adolescente. Logo, melhor a criança estar inserida em uma família
hetero ou homoafetiva, que tenha condições de promover a sua dignidade humana,
do que permanecer institucionalizada e, conseqüentemente, propensa a todos os
malefícios causados pela institucionalização.
Outra questão também polêmica diz respeito à forma que ficará o registro de
nascimento da criança e/ou do adolescente. Ana Paula Ariston Barion Peres351
dispõe que a palavra “pais” contida no artigo 47, §1º do Estatuto e 54, 7º da lei 6.015
de 1973, se interpretada literalmente, conduz o intérprete à diversidade de sexo dos
348
FERNANDES, 2004, p. 101.
DIAS, 2006, p. 110.
350
Ibidem, p. 110.
351
PERES, 2006, p. 80-81.
349
116
pais. Todavia, segundo a autora supramencionada, a interpretação dos dispositivos
ora mencionados deve ocorrer de modo a compatibilizá-los com a Constituição e
seus princípios. Portanto, não se trata de banir a palavra “pais”, mas de interpretá-la
de forma condizente com o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente e com todos os princípios constitucionais.
Nesse sentido, ressalta-se a relevância de se interpretar a norma e os
princípios constitucionais de forma a que se lhe emprestem a maior eficácia
possível. 352
A ausência de lei não é impedimento, pois o art. 226 da CF é auto-aplicável.
A impossibilidade de filhos também não, pois a procriação não é a finalidade
indeclinável, famílias sem filhos também são protegidas e a adoção não
353
depende do estado civil dos adotantes.
O fato de a união homoafetiva não ser considerada entidade familiar foi
desmistificado quando se verificou que a dignidade humana da pessoa, consagrada
pela Constituição, necessita, para se realizar, que os direitos fundamentais da
pessoa estejam assegurados, tais como: o direito à privacidade, intimidade,
orientação sexual, igualdade, liberdade, incluindo-se a liberdade para formar a
entidade familiar que melhor realize a felicidade de seus membros.
Nesse sentido, “de nada adianta reconhecer ao cidadão a liberdade de se
autodeterminar sexualmente se, logo em seguida, promove-se contra ele
discriminação fundada no direito que lhe foi constitucionalmente garantido.”354
Quanto ao artigo 1622 do C/C de 2002, que praticamente repete um dispositivo
do C/C de 1916, verifica-se que esse dispositivo contraria de forma grosseira os
princípios constitucionais, principalmente quando se contrabalanceia os malefícios
comprovados da institucionalização com os argumentos infundados e apenas
352
353
354
FARIAS, 2004, p. 12.
BRAUNER; SCHIOCCHET, 2004, p. 320.
SILVA, 2002, p. 435.
117
estimados dos malefícios da convivência da criança e do adolescente com pais
homossexuais.
Parece que a preocupação do legislador ao inserir este dispositivo no Código
Civil de 1916 era zelar pelo casamento e pelos costumes morais da época; e, no que
diz respeito à permanência desse dispositivo no Código Civil de 2002, a única
explicação é a insistente preocupação do legislador com “a moral e os bons
costumes”, proibindo, assim, em um primeiro momento, a adoção por casais
homossexuais.
Clóvis Beviláqua já afirmava, na época em que interpretou a redação original
do Código Civil de 1916, que:
O que não permite o Código é que mais de uma pessoa, não sendo
cônjuges, possam adotar o mesmo filho (...). Assim como ninguém pode ter
mais de um pai pela natureza, também não o poderá ter pela lei, que
pretende com o instituto da adoção, imitar a natureza e suprir-lhe uma
355
deficiência.
Contudo, não se pode, no início do século XXI, dar a mesma interpretação ao
instituto que fora dada no início do século XX, até porque a finalidade do instituto
não é a mesma de outrora. Não tem mais o instituto a intenção de imitar a natureza
concedendo filhos a quem não os teve por meio natural, mas e tão somente dar uma
família a quem não a tem.
Acredita-se que tal dispositivo encontra-se eivado de inconstitucionalidade,
uma vez que, considerando a união homoafetiva protegida constitucionalmente,
desde que seja capaz de promover a dignidade de seus membros, nada obsta que a
essa família seja viabilizada a adoção.
Mesmo não considerando o artigo 1622 do CC/2002 inconstitucional, deve-se
atentar para o fato de que mais grave que violar uma regra é transgredir um
355
BEVILÁQUA, 1954, p. 272.
118
princípio.
356
E nesse caso em especial haveria transgressão gravíssima de vários
princípios, como o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e
outros princípios constitucionais, como o princípio da igualdade e da liberdade, por
exemplo.
Esse dispositivo, na prática, gera o pleitear de uma adoção singular que na
realidade inexistirá. 357
O fato de existirem crianças e adolescentes vivendo em lares cujo pai ou mãe
adotivo é homossexual conduz a realidade da convivência dessa criança e/ou
adolescente com duas mães ou dois pais adotivos, mesmo que apenas um deles o
tenha adotado efetivamente, ou melhor, juridicamente.
Isso se deve ao fato de que a legislação brasileira não proíbe a adoção singular
por uma pessoa homossexual, posto que a orientação sexual do adotante não pode
ser pressuposto, nem requisito para a adoção. Por isso, a adoção individual por
homossexual é “menos controvertida”358 que a adoção por casais homossexuais.
Ademais, a adoção não pode estar condicionada à preferência sexual do
adotante, sob pena de infringir-se o respeito à dignidade humana,359 o princípio da
igualdade e da vedação de tratamento discriminatório por orientação sexual.
Essa realidade demonstra que é inútil, e prejudicial à criança e ao adolescente,
a negativa da adoção ao casal homossexual, posto que a convivência, que é o
objeto principal do receio da maioria que se diz contrária à adoção por casais
homoafetivos, existirá independente da legalização.
Além do mais, cumpre observar que o receio da criação de crianças ou
adolescentes por casais homoafetivos, além de ser um argumento destituído de
caráter jurídico frente aos princípios constitucionais, nunca é exposto com
356
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 230.
MONACO, 2002, p. 46.
358
PERES, 2006, p. 84.
359
DIAS, 2004, p. 127.
357
119
fundamentos passíveis de comprovação de que a convivência da criança e/ou do
adolescente
em
uma
família
homoafetiva
é
prejudicial
ao
seu
sadio
desenvolvimento. Destarte, sempre advém com concepções morais e religiosas, que
vão de encontro a um preconceito que deve ser banido de um Estado Democrático
de Direito que se tem por laico.
Inviabilizar a adoção ao casal homossexual apenas mascara a realidade. Um
adotará e a criança e/ou o adolescente conviverá com o casal. Trata-se, portanto, de
uma grave violação ao melhor interesse da criança e do adolescente uma vez que
serão criados e educados em lares homossexuais, em famílias homossexuais, mas
apenas terão direitos em relação ao adotante legal.
Sendo assim, não terão assegurados – em caso de separação ou morte do
indivíduo que não pôde adotá-lo juridicamente – alguns direitos como: alimentação;
visitação; benefícios previdenciários e sucessão.
Faz-se imperiosa a necessidade de uma maior atenção a essa realidade, pois
“o intuito de resguardar e preservar a criança resta por lhe subtrair a possibilidade de
usufruir de direitos que de fato possui, limitação que afronta a própria finalidade
protetiva decantada na Carta Constitucional e perseguida pelo ECA.”360
Gustavo Mônaco361 afirma que nesses casos – de morte ou separação do casal
homoafetivo – a criança estará sujeita a uma espécie de “loteria”, na qual quem mais
sofrerá prejuízos será ela própria, posto que, como já aludido, não terá direitos em
relação àquele que não a pôde adotar. Não se trata apenas de efeitos patrimoniais,
mas de efeitos pessoais como, por exemplo, o direito aos alimentos – que, por ter
360
361
DIAS, 2004, p. 116.
MONACO, 2002, p. 46.
120
“estreita relação com a vida em si e suas condições materiais”362não se reveste
apenas de conteúdo patrimonial – e à visitação.
Sobreleva considerar que o direito aos alimentos
Relaciona-se não apenas ao direito à vida e à integridade física da pessoa,
mas, principalmente, à realização da Dignidade Humana, proporcionando
ao necessitado condições materiais de manter a sua subsistência. Seu
conteúdo está expressamente atrelado à tutela da pessoa e à satisfação de
363
suas necessidades fundamentais.
Sob esse aspecto, a inexistência do dever alimentar daquele que adotou de
fato, mas não de direito, acaba inviabilizando que a dignidade humana da criança ou
do adolescente esteja garantida, visto que o direito aos alimentos relaciona-se
diretamente com a realização da dignidade humana do indivíduo.
No que diz respeito à visitação, essa também é indispensável ao sadio
desenvolvimento da criança e/ou do adolescente, além de ser por meio dela que se
atenua a dor pela perda da convivência diária do adotado com ambos os “pais”.
Logo, a visitação não é um direito dos pais de terem seus filhos em companhia, mas
sim dos filhos de terem a companhia dos “pais”.
Dito isso, chega-se ao entendimento que, sendo a criança ou o adolescente
adotado judicialmente apenas por um indivíduo homossexual, mas convivendo com
o casal homoafetivo, terá violado direitos pessoais indispensáveis ao seu
desenvolvimento e, conseqüentemente, à realização da sua dignidade humana.
