universidade federal de minas gerais faculdade de educação
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: CONHECIMENTO E INCLUSÃO SOCIAL LUCAS CARVALHO SOARES DE AGUIAR PEREIRA "NO INTUITO DE PRODUZIR INFLUÊNCIA EDUCATIVA": delegacia de costumes e a prática do meretrício em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930) Belo Horizonte 2012 Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira "NO INTUITO DE PRODUZIR INFLUÊNCIA EDUCATIVA": delegacia de costumes e a prática do meretrício em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930) Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, na linha de pesquisa “História da Educação”, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Professora Doutora Andrea Moreno. Belo Horizonte Faculdade de Educação Agosto de 2012 Dissertação intitulada "No intuito de produzir influência educativa": delegacia de costumes e a prática do meretrício em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930), de autoria de Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira, apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação. BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Andrea Moreno (orientadora) Faculdade de Educação (FAE/UFMG) Prof. Dr. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO/UFMG) Profa. Dra. Ana Carolina Vimieiro Gomes Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH/UFMG) Prof. Bernardo Jefferson de Oliveira (suplente) Faculdade de Educação (FAE/UFMG) Prof. Adalson de Oliveira Nascimento (suplente) Escola de Ciências da Informação (ECI/UFMG) Para Bernadete e Leuelin Agradecimentos O final de uma longa jornada é um momento importante para reflexão, avaliação e comemoração dos desafios vencidos e perdidos ao longo do percurso. É uma ocasião em que podemos compartilhar o sabor doce, e ao mesmo tempo amargo, de mais uma passagem e agradecer àqueles que estiveram conosco nessa caminhada. Primeiramente, é preciso afirmar que não estaria onde estou sem minha mãe e meu pai, Bernadete e Leuelin. Não por eles terem vivido o carnaval de 1985 com paixão, gozando dos prazeres mundanos em meio ao riso e o escárnio que podiam desfrutar diante da crise econômica que se alastrava no país. Mas por terem me incentivado, desde a minha infância, a perseguir os caminhos dos estudos e por me apoiar, de diversas maneiras e às vezes até pela proibição, as minhas decisões heterodoxas. Meus irmãos, Bernardo e Matheus, também compartilharam comigo essas cobranças, além das consequências advindas da migração. A eles devo meu reconhecimento de que nada poderia ser feito sem a nossa caminhada coletiva. Agradeço, também, à vovó Ilka que por cinco anos me hospedou, me acolhendo de braços abertos, possibilitando minha inserção no mundo acadêmico, durante a graduação, sem maiores preocupações, que não envolvessem a universidade. Sem ela não poderia ter dedicado com tanto empenho meus esforços na minha formação acadêmica, direcionando a escassa, mas imprescindível, bolsa de iniciação científica diretamente para este fim. Mas as caminhadas também permitem que nos encontremos com diferentes sujeitos, oriundos de realidades e sociabilidades as mais diversas. Essas pessoas nos seduzem por suas manias, seus gestos, gostos, cheiros, palavras, interesses profissionais ou culturais, entre outras tantas doçuras ou amarguras que nos aproxima uns dos outros. Algumas delas podem se tornar mais do que amigos, mas também confidentes, parceiros, irmãos e até companheiros amorosos. Foi o que aconteceu com Iara, que se tornou minha companheira de viagem na brisa do amor, adoçando o amargo da vida. Ao seu lado enfrentei inúmeros desafios pessoais e profissionais, inclusive decisões cruciais para continuidade dos trabalhos de pesquisa. Ela foi a primeira leitora das versões iniciais dos capítulos desta dissertação, apresentando inconsistências na narrativa e indicando as falhas na redação. Agradeço, assim, pela companhia, pelo apoio e por existir ao meu lado, dando-me forças para seguir. Ao longo da graduação fiz muitos amigos que também contribuíram substancialmente para que eu pudesse realizar esta dissertação. Oferecendo um ombro, um ouvido, um colo, ou mesmo um “xerox”, eles me permitiram continuar, com mais leveza, essa caminhada. Lucas, 7 Camila, Luis Fernando, Olívia, Lilian, Lívia, Rony, Mauro, Pedro, Arthur, Gedey, Eliza, João Renato, Mário, Luísa, Lipeiras, Aléssio, Anelise, Mariana, Luca, Xandão, Paulo, Alexis, Edinho, Emanuel e Ulisses, fizeram parte da minha história e compartilham comigo esse percurso de formação acadêmica. Ao bonde do Barreiro/Contagem, da Yakuza e ao amigo tricordiano, fica minha gratidão especial pela companhia prazerosa. Ao Lucas e ao Luis, deixo meus agradecimentos particulares por compartilharem comigo leituras críticas das versões finais dos capítulos deste trabalho. À Anelise e Aléssio meus votos especiais pelo auxílio na reta final com a revisão da tradução do resumo. Com os amigos Didi, Nat, Iza, Doug, Biel, Davi, Brian, Igor, Isadoro, Alba, Nando, Bruno, Almir, Quiel, Tamara, Charles e William, aprendi a praticar formas libertárias de existir neste mundo. A todos, agradeço por me ensinarem a ler o mundo de maneira mais poética. Este trabalho não poderia ser realizado sem o carinho, atenção, disponibilidade e apoio da minha orientadora Andrea Moreno. Não fosse sua luta pela legitimidade do meu projeto de pesquisa, não estaria hoje onde estou, nem profissionalmente, nem academicamente. Desde a primeira disciplina cursada como isolada, em 2009, tenho uma admiração pelas suas propostas de leituras, pelas suas apostas nos objetos da história da educação e, principalmente, pela sua maneira de conduzir as tarefas, de forma a privilegiar a satisfação pessoal, em detrimento dos modelos desgastantes e perversos da produção acadêmica, e, mesmo assim, atentando para a qualidade dos trabalhos. A ela, agradeço por me ensinar a ler o mundo pela ótica das sensibilidades. Os professores integrantes do Centro de Memória da Educação Física, do Lazer e do Esporte – CEMEF, Tarcísio Vago, Meily Linhales, Marcus Aurélio Taborda de Oliveira e Ana Carolina Vimieiro Gomes influenciaram positivamente no desenvolvimento do projeto de pesquisa nas reuniões de formação realizadas no grupo de pesquisa. Os dois últimos participaram diretamente desse processo. Marcus Taborda teve papel importante na leitura do projeto final, com seu parecer favorável para que as pesquisas pudessem continuar, enquanto Ana Carolina realizou uma leitura atenta e desafiadora do meu texto de qualificação, provocando e incentivando a continuidade do trabalho de escrita. Aos dois, agradeço, ainda pela disponibilidade de participação da banca examinadora final deste trabalho. Nesta seara, aproveito para agradecer Adalson Nascimento e Bernardo Jefferson por aceitarem participar, como suplentes, do momento de avaliação final deste estudo. Agradeço a todos, enfim, por participarem do meu processo de formação acadêmica. 8 Este processo poderia ter sido profundamente mais desgastante e estressante não fossem a amizade e companheirismo dos integrantes do Centro de Pesquisa de História da Educação (GEPHE) e do Programa de Pós-Graduação em Educação: Luciano, Cássia, Maria Clara, Juliana, Luiz, Flávia, Itacir, Eduardo, Rodrigo, Solyane, Gynna, Anna, Verona, Ramona, Fabiana, Juliana, Gabriela, Priscila, Rita, Marileide, Cecília, Mateus, Mariana, Igor, Érica, Thiago Ranniery, Lívia Cardoso e Leonardo Lopes. A turma da Licenciatura indígena, com quem aprendi outras formas e possibilidades de desenvolvimento educativo e humano, também teve papel importante para minha permanência no curso de mestrado, nesses últimos trinta meses. Agradeço, assim, a Edi, Bela, Maíra, Paulo, Augusta, Márcia Spyer, Marcos Bortolus, Ana Gomes, Neide, Ediney, Abel, Nelson, Joel, Nilma, Jucilene, Francisca, Cristina, Valdete, Maria Aparecida e Cilene por essa experiência. E, ainda, aos funcionários do Programa de Pós-Graduação, Rosemary, Daniele e Ernane. Agradeço, também, a Bernardo Cambraia, pela disponibilidade, cordialidade, paciência e confiança, a quem fica minha dívida, talvez eterna, por não ter cumprido com o plano inicial do projeto de pesquisa, mas, principalmente, por ter me auxiliado a dar o primeiro passo para que essa dissertação pudesse ser produzida, pois sem seu auxílio o projeto que deu origem a este trabalho não teria sido redigido. Devo minha gratidão, ainda, aos funcionários do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – APCBH, Carminha, Luiza, Raphael, Ingrid e Carlinhos, com quem compartilhei instigantes horas de trabalho, que me auxiliaram a compreender melhor a cidade. Aos funcionários do Arquivo Público Mineiro – APM, Marta Melgaço, Elma e Dênis, pela cordialidade no atendimento e pelas orientações a mim dispensadas. Ao pessoal da Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, Marina Ferraz, Marius, Liliane e Jairo, a quem agradeço por compartilhar comigo longos, desgastantes, mas aconchegantes, dez meses de pesquisa nos jornais belohorizontinos. E, também, a Maria Lúcia, pela leitura atenciosa e criteriosa da versão final deste trabalho. Esse estudo não poderia ter sido produzido, enfim, sem as políticas de incentivo à Ciência e Tecnologia encabeçadas pelas agências de fomento à pesquisa no país, em especial pela atuação do CNPq. Na realidade, não fossem os mais 190 milhões de brasileiros vivos atualmente eu não poderia ter sido beneficiado com doze meses de uma bolsa de estudos do CNPq, sem a qual o presente estudo, certamente, seria completamente diferente, tanto no seu conteúdo, quanto na sua forma. A eles, deixo, assim, minha gratidão e reconhecimento. A vida boêmia de todas as cidades sempre foi o habitat de tipos singulares. Prostitutas, caftens, gigolôs e gente endinheirada sempre serviram de fonte inspiradora de escritores e artistas. Uma vez ou outra corria pela cidade a notícia de um caso pitoresco. Ficávamos sabendo dos atritos e desavenças, das brigas entre amantes, que costumavam ocorrer na madrugada. Se não se alastravam na letra de forma do jornal, corriam de boca em boca até o comentário chegar ao Bar do Ponto. (Delso Renault) À direita de quem entrava viam-se, encarapitadas nela, figuras de secretas, de dois ou três soldados de polícia e às vezes dos próprios doutores delegados (...) À menor ameaça de rolo (de gente sem importância) ouviam-se apitos trinados, surgiam como por encanto mais soldados e todos investiam contra a sala espancando a esmo – de chafalho, refle, tacape de tira e bengala três-folhas de delegado. (Pedro Nava) Resumo Este estudo analisa o processo de constituição e promoção de uma “educação moral”, encabeçado por uma polícia especializada, a polícia de costumes, que propôs uma série de intervenções na prática do meretrício, em Belo Horizonte, ao longo das décadas de 1920 e 1930. Pretendi compreender como a polícia participou da elaboração de um projeto de modernidade, que procurava forjar novos sujeitos, apostando na difusão de um “policiamento moral” capaz de transformar os comportamentos das meretrizes e permitir a consolidação de Belo Horizonte como uma cidade moderna. O período pesquisado corresponde ao momento em que a capital mineira vivenciou a ampliação e diversificação de sua malha urbana e dos setores econômico, cultural e social. Naquela ocasião estabeleceu-se uma vida noturna movida a bailes, cafés, apresentações dançantes, peças teatrais, exibição de filmes, noitadas em cabarés e botequins. Foi um período, também, em que a importância dada ao “problema da prostituição” pela polícia e por grupos sociais distintos ganhou outras dimensões, concorrendo para a organização de uma “polícia de costumes” e, posteriormente, de uma Delegacia de Costumes. Estas instâncias policiais elaboraram prescrições para a prostituição, que se transformaram, paulatinamente, em uma espécie de “projeto pedagógico”. As principais fontes mobilizadas neste estudo são relatórios dos chefes de polícia, de delegados e do secretário de segurança; colunas policiais publicadas nos jornais Diário de Minas e O Estado de Minas; e um conjunto de livros acadêmicos adquiridos pelo Serviço de Investigações da polícia mineira, além de leis pertinentes ao tema. Assim, o problema de pesquisa foi desenvolvido em três capítulos, nos quais analiso o processo de legitimação das propostas de intervenção da polícia na prática do meretrício, sob o ponto de vista da educação moral; as práticas de policiamento, que estiveram ligadas diretamente a esse processo, como as prisões correcionais, as medidas de vigilância e a admoestação; e as estratégias de racionalização da polícia civil, criando projetos de formação intelectual e física dos policiais. Nesse sentido, observa-se uma relação pedagógica estabelecida entre guardas-civis, meretrizes, clientes e outros sujeitos envolvidos com a prostituição, no período analisado. O processo educativo analisado neste estudo constitui-se, enfim, como uma luta entre diferentes “formas de viver a cidade”. Abstract This study analyses the process of development and promotion of a “moral education” headed by a specialized police in Belo Horizonte, a manners police, which proposed a series of interventions in the practice of prostitution over the decades of 1920 and 1930. This work purposed to understand how the police participated in the elaboration of a modernity project, which sought to forge new individuals, focusing on the dissemination of a "moral policing", able to transform the behavior of prostitutes and allow the consolidation of Belo Horizonte as a modern city. The period of time studied corresponds to the moment when the capital of Minas Gerais experienced the expansion and diversification of its urban fabric and the economic, cultural and social sectors. On that occasion a nightlife fueled by balls, cafes, dance performances, plays, movies, nights out in bars and cabarets was established. It was also a time in which the importance given to the "prostitution problem" by the police and social groups gained other dimensions, contributing to the organization of a "manners unit" and later, a Police Station of Manners. These police authorities planned guidelines for prostitution that gradually became a kind of "educational project". The main sources mobilized in this study are reports of police chiefs, delegates and the Secretary of Security; police columns published in the “Diário de Minas” and “O Estado de Minas”; and a set of scientific books purchased by the Service of Police Investigations, as well as laws related to the theme. Thus, the research problem was developed in three chapters, in which I analyze the legitimation process of the proposed police intervention in the practice of prostitution from the point of view of moral education; policing practices, which were linked directly to this process, such as correctional measures prisons, surveillance and admonition; and the strategies of rationalization of the civil police, creating projects for intellectual and physical training of the police officers. In this sense, there is a pedagogical relationship established between civil guards, prostitutes, clients and other individuals involved in prostitution in the period analyzed. The educational process analyzed in this study is constituted, finally, as a struggle between different "ways of living the city". Lista de Abreviaturas APM – Arquivo Público Mineiro BN – Biblioteca Nacional. BPLB – Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa CP – Chefe de Polícia. CSI – Chefe do Serviço de Investigações. FNJ – Fundação João Pinheiro FP – Força Pública MJNI – Ministro da Justiça e Negócios Interiores. SIC – Serviço de Investigações e Capturas. SP – Secretaria de Polícia. SSA – Secretaria de Segurança e Assistência Pública. PRM – Partido Republicano Mineiro. Sumário 1 APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 14 2 A POLÍCIA DE COSTUMES E O(S) PROJETO(S) DE PEDAGOGIZAÇÃO DO MERETRÍCIO ..................................................................................................................... 29 2.1 uma visada no problema da polícia de costumes ......................................................... 29 2.2 uma polícia de costumes em Minas? ........................................................................... 33 2.3 modernidade, educação moral e polícia na década de 1920 ......................................... 40 2.4 polícia de costumes e os mecanismos pedagógicos para uma educação moral. ............ 45 2.5 poder de polícia e luta pela localização do meretrício .................................................. 51 2.6 uma velha configuração da polícia entre novos e velhos problemas ............................. 63 3 IMPRESSÕES DE PRISÕES: policiamentos do meretrício e os jornais da capital ........ 68 3.1 os jornais e as notícias policiais .................................................................................. 71 3.2 os números policiais nos jornais .................................................................................. 73 3.3 a educação entre prisões e admoestações..................................................................... 84 3.4 polícia de costumes e os homens (e, novamente, as mulheres)..................................... 96 3.5 o doutor Edgard Franzen de Lima e suas políticas de moralização do espaço público 105 4 IDEIAS CIENTÍFICAS E FORMAÇÃO INTELECTUAL DA POLÍCIA: estratégias de racionalização .................................................................................................................... 115 4.1 lutas pela formação policial ...................................................................................... 115 4.2 o problema da prostituição na biblioteca do Serviço de Investigações ....................... 124 4.3 as ideias em circulação: Belo Horizonte como um capítulo da história da polícia de costumes ........................................................................................................................ 138 5 SÍSIFO NAS ALTEROSAS........................................................................................ 153 FONTES ............................................................................................................................ 159 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 163 ANEXOS ........................................................................................................................... 171 14 1 APRESENTAÇÃO I Nos últimos anos participei de diferentes projetos de pesquisa que tinham a cidade de Belo Horizonte e seus habitantes, no decorrer da primeira metade do século XX, como objetos da reflexão historiográfica. Nessas pesquisas pude observar variados aspectos da história da cidade e entrar em contato com fontes e temas de trabalho de natureza diversa. As experiências de pesquisar uma vasta documentação oral e textual – como periódicos, legislação municipal e lançamento de impostos – me permitiram entrar em contato com diferentes indícios envolvendo a questão do gênero feminino e da vida noturna na cidade. Além disso, pude compreender a importância da educação do corpo para os trabalhadores urbanos, expressa na memória de seus gestos, nas doenças e complicações trazidas pelos anos de trabalho e nas práticas sociais e culturais exercidas no cotidiano da cidade. A vivência entre esse material possibilitou uma reeducação do meu olhar, o que me auxiliou a alargar o leque de questões formuladas aos documentos e ao problema da prostituição na cidade.1 Inspirado nos trabalhos de Schettini e Rago, entendo que a prostituição é uma das facetas do mundo do trabalho e uma possibilidade de produção de outras sexualidades – e não uma simples expressão do “submundo” das sexualidades desviantes, ou uma instituição, organizada por grupos de mafiosos, de exploração de mulheres inocentes.2 Desse modo, passei a observar outros aspectos das fontes, que haviam passado despercebidos para mim, não fosse todo exercício de idas e vindas entre bibliotecas e arquivos. Pouco a pouco pude montar um pequeno questionário – incipiente, mas que foi tomando consistência ao longo da pesquisa – a respeito da prostituição na cidade de Belo Horizonte e da relação dessa prática com diferentes saberes que a tomavam como objeto de estudo e intervenção. Este percurso me permitiu observar a constituição, no meio policial, de um problema a respeito da educação moral e o policiamento do meretrício. Partindo de uma afirmativa do delegado de costumes, Edgard Franzen de Lima, datada de 1928, que indicava o desejo de “produzir influência educativa” na vida das meretrizes, 1 O principal trabalho que analisou, parcialmente, o problema da prostituição na capital foi a dissertação de mestrado em Ciência Polícia de Luciana Teixeira Andrade (1987), que realizou uma leitura da relação entre polícia e prostituição como parte da constituição de um amplo projeto de organização da ordem pública na cidade. Utilizo a expressão “educação do olhar” em alusão ao processo de transformação da historiografia analisado por Ariès (1986), no qual se observa a consolidação de outras metodologias e enfoques de análise. 2 RAGO, 1991 e SCHETTINI, 2006. 15 elaborei a hipótese de que ao longo das décadas de 1920 e 1930 o policiamento da prostituição foi problematizado sob o ponto de vista moral.3 Aos poucos compreendi que as propostas policiais de intervenção na prática do meretrício tiveram um grande interesse em modificar as posturas e os comportamentos das meretrizes, indicando a elaboração, processual, de um projeto de educação moral, intimamente ligado aos projetos de modernidade para a capital mineira. Assim, o objeto deste estudo é o processo de constituição e promoção de uma “educação moral” encabeçado por uma polícia especializada, a polícia de costumes, que propôs uma série de intervenções na prática do meretrício em Belo Horizonte ao longo das décadas de 1920 e 1930. Pretendi compreender como a polícia participou da elaboração de um projeto de modernidade, que procurava forjar novos sujeitos, apostando na difusão de um “policiamento moral”, capaz de transformar os comportamentos das meretrizes e permitir a consolidação de Belo Horizonte como uma cidade moderna. A elaboração do problema desenvolvido por este estudo foi fruto de esforços individuais e coletivos no interior de uma rede de pesquisadores que compartilham o interesse pela pesquisa em educação do corpo e dos sentidos na história. A construção da educação das sensibilidades e dos comportamentos como um objeto para a história da educação nasce de um esforço em reconhecer a importância dessas dimensões humanas na vida coletiva das sociedades. A historiografia que trata da educação dos corpos tem elaborado interessantes questionamentos sobre a formação dos sujeitos por meio das relações que eles mantêm com as prescrições para seus comportamentos, com os espaços em que vivem/circulam, com sua rede de sociabilidade, com a cultura material que os rodeiam, enfim, com seus próprios corpos em movimento.4 É preciso lembrar, todavia, que a educação não pressupõe necessariamente um processo positivo, mas pode incorporar elementos coercitivos e violentos, seja nos processos 3 Relatório da SSA, 1928, p. 48. Utilizo o termo “meretriz” ao longo do trabalho, para designar as mulheres que se ocuparam da prostituição, de forma genérica. No capítulo 2, aponto para as diferenças nas práticas de nomeação dessas mulheres. Mantive o termo “meretriz”, não por concordar com a perspectiva policial, mas por entender que este termo tem uma capacidade ampla de designar a prática dessas mulheres, em relação à “mundana”. Além disso, trabalhei, majoritariamente, com documentação oficial, que repetiu, constantemente, tal nomeação. 4 SOARES, 2006. 16 escolares ou não.5 Aliás, essas duas facetas podem coexistir nos processos educativos, que não são isentos de disputas políticas, sociais e simbólicas. Cynthia Veiga afirmou que, após um longo processo entre os séculos XVIII e XIX, a escolarização teria substituído as formas de pedagogização.6 Mas, ao apresentar as características deste último processo educativo, ela abriu uma janela para que eu pudesse perseguir a hipótese de uma continuidade dos “dispositivos de pedagogização”, ou antes, de seus desdobramentos sob outras formas. Segundo ela, essas formas de pedagogização se referiam a preocupações relativas ao exercício de uma nova conduta na aprendizagem, que desse conta da transmissão de comportamentos socialmente aceitos e em produção na sociedade daquele tempo. É com base nessa dinâmica que encontraremos uma pedagogização das relações sociais, na tentativa de tornar as ações e os sujeitos previsíveis.7 Por analogia, pergunto se as divisões policiais especializadas no policiamento do meretrício não teriam funcionado, pelo menos em parte, como um mecanismo de pedagogização dos corpos de pessoas consideradas, então, como desviantes sociais. Configurando uma tentativa de disseminar valores e comportamentos entendidos, por grupos distintos, como socialmente e moralmente importantes. Essa perspectiva se sustenta, aliás, pela compreensão da educação como um processo social, que se desenvolve em meio às relações, articulações e ajustamentos que as pessoas precisam realizar ao longo de suas existências. Esta perspectiva é tributária da tese, defendida por Eliane Marta Teixeira Lopes, de “que há uma educação que se dá para além dos muros escolares e sem que haja, necessariamente, a interveniência da escola, [...] há na própria história uma relação educativa entre seus atores”.8 Desta maneira, compreendo que as pedagogias são portadoras de preceitos que dão ao corpo uma forma e o esquadrinha para submetê-lo a normas com uma segurança maior do que faria com o pensamento. Trata-se de imagens sugeridas, de gestos esboçados que silenciosamente induzem posições e comportamentos, de frases anódinas em que as palavras, sem parecer, desenham um comportamento, ao mesmo tempo consciente e semiconsciente, de frases 5 Veiga (2002) explora as tensões vivenciadas no âmbito das transformações dos comportamentos dos sujeitos no chamado “processo civilizador”; Dalcin (2006) estuda os diferentes castigos corporais enfrentados pelos alunos nas escolas do século XIX, no Paraná. 6 VEIGA, 2002. 7 VEIGA, 2002, p. 99. 8 LOPES, 1985, p. 17. 17 mais graves, portadoras de ordenações, que fixam com precisão analítica ou solene a aparência e as boas maneiras.9 Pois não seriam, exatamente, de apostas que se ocupam as pedagogias? E ainda, de desejos, investimentos, produção de hipóteses e proposições de práticas, conformando, enfim, um conjunto de preceitos pedagógicos para os comportamentos de homens e mulheres em uma dada sociedade? A pedagogização não teria, assim, uma relação com os diferentes mecanismos e dinâmicas sociais e institucionais da vida cotidiana, tais como a polícia, as relações de trabalho, as associações em suas diversas modalidades (como as sociais, acadêmicas e culturais), entre outros aspectos de socialização?10 A capital mineira tem despertado a atenção de pesquisadores do campo da educação, desde a década de 1990, quando passaram a formular novos temas de pesquisa, alargando, problematizando e consolidando nossos conhecimentos a respeito desta cidade. Esses estudos indicaram a importância de dispositivos não escolares para a educação dos sujeitos, como a própria arquitetura, a malha urbana e a formação para o trabalho.11 Essas perspectivas, na área da história da educação, possibilitaram o alargamento do leque de perguntas a serem perseguidas por pesquisas novas. É o caso de trabalhos mais recentes como os de Kellen Nogueira Vilhena, Marina Costa e Silva, Verona Segantini. 12 Esses últimos trabalhos são frutos, em certa medida, de uma recente e crescente discussão no Brasil acerca da história da educação do corpo.13 Seria impossível definir satisfatoriamente, neste momento, o campo de abrangência dessas pesquisas. Mas há um 9 VIGARELLO, 2005 p.9. Tradução livre do trecho: “Las pedagogías son portadoras de preceptos que dan al cuerpo una forma y lo cuadriculan para someterlo a normas con mayor seguridad aún de lo que lo haría el pensamiento. Se trata de imágenes sugeridas, de gestos esbozados que silenciosamente inducen posiciones y comportamientos, de frases anodinas donde las palabras, sin parecerlo, dibujan un comportamiento semiconsciente y al mismo tiempo laborioso, de frases más gravitantes, portadoras de órdenes impartidas, que fijan con precisión analítica o solemne el aspecto y los modales”. 10 Por outro lado, nem sempre essa noção mais ampliada de educação tem repercussão em outros trabalhos historiográficos. É o caso de Cristiana Schettini (2006) que não consegue compreender, de forma mais ampla, o posicionamento do médico José de Albuquerque em suas declarações feitas na década de 1930. Este doutor afirmava, sem embaraços, que a intensificação da atuação da polícia civil carioca diante das meretrizes naqueles tempos – aumentando o número de suas visitas aos ambulatórios médicos – correspondia a uma frutífera ação educativa (SCHETTINI, 2006, p. 86 e 103). Para a autora isso seria um subterfúgio, ou simples retórica, que procurava amenizar ou esconder o caráter repressivo e coercitivo das ações policiais. Entendo, entretanto, que a noção de educação não estava sendo utilizada de maneira inocente. Esse uso compõe uma das possibilidades, entre uma gama considerável de sentidos, que essa palavra podia tomar naquele momento. 11 VEIGA, 1994; FARIA FILHO, 1996. 12 VILHENA, 2008; SILVA, 2009; SEGANTINI, 2010. 13 Tema que tem sido constantemente debatido no interior de grupos de pesquisas no país, entre eles o CEMEF ao qual me vinculo. Ver MARQUES, 2009. 18 interesse que orienta muitos trabalhos de história da educação do corpo, que é o de “realizar investigações sobre algumas das ambições de governá-lo e organizá-lo [o corpo] conforme interesses pessoais ou coletivos”.14 Nesse sentido, diversos objetos foram construídos nas pesquisas em história da educação do corpo e das sensibilidades em Belo Horizonte, durante as primeiras décadas republicanas, adotando diferentes fontes e maneiras de tratar essa temática. Verona Segantini estudou a formação de uma sensibilidade moderna e de uma educação dos sentidos a partir de crônicas produzidas por Alfredo Camarate no período de construção da capital.15 Estudando os cinco sentidos, visão, audição, tato, paladar e olfato, a autora realizou uma leitura interessante sobre os conflitos e tensões pelos quais os habitantes da nova cidade e do antigo arraial passaram na virada do século XIX para o XX. Kellen Vilhena, por outro lado, argumentou sobre o papel educativo da imprensa na capital. Os jornais que circularam na capital produziram diferentes discursos sobre o lazer, difundindo representações positivas e negativas a respeito de diferentes práticas de divertimento e fruição do “tempo livre”, como as elogiadas frequências aos teatros e cinemas e as reprovadas frequências aos jogos e botequins.16 Marina Costa e Silva, em sua dissertação, elaborou a hipótese de que a polícia em Belo Horizonte se constituiu como “um dos aparelhos de disciplina mobilizados pelo Estado em busca da conformação dos comportamentos e sensibilidades”. Em sua prática cotidiana a polícia teria forjado mecanismos de “vigilância, regulação, normatização e educação da população” atuando frente ao que a pesquisadora denominou ser a “tríplice do prazer”: jogo, embriaguez e prostituição.17 Explorando a seara aberta por esses estudos, busquei, enfim, compreender como a polícia se relacionou com a prostituição na cidade, consolidando um projeto de “educação moral”, em meio aos discursos sobre a modernidade na capital mineira. II Alvo de intensa disputa no cenário político republicano, a noção de modernidade foi construída por diferentes vozes e assumiu facetas e significados distintos no discurso político e jurídico em Minas Gerais. Uma luta significativa em torno da definição de seus significados 14 SANT'ANNA, 2006, p. 4. SEGANTINI, 2010. 16 VILHENA, 2008. 17 SILVA, 2009, p. 9. 15 19 intensificou-se, nesse cenário, no decorrer da década de 1920, em meio ao processo de transformações políticas no país.18 Muitos pesquisadores realizaram estudos para compreender o projeto de modernidade do Estado, tomando como referência a própria cidade de Belo Horizonte. A tese amplamente compartilhada entre os pesquisadores é que a capital mineira teria se constituído a partir de pressupostos de segregação social, que deram origem aos problemas sociais ainda presentes na cidade.19 O projeto instituído pela Comissão Construtora da Nova Capital, segundo essa premissa, teria dividido o espaço urbano e autorizado um pequeno grupo a participar na vida pública, perpetuando uma lógica de exclusão e separação social, dividindo e cerceando espaços da cidade para determinadas classes. Contudo, Tito Flávio Aguiar, em sua tese de doutoramento, trilhou outros caminhos para a compreensão da constituição e do crescimento da cidade, argumentando que as relações sociais na dinâmica urbana foram bem mais complexas do que desejava crer aquela clássica tese historiográfica. O que foi projetado, segundo o autor, não foi necessariamente construído pela Comissão Construtora e, além disso, não há indícios concretos de planos segregacionistas nos registros produzidos por este grupo. Na prática, a área suburbana, supostamente destinada à população pobre, foi ocupada por pessoas de vários níveis socioeconômicos. Além disso, o interior da avenida do Contorno – que só foi completamente inaugurada na década de 1940 – foi marcado pela presença de estabelecimentos comerciais diversificados, entre eles hospedarias, bares, restaurantes, mercados, mercearias, e pela circulação e ocupação de pessoas, que se intensificaram ao longo dos anos, caracterizando uma complexa dinâmica urbana que não se explica apenas pela teses segregacionistas.20 Não se nega que tenha ocorrido divisões dos espaços da cidade de acordo com determinadas atividades e grupos sociais, afirma-se, simplesmente, que a tese do sucesso de um plano segregacionista promovido pelo Estado não se sustenta quando observamos o processo de divisão do espaço urbano a partir das relações travadas por diferentes grupos sociais para garantia dos direitos de ocupação, habitação e circulação nesta cidade. 18 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO/FEDERAÇÃO DO COMÉRCIO DE MINAS GERAIS, 1997, p. 70. 19 LE VEN, 1977; FARIA, 1985; ANDRADE, 1987; JULIÃO, 1992. 20 AGUIAR, 2006, p. 125-190. 20 A partir da década de 1920, foram ampliadas e criadas novas linhas férreas, que uniram a capital mineira a diferentes regiões do Estado e do país. Além disso, ocorreu um crescimento das atividades de exploração do minério de ferro e magnésio na região do município e, ainda, uma significativa ampliação da circulação de pessoas e mercadorias.21 Esse processo teve uma importância significativa no crescimento da malha urbana da cidade e representa um dos passos iniciais de um processo acelerado de crescimento da cidade, tanto físico e populacional quanto econômico. Esse crescimento da cidade se estendeu pelas décadas de 1930 e 1940, ainda que com abalos momentâneos decorrentes de nova crise cafeeira em 1929-1930, e fez da capital o principal centro industrial e comercial do Estado.22 Essa inflexão na história da constituição espacial, econômica e também sociocultural da cidade, a partir da década de 1920, é consenso em trabalhos historiográficos de diferentes vertentes teórico-metodológicas. 23 Sirvo-me deste panorama para justificar o recorte temporal realizado neste estudo. Pois, além do exposto, parto do pressuposto de que as décadas de 1920 e 1930 configuram-se como um período em que a cidade ganhava não só novos contornos, mas novos espaços de convivência, sociabilidade e experiência urbana. Entre eles destaco a criação de jornais de grande circulação e o aumento do número de estabelecimentos de diversões, tais como cinemas, bares, restaurantes, pensões, cafés, casas de dança e cabarés. Espaços que passaram a ocupar um importante lugar nos referenciais da vida cultural e da sociabilidade na capital e que constituíram uma ambiência muito particular nesse período.24 Aquele foi um momento, enfim, de construção de um ritmo e um itinerário de uma vida noturna relativamente intensa, que inclinava para o sonho cosmopolita da cidade, tão evocado por diferentes vozes naquele momento. Dentre os estudiosos das culturas urbanas há aqueles, dos quais procurei me aproximar, que sustentam a tese de que as manifestações de modernidade não eliminaram todos os espaços físicos e socioculturais tradicionais. 25 Assim concebida, a ideia de modernidade pode ser desmitificada, ou seja, perde a imagem de um projeto de mundo fundado absolutamente a partir do novo.26 Sob essa perspectiva de análise o passado mostra21 AGUIAR, 2006, p 309-313. AGUIAR, 2006. p.312. 23 ANDRADE, 1987; GUIMARÃES, 1991; AGUIAR, 2006. 24 SILVEIRA, 1996. 25 Sobre as questões do caráter ambivalente da modernidade ver: SIMMEL, 1987 e ANDRADE, 2004. 26 Sobre essa discussão, ver CARVALHO, 1998. 22 21 se como um tempo em que as relações sociais foram perpassadas por tensões, conflitos, negociações e, sobretudo, por incertezas em relação ao futuro, dando, assim, visibilidade às elaborações de diferentes projetos de sociedade. Analisar a modernidade deste modo significa negar seu caráter unilateral, o que, em última instância, equivale a questionar os pressupostos que associam a ideia de modernidade exclusivamente ao novo, bem como a perspectiva de progresso linear e inevitável que essa concepção carrega. Nesse movimento, entendo que o sonho de consolidação de Belo Horizonte como uma cidade moderna enfrentou, ainda nos anos 1920 e 1930, uma grande pressão do desejo de proteção e preservação de determinadas tradições e costumes dos comportamentos femininos e masculinos no espaço público. III Fenômeno importante nos estudos sobre a modernidade, a prostituição também é carregada de um caráter ambíguo na literatura especializada. Os autores que se detiveram sobre o tema oscilaram entre uma perspectiva de glamourização da prática do meretrício e outra em que se privilegia a precarização e exploração dos sujeitos envolvidos com essa prática.27 Apesar de compreender que a prostituição não é um fenômeno próprio da “modernidade”, é inegável que ela tenha se tornado um tema de grande importância para a administração pública, em especial para a polícia, em diferentes cidades desde o século XVIII.28 A partir da segunda metade do século XIX, porém, um grande número de histórias sensacionais envolvendo tráfico de mulheres, raptadas para o exercício da prostituição em diferentes países do mundo, circulou nos jornais e ambientes policiais na Europa e na América.29 Além disso, a polícia de costumes, na França e na Inglaterra, tornou-se tema importante no cenário público naquele momento. É plausível, assim, afirmar que as relações da polícia com a prostituição ganharam importância considerável nesses últimos dois séculos. Não existe nenhum material historiográfico que tenha se debruçado sobre a prostituição em Belo Horizonte como objeto, ou tema principal de pesquisa. Além disso, os poucos trabalhos acadêmicos que se ocuparam desta questão são provenientes das áreas da sociologia, antropologia e psicologia, concentrando-se em períodos datados a partir da década 27 Uma postura diferente deste tipo de perspectiva é adotada por Cristiana Schettini (2006), que realizou uma pesquisa na perspectiva da história social. No prefácio de seu livro há uma interessante crítica sobre os caminhos seguidos pela historiografia brasileira, a respeito dos trabalhos sobre a prostituição. 28 WALKOWITZ, 1980; BENABOU, 1987; BERLIÈRE, 1992. 29 SCHETTINI, 2006, p. 105. 22 de 1970.30 Luciana Teixeira Andrade realizou, em sua dissertação de mestrado, uma análise sobre a “ordem” e os “desviantes sociais” nos primeiros trinta anos da capital, a partir dos pressupostos da sociologia e da ciência política. Naquele trabalho ela traçou uma rápida leitura sobre a relação da polícia com a prostituição na cidade, tratando este tema como parte de um processo de controle social dos “desviantes”. Seu estudo, apesar de não historicizar os dados apresentados sobre a prostituição na cidade, indicou três elementos importantes que foram perseguidos pela pesquisa que originou a presente dissertação: a criação da Delegacia de Costumes; a existência de campanhas de moralização do espaço público, promovida por meio dos jornais da capital; e as políticas de registro do meretrício. Apesar dessa lacuna na história da cidade orientei-me por uma grande bibliografia sobre a prostituição no Brasil. Esses trabalhos analisaram, a partir de perspectivas distintas, como da história social e a história cultural, as relações e entre a polícia e a prostituição. Cristiana Schettini, por exemplo, analisou como, no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas, as prostitutas construíram redes diversificadas de sociabilidade e enfrentaram as investidas de alguns delegados de polícia, dispostos a colocar em prática um dos projetos de República em disputa na época, no caso o jacobino, moralizando as ruas da capital da república.31 Seu estudo indica como é importante relacionar a prática policial com os anseios políticos das autoridades policiais e judiciais. Além disso, a historiadora sugere que a tentativa de delimitar os espaços de circulação das prostitutas na cidade do Rio teria uma ligação com a preocupação, que estava se tornando cada vez maior entre as autoridades políticas, com a possibilidade de se confundir “mulheres honestas” e prostitutas. A tese de Margareth Rago sobre o imaginário da prostituição em São Paulo, também analisa as tentativas da polícia em delimitar as atividades das meretrizes em determinadas regiões, ao longo das primeiras décadas republicanas. 32 Seu trabalho preocupa-se com as representações que foram construídas a respeito da prostituição e das meretrizes e, apesar de entender a prostituição como “prática de resistência”, ela não analisa as relações sociais travadas entre meretrizes e policiais. 33 Mas é justamente por isso, por ter outro interesse de pesquisa, que Rago lança mão da literatura da época, bem como de jornais e revistas diversas, para trabalhar com as representações criadas a respeito das meretrizes, que circulavam no 30 FREITAS, 1985; MEDEIROS, 2001; e BARRETO, 2008. SCHETTINI, 2006, p.29-104, em especial p. 35. 32 RAGO, 1991, pp. 104-127. 33 RAGO, 1991, p.22. 31 23 imaginário de São Paulo naquele tempo. Isso permitiu que ela realizasse um estudo relevante a respeito da formação de um imaginário sobre a mulher, a meretriz, a sexualidade feminina e, tangencialmente, a masculina. Esses trabalhos são dois grandes exemplos das duas perspectivas historiográficas que se ocuparam da prostituição no país. Cada uma a seu modo, essas teses indicaram a existência de práticas policiais e interesses sociais, que sugerem a constituição de diferentes projetos de sociedade e propostas de transformação dos comportamentos. Além disso, elas permitem enfrentar os problemas propostos neste estudo a partir de caminhos já trilhados. A construção do meu objeto de pesquisa foi inspirada por diferentes produções das ciências humanas, tornando-se inviável e indesejável a escolha de um único autor e uma única orientação teórica para tornar-se guia desta análise. Por isso, diferentes noções, conceitos e autores são convocados a participar da leitura que realizo das fontes, compondo os sentidos do problema que pretendo desenvolver. Essa seleção se deu na medida em que esses elementos me ajudavam a interrogar o tema da pedagogização do meretrício e da circulação de ideias a respeito dessa prática. Assim, a decisão por mobilizar noções como “experiência”, “controle social” e de explorar o problema da “circulação de ideias” deu-se tanto pelo contato com as fontes, quanto pelos trabalhos de história da prostituição no Brasil. Durante as primeiras décadas republicanas no país – momento de importantes transformações urbanas, políticas e sociais – foram criadas diversas prescrições, normas de conduta e mecanismos de controle dos comportamentos para o convívio das pessoas nos espaços das cidades, numa luta pela higienização, moralização e modernização dos espaços e das populações, e num esforço de refundar a nação brasileira.34 Assim, as noções de “experiência” e “controle social” encontram-se e fazem emergir diferentes questões a respeito do processo histórico vivenciado por meretrizes e policiais em Belo Horizonte, no século XX. Vários trabalhos já se debruçaram sobre a experiência da modernidade e também sobre a questão do controle social na história da capital mineira.35 Essas duas noções foram interligadas pelos historiadores e, na maioria dos casos, a polícia foi compreendida a partir de sua “função” de manter e restabelecer a ordem pública. Essa atuação policial em relação à 34 SEVCENKO, 1983, DUTRA, 1996; e PESAVENTO, 2001. Um livro que concentra essas teses recorrentes na historiografia sobre a cidade é DUTRA, 1996. Para um apanhado geral da historiografia, ver AGUIAR, 2006. 