Apesar de Luiz Carlos de Barros Figueiredo ser contrário à adoção conjunta
por homossexuais, contraditoriamente afirma que “o olhar não deve ser dirigido para
a orientação sexual do pretendente e sim, se, no caso concreto, o deferimento
corresponde ou não o superior interesse da criança.” 364
362
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Teoria geral dos alimentos. p. 01-20. In: CAHALI, Francisco José (Coord.); PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coord.). Alimentos no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 03.
363
Ibidem, p. 01-02.
364
FIGUEIRÊDO, 2005, p. 90.
121
Assim, diante de todo o exposto pode-se aduzir que a adoção por casais
homoafetivos pode, da mesma forma que a adoção por casais heterossexuais,
corresponder ou não ao melhor interesse da criança e do adolescente, dependendo
da avaliação do caso concreto.
Dessa forma, apenas a leitura atenta e pormenorizada de cada pretensão, seja
de adoção singular ou conjunta por homo ou heterossexuais, pela equipe técnica
que se assegurará a boa aplicação da lei ao caso concreto.
Ademais,
...está na hora de abandonar a hipocrisia e reconhecer que os filhos
biológicos, adotivos ou gerados pelos modernos métodos de reprodução
assistida devem ser registrados em nome de quem exerce as funções
365
parentais, seja um ou dois pais, uma ou duas mães!
Em decorrência do exposto, torna-se evidente que o mais prejudicado nessa
relação será o adotado. Portanto, “o preconceito, a prevenção quanto á orientação
sexual do adotante, além de ser injusta, retrógrada e inconstitucional, não pode
prevalecer diante das necessidades, expectativas e proteção do adotado.”366
A adoção homoafetiva é muito mais que um direito da família homoafetiva, é
um direito dos que estão em abandono de serem inseridos em um lar.
É preciso ter em mente a prioridade de se buscar uma família substituta para a
criança ou o adolescente. Deve-se contrabalancear se o melhor interesse da criança
encontra-se em fazer parte de uma família homoafetiva, ou permanecer em
instituições que deveriam ser capazes de promover a dignidade humana dos
institucionalizados, mas efetivamente não cumprem sua função.
Verifica-se que “as demandas sociais devem receber uma solução a qual leve
em consideração todo o ordenamento jurídico, e não somente o artigo de lei
365
366
DIAS, 2004, p. 15.
FERNANDES, 2004, p. 105.
122
específico para o tema.”367 Nesse sentido, não se deve considerar o disposto no
artigo 1622 do C/C de 2002 e desconsiderar essa realidade, pois se estaria
desconsiderando o próprio princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente, uma vez que essa negação de direitos prejudica mais as crianças e os
adolescentes do que propriamente os casais homoafetivos.
As crianças e os adolescentes privados do direito de terem dois pais ou duas
mães são privados do direito de ter reconhecida a família que os ama e protege,
direito fundamental deles. Ao passo que os pais adotivos homossexuais têm violado
o direito à paternidade e maternidade, direito personalíssimo que é transgredido em
virtude da opção sexual. Toda essa violação de direitos afronta diretamente a
Constituição de 1988 que não compactua, mas, ao contrário, repugna qualquer
forma de aniquilação de direitos.
Dessa feita, conforme dispõe Gustavo Tepedino: “os tribunais devem rejeitar
prontamente quaisquer argumentos contrários ou a favor da adoção, que tenham
como base a opção sexual do adotante.” 368 O interesse fundamental a ser protegido
deve ser o do melhor interesse da criança e do adolescente, sendo inadmissível que
a inserção da criança e do adolescente no meio social e familiar seja afastada com
base no preconceito sexual. 369
Deve-se levar em consideração que o indeferimento da adoção com base em
preconceito pode destruir uma relação preexistente de afetividade e afinidade,
podendo ainda ser capaz de conduzir o adotando a um abrigo, situação que deve
sempre que possível ser evitada dado o risco potencial da institucionalização na vida
das crianças e dos adolescentes.
367
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. p. 103.
368
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Minorias no Direito Civil Brasileiro. In: FARIAS, Cristiano Chaves de
(Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Família:primeira série. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004. p. 108.
369
Ibidem, p. 108.
123
Logo, a interpretação da adoção no Estatuto deve considerar os fins sociais a
que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento (art. 6º do Estatuto), que necessitam, inquestionavelmente, de
crescer no seio de uma família, seja ela heterossexual ou homoafetiva.
Maria Berenice Dias ressalta que “a valorização da dignidade humana,
elemento fundamental do estado democrático de direito, não pode chancelar
qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais.”370
Além disso, permitir tal intento é violar a democracia e o desenvolvimento sadio
dos futuros cidadãos brasileiros. Nesse sentido,
...se a dignidade do ser humano é o valor convergente do atual sistema,
descabem concepções de Direito que abarquem um tratamento jurídico
inferior a determinadas pessoas em função de seu especial modo de ser –
371
já não há espaço para as discriminações por orientação sexual.
Em conformidade com a opinião de Rodrigo da Cunha Pereira: “um dos
principais critérios de expropriação da cidadania sempre foi o de desconsiderar o
diferente”.372 Nesse sentido, deve o legislador adaptar a lei aos costumes e
comportamentos da sociedade, respeitando as escolhas pessoais,
373
até porque,
deve-se considerar que as transformações na sociedade possuem uma maior
visibilidade e uma presença mais marcante das pessoas com orientação
homossexual, ocasionando uma evolução na aceitação dessas pessoas pela
sociedade.
Atribui-se, à sociedade, como um todo, e principalmente àqueles que detêm o
poder de julgar e legislar, a obrigação de transformar os pré-conceitos em conceitos
370
DIAS, 2004, p. 97.
MATOS, 2004, p. 57.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 149. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/
viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
373
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Reinventando o Direito de Família: novos espaços de conjugalidade e parentalidade.
Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, vol. 18, p. 79-107, abr./jun. 2004. Rio de Janeiro: Padma, 2004. p. 106.
371
372
124
evoluídos, para se chegar ao ponto de banir da sociedade brasileira qualquer
raciocínio que impeça a um indivíduo promover sua dignidade humana. Porém, é ao
direito que compete dizer a justiça, não se intimidando diante dos posicionamentos
morais ou religiosos de determinados grupos, “descabe confundir questões jurídicas
com questões morais ou religiosas.”374
Quando o direito da criança de ter uma família é violado, resta, a partir de
então, que a criança compreenda quão significativa é a hipocrisia da sociedade e
que ela faz parte de uma minoria e que, além disso, “todas as minorias são alvos de
exclusão social e jurídica.” 375 Além disso, “é a partir das diferenças e da convivência
com a alteridade que se faz a verdadeira democracia e torna-se possível estar mais
próximo do ideal de justiça.376
374
DIAS, 2004, p. 120.
Ibidem, p. 15.
376
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uniões de pessoas do mesmo sexo – reflexões éticas e jurídicas. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, vol. 31, p. 147-154, 1999. p. 151. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/
viewArticle/1869/0 Acesso em: 03 fev. 2006.
375
CONCLUSÃO
Procurou-se, através desta pesquisa, demonstrar a possibilidade jurídica da
adoção por casais homossexuais. Seria impossível a realização desse estudo se
primeiro não fossem observadas as transformações ocorridas na família e na
adoção.
Verificou-se que, ao longo da história, o perfil da família sofreu incalculáveis
transformações que desencadearam um processo de reestruturação da família. A
partir da Constituição de 1988, a família abandonou o modelo patriarcal,
hierarquizado e matrimonializado, que tinha como finalidade precípua a procriação e
apresentou-se plural, eudemonista e repersonalizada.
A base da família do final do século XX e início do século XXI não corresponde
a mesma que alicerçou sua origem. Nessa família pós Constituição de 1988 o afeto
passou a ser o elemento principal, a essência e a razão da formação das entidades
familiares, sendo relevante na exata medida em que contribui para a felicidade de
seus membros e, conseqüentemente, para a realização da dignidade humana
destes. Portanto, a família caracteriza-se pela busca de sua própria realização, do
bem-estar de seus membros.
Sobreleva ratificar que a dignidade humana é uma cláusula geral que
necessita, para se efetivar, que direitos fundamentais estejam assegurados, como,
126
nesse caso, o direito de ter uma família capaz de atender às necessidades dos seus
membros.
Neste contexto, não há como deixar de incluir a união homoafetiva, calcada no
sentimento, como uma espécie de entidade familiar, uma vez que a felicidade
individual dos membros dessa união representa uma importante e indispensável
ferramenta para que seja promovida a dignidade humana deles.
Logo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar fundado
em princípios constitucionais – liberdade, igualdade, proibição de discriminação em
virtude de orientação sexual – impossibilita que a essas uniões não seja conferido o
status de entidade familiar. Ademais, se não for conferido a essas uniões o status de
entidade familiar, encontrar-se-á indisponível a possibilidade de promoção da
dignidade humana desses grupos, uma vez que, como já se demonstrou, a
realização dessa está diretamente relacionada a efetiva garantia de direitos
fundamentais.
Diante disso, parece claro que o não reconhecimento da união homoafetiva
contribui, de forma essencial, para que a essas pessoas seja inviabilizada a
promoção da dignidade humana.
No que diz respeito à adoção, constatou-se que o dever de perpetuar o culto
doméstico foi o princípio do direito da adoção entre os antigos. As famílias que não
tinham filhos homens adotavam para assegurar a perpetuação do culto doméstico.
Sendo assim, a adoção realizava-se embasada no interesse dos pais adotivos.
Mesmo com o declínio da religião doméstica, a adoção permaneceu tendo por
objetivo satisfazer os interesses dos pais adotivos. O Código Civil de 1916 foi a
primeira legislação brasileira a sistematizar efetivamente a adoção, apresentando-a
como uma forma de suprir a falta de filhos, como um meio supletivo de obter filhos e
127
não uma forma natural de constituir família, ao mesmo tempo em que sua finalidade
era imitar a natureza.
Várias legislações surgiram depois do Código Civil – a lei 3.133 de 1957, a
legitimação adotiva, o Código de Menores de 1979 – e de forma tímida, aos poucos,
começavam a visar ao interesse do adotando, mas, em sua essência, continuavam
visando à satisfação do interesse dos pais adotivos.
Somente a partir da Constituição de 1988, art. 5º, §2º, de Declarações e
Convenções Internacionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, que
o melhor interesse da criança e do adolescente se sobrepôs a qualquer outro direito.
Sob esse novo panorama, a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de
direitos e não mais objetos dos direitos dos adultos, assim, lhes foram assegurados,
dentre outros direitos, o direito à convivência familiar e comunitária.
Dessa forma, o Estatuto assegurou que toda criança tem o direito de ser criada
e educada no seio da família natural e, quando esgotados os recursos de
manutenção com a família de origem, tem o direito à família substituta. Nesses
moldes a adoção, além de ser uma espécie de família substituta, apresenta-se como
uma forma alternativa de viabilizar à criança e ao adolescente, desprovidos de um
lar,
a convivência familiar e comunitária, capaz de promover-lhes a dignidade
humana.
Isto posto, chama-se a atenção para o fato de que o princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente tem direta relação com a viabilidade de
promoção da dignidade humana desses.
Assim, toda família que tenha a
capacidade de promover a dignidade humana de seus membros, tem também o
direito de adotar.
128
Verificando que a família homoafetiva possui condições inquestionáveis para
viabilizar a promoção da dignidade humana de seus membros, nada obsta que a
essa família seja garantido o direito de adotar. Ressalta-se, entretanto, que essa
possibilidade deve respeitar os mesmos pressupostos e passar pelas mesmas
avaliações que está sujeita a família heterossexual.
Dessa forma, o princípio do melhor interesse não pode ser analisado como um
entrave à possibilidade da adoção por casais homossexuais, ao contrário, deve ser o
norteador da viabilidade das adoções, quer seja por singulares, por casais
heterossexuais ou homossexuais. Jamais deve haver vedação à adoção por casais
homossexuais pela orientação sexual dos pretendentes, até porque todas as
adoções devem se basear na análise interdisciplinar dos profissionais.
Assim, o princípio do melhor interesse aliado ao princípio da dignidade humana
e da proibição da discriminação, inclusive por orientação sexual, possibilitou que se
vislumbrasse, juridicamente, a adoção por homossexuais, quer seja singular ou em
conjunto. Portanto, a viabilidade dessa espécie de adoção possui alicerces
baseados na dignidade da pessoa humana, no direito de ter garantido, na prática, os
princípios norteadores da constituição.
Além disso, há que se considerar que a inviabilidade da adoção por casais
homossexuais não torna extinta a convivência das crianças e dos adolescentes em
famílias homoafetivas. Isto se deve ao fato de que não existe nenhum dispositivo
legal que proíba adoção singular por homossexual.
Assim sendo, essa proibição apenas acarretará prejuízos às crianças e aos
adolescentes que forem privados de uma família ou forem adotados por apenas uma
pessoa, mas que estiverem, na realidade, convivendo com uma família homoafetiva.
No caso do casal se separar, a criança e o adolescente não terão direitos à visitação
129
e aos alimentos, direitos que contribuem para a promoção da dignidade humana
deles. Além disso, se vier a falecer o que adotou apenas de fato, o adotado não terá
assegurado direitos previdenciários, sendo estes apenas exemplos das inúmeras
conseqüências negativas que podem advir da ausência de tutela específica.
Dito isso, compete concluir que o debate em torno da possibilidade jurídica da
adoção paira no fato de se romper com antigos dogmas referentes à família e à
adoção. É chegada a hora de se repelir qualquer espécie de preconceito, de se
admitir que se encontram em melhores condições as crianças e os adolescentes que
vivem em famílias homoafetivas que aqueles que estão institucionalizados. Fadados
a uma vida que lhes priva o direito básico e fundamental da convivência familiar.
Acredita-se que a inviabilidade da adoção por casais homossexuais além de
representar mais uma forma de exclusão para os homossexuais, representa uma
exclusão ainda mais prejudicial para as crianças e os adolescentes, pois impedem
que eles usufruam de direitos fundamentais.
A vedação à adoção por casais homossexuais viola direitos da criança e do
adolescente, princípios constitucionais e, além disso, dificulta, desde cedo, a
viabilidade da promoção da dignidade humana.
Após todas as considerações realizadas, percebe-se a impropriedade de se
continuar pensando com preconceitos, com idéias conservadoras. Ao jurista cabe
pensar conceitos jurídicos, fundamentos jurídicos capazes de direcionar a sociedade
à igualdade, ao respeito às diferenças, à justiça. O princípio da dignidade humana
deve prevalecer sobre os valores morais e religiosos, para não se correr o risco da
aplicação da justiça ficar condicionada a esses conceitos.
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ANEXO A
142
143
144
ANEXO B
MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.300-0
DISTRITO FEDERAL
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
REQUERENTE(S): ASSOCIAÇÃO DE INCENTIVO À EDUCAÇÃO E
SAÚDE DE SÃO PAULO E OUTRO(A/S)
ADVOGADO(A/S):
FERNANDO
QUARESMA
DE
AZEVEDO
E
OUTRO(A/S)
REQUERIDO(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
REQUERIDO(A/S): CONGRESSO NACIONAL
EMENTA: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALTA
RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO
PERTINENTE
ÀS
UNIÕES
HOMOAFETIVAS.
PRETENDIDA
QUALIFICAÇÃO DE TAIS UNIÕES COMO ENTIDADES FAMILIARES.
DOUTRINA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº
9.278/96. NORMA LEGAL DERROGADA PELA SUPERVENIÊNCIA DO
ART. 1.723 DO NOVO CÓDIGO CIVIL (2002), QUE NÃO FOI OBJETO DE
IMPUGNAÇÃO NESTA SEDE DE CONTROLE ABSTRATO.
INVIABILIDADE, POR TAL RAZÃO, DA AÇÃO DIRETA. IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA, DE OUTRO LADO, DE SE PROCEDER À FISCALIZAÇÃO
NORMATIVA
ABSTRATA
DE
NORMAS
CONSTITUCIONAIS
ORIGINÁRIAS (CF, ART. 226, § 3º, NO CASO). DOUTRINA.
JURISPRUDÊNCIA (STF). NECESSIDADE, CONTUDO, DE SE DISCUTIR
O TEMA DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS, INCLUSIVE PARA
EFEITO DE SUA SUBSUNÇÃO AO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR:
MATÉRIA A SER VEICULADA EM SEDE DE ADPF?
DECISÃO: A Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas,
Bissexuais e Transgêneros de São Paulo e a Associação de Incentivo à Educação e
Saúde de São Paulo - que sustentam, de um lado, o caráter fundamental do direito
personalíssimo à orientação sexual e que defendem, de outro, a qualificação
jurídica, como entidade familiar, das uniões homoafetivas - buscam a declaração de
inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.278/96, que, ao regular o § 3º do art. 226
da Constituição, reconheceu, unicamente, como entidade familiar, “a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (grifei).
As entidades autoras da presente ação direta apóiam a sua pretensão de
inconstitucionalidade na alegação de que a norma ora questionada (Lei nº 9.278/96,
art. 1º), em cláusula impregnada de conteúdo discriminatório, excluiu, injustamente,
146
do âmbito de especial proteção que a Lei Fundamental dispensa às comunidades
familiares, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas por relações
homoafetivas.
Impõe-se examinar, preliminarmente, se se revela cabível, ou não, no caso, a
instauração do processo objetivo de fiscalização normativa abstrata. É que ocorre,
na espécie, circunstância juridicamente relevante que não pode deixar de ser
considerada, desde logo, pelo Relator da causa.
Refiro-me ao fato de que a norma legal em questão, tal como positivada,
resultou derrogada em face da superveniência do novo Código Civil, cujo art. 1.723,
ao disciplinar o tema da união estável, reproduziu, em seus aspectos essenciais, o
mesmo conteúdo normativo inscrito no ora impugnado art. 1º da Lei nº 9.278/96.
Uma simples análise comparativa dos dispositivos ora mencionados,
considerada a identidade de seu conteúdo material, evidencia que o art. 1.723 do
Código Civil (Lei nº 10.406/2002) efetivamente derrogou o art. 1º da Lei nº 9.278/96:
Código Civil (2002) “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição
de família.”
Lei nº 9.278/96 “Art. 1º. É reconhecida como entidade familiar a convivência
duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida
com objetivo de constituição de família.”