35 24 ordem republicana foi resumida na antítese elites x classes populares, acarretando uma imagem simplificada da polícia no período em questão.36 As “classes populares”, na perspectiva desses trabalhos, só conheceram os caminhos da modernidade nas suas relações com a polícia, que exerciam a repressão à desordem pública e uma constante vigilância em seus comportamentos.37 Por não compartilhar com essa premissa, busquei dissecar a documentação e essas noções, realizando um movimento de leitura capaz de assumir que tanto o caráter “repressivo” quanto o “positivo” da modernidade poderiam ter sido compartilhado por grupos sociais diversos, em diferentes níveis e processos. Essa forma de encarar essas noções me permitiu redimensionar o foco do meu olhar para propor outras formas de analisar as relações entre a polícia, o Estado e os diferentes setores da população. Além disso, busquei enfrentar o problema da “circulação de ideias” para observar as diferentes maneiras de difusão de noções e leituras acadêmicas sobre o meretrício no seio policial. De fato, mais do que reafirmar estudos anteriores, ou mesmo perseguir suas possíveis lacunas, optei por analisar a reincidência, na capital mineira, de ações, justificativas e problematizações policiais em relação ao meretrício, produzidas e difundidas em diferentes partes do mundo.38 Importou, nesta empreitada, avaliar e explicar organização de redes de formação intelectual da polícia que se constituíram em Belo Horizonte e no país. Este debate foi enfrentado mais no sentido de estabelecer algumas possibilidades e condições de leitura e de circulação de ideias, do que de discutir os processos de apropriação dessas ideias pelos policiais. IV Consultei ao longo deste percurso, fundamentalmente, três grandes conjuntos documentais: o fundo da Secretaria de Segurança Assistência Pública (SSA) e da Polícia (POL), sob a guarda do Arquivo Público Mineiro; os jornais “Diário de Minas” e “O Estado de Minas”, conservados pela Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa; e, finalmente, um conjunto disperso de obras científicas e acadêmicas sobre a 36 ANDRADE, 1987 e JULIÃO, 1996. JULIÃO, 1996, p.84. 38 Não me ocupei do debate sobre a circulação de ideias e saberes entre “cultura popular” e “cultura erudita” nem mesmo do problema da apropriação desses saberes, tampouco tomei como objetivo explicar as possibilidades das recorrências de práticas e ideias em lugares e tempos tão distintos, como, por exemplo, os trabalhos de Carlo Ginzburg (2006) ou Roger Chartier (1990). 37 25 prostituição e a polícia de costumes, consultadas na Biblioteca Luiz de Bessa, na Biblioteca Nacional e em meu acervo pessoal. As especificidades de cada conjunto de fontes permitiram o desenvolvimento de diferentes questões, destrinchadas ao longo deste estudo, ao mesmo tempo em que possibilitaram o cotejo, a comparação, a complementação e a complexificação das análises desse corpus documental. O risco de me perder nesse oceano de tinta e papel, e não mais retornar de um profundo mergulho, era muito grande. Por isso, estabeleci alguns critérios que me orientaram na condução das análises realizadas, para que eu pudesse ficar perdido com instruções.39 Tal como as orientações que um marinheiro precisa conhecer, produzir e reconhecer para não deixar sua embarcação ir de encontro a uma rocha, elaborei algumas perguntas para me guiar nesta jornada. Assim, como a prostituição se constituiu como um problema policial, de uma polícia/Delegacia de costumes, em Belo Horizonte? Como a polícia forjou a necessidade de um projeto de educação moral para a prática do meretrício, visando intervir no comportamento dos sujeitos, homens e mulheres, envolvidos? Como foram construídos os mecanismos de controle e de definição de fronteiras espaciais e simbólicas do meretrício no espaço urbano? E qual a relação entre os saberes acadêmicos sobre o “problema” do meretrício e as propostas da polícia de costumes? Essas perguntas mediaram a relação que mantive com o material empírico coletado em minhas pesquisas. Elas me auxiliaram a compreender o processo de pedagogização do meretrício e as formas de circulação de saberes acadêmicos sobre essa prática em Belo Horizonte. Deste modo, este trabalho foi dividido em três capítulos que procuram responder, cada um, a um tipo de questão específica. Mas, na medida do possível, estabeleci um diálogo entre os capítulos como o objetivo de interliga-los, produzindo uma ideia de conjunto do problema proposto. A organização do trabalho deu-se pela convicção de que a narrativa não deve pretender dar conta de uma “evolução linear”, mas sim de uma problemática que se interrelaciona. Isso me permitiu realizar um corte transversal na construção de uma trama, formada por diferentes ritmos temporais e espaciais. 40 A intenção, ao organizar a narrativa dessa 39 Para Walter Benjamin (1995, p. 73), saber perder-se na cidade “requer instrução”, é preciso saber orientar-se pelos nomes das ruas e pelas “vielas do centro”, que “devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro”. 40 VEYNE, 1979. 26 maneira, foi construir no próprio desenrolar da escrita a hipótese de que o projeto de pedagogização e a circulação de saberes sobre o meretrício e as meretrizes constituem-se como duas partes confluentes e intimamente ligadas de um processo de educação moral. Dessa forma, no primeiro capítulo realizei uma análise das propostas de reordenação do meretrício na ordem urbana em Belo Horizonte, protagonizadas pelas autoridades policiais, em especial pela polícia e Delegacia de costumes. Para essa empreitada fez-se necessário o estudo e cruzamento de diferentes documentações como os relatórios das autoridades policiais, a legislação referente à atuação policial e relatos publicados em jornais a respeito das prescrições policiais. A reflexão realizada no primeiro capítulo gira em torno da pergunta: como se deu a institucionalização de uma delegacia de costumes na década de 1920, em Belo Horizonte? Procurando desenvolver essa questão, analiso as propostas policiais de reordenação do meretrício na capital, evidenciando seu caráter pedagógico, desde início da década de 1910, e historicizando esse processo de problematização da prostituição pela polícia. Apresento e desenvolvo a hipótese de que esse projeto de educação moral para o meretrício dialogava com ideações mais amplas de educação da população, que buscavam o desenvolvimento e a consolidação da modernidade na capital mineira. Defendo que, apesar dessas decisões terem sido tomadas pelas autoridades políticas e policiais, houve uma participação social na construção da prostituição como um “caso de polícia”, ou melhor, na problematização dos comportamentos morais das meretrizes, buscando soluções para transformação de suas condutas. Além disso, esse capítulo lança algumas bases da leitura que realizo desse processo e que foram desenvolvidas nos capítulos seguintes. Já no segundo capítulo realizo um estudo sobre o policiamento do meretrício, a partir de uma análise dos relatos de prisões publicados em jornais de grande circulação. Os textos das colunas policiais indicam uma dinâmica do policiamento da capital, bem como algumas formas de “correção” dos envolvidos com o meretrício. Esses discursos também trazem indícios de tensões vivenciadas entre meretrizes e guardas-civis, do não reconhecimento da autoridade policial por parte das meretrizes, bem como de reiteradas “imposições” dos “códigos de postura/costumes” pelos guardas-civis. Encarei o relato do jornal como uma prática constituída a partir de um referencial existente na realidade, de um “referente” que diz 27 respeito às práticas cotidianas.41 Apesar de construir e disseminar representações existentes em uma dada cultura, o texto jornalístico parte da realidade para se constituir. Essa perspectiva me autorizou compreender certas práticas de policiamento do meretrício em Belo Horizonte, a despeito da falta de acesso a dados institucionais. Realizo, dessa forma, um mapeamento dos anúncios de prisões envolvendo meretrizes e outros sujeitos ligados com o meretrício e também das reportagens e notícias que indicavam as relações da polícia com essa prática, no período pesquisado. Assim, dividi a narrativa em uma apresentação dos dados coletados, seguida de um ensaio analítico, problematizando sua organização e cruzando com as análises realizadas no primeiro capítulo e com outras notícias pertinentes ao tema, também coletadas nos jornais. As hipóteses defendidas neste capítulo evidenciam uma grande reincidência de prisões de meretrizes por motivos morais, que se intensificou com a criação da Delegacia de Costumes, e, ainda, que o policiamento da prática da prostituição também se ocupou dos homens que frequentavam os espaços do meretrício. No último capítulo mobilizei o material da Chefia de Polícia e da Secretaria de Segurança e um conjunto de autores que produziram conhecimento sobre a polícia e a prostituição para analisar a circulação de ideias a respeito do meretrício e a emergência de um projeto de racionalização da polícia. Ocorreu, nos anos finais da década de 1920, um processo de investimento na formação técnica dos investigadores, na aquisição de uma biblioteca ampla, atualizada e internacional e na atualização de equipamentos e materiais técnicos. Esses investimentos constituíram-se como um esforço de formação intelectual dos quadros da Delegacia de Costumes. Assim, a pergunta que cercou esse capítulo foi: qual a relação entre esse esforço de compreensão do meretrício e as medidas que se desejava tomar em relação a esse “problema”? Persegui a hipótese de que, concomitante ao projeto pedagógico para o meretrício, e a partir de uma relação com esse projeto, a polícia procurou especializar e legitimar sua prática, justificando-a com fundamentos científicos. Isso se deu por meio de uma ampla rede de circulação de ideias, pessoas e projetos de transformação dos comportamentos das meretrizes. Desta forma, realizei um panorama do debate acadêmico a respeito da prostituição, a partir da leitura de alguns livros adquiridos para compor a biblioteca do Serviço de Investigações. Em seguida, tracei as possíveis relações desse arsenal científico e acadêmico com as políticas de policiamento do meretrício desenvolvidas na capital. Esta análise possibilitou compreender o 41 RICOEUR, 1986. 28 lugar de Belo Horizonte numa dinâmica mais ampla do debate policial a respeito da repressão e vigilância ao meretrício. Ao longo desses três capítulos desenvolvi a hipótese geral de que nas décadas de 1920 e 1930, em Belo Horizonte, desenvolveram-se projetos interessados pela educação moral e dos costumes da população, a partir do caso específico da prostituição. Argumentei que, nesse processo, as meretrizes e a prática do meretrício foram alvos de problematização da instituição policial, mas também de grupos sociais que viviam na cidade, compondo diferentes projetos de intervenção. Tais projetos não possuíam uma única direção ou voz e certamente não foram postos em prática tal como formulados. Mas foram, de uma forma ou de outra, convertidos em uma prática de policiamento, uma prática de problematização da instituição policial, que incidiram no exercício do meretrício, numa busca pela transformação dos comportamentos dos sujeitos envolvidos com essa prática. 29 2 A POLÍCIA DE COSTUMES E O(S) PROJETO(S) DE PEDAGOGIZAÇÃO DO MERETRÍCIO 2.1 uma visada no problema da polícia de costumes Em parecer de 1914, escrito para compor o Relatório Anual que o Chefe de Polícia encaminhava para apreciação do Secretário do Interior, o delegado de polícia da 2ª circunscrição policial da capital de Minas, Affonso Henrique de Figueiredo Santos, afirmou que o século XIX inaugurou a “forma atual da polícia de costumes”. Segundo ele, no sistema parisiense, que teria se disseminado rapidamente na França e no mundo, “as prostitutas são inscritas em um registro exclusivo; sequestradas da sociedade, são enclausuradas em casas de tolerância autorizadas, escancaradas, legalmente abertas. Nessas casas, são submetidas a visitas sanitárias periódicas, idealizando a extinção das moléstias derivantes da prostituição”.42 O delegado se refere a um processo de regulamentação da prostituição ocorrido durante o século XIX, especialmente na França, e que foi tema de profundos debates naquele século.43 Na ótica de estudos mais recentes sobre o tema, entretanto, esse modelo sustentou um complexo mecanismo de vigilância e organização da população nos espaços da cidade.44 Ou seja, além das políticas de identificação, registro, acompanhamento e perseguição às meretrizes e suas práticas, a polícia de costumes e suas medidas de controle também diziam respeito a um processo amplo de tentativa de vigilância da população. Para a historiadora Erica-Marie Benabou, a polícia de costumes francesa, durante o século XVIII, tinha como função vigiar “aqueles que constituem “o mundo galante”, mas também, e por meio deles, certas categorias da população masculina às quais a polícia dirige um interesse particular”.45 A respeito das políticas regulamentaristas francesas executadas pela polícia de costumes no período de 1870-1914, Alain Corbin argumenta, de forma semelhante, que “o regulamentarismo é um elemento do projeto global de exclusão, de marginalização e de reclusão de todos os desviantes, bem como das ilegalidades difusas”.46 42 Relatório do CP, 1914b. p. 65. Essa questão será retomada no último capítulo. 44 BENABOU, 1987; CORBIN, 1982. 45 BENABOU, 1987, p. 109. Tradução livre do trecho: “celles qui forment "le peuple galant", mais aussi, et à travers elles, certaines catégories de la population masculine auxquelles la police porte un intérêt particulier”. 46 CORBIN, 1982, p. 166. Tradução livre do trecho: “le réglementarisme n'est qu'un élément du projet global d'exclusion, de marginalisation et d'enfermement de tous les déviants et de contrôle des illégalismes diffus”. 43 30 Jean-Marc Berlière, enfim, aponta que “a regulamentação, de fato, fornece à polícia a maior parte dos seus meios de pressão sobre centenas de informantes em potencial, o que explica, em grande medida, seu sucesso em casos criminais”. 47 De maneira geral, e salvaguardadas as diferenças entre esses trabalhos, os historiadores franceses compartilham a tese de que a polícia de costumes exercia uma vigilância ampla e difundida nos espaços “perigosos” da cidade, apontando, todavia, a prostituição como o principal e original foco de atenção dessa organização. O delegado Affonso Santos afirmou, ainda, que, “em sua verdadeira acepção”, não existia em Minas Gerais uma polícia de costumes.48 Sua leitura sobre a administração policial mineira apresenta indícios do seu desejo de problematizar as ações da polícia diante da prática do meretrício, desde a década de 1910. Como ele não concordava com o modelo francês, não caberia uma defesa pela polícia de costumes regulamentarista. No entanto, por entender que a polícia de costumes deveria manter uma relação com o problema da moralidade do espaço público, o assunto não poderia ser ignorado. Assim, para Affonso Santos, a melhor maneira de lidar com a questão seria procurar reprimir, tanto possível a onda invasora da corrupção, protegendo as menores abandonadas, colocando-as em asilos, orfanatos ou casas de família, procurando-lhes serviços; exercendo muita vigilância sobre as meretrizes, evitando escândalos na via pública, cuidando seriamente impedir que as pensões e casas de prostitutas ofendam aos bons costumes escandalizam a sociedade. 49 O argumento do delegado, que se pautava em imagens negativas da polícia de costumes, guarda semelhança com as representações disseminadas mundo afora, desde a segunda metade do século XIX, por associações das classes trabalhadoras e feministas. 50 Affonso repetiu um dos argumentos elaborados no meio inglês, afirmando que “para justificar a polícia de costumes, colocam-se as prostitutas fora da lei; elas são privadas de algumas garantias legais, asseguradas a toda pessoa humana”.51 Dessa forma, procurando diferenciar- 47 BERLIÈRE, 1992, p. 102. Tradução livre do trecho: “La réglementation fournit en effet à la police l'essentiel de ses moyens de pression sur des milliers d'indicateurs potentiels et explique donc la plupart de ses succès dans les affaires criminelles”. 48 Relatório do CP, 1914b. p. 65. 49 Relatório do CP, 1914b. p. 65. 50 WALKOWITZ, 1980, p. 99-104, CORBIN, 1982, p.324-344. No último capítulo tratarei, com mais vagar, da circulação de ideias acadêmicas a respeito do meretrício. 51 Relatório do CP, 1914b, p. 66. Esse argumento é semelhante ao das associações antiregulamentaristas na Inglaterra, estudadas por WALKOWITZ, 1980, p. 108-112. 31 se de um modelo tido como corrupto,52 ele defendia que a polícia de costumes deveria elaborar mecanismos de combate aos problemas da corrupção e dos escândalos na via pública. Em outras palavras, aos problemas morais de uma sociedade que se pretendia e se considerava moderna, ou em processo de civilização. A argumentação apresentada por Affonso Santos me auxilia a problematizar as formas como foram pensadas as intervenções públicas na prática da prostituição em Minas. Se em meados da década de 1910, o delegado afirmava que não existia uma polícia de costumes em sua acepção original, propondo um policiamento vigilante da moralidade do espaço público, e se não havia regulamentação da prostituição, tampouco órgãos especializados em seu combate, como se deu a elaboração de uma polícia de costumes para exercer vigilância sobre o meretrício? Como as meretrizes se tornaram alvo de um policiamento diferenciado? Ou, o mais importante para este capítulo, como a polícia de costumes em Belo Horizonte justificou a necessidade de sua intervenção em problemas morais daquela sociedade? Antes de avançar, porém, apresentarei de forma sucinta as principais questões e problemas envolvidos no tema da intervenção policial na prática da prostituição, a fim de compor uma visão um pouco mais ampla desse processo. Apesar dos esforços do saber médico, no século XIX, para elaborar o problema da prostituição no Brasil como um objeto de pesquisa e propor soluções, nenhum dispositivo legal, em nível nacional, de regulamentação do meretrício foi criado nem implantado.53 Luiz Carlos Soares indica que, durante aquele século, no Rio de Janeiro, alguns chefes de polícia organizaram medidas e propuseram regulamentações para a prostituição, ganhando apoio de setores do sistema de justiça. Entretanto, como aponta o autor, dessas propostas, somente a assinatura do “termo de bem viver”, que buscava conter “desordens” causadas por “turbulentos, bêbados e meretrizes”, foi legitimada, com intervenção do próprio imperador.54 Contudo, a inexistência de regulamentação do meretrício, em nível nacional, não é evidência de que a polícia se tornou indiferente à prostituição.55 Ao longo do século XIX 52 CORBIN, 1982. p. 317-324. ENGEL, 1989, p. 140. 54 SOARES, 1992, p. 97. A postura de D. Pedro II contra a regulamentação da prostituição no Império chegou a ser congratulada em algumas obras inseridas na luta contra o chamado “tráfico de brancas”, que remontavam à história da prostituição e da política de costumes no mundo ocidental e oriental. Destaco Louis Fiaux (1909, pp. 61-69), que ressaltou a veemente oposição de D. Pedro II a qualquer regulamentação da prostituição. BN - II-219, 4, 20. 55 É preciso realizar estudos mais sistemáticos sobre as formas de policiamento da prostituição no século XIX, para contrapor esse cenário e para sistematizar os projetos que foram executados e os que 53 32 existiram diversas propostas de intervenção policial na prática do meretrício, que acabaram ganhando outras proporções ao longo do regime republicano. O tema era debatido por juristas, bacharéis, autoridades policiais, além de médicos legistas e especialistas nas áreas de sifilografia e higiene.56 A transformação do assunto em importante tópico nas discussões públicas deu-se a partir das dinâmicas e demandas internas do país e dos Estados,57 mas também em razão do debate internacional que se instalou nas primeiras décadas do século XX.58 Nesse sentido, no ano de 1928, o ministro da Justiça, inspirado nas experiências paulista e mineira e numa tentativa de prevenir e reprimir a prostituição e o lenocínio, propôs a criação de uma delegacia de costumes no Rio de Janeiro, quatro anos após a criação da primeira repartição congênere.59 Reajustadas as principais peças do seu mecanismo, lembraria ainda, para melhor divisão das atribuições, a conveniência do critério da especialização das funções, com real proveito adotado no Estado de S. Paulo, a princípio, e, recentemente, no de Minas Gerais. Conservadas, assim, algumas delegacias circunscricionais, seria criado o Gabinete de Investigações, que funcionaria com oito delegacias especializadas, distribuídas da seguinte forma: I – Ordem Política e Social; II – Delitos contra as Pessoas; III – Delitos contra a Propriedade Pública e Particular; IV – Delitos contra a Fé Pública; V – Delitos contra os Costumes; VI – Leis especiais, Jogos, Inspeção e Fiscalização dos Divertimentos Públicos; VII – Vigilância Geral e Capturas; VIII – Polícia Marítima.60 Desconheço a existência de trabalhos específicos sobre o debate em torno da criação dessas delegacias em outros Estados, mas alguns trabalhos indicam que houve uma intensa tentativa da polícia, desde os anos iniciais da República, para problematizar a prostituição e propor intervenções nessa prática. Há, mesmo, propostas de organização de serviços não foram. 56 Esse debate é discutido em RAGO, 1991, p. 106-127. 57 Vários autores indicam uma crescente preocupação das autoridades policiais, em diferentes cidades, com o a prostituição. RAGO, 1991; BONI, 1998; LEITE, 2005; SCHETTINI, 2006. Rago (1991) argumenta que houve, em São Paulo, uma regulamentação da prostituição, o que será discutido no último capítulo. 58 Há um debate formal sobre o assunto, organizado em torno da liga pela luta contra o “tráfico de escravas brancas” e das ligas pró Temperança na América. Ver KUSHINIR, 1996; SCHETTINI, 2006; STROUT, 1936. 59 Rago (1991, p. 110) indica que a Delegacia de Costumes de São Paulo foi criada em dezembro de 1924. Em Minas, essa delegacia foi criada em dezembro de 1927, funcionando pela primeira vez na madrugada do dia 31 para o dia 1º de janeiro de 1928. 60 Relatório do MJNI 1930, p. 158, grifos meus. 33 antissifilíticos, de policiamento dos costumes e de moralização policial dos espaços urbanos.61 Segundo Margareth Rago, a polícia de costumes em São Paulo elaborava portarias que organizavam e regulavam a prática da prostituição, funcionando como suporte para a conduta dos guardas civis no policiamento da cidade. A autora assevera que foi desenvolvida uma espécie de ação contínua de fiscalização nas “casas de diversões”, “cabarés”, “bares” e “restaurantes”,62 porém não se aprofundou na análise da organização dessa polícia, tampouco da criação da Delegacia de Costumes. Em Minas Gerais, contamos com o trabalho de Marina Guedes Costa e Silva, que discute a existência da polícia de costumes, em Belo Horizonte, em meados da década de 1910.63 Sua dissertação traçou um panorama geral da organização policial nas três primeiras décadas da capital e buscou compreender, em especial, suas formas de cultivar comportamentos e sensibilidades da população, estabelecendo relações entre práticas policiais e práticas educativas. A autora entendeu que a prostituição, a vadiagem e a embriaguez foram os principais alvos de intervenção do projeto moralizador da polícia na cidade.64 Mas como a polícia de costumes não era o objeto de sua pesquisa, ela não se deteve na análise de sua elaboração. Esse quadro geral me permitiu elaborar um conjunto de perguntas, a fim de compreender o processo de constituição da polícia de costumes em Minas Gerais e sua atuação em Belo Horizonte: quais eram as ações da polícia de costumes? como se deram os debates a respeito de sua formação? como ocorreu a transformação da prostituição em um problema policial em Belo Horizonte? de que maneira se forjou a necessidade de intervenção no comportamento das meretrizes na cidade? Ao longo deste capítulo, buscarei responder essas perguntas e compreender a relação que a polícia procurou estabelecer com o problema da educação moral da população. Algumas perguntas poderão ficar sem respostas, mas espero levantar, ao longo dessa reflexão, algumas hipóteses. 2.2 uma polícia de costumes em Minas? A polícia de costumes em Belo Horizonte possui uma especificidade em relação à sua congênere francesa. Ela se constituiu por demanda de uma delegacia auxiliar da capital, como 61 Sobre propostas de serviços médicos, ver MARQUES, 2004; Sobre policiamento dos costumes e moralização dos espaços urbanos pela policia, ver RAGO, 1991; SCHETTINI, 2006; BONI, 1998. 62 RAGO, 1991, p.120-127. 63 SILVA, 2009, p. 76. 64 SILVA, 2009, p. 80. 34 um projeto policial de moralização dos comportamentos e costumes, e não como um órgão fiscalizador que registrava as meretrizes, como no sistema francês. Segundo o trabalho de Marina Silva, a chamada “polícia de costumes” tinha como principais alvos de sua vigilância as diversões públicas, tais como “cinemas, teatros, circos e bailes públicos”, esbarrando, dessa forma, nas funções do policiamento noturno da cidade.65 Em 1912, segundo sugere o delegado Affonso Santos, os guardas civis se viram sob as ordenações de uma portaria que se manifestava a respeito da moralidade no espaço público: Nesta data inicio uma campanha contra a imoralidade reinante, na 2ª circunscrição policial; rogo a colaboração dos Srs. fiscais, recomendandolhes transmitirem aos guardas civis as seguintes instruções I. Quando em um botequim ou restaurante se estiver cometendo atos imorais, cenas escandalosas, o respectivo proprietário será intimado a fechá-lo imediatamente; II. Qualquer meretriz que, à noite, estiver vagando fora de casa, passeando pelos passeios e ruas, indo e voltando repetidamente, será conduzida a esta delegacia; III. O indivíduo ou grupo de indivíduos que estiver perturbando o sossego público e ofendendo os bons costumes e a moralidade das famílias, será levado à delegacia e, conforme esteja procedendo, será preso em flagrante e conduzido ao posto policial, para que seja devidamente autuado e processado; IV. Exerçam os srs. guardas civis a maior vigilância e empreguem a máxima energia para que, nas pensões alegres, não se deem cenas de deboche, visíveis ao público, gritarias e palavrões incômodos e perturbadores da tranquilidade das famílias; V. Os automóveis, conduzindo pessoas, que se não estejam comportando com decência, serão detidos e levados à delegacia; VI. O guarda civil, que efetuar uma prisão, se encontrar dificuldade em conduzir o preso, pedirá imediatamente auxilio à delegacia; VII. Recomendo muito aos guardas prender em flagrante e conduzir a esta delegacia, devidamente acompanhadas das testemunhas, as pessoas que praticarem atos ofensivos à moral e aos bons costumes.66 Affonso Santos procurava realizar uma vigilância geral dos costumes e colocar em prática um policiamento preventivo para que determinados preceitos morais fossem respeitados no espaço público, por todas as pessoas da cidade. A atitude do delegado aproximava-se dos preceitos do artigo 282 do Código Penal de 1890, que tipificava o “crime do ultraje público ao pudor”, operando em defesa da “moralidade das famílias”, como diria 65 SILVA, 2009, p. 76. Essa portaria foi comentada indiretamente por ANDRADE, 1987, p. 35, citada por SILVA, 2009, p. 89, e foi publicada no Relatório da CP, 1914b, p. 65-66, consultado no APM, grifos meus. 66 35 um jurista brasileiro.67 Apesar de sua medida se voltar a ações mais severas e a uma vigilância mais acirrada na prática cotidiana das meretrizes, acredito que ela traduz um desejo de vigilância moral mais abrangente, pois suas prescrições, mesmo abrindo prerrogativas para a vigilância do meretrício, não criaram nenhum mecanismo formal de controle ou prevenção dirigido a essa prática, a não ser instruções de comportamento dos guardas. Minha hipótese é que essa portaria se tornou um dispositivo de orientação para o policiamento da cidade. Em outras palavras, tratava-se de um mecanismo que ditava parâmetros para a conduta dos policiais, e não se restringiria a uma corporação específica, mas dizia respeito às práticas de policiamento da cidade.68 Logo que entrei em exercício do cargo, tratei de por um freio à desbragada imoralidade, que nas ruas, em passeios de automóvel, nos restaurantes e pensões alegres, se exibia deslavada, livre de peias, atentatória aos bons costumes e merecidos créditos de moralidade que 69 possui a terra mineira. Todos esses elementos me permitem concluir que, apesar de existir o anúncio oficial de uma polícia de costumes instalada na capital, essa polícia funcionou, até 1927, mais como um preceito policial, como uma proposta de vigilância dos comportamentos de diferentes sujeitos, do que como uma corporação especializada, organizada e com regimento próprio. Se, em 1914, o responsável pela polícia de costumes era o delegado da 2ª circunscrição policial Affonso Henrique de Figueiredo Santos, no ano de 1915, o único relato que se reporta aos encargos da polícia de costumes foi assinado pelo delegado da 1ª circunscrição, Paulino de Araújo Filho. A mudança da polícia de costumes de uma delegacia para outra sugere o caráter de “serviço atribuído”, mais do que a organização de um grupamento especializado. Paulino Filho argumentou que, “depois de um estudo consciencioso e comparativo” das ações policiais relativas ao meretrício, propôs “diversas medidas preventivas, em 1913, quando delegado de polícia de Ouro Fino”, submetendo-as “à apreciação dessa Chefia, todas 67 Francisco José Viveiros de Castro (1932, p. 122-124)argumentou em seu livro “Os delitos contra a honra da mulher”, publicado pela primeira vez em 1897, que o crime de estupro contra as meretrizes era um absurdo, uma vez que o crime seria contra a liberdade pessoal e não contra a honra, “que não existe”, já que “a prostituta não recebe afronta que mancha indelevelmente a vida da mulher honesta”. O autor partia do princípio, defendido por Souza Lima, de que o título da seção que tipificava o estupro o no código penal de 1890 era “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias”, tornando-se “contrassenso jurídico classificar a violação de uma prostituta entre os delitos que afetam a segurança da honra e a honestidade das famílias”. 68 É difícil afirmar em que medida essa campanha foi levada a cabo, pois não foi possível realizar uma pesquisa mais sistemática nos jornais da década de 1910. 69 Relatório do CP, 1914b, p. 65, grifos meus. 36 elas visando evitar os ataques à moralidade pública, aos bons costumes e preservadoras da saúde pública”.70 É possível que o posto de delegado em Ouro Fino e o trabalho de elaboração de uma proposta moralizadora naquela cidade tenham aberto caminho para que, ocupando o cargo de delegado da 1ª circunscrição da Capital, ele tomasse a frente nas políticas de policiamento dos costumes por certo período. Mas não há indício de que ele tenha elaborado algum tipo de prescrição específica para o meretrício em Belo Horizonte. Novamente, os indícios corroboram a hipótese lançada por Marina Silva, de que a polícia de costumes tinha uma preocupação com as diversões públicas em geral, não promovendo regulamento do meretrício. A mudança da polícia de costumes da 2ª para a 1ª circunscrição policial permite, ainda, conjecturar que os cargos de delegado em Minas estiveram inseridos numa rede de relações políticas, o que fica evidenciado nas justificativas apresentadas por Paulino Araújo. Para reforçar essa hipótese, recorro a dois exemplos da historiografia: Marcos Bretas chamou a atenção para os cargos políticos que os delegados da capital federal almejavam e puderam alcançar ao longo das primeiras décadas do século XX. De um ano para o outro, vários delegados se tornaram chefes de polícia e até mesmo passaram a ocupar cargos no Supremo Tribunal Federal, entre outras carreiras do sistema judiciário. Para o autor, os delegados, bacharéis em Direito, esperavam que os serviços prestados à polícia os alçassem, cedo ou tarde, a melhores cargos. Ele também sugere que nas substituições do Chefe de Polícia ou nas transições de governo as chefias das delegacias, geralmente, sofriam alterações. “Como o posto de delegado auxiliar era visto como um passo numa carreira na justiça, muitos o deixavam para assumir lugares de juiz ou promotor, não permanecendo muito tempo a serviço da polícia”. 71 No caso de Minas Gerais, Marina Silva notou que, ao longo da década de 1910, “pelo menos dois Chefes de Polícia, Vieira Marques e Américo Ferreira Lopes, viriam a ser Secretários do Interior”.72 A autora evidencia o caráter político dos altos cargos da polícia em Minas. Além disso, há indícios dessas relações de interesse político e profissional nos cargos de delegado e chefe de polícia. Herculano César Pereira da Silva assinava, em 1913, como 70 Relatório do CP, 1915, p. 137-138. BRETAS, 1997a, p. 51. 72 SILVA, 2009, p. 58-59. 71 37 delegado da 1ª delegacia auxiliar; já em 1914, ele ocupava o cargo de Chefe de Polícia.73 Segundo Marina Silva, ao longo da década de 1910 e 1920, ocorreu a transformação do cargo de Chefe numa função mais política e administrativa. Essa mudança tornou-se possível à medida em que a polícia forjou novas subdivisões em sua hierarquia, justificadas pelo suposto aumento da complexidade no serviço de policiamento devido às novas demandas da cidade em desenvolvimento.74 Assim, é possível conjecturar que a não organização das funções da polícia de costumes em um único departamento ou em uma delegacia especializada possua relações com a dinâmica da administração policial que vigorou até meados da década de 1920. A leitura da documentação nos leva a inferir que ocorria, muitas vezes, uma superposição de funções e obrigações nas delegacias existentes. Um exemplo disso são as propostas de medidas de vigilância dos costumes e do meretrício por delegados que não exerciam essa “função”. Nesse sentido, “embora a polícia de costumes” estivesse “a cargo da outra delegacia auxiliar”, o delegado auxiliar Antonio Vieira Braga Júnior argumentava a necessidade de elaborar medidas de intervenção ao meretrício, já que o campo de ação da polícia de costumes confinava-se na “esfera” de sua competência. 75 Para além da designação de “polícia de costumes” dada a uma ou outra das delegacias auxiliares, a vigilância dos costumes tornou-se, então, uma questão importante para as delegacias responsáveis pelo policiamento da cidade. Ela não se constituiu primordialmente para a vigilância ou controle do meretrício, mas para uma prevenção e proteção de uma ordem moral do espaço urbano de forma mais generalizada, diferente do caso francês que, apesar de generalizada, nasceu explicitamente para o registro do meretrício. O delegado da “Delegacia da Comarca” da capital, Edgard Franzen Lima,76 em 1922, relatava suas incumbências da seguinte maneira: Incumbindo a esta Delegacia o policiamento noturno da Capital, sob sua imediata fiscalização se realizam as diversões que se prolongam ou se iniciam depois das 10 horas da noite. Essas diversões compreendem os 73 Relatórios da CP, 1914a, 1914b. SILVA, 2009, p. 58. 75 Relatório da SP, 1922, p. 52, grifos meus. 76 Nascido em Ouro Preto em 22 de julho de 1887, era filho de Bernadino Augusto de Lima e Esther Franzen de Lima. Formou-se em 1909 pela Faculdade Livre de Direito, em Belo Horizonte, e atuou como delegado de polícia em Cariri, Pitangueiras e Queluz, em São Paulo. Em Belo Horizonte, foi delegado de polícia, antes de ser nomeado, em 1927, delegado de costumes, cargo que ocupou até sua morte em 1934. MINAS GERAIS, 20/09/1934, p. 13-14. 74 38 bailes públicos, especialmente os tradicionais bailes que se realizam nas chamadas “Pensões Chics” ou casas de tolerância da Capital.77 Não se percebe indício de desejo de reorganização ou de estruturação institucional da polícia de costumes na capital mineira, no sentido de uma vinculação desse serviço a uma delegacia especializada, ou da sistematização de sua atuação em um destacamento específico da polícia, até o início de 1920. Mas, como destacarei adiante, a partir da experiência com o policiamento da cidade, essa espécie de “função especial” da polícia foi aos poucos incorporada aos esforços políticos de “modernização” da polícia no Estado de Minas, em meados de 1920.78 No decorrer desses esforços, foi aprovado o “Regulamento do Serviço de Investigações”, documento que anuncia a criação da “Delegacia de Costumes e Jogos”,79 que, instalada na virada de 1927 para 1928,80passava a organizar e executar o “serviço de polícia de costumes”.81 A delegacia especializada concentrou, dentre suas atribuições, as ações policiais direcionadas ao meretrício na cidade, procurando, assim, dar continuidade ao que já vinha sendo feito por diferentes delegacias, como a vigilância do meretrício e as propostas para sua localização.82 Além disso, a nova delegacia anunciava a realização do registro do meretrício e a busca pela formação policial com base no conhecimento, relativamente recente, da questão da prostituição no mundo e no Brasil.83 Dessa forma, e apesar de o meretrício ter sido um tema debatido pela polícia mineira, demandando intervenções desde meados da década de 1910,84 a organização de uma polícia de costumes preocupada em organizar e controlar a prática do meretrício na cidade deu-se ao longo da década de 1920 e dos anos subsequentes aos conflitos políticos de 1930. 77 Relatório da SP, 1922, p 62. Relatório da SSA, 1927, p. 9-11; Relatório da SSA, 1928, p. 3-8. Analisarei com mais vagar a questão da “incorporação” da sensibilidade moral no policiamento no segundo capítulo. 79 Decreto 8068 de 12 de dezembro de 1927. 80 DIÁRIO DE MINAS, “SERVIÇO DE INVESTIGAÇÃO – Foram instaladas as delegacias de polícia especializada”, 01/01/1928, p. 3. A Delegacia abria seus relatórios com detalhes acerca do policiamento do meretrício. Entretanto, ela conservava serviços de “auxílio” ao “juiz de menores”, para aplicação do código de menores, e de vigilância das diversões públicas. O serviço de censura teatral e cinematográfica e de repressão ao jogo também foi organizado. A repressão à venda de “tóxicos” e à circulação de material pornográfico foi estruturada ao longo do primeiro ano de funcionamento da delegacia. Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 85-97. 81 Relatório da SSA, 1928, p. 228. Este relatório anuncia a criação da “Polícia de Costumes” um ano antes da instalação da Delegacia de Costumes. O delegado que estava a cargo dessa organização era Edgard Franzen de Lima. 82 Essas propostas estão presentes no Relatório da SP, 1922, p. 52 e 57, e serão discutidas mais adiante. 83 Esses temas serão trabalhados no último capítulo. 84 Ver também SILVA, 2009, p.91. 78 39 Outros fatores que corroboram para a delimitação temporal desta análise referem-se ao crescimento e à consolidação do ambiente urbano e da vida noturna a partir da década de 1920. Essa ambiência urbana, no âmbito deste trabalho, constitui-se pelo aumento do número de habitantes; pelo crescimento de instituições financeiras e de setores industriais, principalmente pela extração de minérios; e pela diversificação de estabelecimentos comerciais e de espaços de sociabilidade e diversão, como cafés, cinemas e bares.85 Trata-se, portanto, de um período de transformação das relações sociais, econômicas, políticas e culturais da cidade, que foi também um momento de consolidação de um espaço público organizado e informado pela esperança de consolidação de uma experiência eminentemente urbana, principalmente em torno dos cafés, dos meetings, dos cabarés.86 Nesse sentido, as propostas de localização do meretrício e a criação de uma delegacia especializada compõem a materialização, durante a década de 1920, do esforço de problematizar uma realidade e de resolver os problemas construídos ou verificados por determinados grupos. Mas isso não quer dizer que o período estudado inaugura as políticas policiais de intervenção no meretrício. É preciso deixar claro que simplesmente optei por problematizar e compreender o momento de uma configuração específica das práticas policiais em relação à prostituição. Ou seja, busco entender como os setores policiais lidaram com os problemas ligados à educação moral, no momento da elaboração e consolidação de um ritmo de vida mais agitado da cidade. Tal processo de problematização da moralidade do espaço público diz respeito às próprias transformações do espaço urbano e das dinâmicas sociais da cidade durante a década de 1920,87 mas também às mudanças ocorridas na organização policial, que procurou modernizar-se, criando departamentos especializados.88 A tentativa de “pedagogização do meretrício” acompanhou esse processo de reestruturação, no qual as autoridades policiais forjaram a legitimidade de suas ações e de suas especializações no combate ao crime e às contravenções, evidenciando o caráter educativo que a instituição policial pretendia assumir. A partir de agora, procurarei definir como se deu a organização da polícia de costumes em uma delegacia especializada; a constituição política de suas funções sociais, dentre elas a 85 GUIMARÃES, 1991; SILVEIRA, 1996; AGUIAR, 2006. A respeito da formação de um espaço público em Belo Horizonte, ver SILVEIRA, 1996, e ANDRADE, 2004. 87 AGUIAR, 2006. 88 Regulamento do SIC, Decreto 8.068, de 12 de dezembro de 1927. Francis Cotta (2006) argumenta que a década de 1920 foi um momento importante na estruturação das forças policiais de Minas. 86 40 organização do meretrício no ordenamento urbano de Belo Horizonte; a construção teórica de sua legitimação; e sua composição como um projeto de educação moral para o meretrício. Passemos, assim, para o desenvolvimento dessas questões. 2.3 modernidade, educação moral e polícia na década de 1920 Os conflitos políticos deflagrados nos primeiros anos da década de 1920, que envolveram o questionamento das fronteiras no sul e no norte do Estado de Minas, tiveram influência nos projetos policiais. Há indícios de que essa crise política esteja relacionada com o movimento de reorganização e reestruturação dos serviços policiais de Minas, em meados daquela década. Naquele momento, as autoridades do Partido Republicano Mineiro, empossadas no governo Antônio Carlos, implementaram uma ação política educativa, com promessas emancipadoras e propostas de comunhão dos valores liberais. Nas palavras do recém-empossado Secretário da Segurança José Francisco Bias Fortes, a análise pormenorizada do programa político que se vai desenvolvendo em Minas, além de patentear que estão lançados os fundamentos de uma lata política educativa, demonstra a perfeita aplicabilidade, entre nós, das normas democráticas, moldadas neste elevado princípio liberal - “a democracia não visa conquista e a dominação do semelhante; antes, o que ela apregoa é igualdade perante a lei e não igualdade absoluta; o que ela quer é a emancipação do homem, politica, econômica, e socialmente”. Nesses largos traços temos a situação fiel do que se opera no Estado: a democratização dos nossos costumes e as realizações já verificadas 89 inculcam o mais auspicioso prognóstico. Estaria em jogo a lógica discursiva do pensamento liberal, que buscava a “reorganização social dentro da ordem”,90 promovendo a institucionalização de um controle social e tendo como um dos suportes a pedagogização das práticas sociais.91 A criação da Secretaria de Segurança e Assistência Pública, que buscava dar continuidade ao processo de valorização das organizações militares e investigativas da polícia, era uma tentativa de solucionar os problemas de ordem social e política no Estado, cujo objeto era “velar pela ordem, segurança, assistência e saúde pública”. 92 Por indicação do presidente Antonio Carlos, o Congresso Mineiro aprovou leis que promoveram reformas na Secretaria de Segurança e no Gabinete de Investigações e Capturas, 89 Relatório SSA, 1928, p. 6-7, grifos meus. MONARCHA, 1989, p. 54 91 Ciro Mello (1996, p. 24) argumentou que a elite política mineira, favorável aos projetos republicanos, promoveu, no pós-1889, a construção de discursos políticos “objetivado[s] na educação não formal do povo e do cidadão”, promovendo a disseminação de uma educação política. 92 Relatório SSA, 1928, p.7. 