Extremamente significativa, a tal respeito, a observação de CARLOS
ROBERTO GONÇALVES (“Direito Civil Brasileiro – Direito de Família”, vol. VI/536,
item n. 3, 2005, Saraiva):
“Restaram revogadas as mencionadas Leis n. 8.971/94 n. 9.278/96 em face
da inclusão da matéria no âmbito do Código Civil de 2002, que fez
significativa mudança, inserindo o título referente à união estável no Livro de
Família e incorporando, em cinco artigos (1.723 a 1.727), os princípios
básicos das aludidas leis, bem como introduzindo disposições esparsas em
outros capítulos quanto a certos efeitos, como nos casos de obrigação
alimentar (art. 1.694).” (grifei)
147
A ocorrência da derrogação do art. 1º da Lei nº 9.278/96 – também
reconhecida por diversos autores (HELDER MARTINEZ DAL COL, “A União Estável
perante o Novo Código Civil”, “in” RT 818/11-35, 33, item n. 8; RODRIGO DA
CUNHA PEREIRA, “Comentários ao Novo Código Civil”, vol. XX/3-5, 2004, Forense)
– torna inviável, na espécie, porque destituído de objeto, o próprio controle abstrato
concernente ao preceito normativo em questão. É que a regra legal ora impugnada
na presente ação direta já não mais vigorava quando da instauração deste processo
de fiscalização concentrada de constitucionalidade.
O reconhecimento da inadmissibilidade do processo de fiscalização normativa
abstrata, nos casos em que o ajuizamento da ação direta tenha sido precedido –
como sucede na espécie – da própria revogação do ato estatal que se pretende
impugnar, tem o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema (RTJ 105/477,
Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 111/546, Rel. Min. SOARES MUÑOZ – ADI
784/SC, Rel. Min. MOREIRA ALVES):
“Constitucional. Representação de inconstitucionalidade. Não tem objeto,
se, antes do ajuizamento da argüição, revogada a norma inquinada de
inconstitucional.” (RTJ 107/928, Rel. Min. DECIO MIRANDA - grifei)
“(...) também não pode ser a presente ação conhecida (...), tendo em vista
que a jurisprudência desta Corte já firmou o princípio (...) de que não é
admissível a apreciação, em juízo abstrato, da constitucionalidade ou da
inconstitucionalidade de norma jurídica revogada antes da instauração do
processo de controle (...).” (RTJ 145/136, Rel. Min. MOREIRA ALVES grifei)
Cabe indagar, neste ponto, embora esse pleito não tenha sido deduzido pelas
entidades autoras, se se mostraria possível, na espécie, o ajuizamento de ação
direta de inconstitucionalidade proposta com o objetivo de questionar a validade
jurídica do próprio § 3º do art. 226 da Constituição da República.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de não
admitir, em sede de fiscalização normativa abstrata, o exame de constitucionalidade
148
de uma norma constitucional originária, como o é aquela inscrita no § 3º do art. 226
da Constituição:
“- A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias
dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de
outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida.
- Na atual Carta Magna, ‘compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, ‘caput’), o que implica
dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a
Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel
de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou
não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia
incluído no texto da mesma Constituição.
- Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para
sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais
inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a
Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado
ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte
originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao
próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam
consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas.
Ação não conhecida, por impossibilidade jurídica do pedido.” (RTJ 163/872873, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno - grifei)
Vale assinalar, ainda, a propósito do tema, que esse entendimento –
impossibilidade jurídica de controle abstrato de constitucionalidade de normas
constitucionais originárias – reflete-se, por igual, no magistério da doutrina (GILMAR
FERREIRA MENDES, “Jurisdição Constitucional”, p. 178, item n. 2, 4ª ed., 2004,
Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p.
2.333/2.334, item n. 1.8, 2ª ed., 2003, Atlas; OLAVO ALVES FERREIRA, “Controle
de Constitucionalidade e seus Efeitos”, p. 42, item n. 1.3.2.1, 2003, Editora Método;
GUILHERME PEÑA DE MORAES, “Direito Constitucional – Teoria da Constituição”,
p. 192, item n. 3.1, 2003, Lumen Juris; PAULO BONAVIDES, “Inconstitucionalidade
de Preceito Constitucional”, “in” “Revista Trimestral de Direito Público”, vol. 7/58-81,
Malheiros; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/287-288 e
290-291, item n. 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora).
Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível
de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância
149
jurídico-social da matéria – cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de
argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à
tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se
em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando
princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da
autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação
e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de
que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação
sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união
homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam,
em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito
e na esfera das relações sociais.
Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro
milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas
preconceituosas
inadmissíveis,
vem
sendo
externada,
como
anteriormente
enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas questões tem
colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir
verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas (LUIZ EDSON
FACHIN, “Direito de Família – Elementos críticos à luz do novo Código Civil
brasileiro”, p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar; LUIZ SALEM VARELLA/IRENE
INNWINKL SALEM VARELLA, “Homoerotismo no Direito Brasileiro e Universal –
Parceria Civil entre Pessoas do mesmo Sexo”, 2000, Agá Juris Editora, ROGER
RAUPP RIOS, “A Homossexualidade no Direito”, p. 97/128, item n. 4, 2001, Livraria
do Advogado Editora – ESMAFE/RS; ANA CARLA HARMATIUK MATOS, “União
entre Pessoas do mesmo Sexo: aspectos jurídicos e sociais”, p. 161/162, Del Rey,
150
2004; VIVIANE GIRARDI, “Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: a
possibilidade jurídica da Adoção por Homossexuais”, Livraria do Advogado Editora,
2005; TAÍSA RIBEIRO FERNANDES, “Uniões Homossexuais: efeitos jurídicos”,
Editora Método, São Paulo; JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, “A Natureza
Jurídica da Relação Homoerótica”, “in” “Revista da AJURIS” nº 88, tomo I, p.
224/252, dez/2002, v.g.).
Cumpre referir, neste ponto, a notável lição ministrada pela eminente
Desembargadora MARIA BERENICE DIAS (“União Homossexual: O Preconceito & a
Justiça”, p. 71/83 e p. 85/99, 97, 3ª ed., 2006, Livraria do Advogado Editora), cujas
reflexões sobre o tema merecem especial destaque:
“A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da
celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a
família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem
e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes.
Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes,
ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido
como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são
essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção
legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações
homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação,
mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem
iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas
características.
Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de
mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos
os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas
preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe
confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo
meramente religioso.
Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar
juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual
independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo.
Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento
amoroso.
Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável
que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união
estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade
familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas
pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister
reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos
parceiros, fazem jus à mesma proteção. Ao menos até que o legislador
regulamente as uniões homoafetiva - como já fez a maioria dos países do
mundo civilizado -, incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e
assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações
afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita
151
desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos
da sociedade. (...).” (grifei)
Vale rememorar, finalmente, ante o caráter seminal de que se acham
impregnados, notáveis julgamentos, que, emanados do E. Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul e do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
acham-se consubstanciados em acórdãos assim ementados:
“Relação homoerótica – União estável – Aplicação dos princípios
constitucionais da dignidade humana e da igualdade – Analogia – Princípios
gerais do direito – Visão abrangente das entidades familiares – Regras de
inclusão (...) – Inteligência dos arts. 1.723, 1.725 e 1.658 do Código Civil de
2002 – Precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a relação fática
entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua,
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família,
observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência.
Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se, os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da
analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea
modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em
regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a
partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações
desprovidas.”
(Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA
GIORGIS, 7ª Câmara Civil - grifei)
“(...) 6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação
sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por
imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. 7.
Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função
de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser
humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do
individuo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual,
sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto
não tivesse relação com a dignidade humana. 8. As noções de casamento e
amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e
formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados,
que num movimento de transformação permanente colocam homens e
mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas
afetivas e sexuais. 9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno
mundial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento
da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em
outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico
feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do
mesmo sexo. 10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações
sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às
modificações legislativas. 11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos
princípios norteadores daconstituição pátria, a união entre homossexuais
como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e
afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da
Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes
das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos
primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação
do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (...),
quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílioreclusão.”
152
(Revista do TRF/4ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João
Batista Pinto Silveira - grifei)
Concluo a minha decisão. E, ao fazê-lo, não posso deixar de considerar que a
ocorrência de insuperável razão de ordem formal (esta ADIN impugna norma legal já
revogada) torna inviável a presente ação direta, o que me leva a declarar extinto
este processo (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175), ainda que se trate, como na
espécie, de processo de fiscalização normativa abstrata (RTJ 139/67), sem prejuízo,
no entanto, da utilização de meio processual adequado à discussão, “in abstracto” –
considerado o que dispõe o art. 1.723 do Código Civil –, da relevantíssima tese
pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis
homoafetivas.
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 03 de fevereiro de 2006.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
ANEXO C
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LFBS
Nº 70013801592
2005/Cível
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS
DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE.
Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a
união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de
duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família,
decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam
adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em
que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a
qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão
inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez
preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotandose uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que
constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos
adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo
especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as
adotantes.
NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
APELAÇÃO CÍVEL
SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70013801592
COMARCA DE BAGÉ
MINISTERIO PUBLICO
APELANTE
LI. M. B. G.
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DESA.
MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE) E DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL.
Porto Alegre, 05 de abril de 2006.
154
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS,
Relator.
RELATÓRIO
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR)
Trata-se de recurso de apelação interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO,
irresignado com sentença que deferiu a adoção dos menores P.H. R.M. (3 anos e 6
meses) e J.V.R.M. (2 anos e 3 meses) a LI. M. B.G., companheira da mãe adotiva
dos menores L. R.M.
Sustenta que: (1) há vedação legal (CC, art. 1622) ao deferimento de adoção a
duas pessoas, salvo se forem casadas ou viverem em união estável; (2) é
reconhecida como entidade familiar a união estável, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família,
entre
homem
e
mulher;
(3)
nem
as
normas
constitucionais
nem
as
infraconstitucionais albergam o reconhecimento jurídico da união homossexual; (4)
de acordo com a doutrina, a adoção deve imitar a família biológica, inviabilizando a
adoção por parelhas do mesmo sexo. Pede provimento.
Houve resposta.
Nesta instância o Ministério Público opina pelo conhecimento e provimento do
apelo.
É o relatório.
VOTOS
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR) A requerente LI.M.B.G., fisioterapeuta e professora universitária, postula a
adoção dos menores P.H.R.M., nascido em 07.09.2002, e J.V.R.M., nascido em
26.12.2003.
Relata que ambos são filhos adotivos de L.R.M., com quem a ora
155
requerente mantém um relacionamento aos moldes de entidade familiar há oito
anos.
Em anexo estão os processos em que foi deferida a adoção de ambos os
menores, que são irmãos biológicos, a L.R.M..
Sinale-se que as crianças são
cuidadas por L. desde o nascimento.
A r. sentença recorrida julgou procedente o pleito. O recurso é do Ministério
Público e se baseia na impossibilidade de ser deferida a adoção conjunta a duas
pessoas, salvo se forem casadas ou mantiverem união estável (art. 1.622 do Código
Civil), o que não se configura no caso, diante do fato de que a pretendente da
adoção e a mãe já adotiva das crianças são pessoas do mesmo sexo. O parecer
ministerial nesta instância é no sentido do provimento (ressalvado o erro material
evidente na conclusão, ao dizer que opina pelo “improvimento”).
Com efeito, o art. 1.622 do Código Civil dispõe:
Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e
mulher, ou viverem em união estável.
No caso destes autos, L. (que já é mãe adotiva dos meninos) e LI. (ora
pretendente à adoção) são mulheres, o que, em princípio, por força do art. 226, § 3º,
da CF e art. 1.723 do Código Civil, obstaria reconhecer que o relacionamento entre
elas entretido possa ser juridicamente definido como união estável, e, portanto,
afastaria a possibilidade de adoção conjunta.
No entanto, a jurisprudência deste colegiado já se consolidou, por ampla
maioria, no sentido de conferir às uniões entre pessoas do mesmo sexo tratamento
em tudo equivalente ao que nosso ordenamento jurídico confere às uniões estáveis.
Dentre inúmeros outros julgados, vale colacionar, a título meramente exemplificativo,
o seguinte:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO.
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
156
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois
homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A
homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos,
não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões
que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é
que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros.
E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de
forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do
mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola
os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE
ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO.
A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito,
pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos
casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito,
em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado
provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos
Chaves. 1
Com efeito, o tratamento analógico das uniões homossexuais como entidades
familiares segue a evolução jurisprudencial iniciada em meados do séc. XIX no
Direito francês, que culminou no reconhecimento da sociedade de fato nas
formações familiares entre homem e mulher não consagradas pelo casamento. À
época, por igual, não havia, no ordenamento jurídico positivo brasileiro, e nem no
francês, nenhum dispositivo legal que permitisse afirmar que união fática entre
homem e mulher constituía família, daí por que o recurso à analogia, indo a
jurisprudência inspirar-se em um instituto tipicamente obrigacional como a sociedade
de fato.
Houve resistências inicialmente? Certamente sim, como as há agora em
relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo. O fenômeno é rigorosamente o
mesmo. Não se está aqui a afirmar que tais relacionamentos constituem exatamente
uma união estável. O que se sustenta é que, se é para tratar por analogia, muito
mais se assemelham a uma união estável do que a uma sociedade de fato. Por
quê? Porque a affectio que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem
os momentos bons e maus da vida é muito mais a affectio conjugalis do que a
1
AC 70009550070, J.EM 17.11.2004, Rel. Maria Berenice Dias.
157
affectio societatis. Elas não estão ali para obter resultados econômicos da relação,
mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de afeto, com o partilhamento de uma
vida em comum, é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união
estável, mas é uma entidade familiar à qual devem ser atribuídos iguais direitos.
Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva da
família eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da
felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal
pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade. É uma questão
de opção, ou de determinismo, controvérsia esta acerca da qual a ciência ainda não
chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e, como
tal, deve ser respeitada.
Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem é o amor. São
relações de amor, cercadas, ainda, por preconceitos. Como tal, são aptas a servir de
base a entidades familiares equiparáveis, para todos os efeitos, à união estável
entre homem e mulher.
Em contrário a esse entendimento costuma-se esgrimir sobretudo com o
argumento de que as entidades familiares estão especificadas na Constituição
Federal, e que dentre elas não se alinha a união entre pessoas de mesmo sexo.
Respondendo vantajosamente a tal argumento, colaciono aqui preciosa lição de
Maria Celina Bodin de Moraes2 , onde aquela em. jurista assim se manifesta :
O argumento jurídico mais consistente, contrário à natureza familiar da
união civil entre pessoas do mesmo sexo, provém da interpretação do Texto
Constitucional. Nele encontram-se previstas expressamente três formas de
configurações familiares: aquela fundada no casamento, a união estável
entre um homem e uma mulher com ânimo de constituir família (art. 226,
§3º), além da comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes (art. 226, § 4º). Alguns autores, em respeito à literalidade da
dicção constitucional e com argumentação que guarda certa coerência
lógica, entendem que ‘qualquer outro tipo de entidade familiar que se queira
criar, terá que ser feito via emenda constitucional e não por projeto de lei’.
2
A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional. In RTDC. v. 1.p. 89/112.
158
O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre
aqueles que compõem a chamada teoria da ‘norma geral exclusiva’
segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um
comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os
demais comportamentos3. Como se salientou em doutrina, a teoria da
norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos
ordenamentos jurídicos , há uma outra norma geral (denominada inclusiva),
cuja característica é regular os casos não previstos na norma, desde que
4
semelhantes a ele, de maneira idêntica . De modo que, frente a uma lacuna,
cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o
argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva,
através do argumento a simili ou analógico.
Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação, verificou-se que
outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc.,
mereceriam ser consideradas , muito especialmente para interpretação dos
textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da
segunda metade deste século. Sustenta a melhor doutrina, modernamente,
com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que
levem em conta trata-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto,
métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila.
Daí ser imprescindível enfatizar, no momento interpretativo, a especificidade
da normativa constitucional – composta de regras e princípios –, e
considerar que os preceitos constitucionais são, essencialmente, muito mais
indeterminados e elásticos do que as demais normas e, portanto, ‘não
predeterminam, de modo completo, em nenhum caso, o ato de aplicação,
mas este se produz ao amparo de um sistema normativo que abrange
5
diversas possibilidades’ . Assim é que as normas constitucionais
estabelecem, através de formulações concisas, ‘apenas os princípios e os
valores fundamentais do estatuto das pessoas na comunidade, que hão de
6
ser concretizados no momento de sua aplicação’ .
Por outro lado, é preciso não esquecer que segundo a perspectiva
metodológica de aplicação direta da Constituição às relações
intersubjetivas, no que se convencionou denominar de ‘direito civilconstitucional’, a normativa constitucional, mediante aplicação direta dos
princípios e valores antes referidos, determina o iter interpretativo das
normas de direito privado – bem como a colmatação de suas lacunas –,
tendo em vista o princípio de solidariedade que transformou,
completamente, o direito privado vigente anteriormente, de cunho
marcadamente individualístico. No Estado democrático e social de Direito,
as relações jurídicas privadas ‘perderam o caráter estritamente privatista e
inserem-se no contexto mais abrangente de relações a serem dirimidas,
tendo-se em vista, em última instância, no ordenamento constitucional.
Seguindo-se estes raciocínios hermenêuticos, o da especificidade da
interpretação normativa civil à luz da Constituição, cumpre verificar se por
que a norma constitucional não previu outras formas de entidades
familiares, estariam elas automaticamente excluídas do ordenamento
jurídico, sendo imprescindível, neste caso, a via emendacional para garantir
proteção jurídica às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, ou se, ao
contrário, tendo-se em vista a similitude das situações, estariam essas
uniões abrangidas pela expressão constitucional ‘entidade familiar’.
Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988, além dos dispositivos
enunciados em tema de família, consagrou, no art. 1º, III, entre os seus
princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, ‘impedindo assim
que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à
tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status
3
E.Zietelman, Lüken im Recht, (1903) e D. Donati. Il problema delle ordinamento giuridico (1910) apud N. Bobbio. Teoria do
Ordenamento Jurídico, (1950), Brasília-São Paulo: Ed. UNB-Polis, 1989, p. 132 e ss.
4
N. Bobbio. Teoria do Ordenamento. Op. cit. p.135.
5
E. Alonso Garcia. La Interpretacion de la Constituición. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 16.
6
J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 120.
159
7
constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família’ .
Assim sendo, embora tenha ampliado seu prestígio constitucional, a família,
como qualquer outra comunidade de pessoas, ‘deixa de ter valor intrínseco,
como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de
existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na media
em que se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da
8
personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes’ .