90 41 que passou a ser denominado, em 1927, Serviço de Investigações e Capturas.93 Além disso, essa repartição passou a chefiar quatro delegacias especializadas, a partir de 1928: Delegacia de Segurança Pessoal e de Ordem Política e Social, Delegacia de Furtos, Roubos e Falsificações em Geral, Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos e a Delegacia de Vigilância Geral e Capturas.94 Comentando a respeito desse serviço, o secretário afirmou que “dentre as novas funções atribuídas a esta seção, convém salientar os serviços de investigações e vigilância, proteção aos direitos individuais, manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas, além da captura de criminosos”.95 É interessante notar que o Gabinete de Investigações já havia sido regulamentado no governo do presidente Fernando Mello Vianna, pelo Decreto n. 7.287, de 17 de julho de 1926. A principal diferença entre esses dois regulamentos encontra-se no grau de “modernização” que os governantes procuraram dar ao aparato policial, numa luta simbólica pelo poder. Ambos prescrevem a criação de novos cargos, bem como o incentivo ao uso de novos materiais técnicos e instrutivos. Mas o regulamento de 1927 abriu caminho tanto para a especialização do aparato policial, criando delegacias especializadas, quanto para a abertura de créditos destinados ao custeio da segurança. 96 As transformações administrativas, políticas e operacionais pelas quais a polícia investigativa de Minas passou ao logo da década de 1920 caminharam passo a passo com as transformações do espaço urbano de Belo Horizonte, que esteve em constante reformulação. Como nos indica Anny Silveira, a vida cultural da cidade se diversificou ao longo daquela década, e alguns espaços urbanos, como os cafés, tornaram-se importante ponto de referência para a sociabilidade dos habitantes. Toda essa atividade, o cruzar de opiniões que tinha lugar nessas casas, fazia do café um lugar onde se poderia encontrar conversação construtiva e inteligente. É segundo essa imagem que seus salões também serão vistos como espaço onde seria possível educar-se socialmente, aprendendo sobre as formas, os códigos e os significados dos atos e do comportamento em público. 97 Esses espaços eram frequentados por uma diversidade social muito grande, que, muitas vezes, condizia com a localização dos cafés no mapa da cidade. Assim, diferentes aprendizados e formas de sociabilidade forjavam-se nesses locais, não se limitando às 93 Relatório da SSA, 1928, p. 30-31. Regulamento do SIC, Decreto 8.068, de 12 de dezembro1927, arts. 54 a 58. 95 Relatório da SSA, 1928, p. 40, grifos meus. 96 Ver Decreto n. 7.287, de 17 de julho de 1926, e Decreto 8.068, de 12 de dezembro de 1927. 97 SILVEIRA, 1996, p. 155, grifo original. 94 42 imagens de civilidade e preservação dos bons costumes que os cafés carregavam, afinal, “a cidade era o que os habitantes faziam dela”. 98 Os espaços de diversão, pontos de encontro e lazer, como cinemas, restaurantes, bares, confeitarias, clubes e cabarés se diversificavam, num processo de intensificação da “vida urbana”.99 Mas nesse cenário de transformação dos espaços de sociabilidade e da ocupação do tempo livre, ocorriam problemas de habitação, transporte e abastecimento de água, em diversos bairros da cidade da área denominada “suburbana”.100 Havia, também, uma crescente preocupação com as chamadas “alterações” e “distúrbios” da ordem moral e pública. Sobre essa questão, Letícia Julião sustenta que “a capital parecia, assim, reservar aos setores populares apenas o sentido repressivo de sua modernidade”.101 Tendo a discordar dessa afirmativa, na medida em que entendo que a modernidade não seria um projeto pré-determinado e conduzido por um grupo específico, detentor dos destinos da sociedade. Concordar que os grupos sociais com menor poder aquisitivo só entravam em contato com a modernidade a partir do aparato repressivo do Estado é desconsiderar a própria atuação desses grupos nos movimentos que consagraram a modernidade na cidade, seja na participação massiva nas exibições cinematográficas, seja na participação e organização de greves e manifestações políticas no espaço público.102 Além disso, aquela perspectiva só é capaz de perceber o aparato policial sob a ótica da repressão, desconsiderando outras formas de atuação da polícia, como a assistência pública e a organização dos transportes urbanos, por exemplo.103 Ratificar a afirmação de Julião seria, enfim, desprezar o caráter relacional dos projetos políticos e a dinâmica do processo de consolidação do fenômeno da modernidade em Belo Horizonte. Além disso, não podemos pensar na legislação e nas prescrições de normas de conduta, desde Thompson, como uma simples arma “burguesa” de dominação e manipulação das “classes populares”. A respeito da “função ideológica da lei”, o historiador inglês afirmou que 98 Anny Silveira (1996, p. 171) afirma que “para além da tarefa de civilizar os habitantes da nova cidade, estes estabelecimentos de café foram objeto de outras destinações, dadas por esses mesmos habitante. Espaço do ócio, do negócio, da contestação política, de bebedeiras e de conflito, do estabelecimento de uma sociabilidade e de solidariedades que não exatamente, às vezes mesmo contrárias, aquelas pensadas pelos projetistas”. 99 ANDRADE, 2004, p. 85-86. 100 Esses problemas são discutidos por GUIMARÃES, 1991. 101 JULIÃO, 1996, p. 84. 102 Sobre a participação popular em eventos cinematográficos, ver DIAS, 2011, p. 2-3. Sobre as práticas de operários na cidade, ver DUTRA, 1988. 103 BRETAS, 1997a, p. 15-16. 43 se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. Não conseguirá parecê-lo sem preservar sua lógica e critérios próprios 104 de igualdade; na verdade, às vezes sendo realmente justa. Apesar de os registros policiais e legais não nos oferecerem outra visão que não a institucional, é preciso pensá-los num eixo diferente das leituras que, ao explicarem uma parte da história de Belo Horizonte, acabam por simplificar um processo de luta por definições e usos dos espaços urbanos, modos de convivência e comportamentos nesses espaços. Nesse sentido, defendo que o processo de educação das sensibilidades e dos comportamentos dos habitantes da capital, em suas décadas iniciais, aconteceu em meio a uma forte tensão entre o desejo de formar as pessoas pelos pressupostos de uma dada modernidade e a necessidade encontrada pelas autoridades policiais e pela sociedade civil de vigiar, reprimir e prevenir determinados comportamentos emergentes pari passu aos diferentes processos de modernidade.105 Anny Silveira, argumenta que “apesar de tantos modelos que foram sonhados para a jovem capital, a sua vida em sociedade acabou se definindo muito mais em função daquilo que a cidade podia oferecer e pela forma como seus habitantes usufruíram desses espaços e atividades”.106 A autora admite, assim, a coexistência entre, no mínimo, dois tipos diferentes de projetos para a cidade, o dos “civilizados”, que procuravam legitimar e colocar em prática os projetos oficiais de modernização da cidade e o dos “rastaqueras”, composto pelo “movimento de incorporação, negação e reformulação dos elementos definidores desses mesmos projetos”.107 Apesar de não incorporar as categorias de “classes dominantes” e “resistência”, entendo, com a autora, que havia projetos de sociedade diferentes daqueles apresentados pela polícia e pelos representantes políticos da cidade. E a relação entre esses diferentes desejos é uma das composições possíveis da trama que os historiadores podem tecer sobre o processo de pedagogização da população da capital mineira. Belo Horizonte, assim como outras cidades brasileiras, 108 passou por um processo de interação e disputa entre o desejo de transformações culturais e inserção numa lógica de 104 THOMPSON, 1987, p. 354. JULIÃO, 1996, e SILVEIRA, 1996. 106 SILVEIRA, 1996, p. 198. 107 SILVEIRA, 1996, p. 172. 108 Algumas cidades, na virada do século XIX para o XX, no Brasil, vivenciaram diferentes projetos de modernidade e modernização que entraram em conflito com outras moralidades e tendências sociais, 105 44 desenvolvimento e o desejo de preservação dos costumes, da moralidade e da honra das famílias. Mais do que contradição, essa ambivalência é parte de um processo de constituição da própria cidade, compondo importante eixo interpretativo de uma memória coletiva e da historiografia sobre a cidade.109 Uma expressão dessa ambivalência encontra-se nessa defesa pela constituição de uma “vida noturna” na capital, sem as limitações decorrentes de preceitos morais mais conservadores. Belo Horizonte progride? (...) Eu quero acreditar que Belo Horizonte progrida... E gostaria que a cidade evoluísse sem limitações ridículas, sempre intoleráveis. Ouço referências a cabarés onde se fala um esparregado de linguagem, uma mistura de idiomas, que deve formar o “esperanto” da libertinagem elegante e onde se “maxixa” o tango argentino e se faz a apologia frenética do Jazz band. Naturalmente nesses ambientes “simiescos” devem imperar a 110 Isidora Duncan e a [Parlowa] da tribo dos Guaicurus. De acordo com as posições apresentadas até agora, Belo Horizonte produziu e conviveu com diferentes projetos de modernidade que privilegiavam, de uma parte, o desenvolvimento de uma moralidade mais “conservadora” e, de outra, a composição e expansão de um cenário público “emancipador”. Ciro Mello, diferentemente da maioria dos historiadores de Belo Horizonte, argumenta que a construção da capital não significou “uma ruptura do tipo novo/velho, moderno/antigo, mas uma recomposição do tempo histórico dentro de uma legitimação da justaposição tradição/futuro.”111 Sua proposta, pertinente ainda hoje, nos ajuda a corroborar o argumento de que o “novo” e o “antigo” conviveram de forma conflituosa nos projetos de modernidade para a capital. 112 A interação entre uma série de comportamentos sociais mais “tradicionais” e outra composta por movimentos de expansão de uma forma de vida da “modernidade” constitui-se como importante linha explicativa na historiografia de Belo Horizonte. Essa perspectiva permite perceber que os habitantes da cidade, que crescia vertiginosamente, procuraram manter, entre suas formas de sociabilidade, as relações pautadas no face-a-face e em valores de honra e moral, ao mesmo tempo em que procuravam diversificar as possibilidades de relações interpessoais, como o distanciamento dos laços afetivos nas atividades cotidianas. principalmente no seio “popular”. Sobre a cidade do Rio de Janeiro, ver CAULFIELD, 2000; sobre Porto Alegre, ver PESAVENTO, 2001; e a respeito de Santos, ver MATOS, 2002. 109 Sobre o uso da noção de “ambivalência”, ver ANDRADE, 2004. 110 Diário de Minas, 28/12/1922, p. 1, grifos meus. O autor da crônica assina como “Fly”. 111 MELLO, 1996, p. 13. 112 “Assim, o que mais se evidencia são as tensões e ambivalências próprias da passagem de um meio menos urbanizado e moderno para um mais heterogêneo e moderno”. ANDRADE, 2004, p. 175. 45 Para Luciana Andrade, podemos observar as tensões existentes nesse processo a partir da dualidade entre “provincianismo” e “cosmopolitismo”. Segundo a autora, “o anonimato e o cosmopolitismo só podem ser experimentados como liberdade positiva [...] quando os valores tradicionais e familiares deixam de predominar na definição da identidade do indivíduo”; por outro lado, se esses valores ainda são importantes, mas tornam-se impotentes diante da hierarquização, social e econômica, das sociabilidades urbanas, “o anonimato só pode ser percebido e experimentado como liberdade negativa e exclusão”.113 Observando os movimentos de luta pela modernidade em Belo Horizonte a partir dessa perspectiva de análise, pode-se compreendê-los como parte de um processo formador de sensibilidades e subjetividades dos habitantes da cidade, ou, em outras palavras, do processo de pedagogização da população.114 No que diz respeito à polícia, a delimitação de espaços, a definição de modos de conduta e a elaboração de normas para a prática do meretrício podem ser compreendidas “como uma dimensão pedagógica do poder”,115 na medida em que concentram e expressam conhecimentos morais e o poder discricionário da polícia. Nas ruas da cidade, gesta-se “uma pedagogia para o flâneur, para a prostituta, para o passante, e mesmo para o homem na multidão,” num movimento em que “os sentidos do corpo são educados, treinados” a partir de experiências cotidianas em que a vivência do choque é privilegiada.116 2.4 polícia de costumes e os mecanismos pedagógicos para uma educação moral. Com a leitura dos relatórios disponíveis e da documentação periódica, pude elaborar um panorama das posturas e ações oficiais da polícia em relação ao meretrício. Em 1922, a polícia de costumes estava organizada e a cargo do delegado auxiliar Gil Augusto da Silva, 117 já em 1928, “foi eficientemente organizado o serviço de polícia de costumes tendente a prevenir ou coibir os escândalos e ofensas á moral pública nas ruas, avenidas e logradouros”.118 Comparar esses dois registros me permitiu pensar a respeito da repetição, num prazo de seis anos, de uma ação que supostamente já havia sido realizada – a organização do serviço da polícia de costumes. O que me levou a conjecturar sobre a ocorrência de interrupção ou instabilidade no exercício dessas funções ao longo da década de 113 ANDRADE, 2004, p. 182. A historiografia da educação vem estudando as variadas formas de desenvolvimento de processos educativos tecidos nas sociabilidades urbanas, ver LOPES, 1985; VEIGA e FARIA FILHO, 1997; SOARES, 2005; MORENO, 2001. 115 SOARES, 2005, p. 44. 116 VAZ, 2001, p. 53. 117 Relatório da SP, 1922, p.55. 118 Relatório da SSA, 1928, p. 228. 114 46 1920. Essa recorrência indica que até 1927 a “polícia de costumes” seria entendida mais como uma postura moral a ser exercida pelos guardas-civis durante o policiamento urbano, como já argumentamos no começo deste estudo. No decorrer da década de 1920, surgiu uma crescente preocupação, por parte dos delegados e autoridades policiais, com a transformação do comportamento das mulheres que viviam do meretrício. Essa preocupação configurou-se como um forte interesse em realizar intervenções nessa prática e, assim, as narrativas policiais incorporaram em suas prescrições os valores caros à sociedade belo-horizontina naquele momento. Dessa forma, entendo que as propostas de intervenção no meretrício, como os projetos de sua localização e as prescrições para os comportamentos, elaboradas por delegados ao longo da década de 1920, possuem uma relação com o desejo de exercer determinado controle sobre a população e de promover sua educação moral. A opção de encarar a prostituição como um problema moral, de competência da Delegacia de Costumes, relacionava-se, então, com um projeto maior de educação moral da população. Elaborado e defendido pela Secretaria de Segurança, esse projeto buscava formar os habitantes da cidade utilizando um discurso de moralização do espaço público e contava, ainda, com um programa de prevenção e controle de abusos, excessos e desrespeitos à moral pública e ao ultraje ao pudor. Destarte, a elaboração de medidas de combate às licenciosidades no espaço público pela polícia de costumes é parte de um projeto específico de educação para a população, defendido pela Secretaria de Segurança e Assistência Pública. O Secretário da Segurança e Assistência Pública recomenda a autoridades policiais, em geral, que não permitam a quantos tomarem parte nos folguedos do carnaval: atos e exibições injuriosas aos brios, qualidade e situação social de pessoas, classes e instituições; palavras, gestos e canções obscenas; […] ostentação desrespeitosa de símbolos do culto cívico ou religioso [...] A polícia de costumes será exercida com vigilância e severidade, exigindo-se o máximo respeito às famílias, e bem assim com solícita atenção, especialmente, quanto aos atentados contra a moral e aos crimes contra a propriedade.119 Vista como uma maneira de formar, transformar ou, em outras palavras, educar o comportamento de mulheres e homens que se relacionavam com o meretrício, a polícia de costumes, alocada numa delegacia especializada, tornou-se referência quanto à forma de conduta policial. Essa prática, já institucionalizada, surge novamente como um mecanismo de 119 Relatório da SSA, 1927, p. 26-27. 47 “controle da população”. Uma vez que procurava proteger as famílias, tinha a expectativa de preservar valores tradicionais no processo de modernização, procurando defender a moral e os bons costumes, por meio da intervenção no comportamento das meretrizes. Em decorrência desse processo, a proteção da moral e da honra das famílias, bem como o combate à licenciosidade e à imoralidade da prática do meretrício começaram a se tornar importantes justificativas para as intervenções policiais, vistas como profilaxia da imoralidade que estaria causando “graves prejuízos” às famílias.120 Assim, reafirmo, a instituição de uma polícia de costumes e a posterior criação da Delegacia de Costumes fizeram parte do processo de modernização da polícia, que ocorria naquele momento. A atividade dessa delegacia, que nasceu com obrigações variadas, deveria ser exercida no sentido de ser mantido o decoro e a decência pública; na severa vigilância contra o comércio clandestino de tóxicos; na repressão à vadiagem, à embriaguez, à turbulência, à mendicância e aos jogos de azar; na fiscalização dos teatros, cinematógrafos e demais casas de diversões públicas e, finalmente, no exercício da polícia sanitária na parte criminal e delituosa.121 Essa repartição especializada surgiu com interesses diversos relativos aos problemas morais vivenciados na cidade, configurando-se, desse modo, como parte da luta pela legitimação judicial do poder de polícia para realizar ações de “influência educativas” na prática do meretrício.122 A instalação da Delegacia de Costumes foi também um marco de legitimação teórica desse projeto pedagógico para o meretrício. 123 Dessa forma, é significativo que o primeiro relatório do delegado de costumes a respeito da “polícia de costumes” tenha sido aberto da seguinte maneira: No intuito de produzir influência educativa, afastando velhos e arraigados preconceitos, foi organizado, nos moldes liberais do seu governo e sem exigências exageradas, o serviço de prevenção e repressão dos atentados à moral e aos bons costumes. 120 Relatório da SP, 1922, p. 62; Relatório da SSA, 1928, p. 229; Relatório do SI, 1936, p. 73. Relatório da SSA, 1928, p. 47. 122 Esse processo pode ser percebido nos relatórios produzidos durante a década de 1920. Relatório da SP, 1922, p. 57; Relatório da SSA, 1928, p. 229; Relatório da SSA, 1929, vol II, p.88. 123 Pela singularidade de sua constituição e organização, a Delegacia de Costumes é um importante elemento para compreender a relação que a polícia manteve com a prostituição na história de Belo Horizonte. Estou longe de afirmar que ela é a única chave explicativa dessa relação, porém ela ganha uma dimensão importante neste trabalho, pois há indícios de que tenha ocupado posição privilegiada no processo de institucionalização de uma política de pedagogização do meretrício, enquanto que, por outro lado, não encontrei indícios de funcionamento da polícia de costumes entre 1922 e 1927. 121 48 Como ponto de partida foram estabelecidas medidas, quanto à conduta das meretrizes, opondo-se-lhes barreiras aos seus desregramentos e aos escândalos que provocam na via pública.124 Esse excerto é um dos fortes indícios de elaboração de um projeto educativo pelas autoridades policiais. É importante ressaltar que esse “projeto” correspondeu, em grande medida, a diferentes tentativas de definição de limites e fronteiras e de delimitação de espaços da cidade para a realização da prática do meretrício. Essas propostas tinham como objetivo a modificação do “modo de vida” das meretrizes, o que corresponderia a educá-las de acordo com princípios morais tomados, nesses discursos, como fundamentais para a vida na cidade. Assim, compreendo “projeto” não numa acepção fechada, ou como algo que estaria consolidado e definido de antemão, mas como um conjunto de propostas que sofreram reformulações ao longo da década de 1920 e que se constituíram de “deslocamentos operados no interior do ideário liberal clássico, assemelhando-se a uma atualização”125 polifônica da utopia política do liberalismo. A Delegacia de Costumes ajudou a compor essa polifonia, tornando-se enunciadora de prescrições para o comportamento das meretrizes no espaço urbano. A pedagogização da prática do meretrício pode ser vista, assim, como um processo de elaboração de um “controle social”. Não utilizo esse conceito associando-o e subordinando-o à noção de ideologia. Para além de uma “maquinação ideológica” de um pequeno grupo de elite, entendo o “controle social” como uma preocupação de diferentes grupos políticos e sociais de uma dada sociedade a respeito do futuro de sua população. O controle seria, assim, um processo resultante de disputas entre projetos para o governo dos povos.126 Isso se daria no âmbito das relações de força, num exercício de poder vivenciado cotidianamente em diferentes níveis por diferentes grupos. Em outras palavras, É no corpo que se coloca em funcionamento a racionalidade do trabalho e do tempo, introduzem-se noções de ordem e método, dá-se uso aos sentidos para a formação individual e ganham vida, literalmente, os conhecimentos científicos que a definem ou o controle populacional que se planeja por meio da estatística e da demografia, para mencionar alguns dos mais ocorridos.127 Se houve, de alguma forma, uma sensibilidade formativa na ação policial, ela baseou-se, teoricamente falando, nas expectativas que a instituição, o delegado de costumes e os policiais 124 Relatório da SSA, 1928, p. 48, grifos meus. MONARCHA, 1989, p. 28. 126 FOUCAULT, 1994, p. 754-760. 127 GÓMEZ, 2002, p. 91, grifos meus. 125 49 responsáveis pelo policiamento depositavam nas relações sociais e nos projetos de sociedade que desejavam defender e construir. Dessa forma, o problema da prostituição foi elaborado em relação aos problemas urbanos que se enfrentavam naquele momento, como venho insistindo ao longo deste capítulo. A “prevenção” e a “repressão” seriam os mecanismos básicos que ordenariam o projeto pedagógico para o comportamento moral e corporal das meretrizes no espaço urbano. Um dos primeiros procedimentos prescritivos a ser tomado pela Delegacia de Costumes foi a elaboração de um conjunto de normas que procuravam reeducar o comportamento das meretrizes. Para salvaguarda da moral e respeito públicos na chamada zona do meretrício da Capital, o qual se acha localizado nas proximidades da Estação Central e, por isso, exposto às vistas de viajantes e de famílias que, em demanda da cidade, hajam de atravessar a Avenida do Comércio que fica a cavaleiro [sic] da referida zona, resolveu esta delegacia: a) proibir que meretrizes em trajes menores permaneçam nos portões, janelas e alpendres e assim transitem pela rua; b) proibir algazarras e vozeiro nas pensões de mulheres a bem da tranquilidade pública; c) coibir o abuso de meretrizes se postarem nas janelas, nos portões e nos alpendres com o intuito de forçar transeuntes a entrar nas respectivas pensões ou casas, segurando-os, tomando-lhes os chapéus e usando de outros meios escandalosos postos em prática no seu comércio imoral; d) proibir a prática de tais atos no meio das ruas e avenidas, não podendo as meretrizes, para tais fins, parar na via pública com homens; e) reprimir, em suma, a prática de licenciosidades quer por atos, quer por palavras, na via pública. Pelo exposto, fica ressalvado às meretrizes, o direito de ir e vir desde que, no uso deste direito, não pratiquem algum dos atos mencionados nas letras 128 supra. Esse tipo de produção normativa nos leva à temática dos comportamentos no nível corporal. O projeto de educação moral da Delegacia de Costumes procurava atingir profundamente os movimentos, as posturas e os gestos das meretrizes. Pretendia-se agir sobre seus corpos para que se realizasse uma transformação da prática do meretrício na cidade. Transformação, também, de sua organização no espaço público, de sua maneira de existir e se relacionar com o espaço urbano, reformulando, a partir de pressupostos morais, os costumes e as formas de agir daquelas mulheres. Vejo nessas prescrições os conflitos causados, pela experiência da modernidade, nos corpos de diferentes sujeitos. O lançamento dessa portaria prescritiva é um indício dos “choques” sentidos pelas famílias no contato sensorial – mais 128 Relatório da SSA, 1929, vol. II, p. 89, grifos meus. 50 especificamente no contato visual – com as meretrizes no espaço público.129 Além de “defender as famílias”, essa portaria também diz respeito a seus desejos, já que, como discutirei adiante, havia uma demanda de setores da população para que a polícia realizasse medidas contra os “abusos das meretrizes”. Mas a percepção sensível do corpo da mulher no espaço urbano é um dos indícios dos conflitos e embates de diferentes projetos de vida e de ocupação do espaço urbano na capital mineira. É o indício de um desejo de “incorporação” de valores da modernidade.130 No que toca às prescrições e às formulações da prostituição como um problema, a portaria acima citada também é um significativo testemunho do desejo de reordenar o meretrício, a partir de uma lógica de transformação de suas práticas, funcionando como estratégia pedagógica. O que estava em jogo eram os pressupostos de formação de sujeitos para a modernidade com a qual se sonhava. Estamos certos de que se existiam corpos que precisavam, definitivamente, para o projeto de modernidade, ser educados, a verdade é que todos os cidadãos, singularmente, a despeito dos grupos sociais de pertencimento, eram atingidos por uma nova sensibilidade de ser e estar no mundo urbano. Havia, portanto, uma circularidade de ideias e maneiras de 131 comportar-se nesse espaço em construção. Essa nova sensibilidade urbana foi um importante elemento para a construção das subjetividades naquele momento. E tendo a crer que tal processo implicava a introdução de novos comportamentos para os envolvidos com o meretrício, além de novas formas de organização dessa prática. Seguindo essa linha de raciocínio, ressalto que a Delegacia de Costumes foi criada a partir de uma inflexão no campo da moral, vivenciada por diferentes grupos sociais na experiência urbana da capital mineira, marcada pela tensão entre a manutenção de tradições e os novos códigos de moralidade que se desenvolviam. Tal circunstância sugere uma dinâmica própria do campo da moral, em que se estabelecem relações tensas, de aproximações e afastamentos, entre os valores antigos e novos. Essa inflexão seria, também, um sinal da reorganização dos modos de diferenciação dos comportamentos corporais, vivenciados no momento de constituição de espaços públicos, e que contribuiu, também, para um rearranjo da dinâmica das trocas simbólicas referentes à 129 A ideia de “choque” na modernidade é inspirada na leitura que Vaz (2001) realizou da obra de Walter Benjamin. 130 A ideia de incorporação dos valores é discutida em BOURDIEU, 1997; GÓMEZ, 2002; e MORENO e SEGANTINI, 2010. No próximo capítulo, tratarei mais diretamente dessa questão. 131 MORENO e SEGANTINI, 2007, p. 84. 51 moral pública.132 Entretanto, os projetos de educação moral que circulavam na cidade não obtiveram sucessos imediatos ou ficaram a salvo de conflitos. As medidas tomadas pela polícia e pela Delegacia de Costumes a partir de suas propostas de teorização e problematização do meretrício passaram por negociações que envolveram diferentes participantes desse processo. Donas de pensão, chefes de família, delegados, procuradores, juízes e redatores de jornais tiveram de elaborar argumentos para a defesa de seus interesses a respeito dessa prática no seio da coletividade. 2.5 poder de polícia e luta pela localização do meretrício Discuto, nesta seção, os argumentos mobilizados para justificar a necessidade de intervenção policial na prática do meretrício e as diferentes medidas propostas para efetuar essa interferência. Uma delas constitui-se na elaboração do registro do meretrício, tema que será abordado no último capítulo. Outra, de interesse imediato, diz respeito às lutas pelo poder da polícia localizar o meretrício e intervir no seu funcionamento. Destaco, assim, duas formas de expressão dessas lutas, uma que se apoiava em argumentos legais e outra caracterizada pelas relações que a polícia manteve com as demandas sociais. Gil Augusto da Silva, responsável pela "polícia de costumes" no ano de 1921, afirmou ter “circunscrito” o meretrício “em um único bairro isento de trânsito forçado para os demais e convenientemente afastado do centro urbano”.133 Não foi possível reconhecer a localidade a que se refere o delegado, mas observo em seu relato a tendência da polícia, no período analisado, de propor localizações para o meretrício, afastadas do centro urbano.134 Mesmo não sendo possível identificar a região “convenientemente” afastada do “centro urbano”, nem afirmar se essa medida foi realmente concretizada, é importante procurar compreender o significado da expressão “centro urbano”, utilizada pelo delegado Gil. A cidade, naquele momento, era dividida legal e administrativamente em seções urbanas e suburbanas, as primeiras localizadas na região interna da Avenida do Contorno, cujo projeto circundava a “área urbana”, e as últimas ao redor dessa Avenida. 135 Entretanto, essa divisão não era tão fixa, uma vez que boa parte das seções urbanas e suburbanas não possuíam sequer loteamentos na década de 1920 e a Avenida do Contorno não havia sido 132 A ideia de “rearranjo” é desenvolvida por Bourdieu (1997), quando discute a noção de habitus. No segundo capítulo, retornarei a esse tema. 133 Relatório da SP, 1922, p. 57. 134 Relatório da SP, 1922, p. 57; Relatório da SSA, 1928, p.229; Idem, 1929, v. II, p. 88. 135 GUIMARÃES, 1991; AGUIAR, 2006. 52 completamente construída. No entanto, foi justamente nessa década que se intensificou um processo de ocupação da cidade e configurou-se um intenso movimento de luta pela ocupação de seus espaços.136 Uma das evidências dessa luta pode ser observada no processo de desocupação da população operária de uma região do “centro urbano” para um dos subúrbios próximos da região, a recém-criada Vila Concórdia, nas imediações da Lagoinha, em 1928.137. Nesse mesmo ano, o delegado Edgard Franzen de Lima propôs a localização do meretrício na Rua Diamantina, que ficava nas proximidades daquela nova vila operária.138 A proposta de Edgard, de concentrar a prostituição nessa mesma região, talvez não seja mera coincidência, mas, sim, uma tendência em compreender operários e meretrizes como sujeitos moral, social e culturalmente diferentes dos habitantes do “centro urbano”, que se pretendia composto por “famílias e pessoas de bem”. No Relatório da Secretaria da Segurança referente a 1927, encontra-se a seguinte narrativa: LOCALIZAÇÃO DO MERETRÍCIO Tornando-se evidentemente, insuficiente a zona destinada ao meretrício da Capital (avenida Oiapoque, rua Guaicurus e as transversais São Paulo e Rio de Janeiro) até a avenida do Comércio exclusive passaram essas infelizes a se estabelecer, disseminadamente pelos bairros familiares, com graves prejuízos para o decoro das famílias, que constantemente reclamam providencias desta delegacia. Parece-me poder-me resolver essa dificuldade, localizando essas meretrizes na rua Diamantina e transversais, onde já existem diversos alcouces, pelo fato de se tratar de ruas distantes e mais ou menos isoladas dos grandes 139 centros familiares. De maneira diferente do delegado Gil da Silva, que lançou mão da noção de “centro urbano”, Franzen Lima fez uma associação direta entre a área mais “urbanizada” da cidade e as famílias que ocupavam aquele espaço, forjando a expressão “centros familiares”, como sinônimo de “centro urbano”, evidenciando, também, as relações travadas entre as “famílias” e a instituição policial. O vínculo que ele construiu entre centro urbano e centro familiar pode ser uma expressão do seu desejo de organização da ordem urbana a partir de sua divisão por setores sociais. A própria nomeação da área em que o meretrício era exercido como “zona destinada ao meretrício”, é um indicativo dessa vontade. Assim, o delegado reconhecia como 136 AGUIAR, 2006. GUIMARÃES, 1991, p. 156. 138 Relatório da SSA, 1928, p. 229. 139 Relatório da SSA, 1928, p. 229, grifos meus. 137 53 uma de suas funções a intervenção e a organização de espaços da cidade específicos para aquela prática.140 Essa pode ser uma das explicações para o desejo de afastar a prática do meretrício do “centro urbano”, que persistiu ao longo da década de 1920. Os delegados Gil e Franzen produziram uma “nomeação” e uma “classificação” dos espaços da cidade, tendo em vista uma “diferenciação social” dos usos e ocupações desses espaços.141 Dessa maneira, o “centro urbano” teria sido entendido pelas autoridades policiais como signo da moralidade, da civilidade e símbolo da esperança de modernização da capital e do Estado de Minas, tão cara à história e historiografia da capital mineira.142 E as medidas tomadas pela Delegacia de Costumes configuravam-se como um “controle social”, que buscava definir fronteiras e espaços específicos da cidade para a prática do meretrício.143 As providências adotadas pelo delegado, em perfeito consórcio com a lei, modificaram o modo de vida de tão infeliz classe, sem, contudo, atacar a liberdade individual, tanto que foram executadas sem a menor resistência coletiva, ou reclamações fundamentadas. Com as salutares medidas tomadas, as mulheres públicas foram forçadas a ocultar os seus deboches e felizmente não se vêm mais nas ruas, esquinas e lugares sombrios os desregrados escândalos dos idílios vergonhosos que tanto melindravam as famílias da Capital.144 Dessa forma, o objetivo de modificar o “modo de vida” das meretrizes fazia parte de uma relação de poder mais ampla, que procurava controlar e transformar o modus vivendi de determinados setores da população. Seria possível admitir, então, que o caráter de repressão da polícia manteve uma estreita relação com o projeto de educação moral da população e, por outro lado, que o projeto pedagógico policial desenvolveu-se, em parte, em razão de uma pressão exercida por diferentes grupos sociais para que os comportamentos tidos como imorais fossem reprimidos. Os argumentos apresentados até agora me levam a concluir que essas autoridades procuraram forjar uma relação entre a formação moral dos sujeitos e as 140 É interessante notar que a elaboração dessa “função” de localizar o meretrício pela polícia ocorre em outras cidades, como São Paulo e Londrina. RAGO, 1991; LEME, 2005. 141 BOURDIEU, 1982, p. 135-148. 142 Sobre o centro urbano, seus espaços de sociabilidades e a relação com a modernidade, ver SILVEIRA, 1996. 143 Como já argumentei, esse “controle social” diz respeito às formas de relação que os grupos sociais mantiveram consigo mesmos para a produção, proteção e perpetuação da sociedade, no sentido de repressão, evidentemente, mas também no sentido de tentativa de controlar e estimular o próprio desenvolvimento da sociedade. As interdições e prescrições às meretrizes fazem parte desta “defesa” da sociedade. Essa leitura é baseada em FOUCAULT, 1994; GOMÉZ, 2002. 144 Relatório da SSA, 1928, p. 48-49, grifos meus. 54 medidas de repressão e prevenção a atentados ao pudor e à moral.145 Ao construir para si a imagem de uma instituição defensora da moral e da família, a polícia de costumes posicionouse à frente de uma política de defesa e generalização de determinados comportamentos, reconhecidos como moralmente e socialmente aceitáveis, desejáveis e imprescindíveis para uma sociedade que se queria “moderna”.146 Essa afirmativa pode ser mais bem fundamentada com os relatos de demandas sociais e jurídicas por uma intervenção policial na prática da prostituição, publicadas nos jornais do período. No dia 24 de janeiro de 1923, por exemplo, o “Diário de Minas” divulgou uma nota a respeito do funcionamento de “cabarés” na cidade de Belo Horizonte, atualizando um debate existente nos jornais, segundo Luciana Andrade, a respeito de “abusos”, “imoralidades”, “ultrajes” e “alterações” da “ordem moral pública”. Para a autora, esse debate teve lugar em diferentes jornais durante as três primeiras décadas da cidade, chegando a provocar algumas ações dos delegados e chefes de polícia. 147 Assim dizia a nota: O funcionamento de “cabarés” O tribunal da Relação julgou ontem, em grau de recurso, o habeas corpus concedido há pouco pelo Sr. Juiz de direito da 1ª vara da capital, a Rosalina Maciel, a propósito da manutenção de um “cabaré” nesta cidade, à avenida do Comércio. O Colendo Tribunal, dando provimento ao recurso, mandou cassar a ordem expedida, “por não haver direito líquido e incontestável à abertura de um “cabaré”, com prejuízo do sossego público e moralidade das famílias. A polícia tem incontestável direito à localização de estabelecimentos daquela natureza, de maneira a não serem lesados os altos interesses 148 sociais”. Essa notícia, ao evidenciar as relações travadas no interior do processo aberto por Rosalina, nos informa sobre um dos resultados da luta pelo poder de polícia em localizar o meretrício. A nota evidencia uma das vitórias da polícia nessa luta, mas nos dá indícios também de nuances vivenciadas naquele momento. Para que as autoridades policiais conquistassem uma legitimação de seu poder, foi preciso recorrer a argumentos jurídicos, num jogo de redefinição das esferas judicial e policial. Aliás, foi preciso recorrer ao Tribunal da Relação para legitimar esse poder, o que revela uma diferenciação entre duas visões e 145 Relatório da SSA, 1927, p. 26-27; Relatório da SSA, 1928, p. 47-48. Sobre esse desejo de modernidade, ver PIMENTEL, 1993; ANDRADE, 2004. 147 ANDRADE, 1987, p. 35. 148 DIÁRIO DE MINAS, 24/01/1923, p. 2, aspas do original, grifos meus. 146 55 posições judiciais a respeito das funções policiais e de sua interferência em comportamentos e práticas da população.149 O juiz de direito que concedeu o habeas corpus a Rosalina assumiu a posição de garantir o direito de funcionamento de casas de diversão. Mesmo que não se conheçam os fundamentos de sua decisão, é importante observar que sua posição é um indício de que nem sempre os representantes da justiça falavam no mesmo tom, nem entre si, nem com o poder policial. O que me permite evidenciar, mais uma vez, as polissemias do projeto pedagógico. No acórdão do Tribunal da Relação a respeito da ação movida por Rosalina Maciel, publicado no Diário de Minas, o relator Cancio Prazeres argumentou: Ora, a ninguém assiste o direito certo, líquido e incontestável, que se deva e possa garantir por habeas corpus, de abrir à frequência pública, em qualquer ponto da cidade, sem respeito ao sossego público, com dano à paz e à moralidade das famílias vizinhas, um cabaré, “casa de ruído ensurdecedor e cenas de licenciosidades”, como informou o sr. dr. Chefe de Polícia (fls. 53), “ante câmara de prostíbulos”, como se declara no despacho recorrido (fls. 50v). [...] Ora, se a polícia, com o encargo de velar pela paz, pelo sossego e pela moralidade das famílias, tem a faculdade de conceder licença para a abertura de tais casas, como bem o reconhece a recorrida, que solicitou aquela licença, pode fazê-lo mediante condições e cláusulas especais, entre essas a de localizar tais pontos de reuniões barulhentas e 150 licenciosas fora das vistas e das ouças das famílias. O relato, por sua vez, procurou forjar uma relação direta entre imoralidade, licenciosidade e o funcionamento de casas de diversões e de cabarés. Fica clara, também, a posição do desembargador em relação à legitimidade da localização do meretrício pela polícia, dotando-a de um “incontestável direito” de localizar as casas de diversões públicas “de maneira a se resguardarem e não serem lesados os altos interesses da sociedade”.151 O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, após alguns anos, e, em 1929, teve seu fim em termos judiciais, tendo como relator Viveiros de Castro. Considerando que, se é indiscutível o direito da Polícia de proibir espetáculos e outros divertimentos públicos que forem contrários a moral ou perturbarem a ordem pública, não é menos indiscutível que esse direito não pode ser exercido arbitrariamente, devendo ser sempre 149 Alguns trabalhos cuja fonte principal foram processos judiciais nos deixam entender um pouco da dinâmica da justiça mineira. A princípio, os casos eram julgados por juízes de Direito das Comarcas, podendo haver apelação para o Tribunal da Relação, caso existisse discordância de uma das partes. SILVA, 2010. 150 DIÁRIO DE MINAS, 31/01/1923, p. 2, grifos meus. 151 DIÁRIO DE MINAS, 31/01/1923, p. 2. 56 fundamentado o ato da proibição, ou a recusa de licença para o funcionamento; (...) Considerando que no caso dos autos, a Polícia já se havia manifestado sobre a conveniência do local escolhido para o funcionamento do cabaré, porquanto, no mesmo prédio, para esse fim adaptado, funcionou um cabaré denominado ”Radium”, sem provocar reclamações da vizinhança, e que fechou unicamente porque a firma comercial, sua proprietária, se liquidou, devido ao falecimento de uma das sócias e, na mesma rua, no quarteirão imediato, funciona um outro cabaré denominado “Odeon”, desde 6 de fevereiro do ano passado, sendo de presumir que a moral pública não tivesse sido ofendida, nem a ordem pública perturbada porque a autoridade policial não impediu esse funcionamento; (...) Acordam conhecer a ordem de “habeas corpus” impetrada, e assegurar o direito da paciente de explorar a indústria de cabaré no mesmo prédio da Avenida do Comércio, em que funcionou o “Radium Cabaré”, observadas as disposições dos regulamentos municipais e garantindo o direito da Polícia de fiscalizar as representações, e reprimir os abusos contrários à 152 moral ou à ordem pública. Esse debate judicial interessa na medida em que evidencia, num curto espaço de tempo, diferentes decisões tomadas nas instâncias pelas quais um pedido de licença de funcionamento de casas de diversões, seguido de um habeas corpus, podia chegar naquela década. Mas, mais do que isso, entendo, corroborando a análise de Luciana Andrade,153 que as publicações dos jornais a respeito do tema fazem parte de um antigo debate social e político sobre a permanência do meretrício em determinadas avenidas e ruas ocupadas por “casas de famílias” em Belo Horizonte. Com isso, posso afirmar que se desenvolveu uma demanda social e política a respeito da definição do campo de atuação da polícia. O que é evidenciado tanto por constantes reclamações pelo policiamento dos costumes, promovidas pela população e pelas autoridades policiais e administrativas, como pela disputa judicial pela legitimidade do exercício desse poder.154 Assim, além de classificar e nomear os espaços sociais, as autoridades policiais procuraram solucionar os problemas que elas, juntamente com grupos das classes médias locais, elaboraram em relação ao meretrício, como destacado no excerto a seguir. Diversos moradores da avenida do Comércio pedem-nos chamemos a atenção do sr. dr. Chefe de Polícia para a inconveniência da localização de cabarés naquela via pública. Alegam, e com razão, ser aquela rua exclusivamente habitada por famílias e, portanto, inapropriada para casas de diversões desse gênero, frequentadas por gente de toda a espécie. 152 REVISTA FORENSE, 1931. p. 54-55, grifos meus. ANDRADE, 1987. 154 SILVA, 2009. 153 57 A vizinhança desses cabarés torna insuportável a vida das famílias ali residentes, (...) pelo vexame a que as expõe (...) pelo trânsito constante de decaídas e de indivíduos de moral duvidosa (...). Os queixosos, todos respeitáveis chefes de família, não levam a sua intolerância no ponto de querer a extinção de tais cabarés: o que pedem, (...) é apenas a remoção desses centros equívocos de diversões para uma zona mais afastada, fora de contato com famílias, para a avenida Oyapoque por exemplo. Funcionam até dois cabarés, um dos quais, o “Radium”, fechado há algum tempo, consta-nos que vai reabrir agora, no mesmo local. É isso que cumpre evitar e estamos certos que o ilustre sr. dr. Alfredo de Sá, tomando na devida consideração o apelo dos moradores da av. do Comércio, não deixará de providenciar no sentido de remover esses estabelecimentos para outro ponto. 155 Não foi por acaso que essa nota, publicada poucos meses antes da decisão do Tribunal da Relação em 1922, citou o cabaré Radium. Ela anuncia a circulação de rumores a respeito de sua abertura e a insatisfação e ansiedade causadas por essa notícia. Tomo emprestada de Arlette Farge a noção de “rumor”, entendida como a difusão de um “fato extraordinário”, mas também como uma espécie de “ruído da cidade”, ouvido e entoado nos pontos de encontros do espaço urbano, onde as notícias circulam, como, por exemplo, nos cafés e cabarés.156 Não encontrei notícia alguma no Diário de Minas, anterior à publicação do excerto acima, a respeito da reabertura do Radium, o que não quer dizer que a notícia não tenha sido veiculada em algum outro impresso. Mas, a despeito disso, é importante observar que as pessoas tomavam os “rumores” como acontecimentos que diziam respeito aos problemas da sociedade e os debatiam, os discutiam, chegando a propor ou solicitar providências. Chamo a atenção, dessa maneira, para a importância do jornal na difusão e consolidação de demandas sociais às autoridades policiais e políticas daquele momento. Além disso, eles faziam circular notícias a respeito de fatos percebidos como problemas por alguns grupos sociais, o que me leva, por um lado, a reafirmar, em parte, as hipóteses apresentadas em trabalhos recentes sobre a história de Belo Horizonte a respeito de uma intensa preocupação policial, nas primeiras décadas da República, com os setores da população cujas ações geravam “medo” e desconforto, como os vadios, os alcóolatras e as meretrizes. 