É o fenômeno da ‘funcionalização’ das comunidades intermediárias – em
9
especial da família – com relação aos membros que as compõem .
A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à ‘forma’ familiar
(pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em conseqüência,
pela tutela jurídica atualmente atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o
que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em
decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando
prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha –
isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio
mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer
sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes.
Se a família, através de adequada interpretação dos dispositivos
constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’,
não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que,
embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se
encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmo fundamentos
e com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras
formas de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera
seja a proibição de qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas,
especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se
configura como direito personalíssimo –, seja a razão maior de que o
legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a
com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, CF), tutelando-a onde quer
que sua personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição
brasileira, assim como a italiana, inspirou-se no princípio solidarista, sobre o
qual funda a estrutura da República, significando dizer que a dignidade da
pessoa é preexistente e a antecedente a qualquer outra forma de
organização social.
O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união estável’ o
legislador constitucional impôs o requisito da diversidade de sexo parece
insuficiente para fazer concluir que onde vínculo semelhante se estabeleça,
entre pessoas do mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre
entre heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser tutelados
de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos semelhantes e, portanto,
também, os deveres correspondentes. A prescindir da veste formal, a ser
dada pelo legislador ordinário, a jurisprudência – que, em geral, espelha a
sensibilidade e as convenções da sociedade civil –, vem respondendo
afirmativamente.
A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente
homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou
tendência não configura doença de qualquer espécie – a ser, portanto,
curada e destinada a desaparecer –, mas uma manifestação particular do
ser humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio fundamental
da dignidade da pessoa, ao qual está definitivamente vinculado todo o
ordenamento jurídico, e da conseqüente vedação à discriminação em
virtude da orientação sexual, parece que as relações entre pessoas do
mesmo sexo devem merecer status semelhante às demais comunidade de
afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar.
Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de
família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais
7
8
9
G.Tepedino. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.350.
Idem
P. Perlingieri. Il diritto civille nella legalitá constituzionale. Camerino-Napoli. ESI, 1984. p. 558.
160
exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da
proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a
tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como
portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como
um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam,
individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, §8º).
Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre
pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência
pública, contínua e com o objetivo de constituir família deve ser o mesmo que é
atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível
reconhecer, em tese, a essas pessoas o direito de adotar em conjunto.
É preciso atentar para que na origem da formação dos laços de filiação
prepondera, acima do mero fato biológico, a convenção social. É Villela10 que
assinala:
se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição
cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição
que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou
seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na
circunstância de amar e servir.
Na mesma senda, leciona Héritier11:
Não existem, até nossos dias, sociedades humanas que sejam fundadas
unicamente sobre a simples consideração da procriação biológica ou que
lhe tenham atribuído a mesma importância que a filiação socialmente
definida. Todas consagram a primazia do social – da convenção jurídica que
funda o social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, jamais um
simples derivado da procriação.
Além de a formação do vínculo de filiação assentar-se predominante na
convenção jurídica, mister observar, por igual, que nem sempre, na definição dos
papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social.
Neste passo, é Nadaud que nos reporta:
Indépendamment de la forme de la filiation, on remarque que ce lien de
filiation n’est qu’exceptionnellement, au regard de l’étendue des societés
humaines, superposable à l’engendrement biologique ou à la procréation: il
existe em effet une”‘dissociation entre la ‘verité bilogique de l’engendrement’
et la filiation”. Ce point est essentiel car il explique pourquoi, dans la plupart
10
VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte.
ano 27, n. 21, 1979.
11
Héritier, Françoise. A Coxa de Júpiter – reflexões sobre os novos modos de procriação. In:Estudos Feministas. ano 8, 1º
sem 2000. p. 98.
161
des societés, l’engendrement et la parenté sont deux choses distinctes. De
la même façon, quand on parle de père et de mère, et donc d’un individu
masculin ou féminin, il faut differencier ce qui est le sexe biologique de ce
qui est le sexe social, lesquels, bien souvant, sont loin de se recouper: bon
nombre de sociétés dissocient ainsi le sexe biologique du genre dans la
12
genèse des liens de filiation.
Melhor esclarecendo essa perspectiva, é novamente Héritier12 quem nos traz
da antropologia um exemplo que evidencia que em organizações sociais tidas por
primitivas o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo do sexo
masculino:
Num caso particularmente interessante encontrado entre os Nuer, é uma
mulher, considerada como homem, que enquanto pai, se vê atribuir uma
descendência. Nesta sociedade, com efeito, as mulheres que provam,
depois de terem sido casadas por tempo suficientemente longo, sua
esterilidade definitiva, retornam a sua linhagem de origem, onde são
consideradas totalmente como homens. Este é apenas um dos exemplos
em que a mulher estéril, longe de ser desacreditada por não poder cumprir
seu destino feminino, é creditada com essência masculina. A ‘bréhaigne’,
como mostra a etiologia proposta por Littré, é uma mulher-homem (de
‘barus’ = ‘vir’ em baixo latim), mas, pode-se, segundo a cultura, tirar dessa
assimilação conclusões radicalmente diferentes. Para os Nuer, a mulher
‘brehaigne’ acede ao status masculino. Como todo casamento legítimo é
sancionado por importantes transferências de gado da família do marido à
da esposa, este gado é repartido entre o pai e os tios paternos desta. De
volta à casa de seus irmãos, a mulher estéril se beneficia, então, na
qualidade de tio paterno, de parte do gado da compensação dada para suas
sobrinhas. Quando ela, dessa forma, constitui um capital, ela pode, por sua
vez, fornecer uma compensação matrimonial e obter uma esposa da qual
ela se torna o marido. Essa relação conjugal não leva a relações
homossexuais: a esposa serve seu marido e trabalha em seu benefício. A
reprodução é assegurada graças a um criado, a maior parte das vezes de
uma etnia estrangeira, que cumpre tarefas pastoris mas assegura também o
serviço de cama junto à esposa. Todas as crianças vindas ao mundo são do
‘marido’, que a transferência do gado designou expressamente, segundo a
lei social que faz a filiação. Elas portam seu nome, chamam-na ‘pai’, a
respeitam e não se estabelece nenhum laço particular com seu genitor, que
não possui direitos sobre elas e se vê recompensado por seu papel pelo
ganho de uma vaca, por ocasião do casamento das filhas, vaca que é o
prêmio por engendrar. Estatutos e papéis masculinos e femininos são aqui,
portanto, independentes do sexo: é a fecundidade feminina ou sua ausência
que cria a linha de separação. Levado ao extremo, esta representação que
faz da mulher estéril um homem a autoriza a representar o papel de homem
em toda sua extensão social.
12
EM TRADUÇÃO LIVRE: Independentemente da forma da filiação, observa-se que esse laço não é senão excepcionalmente,
em vista da diversidade das sociedades humanas, superponível ao engendramento biológico ou à procriação: existe, com
efeito, uma “dissociação entre a ‘verdade biológica do engendramento’ e a filiação”. Este ponto é essencial pois explica porque,
na maior parte das sociedades, o engendramento e a parentalidade são coisas distintas. Do mesmo modo, quando se fala de
pai e de mãe, e, portanto, de um indivíduo masculino ou feminino, é preciso diferenciar o sexo biológico do social, os quais,
freqüentemente, estão longe de coincidir: bom número de sociedades dissociam o sexo biológico do gênero na gênese dos
laços de filiação.
13
Héritier, Françoise. Op. cit. pp. 108/109.
162
Como se vê, nada há de novo sob o sol, quando se cogita de reconhecer a
duas pessoas de mesmo sexo (no caso, duas mulheres), que mantém uma relação
tipicamente familiar, o direito de adotar conjuntamente.
Resta verificar se semelhante modalidade de adoção constitui efetivo benefício
aos adotandos, critério norteador insculpido no art. 1.625 do Código Civil.
Nadaud14, em sua tese de doutorado, realizou estudo sobre uma população de
infantes criados em lares de homossexuais, constatando que:
(...) globalement, leurs comportements ne varient pas fondamentalement de
ceux de la population générale. Il ne s’agit donc pas d’affirmer que tous les
enfants de parents homosexuels “vont bien”, mais d’apporter uma pierre
supplémentaire à l’édifice des études qui montrent déjá que leurs
comportements correspondent à ceux des autres enfants de leur âge. Ce
qui revient absolutament pas à nier leur spécificité.
Não é diferente a conclusão a que chegaram Tasker e Golombok15:
Ce qui apparait clairement dans la présente étude, c’est que les enfants qui
grandissent dans une famille lesbienne n’auront pas necessairement de
problèmes liés à cela à l’âge adulte. De fait, les resultats de la présente
étude montrent que les jeunes gens élevés par une mère lesbienne
reussissent bien à l’âge adulte et ont de bonnes relations avec leurs famille,
leurs amie e leurs partenaires. Dans les décisions de justice que statuent
sur la capacité ou l’incapacité d’um adulte à élever um enfant, il conviendrait
de ne plus se fonder sur l’orientation sexuelle de la mère pour évaluer
l’intérêt de l’enfant.
Idêntica é a pesquisa de CJ. Patterson16, da Universidade de Virgínia (USA), ao
afirmar que:
Em resume, il n’existe pas de données que permettraient d’avancer que les
lesbiennes et les gays ne sont pas des parents adéquats ou encore que le
devoloppement psychosocial des enfants de gays ou de lesbiennes soit
14
EM TRADUÇÃO LIVRE: (...) globalmente, seus comportamentos não variam fundamentalmente daqueles da população em
geral. Não se trata de afirmar que todos os filhos de pais homossexuais “estão bem”, mas de acrescentar uma pedra
suplementar ao edifício dos estudos que mostram que seus comportamentos correspondem aos das outras crianças de sua
idade. O que não significa, absolutamente, negar sua especificidade. Nadaud, Stéphane. Op. cit. p. 302.
15
EM TRADUÇÃO LIVRE : O que aparece claramente no presente estudo, é que as crianças que crescem em uma família de
lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados a isso na idade adulta. De fato, os resultados do presente estudo
mostram que os jovens cuidados por uma mãe lésbica alcançam bem a idade adulta e têm boas relações com suas famílias,
seus amigos e seus parceiros. As decisões da justiça que avaliam a capacidade de um adulto em criar de uma criança não
devem se fundar sobre a orientação sexual da mãe para avaliar o interesse da criança.
Tasker, Fiona L. e Susan Golombok – Grandir Dans une Famille Lesbienne. In: Homoparentalités, état des lieux. Coord.:
Martine Gross. Paris: Éditions érès, 2005. p. 170.
16
EM TRADUÇÃO LIVRE: Em resumo, não há dados que permitam afirmar que as lésbicas e os gays não são pais adequados
ou mesmo que o desenvolvimento psicossocial dos filhos de gays e lésbicas seja comprometido sob qualquer aspecto em
relação aos filhos de pais heterossexuais. Nenhum estudo constata que os filhos de pais gays ou lésbicas são deficitários em
qualquer domínio significativo, em relação aos filhos de pais heterossexuais. Além disso, os resultados atuais deixam pensar
que os relacionamentos familiares fornecidos pelos pais gays e lésbicas são suscetíveis de sustentar e ajudar o
amadurecimento psicossocial dos filhos do mesmo modo que aqueles fornecidos pelos pais heterossexuais.
CJ. PATTERSON. Resultats des Recherches concernants l’homoparentalité. Texto cedido, por via eletrônica, pela Dra.
Elizabeth Zambrano.
163
compromis, sous quelques aspect que ce soit, par rapport à celui des
enfants de parents hétérosexuels. Pas une seule étude n’a constate que les
enfants de parents gays ou lesbiens sont handicapés, dans quelques
domaine significatif que se soit, par rapport aux enfants de parents
hetérosexuels. De plus, les résultats à ce jour laissent penser que les
environnements familiaux fournis par les parents gays et lesbiens sont
suscetibles de soutenir et d’aider la maturation psychosociale des enfants
de la même manière que ceux fournis par les parents hétérosexuels.
Na Universidade de Valência (ESP), o estudo de Navarro, Llobell e Bort17
aponta na mesma direção:
Los resultados ofrecen de forma unánime datos que son coherentes com el
postulado de la parentalidad como un proceso bidireccional padres-hijos
que no está relacionado com la orientación sexual de los padres. Educar y
criar a los hijos de forma saludable lo realizan de forma semejante los
padres homosexuales y los padres heterosexuales.
Também a Academia Americana de Pediatria (American Academy of
Pediatrics), em estudo coordenado por Ellen C. Perrin18, concluiu:
A growing body of scientific literature demonstrates that children who grow
up with 1 or 2 gay and/or lesbian parents fare as well in emotional, cognitive,
social, and sexual functioning as do children whose parents are
heterosexual. Children’s optimal development seems to be influenced more
by the nature of the relationships and interactions within the family unit than
by the particular structural form it takes.
Como se vê, os estudos especializados não indicam qualquer inconveniente
em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a
qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas
e que as liga a seus cuidadores.
É, portanto, hora de abandonar de vez os preconceitos e atitudes hipócritas
desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da
17
EM TRADUÇÃO LIVRE: Os resultados oferecem de forma unânime dados que são coerentes com o postulado da
parentalidade como um processo bidirecional que não está relacionado com a orientação sexual dos pais. Educar e criar os
filhos de forma saudável o realizam semelhantemente os pais homossexuais e os heterosexuais.
Frias Navarro, Pascual Llobell e Monterde Bort. Hijos de padres homosexuales: qué les diferencia. Texto cedido, em meio
eletrônico, pela Dra. Elizabeth Zambrano.
18
EM TRADUÇÃO LIVRE: Um crescente conjunto da literatura cientifíca demonstra que a criança que cresce com 1 ou 2 pais
gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto a
criança cujos pais são heterossexuais. O bom desenvolvimento das crianças parece ser influenciado mais pela natureza dos
relacionamentos e interações dentro da unidade familiar do que pela forma estrutural específica que esta possui. Ellen C.
Perrin : Technical Report: Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents. Texto cedido, em meio eletrônico, pela
Dra. Elizabeth Zambrano.
164
absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças
e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Como assinala Rolim19 :
Temos, no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e
orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de
mortificação e desamor até completarem 18 anos porque estão fora da faixa
de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o
direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e
respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo aquilo que ele oferece de
violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra,
ser adotadas por casais homossexuais. Alguém poderia me dizer por quê?
Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por
séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: - "Sim, é
preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem
adotadas por casais homossexuais" ? Ora, tenham a santa paciência. O que
todas as crianças precisam é cuidado, carinho e amor. Aquelas que foram
abandonadas foram espancadas, negligenciadas e/ou abusadas
sexualmente por suas famílias biológicas. Por óbvio, aqueles que as
maltrataram por surras e suplícios que ultrapassam a imaginação dos
torturadores; que as deixaram sem terem o que comer ou o que beber,
amarradas tantas vezes ao pé da cama; que as obrigaram a manter
relações sexuais ou atos libidinosos eram heterossexuais, não é mesmo?
Dois neurônios seriam, então, suficientes para concluir que a orientação
sexual dos pais não informa nada de relevante quando o assunto é cuidado
e amor para com as crianças. Poderíamos acrescentar que aquela
circunstância também não agrega nada de relevante, inclusive, quanto à
futura orientação sexual das próprias crianças, mas isso já seria outro tema.
Por hora, me parece o bastante apontar para o preconceito vigente contra
as adoções por casais homossexuais com base numa pergunta: - "que valor
moral é esse que se faz cúmplice do abandono e do sofrimento de milhares
de crianças?"
Postas as premissas, passo ao exame do caso, a fim de verificar se estão aqui
concretamente atendidos os interesses dos adotandos.
E também sob esse aspecto, a resposta é favorável à apelada.
Como ressalta o relatório de avaliação, de fls. 13/17 :
Li. de 39 anos e L. de 31 anos, convivem desde 1998. Em abril de 2003 L.
teve a adoção de P.H. deferida e, em fevereiro de 2004 foi deferida a
adoção de J.V.. Na época Li. participou da decisão e de todo o processo de
adoção auxiliando nos cuidados e manutenção das crianças.
Elas relatam que, procuram ser discretas quanto ao seu relacionamento
afetivo, na presença das crianças. Participam igualmente nos cuidados e
educação dos meninos, porém, é Li. que se envolve mais no deslocamento
deles, quando depende de carro, pois é ela quem dirige.
Li., diz que, é mais metódica e rígida do que L. e observou-se que é mais
atenta na imposição de limites.
Segundo a Sra. Iara, mãe de Li., a família aceita e apóia Li. na sua
orientação sexual, “ela é uma filha que nunca deu problemas para a família,
acho que as crianças tiveram sorte, pois têm atenção, carinho e tudo o que
necessitam, Li. os trata como filhos” (SIU). Coloca que Lí. e L. se relacionam
19
Rolim, Marcos. Casais homossexuais e adoção. Disponível em: http://www.rolim.com.br/cronic162.htm. Acesso em: 31 mar.
06.
165
bem. Observou-se fotos dos meninos e de Li. na casa dos pais dela, eles
costumam visitá-la aos finais de semana, quando almoçam todos juntos e
convivem mais com as crianças e L.. Com a família de L. a convivência é
mais freqüente, pois a mãe de L. auxilia no cuidado a J.V..
Com relação às crianças:
Os meninos chamam Li. e L. de mãe.
P.H. está com 2 anos e 6 meses, freqüenta a Escolinha particular
Modelando Sonhos, a tarde. A professora dele, L. B. F., informou que o
menino apresenta comportamento normal para sua faixa etária, se relaciona
bem e adaptou-se rapidamente. Li. e L. estão como responsáveis na escola
e participam juntas nos eventos na escolinha, sendo bem aceitas pelos
demais pais de alunos.
Observou-se que, P.H. é uma criança com aparência saudável, alegre e
ativo. J.V. faz tratamento constante para bronquite e, apesar dos problemas
de saúde iniciais, apresenta aparência saudável e desenvolvimento normal
para sua faixa etária. Durante a tarde, ele fica sob os cuidados da mãe de L.
enquanto L. e Li. trabalham. A Sra. N. coloca que os meninos são muito
afetivos com as mães e vice-versa.
L. coloca que até agora, não sentiu nenhuma discriminação aos filhos e,
P.H. costuma ser convidado para ir brincar na casa de coleguinhas da
escolinha. São convidados para festas de aniversário de filhas de colegas
de trabalho e amigos.