157 E, por outro lado, me permite repensar a ênfase dada ao poder público e policial na formulação de prescrições para o comportamento das meretrizes, reorientando o foco desse processo para 155 DIÁRIO DE MINAS, “Com vista ao dr. Chefe de Polícia”, 12/11/1922, p. 3, grifos meus. Sobre a noção de “rumor”, ver a entrevista com Arlette Farge (2007, p. 254-257). Sobre cafés, sociabilidades e difusão de notícias, ver SILVEIRA, 1996, p. 129-155. 157 VILHENA, 2008; SILVA, 2009. 156 58 uma relação mais complexa, mantida entre demandas de diferentes grupos sociais e autoridades políticas e policiais. É preciso rever, assim, as observações a respeito das prescrições da polícia para a população em geral e, no caso específico, para as meretrizes, pois tais argumentos acabam criando a ideia de que a polícia foi resultado, exclusivamente, da aplicação de um projeto burguês para manter-se numa posição política e cultural dominante. 158 Apesar da falta de acesso a dados seriados produzidos pela própria polícia, o cruzamento de diferentes fontes, como relatórios policiais e periódicos, me levou a compreender a polícia como “uma construção resultante de respostas dadas às necessidades reais e imediatas, transformadas em saber institucional”.159 Em outras palavras, uma leitura a contrapelo me permitiu observar, num processo em que se julgava haver mera imposição estatal, a constituição de relações sociais que formaram e informaram a instituição policial. Para Walter Benjamin, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”.160 Tomar essa proposta de leitura da modernidade para analisar as prescrições policiais faz-se produtiva, na medida em que possibilita inserir no processo de produção dessas prescrições algumas demandas sociais, silenciadas pelas análises que comumente associam as classes médias a um maniqueísmo político de dominação cultural. A defesa da moralidade é um aspecto cultural de difícil análise, uma vez que pode ser facilmente manipulada. Contudo, se havia “corpos a serem espezinhados”,161 como os das meretrizes, isso se dava na tensão entre as relações sociais e as prescrições administrativas. Tal perspectiva sugere que a dominação é mais complexa do que um simples movimento de imposição por parte de uma classe, mas um constante rearranjo das organizações sociais. Assim, faz-se necessário rever a centralidade das autoridades policiais na formulação das prescrições, uma vez que essas decisões dependeriam das políticas administrativas dos governos, das relações políticas entre o Executivo e o Legislativo, entre a administração policial e as autoridades judiciais, além das relações entre a instituição policial e as demandas sociais. É claro que não se nega o caráter prescritivo e repressivo da polícia, nem se procura 158 Como no caso de trabalhos de ANDRADE, 1987, e JULIÃO, 1992. BRETAS, 1997b, p. 34. 160 BENJAMIN, 1994, p. 225. 161 BENJAMIN, 1994, p. 225. 159 59 inverter a relação, afirmando que as prescrições morais elaboradas pela polícia têm origem nas demandas sociais. O que se pretende é problematizar nossa capacidade de compreender a instituição policial, repensando a própria dinâmica de produção e circulação de prescrições e frisando que elas se construíram de maneira relacional. Sob essa perspectiva, a polícia de costumes e seus desdobramentos administrativos ganham outro contorno. Formulada não simplesmente em função de interesses estatais, ela constituiu-se, assim, como uma tentativa de “controle social”, cuja necessidade foi forjada numa dinâmica urbana e coletiva, para que se disseminassem códigos morais e de comportamentos. Ou seja, a despeito da tendência de instalação de delegacias de costumes em outros Estados brasileiros, diferentes grupos sociais em Belo Horizonte, desde o início da década de 1920, forjaram, junto com a instituição policial, a necessidade de criação de um conjunto de regras e de mecanismos de vigilância e controle dos comportamentos considerados abusivos ou excessivos nos espaços públicos e coletivos. Dessa maneira, esse “controle social” constituiu-se como uma ação coletiva que poderia decidir e deliberar sobre as regras dessa própria coletividade, construindo projetos pedagógicos para o convívio coletivo.162 É plausível afirmar que os desdobramentos e as decisões posteriores à criação e manutenção da “polícia” ou Delegacia de Costumes tenham se dado com pouca participação dos grupos sociais ansiosos por sua criação, mas o importante a frisar é que o interesse e a necessidade de criação de algum tipo de intervenção da polícia na prática do meretrício foram construídos coletivamente. Vejamos, então, mais um caso sobre autorização de funcionamento de cabarés e casas de diversões na cidade. No início da década de 1920, há indícios da relação entre produção de prescrições e seus desdobramentos. Edgard Franzen de Lima, ainda delegado da comarca da capital, baixou, no dia 21 de fevereiro de 1921, a seguinte portaria: Pela presente portaria ficam de hoje para diante, cassadas todas as licenças para o funcionamento dos chamados “cabarés” ou diversões públicas ou acessíveis ao público, com caráter permanente, nas denominadas “Pensões Chics” desta capital. E assim resolvo por me parecer abusivo e aberrante de dispositivos legais vigentes o funcionamento das referidas diversões, pelo que mando que, registrada esta no livro próprio se dê da mesma conhecimento imediato 162 Perguntado sobre os responsáveis por coordenar as ações das “políticas do corpo”, Foucault (1994, p. 759) respondeu tratar-se de um “jogo extremamente complexo” e, ao mesmo tempo “sutil” de distribuição, mecanismos e controle recíprocos. O “controle social”, nesse sentido, é produto das relações de poder que produz efeitos tanto negativos como positivos. 60 às pensões que porventura tenham ainda ou gozem presentemente das 163 licenças ora cassadas. Esse relato é um traço da estratégia de localização do meretrício, que também se deu pela tentativa de proibição de funcionamento de determinadas casas noturnas onde, supostamente, incitava-se a prática do meretrício. Mas, por outro lado, revela a concretude de um desejo de setores da população e da polícia em conter a imoralidade e o exagero do barulho das casas de diversões. Os jornais foram grandes parceiros da polícia nesse sentido, publicando notícias sobre “algazarras” e “barulhos” madrugada afora. Não se sabe, ao certo, se o interesse em publicar determinadas reclamações e demandas vieram da própria redação ou de diálogos com moradores da cidade. De todo modo, o “Diário de Minas”, um dos jornais de grande circulação no período e o órgão oficial do Partido Republicano, configurou-se como importante espaço de informação e formação dos gostos, interesses, opiniões e desejos de seus leitores, em anúncios dos acontecimentos cotidianos. Um pequeno exemplo disso encontra-se nessa notícia, publicada poucos dias depois da portaria lançada por Edgard ter cassado a licença de funcionamento dos cabarés: A supressão dos cabarés Algumas casas alegres da rua Guaicurus, segundo já soube a polícia, estão desobedecendo a portaria que extinguiu os chamados “cabarés” pelas mesmas mantidos. 164 Mas a autoridade vai agir com toda a energia. A recorrência da publicação de discursos que procuravam organizar, conter e definir espacialmente a prática do meretrício na cidade é um indício interessante da tentativa de legitimar determinadas ocupações espaciais da cidade. Essas propostas e suas defesas me permitem supor que a localização do meretrício e a autorização de funcionamento de casas de diversões também tinham uma relação com a luta pela ocupação do espaço urbano. Essa luta foi travada por mulheres e homens que viviam no e do meretrício, mas também pelas chamadas “famílias” que habitavam a cidade e pelo contingente policial. A construção de fronteiras no espaço urbano é o traço material de um exercício de autoridade, de legitimação das “divisões do mundo social”, capazes de produzir ou desfazer grupos.165 A tentativa de afastar a prática do meretrício do “centro urbano” corresponderia, assim, a uma tentativa de interferir nas sociabilidades dos diferentes sujeitos que viviam nos 163 DIÁRIO DE MINAS, “Guerra aos cabarés”, 23/02/1921, p. 2, grifos meus. DIÁRIO DE MINAS, “Pela Polícia – A supressão dos cabarés”, 03/03/1921, p. 2-3, grifos meus. 165 BOURDIEU, 1982, p. 135-148. 164 61 espaços em que aquela prática era exercida. Mas a ação policial teve de enfrentar as tensões provocadas pelo entendimento dessas propostas por parte das meretrizes e donas de pensões que, a despeito das prescrições policiais, defenderam sua maneira de governar seus corpos na vida cotidiana.166 Isso evidencia uma das nuanças da construção dos espaços, que, além de se constituírem por meio de lutas sociais, “nascem da adoção de posturas, desde corporais até políticas e estéticas” e que, enfim, “são posturas, são posições que se imobilizam por dado tempo, mas que se desfazem num outro momento de cambaleio e de vacilação das forças que [as] sustentaram”.167 É possível perceber, assim, uma preocupação com as posturas e comportamentos ideais a serem observados no espaço público, que era classificado de acordo com as formas de ocupação, as movimentações comerciais, o caráter residencial e os modos de circulação e utilização das pessoas. Incumbindo a esta Delegacia o policiamento noturno da Capital, sob sua imediata fiscalização se realizam as diversões que se prolongam ou se iniciam depois das 10 horas da noite. Essas diversões compreendem os bailes públicos, especialmente os tradicionais bailes que se realizam nas chamadas “Pensões Chics” ou casas de tolerância da Capital. Tal gosto de diversão tinha lugar, em regra, no tríduo carnavalesco e, esporadicamente, num ou noutro dia feriado. Foi-se generalizando, porém e esse uso transformou-se em verdadeiro abuso, solicitando os interessados licença para a sua realização todos os sábados, até que três “Pensões Chics” da Capital, sob a denominação de “CABARÉ”, conseguiram realizar bailes diários, com grave prejuízo para a ordem pública e contravindo contra posturas municipais, na parte referente a vendas de bebidas, cigarros, charutos, etc. fora da hora regulamentar e legal.168 Essa argumentação do delegado Franzen de Lima é um indício da adoção de uma postura por parte de habitantes da capital, que procuravam, em meio à poeira das obras da cidade e ao trabalho em diferentes setores, construir espaços de diversão e lazer, de prazer e catarse. É interessante notar que naquele mesmo período várias reclamações sobre a falta de atividades culturais e da monotonia que impregnava a cidade foram publicadas no “Diário de Minas”.169 E não é preciso muita leitura desse material para entender que essas reclamações diziam respeito a um lugar social específico das classes médias, que almejavam entregar-se 166 NÓBREGA, 2008, p. 414. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005, p. 5. 168 Relatório da SP, 1922, p. 62, grifos meus. 169 DIÁRIO DE MINAS, 22/10/1920, p. 1; Idem, 28/11/1920, p. 1; Idem, 12/11/1922, p. 3. 167 62 aos “prazeres estéticos desinteressados, e não aos dos gozos de ordem natural”.170 Ora, é clara a distinção socioespacial presente nos discursos dos colaboradores do periódico. A coexistência de reclamações das atividades dos cabarés, casas de diversões e bares com protestos sobre a monotonia de Belo Horizonte é um curioso indício da naturalização do processo de divisão sócio cultural dos espaços da cidade. Tudo isso aponta para o não reconhecimento do “outro” como detentor de uma prática moral e cultural, o que sustentava a necessidade de promover uma educação moral para o meretrício. Após a cassação das licenças de bailes de “diversões públicas” pelo delegado Franzen de Lima, Olympia Vasques Garcia, dona de pensões e estabelecimentos de diversão na capital durante a década de 1920, questionou o entendimento, que a portaria tinha das “diversões públicas” e do funcionamento dos cabarés.171 Ela entrou com um pedido de licença para um estabelecimento que se instalaria em prédio próprio e se destinaria exclusivamente a diversões, “a exemplo de similares casas existentes nos centros civilizados”.172 Procurava, assim, desvencilhar-se das representações dadas às “pensões chiques” e da condição de “casa de tolerância na qual se facilite ou explore a prostituição”,173 mas, ao mesmo tempo, procurava dar outro sentido às diversões noturnas, lutando pelo reconhecimento do direito de sua existência. Esse pedido foi aprovado sob a justificativa, apresentada por Edgard, de que outros centros civilizados, como São Paulo, autorizavam bailes “do gênero a que se refere a peticionária”174. Ao se pronunciar dessa forma, o delegado evidenciava, mesmo que contra sua vontade, o desejo coletivo de inserção de Belo Horizonte na lógica e na vida cultural das cidades modernas e elaborava, também, uma espécie de argumento autorizado sobre o caráter lícito desses prazeres de cabaré. Como visto, o pedido de Olympia foi aprovado sem a intervenção da justiça, diferentemente do pedido de Rosalina Maciel, mencionado anteriormente. A diferença entre essas decisões possui, certamente, alguma conexão com a posição que cada um desses sujeitos ocupava nas relações de poder. Olympia é aclamada por ser bem relacionada entre políticos 170 DIÁRIO DE MINAS, 28/11/1920, p. 1. Relatório da SP, 1922, p.63. 172 Relatório da SP, 1922, p.62. 173 Código Penal, art. 278. 174 Relatório da SP, 1922, p. 63. Creio que a trajetória de Edgard Franzen de Lima e sua relação com o tema da prostituição merece um olhar atento. No momento, posso afirmar seu interesse pela vigilância e proteção dos costumes, pela vigilância do meretrício e que ele mantinha uma relação institucional com a polícia paulistana. Desde 1922, Edgard demonstrava certo respeito por essa instituição e também um conhecimento dos andamentos e resoluções daquela organização. Ver também, Relatório da SSA, 1928, p. 227. 171 63 mineiros importantes, enquanto o Radium, de Rosalina, é representado como espaço de baixo meretrício, frequentado por gente de toda estirpe.175 Talvez essa diferença explique a licença concedida pelo delegado da comarca ao cabaré de Olympia, em contraposição à luta judicial pela legitimidade de funcionamento do Radium. É possível que autoridades políticas e policiais estivessem dispostas a compartilhar o argumento da necessidade de diversões públicas na vida noturna da cidade, desvinculadas, pelo menos a princípio, da prática da prostituição. 2.6 uma velha configuração da polícia entre novos e velhos problemas Já na década de 1930, a cidade apresentava uma vida noturna mais dinâmica e há sinais de que a situação da polícia sofrera alterações importantes. A prostituição já não era percebida, nem apresentada, da forma como expus até agora. Os delegados não falavam com a mesma intensidade sobre o assunto e quase não há referências sobre o meretrício no material consultado. É possível que isso se deva a uma política mais bem estruturada em relação ao policiamento do meretrício, ou, por outro lado, talvez as políticas de policiamento e criminalização de determinadas práticas tenham se transformado naquele momento. De toda forma, no ano de 1936, a organização policial já não era considerada suficiente para o projeto de modernidade que vigorava nos meios políticos. O Serviço de Investigações, criado em 1927, necessita, também, de um reajustamento, para melhorar suas atividades, ampliando-se-lhe alguns departamentos e aumentando-se-lhe o número de serventuários. Nestes dez anos decorridos, o Estado evoluiu e Belo Horizonte, de incalculável progresso depois da revolução de outubro de 1930, já não possui a população diminuta daquela época e por isso mesmo necessita de um serviço policial ao nível de uma metrópole moderna.176 No novo cenário de transformações políticas do país, outras funções da polícia de costumes passaram a receber mais destaque. Desde o início do seu funcionamento, a Delegacia de Costumes dirigiu sua atenção e preocupação não só à prostituição, mas também às ações próprias de sua competência, que abarcavam uma variedade de assuntos da vida da cidade, como a censura de filmes, peças teatrais e musicais, as diligências contra a contravenção do jogo, as investigações e instauração de processos de investigação de crimes 175 Pedro Nava (1985, p. 319) indica que no cabaré Radium “havia menos requinte que na Olímpia” e que a casa “era uma espécie de oposição ao Palace”. O autor também comenta sobre as influências políticas de Olímpia, “temida pela valentia, pela impunidade e pelas misteriosas proteções de que dispunha” (p. 129). 176 Relatório do CSI, 1937, p. 3, grifos meus. 64 contra os costumes em geral. Essas funções receberam diferentes enfoques e investimentos por parte do delegado177 e guardam relação com as mudanças na política de policiamento que se verificou no decorrer dos anos. Em 1936, Rogério Machado, chefe do Serviço de Investigações, realizou uma abordagem superficial das atividades da Delegacia de Costumes e Jogos. É da alçada dessa Delegacia a fiscalização ao meretrício e policiamento dos “cabarés” e outras casas de diversões, a repressão aos que exploram o lenocínio, o uso e comércio de tóxicos, o exercício ilegal da medicina, bem como exercer ação contra cartomantes, curandeiros, “macumbeiros”, baixo espiritismo, etc., e reprimir jogos ilícitos. Compete-lhe, ainda investigar e processar os casos de defloramento, atentado ao pudor e corrupção de 178 menores. Machado prosseguiu em sua narrativa, enfatizando os dados e informações da delegacia a respeito de sua atuação diante dos espetáculos circenses, jogos permitidos, apresentações teatrais, realização de bailes, competições esportivas e sessões cinematográficas. 179 Já no relatório de 1936, referente ao ano de 1935, a Delegacia de Costumes teria como dever “coibir os abusos contra a moral pública, impedir o comércio de tóxicos, investigar os crimes contra a saúde pública, fiscalizar as casas de diversões e reprimir a vadiagem e a mendicância, bem como os jogos de azar”.180 A defesa da moralidade pública continuava sendo uma das principais justificativas da existência dessa delegacia, e o lenocínio ainda aparecia como um dos alvos de suas ações. Todavia, é significativo que o chefe do Serviço de Investigações não tenha citado o meretrício ao enumerar as especificidades da delegacia. É possível que a noção de “casa de diversões” tenha englobado a questão da prostituição, mas essa expressão era mais ampla e dizia respeito a casas de baile, teatros, circos, cinemas e até cabarés onde havia apresentações musicais e de dança e que, como já destaquei, não tinham, necessariamente, relação com prostituição. Mais adiante, naquele mesmo relatório, o chefe do serviço cita as palavras do novo delegado de costumes, Miguel Gentil Gomes Cândido, que substituiu Edgard Lima após sua morte, em 1934. 177 Ver O Estado de Minas, 30/05/1928, p. 2; 15/09/1928, p. 2; 06/10/1928, p.2; 19/10/1928, p. 6; 08/12/1928, p. 1; 06/02/1931, p. 2; 04/10/1931, p. 10. 178 Relatório do CSI, 1937, p. 21, grifos meus. A fiscalização das competições esportivas é uma novidade entre as funções da delegacia. 179 Relatório do CSI, 1937, p. 21-23. 180 Relatório do CSI, 1936, p. 71. 65 Meretrício – As meretrizes se mantiveram, também, contidas em virtude de providências desta Delegacia. Tais medidas, entretanto, sem que atingissem a um exagero desnecessário, visam, sobretudo, e com resultados satisfatórios, evitar práticas escandalosas ou imorais, tão comuns às prostitutas. Considerei, igualmente, procurando dar-lhes solução, várias reclamações trazidas ao meu conhecimento, em face da disseminação de meretrizes pelos bairros familiares da cidade, com evidente prejuízo da 181 moral pública e do bem estar das famílias. Esse relato possui um tom diferente daqueles encontrados na década anterior. Ainda que o desejo de evitar escândalos nas vias públicas tenha permanecido, a narrativa do novo delegado revela indícios de transformações da prática do meretrício na cidade e das relações da polícia com essa prática. É possível que essas transformações tenham conexões com a dinâmica de expansão urbana da década de 1930. Suponho, assim, que a disseminação da prostituição para além da área central, outrora denominado “centro familiar”, acompanhou o crescimento da malha urbana e as mudanças das formas de ocupação da cidade, num processo de diversificação da própria prática do meretrício. Numa reclamação de 1931, lê-se: PARA O DELEGADO DE COSTUMES TOMAR PROVIDÊNCIAS Veio ontem, à nossa redação o sr. Manoel de Azevedo que reside à rua Pouso Alegre. Contou-nos ele estar aquela rua absolutamente inabitável para as famílias, tal a quantidade de casas para encontros equívocos ali existentes. Dia a dia aparece naquela rua, das mais movimentadas do bairro da Floresta, mais uma mulher suspeita, que se instala nos porões das casas. Em vista desta situação anormal, o reclamante pede-nos 182 chamemos a atenção do delegado de Costumes para o caso. Essa reclamação sinaliza uma reorganização da geografia dos “prazeres ilícitos” na cidade, confirmando uma dinâmica diferente dessa prática na cidade em expansão. Não há indícios de que a prostituição tenha sido eliminada do “centro urbano” da capital pelo delegado Edgard Franzen de Lima, como discutirei no capítulo a seguir, mas é certo que a organização da prostituição não permaneceu inalterada ao longo dos anos. A década de 1930 assistiu a outras formas de ocupação do espaço público e a uma diversificação dos comportamentos nesses espaços. Além disso, a prostituição acompanhou esse movimento num processo de difusão para diferentes regiões da cidade, como a Barroca, a Lagoinha e a Floresta. 181 182 Relatório do CSI, 1936, p. 73. O Estado de Minas, 11/02/1931, “Na polícia e nas ruas,” p. 8, grifos meus. 66 Em 1942, o delegado de costumes, Miguel Gentil Gomes, afirmou que não havia muita coisa a dizer sobre a prática da delegacia na capital. Entretanto, ele deu indicações a respeito do trabalho da delegacia nos municípios do interior do Estado. O delegado indicou um processo de “localização do meretrício fora dos centros familiares” nesses municípios e acrescentou, ligeiramente, que as “casas de diversões noturnas frequentadas por meretrizes, tais como cabarés, cafés-concertos” no interior estariam no rol dos espaços sob a vigilância da Delegacia de Costumes.183 É possível que essa repartição especializada tenha ampliado suas ações no âmbito estatal no final da década de 1930, processo sobre o qual não encontrei registro algum. Mas essa ampliação pode ter coincidido com uma mudança de política em relação à prostituição na capital, que possuía naquele momento outra feição urbana, social e política.184 Dentro desse espaço de tempo [1927-1942], foi duplicada a população da Capital mineira, que se desenvolveu rapidamente, podendo ser considerada como das mais importantes metrópoles do País. Núcleos de habitantes espalharam-se pelos subúrbios mais afastados, enquanto que novos serviços foram atribuídos à polícia, responsável pela ordem e tranquilidade em todos os quadrantes da cidade e do Estado.185 Apesar dessas alterações, o quadro de pessoal do corpo de segurança permanecia, segundo Rogério Machado, com 247 homens, desde 1927, o que era considerado um problema para a atuação policial, em face das transformações vivenciadas pela cidade. É possível, também, que a situação da polícia investigativa tenha alguma relação com uma política de valorização do policiamento militar durante o período186. Nesse sentido, a alteração das formas de se falar sobre o meretrício, o silêncio a respeito da necessidade de organização ou manutenção de um registro de meretrizes, a mudança de postura do delegado de costumes em relação a essa prática, o crescimento constante da cidade, o aumento das atribuições dos departamentos policiais e a falta de investimento na polícia investigativa contribuíram, cada um a seu modo, para uma transformação nas relações entre a Delegacia de Costumes e a prostituição na capital. É preciso ressaltar, entretanto, que o enquadramento que polícia faz de determinados fenômenos, caracterizando-os como crime ou contravenção, é perpassado pelas escolhas 183 Relatório do CSI, 1943, p. 68-69. Para uma análise da cidade nos anos 1940, ver PIMENTEL, 1993, e AGUIAR, 2006. 185 Relatório do CSI, 1943, p. 5. 186 O trabalho de Francis Cotta (2006) indica uma preocupação maior do Estado de Minas com a polícia militarizada a partir das décadas de 1930 e 1940. Essa hipótese, entretanto, precisa ser verificada em pesquisas específicas. 184 67 políticas das autoridades responsáveis e pelas experiências cotidianas do policial.187 Discutindo a realidade própria da polícia no Rio de Janeiro, Bretas, indicou que as tendências políticas do ministro da justiça ou do chefe de polícia ao privilegiar determinadas ações e funções policiais, frequentemente, ganhavam novos significados no entendimento de delegados e até mesmo de agentes envolvidos diretamente com o policiamento. O autor enfatizou, assim, o poder discricionário dos policiais ao caracterizar determinados comportamentos como crime. Isso permite duvidar de uma hipótese que associa a mudança dos programas de governo para as práticas policiais a uma mudança imediata do comportamento policial no cotidiano urbano, deixando em suspenso essa questão.188 A percepção dos delegados de que a polícia investigativa necessitava receber mais atenção do Estado indica, ainda, que nem todos os projetos da década de 1920 foram levados a cabo, ou antes, sobreviveram às experiências políticas do pós-1930. Esse ponto nos conduz ao problema das práticas de policiamento do meretrício da cidade, tema que será tratado no próximo capítulo. 187 188 PAIXÃO, 1982, p. 80. BRETAS, 1997a, p. 61-63. 68 3 IMPRESSÕES DE PRISÕES: POLICIAMENTOS DO MERETRÍCIO E OS JORNAIS DA CAPITAL As fontes policiais possuem um potencial de pesquisa que ainda está por ser encarado, de forma sistemática, por historiadores em Minas Gerais.189 Existe um grande acervo a ser explorado e supõe-se que haja um volume considerável de documentos sob a guarda do Arquivo Público Mineiro, mas que ainda se encontram em fase de tratamento. Marina Silva afirmou, a respeito desse material, que dentre os elementos da tríplice do prazer, a prostituição é o que menos possui registros no Fundo Polícia. No levantamento de fontes na série Ocorrências policiais, [disponível no APM] desde 1897 até 1932, encontrei dez referências à prostituição. O que é curioso, visto que, segundo Luciana Andrade, a imprensa acusava um crescimento pavoroso da prostituição a partir de meados da década de 10.190 Essa peculiaridade do “Fundo Polícia” e a dificuldade de acesso aos acervos policiais levaram-me a procurar outras formas de estudar o policiamento na cidade. Elegi as colunas policiais publicadas nos jornais por entender que tais seções constituem-se como indícios de uma estreita relação entre os órgãos de imprensa e as delegacias policiais, como observado em outras localidades.191 Essa relação foi responsável, em grande medida, pela manutenção de espaços de produção e publicação de “fait divers” nas páginas dos jornais. 192 Nesses espaços, é possível perceber sinais de uma interação mantida entre repórteres e as delegacias em Belo Horizonte, como no excerto a seguir. 189 Atualmente não existe em Minas Gerais nenhum grupo de pesquisa com ênfase na história da polícia ou do crime neste Estado. Os trabalhos de história social do crime utilizam como fonte processos-crime, que contêm peças elaboradas pela polícia, como os trabalhos de Carneiro (2008) e Silva (2008). Esse tipo de abordagem é crescente na historiografia estadual, mas poucos trabalhos preocupam-se com a formação policial propriamente dita. Especificamente sobre a questão policial encontramos alguns trabalhos, como o clássico de Baggio (1979) sobre a Força Pública e os trabalhos de Silva (2009) e Simão (2008), que se preocupam com as polícias desmilitarizadas. Há também os trabalhos orientados e coordenados por Rodrigo Motta a respeito de “culturas políticas” autoritárias em instituições policiais, como no DOPS. Atualmente, Luciano de Sena, desenvolve uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, sobre a formação dos delegados em Minas Gerais nas quatro primeiras décadas republicanas. 190 SILVA, 2009, p. 89, grifos da autora. 191 Como no Rio de Janeiro, ver BRETAS, 1997a, pp. 23-24. 192 Entendo o “fait divers” a partir da perspectiva de Valéria Guimarães que o define como o “relato romanceado do cotidiano real. Em um fait divers encontramos o tom mundano e indefinido do cotidiano. (...) A história contada com tantos e precisos detalhes só aumenta a incerteza e, por vezes, se tornam até cômicas as observações mais íntimas feitas por quem escreve.” Os relatos de crimes violentos, suicídios, entre outros dramas cotidianos, são marcantes nas narrativas do fait divers. GUIMARÃES, 2006, s/p. 69 Nada de novo polícia As delegacias estavam hoje imersas numa desolada monotonia. Afora uma queixa que aqui vai hoje publicada, nada mais nos foi possível conseguir.193 Segundo Marcos Bretas, no Rio de Janeiro, as delegacias possuíam um livro de registro onde o comissário responsável anotava os principais acontecimentos do dia. Esses livros eram usados pelos repórteres como fonte de informação para elaborar as colunas policiais. O autor ressalta, ainda, a existência, nessa documentação, de traços de manobras e seleção das informações assentadas pelos comissários e outras autoridades que registraram os acontecimentos cotidianos. Os casos levados à consideração da polícia, se envolvessem uma infração do Código Penal ou de outra lei criminal, tinham de ser tratados em função da possibilidade de se tornarem casos judiciais, e de preferência bem-sucedidos (...) o poder de polícia tornou-se um instrumento para se chegar a uma solução, que os policiais podiam utilizar caso julgassem que os queixosos faziam jus à sua interferência.194 Não se tem notícias da existência de livros de registros das delegacias de Belo Horizonte, não sendo possível, assim, verificar como se deram as relações dos jornais com os postos policiais. Todavia, para o propósito deste trabalho, as colunas publicadas nos periódicos atendem ao objetivo de analisar o policiamento na cidade, uma vez que não estou preocupado com uma análise do cotidiano dos policiais, mas com as atitudes dos guardascivis em relação ao meretrício e às pessoas que circulavam nesse espaço. Encaro, portanto, os relatos dos jornais como narrativas constituídas a partir de um referencial, que remete às práticas cotidianas das pessoas. A reflexão de Paul Ricoeur a respeito do “texto” me auxiliou a construir essa leitura da documentação, tensionando a escrita da história para além da obviedade que uma primeira e ligeira leitura pode captar. As noções de “mundo do texto” e “referente” se contrapõem às abordagens estruturalistas, que afirmam não existir o “real” a não ser na linguagem, e dizem respeito ao campo da ação. O referente de uma proposição “é seu o valor de verdade, sua pretensão de alcançar a realidade”.195 Portanto, apesar de construir e disseminar representações existentes em uma dada cultura, o texto jornalístico parte de uma realidade para se constituir e para construir dados sobre diferentes realidades. Isso me autoriza buscar entender certas práticas de policiamento do meretrício em Belo Horizonte, a despeito da falta de acesso a dados institucionais. 193 Estado de Minas, 04/04/1928, p. 2, grifo meu. BRETAS, 1997a, p.117. 195 RICOEUR, 1986, p. 113. 194 70 Assim, apesar dos “filtros” criados pelos sujeitos que registravam as “ocorrências” nas delegacias, da seleção que os redatores das colunas realizavam ao ler os livros policiais e da falta de acesso a essas informações, as colunas policiais possuem indícios importantes para a presente análise. Uma vez que permitem traçar os caminhos do policiamento do meretrício e entender como o processo de educação moral se deu em termos práticos. O excerto da dissertação de Marina Silva, citado na abertura deste capítulo, anuncia, também, uma segunda natureza do problema das fontes policiais, qual seja, a discrepância entre os dados encontrados na série “Ocorrências” e as publicações dos jornais, que denunciavam um aumento da prostituição e promoviam uma campanha para que a polícia tomasse medidas a respeito.196 É possível, por um lado, que a polícia ainda não tivesse elaborado critérios tão significativos de “combate” ao meretrício durante a década de 1910, ou, por outro lado, não tivesse associado o aumento do meretrício com a tese da necessidade de prisões dessas mulheres. Assim, o suposto crescimento da prostituição, evidenciado por campanhas de moralização promovidas nos e pelos jornais, não corresponderia diretamente ao aumento do número de prisões de meretrizes. Pois estas dependem mais das políticas de policiamento, ou seja, das formas como as autoridades policiais e os agentes concebem certos comportamentos como crime/contravenção, do que de um aumento ou diminuição desses comportamentos.197 É plausível afirmar que naquele momento tenha ocorrido uma opção política por campanhas de prisões “correcionais” das meretrizes sem que isso gerasse, necessariamente, registros mais amplos, abertura de inquéritos ou repasse de informações aos jornais. Ao longo da década de 1920, como argumentei no capítulo anterior, há relatos em que os delegados afirmam ter resolvido o problema da prostituição ou circunscrito essa prática em uma determinada área. Contudo, a leitura dos jornais me permitiu perceber uma dinâmica diferente daquela veiculada pelos delegados e daquela observada por Marina Silva na série “Ocorrências”, que indicam uma quase inexistência da prostituição na cidade. As narrativas publicadas nos jornais e mobilizadas neste capítulo evidenciam uma circulação das meretrizes em diferentes espaços urbanos e a ocupação e fixação do meretrício, no período pesquisado, em uma “zona” delimitada no “centro urbano”, como tratarei mais adiante. 196 Essas campanhas foram citadas, também, por ANDRADE, 1987, p. 32. A esse respeito ver PAIXÃO, 1982. Bretas (1997a, p. 208) argumenta que “só de vez em quando havia um certo interesse público pela manutenção da ordem, voltado para a vadiagem, a prostituição ou o anarquismo, que pressionava o sistema policial para apresentar resultado, geralmente obtidos através de prisões em massa – e da bela estatística que se seguia”. 197 71 3.1 os jornais e as notícias policiais As colunas policiais publicadas em dois jornais de grande circulação no período apresentam variações ao longo do tempo. O “Diário de Minas”, órgão do Partido Republicano Mineiro (PRM) desde 1899, dedicou, no início da década de 1920, alguns pequenos espaços para anúncios de prisões ou queixas prestadas à polícia. Ao longo de toda a década de 1920, o jornal procurou reservar uma coluna específica para o assunto que, em meio às notas esparsas, fixou-se de forma variada e sob diferentes títulos como “Pequenas ocorrências”, “Pequenos casos de polícia”, “Pela polícia”, “Ocorrências policiais”, “Notas policiais”, “Pequeno arquivo policial” e, em seus três últimos anos de existência, recebeu a epígrafe de “Policiais”. Essas colunas apareciam, frequentemente, na segunda ou na terceira página do jornal, que era composto por quatro páginas. Já o jornal “O Estado de Minas”, inaugurado em 1928, publicou, desde o começo, notas de prisões, queixas e denúncias referentes a “casos de polícia”. No seu terceiro mês de circulação, essas notícias concentraram-se numa coluna impressa entre a sexta e a oitava página de cada edição e cujo nome, “Na polícia e nas ruas”, perdurou até 1930, quando deixa de ser publicada.198 Isso não quer dizer, todavia, que a coluna foi publicada diariamente desde sua aparição. Há várias ocasiões, no período consultado, em que notas isoladas sobre crimes e prisões foram publicadas e outras em que não houve referência alguma ao assunto. Após esse período, a coluna ainda foi publicada algumas poucas vezes. Com a leitura dos jornais no período de 1920 a 1934, observei uma tendência de desaparecimento da coluna em períodos conflituosos dos processos políticos partidários locais e nacionais. Durante o período de discussão a respeito dos sucessores da presidência do Brasil, entre 1921 e 1922, o “Diário de Minas” publicou diversos discursos em defesa de Arthur Bernardes, em detrimento de Nilo Peçanha. Entre 1922 e 1926, período marcado tanto por conflitos políticos interestaduais envolvendo Minas Gerais, quanto pelo mandato presidencial de Artur Bernardes, a coluna policial ora desaparece ora se mantém fixa. Em 1924, por exemplo, ela surge sob o nome de “Notas Policiais”, já durante alguns meses de 1925 e 1926, após um período de ausência, a coluna volta a ser publicada com o nome de “Ocorrência Policial”.199 Nesse período as notas são muito diretas, relatando, basicamente, o 198 Em alguns períodos a coluna foi publicada na página dez, quando tratava-se da edição de domingo. Em outros, chegou a ser publicada na página 12. 199 Esse período é marcado por uma tensão política muito grande, que gerou vários movimentos e conflitos armados, como a movimentação tenentista, a Coluna Prestes, disputas de fronteiras de Minas com a Bahia, entre outros. 72 nome da mulher presa, o motivo e o guarda responsável pelas prisões. É claro que a ausência da coluna não significa uma ruptura nos trabalhos da polícia, mas, provavelmente, um rearranjo momentâneo nas relações entre os repórteres e as delegacias, ou uma inflexão na política editorial do jornal.200 “O Estado de Minas”, por sua vez, criou um modelo de interlocução com os seus leitores, ao se declarar desvinculado do PRM, tornando-se, logo, agraciado por grupos liberais insatisfeitos com as negociações políticas dos partidos republicanos mineiro e paulista. 201 A publicação da coluna “Na polícia e nas ruas” passou por uma inflexão logo após os conflitos armados em decorrência do levante da “Aliança Liberal” e do movimento que depôs Washington Luís e sustentou a criação de um Governo Provisório.202 De outubro de 1930 a meados de 1931 a coluna foi publicada algumas vezes sendo, então, extinta da política editorial do jornal.203 Apesar dessa alteração nas políticas de publicação da coluna policial e da inflexão no tratamento dado pelos relatórios de polícia ao “problema” da prostituição – como argumentado no capítulo anterior – não há nada, na documentação consultada, que aponte para uma alteração imediata das políticas de policiamento ou do funcionamento das delegacias, após o fim dos conflitos de outubro de 1930. Ocorreu, por outro lado, após setembro de 1932, uma série de conflitos entre policiais militares, guardas-civis e soldados do exército que ocupavam a capital, o que sugere uma tensão no que diz respeito à legitimação do policiamento civil na cidade.204 Esses conflitos também podem ser observados sob a perspectiva de um processo de transformação da 200 É instigante, contudo, observar que justamente nesse período há também uma lacuna nos relatórios da Chefia de Polícia de Minas no acervo do Arquivo Público Mineiro. É possível que os diferentes conflitos políticos vividos naquele momento tenha deixado em suspenso algumas práticas comuns do jornal oficial do Partido Republicano Mineiro e da Secretaria de Polícia. Castro (1997) indica que até meados da década de 1920 era muito comum nos jornais a divulgação de textos e plataformas políticas, participando ativamente do debate público no Estado. 201 ANTUNES, 1995. 202 Boris Fausto (1997) argumenta que a “Revolução de 1930” foi um processo surgido em meio aos conflitos políticos regionais, envolvendo o questionamento do regionalismo (1997, p. 122-123). Segundo ele, “a Aliança era uma coligação de oligarquias dissidentes” (p. 128). O autor adverte, ainda, que o papel do tenentismo nesse processo deve ser entendido na sua dinâmica interna e não como uma defesa de valores das classes médias (p. 80-81). Nesse sentido, Fausto defende que não se pode confundir a Aliança Liberal com os movimentos que depuseram Washington Luis (p.134). 203 Com vimos a coluna foi publicada mais algumas vezes, não se fixando, porém, no plano editorial do jornal no período estudado. 204 Ver notícias de conflitos entre policiais e exército publicadas n’O Estado de Minas, “A zona boêmia da cidade esteve ontem em polvorosa”, 05/10/1932, p. 6; “Ligeiro conflito na zona boêmia – entre policiais e soldados do exército”, 25/10/1932, p. 8; e “Belo Horizonte transformada em vasto campo de batalha”, 28/10/1932, p. 6. 73 organização policial e das políticas de policiamento urbano. Em outubro de 1929 o secretário de Segurança, Bias Fortes, pediu exoneração, mesmo contra a vontade do presidente Antônio Carlos, e o cargo passou a ser ocupado por Odilon Braga. 205 Em meio aos conflitos de outubro de 1930, ocorreu a vinculação do Serviço de Investigações à Secretaria do Interior, que havia incorporado os serviços das Secretarias de Segurança Pública e da Justiça em setembro daquele ano.206 Em novembro de 1930 Gustavo Capanema passou a ocupar o cargo de Secretário do Interior, assumido, logo depois, por Álvaro Baptista de Oliveira.207 Esse processo de transformação da administração foi uma importante inflexão nas formas de organização das práticas policiais, que experimentou movimentos lentos até a década de 1940.208 3.2 os números policiais nos jornais Até agora, enfatizei a questão da presença e da ausência das colunas policiais nos jornais, sua relação com dinâmicas políticas e as transformações institucionais da polícia. Mas o que se pode dizer sobre notícias de prisões publicadas nessas colunas? O levantamento das publicações de prisões de mulheres envolvidas com o meretrício, durante as décadas de 1920 e 1930, possibilitou elaborar um banco de dados, a partir do qual pude construir uma compreensão sobre diferentes situações dessas prisões. Apresento, a seguir, esse material, bem como os critérios de seleção e organização dos dados utilizados para sua elaboração. Os dados encontrados são datados entre 1920, que corresponde ao início da década de transformações importantes da cidade, como argumentei anteriormente, e 1931, momento de inflexão na publicação da coluna policial no “O Estado de Minas”. 205 O Estado de Minas, “O novo secretário da Segurança Pública”, 29/10/1929, p. 1. MINAS GERAIS, Lei n. 1147, de 6 de setembro de 1930, art. 2º. 207 Ver “O novo secretário do Interior” em O Estado de Minas, 28/11/1931, p. 1. 208 A tese das transformações lentas vivenciadas pela polícia desmilitarizada também foi observada em FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2008, p. 89-95. Um exemplo desse processo paulatino é a divisão, após alguns meses de funcionamento, da Delegacia de Segurança Pessoal e de Ordem Política e Social em duas, criando a Delegacia de Segurança Pessoal e a Delegacia de Ordem Pública. (Decreto 10030, de 24 de agosto de 1931). Além disso, a Delegacia de Costumes, como foi visto no capítulo anterior, passou por alterações das prioridades de atuação desde 1928. Houve investimentos que privilegiaram um ou outro ponto das suas responsabilidades, como a censura a espetáculos e diversões, o combate ao jogo, à vadiagem e ao comércio de entorpecentes. Em meados de 1930, por exemplo, acompanhado por campanhas publicadas nas páginas dos jornais, o jogo ganhou uma centralidade nas demandas das atividades desta delegacia e a prática do meretrício já não aparecia como um grande problema a ser combatido ou merecer aplicação de um projeto de transformação dos comportamentos nos discursos da Delegacia de Costumes, como visto no primeiro capítulo. Ver série de reportagens, do jornal O Estado de Minas, datada entre 16 e 27 de agosto de 1930, p. 8. 206 74 Utilizei como critério para elaboração da Tabela 1 a nomeação adotada pelos redatores ao narrar as ocorrências de prisões. 209 Nela encontram-se detalhados os números referentes aos registros de prisões encontrados; o número total de mulheres discriminadas nos relatos de prisões; e os números de mulheres presas, considerando as reincidências. Esta tabela permite visualizar uma diferença no processo de nomeação das mulheres envolvidas com a prostituição. No caso da documentação policial, como visto no capítulo anterior, “meretriz” era o nome atribuído às mulheres que se ocupavam do amor venal. Já os redatores dos jornais lançaram mão de um arsenal de nomes, disponíveis naquele momento, para se referir às “meretrizes”, utilizando este termo uma única vez, como pode ser observado na Tabela1. Esse desencontro aponta para as diferentes formas sociais e culturais de entendimento da prostituição naquele período. Os principais termos utilizados para designar uma meretriz, nos jornais consultados, foram “mundana” e “decaída”. Digo isso uma vez que “nacional” era um termo genérico, utilizado para homens e mulheres, não sendo, portanto, uma nomeação específica para mulheres que exerciam a prostituição. Além disso, cabe destacar que em um número significativo de registros nenhum termo foi utilizado para nomear a prática das mulheres presas. É curioso observar que as situações descritas nestes casos se deram em “pensões alegres”, “zona suspeita” e envolveram “escândalos”, infração das “ordens da polícia de costumes” e “atentado contra a moralidade pública”. Isso sugere que o reconhecimento do exercício do meretrício não se limitou à nomeação das mulheres, visto que foram utilizados outros símbolos culturais capazes de marcar e identificar essa prática. 209 Entendo por “nomeação”, baseado em Pierre Bourdieu (1982, p. 143), um processo de “classificação social”, elaborada por diversos campos de saber, bem como por diferentes grupos sociais, para compreensão e divisão do mundo. Já as “classificações sociais” são entendidas como “lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer os grupos” (BOURDIEU, 1982, p. 137). 75 Tabela 1 – Registros de prisões de acordo com a nomeação Registros de prisões envolvendo meretrizes de acordo com a nomeação Nomeação Alemã Decaída Distinta Senhorita Diva Doidivana Doméstica Dona de pensão Eva Filha de Eva Horizontal Mercadoria do amor Meretriz Mundana Nacional Preta Senhorita Vagabunda Viúva TOTAL Registros encontrados 39 1 20 1 1 4 3 2 1 2 2 Mulheres presas, no Mulheres presas, total considerando reincidências 51 54 1 1 24 24 5 5 1 1 12 12 4 4 2 2 3 3 2 2 2 2 1 1 1 1 43 42 1 3 1 1 1 75 48 3 5 8 1 1 83 54 3 5 8 1 169 249 266 76 Observei durante a coleta desses dados várias nuanças que considero relevante destacar. Nos registros consultados, encontrei casos de mulheres designadas pelo mesmo nome que foram presas, teoricamente, mais de uma vez, sendo que nem sempre a nomeação utilizada foi a mesma. Digo teoricamente, pois nem sempre há como definir, mesmo em situações semelhantes, se as pessoas presas eram as mesmas, simplesmente pelo nome próprio. Os nomes próprios não devem ser considerados como o único fator de reconhecimento dos indivíduos, pelo menos no caso dos indícios fornecidos pelos jornais, que muitas vezes não passam desse dado.210 Essa ressalva se deve, também, aos costumes de se utilizar, de forma recorrente, determinados nomes que se configuram como homônimos, e de se grafar de diversas formas os nomes próprios nos suportes impressos.211 Por isso, é importante não tomar os números apresentados na Tabela 1 como absolutos, ou antes, como representativos de todas as notícias de prisões do período. Além das limitações apresentadas acima, é necessário considerar que esses dados dizem respeito aos casos em que as prisões estavam diretamente ou indiretamente relacionadas à prática do meretrício. O número total de meretrizes seria diferente, por exemplo, se os casos de furtos, ofensas físicas, assassinatos, ou mesmo se casos simples caso de embriaguez fossem considerados. Ou seja, não foram incorporados nesta análise os casos em que meretrizes foram presas em situações ordinárias. Tais ocorrências, como se vê na Tabela 2, só foram consideradas quando era indicada, de alguma forma, uma relação entre a prisão e a prática do meretrício, mesmo que indireta. Além disso, essa seleção, certamente, não esgotou todos os casos que envolveram o policiamento do meretrício, publicados nos jornais pesquisados. 210 As fontes mobilizadas neste estudo não permitem perseguir, como no debate sobre o “nome”, promovido por Carlo Ginzburg (1991), as trajetórias de cada uma dessas mulheres. 211 Um professor, descontente ao ler seu nome ligado a uma prisão anunciada na coluna policial, defendeu a ideia de que se tratava de um homônimo. Este caso foi publicado no “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas – Desordens, etc.”, 13/03/1930, p. 6. O uso da expressão “de tal”, também era muito comum naquele momento. Há um caso, por exemplo, em que as mulheres foram identificadas apenas como “duas Marias”, Diário de Minas, 11/07/1927, p. 2. Além disso, encontrei casos em que os nomes das mulheres presas são semelhantes, mas registrados com algumas diferenças na grafia ou com inserção de um nome a mais. Essas ressalvas se fazem necessárias para indicar que os resultados encontrados foram frutos de escolhas, de seleções e não correspondem ao total de registros publicados pelos jornais. 77 Tabela 2 – Causas das prisões de meretrizes Causas das prisões % Ocorrência Atentado contra a moralidade pública 2 20 Atentado contra a moralidade pública, desordens Atentado contra a moralidade pública, furto Atos indecentes Canoa Desordens Desordens e escândalos Desordens, admoestada Embriagada Embriagada, atos imorais Embriagada, desordens Embriagada, escândalos Embriagada, obscenidades Embriaguez, desordens, insultos obscenos, modos imorais, desrespeito à lei e aos bons costumes Escândalos Escândalos e desordens Escândalos, atentado contra a moralidade Escândalos, canoa Escândalos, ofensas físicas 2 1 12 3 15 1 1 3 1 7 5 1 Estava em companhia de um homem em uma carroça de lixo. Infringia as ordens da polícia de costumes Insultos e obscenidades Manifestações de alegria Obscenidade Ofensas físicas Ofensas físicas e insultos Perseguida Portou-se inconvenientemente Vadiagem Total 1 20 7 4 1 2 1 25 2 1 2 16 1 1 8 3 169 1,2 11,8 1,2 0,6 7,1 1,8 8,9 0,6 0.6 1,8 0,6 4,1 3,0 0,6 0,6 11,8 4,1 2,4 0,6 1,2 0,6 14,8 1,2 0,6 1,2 9,5 0,6 0,6 4,7 1,8 100 78 Mas ainda é preciso explicitar melhor como esses dados foram selecionados. A triagem das ocorrências foi efetuada considerando a participação das mulheres em “escândalos”, “atos ofensivos à moralidade pública”, “atos indecentes”, “obscenidades”, “infração das ordens da polícia de costumes”, “ofensas físicas”, “vadiagem” e em situações em que elas teriam se portado “inconvenientemente”. Essas categorias, coletadas no conjunto das narrativas dos jornais, foram combinadas entre si, mas também com os locais das prisões ou das ocorrências, como uma “pensão alegre”, a “zona boêmia”, “suspeita” ou “alegre”, um “privado do Capitólio” ou “conventilho da rua Guaicurus”, o “alpendre” “janela” ou “balcão” de uma residência ou pensão, o “Cabaré Radium” ou o “Cabaré Capitólio”. Esses são os principais indicadores dos espaços da prostituição na cidade, junto com as ruas Guaicurus, São Paulo, Rio de Janeiro.212 Para deixar mais claro, apresento um exemplo de cruzamento dos critérios utilizados para compor a seleção dos dados produzidos para a Tabela 1.213 A nomeação “preta” foi encontrada somente em uma ocorrência e dirigida para três mulheres. Essa classificação só foi considerada pelo fato de as mulheres envolvidas já terem sido presas e nomeadas como “decaída”, “mundana” e por terem infringido “as ordens da polícia de costumes”.214 Assim, por muitas vezes, a seleção do registro de prisão deveu-se à observação de pelo menos um dos elementos enumerados no parágrafo acima, e quando possível, pela ocorrência de mais de uma dessas categorias. Deste modo, entre 1920 e 1927, verifiquei que 26 mulheres foram presas e, entre 1928 e 1931, 240.215 O número total de ocorrências registradas até 1927 foi de 13, enquanto deste ano até 1931 foram registradas pelos jornais 156 ocorrências. Contudo, foram encontradas notícias duplicadas entre os anos de 1928 e 1929, momento em que “O Estado de Minas” e “Diário de Minas” dividiram espaço na capital. A partir dessa perspectiva, observa-se que o “Diário de Minas”, durante esse período, publicou 14 prisões em 13 ocorrências e “O Estado de Minas”, 147 prisões em 111 ocorrências. Juntos, registraram 161 prisões em 124 212 Como pode ser observado na Tabela 3. O mesmo se deu com as tabelas seguintes, que são derivadas desta primeira tabela. 214 Maria da Conceição de Jesus foi presa como mundana em 22/11/1928, “O Estado de Minas”, p. 6. Maria Rita de Jesus, identificada como uma decaída, foi presa em 31/05/1928, “O Estado de Minas”, p. 4. Ephigenia de Oliveira foi presa por infringir as ordens da polícia de costumes em 23/06/1928, “O Estado de Minas”, p. 8. 215 Esses números dizem respeito ao número total de mulheres que foram presas, considerando as reincidências, ou seja, tomando a reincidência como uma prisão distinta. 213 79 ocorrências. Já no período de 1930 a 1931, “O Estado de Minas” publicou 32 ocorrências, nas quais 79 mulheres foram presas. Numa leitura geral da Tabela 2, pode-se observar uma grande ocorrência de prisões cujos motivos englobam a questão da moralidade pública. O número de casos de “infração das ordens da polícia de costumes” somados aos de “atentados contra a moralidade” e aqueles que envolvem “obscenidades”, “atos imorais”, “inconveniências do comportamento”, “manifestações de alegria” e “escândalo” equivalem a 69% das ocorrências de prisões de meretrizes. Esse material permite sustentar a hipótese de que o policiamento do meretrício da capital foi informado, em grande medida, pelo problema da moralidade pública e da necessidade de consolidação de um projeto de moralização dos espaços urbanos. Dividindo esses dados nos três períodos abordados, observa-se que das treze ocorrências publicadas entre 1920 a 1927 pelo “Diário de Minas”, nove relatam prisões decorrentes de comportamentos tidos como “inadequados” das mulheres. Entre as causas há três casos de “vadiagem”, quatro de “atentado contra a moralidade pública” e dois em que as mulheres “portaram-se inconvenientemente”. Entre 1930 e 1931, das 31 ocorrências noticiadas pelo “Estado de Minas”, treze envolveram escândalos, seis foram casos de “atentados contra a moralidade pública”, três de “atos indecentes”, um de “atos imorais”, quatro de “desordens”, três delas indicaram relação com consumo de álcool, três envolveram insultos e obscenidades, dois envolveram ofensas físicas e dois deveram-se à uma “canoa” feita pela polícia.216 Entre 1928 e 1929, período sobrerrepresentado pela circulação de dois jornais, os números são um pouco maiores, como já anunciei. No conjunto, o período registrou 25 casos em que mulheres “infringiram as ordens da polícia de Costumes”, 27 casos de “escândalos”, 21 casos de “desordem”, 17 casos de “atentado contra a moralidade pública”, 13 de “ofensas físicas”, 13 casos envolvendo “embriagues”, nove relacionados a “ato indecente”, seis em que as mulheres portaram-se “inconvenientemente”, três casos de obscenidades, um resultante de uma “canoa”, um caso de “insultos”, outro envolvendo “manifestação de alegria”, uma prisão por “insultos obscenos, desordem, modos imorais, desrespeito às leis e aos bons costumes”, uma mulher “perseguida” pela polícia, outra presa por estar em companhia de um homem “em uma carroça de lixo” de madrugada e dois casos sem especificações do fato. 216 Espécie de prisão coletiva, a canoa era anunciada como um grande feito de um delegado e, geralmente, tratava-se de uma diligência previamente organizada, atualmente, a “canoa” poderia ser traduzida como uma “batida policial”. 80 Tabela 3 – Número de ocorrências por localidades Local das ocorrências Córrego do Leitão Alpendre da residência Av. Affonso Penna Av. Contorno Av. do Comércio Av. Oiapoque Av. Paraopeba Av. São Francisco Bar/Restaurante Barro Preto Barroca Cabaré Capitólio Cabaré Radio Conventilho Cinema América Lagoinha Pensão/Pensão Alegre Praça da República R. Barbacena R. Bonfim R. Curitiba R. Goitacazes R. Guaicurus R. Mato Grosso R. Oliveira R. Resedá R. Rio de Janeiro R. São Paulo R. Tamoios Praça Sete Santa Tereza Via pública Vila Novo Horizonte Zona boêmia Total Número de ocorrênciasº 23 1 9 1 2 2 3 3 1 17 2 1 2 2 2 1 3 11 1 2 1 1 1 41 2 1 1 6 7 5 1 1 5 1 6 169 81 Apesar da coexistência dos jornais consultados por dois anos, apenas 13 ocorrências, como já afirmei, correspondem ao “Diário de Minas”, sendo assim especificadas: cinco casos de infração às “ordens da polícia de costumes”, três “atentados contra a moralidade pública”, dois “atos indecentes”, um caso de “desordem”, um de “ofensas físicas” e o caso de uma mulher que se encontrava em uma “carroça de lixo”. Assim, apesar da possibilidade de inchaço dos dados dos anos 1928-1929, a análise dos registros por jornal indica uma recorrência, presente nos dois jornais, de prisões envolvendo descumprimento das prescrições da Delegacia de Costumes e questões relacionadas à moralidade e à decência pública. Os dados dos dois jornais, portanto, indicam uma crescente preocupação com o policiamento da moralidade pública desde 1920, em especial com as questões levantadas pelo projeto de uma polícia de costumes. O ápice desse interesse, marcado pelas prisões em nome daqueles valores, situa-se entre os anos entre 1928 e 1929, período de instalação da Delegacia Especializada na Fiscalização de Costumes e Jogos. Após esse período, os dados indicam um decréscimo deste tipo de policiamento, o que sugere uma mudança na ação da Delegacia de Costumes, em relação aos seus primeiros anos de funcionamento, diante do problema da prostituição. Ainda assim, os principais casos de prisões, datados entre os anos de 1930 e 1931, envolveram questões pertinentes à delegacia, indicando certos resquícios de uma prática policial incitada desde o início da década de 1920 por autoridades diversas, como o próprio Edgard Franzen de Lima. Nesse, sentido, o quadro apresentado na Tabela 2 reforça as hipóteses elaboradas no capítulo anterior, de que nos primeiros anos da década de 1930 ocorreu uma inflexão nas definições de prioridades de atuação da delegacia, no nível prescritivo. O que o trabalho de quantificação das prisões noticiadas pelos jornais trouxe de novo foi a percepção de que também na prática policial, ou mesmo nas políticas editoriais de publicação dessa prática, houve uma inflexão nas formas de lidar com a prostituição na cidade, chegando praticamente a desaparecer os relatos de prisões de meretrizes no período entre 1931 e 1934. É preciso reforçar, no entanto, que a primeira seção urbana está sobrerrepresentada nestes dados, como se pode observar na Tabela 3. Enquanto outras regiões, das quais se tem notícia da prática da prostituição, mesmo que ocasional, como Barroca, Barro Preto, Lagoinha e Floresta, encontram-se sub-representadas.217 É preciso cogitar, também, que os dados 217 Como exemplo, conferir um caso envolvendo “prostíbulo” na rua Matto Grosso. “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas – Distúrbios”, p. 8, 06/08/1930. Pedro Nava (1985, p. 90), também indica várias regiões das quais se tem notícias de locais de prostituição como “no Calafate, atrás do 82 representados no período de 1920 e 1927 podem estar sub-representados pela própria limitação do Diário de Minas e sua política editorial. Entretanto, a leitura dos jornais permite sustentar a hipótese de que ocorreu uma crescente preocupação, ao longo da década de 1920, com a questão do policiamento do meretrício e do seu registro jornalístico e, ainda, que essa preocupação voltou-se para regiões de maior incidência daquela prática. Além disso, é possível afirmar que a região central, por ser um espaço de convivência entre diferentes grupos sociais, bem como local de grande concentração de cabarés, cafés-concerto e restaurantes, teve importância nas práticas de policiamento naquele momento, como pode ser observado pelas principais ruas em que as prisões foram registradas. Feita essa apresentação dos dados, creio ser possível dialogar com a historiografia e pensar hipóteses a respeito do policiamento do meretrício em outras cidades, para, então, observar mais de perto Belo Horizonte. Para Bretas, no caso do Rio de Janeiro, “a pressão da sociedade e a ação da polícia concentravam-se principalmente não na prostituta em si mas no mundo que gravitava à sua volta”.218 Sua leitura é baseada nas fontes primárias de delegacias da capital federal, evidenciando as práticas dos distritos policiais, com os quais ele trabalhou, ante as ocorrências envolvendo meretrizes. Apesar disso, o autor reconhece que houve, nos anos finais da década de 1920, uma preocupação direta do chefe de polícia Coroliano de Góes com a prostituição e com as prostitutas em geral.219 Já Cláudio Elmir, analisando os discursos do jornal “O Independente”, publicado na década de 1910, em Porto Alegre, entende que a prostituição “esteve no âmbito das preocupações do poder público no sentido de moralizar uma prática que fugia dos parâmetros da ordem que o capitalismo industrial impõe ao trabalhador neste momento”.220 Sua leitura, porém, ressalta a preocupação, por parte de diferentes sujeitos, com a transformação do comportamento feminino, resultando em discussões que apresentaram soluções para o problema da prostituição, como a necessidade de consolidação de uma “educação moral”, e da intervenção estatal para “regular os comportamentos”.221 Em São Paulo, o crescimento da prostituição no final da década do século XIX provocou “reações moralistas entre setores diversificados da população”, concomitante a uma Doze, na Floresta, nos caminhos do Pipiripau; no Quartel, entre a rua Niquelina e o Raul Soares (...) no Bonfim, sobrepujando o Cemitério; no Carlos Prates, nas veredas da Gameleira, do Matadouro, do Acaba-Mundo, da Lagoa-Seca, da Lagoa-Santa, do Vira-Saia, do Quebra-Bunda.” 218 BRETAS, 1997a, p. 203. 219 BRETAS, 1997a, p. 77. 220 ELMIR, 1994, p. 96. 221 ELMIR, 1994, p. 85, grifos meus. 83 “obsessão em proteger a moralidade das jovens e em restringir a circulação das mulheres pelas ruas e praças”.222 Uma dessas reações foi o processo de organização da polícia de costumes, que intervinha diretamente na prática do meretrício, desde o início da República.223 Essas intervenções, segundo Margareth Rago, se deram de forma bem intensa nos comportamentos das prostitutas, bem como no funcionamento de casas de diversões e de “casas de tolerância”, consolidando o que ela chamou de uma “ampliação do controle estatal sobre o mundo do prazer”.224 Maria Ignês de Boni, analisando o policiamento em Curitiba nos anos de 1890 e 1920, entende que a polícia atuou, junto com outros agentes controladores, como sanitaristas, religiosos e jornais, para coibir atos atentatórios à moral e aos bons costumes. O policiamento da capital paranaense, segundo ela, também teve uma dupla função “seja vigiando e reprimindo ambientes de sociabilidade, seja afastando as meretrizes das ruas consideradas mais movimentadas e tentando localizar a zona do meretrício”.225 Como visto no primeiro capítulo, também em Paris, a polícia de costumes se preocupava com a criminalidade em geral, desempenhando um papel amplo no policiamento dos costumes. No “sistema francês”, como era conhecido o sistema de regulamentação da prostituição, as “casas de tolerância” tinham uma função importante, pois lá “a polícia obtém, frequentemente, informações que auxiliam, de maneira decisiva, a resolução de um caso”.226 Esse argumento fez parte de um processo de legitimação da necessidade da polícia de costumes, frente a uma série de críticas que surgiram contra as arbitrariedades dos agentes de costumes. Essa importância era dada tanto em relação aos trabalhos da policia judicial, quanto aos da policia politica. As justificativas mais comuns para manutenção das prisões de prostitutas e da vigilância dessas mulheres pautavam-se no discurso da necessidade de uma luta contra a “devassidão” e a “licenciosidade”, bem como da defesa da “moral e da tranquilidade pública” e da “segurança e da saúde públicas”, sob o pretexto do perigo venéreo.227 No caso de Belo Horizonte, observo a ocorrência dessas duas tendências da ação policial: a de vigilância geral do espaço potencialmente criminoso da região do meretrício e a 222 RAGO, 1991, p. 107. RAGO, 1991, p. 112-119. 224 RAGO, 1991, p. 120. 225 BONI, 1998, p. 121. 226 BERLIÈRE, 1992, p. 102. Tradução livre de “la police obtient souvent les renseignements qui feront avancer de façon décisive une affaire”. 227 BERLIÈRE, 1992, pp. 70-86. 223 84 de atuação vigilante das meretrizes, num esforço de transformar seus comportamentos.228 Ao conjugar essas duas facetas da ação policial diante da defesa da moralidade pública, um investimento centrado nas meretrizes e outro nos espaços que as rodeavam, pode-se redimensionar as atividades da polícia de costumes, especialmente da Delegacia de Costumes, no cenário mais amplo do policiamento da cidade e das políticas de “prevenção do crime e contravenções” e de “manutenção da ordem pública”.229 Desta maneira, não se excluem do processo os projetos amplos de vigilância dos “desviantes sociais” e “racionalização dos espaços” da cidade, como na perspectiva privilegiada por Luciana Andrade e por Fábio Simão. Tampouco se desprezam os projetos de moralização das meretrizes, entendidas como sujeitos a quem se direcionava campanhas por uma educação moral, perspectiva privilegiada neste trabalho e parcialmente sugerida por Marina Silva.230 Assim, posso sustentar a hipótese de que a polícia de costumes configurou-se como uma especialização paulatina, e cada vez mais organizada, de um projeto educacional de formação moral dos sujeitos para ocupação e circulação nos diferentes espaços urbanos, forjando para si a incumbência de moralização de diferentes sujeitos e práticas, como as meretrizes e o meretrício, o que influenciou o processo de organização da Delegacia de Costumes. Os dados apresentados nessa seção sugerem um crescente interesse nesse tipo de policiamento de forma geral, mas mais especificamente no nível dos sujeitos femininos envolvidos com a prostituição. Uma vez formulada essa afirmação, foi preciso observar de perto os registros de prisão. A análise mais minuciosa das narrativas de prisões dessas mulheres possibilitou o refinamento dessas hipóteses. 3.3 a educação entre prisões e admoestações O pequeno número de prisões datadas entre 1920 e 1927, como visto na seção anterior, já indica um interessante investimento do policiamento nas formas como as meretrizes se portavam no espaço público. Essas prisões se deram em diferentes circunstâncias e, ao que tudo indica, não dizem respeito a uma política específica de policiamento contra a prostituição ou a um projeto para modificar o comportamento das meretrizes no espaço urbano. Além disso, foram apresentadas de forma seca e direta, com poucas explicações sobre o motivo da 228 Isso é evidenciado nas fontes e, em certa medida, nos trabalhos de ANDRADE, 1987, SILVA, 2009 e SIMÃO, 2008. 229 Ver, por exemplo, Relatório SSA, 1927, p. 116; Relatório SSA, 1928, p. 47. 230 Ver ANDRADE, 1987, p.45; SIMÃO, 2008, p. 80 e ss., e SILVA, 2009, p. 79 e ss. 85 prisão, indicando um caráter de obviedade, possivelmente disseminado naquele momento, das causas dessas prisões. Contudo, é interessante destacar nessas ocorrências um indício de uma “prática educativa” promovida pela polícia, observado em um relato de prisão. A nota em questão narra que na Vila Novo Horizonte, atual região do bairro Pompeia, duas “decaídas” de nome Maria, além de Rita, “filha de uma delas”, entraram em luta corporal, sendo presas, “para acalmar os ânimos” com “algumas horas de reflexão dentro das grades de um xadrez”.231 Ora, essa iniciativa de buscar uma mudança no comportamento dos sujeitos, no caso as meretrizes, por meio de um determinado período de reclusão entre as grades de um xadrez, e desejando que eles tirem dessa experiência uma reflexão, é um dos maiores indícios de uma deliberada intenção formativa nas práticas de policiamento e prisão. Dessa maneira os jornais, não só no caso citado, mas também em outras notícias de prisões, acabam por anunciar práticas policiais, mesmo quando se propunham a simplesmente narrá-las. Analisando os demais registros de prisões de meretrizes, pude perceber como se deu essa tendência de associar prisão a um processo educativo, numa busca pela transformação dos comportamentos de meretrizes. O número de prisões relacionadas ao comportamento de mulheres no espaço público é redimensionado após 1928 com a instalação da Delegacia de Costumes. A partir de então, há anúncios de prisões que indicam a circulação das prescrições dessa delegacia por meio de uma portaria, apontando para uma convergência entre o policiamento e o projeto do delegado Edgard Franzen de Lima. Adrelina da Silva, também conhecida como “Yayá Fruta do Conde”, por exemplo, foi presa às 16 horas “por ofensas verbais à moralidade pública”. 232 As justificativas das prisões de meretrizes, ou de pessoas envolvidas com o meretrício, sustentaram-se mais corriqueiramente, durante esse período, no argumento da ameaça ou da ruptura com preceitos da moralidade pública. Consequências do calor? O guarda civil n [ilegível], prendeu e conduziu ontem à delegacia do 2o distrito às 0,25 horas a alemã [ilegível], por estar passeando no alpendre da casa que reside à rua Guaicurus, em trajes paradisíacos. A “inocente Eva”, depois de convenientemente admoestada, foi trancafiada em seguida, numa das “geladeiras” daquela circunscrição [policial], para criar um pouco mais de pudor.233 231 Diário de Minas “Pequeno arquivo policial”, Briga entre Marias, 11/10/1927, p.2. Diário de Minas, “POLICIAIS”, 14/09/1928, p.3. 233 O Estado de Minas, 15/12/1928, p.6, grifos meus. 232 86 Essa notícia indica a permanência da prática policial de prisão celular por hora ou noite, recorrente nas colunas policiais dos jornais no período coberto pela pesquisa. Essas narrativas incutiram à prisão, ao “xadrez” e à “geladeira” um caráter de instrumento, ou melhor, de mecanismo de constrangimento, que assume um tom pedagógico e torna-se capaz de educar a moralidade e os comportamentos das meretrizes. É como se o limite dado aos corpos das mulheres, na cela da prisão, pudesse redimensioná-los. Numa ação que induz à reflexão, incidindo sobre os comportamentos corporais daquelas que se veriam impossibilitadas de se movimentar para além dos limites das grades. E, ao reforçar a ideia da prisão como lugar onde seria possível “criar pudor”, sugere-se que a prática prisional poderia ser reconhecida como um processo que corresponde a aprendizados. E, ainda, como uma das formas possíveis de levar a cabo os projetos antigos de transformação do comportamento das meretrizes, naquele momento transformados em uma instância policial especializada.234 Isso me leva a supor que, no período em questão, as prisões educativas235, ou antes, o desejo de que as prisões participassem na educação moral das meretrizes, fizeram parte, mesmo que informalmente, da ação policial diante do meretrício. A narrativa acima, como várias que evocaram “desrespeito à polícia de costumes”, relaciona-se diretamente com a prescrição da Delegacia de Costumes, que resolveu “proibir que meretrizes em trajes menores permaneçam nos portões, janelas e alpendres e assim transitem pela rua”.236 A “desobediência” enfatizada nessas narrativas é um dos principais destaques no período entre 1928 e 1929, o que sugere uma intensidade das atividades da Delegacia de Costumes, ou pelo menos uma disseminação de seus preceitos entre os guardascivis que efetuavam esse tipo de prisão, como sugere a nota abaixo. UMA MULHER DE TRUZ -Descomposta, imunda, a Florisbella da Silva estava havia já algum tempo escandalizando os frequentadores de um botequim à rua S. Paulo, quando a chegada providencial do “mantenedor da ordem” n. 205, pôs termo à “fito”, levando a impudica mundana para a “gaiola” da 2º delegacia, onde deverá permanecer até que tome modos! O pior é que as más línguas afirmam, não voltar Florisbella, com essa condição, nunca mais para casa...237 234 Vale lembrar que o projeto formativo das prisões estava em discussão no Conselho Penitenciário, desde 1927, o que culminou na Penitenciária Agrícola de Neves, que prezava pelo trabalho dos reclusos como forma de “regeneração”. 235 Aquelas que teriam um teor de moralização da punição como pano de fundo. 236 Relatório da SSA, 1929, vol. II, p. 89. 237 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas” 05/02/1929 p.6, grifos meus. 87 Talvez por se tratar de uma figura conhecida nos meios que frequentava, Forisbella foi descrita como alguém que não seria capaz de “cultivar modos” e de participar de um processo educativo, mesmo quando isso incluía reclusão. O jornal aborda o tema expressando certa familiaridade com o caso narrado, o que indica tanto a circulação de informações como a constituição de “boatos”. Essa estratégia literária dos redatores foi empregada na elaboração de várias notas e configura-se como um vestígio das redes de sociabilidade em que meretrizes, guardas-civis, repórteres e outros atores policiais estavam envolvidos. Essas redes são anunciadas em breves comentários sobre o passado desordeiro de uma mulher, sua “fama” na região do meretrício, ou suas experiências com prisões. MAIS UMA VEZ... Dentre as infelizes mulheres vítimas do vício, que vivem nos meios escusos da capital, a mais conhecida da polícia que tem o seu nome inúmeras vezes registrado nas crônicas policiais é a já célebre – pelas frequentes desordens e tumultos que promove – Maria dos Reis, vulgo “Bango-Bango”. Ontem, a infeliz mulher estava, como é seu costume, alcoolizada e foi fazer desordens em uma pensão de mundanas situada perto do Café Lopes. O guarda 229, para evitar maiores escândalos deu voz de prisão à desordeira, mas esta agrediu-o violentamente a socos e dentadas e, só com o auxílio de um outro guarda, o de n. 293, conseguiu fazer com que a “BangoBango” desse, mais uma vez, entrada no xadrez do 2º distrito.238 Notícias como essa indicam uma familiaridade de algumas mulheres com a repressão exercida pelos guardas-civis sobre seus comportamentos. As meretrizes estiveram sujeitas a várias formas de policiamento que resultavam em reclusões, desde uma “canoa” em um baile em que se encontravam “distintas senhoritas”,239 até prisões para averiguações240 ou prisões correcionais.241 As notícias veiculadas entre 1928 e 1931 evidenciam que as prisões e o tratamento dos guardas-civis também passaram a ser orientados pelo objetivo de alterar os comportamentos das meretrizes, de intervir nos costumes e no caráter moral das meretrizes. Havia, contudo, outras “informalidades” instituídas no cotidiano policial, que surgiam como possibilidades de ação, em concordância com o projeto da Delegacia de Costumes, como a admoestação. Prisão por desobediência – Carmen de Tal proprietária de pensão, e Maria Pires desobedecendo à ordem que lhes foi dada para não se debruçarem 238 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 23/11/1928, p. 6, grifos meus. “O Estado de Minas”, 14/08/1928, p. 6. 240 “O Estado de Minas”, 28/06/1928, p.6. 241 “O Estado de Minas”, 26/01/1929, p. 6. 239 88 por muito tempo no alpendre e não ligando importância à admoestação do guarda n. 251 foram por este presas e conduzidas à delegacia.242 Recorrente nas notícias de prisões, em geral, o ato de “admoestar” também compõe um dos mecanismos pedagógicos da prática policial no processo de educação moral das meretrizes. Luciano Oliveira argumenta que a admoestação “refere-se a uma atitude marcadamente policial, caracterizada por palavras de descompostura dirigidas às partes”.243 É possível que ela tenha sido utilizada como meio de fazer circular os códigos da moralidade que se desejava atingir e, por isso, teria sido entendida naquele momento como uma prática educativa, formativa, como nos indica um dos sentidos possíveis do próprio verbo admoestar. A princípio, admoestar significa o ato de repreender de forma suave, explicitando os malefícios de uma determinada ação e recomendando uma “boa conduta”.244 Em outras palavras, é como chamar à atenção de atitudes desviantes, prejudiciais, aconselhando um caminho para correção dos males daí decorrentes. Admito ser necessária uma análise histórica mais do uso desse termo e de sua correspondente prática efetuada pela polícia, assim como dos significados simbólicos dessa ação. De todo modo, o material consultado indica que essa ação tenha se constituído, ao mesmo tempo, como um importante mecanismo nas relações sociais que foram travadas entre policiais e uma grande parte da população, como as meretrizes. Das narrativas coletadas nos jornais, poucas envolvem admoestação dirigida às meretrizes. Há casos em que o guarda-civil admoestou as pessoas e as liberou; em outros a liberação aconteceu após uma admoestação seguida de um período de reclusão numa cela da prisão; e há situações em que a admoestação foi questionada pela meretriz, seguida por conflitos e de uma posterior manutenção da autoridade policial através da prisão. A função pedagógica da admoestação, tanto nestes casos como nos apresentados anteriormente, aparece como uma das etapas possíveis nas relações entre policiais e meretrizes, antecedendo, ou mesmo substituindo a prisão e o “recolhimento” ao xadrez. Apesar de poucos casos explicitarem a admoestação de meretrizes, há indícios de uma interação entre guardas-civis e as mulheres presas, antes da efetivação das prisões. INFRIGIU O REGULAMENTO 242 Diário de Minas, 08/01/1928, p. 3, grifos meus. OLIVEIRA, 2004, p. 42. 244 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx?pal=admoestar [consultado em 17-02-2012]. 243 2010, 89 A polícia há tempos, proibiu que todas as “mercadorias do amor” assomassem às janelas ou alpendres de suas respectivas residências. O fim colimado nessa ordem policial foi de certo morto [sic], moralizar, várias das vias públicas desta Capital, que, principalmente à noite, ficavam virtualmente intransitáveis, para as famílias, tal o alarido e algazarra, em termos obscenos, que faziam naqueles lugares, as infelizes criaturas. É claro, porém, que essa medida não deixou de prejudicar, e muito, o “comércio”; destas últimas, que, uma vez por outra, ainda ousam desobedecer os severos regulamentos policiais, pondo-se a dar “trela” aos seus efêmeros admiradores do modo exatamente proibido pela polícia. Ontem, mais uma mulher, a Pequerrucha, tentou permanecer no balcão de sua casa. Advertida do seu “crime”, pelo guarda n. 128, não obedeceu ao aviso do mantenedor da ordem, que por último acabou por recolhê-la solicitamente ao xadrez da 2º delegacia.245 Como já mencionei, as narrativas que apresentam como justificativa das prisões o “desrespeito às ordens da polícia de costumes” fazem referência à circulação da portaria prescrevia comportamentos para as meretrizes. Mas, além disso, esses casos evidenciam as diferentes maneiras como as prescrições foram observadas, compreendidas e mobilizadas. O que é observado, também, nas especificidades da relação interpessoal entre guardas-civis e as mulheres envolvidas com o meretrício, que podem ser inferidas nos relatos de prisões. Podese afirmar, assim, que as diferenças no tratamento e resoluções das situações narradas evidenciam a hipótese, levantada por Bretas,246 da imprevisibilidade da ação policial no cotidiano, como o caso que se segue. OS “FREGES” DA DURVALINA A decaída Maria Durvalina, constantemente perturba a avenida Paraopeba, onde reside, com as suas desordens e escândalos. Ontem, pela madrugada, como estivesse juntamente com o soldado Lourival Machado do 12º R. I., agindo de maneira pouco descente, o guarda n. 480 chamou-lhe a atenção. Como resposta a mulher ameaçou o mantenedor da ordem, dizendo-lhe que ia buscar uns 20 soldados para lhe “tosarem” a pele. A Durvalina desta vez não foi para o “xilindró”, não sabemos por que motivo.247 Se, por um lado, houve casos de mulheres que não “obedeceram” às ordens dos guardas, ou que não “aceitaram” os “conselhos” dos policiais e, mesmo assim, foram 245 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 28/08/1928, p. 6, grifos meus. Essa hipótese é desenvolvida em BRETAS, 1997b, p. 21-23. 247 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 05/09/1928, p. 6, grifos meus. 246 90 presas,248 também pude encontrar o caso de Durvalina, em que uma admoestação não teve, em nenhum sentido, o efeito habitualmente desejado. A intervenção do guarda foi contestada com uma ameaça e, talvez porque “decaída” estivesse acompanhada, ou pelo receio da intimidação ser levada a cabo, a prisão não se efetivou. É plausível que isso se deva a uma complexa dinâmica de sociabilidade travada entre guardas-civis, meretrizes e soldados da Força Pública. Dinâmica esta que parece ser um dos principais mecanismos de composição do policiamento urbano na capital mineira. Ela informava aos sujeitos suas possibilidades de ação, ao mesmo tempo em que formava esses campos de inter-relação entre esses sujeitos, compondo uma espécie de conhecimento social. Para Bourdieu, o “conhecimento social” se daria em primeiro lugar pelo conhecimento corporal, prático, pela incorporação de valores que permitem aos sujeitos agir numa dada realidade.249 Com a noção de “habitus”, os agentes sociais são percebidos como capazes de construir e classificar, produzir e associar, mas não como sujeitos transcendentais e, sim, como corpos socializados, investidos pelos princípios de organização social que foram adquiridos no curso de uma experiência social situada e datada.250 (...) os agentes sociais são dotados de um habitus, inscrito no corpo pelas experiências passadas: esses sistemas de esquemas de percepção, de apreciação e de ação permitem operar atos de conhecimento práticos, fundados no rastreamento e no reconhecimento dos estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, e também engendrar, sem posição explícita dos fins nem cálculo racional dos meios, estratégias adaptadas e constantemente renovadas, mas situadas nos limites dos constrangimentos estruturais dos quais são o produto e que as definem.251 Essa postura epistemológica auxilia a leitura do problema proposto por este trabalho, pois permite observar o policiamento do meretrício sob a perspectiva das relações sociais travadas entre guardas-civis, meretrizes, soldados e os homens que frequentavam o meretrício, e, também, compreender como o processo de educação moral poderia se dar no 248 Ver “O Estado de Minas”, “Desrespeitou o guarda”, 10/02/1931, p. 8. BOURDIEU, 1997, p. 163-170. Pierre Bourdieu, lançando mão da noção de “habitus”, faz uma releitura da tradição estruturalista e materialista, considerando as possibilidades de ações dos “agentes sociais” no interior de estruturas sociais. 250 BOURDIEU, 1997, p. 164. 251 BOURDIEU, 1997, p. 166. No original, lê-se “ (…) les agents sociaux sont dotés d’habitus, inscrits dans les corps par les expériénces passés: ces systèmes de schèmes de perception, d’appréciation et d’action permettent d’opérer des actes de connaissance pratique, fondés sur le repérage et la reconnaissance des stimuli conditionnels et conventionnels auxquels ils sont disposés à réagir, et d’engendrer, sans position explicite de fins ni calcul rationnel des moyens, des stratégies adaptées et sans cesse renouvelées, mais dans les limites des contrante structurales dont ils sont le produit et qui les définnissent”. 249 91 nível prático. Se as autoridades policiais entenderam que era necessário transformar as meretrizes em um tipo específico de sujeito moral, isso se daria numa relação social conflituosa, uma vez que o conhecimento prático preexistente das meretrizes entraria em confronto com o conhecimento prático do “mantenedor da ordem”. Ambos passariam por transformações e ambos poderiam conduzir suas ações dentro de limites estruturais que os definiam, modificando, assim, as possibilidades dadas. Os valores não são “pensados”, nem “chamados”; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas ideias. São as normas, regras, expectativas, etc. necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento) no “habitus” de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda produção cessaria.252 Nessa perspectiva, homens e mulheres são tidos tanto como sujeitos de “sua própria consciência afetiva e moral”, tanto como de “sua história geral”. 253 A experiência na modernidade é marcada pelos choques que estimulam, excessivamente, os sujeitos em seu cotidiano.254 Dessa maneira a variedade de estímulos nos fenômenos da modernidade e a dificuldade dessas experiências serem “incorporadas” pelos sujeitos são um problema que permeia os habitantes de diferentes cidades ao redor do mundo. Pensando numa perspectiva histórica, essa reflexão remete aos conflitos de geração, às tensões postas nas mudanças dos costumes e nas ações dos sujeitos diante dos processos de transformação na modernidade. Os conflitos observados nas relações entre guardas e meretrizes em Belo Horizonte indicam essa dificuldade vivida nas alterações das formas de sociabilidade, marcada por mudanças e permanências. A formação de Belo Horizonte é marcada por uma diversidade cultural, étnica, social e econômica. É possível que essa diversidade tenha contribuído para formação de sociabilidades interpessoais caracterizadas pela solidariedade, pela relação face-a-face, pela 252 THOMPSON, 1981, p. 194, grifos meus. THOMPSON, 1981, p. 194. Edward Thompson, em sua obra epistemológica dedicada a desconstruir a obra de Althusser, faz um elogio à perspectiva de Bourdieu, uma página antes: “Mas se algum leitor na Inglaterra foi levado (ou foi “interpelado”) pelos altos chamados das várias agências britânicas de importação do “Marxismo Ocidental” (inclusive uma grande agência de importação que, infelizmente, ajudei a fundar há alguns anos) a supor que isso é o melhor que a tradição marxista na França consegue fazer em relação à sociologia, comunicações e teoria educacional, etc., então peçolhe que deixe de acreditar nisso. Poderia começar sua reeducação com Pierre Bourdieu.” (1981, p. 193). 254 BENJAMIN, 1989, p. 109. 253 92 articulação entre o “novo” e o “antigo”, 255 forjando, inclusive, a moralidade da população. Todavia, por meio dessa diversidade podemos perceber conflitos sociais diversos, como greves, perseguições políticas e religiosas, e até mesmo a difusão de conflitos materializados em violências físicas e simbólicas.256 Dessa forma, a experiência da modernidade em Belo Horizonte foi um processo marcado tanto pelos choques, quanto pela partilha de valores e sensibilidades no seio da comunidade e da família. Nos processos de transformação da relação entre as esferas pública e privada “o redimensionamento da esfera social e a consequente definição de espaço público foram caracterizados pela substituição da ação em favor do comportamento, baseado em regras da sociedade que visavam abolir as ações espontâneas dos homens, ou a sua espontaneidade”.257 Essa hipótese pode ser corroborada pelas preocupações policiais com a moralização do espaço público, observadas neste capítulo. No entanto, compreendo que o mundo do privado teria invadido o mundo do público não de forma a destruir a ética, mas justamente por meio dela, possibilitando a permanência de diferentes modos de viver no espaço público e promovendo tensões diversas entre os sujeitos envolvidos. Por meio da defesa da moralidade, que de privada tornou-se pública, é que o espaço público, em Belo Horizonte, pôde ser invadido do mundo do privado.258 Assim, se o acolhimento das “ordens da polícia de costumes” não acontecia de prontidão ou de comum acordo, isso se dava não somente, ou não exatamente, por estratégias ou táticas formuladas pelos sujeitos. Antes, essas atitudes representam o conflito entre, no mínimo, duas maneiras de se internalizar comportamentos morais, entre diferentes realidades de socialização e incorporação de esquemas de percepção. Nesse sentido, se por um lado havia, por parte da polícia de costumes, uma luta pela defesa de uma “moralidade”, que se queria universal, havia, por outro lado, uma luta pela legitimidade da conservação de determinados comportamentos, por parte de mulheres envolvidas com o meretrício. Dito de 255 ANDRADE, 2004. Os trabalhos de GUIMARÃES (1991), ANDRADE (1987) e OLIVEIRA (2011), exploram essas tensões existentes na formação sociocultural da cidade. 257 OLIVEIRA, 2011, p. 3. O autor retoma nesta afirmação uma discussão elaborada por Hanna Arendt. 258 Richard Sennett (1998, p. 224), comentando sobre as relações entre público e privado e as tensões que permeiam as regras dessas relações, argumentou que “as relações humanas no mundo público se formaram de acordo com as mesmas regras que determinaram as relações dentro da família. Essas regras faziam com que pequenos e cambiantes detalhes da personalidade se tornassem símbolos; estes deveriam dizer tudo a respeito do caráter de uma pessoa; mas os dados para esses símbolos estavam sempre saindo de foco ou desaparecendo.” 