Situação atual:
Li. coloca que sempre pensou em adotar, o que se acentuou com a
convivência com L. e as crianças, pois se preocupa com o futuro dos
meninos, já que L. é autônoma e possui problema de saúde. E, ela já
pensou em uma situação mais estável, trabalha com vínculo empregatício
como professora da URCAMP, possuindo convênios de saúde e vantagens
para o acesso dos meninos ao ensino básico e superior. Coloca “a minha
preocupação não é criar polêmica mais resguardá-los para o futuro” (SIU).
Li. relata que, quando não está trabalhando, se dedica ao cuidado das
crianças. Refere-se à personalidade de cada um, demonstrando os vínculos
e convivência intensa que possui com os meninos. Diz que costuma limitar
a vida social às condições de saúde das crianças, principalmente J.V..
(...)
Parecer:
De acordo com o exposto acima, s.m.j., parece que, Li. tem exercido a
parentalidade adequadamente.
Com relação às vantagens da adoção para estas crianças, especificamente,
conhecendo-se a família de origem, pode-se afirmar que, quanto aos
efeitos sociais e jurídicos são inegáveis, quanto aos efeitos subjetivos é
prematuro dizer, porém existem fortes vínculos afetivos que indicam bom
prognóstico. (GRIFEI)
Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio
Edon Franco, ao determinar na sentença que no assento de nascimento das
crianças conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai
ou mãe.
Ante o exposto, por qualquer ângulo que se visualize a controvérsia, outra
conclusão não é possível obter a não ser aquela a que também chegou a r.
sentença, que, por isso, merece ser confirmada.
166
Nego, assim, provimento ao apelo.
DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL (REVISOR) - De acordo.
DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE) A Justiça tem por finalidade julgar os fatos da vida. E hoje temos diante dos
olhos um fato: dois meninos têm duas mães. Esse fato a Justiça não pode deixar de
enxergar.
Desde que nasceram, essas crianças foram entregues pela mãe biológica ao
casal de lésbicas e por elas são criadas. Para criarem um vínculo jurídico, para
assumirem a responsabilidade decorrente da maternidade, fizeram uso – como bem
disse o Relator – de um subterfúgio: uma delas buscou a adoção. Mas passaram
eles a ser criados por ambas, reconhecem as duas como mães, assim as chamam.
Consideram-se filhos de ambas, ou seja, detêm com relação a elas a posse de
estado de filho, estabelecendo com suas mães um vínculo de filiação.
De há algum tempo a Justiça já vem emprestando maior prestígio ao vínculo
afetivo. É este que é reconhecido como o prevalente ao biológico. Paulo Lôbo, um
dos nossos juristas maiores, inclusive encontra, em cinco normas constitucionais,
fundamento de que a filiação não é estabelecida pelo critério biológico, mas pelo
critério afetivo. Essa foi a escolha do legislador constitucional. Ao dizer a
Constituição que todos os filhos são iguais independentemente de sua origem, não
está preocupado com a verdade biológica (CF § 6º do art. 227). Ao estabelecer nos
§§ 5º e 6º do mesmo artigo a igualdade de direitos, também faz uma escolha pela
filiação afetiva. Ao referir à “comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”, inclui os filhos adotivos, com a mesma dignidade da família
constitucionalmente protegida, não sendo relevante a origem ou a existência de um
outro pai, que seria o genitor (CF, § 4º do art. 226). O direito à convivência familiar e
167
não à origem genética constitui prioridade absoluta de crianças e adolescentes (CF,
art. 227, caput). Igualmente o legislador, ao impor a todos os membros da família o
dever de solidariedade de uns aos outros: dos pais para os filhos e dos filhos para
os pais e de todos em relação aos idosos, também não está priorizando a filiação
biológica (CF arts. 229 e 230).20 Assim, tem assento constitucional a priorização da
filiação afetiva ou socioafetiva, como alguns preferem dizer.
Então, mister reconhecer que as duas mães mantêm um vínculo de filiação
com essas crianças. Uma delas tem vínculo jurídico decorrente da adoção,
buscando a outra o reconhecimento em juízo da filiação para assumir as
responsabilidades decorrentes do poder familiar. Fazem isso porque são sabedoras
das dificuldades que a ausência desse vínculo pode gerar aos filhos, eis que todos
os pais responsáveis querem preservar sua prole.
Ao depois, a apelada tem vínculo laboral, que garantirá maior segurança a
eles. É funcionária pública e professora universitária, ao contrário de sua parceira,
que, inclusive, tem problemas de saúde. Quer dar aos filhos a segurança de que, se
vier a falecer, terão direitos. Também quer ter a certeza, de que se vier a falecer a
mãe adotiva, terá a possibilidade de ficar com a guarda dos filhos, porque, se não
tiver vínculo nenhum, quiçá, nem com a guarda dos filhos poderá permanecer.
Então, a pretensão desta mãe é a de se impor obrigações e assegurar direitos aos
filhos, estabelecendo um vínculo jurídico com eles.
Em face disso é que a única observação que eu faria ao detalhado e preciso
voto do eminente Relator é um questionamento sobre a legitimidade do Ministério
Público em veicular o recurso de apelação contra a sentença que deferiu a adoção.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre as funções do Ministério
20
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Anais do IV
Congresso Brasileiro de Direito de Família. Afeto, ética e família e o novo Código Civil brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 515.
168
Público, está o de (art. 201, inc. VIII): “zelar pelo efetivo respeito aos direitos e
garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas
judiciais e extrajudiciais cabíveis”. Assim, inclusive, creio que teria o Ministério
Público legitimidade era para ingressar com ação de adoção cada vez que se
defrontasse com esta situação consolidada para regulamentar a situação jurídica
das crianças.
É chegada a hora de acabar com a hipocrisia e atender ao comando
constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes. Como há
enorme resistência de admitir a adoção por um par homossexual, mas não há
impedimento a que uma pessoa sozinha adote alguém, resolvendo o casal constituir
família, somente um busca a adoção. Não revela sua identidade sexual e no estudo
social que é levado a efeito, não são feitos questionamentos a respeito disso. A
companheira ou o companheiro não é submetido à avaliação e a casa não é
visitada. Via de conseqüência, o estudo social não é bem feito. Para a habilitação
deveria atentar-se a tudo isso, para assegurar a conveniência da adoção. Aliás, este
foi o subterfúgio utilizado pelas mães dessas crianças.
Ora, ao acolher-se eventualmente o recurso interposto por quem tem o dever
legal de proteger crianças e adolescentes, o que isto mudaria? Afinal, o que quer o
agente ministerial? Que essas crianças sejam institucionalizadas? Que as mãe se
separem?
Pelo jeito é isso que pretende o recorrente pois toda a linha de argumentação
que é vertido no recurso é de que a convivência poderia gerar conseqüências de
ordem comportamental ou na identidade sexual das crianças. Ora, se é perniciosa a
convivência o que quer o recorrente é acabar com o convívio, é afastar os filhos de
169
suas mães. Quem sabe colocá-las em um abrigo ou entregá-las em adoção a um
casal heterossexual.
Então, não consigo encontrar outra justificativa para o recurso a não ser o
preconceito. A falta de lei nunca foi motivo para a Justiça deixar de julgar ou de fazer
justiça. A omissão do legislador não serve de fundamento para deixar de reconhecer
a existência de direitos. O certo é que o acolhimento da apelação deixaria as
crianças ao desabrigo de um vínculo de filiação que já existe. Ao não se manter a
filiação dessas crianças com a sua mãe, estaríamos mantendo esta feia imagem da
Justiça, que é a da Justiça cega, com os olhos vendados. Temos de continuar, cada
vez mais, buscando uma Justiça mais rente à realidade da vida.
O voto do eminente Relator, que é uma decisão pioneira no Brasil, bem
retratou esta realidade. Acompanho-o, em todos os seus termos.
É como voto.
DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº
70013801592, Comarca de Bagé: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: MARCOS DANILO EDON FRANCO
ÍNDICE
RESUMO/ABSTRACT
INTRODUÇÃO........................................................................................................................09
PARTE I – DA FAMÍLIA
1. A evolução e o novo perfil das entidades familiares...........................................................13
1.1 Análise da evolução das entidades familiares e a importância do afeto....................15
1.2 A constitucionalização das entidades familiares.........................................................30
PARTE II – DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
2. Antecedentes históricos......................................................................................................41
2.1 A origem da adoção no Direito Romano.....................................................................42
2.2 O Código Civil de 1916 e as leis posteriores anteriores à Constituição de 1988.......46
3. Análise da adoção na legislação brasileira a partir da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988..................................................................................................55
3.1O Estatuto da Criança e do Adolescente.....................................................................58
3.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002............................65
3.3 A Função Social e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.......72
4. A questão jurídica da adoção por casais homossexuais....................................................82
4.1 Os princípios e garantias Constitucionais que asseguram à união homoafetiva o
status de entidade familiar......................................................................................................84
4.2 A possibilidade jurídica da adoção por casais homossexuais e o melhor interesse da
criança e do adolescente........................................................................................................95
CONCLUSÃO.......................................................................................................................125
REFERÊNCIAS....................................................................................................................130
ANEXO A – Jurisprudência sobre uniões homoafetivas tratadas pelo direito como sociedade
de fato...........................................................................................................141
ANEXO B – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300-0 Distrito
Federal..........................................................................................................145
ANEXO C – Jurisprudência sobre Adoção por casal formado por duas pessoas de mesmo
sexo...............................................................................................................153
ÍNDICE..................................................................................................................................170