256 93 outra maneira, não apenas as meretrizes, mas também os guardas-civis precisaram adaptar-se e realizar um “ajustamento ao mundo”, guiando-se tanto pelos valores específicos de suas posições sociais, quanto pelas regras, socialmente construídas, dos grupos de sociabilidade. Valores e regras incorporados por suas experiências passadas e que informavam suas percepções e suas ações, como no caso a seguir. PRISÃO MOVIMENTADA NA RUA S. PAULO Na manhã de ontem, verificou-se um grande escândalo na rua São Paulo. Três guardas-civis de plantão naquela via pública, ao prenderem uma mundana que se portava inconvenientemente, fizeram-no com tanta inabilidade que provocaram violenta reação por parte dela e consequente alarme na vizinhança. Foi necessário o carro-forte da polícia para conduzir Beatriz, tal o nome da diva, para o xadrez do 2º distrito, onde entrou a muito custo e com ensurdecedor alarido.259 Assim, pode-se entender a leitura dos conflitos entre guardas-civis e meretrizes tanto como um processo de ajustamento de realidades distintas a uma ordem social mais ampla, quanto como uma luta entre diferentes posições e projetos de sociedade. Essa hipótese pode ser sustentada, também, pelos casos narrados pelos jornais, que anunciam, além das inabilidades em conduzir casos de atentados, alguns exageros das condutas dos guardas-civis. AS “ORDES” Cumprindo as obstrusas (sic) ordens do dr. Edgard Franzen de Lima, delegado de Costumes e Jogos, o guarda civil n. 191, prendeu ilegalmente e conduziu ao xadrez do 2º distrito, ontem , às 18,15 horas, a nacional Sebastiana Campos, por se achar esta, calmamente, debruçada no peitoril da janela do seu quarto, na pensão em que reside, à rua Guaicurus.260 O caso acima, especificamente, dá indícios de arbitrariedades cometidas em nome da defesa das prescrições da Delegacia de Costumes, indicando a posição do redator frente a esse caso. Ao noticiar a prisão como uma irregularidade, o redator indicou que a simples disposição corporal na janela não configuraria atentado à moralidade, tampouco desrespeito às ordenações da delegacia. Essa nota é indicativa, também, da complexidade do processo de efetivação do policiamento dos costumes, desenvolvido em meio a uma rede de sociabilidade envolvida por tensões, solidariedade e relações de força. Enquanto uns se excediam ao realizar prisões, outros não as efetuavam, mas havia, de maneira geral, um desejo disseminado entre os guardas de se cumprir as prescrições da 259 260 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 30/05/1929, p.6, grifos meus. “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 22/09/1928, p.6, grifos meus. 94 Delegacia de Costumes. Essa disseminação e o aumento do número de prisões, entre 1928 e 1929, envolvendo “atentados contra a moralidade” e “descumprimento” daquelas prescrições, como explicitado na seção anterior, são indícios de uma intensificada ação do policiamento do meretrício. Indício, também, de que os guardas-civis se puseram a efetuar prisões e abordagens, baseados em uma ordem administrativa que se apoiava, de certa forma, na autoridade do presidente do Estado. É plausível afirmar, nesse sentido, que o projeto de educação e transformação do comportamento corporal e moral das meretrizes tenha sido importante nas relações de trabalho dos guardas-civis que, efetuando de bom grado seus serviços, poderiam se mostrar como exímios defensores da moral. QUE FÚRIA!... O diabo se encarnou ontem na pele da mundana Alice de Oliveira. Impossível que ela, sem o poderoso do auxílio do gênio do mal, pudesse ter praticado as diabruras que praticou. O pobre guarda n. 229, Newton Ramos,261 se viu às voltas com ela, pela simples razão de querer cumprir à risca as rigorosas ordens do dr. Edgard Lima. Por diversas vezes o policial avisou à mundana ser proibida a permanência no portão da sua casa mas, esta ao invés de atende-lo, mofava do policial e se trancafiava no seu quarto, logo que o mesmo a perseguia. Afinal o 229 resolveu-se a chamar em seu auxílio os colegas de n. 293 e 370, que se viram em maus lençóis para conter a recalcitrante mulher que, investiu qual uma fera contra os mantenedores da ordem, a socos e pontapés. A muito custo foi conduzida para a delegacia do 2º distrito onde se verificou ter 370 recebido diversas escoriações no ventre e nas mãos.262 A posição do redator, nessas narrativas, aos poucos, passou a ter lugar importante nas notícias relacionadas às ocorrências policiais, julgando os casos, as ações policiais e detalhando os fatos com sensacionalismo. No caso a seguir, apresentado na íntegra, um repórter se coloca pela defesa tanto de uma conduta policial mais reflexiva e mais prudente, como dos direitos individuais de liberdade de circulação das meretrizes, desde que em consonância com a moralidade. Mas, além disso, havia também uma tensão que envolvia o cumprimento dos dispositivos policiais em relação ao comportamento do meretrício. Essa tensão, experimentada pelos guardas, delegados e, mesmo, pelos repórteres, é mais um indício de que o projeto de educação moral das meretrizes passou por processos de prisões intensas, de apoio social e também de releituras, de críticas e de revisão das atitudes policiais. 261 É interessante notar que as notícias, raramente traziam os nomes dos guardas-civis. Esse sinal pode indicar tanto para um desconhecimento dos nomes desses guardas, como para a incorporação de uma identidade policial, por parte dos guardas ou mesmo da sociedade civil. Neste sentido, a identificação burocrática passava a denominar os sujeitos que atuavam na Guarda Civil. 262 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 17/11/1928, p. 6, grifos meus. 95 ZELO EM DEMASIA A proibição da polícia, referente ao combate ao mau hábito das mulheres da vida alegre, de ficarem de dia ou de noite, nas janelas, alpendres ou portões de suas residências, conversando com seus admiradores, foi, sem dúvida, excelente, contribuindo, não pouco para moralizar certas das nossas vias públicas. Essa medida saneadora, todavia está tomando presentemente, um caráter odioso, devido a ignorância e inabilidade de alguns policiais, que, sem a menor reflexão, prudência e correção necessárias, entenderam de cercear o legítimo direito de que gozam essas infelizes, de fazerem por alguns minutos, na rua, recomendações à empregadas cumprimentar mais calorosamente uma conhecida, ou entreterem-se a olhar nas ruas comerciais, os objetos expostos nas vitrines... Ontem, mais um caso típico desse zelo em demasia, a que mesmo se poderia dar o nome de idiotice, verificou-se na rua S. Paulo, com uma conhecida dona de pensão, Petronilha Fernandes, que ao descer do automóvel em que acabava de dar um passeio, por demorar-se ligeiramente em conversa com o “chofer” do mesmo a quem dava instruções, para uma excursão marcada para hoje, foi “in continenti”, presa pelo “inteligente” guarda-civil n. 341, de plantão no local. O desastrado “mantenedor da ordem” sentiu-se com certeza escandalizado com o obsceno fato, que representava não só uma desobediência caracterizada à Policia, como um desrespeito à sua própria autoridade! Depois de praticar esse gesto de prepotência, contra uma mulher indefesa, deu o 341, todas as providências inclusive a de requisitar o auxilio do seu colega de n. 556 para a condução da criminosa ao xadrez do 2º distrito. Aí chegados, lavrou o homenzinho laboriosamente uma confusa “parte”, onde se casavam em tocante harmonia, as mais chocantes “batatas”, e a mais chocante injustiça. O fato felizmente, foi resolvido corretamente pelo dr. Miguel Gentil, delegado daquela circunscrição policial, que, atendendo a nenhuma culpa da acusada no “gravíssimo” delito, mandou-a em paz.263 Esses exemplos auxiliam a firmar a hipótese de que o processo de educação moral do meretrício foi perpassado por uma dinâmica de ajustamentos e conflitos sociais que dizem respeito a diferentes formas de percepção de mundo. Esse movimento de “acomodações” explica, em parte, a ocorrência de diferentes reações às “admoestações”, às “ordens do regulamento” da Delegacia de Costumes, aos “conselhos” dos guardas-civis, às prisões e às diferentes habilidades dos guardas-civis para conduzir as situações que envolviam a “defesa da moralidade pública”. É possível, agora, afirmar com maior segurança que o policiamento do meretrício, composto pelas relações travadas entre guardas-civis, meretrizes e outros sujeitos, conformou-se como um processo educativo para ambas as partes. Essa dinâmica, em que se destacam concepções de educação, como as práticas de encarceramento, as relações 263 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 01/09/1928, p.6, grifos meus. 96 interpessoais entre guardas e meretrizes e as admoestações dos comportamentos dessas mulheres, compõe o grosso do processo educativo do policiamento da moralidade na cidade de Belo Horizonte. Mas, no policiamento do meretrício, não foi só disso que os guardas-civis e os investigadores especializados da Delegacia de Costumes se ocuparam. Outras questões, que envolveram homens e mulheres, foram importantes na relação entre a instituição policial e o meretrício. 3.4 polícia de costumes e os homens (e, novamente, as mulheres) Além de um investimento no policiamento dos comportamentos das meretrizes e de suas ações no espaço urbano, a Delegacia de Costumes teve uma participação ampla no projeto de “reorganização” da prática do meretrício. Havia outras formas de interação entre a delegacia e as meretrizes, bem como um investimento da delegacia na vigilância e policiamento dos comportamentos masculinos, contribuindo com a difusão das prescrições sobre os comportamentos morais para a sociedade, como um todo. Para além de uma relação puramente repressora e punitiva, a Delegacia de Costumes serviu como um ponto de apoio para as meretrizes, como uma forma possível, dentre outras, de se buscar proteção e segurança para suas atividades cotidianas e de ofício. Foram encontrados alguns casos em que as meretrizes pediram proteção ou algum tipo de solução às delegacias, entre elas a de Costumes. O que sugere que, ao menos em casos extremos, a possibilidade de se procurar as autoridades policiais para resolução de conflitos era conhecida pelas meretrizes e, além disso, concretizada. UM CASO “ALEGRE” Reclamou providências ao sr. Edgard Franzen de Lima, delegado de Costumes e Jogos, a mundana Maria Ephygenia, que se disse vítima de horríveis maus tratos por parte do respectivo “souteneur”. Adiantou a infeliz, que, seu carrasco, apesar de preto – ela é branca – é extremamente ciumento, castigando ao menor “deslize”. A autoridade invocada horas depois de receber a presente queixa, prendeu o acusado, “ajeitando-o” imediatamente. 264 A notícia evidencia, de maneira interessante, o caso de exploração por parte de um “proxeneta”, tradução literal do termo francês souteneur. Primeiro por representá-lo como negro audacioso, que apesar de sua condição étnica sentia-se no direito de ser ciumento, castigando sua “protegida”. Mas além dessa clara evidência de diferenciação racial, que perpassa algumas narrativas policiais publicadas nos jornais no período pesquisado, o acusado 264 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 22/03/1930 p. 6, grifos meus. 97 não foi indiciado num caso de lenocínio e, sim, ao que tudo indica, num caso de maus tratos e ofensas físicas. Contudo, independentemente dos motivos alegados para a prisão, o interessante é que esse caso indica que a relação entre a instituição policial e as meretrizes não era de pura violência simbólica ou física, mas também de garantia de direitos dessas mulheres. Não é o caso de se dizer que elas lutavam pelo seu direito constitucional de forma consciente. Mas podemos entender essas ações como parte do processo de formação da cidadania, de adequação dos direitos constitucionais.265 Outros indícios de que a Delegacia de Costumes funcionava como ponto de apoio e proteção das meretrizes e como da garantia da ordem moral nos espaços em que a prostituição se desenvolvia foram encontrados no período pesquisado, com ênfase para o intervalo entre 1928 e 1931. Essa proteção se dava justamente na “defesa da moral”, muitas vezes incorporada por guardas-civis e também pelos investigadores especializados da delegacia. Num desses casos o homem detido havia desrespeitado uma “mundana”, sendo por isso preso. LAMENTÁVEL Acha-se recolhido ao xadrez do 2º distrito, o nacional José dos Reis. Originou sua prisão, o fato de haver o detido, desrespeitado uma mundana, à esquina das ruas Guaicurus com S. Paulo. Agiu como representante da polícia, no caso, o vigilante 449, severo defensor da moral.266 As especificidades desses casos indicam, também, que a defesa da moral constituiu-se como uma percepção elaborada na experiência dos policiais com o cotidiano urbano, em suas funções de policiamento da cidade. É claro que situações como essas poderiam ser compreendidas a partir das relações interpessoais entre os vigilantes e a mulheres “desrespeitadas”, como fica explicitado no caso em que o guarda 315 “salvou” a mundana Maria Candida de ser “enganada” por “João Manoel”. 267 Ou ainda no seguinte caso. UM GUARDA CIVIL COMO HÁ TANTOS... “Boa noite”? – disse o guarda n. 122, ali pelas 21,30 horas de ontem a dois rapazes que conversavam na varanda de uma pensão alegre à rua Guaicurus. “Bom dia”! – responderam eles, por brincadeira. 265 Schettini (2006) discute sobre o processo de construção de cidadania das prostitutas no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas republicanas, apontando as astúcias e estratégias de recorrer à justiça para garantia de seus direitos, como o de ocupação do centro da cidade. O debate é iniciado pela impetração de habeas corpus no ano de 1896, para garantir esses direitos básicos que estavam sendo ameaçados por um delegado. 266 “O Estado de Minas”, 07/01/1930, p. 6, grifos meus. 267 “O Estado de Minas”, “Um minuto de angústia”, 03/11/1929, p. 12. 98 Resultado: “xadrez” para Luiz Zulle e Guilherme Juvenal, os dois infelizes que se permitiram o absurdo de caçoarem, embora de leve, com um policial!...268 Mas, apesar de fatores interpessoais contribuírem, certamente, para o desencadeamento das situações aqui apresentadas, insisto na possibilidade de se compreender esses casos como um indício das relações dos guardas-civis com a moralidade que se pretendia manter a salvo. Assim, como visto nos conflitos envolvendo escândalos com as meretrizes apresentados anteriormente, nos casos de prisão e repressão às imoralidades masculinas, também houve uma preocupação policial em “proteger a moralidade” como um todo. Esse princípio de proteção esteve presente no cotidiano dos responsáveis pelo policiamento da capital e perpassava suas ações diante dos diferentes conflitos urbanos daquele momento. As narrativas de ocorrências policiais veiculadas na imprensa diária indicam que havia um intenso policiamento noturno em bares, restaurantes e cabarés, que, além de sua vigilância geral, buscava manter e proteger a ordem e moralidade pública. Pedro Nava, em suas memórias, também anunciou a presença frequente de investigadores, os “secretas”, nos cabarés da cidade.269 A presença dos investigadores nesses estabelecimentos permite desenvolver duas maneiras, complementares, de se compreender o policiamento moral da cidade. É plausível que os policiais, por terem contato direto com as mulheres dos cabarés, local em que se davam espetáculos musicais e dançantes, tenham usado suas relações como indicadores para guiar suas decisões em conflitos nos quais as meretrizes estivessem envolvidas. Mas, por outro lado, essa relação intensa dos policiais com as diferentes práticas de diversão noturna também pode ter contribuído na formação de uma sensibilidade a respeito da defesa da ordem moral na cidade. Um caso de “imoralidade” num cabaré pode servir como exemplo disso. SURURÚ NA RUA GUAICURUS Nas primeiras horas de ontem, a rua Guaicurus foi revolucionada com a gritaria infernal de algumas nacionais, gritaria esta acompanhada por insistentes apitos dos guardas. Um verdadeiro pandemônio. De todos os cantos corria gente para o local, julgando tratar-se de alguma coisa grave. Afinal, um dos nossos repórteres, presentes no local, conseguiu com grande dificuldade, inteirar-se do havido em todos os seus pormenores. UMA LUTA INGLÓRIA 268 269 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas” 01/02/1929, p.6, grifos meus. NAVA, 1985, p. 129. 99 Em plena rua trocavam urros com verdadeira fúria, um popular e um vigilante. Parecia que ambos se odiavam mortalmente tal a raiva com que procuravam se fazer mal. Durou algum tempo o conflito. Enfim, dois guardas chegaram espavoridos de tanto correr. Claro o paisano foi logo subjugado, seguindo pouco depois na “viúva alegre”, para a delegacia do 2º distrito. NA POLÍCIA Na polícia foi tudo esclarecido. É que, o indivíduo Joaquim Pereira dos Santos, tendo encontrado a nacional Hilda Brandão à porta de uma pensão alegre, à rua Guaicurus, depois de com ela conversar, se pusera a atentar contra a moral pública, portando-se inconvenientemente com a mundana. O 343, vira a coisa e zangara-se. Daí , ante a reação do sr. Joaquim, originara-se o “rolo”, com as consequências já sabida. EPÍLOGO O desordeiro depois de sofrer forte admoestação do delegado, foi recolhido ao xadrez daquela delegacia, onde permanecerá por algum tempo.270 O guarda-civil n. 343 se prontificou a repreender o ato de atentado contra a moralidade pública, o que indica a difusão de uma sensibilidade para um policiamento moral. Contudo, a “zanga” com o fato de Joaquim se portar “inconvenientemente” com a mundana teria gerado uma reação violenta. A descrição da raiva com a qual os dois indivíduos mantiveram sua luta corporal indica, assim, o vínculo emocional do guarda com o desacato físico e moral que sofrera. É indício de sua disposição emocional diante das situações que enfrentava em seu trabalho de policiamento da moral. Em outra narrativa, o guarda civil 196 interveio em um espancamento de uma meretriz. CONFLITO NO CAPITOLIO O cabaré “Capitólio” foi ontem pela madrugada, cenário de um conflito entre três soldados que se achavam a paisana, e a mundana Helena Gonçalves Ribeiro. Um dos policiais, de nome Napoleão Gomes, espancou barbaramente a Helena, que ficou com algumas escoriações pelo corpo. O guarda civil 196, de serviço nas imediações, atraindo pelo barulho, compareceu imediatamente, pondo fim ao conflito e prendendo Napoleão, que não conseguiu como seus companheiros, escapar em tempo. Embora não tivesse nada com o caso, o carregador número [4], João Machado, ficou ligeiramente contundido. O soldado culpado, foi em seguida conduzido ao 2º distrito, e ali autuado em flagrante delito sendo em seguida recolhido ao xadrez de sua corporação.271 270 271 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 09/01/1930 p.6, grifos meus. “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 16/05/1929, p.6, grifos meus. 100 A presença dos “secretas” nos cabarés, como fica evidenciado nesta nota, não se devia simplesmente à vigilância. Pelos menos para alguns soldados da Força Pública, era um momento de diversão, descontração e fruição dos prazeres noturnos. Mas há uma recorrência de casos em que essas diversões transformaram-se em conflitos violentos, em razão de disputas por uma mesma mulher. Marina Silva encontrou casos interessantes de sindicâncias abertas na Guarda Civil para investigar os comportamentos imorais dos guardas-civis. Segundo ela, existia também uma grande preocupação com o comportamento dos guardas que por muitas vezes foram autores de infrações contra as ―normas da moral e dos bons costumes. Os casos de envolvimento com bebida eram frequentes. Não raro, a fiscalização da Guarda Civil instaurava sindicâncias para apurar o envolvimento de seus homens com a bebida ou por largarem seus postos para frequentar botequins. 272 A natureza das fontes mobilizadas para esse estudo não permite observar com mais vagar esses processos de “aprendizado” de uma sensibilidade pautada em preceitos morais pelos guardas-civis. Mas, como já indiquei, o próprio cotidiano foi um fator importante nessa formação. Há um caso muito interessante de um suposto desordeiro, “imoral”, que teria se tornado agente policial. “Matozinhos Telles” foi em novembro de 1928, juntamente om Geraldo Queiroz e Maria das Dôres, porque “praticavam publicamente atos ofensivos à moral”.273 No início de dezembro daquele mesmo ano, “Mattozinhos Telles de Menezes” foi preso “por estar em atitude pouco decorosa com a nacional Maria da Conceição Pereira”. 274 Já no dia 23 de dezembro, também de 1928, foi publicada a seguinte notícia. CIÚMES – O guarda n. 315, Matosinhos Telles, estava anteontem de serviço na rua Guaicurus, à noite, no cruzamento com Rio de Janeiro. Às 20, 30 horas o guarda foi procurado pelo sr. Alfredo Miguel, que se mostrava agitadíssimo e afirmava ter se livrado poucos minutos antes de morrer queimado. Rosa Pereira de Moura, por questões de ciúmes, tentava atear-lhe fogo à aba do paletó: exibia, como prova, a aba do paletó cinza, que efetivamente estava meio queimada. O guarda dirigiu-se, com o citado indivíduo, para a casa da culpada, rua Guaicurus. Não a encontrou, porém: tinha fugido. O guarda foi afinal, prender Rosa numa casa vizinha, levando-a à delegacia do 2º distrito, onde ficou detida.275 Apesar da diferença na grafia utilizada pelo jornal, não creio que esses registros tratem homônimos, mas, sim, da mesma pessoa. O nome de Matozinhos apareceu outras vezes, no 272 SILVA, 2009, p. 65. “Diário de Minas”, “Policiais”, 19/11/1928, p. 3. 274 “Diário de Minas”, “Policiais”, 07/12/1928, p. 3. 275 “Diário de Minas”, “Policiais”, 23/12/1928, p. 3, grifos meus. 273 101 período pesquisado, como guarda civil e, posteriormente, como investigador da Delegacia de Vigilância e Capturas em 1930.276 Mas o curioso, é que em maio de 1928, meses antes da primeira prisão anunciada nos jornais, ele tenha sido caracterizado como guarda civil n. 440, num relato de tentativa de suicídio de uma mulher residente em uma pensão a rua Guaicurus. (...) Ontem, porque Alípio de tal, seu amante, afirmasse, como na canção, que “não queria saber mais dela”, Maria, num gesto de quinto ato de drama, ingeriu respeitável dose de permanganato. Felizmente, a sua companheira Joanna de Paula, que com ela reside numa pensão à rua Guaicurus, deu alarme a tempo, chamando o guarda civil Matozinhos Telles, número 440, o qual requisitou a Assistência Pública, que levou Maria à Santa Casa, onde ela foi posta fora de perigo.277 O caso de Matozinhos Telles é interessante, na medida em que permite refinar o argumento da importância da sociabilidade travada entre guardas-civis, meretrizes e soldados da Força Pública para o policiamento moral do meretrício. É interessante notar que, mesmo após suas prisões por “desrespeito à moralidade”, há registros de sua atuação como guardacivil. É claro que só podemos especular sobre um possível “aprendizado” vivenciado por Matozinhos, mas é importante ressaltar que ele tenha permanecido como guarda-civil e se tornado agente de uma delegacia especializada, mesmo com suas experiências de “imoralidades". É possível que seu retorno, ou sua permanência, após um afastamento, tenha sido reforçado pela sua experiência com a vida noturna da capital, o que deve ter contribuído para produção de um conhecimento “prático” sobre o meretrício. Outro interessante investimento policial diz respeito às prisões de homens que se encontravam em situações contrárias às prescrições da Delegacia de Costumes. Para além dos casos em que os guardas-civis faziam um policiamento da moralidade em geral, as transgressões da portaria prescritiva da delegacia, publicada no início de 1928, também foram entendidas como extensivas aos comportamentos masculinos. Desrespeitou as ordens da Polícia de Costumes Benjamin Freitas é um bom homem, quando não está sob a influência do álcool. Quando, porém, está com seu sistema nervoso alterado pelos vapores de bebidas fortes, é um “caso sério”: torna-se rixento, desobediente. Ontem, Benjamin depois de ter ingerido forte dose de parati, como de costume, 276 Conferir “Diário de Minas”, 17/01/1929, p.3 e 26/07/1929, p.3 “O Estado de Minas”, 09/11/1929, p. 6 e 23/03/1930, p. 8. 277 “Diário de Minas”, Notas policiais – “Desprezada pelo amante uma mulher tenta contra a própria vida”, 22/05/1928, p.8, grifos meus. 102 ficou perturbado, e foi conversar com algumas mundanas, não obstante saber que tal coisa não é permitida pela polícia de costume. O guarda n. 191, que é um cumpridor das ordens recebidas, prendeu o pau d'água que foi para o xadrez do 2º distrito, onde na falta de representantes do belo sexo, conversará sozinho ou com as grades do seu cubículo.278 É plausível afirmar que as investidas policiais na repressão de homens, que transgrediam determinados códigos morais ou prescrições da Delegacia de Costumes, não possuíam o mesmo significado das prescrições para os comportamentos das mulheres no espaço público. Contudo, o exemplo acima permite observar que os guardas-civis não mantiveram uma relação de passividade com as prescrições da delegacia, que eram diretamente direcionadas para as meretrizes e seus comportamentos, dando outros significados àquelas ordenações.279 Assim, alguns guardas teriam compreendido que essas ordens diziam respeito, ou se direcionavam, também, aos homens que, alcoolizados ou não, iniciavam alguma confusão, uma conversa mais animada, ou ainda encontravam-se em “atos libidinosos” com uma ou mais mulheres no espaço público ou em regiões do meretrício. A Odisseia Napoleônica No “cabaré” Capitólio, à Avenida do Comércio foi preso ontem às 24 h, o sr. Napoleão Nunes da Silva, por querer dançar a força (à Napoleão) com uma da muitas mundanas que ali se achavam. Efetuou a prisão o guarda n. 43 de plantão no local, que conduziu o detido e, para aproveitar a viagem, também a nacional Levinda Ferreira, (embriaguez), até a Polícia Central, onde o explosivo par depois de convenientemente admoestado foi posto em liberdade.280 O caso de Napoleão Nunes diz respeito ao policiamento tanto dos comportamentos dos homens quanto da ordem moral dos espaços de diversões, em que se desenvolvia o meretrício. Os excessos masculinos nesses espaços, relacionados, ou não, à violência, foram alvos de uma vigilância por parte de policiais. No caso em questão, há também o indício da disseminação da admoestação como uma das possibilidades de resolução desses conflitos. É interessante notar, ainda, que, nesses últimos casos, o álcool teve um papel importante para o desencadeamento de uma “ruptura” com a moralidade. O mesmo pode ser observado em outros casos, como no de João Francisco de Paula, que “razoavelmente embriagado, desrespeitava, publicamente, a ordem e a moral, proferindo palavras ininteligíveis e fazendo gestos e trejeitos pouco conducentes com as normas usuais de 278 O Estado de Minas, “Na polícia e nas ruas”, 01/12/1928, p. 6, grifos meus. Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 89. 280 “O Estado de Minas”, 19/12/1928, p. 6, grifos meus. 279 103 educação”.281 Mas foram encontrados, também, casos peculiares de “atentados contra a moralidade”, como um sujeito que foi detido por investigadores da Delegacia de Costumes porque “com ares desabusados, procurava introduzir-se em uma casa de família”.282 E, ainda, o caso a seguir, sobre um vendedor de doces cujos “atos contra a moral” não foram esclarecidos pelo jornal. FALTA DE MORAL O vendedor de doces Ruy Marcolino, que comercia na Praça da Estação, foi detido ontem, pelos investigadores n. 81 e 254, por haver praticado atos contra a moral naquele logradouro público. O criminoso, depois de autuado foi recolhido ao xadrez da Polícia Central.283 Ora, pode-se afirmar, e com certa razão, que esses últimos casos não possuem relação com o policiamento do meretrício na capital. Entretanto, eles são apresentados para composição e refinamento da hipótese de que a questão da educação moral era um problema amplo e mobilizou várias instâncias policiais, não se restringindo aos investigadores da Delegacia de Costumes, mas se incorporando à prática dos guardas-civis. Ou seja, além da preocupação da Delegacia de Costumes com o policiamento moral específico dos sujeitos envolvidos com o meretrício, havia uma preocupação geral com a moralidade nos espaços da cidade, como argumentou Marina Costa e Silva em sua dissertação. Nesta seção, quis evidenciar que as prescrições da Delegacia de Costumes não foram direcionadas única e exclusivamente às meretrizes e, sim, que tinham caráter generalizante, relacional, pautadas nas relações entre homens e mulheres, mas ainda é preciso responder muitas questões. Uma delas é composta pela incerteza sobre a dimensão que esse projeto de educação moral tomou na vida de mulheres e homens. Tendo a compreender que, apesar do processo ter sido mais amplo do que se imaginava no início, não se pode desconsiderar que eram as mulheres quem estavam no centro do interesse da polícia. Elas tiveram papel de destaque, tanto no projeto inicial, elaborado por Edgard Franzen de Lima, como na prática de policiamento. Por outro lado, é significativo que os homens tenham se tornado uma preocupação para os guardas-civis, que observavam as “ordens” do delegado de costumes. Isso indica que os processos de constituição da prostituição como um problema moral e de elaboração de um “plano” para transformar os comportamentos das meretrizes, passou por 281 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas - Em nome da lei”, 15/01/1929, p. 6, grifos meus. “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas - Ousadia...”, 14/03/1930, p. 6. 283 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 07/06/1930, p.6, grifos meus. 282 104 impasses, tensões, questionamentos e modificações que se deram no cotidiano do policiamento. Outra questão envolve uma reflexão que espreita a categoria de gênero.284 Não é o caso de mobilizar a categoria de gênero para refazer toda a análise desse trabalho, mas de destacar que o processo abordado nesta dissertação possui uma relação com processos mais amplos, como a disseminação de uma educação moral e a constituição de “tipos” femininos. Segundo a historiografia que mobiliza a categoria “mulher”, houve uma preocupação no campo jurídico, desde o século XIX, com as diferenciações entre a “mulher honesta e desonesta”, “esposa e puta”, “honrada e desonrada”.285 Essa preocupação não ficou, entretanto, no campo jurídico, sendo incorporadas pelas representações e diferenciações sociais produzidas nos lares, espaços públicos e meios impressos. Durante o período estudado, Belo Horizonte vivenciou campanhas pela moralização dos espaços públicos, de forma ampla. Há um conjunto de narrativas veiculadas na cidade que estavam preocupadas com a “confusão dos sexos” e a proteção das “meninas” de família, enfatizando as diferenças entre “tipos” femininos.286 Nesse sentido, é preciso entender que a prostituição foi uma questão importante para os processos de formação de masculinidades e feminilidades, sendo um dos vetores da hierarquização social e moral dos diferentes “tipos” de mulheres e homens. Participando, assim, da formação subjetiva até mesmo daqueles que nunca se envolveram com a prostituição. Esse processo se relaciona com uma das preocupações de Joan Scott, que passou a enfrentar o problema de “como hierarquias como as de gênero são construídas, legitimadas", enfatizando os processos pelos quais se deram as diferenciações dos comportamentos masculinos e femininos.287 Mas é preciso dizer que essas diferenciações e hierarquias não dizem respeito, simplesmente, à relação entre homens e mulheres, mas nas diferenciações entre os masculinos e entre os femininos.288 Assim, apesar do jogo de classificação e diferenciação entre os sexos penderem para a naturalização das diferenças entre os gêneros, entre as formas de ser 284 Para Scott (1995) o gênero é uma categoria construída de forma relacional, ou seja, nas relações sociais, políticas e culturais travadas entre homens e mulheres e diz respeito às diferenças sexuais que se estabelecem historicamente. 285 Os pares de categorias mencionados foram trabalhados por RAGO, 1991 e CAUFIELD, 2000. 286 “Diário de Minas”, “Comentários”, 30/08/1927, p. 3. Revista Forense, 1927, p. 447. 287 SCOTT, 1995, p. 16. 288 Um exemplo disso é o trabalho de Cleci Favaro (2002), que observou a constituição de hierarquias na relação entre sogra e nora na região de colônia italiana no Rio Grande do Sul, pautadas nos significados que “ser feminina” encontravam nas relações de poder travadas entre uma e outra. 105 “masculino” e “feminino”, há um caráter processual dessa diferenciação. As diferenças morais entre a meretriz e a mulher honesta, o homem honesto e o imoral, foram produzidas, também, mas não só, na experiência do policiamento, com as práticas de prisão e admoestação, e no interior das narrativas policiais elaboradas pelos repórteres dos jornais. Nessa perspectiva, entendo que os comportamentos corporais das meretrizes foram tomados como “símbolos culturais” que levaram à produção de “conceitos normativos”, capazes de interferir nas “divisões sociais” e nas organizações “subjetivas” dos sujeitos da cidade de Belo Horizonte.289 Homens e mulheres participaram desse jogo de diferenciação, que envolvia uma complexa relação entre posições sociais, econômicas e simbólicas de cada um dos envolvidos nesse processo de definição dos comportamentos morais. Os dados sobre o policiamento do meretrício, produzidos a partir da leitura dos jornais, auxiliam a compreender melhor as formas pelas quais foram percebidas as diferenças entre os sexos, numa perspectiva da educação das sensibilidades, dos comportamentos e dos movimentos corporais de mulheres e homens, no espaço público de Belo Horizonte. Os homens, ao serem repreendidos em relação às imoralidades no espaço urbano, encontravam-se em situações de consumo excessivo de álcool, muitas vezes somada à violência física, em casos de violências sexuais, bem como de insinuações e atitudes libidinosas e imorais no espaço público. Já as mulheres, como visto, além dos escândalos públicos, das confusões advindas do consumo de álcool, dos insultos verbais, de agressões físicas e dos “atentados contra a moralidade”, tiveram o próprio andar, o tom da voz, os olhares, os gestos dos braços e mãos, os seus cheiros e suas formas, ou seja, seus comportamentos corporais somados aos critérios simbólicos da ação policial. 3.5 o doutor Edgard Franzen de Lima e suas políticas de moralização do espaço público Toda essa dinâmica de diferenciação nos tratamentos dispensados a homens e mulheres, numa cruzada pela educação moral, passou por uma luta de legitimação. Destaco a figura de Edgard Franzen de Lima, delegado de Costumes, que, ora aclamado, ora severamente criticado, foi o difusor de boa parte dos princípios e dos projetos de moralização no período pesquisado. Para entender um pouco mais sobre seu papel nesse processo, foi preciso observar mais de perto suas atividades de policiamento da moral. A figura do delegado Edgard Franzen de Lima merece uma atenção mais cuidadosa na análise do policiamento do meretrício, uma vez que ele se destacou desde 1920, como anunciado 289 SCOTT, 1995 p 86-87. 106 anteriormente, com questões policiais envolvendo o meretrício na cidade. Analiso nesta seção as suas ações, seus projetos e sua relação com a imprensa no que toca à moralização do espaço urbano, bem como as posições contrárias e favoráveis ao seu trabalho por parte dos redatores dos jornais, ao longo do período consultado. Como visto no capítulo anterior, Edgard, assim que assumiu como delegado de Costumes, realizou uma viagem a São Paulo, procurando inteirar-se dos trabalhos da delegacia paulista. Além disso, já apresentei seu envolvimento com os projetos de estruturação teórica da Delegacia de Costumes. Mas como teria sido sua atuação mais concreta no policiamento moral da cidade e, especificamente, do meretrício, para além das prescrições lançadas em sua portaria de 1928? Os jornais construíram uma imagem bastante peculiar de Edgard Franzen de Lima. Numa mirada do conjunto, Edgard é tomado tanto como um moralista eficiente, uma autoridade de que a cidade precisava para combater os excessos e as imoralidades crescentes, quanto como uma figura autoritária que, de tanta preocupação com o comportamento moral dos habitantes, acabava se excedendo no exercício de sua autoridade. Circulando pela cidade com sua motocicleta, a caminho do trabalho, de casa ou de alguma diligência, 290 o delegado acabou sintetizando a problemática da educação moral na cidade, evidenciada pelas páginas dos jornais: ao mesmo tempo vista como necessária, era preciso cautela para que não se ultrapassasse a fronteira dos direitos individuais. Cumprindo as obrigações do cargo de delegado de costumes, sua atuação no policiamento moral na cidade se deu em diferentes níveis. Assim, ele proibiu acesso de menores a casas de diversões, incluindo cinemas, o que provocou um debate mais amplo sobre essa questão nos jornais e no judiciário; proibiu encontros amorosos em praças e no parque municipal; criou sanções a cabarés e outras casas de diversões, caso descumprissem os preceitos de sua delegacia; investigou e se empenhou em processar alguns casos de lenocínio; e até chegou a proibir o acesso de repórteres às delegacias da cidade quando assumiu, interinamente, o cargo de Chefe do Serviço de Investigações. Em uma notícia de primeira página, publicada em 1928, há indícios da ambiguidade que a figura do delegado carregava. Policiando a moda Nós temos em Belo Horizonte, um delegado de Costumes com um critério do pudor publico e da moralidade coletiva levado ao fanatismo mais intransigente. Dizem que essa autoridade, no afã religioso de zelar pela pudicícia dos olhos populares, chega até a regular o uso das vestimentas internas de certa classe de mulheres... Mas, por mais que 290 “O Estado de Minas”, “Na polícia e nas ruas”, 23/02/1929, p. 6. 107 nos queixemos (queixar não, ninguém se queixa; mas todo mundo se...) do delegado que nos rege a moral e o bom costume por uma forma tão intransigente, devemos nos dar por contentes (principalmente as mulheres) diante da notícia que nos chegou de Lisboa, pela agência Havas, de que a polícia não só proibiu que as mulheres usassem cabelo cortado, como regulamentar o cumprimento das tranças. Ora, vejam só os leitores. Nem no regime de ditadura mussolinica, podia-se conceber tal disparate: a polícia regulamentando a moda, e justamente num ponto puramente estético, que não dizia com a moralidade pública. Tal ideia certamente não ocorreria nem ao nosso delegado de costumes, de ideia geralmente tão extravagantes... Felizmente, agora veio o desmentido àquele boato, que depunha gravemente contra o bom senso da polícia lisboeta e contra as liberdades públicas no atual regime português. Mas, só a ameaça que deu lugar ao boato do telegrama já é bastante para dar-nos , a nó s que vivemos cá deste lado do Atlântico, uma impressão de maior liberdade e de mais ampla autonomia, no que se relaciona com o corte de cabelos... Pelo menos nesse ponto...291 O narrador dessa nota traduziu, de forma engenhosa, uma curiosa contradição que o policiamento e a regulamentação dos costumes e da moralidade poderia carregar: ao mesmo tempo em que o policiamento moral se propunha como uma forma de libertação das depravações mundanas, em defesa da família, ele poderia intervir nas escolhas individuais mais triviais, de forma autoritária. É possível que o redator acreditasse realmente que Edgard não seria capaz de promover esse “disparate”, mesmo assumindo que ele tivesse “ideias geralmente tão extravagantes”, mas, de certa forma, essa nota servia como um posicionamento político sobre os limites da atuação da polícia nos costumes dos habitantes da capital. A moral, retomando a questão da experiência dos sujeitos em relação aos processos de transformações de valores, faz parte do terreno da “contradição”, sendo por isso, motivo de debates entre homens e mulheres.292 É a partir desse terreno da contradição que analiso a narrativa apresentada acima. Se era aceitável, e até mesmo aprovável, regulamentar a vestimenta das meretrizes em defesa do pudor e da moral pública, não o seria avançar suas “excentricidades” para as outras classes de mulheres, tampouco sobre outras liberdades mais gerais. Assim, usando da ironia, o narrador consegue tocar em um ponto importante do problema que se caracterizaria pelos excessos cometidos pelo delegado, em seu movimento por uma educação moral na cidade. Apresento na íntegra outro caso sobre as ações do delegado na sociedade e o desconforto de alguns repórteres com suas medidas “truculentas”. 291 292 “O Estado de Minas”, 26/10/1928, p. 1, grifos meus. THOMPSON, 1981, p. 194. 108 Um delegado que odeia a publicidade - Injustas restrições à reportagem O sr. Edgard Franzen de Lima é para todos uma autoridade arbitrária. São conhecidas as suas ordens e determinações ridículas, no sentido de constranger, deprimir e humilhar as infelizes mulheres que estão sob sua jurisdição. Também conhecidas são as violências que diariamente pratica, prendendo e conservando presos pobres indivíduos, sob qualquer pretexto, ou melhor, sem pretexto algum. Ainda ontem noticiamos que uma decaída foi presa pelo simples fato de estar, alta madrugada, no alpendre de sua casa de residência. Por isso mesmo, talvez, o sr. Edgard teme a imprensa, receia a luz da publicidade, pois cada ato seu que chega ao conhecimento do público provoca a mais justa revolta e desperta a mais merecida repulsa da gente sensata e boa. Daí determinar s. s., quando interinamente substituiu o dr. Alvaro Baptista, que os repórteres dos jornais tenham a entrada expressamente proibida nas salas das delegacias. Assim, por ordem ainda de s. s., somente podem ser divulgadas as notícias que passarem pelo “filtro” rigoroso de um subinspetor qualquer, nem sempre delicado e disposto a fornecer as notas que os repórteres reclamam. Ora, o sr. Secretário da Segurança Pública não pode permitir que assim se pratique, que subordinados seus criem obstáculos e dificuldades inúteis à imprensa bem orientada. Será que a polícia, a desoras, de portas fechadas, procura extorquir confissões e, de quando em quando (assim, mesmo agora, porque até há pouco era constantemente), aplica aos detentos o sistema de pancadaria que tem feito a fama e a reputação de alguns tenentes da Força Pública, e a glória de alguns bacharéis falidos ou incapazes de exercer “profissão” mais lícita? Ou será que o dr. Edgard receia que os repórteres encontrem no pleno exercício e arbitrariedades condenáveis? Seja como for, o dr. Bias Fortes saberá atenuar os efeitos da absurda ordem de seu delegado de... Costumes.293 Há nesse excerto uma enfática preocupação com os abusos contra os direitos individuais das pessoas, inclusive das meretrizes, o que significa que para o redator, ou redatores, as meretrizes não seriam criminosas em potencial e o fato de permanecer no alpendre de suas residências, por si só, não configuraria um atentado contra a moral. É claro que essas defesas tinham relação com as políticas editoriais dos jornais. No caso acima, percebe-se que a preocupação tinha um duplo sentido, uma vez que o direito à informação da imprensa estava sendo negado. De todo modo, é interessante o jornal veicular as arbitrariedades promovidas pelo policiamento do meretrício na cidade, enfatizando seu descontentamento com o projeto empreendido por Edgard, pois coloca em evidência o terreno da contradição, do debate público sobre valores morais. 293 “O Estado de Minas”, 12/09/1928, p. 1, grifos meus. 109 Esse descontentamento evidencia, também, que o projeto de moralização do meretrício, que visava reorganizá-lo e prescrever os comportamentos das meretrizes, esteve imerso em tensões desencadeadas na “experiência vivida” dos habitantes. As tensões desse processo de educação moral ficam explicitadas tanto pela reincidência das prisões e pelo aumento de casos envolvendo atentado contra a moralidade, quanto pelos questionamentos da imprensa sobre as ações truculentas do delegado. Uma discussão a respeito do lenocínio traz indícios interessantes da relação do delegado com o meretrício. Na documentação oficial da Secretaria de Segurança Pública foram encontrados poucos casos de lenocínio com inquéritos abertos entre 1926 e 1928. Edgard, em seu relatório sobre o ano de 1928, indica ter aberto um inquérito para apurar um caso de lenocínio naquele exercício.294 Em 1927, a delegacia do 2º distrito abriu três inquéritos de lenocínio 295 e, em 1926, foi apresentado ao Gabinete de Investigações e Captura um inquérito.296 Nos jornais, as notícias a esse respeito também foram escassas, mas foi possível encontrar alguns casos em que o delegado esteve envolvido com investigações sobre essa contravenção. Após sua posse, Edgard promoveu uma grande investigação sobre casos de “escravatura branca”, colocando-se diante de um debate nacional e internacional e integrando a capital mineira à rota do comércio internacional dos prazeres, movimentando a cidade e abrindo expectativas a respeito de uma solução enérgica do caso. A circulação dessa problemática nos jornais envolveu, em certa medida, a difusão de alguns conhecimentos científicos que perpassaram toda a discussão e ação promovida pelo delegado. Para além da análise das ações de Edgard, os jornais também incorporaram, de certa forma, representações científicas, jurídicas ou policiais, sobre o problema do chamado “tráfico de escravas brancas”, que supostamente comercializava garotas e mulheres do leste europeu para casamentos arranjados no Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires. 297 Foi descoberta em São Paulo, graças à polícia mineira, uma agência que vendia mocinhas bonitas a preços módicos: MERCADO DE MOÇAS... 294 Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 134. Relatório da SSA, 1928, p. 84. 296 Relatório da SSA, 1927, p. 13. 297 Sobre o debate a respeito das histórias de tráfico e suas implicações nas sociabilidades entre policiais e meretrizes no Rio de Janeiro republicano ver SCHETTINI (2006). Além disso, o trabalho de Kushnir (1996) apresenta uma discussão sobre as representações construídas a respeito do caftén e da “rede internacional de tráfico de mulheres”, questionando o caráter puramente criminoso do fenômeno de imigração de homens e mulheres advindos do leste europeu. 295 110 Haverá, nos dias de hoje, quem acredite na existência de um estabelecimento comercial, perfeitamente regulamentado, que se de[dique] exclusivamente ao tráfico de moças! [ilegível]sendo praticado, por [ilegível] incrível pareça, em plena Capital paulista, por uma agência teatral [...] Dispondo de numerosos representantes, essa agência, com promessas de empregos, tomava sob a sua guarda as filhas bonitas dos emigrantes incautos, e depois, praticando o mais repugnante lenocínio, vendia-as a baixo preço a homens sem moral. Nós, que destas colunas temos criticado com veemência certos atos do sr. dr. Edgard de Lima, delegado de Costumes, sentimo-nos, no entanto, à vontade ao lhe fazer justiça louvando a sua ação inteligente e eficaz no elucidamento desse caso de tão grande importância.298 O jornal fez circular a ideia corriqueira de que a prostituição era movida pela venda de mulheres, que eram tidas como passivas, como mercadorias vendidas aos “homens repugnantes”. É interessante notar o tom de crítica que o jornal faz a uma masculinidade que, imoralmente, contribuía para a “corrupção” dos costumes e das famílias, incorporando a defesa da “família” e da “honra sagrada” da mulher. Nesse caso, especificamente, Edgard se mostrou uma importante peça para o policiamento da cidade, uma vez que conseguiu resolver parte de um problema que alcançava foros internacionais. O “caso elucidado”, nos termos da notícia, foi uma investigação promovida pela Delegacia de Costumes a respeito da chegada em Belo Horizonte de duas dançarinas contratadas pelo “Palace Club”, cabaré de Olympia Garcia. Essas “moças”, supostamente, foram vítimas de José Romano, que as conduziu “enganosamente”, com “promessas” de um bom ordenado. As investigações levaram a Delegacia a uma agência de teatro que enviava mulheres para Belo Horizonte com intermediação de Romano, mas nada foi feito. Até que Edgard conseguiu uma declaração de Anna Birkis, “filha de um estoniano” que disse contar com 14 anos e ter procurado uma agência de empregos em São Paulo, coordenada por Romano e Anna Klauss, que a empregou como arrumadeira. Posteriormente ela teria sido entregue por eles a um vendedor de peles, que a “seduziu” e a forçou a acompanha-lo, “com o que se resignou indiferente ao seu destino”.299 A par dessas informações, Edgard entrou em contato com a Delegacia de Costumes de São Paulo, colocando, institucionalmente, a capital mineira na rota da prostituição nacional e internacional. O delegado paulista de posse desses esclarecimentos, prendeu Anna Klauss, que tudo confessou ficando então esclarecido tratar-se de um 298 299 “O Estado de Minas”, 16/09/1928, p.8, grifos meus. “O Estado de Minas”, 16/09/1928, p.8. 111 tráfico de moças, não sendo a agência teatral de José Romano, mais que uma casa de lenocínio, onde caiam as filhas mais bonitas dos emigrantes e mesmo de famílias brasileiras dos bairros operários de S. Paulo. O caso era gravíssimo, e de indagação em indagação pode a polícia paulista prender três membros importantes da quadrilha, escapando todavia José Romano, que avisado a tempo conseguiu evadir-se. [...] Confirmando telegramas anteriormente expedidos, o dr. Juvenal Piza oficiou ao dr. Edgard de Lima narrando, minuciosamente, o êxito das diligências e pedindo para ser ouvida, sobre o [...]cional caso, Olympia Vasques, que mantinha relações com Romano. Está, contudo, apurado que a interferência da proprietária do Palace Club no caso, se restringe às explorações de que ela era sócia com Romano quanto às cantoras de cabaré que este, com falsas promessas, trazia a esta Capital. A polícia paulista se [en]contra no encalço de José Romano, que se supões foragido no interior do Estado. 300 Não foi a primeira vez que Olympia se viu envolvida em um conflito com Edgard. Como discuti no primeiro capítulo, ela já havia se recusado a cumprir suas ordens sobre funcionamento de seu cabaré, em 1920, questão que sofreu interferência do próprio chefe de polícia, acatada por Franzen Lima, então delegado de polícia da capital. Mas essa também não foi a última investida do delegado de costumes. Uma dessas investidas contra as atividades da dona de cabarés traz os traços da tensão promovida pelo movimento moralizador da cidade. Uma mudança imprevista A nossa reportagem ao dar entrada ontem à tarde, no saguão do edifício onde se acha instalada a Polícia Central, foi surpreendida com um espetáculo realmente estranho e desusado em tal lugar. Com efeito ali se achavam empilhados uma meia dúzia de objetos heterogêneos, entre os quais salientavam-se pelo seu aspecto mais familiar, mesas e cadeiras de ínfimo preço. [...] Cada vez mais intrigado resolveu então o nosso repórter, dirigirse à algum delegado para obter a explicação desejada. Foi feliz, logo ao entrar na porta que dá para a “via das aperturas”, também chamada o corredor das delegacias, deu de frente com um senhor de média estatura, ar neurastênico e cuja fisionomia sempre inquieta, sombreada por um duplo “pince-nez”, identificava plenamente seu dono, o dr. Edgard Franzen de Lima, o conhecido delegado de Costumes e Jogos. Essa autoridade à indagação curiosa do jornalista, não teve dúvidas, em amavelmente, elucidar a questão. - O causador dessa mudança sou eu mesmo, declarou logo, e continuando. A internacional Olympia Garcia, tendo desobedecido esta madrugada, como dona do Palace Club ao regulamento policial no tocante à hora de fechamento de tais casas de diversões, incorreu naturalmente pela infração na multa de... 100$000, e como se recusasse terminantemente, a 300 “O Estado de Minas”, 16/09/1928, p.8, grifos meus. 112 pagá-la, mandei logo, apreender-lhe algumas peças do mobiliário do seu “cabaré”, para a cobertura da dívida e... O dr. Edgard, não terminou, entrava no momento, um empregado da famosa contraventora, trazendo a importância da multa e o pedido de devolução dos “cacarecos”. Ato contínuo dadas as necessárias ordens, pelo delegado de Costumes, desapareceu em pouco, todo o material apreendido, rumo ao “luxuoso” cabaré da Olímpia, enquanto que os contínuos no saguão já agora desimpedido, varriam apressadamente a poeira trazida no bojo dos indecorosos “trens”. Esta polícia tem coisas...301 As ações que o delegado empreendia para confirmar sua autoridade eram, de certa forma, indiferentes à legalidade, como nos casos em que efetuou a identificação de dançarinas e outros indivíduos, sem que isso estivesse em acordo com os dispositivos legais. 302 Não foi possível verificar se a apreensão de bens materiais era regulamentada por algum decreto ou regulamento policial, mas pode-se afirmar que Edgard tenha agido de acordo com seus princípios e valores como delegado de costumes, para impor sua autoridade. Essa hipótese não seria absurda, uma vez que Edgard chegou a desrespeitar os pareceres do juiz de direito, Gentil de Moura, a respeito da ilegalidade das identificações promovidas pelo delegado. Em meados de 1928, o delegado, possivelmente numa tendência de fazer crescer e funcionar o projeto do “registro” do meretrício, iniciou uma onda de identificações das dançarinas e de mulheres que chegavam à capital.303 Algumas dessas mulheres, nomeadas como “artistas”, impetraram um pedido de habeas corpus, concedido pela 1ª Vara da capital, mas, a despeito da decisão do juiz, Edgard acabou prendendo “todas as mulheres e violentamente as identificou”.304 Momento antes desse incidente com as dançarinas, o jornal indicou que esse processo começava a gerar inquietações. Edgard havia desrespeitado, segundo o redator, o acórdão do Tribunal da Relação, elaborado pelo desembargador Cancio Prazeres, a respeito da identificação.305 Ocupando, de forma interina, o cargo de chefe do Serviço de Investigações, Edgard, na visão do jornal, teria passado dos limites legais e transformava-se em um “César 301 “O Estado de Minas”, 09/10/1928, p. 6, grifos meus. Ver “O Estado de Minas”, “O sr. Edgard de Lima prendeu e identificou criminalmente um moço inculpado de quaisquer falta”, 18/09/1928, p.6; e “O Estado de Minas”, “Arbitrariedade policiais Mentiras, falsidades e violências - Dr. Gentil Nelaton de Moura Rangel, que, representando a Justiça, teve as suas decisões desrespeitadas pelo truculento delegado Edgard Franzen de Lima”,11/10/1928, p. 1. 303 Não encontrei nenhum prontuário de registro do meretrício, no período estudado. 304 “O Estado de Minas”, 11/10/1928, p. 1. 305 “O Estado de Minas”, “Um delegado que desrespeita a justiça superior - O sr. Edgard Lima e os seus atos de truculência”, 09/09/1928, p. 1. 302 113 policial”, ao realizar a intimação, a prisão e a identificação de uma mulher hospedada no Hotel Avenida. “O Estado de Minas” ainda cobrou uma intervenção mais severa do secretário Bias Fortes na questão das truculências promovidas pelo delegado na cidade, “impedindo também que medidas ridículas como as que tem posto em prática o dr. Edgard Lima (obrigar as meretrizes a usar calças) tirem o cunho de austeridade que deve presidir todo ato emanado de uma autoridade policial”.306 A resposta, porém, veio em tom de apaziguamento,307 sendo o assunto, em seguida, apagado das páginas do “O Estado de Minas”. Uma carta resposta do delegado, talvez um dos únicos registros em que se observa com mais consistência sua posição, seus anseios e desejos, foi publicada pelo jornal, que continuava cobrando explicações sobre seus atos generalizantes e não sobre a portaria, em si, utilizada por Edgar como justificativa. [...] Prezado colega e amigo – Surpreendido com o gratuito e veemente ataque dirigido contra minha humilde e desvaliosa pessoa em o número de vosso conceituado jornal de anteontem, venci o meu inato retraimento e me convenci do dever de vos dirigir a presente que a autoridade pública policial deve uma explicação à opinião, sempre que contra a mesma autoridade se levantem acusações de aparência grave em qualquer órgão de publicidade. [...] Não percebi bem o motivo do ataque. Pareceu-me, entanto, que visava ele, taxando de violenta e truculenta a campanha contra os maus costumes e a efetivação do registro do meretrício. Para justificar a primeira, peço vênia para vos remeter inclusa uma cópia da portaria baixada em janeiro deste ano e continenti da orientação desta delegacia sobre o assunto. Apelo para vossa honradez, após sua meditada leitura, se nela se vislumbrar qualquer determinação violenta ou truculenta. Quanto ao registro de meretrício, obedece esta delegacia, fazendo-o , o texto insofismável do art. 6 da lei n. 969, de 11 de setembro de 1927, combinado com a letra f do art. 56 do dec. N. 8.068 de 12 de dezembro de 1927. Não se trata de identificação criminal e sim de registro preventivo de pura legitimação. Dadas essas explicações e agradecendo a atenção que vos tomei, sou vosso coll. er. obr. (sic) Edgard Franzen de Lima, Delegado de Costumes e Jogos.308 Mas o jornal retrucou, logo em seguida, que o apelo feito pelo delegado, no sentido de que se verificasse o teor da portaria, não respondia às acusações de truculência veiculadas pelo jornal. Essa foi a única peça encontrada em que se percebe um posicionamento público, 306 “O Estado de Minas”, “Um delegado que desrespeita a justiça superior - O sr. Edgard Lima e os seus atos de truculência”, 09/09/1928, p. 1. 307 “O Estado de Minas”, “As prepotências das autoridades policiais - Uma nota inexata do órgão oficial”, 14/09/1928. p.1. 308 “O Estado de Minas” – “Um delegado que desrespeita a justiça superior - O sr. Edgard Lima e os seus atos de truculência”, 09/09/1928, p.2, grifos meus. 114 do delegado em relação às suas investidas contra os atentados à moralidade. A carta chama atenção pela formalidade e cordialidade dispensada pelo delegado, mas evidencia, também, seu desejo de se posicionar como defensor da moralidade. Além disso, há o reconhecimento pelo próprio Edgard de que seu cargo não era meramente técnico, mas político e que, por isso, devia explicações públicas. Assim, tendo a acreditar que o delegado tenha desenvolvido, astutamente, uma estratégia, ora dentro da legalidade, ora nem tanto, para fazer cumprir seus projetos de transformação dos comportamentos das meretrizes na capital e de moralização do espaço público. Em sua tese para o concurso da cadeira de “Teoria e prática do processo civil e comercial”, da Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte, Edgard anunciava certas nuanças na lida com a teoria do direito criminal. Segundo ele, a finalidade da “punição”, por meio da aplicação de uma pena, não seria “essencialmente, principalmente ou exclusivamente castigar o infrator”, mas “escarmentar o criminoso (infrator dos princípios do direito criminal), procurando reabilitá-lo e ao mesmo tempo diminuir os casos ou ocorrências das infrações, pelo exemplo ou certeza da iminência das repressões”.309 Essa ambiguidade da “pena” acompanhou Edgard em sua defesa pela moralidade no espaço público de Belo Horizonte. Suas atividades como delegado foram marcadas por essa tentativa de fazer as meretrizes “perder a vontade” de dizer e perpetrar ações contra a moralidade pública, de desacostumá-las de seus hábitos “imorais” e “perniciosos”. Compreendo, em suma, que sua campanha pela “educação moral” foi atravessada por tensões, indicativas dos choques entre os valores do “novo” e do “antigo”, tão marcantes na formação histórica da cidade. 309 LIMA, 1918, p. 37. Um dos sentidos da palavra “escarmentar” é justamente o de “fazer perder (a outrem) a vontade de tornar a dizer ou fazer qualquer coisa”. Ver Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2010, http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx?pal=escarmentar [consultado em 30/05/2012]. 115 4 IDEIAS CIENTÍFICAS E FORMAÇÃO ESTRATÉGIAS DE RACIONALIZAÇÃO INTELECTUAL DA POLÍCIA: 4.1 lutas pela formação policial Marina Silva indicou que a lei mineira nº 552, de 1911, exigia que, além do chefe de polícia, “os delegados também fossem bacharéis em Direito”.310 Apesar disso, durante a década de 1920 e 1930, alguns delegados e chefes do Serviço de Investigações reivindicaram uma polícia de carreira e delegados qualificados para o serviço. Eles entendiam que a formação em Direito dos pretendentes à chefia das delegacias auxiliaria a minimizar o problema das relações de apadrinhamento político, que vigorava entre os delegados nos municípios mineiros, o que atrapalhava algumas atribuições desse cargo, como a remessa de informações.311 Em outras palavras, almejavam profissionais que não se comportassem como “seguranças pessoais” do poder político de coronéis.312 Rogério Machado, chefe do Serviço de Investigações em 1936, antigo delegado de Vigilância e Capturas, assumia que a formação dos delegados instalados era precária e que havia necessidade de uma política e formação intelectual dos indicados para ocupar os cargos vagos em todo o Estado. Nestas condições, surge, como providência preliminar, a criação da polícia de carreira, provendo-se as delegacias de comarcas por bacharéis em direito, porém, com aptidões morais e intelectuais comprovadas para o desempenho de cargos policiais. É um imperativo que não permite contemporização, considerando que os Estados mais importantes da União têm à frente de seus departamentos policiais cidadãos idôneos, titulados em direito.313 Em Belo Horizonte, os cargos de delegados parecem ter sido ocupados por bacharéis em direito, sem muita dificuldade.314 Já no caso de delegados regionais, José Bias Fortes 310 SILVA, 2009, p. 34. Esses desejos de instituição de imparcialidade e idoneidade na condução do cargo de delegado regional, ou especial, foram difundidos em alguns relatórios e serão apresentados com mais detalhes a seguir. 312 Relatório da CP, 1922, p. 55; Relatório da SSA, 1929, v. I, p. 52. 313 Relatório do CSI, 1936, p.133, grifos meus. 314 Encontrei vestígios das trajetórias profissionais de poucos delegados que são citados nos relatórios da polícia. São eles: Rogério Machado, delegado de Segurança Pessoal em 1928, paraibano e bacharel (“O Paiz”, 26-03-1930, p. 5); Álvaro Baptista de Oliveira, 1º delegado auxiliar em 1927 e chefe de polícia em 1933, bacharelou-se na Faculdade Nacional de Direito em 1912, também foi promotor público e juiz de direito. (MOREIRA, Revista do Tribunal de Contas do Estado de MG, 2005, p. 94); Edgard Franzen de Lima, bacharel em letras pela Escola de D. Bosco em Cachoeira do Campo, formado pela Faculdade de Direito de Minas em 1909, delegado de costumes entre 1928 e 1934 (MINAS GERAIS, 20-09-1934); João Pinheiro da Silva Filho, 5º delegado Auxiliar em 1927 na 311 116 anunciou, em 1929, que “a extinção dos delegados formados” em Direito teria contribuído para que as delegacias nos municípios mineiros fossem controladas por leigos, com “compromissos locais que muito prejudicam a imparcialidade da sua atuação”.315 Além disso, há reclamações de delegados, em diferentes momentos do período analisado, a respeito da falta de habilidade dos investigadores ou do quadro da guarda civil, como a que se segue. É que, em geral, são incluídas pessoas que desconhecem o que sejam organização e serviços policiais, havendo, no Corpo de Segurança, um conjunto de homens, de profissões as mais heterogêneas, tais como barbeiros, açougueiros, “chauffeurs”, alfaiates, comerciários, lavradores, quase todos semianalfabetos, já desiludidos, pela luta da vida, sem qualquer estímulo para a profissão. Ora, como poderão esses homens bisonhos, cheios de desânimo, fazer investigações, por exemplo, de ordem política e social, ou sobre certos casos misteriosos de homicídio, onde a sutileza e a perspicácia são os melhores auxiliares, ou sobre roubos, quando os criminosos, tantas vezes, perpetram o crime com a técnica moderna de delinquir?316 Para Bias Fortes, uma saída imediata era estabelecer requisitos mínimos de idoneidade moral para os candidatos às funções policiais. Um dos principais argumentos utilizados para justificar o desejo de qualificação do corpo policial diz respeito à melhoria dos serviços administrativos realizados pela polícia, o que possibilitaria aos delegados dispor de “informações seguras e prontas que se carece a todo o momento” para condução de investigações.317 As autoridades policiais propuseram, então, diferentes soluções para os problemas de recrutamento e formação, como a obrigatoriedade de concurso para os candidatos ao cargo de investigador; a manutenção de um curso de defesa pessoal, “para o adestramento de guardas-civis e investigadores”; a criação da Escola de Polícia com os cursos preparatórios “de delegados”, “de peritos”, “de escrivães”, “de policiamento e trânsito” “de rádio patrulha” e “de investigadores”; a criação do curso de investigação criminal, para preparar investigadores do Corpo de Segurança, entre outras. 318 Não posso afirmar se todas essas sugestões e ações se concretizaram ou permaneceram como uma política de formação policial, mas sua recorrência sugere tanto que essas propostas não conseguiram resolver os problemas do recrutamento policial, quanto um luta pelo poder de definir parâmetros para a admissão e formação de sujeitos policiais, que seriam preparados segundo tendências e necessidades contemporâneas. cidade de Poços de Caldas, era filho de João Pinheiro, mineiro, bacharel pela Faculdade de Direito em 1923 (Verbete João Pinheiro Filho, Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro). 315 Relatório da SSA, 1929, v. I, p. 52. 316 Relatório do CSI, 1937, p. 106, grifos meus. 317 Relatório da SSA, 1929, v. II, p.62. 318 Relatório do CSI, 1937, p. 4, 7 e 105; Relatório do CSI, 1936, p. 99. 117 Houve, também, tentativas de criação de uma Escola de Polícia em diferentes momentos no período estudado. Marina Silva descreve que no regulamento da Guarda Civil, de 1912, há prescrições para organização de uma escola “para ensino prático dos guardas”.319 A autora argumenta que essas prescrições são indícios de uma valorização da competência de leitura e escrita, devido às características de vigilância e controle populacional, que o serviço adquiriu em seus anos de existência, que exigiam o preenchimento de relatórios, o registro de eventos e a elaboração de quadros e formulários.320 O funcionamento e a dinâmica de formação dessa escola na capital, ou de uma organização similar, ainda carecem de maiores investimentos de pesquisa, mas é possível tecer alguns comentários a esse respeito. Segundo Bretas, as forças policiais do início do século XX, em quase toda parte do mundo, tinham pouco ou nenhum treinamento formal. Um policial novato tinha que contar com sua própria capacidade de “aprender” o trabalho ou depender da ajuda dos mais experientes. Os comissários de polícia do Rio de Janeiro frequentemente tinham adquirido alguma experiência trabalhando ad hoc, antes de serem nomeados para o cargo depois de aprovados em concurso público. 321 Marina Silva argumenta que o policiamento da capital mineira, até o início da década de 1910, era feito por “praças e soldados militares advindos do 1º e 2º batalhões”.322 A autora apresenta indícios da existência de um curso de instrução para a Brigada Policial no final do século XIX, mas afirma não ter encontrado elementos desses cursos no cotidiano policial da cidade. Também encontrei indícios da criação e manutenção de cursos para formação policial, tanto no seio da polícia militarizada, quanto no da Força Pública, durante as décadas de 1920 e 1930. 323 Essa tendência de organização de diferentes cursos e turmas de instruções teóricas e práticas, para formação de militares e investigadores de polícia, pode ser um indício da demarcação de diferenças entre as organizações policiais. Penso que essa diferenciação diz respeito, não somente, mas também, ao processo de especialização e complexificação dos serviços da polícia desmilitarizada, envolvendo a investigação de diferentes tipos de crimes, 319 SILVA, 2009, p. 46. SILVA, 2009, p. 47. 321 BRETAS, 1997a, p.144. 322 SILVA, 2009, p. 58. 323 Além da Escola de Polícia e dos cursos de investigadores, ministrados pelos delegados especializados a partir do final da década de 1920, citados anteriormente, também encontrei indícios sobre escolas da Força Pública. Em seu relatório de 1920, o Comandante Geral da Força Pública, Julio Octaviano Ferreira, apresentando os resultados da Escola Regimental, argumentou que “devido à falta de pessoal, motivada pelas constantes diligências para fora da Capital, a escola regimental não pode funcionar com toda a regularidade, resultando daí ter sido muito pequena a frequência de alunos”. Relatório da Força Pública (FP), 1920, p. 39. 320 118 irregularidades, conflitos civis, controle e organização das vias públicas e do trânsito, bem como a tendência de moralização do policiamento. No que diz respeito ao problema do meretrício, diferentes delegados defenderam a necessidade de se formar um grupo policial especializado na vigilância, repressão e ordenamento dessa prática no espaço urbano. Privilegiando os relatos de delegados apresentei, no primeiro capítulo, os movimentos pelos quais essa necessidade se forjou. Houve, nesse mesmo movimento, um crescente interesse em se justificar as ações policiais, a partir de trabalhos acadêmicos que tratavam do problema da prostituição. Em 1915, o delegado Paulino Araújo Filho, justificando a necessidade de se realizar alguma ação policial em relação ao meretrício, declarou: Rompendo frívolos preconceitos, alguns espíritos cultos encararam e estudaram a questão, como Carlier, Parent-Duchâtelet e Ives Guyot, sem que, apesar de tudo, se possa dizer que esteja resolvida. Fenômeno social, fatal e necessário e produto de fatores antropológicos, físicos e sociais, como deve ser encarado juridicamente? Três doutrinas disputam a supremacia: uma a considera livre completamente, permitindo sua manifestação com todos os seus horrores e a encara como uma questão de “moral individual”, com a qual o Estado nada tem que ver a não ser quando sua manifestação perturba a ordem pública e prejudica os direitos de outrem. Outra a reconhece como instituição lícita e, portanto, acha justo regulamenta-la, neutralizando seus malefícios efeitos. É a luta do mal necessário, adotado na Bélgica, França e Itália. Os partidários da terceira querem a repressão, considerando-o crime, punível relativamente às mulheres.324 Parent-Duchâtelet, Carlier e Guyot foram importantes autores franceses sobre o tema da prostituição, para o século XIX. A obra seminal de Parent-Duchâtelet, publicada em 1836, preconizava a necessidade de tolerar, vigiar, inscrever, controlar e punir os excessos das meretrizes. 325 Dessa obra, surgiram sucessivos debates sobre a regulamentação que se seguiu ao longo da 3ª República francesa, nos quais Guyot, um abolicionista fervoroso, e Carlier, chefe do serviço de Costumes de Paris entre 1860 e 1870, estavam inseridos.326 Sobre a influência desses autores no Brasil Magali Engel e Luiz Carlos Soares, discutindo o debate médico sobre o problema da prostituição no Rio de Janeiro no século XIX, apresentaram elementos da influência de Parent-Duchâtelet nas teses médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.327 Margareth Rago, que entende o debate policial sobre a regulamentação em 324 Relatório do CP, 1915, p. 137, grifos meus. CORBIN, 1982, p. 13-35. 326 BERLIÈRE, 1992, p. 115 e 133. 327 ENGEL, 1989 e SOARES 1992. 325 119 São Paulo como um processo de disciplinarização dos corpos, também argumentou sobre as influências de Parent-Duchâtelet, Herbert Spencer, Augusto Comte e Cesare Lombroso nos discursos de delegados paulistas e juristas brasileiros. Esses três historiadores brasileiros argumentaram que as ideias dos autores europeus foram “incorporadas” pelos delegados e médicos, em meio à formação de uma ambiência científica no país. Entretanto, não há uma discussão, em seus trabalhos, que se ocupe das formas de circulação dessas ideias. Curiosamente, essa alusão a autores importantes para os estudos acadêmicos sobre a prostituição se deu em um momento em que não foram encontrados indícios de atuação sistemática da polícia de costumes na organização do meretrício na capital. 328 Apesar de o relatório de Paulino Araújo Filho ter sido produzido em um período anterior ao escopo temporal deste trabalho, o trecho citado constitui o melhor indício dos autores conhecidos por um delegado de polícia da capital, pois no período em que se observa uma sistematização da ação da polícia de costumes diante do meretrício não há indicações diretas de autores acadêmicos.329 As três doutrinas citadas pelo delegado dizem respeito a um processo de luta que se desenrolava em torno do problema da prostituição. O argumento de que uma doutrina considerava a prostituição como um fenômeno que deveria ser livre foi elaborado pelos defensores da regulamentação, em ataque aos “abolicionistas”, que defendiam a supressão de legislações regulamentaristas. Esse grupo foi considerado como defensores tanto do laissezfaire quanto da abolição da prostituição.330 O argumento sobre os regulamentaristas também se configura como uma representação difundida por livros, artigos em jornais e revistas especializadas.331 O delegado mineiro entendia que os defensores da regulamentação tomavam a prostituição como um ato lícito e por isso seria entendido como um mal necessário que precisava ser regulamentado. Entender a regulamentação como autorização estatal do exercício da prostituição corresponde aos argumentos difundidos por abolicionistas, mas é apenas uma possibilidade de leitura dos interesses regulamentaristas. Além do interesse em legitimar a prostituição, eles eram vistos 328 Marina Silva (2009) argumenta que a polícia de costumes, planejada a partir de 1912 e em atuação a partir de 1915, preocupava-se com as diversões públicas, apoiada em regulamentos da guarda civil. É preciso investigar com mais vagar como se deu a elaboração da prostituição como um problema policial durante a década de 1910, para além da discussão realizada no primeiro capítulo desta dissertação. 329 O fato de citar autores não quer dizer, todavia, que esses autores tenham sido lidos, como veremos mais adiante. 330 FLEXNER, 1919, p. 223-224. 331 Berlière (1992) apresenta a difusão de representações antiregulamentaristas ao longo de todo seu trabalho, mas as principais passagens encontram-se nas p. 133-154. 120 como arbitrários e defensores de uma diferenciação social na condução da justiça.332 Por outro lado, os próprios regulamentaristas entendiam que o Estado não tinha capacidade de extinguir essa prática e que deveria, portanto, acompanha-la de perto, promovendo a regulamentação.333 Não encontrei trabalhos que se ocuparam em tratar sistematicamente a prostituição como crime, cuja punição deveria recair exclusivamente sobre a mulher. O jurista Luiz de Asuá indicou, em um livro datado de 1926, que essa “doutrina” era baseada em Richard Dugdale e Cesare Lombroso. Asúa argumentou, ainda, que essa perspectiva não se constituía mais como uma tendência no pensamento judicial. De todo modo, ideias sobre a necessidade de punição da meretriz circularam entre abolicionistas e regulamentaristas. Os primeiros defenderam que essa punição deveria se dar sob a égide das leis comuns, enquanto os segundos defendiam a manutenção e criação de prescrições específicas para essa repressão, como discutirei mais adiante. O trecho do delegado Paulino Araújo indica, enfim, uma busca pelo conhecimento das questões que envolviam a prostituição, antes mesmo da instalação da Delegacia de Costumes. Entretanto, o delegado concluiu, mais adiante, que a solução para o problema das meretrizes seria a defesa de uma ação policial “permanente e não acidental, opondo uma barreira aos seus desregramentos e aos seus ímpetos”, como já observado no primeiro capítulo.334 Não sabemos, portanto, em que medida a mobilização de autores renomados, especialistas no tema da prostituição, tratava-se de uma questão formal para sustentar sua proposta de “solução” do problema do meretrício, ou se corresponderia, de algum modo, a uma demonstração de força no jogo político da sucessão dos cargos do sistema judiciário.335 Encaro, todavia, esse processo como indício de um interesse policial em criar grupos especializados no problema da prostituição. Outros elementos menos explícitos são encontrados nos relatórios consultados, como o desejo, em 1922, de se organizar um registro do meretrício a fim de se tornar viável um conhecimento a respeito dessa prática na cidade. Ora, assim como a mobilização de autores consagrados para legitimar as intervenções 332 BERLIÈRE, 1992, p. 47-49. BOIRON, 1926, p. x-xi. 334 Relatório do CP, 1915, p. 137. 335 Encontrei indícios da existência, em 1925, de um promotor de justiça chamado Paulino de Araújo Filho. Não possuo nenhum dado que indique tratar-se da mesma pessoa, mas, como já argumentado anteriormente, era comum, nas primeiras décadas republicanas, delegados ocuparem cargos importantes no sistema judicial (Bretas, 1997a, p. 51-52). As referências sobre a trajetória profissional de Paulino encontram-se no sítio da Câmara de Vereadores de Varginha: http://www.camaravarginha.mg.gov.br/web3/historia_varginha.pdf. 333 121 policiais no meretrício, a proposta de uma ação policial organizada para realizar um registro das meretrizes, buscando “informações” para “esclarecer” delitos e conflitos, também é indício de um projeto formativo para a polícia. 336 Embora a polícia de costumes esteja a cargo da outra delegacia auxiliar, nesta Capital, como confina o seu campo de ação com a esfera da minha competência, lembro a v. Exca. a necessidade de ser metotizado esse serviço com o registro das meretrizes, bordéis e cortiços de forma a terem os agentes todos os elementos informativos que facilitem a vigilância quanto ao lenocínio, corrupção de menores, etc., bem como a encontrarem sempre rapidamente uma fonte próxima de indicações e esclarecimentos para a apuração de delitos muito frequente no meio especial da devassidão. 337 Não encontrei nenhum sinal de que esse registro foi levado a cabo, mas o importante neste momento é destacar a manifestação do desejo de sua organização, já em princípios da década de 1920. É interessante, também, que esse delegado tenha indicado a experiência cotidiana do policiamento como uma possibilidade de produzir um conhecimento prático sobre o meretrício, que fosse capaz de auxiliar no combate a diversos crimes. Como anunciei no capítulo anterior, a prática de policiamento teve um papel importante na organização dos conhecimentos que a polícia produziu a respeito do meretrício e de outros eventos cotidianos. Assim, o excerto acima chama a atenção por aludir a uma prática comum na polícia de costumes francesa, isto é, fazer do policiamento dos espaços de prostituição uma forma de manter as áreas mais “perigosas” e os criminosos sob uma vigilância constante. 338 Outro caminho trilhado para lidar com a organização da prostituição foi a formação profissional, a partir de uma especialização do conhecimento a respeito da criminalística e dos crimes contra os costumes. Estudar e conhecer o fenômeno da prostituição e de outras práticas tidas como contravenções, foi um investimento realizado pelo delegado Edgard Franzen de Lima em 1926, quando ele procurou qualificar sua formação, por ordens superiores. Esse investimento foi um plano de qualificação dos serviços policiais promovidos pelo governo mineiro e se desenvolveu concomitante à reforma do Gabinete de Investigações, transformado em Serviço de Investigações em 1927. Obedecendo a instruções vossas e tendo como intuito fazer um estudo e observações pessoais na modelar organização policial paulista, 336 Relatório da CP, 1922, p.52. Essa característica pretendida pelo delegado, e que seria incorporada por um grupamento policial, é semelhante ao que ocorreu à polícia de costumes em Paris, no período da terceira república. Lá, também se argumentou sobre o papel importante da polícia de costumes para a polícia judiciária e polícia política. Muitos foram seus detratores por entenderem essa medida como uma arbitrariedade e um estímulo à corrupção. BERLIÈRE, 1992, p. 39-86. 337 Relatório da SP, 1922, p. 52, grifos meus. 338 BERLIÈRE, 1992, p. 102-107. 122 especialmente na parte atinente à delegacia de fiscalização de costume e jogos, dirigi-me à Capital do Estado de São Paulo, onde permaneci o tempo estritamente necessário para me inteirar da organização prática dessa delegacia especializada. Dessa diligencia já tive a honra de apresentar relatório, que aqui junto, por cópia, como parte integrante deste.339 Esse movimento de “racionalização estratégica” evidencia a busca pelo domínio dos lugares de prostituição da cidade, elegendo os saberes médico-jurídico-policial como pontos de sustentação de um campo próprio de ação e conhecimento.340 Os três elementos destacados até aqui – a alusão a autores consagrados, a proposta de um registro do meretrício para estreitar a relação entre policiais e meretrizes e a vivência das autoridades policiais em outras instituições similares, como forma de estudo das práticas policiais – surgem, então, como importantes elementos dessa estratégia elaborada no meio policial, na tentativa de resolução do problema da prostituição.341 Contudo, para além desses exemplos, há outros indícios, relativos ao conhecimento acadêmico, que me permitem refinar a hipótese de que, ao longo da década de 1920, houve um interesse político em promover uma especialização do policiamento da prostituição e que possibilitam analisar esse processo de legitimação das ações policiais, num desejo de fundamentar e explicar seus atos. Bias Fortes, em 1928, apresentou uma lista de livros que foram adquiridos e recebidos pelo Serviço de Investigações naquele ano, dentre os quais destaco alguns títulos pertinentes ao tema da prostituição: AGUIAR (Asdrúbal A. de) – Sciencia Sexual – Livro I – Órgãos copuladores da mulher; Livro II – Virgindade; (...) ASUA (L. Jeminez D) La lucha contra el delicto de contagio venéreo; (…) BOIRON (N.M.) La prostitution dans l'Histoire, devant le Droit, devant l'Opinion; (…) COMMENGE (O.) La prostitution clandestine à Paris; (…) CUYER (Edouard) e KUHFF (G.A.) Organes genitaux de l'Homme et de la Femme; (…) DECANTE (R.) La lutte contre la prostitution; (…) DAMAYE (Henri) – Education, dégénérescence et prophylaxie sociale (…) DUFOUR (P.) Geschichte der Prostitution; (…) FOREL, (A.) La question sexuelle; (…) FIAUX (L.) La prostitution réglementée et les pouvoirs publics; (…) FLEXNER (A.) La prostitution en Europe; (…) GUSMÃO (Chrysolito de ) Dos crimes sexuais; (...) LOMBROSO (C.) ed FERRERO (G.) - La donna 339 Relatório da SSA, 1927, p. 227, grifos meus. Michel de Certeau (1994, p. 100) ressaltou que “um poder é a preliminar (...) [de um determinado] saber, e não apenas o seu efeito ou seu atributo”. 341 Sabe-se que frente às estratégias se desenvolvem, entre aqueles que operam a partir de um “nãolugar”, táticas e astúcias. Não foi meu interesse perseguir essas duas noções no conjunto documental, apesar de tratar, no segundo capítulo, de determinadas sutilezas e “reações” de meretrizes diante do policiamento do meretrício. Ainda que esse debate não tenha sido o foco deste trabalho, a noção de estratégia permite situar esse processo de racionalização da polícia numa dinâmica teórico-conceitual que não se limita ao local, mas faz parte das relações de poder em diferentes instâncias na sociedade contemporânea. 340 123 delinquente (...) SCHUPPE (Franz) Die Staatliche Überwachung der Prostitution; (...) TARNOWSKY (P.) Les femmes homicides (...).342 Destaquei esses livros por se tratar de trabalhos acadêmicos referentes diretamente e indiretamente à prostituição, abordando temas como a história da prostituição, o problema do contágio venéreo, a sexualidade e a criminalidade femininas. Essa seleção diz respeito, assim, aos títulos que poderiam interessar aos investigadores e ao delegado da Delegacia de Costumes. Tal material, junto com mais de 700 títulos de livros e periódicos, foi adquirido na gestão de Bias Fortes na Secretaria de Segurança e Assistência Pública e corresponde às medidas de modernização da instituição policial e de ampliação do investimento do Estado na polícia desmilitarizada.343 A organização dessa biblioteca constitui-se, também, como um esforço da polícia mineira de se aproximar do conhecimento científico, judicial e policial a respeito da prostituição, que vinha se construindo no Brasil e no exterior.344 Comentando a reforma do Gabinete de Investigações, Bias Fortes exprimiu sua percepção sobre os anseios pretendidos como orientadores das ações daquela repartição. Quero, porém acentuar o mérito principal da reforma, a saber: a criação de delegacias técnicas com seções especializadas, a qual facilitará a formação, d'ora avante, entre nós, de profissionais capazes de orientar com proficiência os mais difíceis processos. 342 Relatório da SSA, 1929, v. I. p.55-80. Desses livros, encontrei somente os de Aguiar (livro II), Asúa, Boiron, Commenge. Cuyer e Kuhff, Decante, Damaye, Dufour, Forel, Fiaux, Flexner e Gusmão. Mais adiante, explicitarei melhor o conteúdo desses livros. Os livros de Asdrúbal de Aguiar e de Cuyer & Kuhff tratam, especificamente, sobre a questão moral da virgindade em relação aos processos judiciais de defloramento e à fisiologia dos órgãos genitais masculinos femininos, respectivamente. Assim, optei por não explorá-los neste trabalho, já que eles não tratam diretamente do tema da prostituição. Já o livro de Dufour, encontrado no acervo da Biblioteca Luiz de Bessa, é uma edição alemã e faz uma descrição da “história da prostituição em todos os povos” ocidentais. Porém, em razão da barreira da língua, este livro também ficou de fora da análise. 343 Ver esta lista nos Anexos. 344 A Biblioteca do Serviço de Investigações, como um todo, pode se tornar uma referência para futuras pesquisas sobre a circulação dos saberes e os projetos de formação dos efetivos policiais em Minas. Dos poucos indícios a respeito da Biblioteca do Serviço de Investigações que encontrei, dois merecem destaque. Os exemplares dos livros de Boiron, Commenge, Decante, Dufour, Fiaux e Flexner, consultados na Seção Patrimonial da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, possuem a mesma inscrição na última folha: “Doação Sec. Interior”. Essa inscrição é um indício de que esses exemplares podem ser os mesmos comprados em 1928, isso porque em 1931 a Secretaria de Segurança e Assistência Pública foi dissolvida e a Chefia de Polícia passou a subordinar-se, junto com o Serviço de Investigações, à Secretaria do Interior, até a criação da Secretaria de Segurança na década de 1950. Concorre para essa hipótese o fato de que todas as edições encontradas na biblioteca Luiz de Bessa são anteriores ao ano de 1928. Além disso, encontrei no exemplar do livro de Pierre Dufour, “Geschicte der prostitution”, na primeira página, anexada, provavelmente, com a encadernação policial, a seguinte inscrição: “Biblioteca do Cabinete (sic) de Investigações et (sic) Capturas do Estado de Minas Gerais, Brazil (sic)”. Esses indícios, portanto, me parecem mais do que suficientes para corroborar a hipótese de organização e funcionamento de uma biblioteca policial. 124 Além desse serviço, os de identificação e estatística receberam também cuidados que ampliaram consideravelmente o âmbito de sua eficiência. Instituíram-se novos registros, como o de legitimação, o de locadores de serviços domésticos e o de profissionais, e proveu-se a criação de uma biblioteca policial, do laboratório e museu de polícia técnica e da história do crime, da escola de polícia, colimando todo esse aparelhamento a formação de investigadores à altura da criminalidade omnímoda do mundo contemporâneo.345 A criação da Biblioteca Policial era prevista no regulamento do Serviço de Investigações aprovado pelo decreto n. 8068, de 12 de dezembro de 1927. O texto do documento prescrevia que a biblioteca seria “destinada a facilitar a consulta e o estudo de questões policiais” e que “a aquisição de obras e revistas que tratem de assuntos de interesse policial” seria autorizada pelo secretário de Segurança e Assistência Pública. 346 Esses indícios traduzem os esforços por uma política de governo para a formação policial, questão que perseguiu as autoridades policiais ao longo do período estudado. Assim, independentemente de como se deu o processo de apropriação, houve um interesse político em organizar um conjunto de práticas para a formação intelectual de um grupo policial especializado no policiamento do meretrício. Esse interesse, de delegados e políticos, ganhou força e destaque no governo Antônio Carlos, mas se retraiu após os acontecimentos de 1930, como visto no primeiro capítulo.347 Minha hipótese é que ocorreu um processo de circulação de natureza diversa, que diz respeito aos espaços geográficos e aos campos científicos. No período estudado, ocorreu um trânsito de pessoas, de ideias, de posturas, de impressos e de materiais iconográficos, assim como de projetos de polícia. A fim de esmiuçar um pouco mais esses desejos de organização de um saber policial referente à prostituição, elaborei um panorama das ideias acadêmicas que teriam circulado na instituição, a partir da leitura de algumas obras adquiridas pelo Serviço de Investigações. 4.2 o problema da prostituição na biblioteca do Serviço de Investigações Os autores dos livros relacionados na lista de compras do Serviço de Investigações estavam envolvidos com os campos do conhecimento jurídico, psiquiátrico, médico, sociológico e histórico. É muito difícil classificar, entretanto, cada um desses trabalhos a partir da área de atuação de seus autores. Quero dizer, nem sempre os assuntos abordados nos livros condiziam, necessariamente, com a educação formal daqueles que os escreveram. Os 345 Relatório da SSA, 1929, vol. I, p. 54, grifos meus. Decreto 8068 de 12 de dezembro de 1927, Arts. 97 e 98. 347 Como os delegados Paulino de Araújo e Edgard Franzen de Lima e os políticos Antônio Carlos de Andrada e José Bias Fortes. 346 125 autores eram médicos, juízes e chefes de polícia produzindo trabalhos sociológicos e históricos. No caso dos médicos, fica clara a tendência da medicina social, área importante da medicina, desde o século XIX. 348 Há, também, entre os intelectuais do campo judicial uma tradição de estudos de história do direito e da justiça, que são incorporadas nos trabalhos de jurisprudência.349 Assumindo, portanto, a dificuldade do enfrentamento teórico, diante da classificação dos autores, apresento suas trajetórias e seus respectivos livros de forma sucinta, a fim de situá-los no amplo debate internacional sobre o problema da prostituição. 350 O livro “Dos crimes sexuais”, do juiz do distrito federal, Chrysólito de Gusmão, foi publicado em 1921 e trata, basicamente, de crimes sexuais previstos no Código Penal de 1890, tais como o “estupro”, o “atentado ao pudor”, o “defloramento” e a “corrupção de menores”. Em sua introdução, porém, o autor faz um balanço filosófico sobre o problema do instinto sexual, citando e comentando os trabalhos de Darwin, Bergson, Forel, Krafft-Ebing, Moll, Havelock-Ellis, Lombroso, Grasset, Severi e Tomellini, entre outros autores importantes que se ocuparam da questão. R. Decante, outro intelectual do meio judicial, foi juiz do tribunal civil de Châteaudun e membro correspondente da Sociedade de Medicina Legal da França, quando escreveu o livro “La lutte contre la prostitution”. Nesse livro, o autor declara seu interesse em realizar um estudo neutro, sem se posicionar como regulamentarista ou abolicionista. Seu trabalho buscava, entretanto, uma solução para o problema da prostituição do ponto de vista de suas causas. Assim, percebe-se sua posição favorável às medidas sociais, para além das ações do Estado, defendendo a participação da comunidade civil nessas medidas. 351 Outro autor do campo do direito é Luis Jiménez de Asúa, jurista e professor de direito penal na Universidade Central de Madrid, que foi um importante pensador do direito penal e das políticas criminais no século XX. Seu trabalho, “La lucha contra el delito de contagio venéreo”, surgiu em 1925, originado de uma série de palestras realizadas na Associação 348 Na França, a medicina social teria, ao menos, três objetivos principais, a “medicalização da assistência para torna-la mais eficiente e menos onerosa”, o “desenvolvimento de controle médico para aperfeiçoar a qualidade da força de trabalho” e continuava buscando “impedir a propagação de doenças disseminadas desde as periferias das grandes cidades”. RENAULT, 2008, p. 196. 349 No Brasil, pelo menos desde 1895, a disciplina “História do Direito” aparecia nos currículos dos cursos de Direito. Ver MEC, parecer CNE/CES, 211, p.6. 350 Não encontrei, ou não pude acessar, trabalhos acadêmicos que tratassem especificamente dos autores selecionados. O que dificulta a compreensão do papel desses autores nos seus respectivos campos de conhecimento, mas não me impede de lançar um olhar sobre suas obras e apresentar uma leitura possível a esse respeito. 351 DECANTE, 1909, p. 7. 126 Oficial de Estudantes de Farmácia, de Madrid. O autor conta que em Montevideo, durante sua passagem pela América do Sul em 1923, pronunciou uma palestra a respeito do tema, mas que infelizmente não havia sido publicada. A oportunidade de proferir uma série de conferências levou-o, então, a sistematizar o assunto, publicando-o em um livro. O. Commenge foi médico, chefe do Dispensário de Saúde da Prefeitura de Polícia de Paris, e tratou o tema da regulamentação da prostituição do ponto de vista da instituição policial. Sua obra, “La prostitution clandestine”, publicada em 1897, destaca-se das demais por se dedicar prioritariamente à “modalidade” de prostituição que se caracteriza tanto pelas meretrizes que assumiam publicamente essa condição, mas que não se submetem aos regulamentos, como pelas que exerciam o ofício com discrição e em locais reservados.352 Sua obra apresenta diversos dados estatísticos sobre prostitutas inscritas e é uma defesa pela necessidade da manutenção da regulamentação da prostituição. O médico Louis Fiaux foi um antigo membro do Conselho Municipal de Paris, além de entusiasta da luta contra a regulamentação da prostituição e contra a polícia de costumes, atuando publicamente em nome desta causa desde a década de 1870.353 Em seus diversos trabalhos e discursos proferidos em congressos e no Parlamento francês, o abolicionista elaborou argumentos e dados empíricos sobre as arbitrariedades da polícia de costumes, que, segundo ele, tinha consolidado um poder de justiça à parte da justiça comum. O que mais se destaca em sua luta é o caráter político do seu argumento. Para ele, seria inconcebível a manutenção de um tribunal policial à parte do sistema judiciário, pois isso lesaria as liberdades individuais asseguradas desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O livro “La prostitution réglementée et les pouvoirs publics” é, em grande medida, um esforço de uma análise social sobre o problema histórico da regulamentação da prostituição em diversos países ao redor do mundo.354 Outro crítico do regulamentarismo foi Abraham Flexner, um médico norte-americano que teve suas pesquisas sobre a prostituição na Europa financiadas por Rockefeller, durante a década de 1910, tornando-se, mais tarde, referência para o sistema educacional de medicina nos Estados Unidos. Essas pesquisas deram origem, entre outros trabalhos, ao livro “Prostitution en Europe”, no qual ele traça um panorama geral sobre a prostituição, baseado 352 COMMENGE, 1897, p. 1. A atuação de Louis Fiaux no cenário político francês, principalmente no que diz respeito aos debates públicos sobre a “regulamentação” e a polícia de costumes é analisada em BERLIÈRE, 1992. 354 O primeiro volume do trabalho foi publicado em 1902 e o segundo em 1909. 353 127 em viagens a vinte e sete cidades europeias. Seus estudos “expressam o estado de espírito e o impulso que está por trás de grande parte da agitação pela reforma [das legislações regulamentaristas] durante os primeiros anos da campanha progressista contra os males sociais”. 355 O autor justifica sua posição contrária à regulamentação, basicamente, porque a história desse movimento seria feita de arbitrariedades, de uma ineficiência em cumprir seus objetivos, como o de evitar a propagação do contágio venéreo, e de uma incapacidade de sustentar argumentos científicos. O livro traça um panorama geral sobre a prostituição, dialogando com autores diversos e com os diferentes materiais que coletou durante sua pesquisa. Auguste Forel, um intelectual suíço, foi entomologista, psiquiatra, neuroanatomista e entusiasta da luta contra o alcoolismo. Seu livro “La question sexuelle” foi publicado pela primeira vez em 1905 e traça um panorama geral da questão sexual, partindo de uma discussão celular, do reino vegetal e animal para, então, se aprofundar nas relações humanas.356 É um trabalho vasto, composto de dezenove capítulos, que buscava abarcar as diversas dimensões do problema sexual, como a reprodução, o apetite sexual, as patologias, as influências do meio social e as relações do direito, da arte, da religião, da medicina, da política, da moral e da pedagogia com o sexo. Além disso, dedica um capítulo ao estudo da relação entre sexo e dinheiro, explorando as formas de prostituição e a “psicologia” das prostitutas. Finalmente, N. M. Boiron, doutor em ciências políticas e econômicas, comissário de polícia, e autor do livro “La prostitution dans l’histoire, devant le droite, devant l’opinion”. Neste trabalho ele buscou organizar e compreender os diferentes elementos que compunham o problema da prostituição em diversos países europeus, com destaque para seu desenvolvimento na República francesa.357 O autor elaborou argumentos que deslegitimavam as formas pelas quais as ações da polícia de costumes e as consultas médicas, exigidas pela regulamentação, eram conduzidas. Apesar de entender que havia necessidade de uma intervenção policial, Boiron buscou apresentar alternativas a esse sistema. 355 HOBSON, 1990, p. 154. Tradução livre do trecho “expressed the mood and impulse that lay behind much of the reform ferment during the early years of the progressive campaign against social evils”. 356 A edição consultada nesse trabalho encontra-se no acervo da Biblioteca Universitária da UFMG. O exemplar pertenceu a Antonio Camillo de Faria Alvim, professor e um dos fundadores da Faculdade de Filosofia da UFMG. 357 BOIRON, 1926, p. XXII. 128 Quando analisados em seus conteúdos, observa-se que o problema da prostituição foi desenvolvido, basicamente, a partir de um conjunto de questões principais, como o instinto sexual, o contágio venéreo, as causas da prostituição, a educação moral debilitada, as arbitrariedades da polícia de costumes e sua legitimidade ou ilegitimidade. Assim, ao invés de realizar uma análise a partir das posições ocupadas por esses autores em seus respectivos campos de conhecimento, organizei a apresentação dessa discussão a partir dessas questões recorrentes, dividindo-as em três temáticas: a “luta contra o contágio venéreo”, os “direitos individuais e a manutenção da ordem”, além da “formação moral e as psicopatologias”.358 Essas expressões, retiradas dos livros consultados, encerram o grosso das problemáticas desenvolvidas pelos autores para sustentar seus argumentos a respeito da intervenção da polícia na prática do meretrício.359 Além disso, correspondem a temas caros nas relações que a polícia de costumes manteve com a prostituição. Assim, selecionei e organizei essas temáticas de modo a estabelecer uma compreensão mínima das ideias defendidas pelos autores a respeito do problema da prostituição e de seu policiamento. 4.2.1 Em luta contra o contágio venéreo Commenge argumentou a respeito da necessidade de se criar certas regras para o exercício da prostituição, deslocando a questão do campo político ou religioso para o campo da saúde pública. 360 Por entender que a prostituição era “uma indústria prejudicial, pois pode[ria] ser uma das causas de doenças contagiosas”, o médico acreditava ser necessário que ela fosse “observada por portarias policiais”, e que a inscrição nos consultórios médico da prefeitura de polícia teria papel importante para essa vigilância. 361 O autor entendia, ainda, que o médico, em geral, deveria ter como preocupação “constante e exclusiva, o interesse da higiene pública, da conservação da espécie e seu desenvolvimento em um estado perfeito de 358 Por “posição” refiro-me à perspectiva de Bourdieu (2004) sobre a noção de campo. Segundo o autor, a posição do indivíduo na “estrutura das relações objetivas” de determinado campo, determina ou orienta suas tomadas de posições (BOURDIEU, 2004, p. 23). Por outro lado, o objetivo deste capítulo não é a compreensão da produção cultural (científica) em si, mas sim a compreensão das tendências interpretativas de um conjunto restrito de autores e sua circulação no campo policial em Belo Horizonte. Nesse sentido, a análise temática corresponde melhor aos objetivos deste trabalho. 359 O que não quer dizer que não haja todo um conjunto de temas mobilizados para que determinadas ideias sejam defendidas pelos autores, como a comparação da legislação de diferentes países, as definições correntes de “prostituição” e as lutas entre regulamentaristas e abolicionistas. Optei, no entanto, por delimitar esse conjunto de temas a partir de argumentos que relacionam polícia de costumes, prostituição e medidas sociais e educativas. 360 COMMENGE, 1897, p. 558. 361 COMMENGE, 1897, p. 477-478. 129 saúde”, justificando, assim, a importância da presença desse profissional na regulamentação da prostituição, junto ao serviço policial.362 Já Forel, Decante, Asúa e Boiron, compreenderam o problema de uma maneira um pouco distinta. Forel chamou atenção para a falsa segurança atribuída à regulamentação, entendendo-a como uma corrupção do Estado, encabeçada pela polícia de costumes e seus médicos, o que ajudava a disseminar as doenças venéreas. Para driblar as medidas arbitrárias do Estado, ele sugeriu um investimento na elaboração de legislações para repressão, por meio de multas ou prisões, de atos que ofendessem a ordem pública, como a “abordagem provocativa” nas ruas.363 Além disso, sugeriu o estabelecimento de instrumentos legais para regulamentar a indenização civil em caso de contágio venéreo.364 Asúa também sugeriu o estabelecimento de indenização civil para casos de contágio venéreo e argumentou que o problema da prostituição e da defesa da saúde pública pela regulamentação deveria se deslocar da ordem policial para a ordem da profilaxia, das medidas sociais e do direito. O jurista assumia a legitimidade de se aplicar penas de contravenção a casos de escândalos e “deboches” de meretrizes em recintos públicos ou privados. Entretanto, o autor elaborou a tese de que o contágio venéreo constituía-se como um delito, forjando, enfim, a necessidade de produção de legislações específicas para a questão.365 O professor espanhol descreveu três tendências de abordagem do problema da prostituição, caracterizadas como sistemas. O primeiro deles declarava a prostituição “como um delito em si mesma, por suas características imorais, ou seja, sistema de proibição e castigo”. O autor ponderou que a ideia de considerar as mulheres em situação de prostituição como delinquentes estava, cada vez mais, em desuso, mas isso o preocupava, pois poderia gerar uma redução da importância dada aos danos causados pela transmissão de doenças venéreas.366 O segundo sistema entendia a prostituição como “como um mal necessário, que é preciso consentir e regulamentar, pelo bem da saúde e ordem pública, ou seja sistema de regulamentação”. Este seria o sistema mais seguido pelas legislações, tendo como meta o controle sanitário. Mas havia um reconhecimento internacional, do próprio campo da medicina, da ineficácia das medidas higiênicas exigidas e praticadas nos países em que a 362 COMMENGE, p. 558. Não encontre um termo que resumisse o conceito de “racolage” na língua portuguesa, tampouco na experiência policial, por essa razão optei por utilizar a expressão abordagem provocativa. 364 FOREL, 1922, p. 359-361. Louis Fiaux também escreveu sobre o assunto no livro “Le délit penal de contamination intersexuelle” publicado em 1907. 365 ASÚA, 1925, p. 50-51, grifos do autor. 366 ASÚA, 1925, p. 46, grifos do autor. 363 130 regulamentação ocorria.367 Por fim, havia a tendência de avaliar a prostituição “como uma imoralidade, impossível de suprimir, abandonando-a a seus próprios desenvolvimentos, sem prejudicar a repressão dos delitos que se podem cometer por ocasião do seu exercício, ou seja, sistema de liberdade”.368 Essa tendência ganhava cada vez mais adeptos, desde a fundação da Federação Abolicionista, e os países que incorporaram esse sistema observavam uma queda em casos de enfermidades sexuais.369 Decante e Boiron também duvidavam da capacidade da regulamentação dar conta do problema da prostituição, mas consideravam legítima a existência de algum serviço sanitário para o controle das doenças venéreas. Decante assumia, assim, que nem abolicionistas nem regulamentaristas possuíam argumentos totalmente defensáveis ou equivocados. Para ele, as críticas elaboradas pelos velhos abolicionistas foram importantes para esclarecer os problemas políticos, administrativos, jurídicos e mesmo as arbitrariedades promovidas pela regulamentação da prostituição. Por outro lado, ele defendeu a necessidade de se ocupar do problema sob o ponto de vista da assistência e higiene sociais, uma vez que compreendia que a prostituição estava intimamente ligada à pobreza.370 Desta forma, o juiz advogava por uma luta racional contra a prostituição, baseando-se em estudos da legislação pertinente, para fortalecer a luta contra esse “mal”. Boiron, realizando uma ampla revisão do debate abolicionista e regulamentarista, dialogou com a legislação produzida em diversos países e, em especial, com os decretos dos chefes de polícia em Paris. Ele apresentou diferentes argumentos para defesa ou ataque ao sistema regulamentarista e assumiu que “a doutrina é unânime ao proclamar a arbitrariedade do regime praticado em Paris”.371 Por outro lado, ele também teceu críticas aos neoabolicionistas, que sustentavam a necessidade de tratamento e hospitalização forçados, num “regime draconiano” imposto às meretrizes e seus clientes. 372 O comissário de polícia lutava, em contrapartida, pela elevação moral da população, sonhando com um “regime de 367 ASÚA, 1925, p. 46-47, grifos do autor. ASÚA, 1925, p. 44-45, grifos do autor. 369 ASÚA, 1925, p. 49-50. Diferente dos outros autores, Asúa elaborou representações que disseminaram descrições sumárias dos diferentes e diversificados argumentos envolvidos nos debates públicos sobre a prostituição. Essa constatação é um exemplo dos diferentes usos e sentidos que os sujeitos fazem dos conhecimentos acadêmicos. Interessado em discutir juridicamente o “contágio venéreo”, Asúa se permite resumir um amplo debate em apenas algumas linhas. Decante, Boiron, Flexer e Fiaux, por exemplo, realizaram grandes argumentações sobre essas disputas. 370 DECANTE, 1909, p. 8. 371 BOIRON, 1926, p. 114. 372 BOIRON, 1926, p. 268. 368 131 equidade” capaz de manter a “boa ordem, o respeito aos bons costumes e a, tão urgente, preservação da saúde pública” livre do perigo venéreo.373 Assim, ele assumia a legitimidade da regulamentação, desde que acompanhada de outras ações, a fim de minimizar e superar as arbitrariedades da polícia de costumes. Embora, a nossos olhos, o regime da regulamentação reformada seja incontestavelmente o mais apropriado para combater as doenças venéreas resultantes da prostituição, especialmente agora que o controle sanitário está organizado sobre as bases fortes que relatamos mais acima, nós não nos sentimos autorizados, em razão de seus defeitos congênitos, a consideralo como o único sistema capaz de realizar as nobres finalidades que formam seus objetivos.374 Decante chegou a argumentar que a união, em um programa, da “generalização de uma terapêutica completa” com a promoção de uma “educação higiênica da juventude” formaria a melhor frente de proteção da saúde pública. 375 Para ele, assim como para Asúa, o processo de vulgarização da ciência promoveria, também, uma autonomia dos sujeitos em relação aos cuidados referentes aos problemas venéreos. Asúa propôs, ainda, a difusão do conhecimento de meios profiláticos através de conferências, jornais e revistas; da manutenção do trabalho de associações privadas para tratamento das enfermidades venéreas; da educação sexual destinada a jovens; da luta contra a cisão do amor entre a paixão carnal, que o homem dedica à prostituta, e a ternura idealista, dedicada à namorada ou esposa; e, por fim, do estabelecimento de casamentos precoces.376 Destaco que essas propostas de difusão de conhecimentos foram elaboradas por autores do campo jurídico, que mesmo sendo de países diferentes elaboraram projetos muito semelhantes. 4.2.2 Pela aplicação dos direitos do cidadão Crhysólito de Gusmão discutiu vivamente sobre o problema do estupro de meretrizes, contrapondo-se ao médico legista Souza Lima e ao jurista Viveiros de Castro. O juiz, cordialmente, pedia licença para revisar a questão, realizando e comentando suas leituras de antigos códigos penais, como o italiano, o português e as Ordenações Filipinas. Ele argumentou que em cada um desses códigos o estupro de meretriz era considerado como passível de punição e também era previsto cuidados e proteção às mulheres que passassem por essa situação, diferente do que argumentavam os outros dois autores. Gusmão discordou, 373 BOIRON, 1926, p. 271. BORION, 1926, p. 270, grifos meus. Os trechos originais das citações utilizadas neste capítulo encontram-se anexos ao trabalho. 375 DECANTE, 1909, p. 329. 376 ASÚA, 1925, p. 140.-163. 374 132 ainda, da sugestão de Viveiros de Castro de tratar o fato como uma contravenção, afirmando o caráter intencional, doloso, desse tipo de ato, concluindo, então, que ele é a manifesta ofensa a um direito individual; a mulher pelo fato de ser vítima duma degenerescência moral repugnante, não se transforma em res nullius, desamparada de qualquer proteção eficaz; se assim não fosse se legalizaria, quase, a mais aberta e horrenda selvageria. A prostituição, segundo as teorias da escola antropológica, máxime de Lombroso, não é senão um derivativo do crime, um aspecto da criminalidade feminina; no entanto velho e sempre religiosamente respeitado é o princípio de que reo sacra est. Por fazer da vida a mais triste e lobrega das profissões – a do comércio o corpo – não se pode concluir que tais infelizes devessem ser vítimas do selvagem assalto à carne e que sejam obrigadas, como escravas públicas, a se entregar a quem quer, como alguns escritores antigos pretenderam sustentando que “meretrices nulli sesse copiam denegare possunt”.377 A leitura que Gusmão elabora a respeito dessa querela é extremamente interessante. Não só pela clareza dos argumentos e pela habilidade de leitura de documentos antigos, mas porque ela lança um olhar sob um problema ainda atual, presente principalmente na relação entre profissionais do sexo e policiais, que é o de considerar a prostituta como uma categoria inferior de mulher, como se elas possuíssem um grau inferior de humanidade.378 Pela natureza da obra de Gusmão, não há uma discussão sobre a regulamentação da prostituição, mas seu olhar dirigido aos crimes contra meretrizes indica uma sensibilidade jurídica preocupada com a ampliação do conceito de igualdade perante da lei. O autor se inseriu no debate sobre as prerrogativas e direitos pessoais e coletivos, que se travou nos primeiros anos do período republicano no Brasil.379 Assim, o juiz também se aproximou, mesmo que indiretamente, de autores franceses que discutiram o problema do registro do meretrício e da polícia de costumes. Para Fiaux, a manutenção de julgamentos e de prisões sem realização de processos corresponderia à perpetuação de “abomináveis delitos de direito público contra pessoas cujo 377 GUSMÃO, 1921, p. 193-194, itálicos do autor, grifos meus. Essa questão é debatida por Letícia Barreto em sua dissertação de mestrado em Psicologia Social. Trabalhando com relatos de profissionais do sexo de Belo Horizonte, a autora discute os casos de condenação moral que as mulheres sofrem nas delegacias ao prestarem queixa de estupro, recebendo como resposta que “não há nada a ser estuprado”. BARRETO, 2008, p. 29 e 42-43. 379 José Murilo de Carvalho (1990, p. 38-54) traça um panorama dos diferentes projetos de República nos anos que se seguiram à proclamação. Essas disputas envolviam as delimitações de direitos e deveres sociais e políticos, além de questões econômicas, culminando em diferentes defesas de práticas de cidadania, como a militarista, a sociocrática e a liberal. Cristiana Schettini (2006, p.35), estudando habeas corpus impetrados a favor de meretrizes em 1896, evidencia duas formas antagônicas de compreender os direitos individuais, de um lado, uma visão “jacobina-positivista”, com tendência autoritária e, de outro lado, a visão “constitucionalista liberal”, que defendia a garantia dos direitos básicos a todas as pessoas, independente do status moral. 378 133 sexo, juventude, pobreza, imprudência, ignorância as deixam, sem defesa legal ou costumeira, à mercê de autoridades com caráter, frequentemente, suspeito”. 380 O autor buscava, dessa maneira, soluções para problemas sociais de grandes proporções e sua preocupação com o direito comum marcou sua atuação, como médico, em defesa de uma medicina social. Para nós, salvo engano, há, no balanço da Revolução francesa, o estabelecimento positivo de um direito público e constitucional em nome do qual nenhum cidadão, pode ser privado de liberdade sem um julgamento regular, processado em nome de uma lei, por um tribunal de natureza judiciária. A prisão preventiva não constitui uma exceção a esta regra judiciária fundamental: ela é ordenada pelo juiz menos para garantir, eventualmente, a execução da pena do que para reunir as provas, interrogar o acusado, as testemunhas, em uma palavra, preparar a instrução. Essas formas são capitais, elas asseguram ao homem social (é preciso acrescentar a mulher à esse conceito?) as garantias sem as quais uma sociedade não merece esse nome. 381 Já Flexner organizou seu estudo a partir da apresentação e discussão da definição de prostituição para diferentes autores e instituições; dos argumentos baseados nos princípios da oferta e demanda; dos debates sobre a ordem e saúde pública do ponto de vista da regulamentação e do ponto de vista da abolição; fechando a obra com a exposição de sua leitura a respeito dos motivos da permanência da regulamentação em diferentes países. O médico enfatizou que “em qualquer ato de prostituição, pelo menos duas partes, geralmente, mas nem sempre, do sexo oposto, estão envolvidas”, compreendendo a prostituição feminina como um problema envolvendo homens e mulheres numa relação de oferta e demanda: Não quero dizer que o uso dessas expressões implica a existência prévia de uma dada quantidade de demanda que é, e deve ser, satisfeita pela produção, de uma forma ou de outra, de uma oferta correspondente. Veremos que tanto demanda como oferta são elementos variáveis. A demanda pode ser estimulada ou contida dentro de certos limites; a oferta pode ser explorada para aumentar a demanda. Além disso, a oferta pode servir para satisfazer uma demanda mais ou menos considerável, de modo que a extensão da prostituição não depende somente do número de pessoas que estão envolvidas, mas também da intensidade de suas atividades. As duas partes – o homem e a mulher – não estão envolvidas somente entre um e outro, mas são os instrumentos de influencias exteriores.382 O autor se distanciou, dessa maneira, de uma tradição que, durante o século XIX, considerou a prostituta como a única responsável pela prostituição e pelos problemas advindos dessa prática.383 É claro que ele não foi o primeiro a realizar esse movimento de 380 FIAUX, 1902, p. VIII. FIAUX, 1902, p. IX-X, grifos meus. 382 FFLEXNER, 1919, p. 30, grifos meus. 383 Margareth Rago (1991) faz uma leitura sobre essa tradição, citando Parent-Duchâtelet como sua principal expoente. 381 134 leitura. Flexner se aproximou da tradição abolicionista, que desde a década de 1870 promovia encontros, debates e propostas para extinção da regulamentação, em defesa dos direitos individuais. Discutindo a responsabilidade do Estado em garantir os direitos aos cidadãos, sem distinções morais ou sociais, o autor concluiu pela impossibilidade de se garantir a regulamentação sem se tornar conivente e, até mesmo, responsável pela exploração de mulheres na prostituição, afirmando que o Estado moderno - o Estado europeu moderno - é uma organização responsável pelo dever positivo de assegurar e promover condições que garantam o bem-estar, a felicidade e a utilidade de cada membro da sociedade. Até certo ponto, ele pode a qualquer momento impor melhores condições, é um detalhe a ser determinado; mas é certo que a base fundamental da constituição moderna do Estado é violada pela noção de que alguns membros podem ser sacrificados, de corpo e alma, para obter uma vantagem policial trivial. A prostituição existe e em grande escala. O Estado é obrigado a levar isso em conta, é forçado a admitir sua existência atual, a sua longa história no passado, as ameaças para o futuro. (...) Se as medidas positivas são possíveis, elas devem ser tomadas; se a desaprovação social é ainda pouco eficaz, devemos anunciar com toda a autoridade da sociedade. “A lei deve ser um educador”, pelo menos na medida em que contém uma expressão daquilo que deveria ser. É absurdo supor que o Estado pode tomar essa posição – seja qual for o seu valor – e, ao mesmo tempo, permitir a prostituição sob qualquer pretexto – um absurdo de pregar a continência e de patentear o vício.384 Ao expor esse conflito entre o papel do Estado e da lei, Flexner evidenciava os conflitos que envolviam a organização da polícia de costumes e a manutenção de um “Estado de Direito”. Flexner também traz elementos interessantes ao observar o caráter educativo das leis e os sentidos que elas podem assumir no seio da população, acentuando aprovações ou desaprovações de comportamentos individuais e atos de governo. Voltarei ao debate sobre o conflito entre a manutenção do policiamento diferenciado do meretrício e o debate sobre os direitos individuais, mais adiante. 4.2.3 Problemas psicológicos e morais Discutindo sobre a moral sexual e a ética jurídica, Gusmão argumentou que o desenvolvimento do pudor possuía uma relação com o das civilizações e, também, que a moral sexual evoluiu lado a lado com a moral social, ao longo da história da humanidade. Para ele, “o pudor varia com o meio e a educação, sofrendo, em suas manifestações externas, a influência de fatores diversos, como a profissão, as classes as modas”, e essas 384 FLEXNER, 1919, p. 220-221, grifos meus. 135 variações teriam relação com os estágios evolutivos da civilização.385 Assim, o autor questionava se os limites impostos ao livre exercício da vida sexual deveriam “ser do terreno da moral, unicamente, ou da esfera jurídica, consoante o entenderam sempre as legislações dos povos civilizados”.386 Gusmão concluiu que somente nos casos que envolviam as anormalidades patológicas a lei deveria intervir e criar mecanismos de restrições sexuais. O pudor também teve lugar na obra do médico Commenge. Para ela, o problema da prostituição tinha relação com o aumento de casos em que se constatavam “ausência de senso moral, de pudor e de dignidade pessoal” tanto nas mulheres cuja educação e seu meio social “deveriam preservar as quedas lamentáveis”, quanto nas famílias de trabalhadores, onde a “promiscuidade”, a “penúria financeira” e as “más companhias” favoreciam a sedução e desestimulavam o “desenvolvimento do pudor”.387 Preocupado em estabelecer parâmetros para uma educação moral sólida para as jovens garotas do meio urbano, Decante também se ocupou em demonstrar a causalidade entre meio social e formação moral. Para a garota das grandes cidades, nós descobrimos, em sua base, uma educação defeituosa; frequentemente os lares dos trabalhadores não se interessam pela formação moral de suas crianças e esta amoralidade torna-se logo uma desmoralização pela promiscuidade dos sexos nas mesmas habitações, pelos exemplos da rua onde o vício se estabelece, pelos maus conselhos que começam na escola e que ganham, na oficina, uma intensidade, que não podemos presumir se não recebemos as confidências do aprendiz no dia seguinte de sua primeira revolta contra a imoralidade, que o envolve e busca torná-lo presa. 388 O meio social, na obra de Forel, tem um papel importante na formação da moral sexual das mulheres. Contudo, ele não afirmou que a prostituição era a única alternativa para a fome de inúmeras mulheres e famílias, nem partia do senso comum para afirmar o vínculo entre o meio social e a moral. O psicanalista chegou a essa conclusão baseando-se na análise de “relatos fidedignos” de casos de prisões e internações de meretrizes, em razão de doenças venéreas ou defloramentos. Sem realizar um detalhamento a respeito desses relatos, Forel entendia que o grande número de garotas das famílias de trabalhadores que entravam na prostituição devia-se à experiência vivida em seus lares e bairros. Segundo ele, as constantes exposições de crianças do meio operário, e também da pequena burguesia, à promiscuidade, ao álcool, às cenas de relações sexuais entre seus pais, às cenas cruéis e disformes da vida urbana, dificultavam a formação do “pudor” nas crianças, estimulando sua permanência no 385 GUSMÃO, 1921, p. 104, grifos meus. GUSMÃO, 1921, p. 110. 387 COMMENGE, 1897, p. 102-104. 388 DECANTE, 1909, p.237-238, grifos meus. 386 136 “mundo do vício”.389 Commenge, por sua vez, também admitia a coexistência de múltiplas causas da prostituição, como a preguiça, o abandono devido à perda da virgindade ou à gravidez, a vaidade, o desejo de brilhar, a má influência dos colegas, o mau comportamento dos pais, os maus tratos na família, as más companhias, as insuficiência da remuneração de seus trabalhos e sua consequente miséria.390 Além disso, os autores também se debruçaram sobre o problema da associação de doenças mentais à prática da prostituição. Sobre a questão, Forel lançou a seguinte pergunta: “seriam as prostitutas mulheres de incorrigíveis e maus instintos, ou vítimas da má organização social”?391 Para ele essa dualidade não correspondia ao cerne da questão. O problema, segundo sua perspectiva, não se devia à maldade natural ou às doenças da civilização, mas se daria pela interação entre características fisiológicas da mulher com suas relações de sociabilidade e sua dinâmica social e cultural. Na verdade, o cérebro da mulher é muito mais dominado por imagens sexuais e, sobretudo, pelas suas irradiações, do que os dos homens. Também é menos plástico e se torna mais facilmente escravo do hábito e da rotina. Então, se uma mulher tem sido desde a sua juventude, ou mesmo desde sua infância, sitematicamente atraída para as aberrações sexuais, e depois mantida desta forma, todas as suas ideias, da noite até a manhã e de manhã até a noite, concentram-se na devassidão e nas relações sexuais, de maneira que torna-se impossível, mais tarde, trazê-la de volta para uma vida de trabalho e cumprimento dos deveres sociais com seriedade.392 Forel enumerou, então, uma variedade de tipos de prostitutas, que eram caracterizadas por qualidades herdadas e não adquiridas. Dentre as patologias hereditárias, destacou a histeria, a ninfomania, o masoquismo, a hiperestesia sexual, entre outras “psicopatias”. Por outro lado, havia, também segundo o autor, mulheres naturalmente estúpidas, preguiçosas e mentirosas, desprovidas de senso moral.393 Todavia, as mulheres “seduzidas”, em seu estudo, formavam o maior contingente da prostituição, por se caracterizarem como “presas fáceis para os proxenetas”.394 Segundo sua perspectiva, as mulheres que se “entregavam” à prostituição “por amor à arte”, grupo composto por garotas e mulheres de origem aristocrata ou da alta burguesia, curiosamente, não merecia interesse para estudos mais aprofundados.395 389 FOREL, 1922, p. 349-350. COMMENGE, 1897, p. 5. 391 FOREL, 1922, p.348. 392 FOREL, 1922, p. 348-349, grifos meus. 393 FOREL, 1922, p. 349. 394 FOREL, 1922, p.352. 395 FOREL, 1922, p. 353. 390 137 O trabalho de Decante incorporou conhecimentos elaborados por Lombroso, baseando-se em seus pressupostos para afirmar que a prostituta seria a versão feminina do criminoso.396 Mais adiante, conduto, o autor ponderou que “o vício do sistema de Lombroso é que ele não estabelece, em nenhum lugar, o nexo de causalidade que ele afirma existir entre certa patologia e o exercício da prostituição”.397 Para ele a teoria do médico italiano tinha de enfrentar os trabalhos de vários cientistas que reconheciam que as mulheres poderiam ou não se tornar prostitutas, dependendo das circunstâncias de suas vidas. Chrysólito de Gusmão também se preocupou com a questão das “patologias sexuais”, incorporando as classificações de “anomalias” e “perturbações sexuais”, desenvolvidas por Krafft-Ebing, Grasset e Severi e Tomellini. O juiz brasileiro, que se mostrou um leitor questionador e versado em vários autores, também apontou inconsistências na obra de Lombroso. A teoria de Lombroso é, certamente, exagerada, pois, como bem pondera Puglia, se vários são os casos em que uma ligação íntima entre a epilepsia e a patologia sexual são patentes e inquestionáveis, certamente em inúmeros outros casos essa similitude se não manifesta.398 Forel foi outro autor que identificou uma relação estreita entre as “anomalias sexuais” e a prostituição. Ele argumentou, como vimos, que essas patologias, desenvolviam-se em uma relação entre fatores biológicos e sociais. Mas sua perspectiva como psiquiatra pode ter contribuído para seu entendimento de que o refinamento da civilização proporcionava “a cada forma patológica do apetite sexual, os locais e objetos destinados especialmente a satisfazêlas”.399 Essas reflexões o conduziram à questão da legitimidade em se compreender ou não a prostituição como um delito punível pela lei. Considerando a validade dessa punição, o autor argumentou que seria preciso, assim, punir tanto a prostituta como o cliente, pois ambos seriam culpados e ofereciam, igualmente, perigo para contaminação venérea. 400 Voltamos, então, ao argumento abolicionista, de que a prostituição não se faz sozinha. Essa perspectiva inspirou críticas fortes ao sistema regulamentarista e aos cientistas que defendiam a inferioridade humana da prostituta. Louis Fiaux apontou que essas ideias que pregavam a falta de caráter social e humano nas meretrizes e a existência de caracteres psicológicos, fisiológicos, anatômicos específicos, constituindo-as como uma patologia à parte dos outros seres humanos, foram incorporadas pela polícia de costumes. Indignado 396 DECANTE, 1909, p. 235. DECANTE, 1909, p. 236-237. 398 GUSMÃO, 1921, p. 27. 399 FOREL, 1922, p. 355. 400 FOREL, 1922, p. 358. 397 138 diante daquela situação, afirmou que o livro de Parent-Duchâtelet, “De la prostitution dans la ville de Paris”, era “repleto de páginas documentadas de primeira ordem, [mas] credenciou esta filosofia radicalmente falsa e imaginária da condição e da biologia das mulheres do proletariado que caem na prostituição”.401 Contra essas “mentiras” e “falsidades” o autor afirmou, enfim, que seu trabalho evidenciava, com uma diversidade de exemplos, em diferentes momentos e localidades, o “caráter transitório e acidental da prostituição”.402 Os livros e autores explorados nesta seção ocuparam diferentes posições num amplo debate público, promovido em diversos países, sobre o problema da prostituição. Procurei evidenciar que os autores em questão se distanciavam em diversos aspectos e também se aproximaram em outros. Essa interação, proposital ou não, faz parte da complexidade de um debate que não está explorado em todas as suas potencialidades e nuanças. Todavia, ela nos indica a existência de uma circulação de ideias entre profissionais de diferentes áreas e a formação de um debate público e internacional sobre o problema. Assim, qual seria a relação dessa circulação com o meio policial mineiro, mais especificamente, no seio do da Delegacia de Costumes? Quais as possibilidades de analisar a circulação das ideias científicas e acadêmicas no seio da polícia de costumes em Belo Horizonte? 4.3 as ideias em circulação: Belo Horizonte como um capítulo da história da polícia de costumes Ana Galvão argumenta que “não se pode inferir sobre as representações, crenças e valores de um determinado grupo somente a partir do que ele lê, declara ler ou possui em sua biblioteca particular e seleciona como bem inventariado”, ressaltando a importância de um investimento analítico dos processos de apropriação e consumo de um produto cultural.403 Além disso, circulação de ideias não se faz somente por meio da leitura, mas pelas inúmeras e diversas interações sociais nos espaços públicos ou privados, pela própria arquitetura e organização dos espaços.404 Desta maneira, a circulação dos produtos culturais é muito mais 401 FIAUX, 1902, p. X. FIAUX, 1902, p. XI. 403 GALVÃO, 2005, p.128. 404 O artigo de Moreno e Vago (2011) discute a educação dos corpos nas primeiras décadas republicanas em Belo Horizonte, cidade em que se desejava cultivar novos corpos para novos sujeitos, modernos, por excelência. Para os autores as prescrições dos códigos de postura, do policiamento e dos grupos escolares, faziam circular, na materialidade dos espaços da cidade e atingindo os corpos dos habitantes, diversas ideias e ideais políticos e morais sobre os modos de habitar a capital. Morel (2005) argumenta sobre a importância da circulação de ideias por meio de leituras de jornais e libelos em praça pública. Silveira (1996) destaca a importância dos cafés na capital mineira tanto para fermentação quanto para circulação de ideias. 402 139 fluida do que normalmente os trabalhos acadêmicos costumam considerar e, por isso, é importante, neste trabalho, perseguir essa fluidez. Assim, uma vez mapeados os principais temas sobre a prostituição no acervo da Biblioteca do Serviço de Investigações, foi possível cotejar esse mapa com os discursos e notícias de ações da Delegacia de Costumes, a fim de explorar os indícios desta circulação. Busquei, portanto, estabelecer as possíveis relações existentes entre as práticas locais de policiamento do meretrício e as ideias apresentadas anteriormente. Já afirmei que a reforma promovida por Bias Fortes na organização policial caracterizava-se como um esforço de racionalização da conduta policial. O secretário declarou que essa transformação dos procedimentos policiais seria promovida pela substituição dos “processos rotineiros da compreensão, por métodos racionais de pesquisa fundadas em princípios da psicologia criminal”. 405 Em meio a essas mudanças, os delegados especializados passaram a lecionar os cursos que integravam o programa da escola de polícia. A atuação dos delegados como docentes era vista como uma maneira deles entrarem “em contato com os problemas de criminalidade, tornando-os, desse modo, mais capazes no exercício de suas funções peculiares”.406 Esses cursos contavam com frequência e programa reduzidos, o que evidencia suas precariedades, mas suas intenções pedagógicas eram promover ao “homem de polícia” a aquisição de aptidões técnicas “pela observação e experiência a par de ensinamentos teóricos disciplinares das faculdades intelectuais”.407 A Biblioteca do Serviço de Investigações passou por uma situação de funcionamento semelhante. O chefe daquele Serviço, 1º delegado auxiliar em 1929, Alvaro Baptista de Oliveira, afirmou que a consulta aos livros era dificultada “pela impossibilidade de sua instalação em sala própria”.408 Por outro lado, todas essas medidas concorrem, ao menos potencialmente, para circulação de ideias sobre o policiamento do meretrício, a história da prostituição e os argumentos legais de sustentação dos poderes e ações da polícia. Essa potencialidade de circulação passa tanto pela possibilidade de leitura e sistematização das ideias de diferentes autores compartilhada entre os alunos dos cursos de polícia, quanto pela possibilidade de se compartilhar experiências concretas do cotidiano policial em relação ao meretrício, desde 405 Relatório da SSA, 1928, p. 35. Relatório da SSA, 1928, p. 36. 407 Relatório da SSA, 1928, p. 35-36. 408 Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 63. 406 140 casos vividos na capital mineira até casos de outras cidades do país ou do exterior. Mas o que se pode dizer sobre o conteúdo e as formas pelas quais as ideias circularam no seio policial? O ministro Justiça e Negócios Interiores, Augusto de Vianna do Castello, em seus relatórios dos anos de 1928 e 1929, fez diversas referências aos debates internacionais sobre a prostituição no Brasil. Ocupando-se da capital federal, o ministro assumiu, em seu discurso, as perspectivas negativas que acompanhavam a experiência da regulamentação da prostituição. Sua cautela sobre o assunto o levou a argumentar que “para nossa mentalidade, formada de tradições de decência e respeito aos princípios de religião e de ética, a regulamentação seria um meio inadaptável, repelido por motivos de invencível refratariedade”.409 Por isso, o ministro defendeu que a melhor solução para a prostituição no Rio de Janeiro seria a circunscrição da prostituição em uma zona fora da área de circulação das famílias e uma consequente vigilância policial de zona.410 A posição do ministro Augusto Vianna evidencia uma antiga tradição brasileira de não assumir que a intervenção policial na organização da prostituição seria uma “regulamentação” dessa prática.411 É preciso chamar atenção para o fato de que a situação mundial a respeito da polícia de costumes certamente contribuiu para algumas posturas da federação, mas não definiu, necessariamente, as políticas dos Estados brasileiros a respeito da organização policial em face ao “problema” da prostituição, em especial da polícia de costumes. Em consonância com a opinião pública mundial, o governo republicano não elaborou nenhuma 409 Relatório MJRI, 1930, p. 165. O que viria a acontecer, anos mais tarde, com a manutenção da prostituição na região do Mangue, ver LEITE (2005). 411 Rago (1991, 112-120) aborda a “regulamentação” da prostituição em São Paulo sem se ocupar do debate a nível nacional. A historiadora não tinha como objeto a regulamentação e, assim, ela não aprofundou sua análise sobre o assunto, limitando-se a apresentar as arbitrariedades policiais em relação às meretrizes e a descrever suas ações. Penso, contudo, ser importante destacar que a autonomia da ação policial em relação à legislação deve ser considerada, levando-se em conta a posição internacional do Brasil no debate sobre a prostituição. Pelo menos até a década de 1930, a posição do Brasil permaneceu contrária à adoção de uma legislação para regulamentar a prostituição. Sobre o caso, o delegado Candido Motta chegou a afirmar que “a polícia de São Paulo não regulamentou a prostituição; expediu simplesmente instruções preventivas contra os ataques públicos à moral e aos bons costumes” (Motta apud FONSECA, 1982, p. 171). A historiadora Cristiana Schettini (2006, p. 50) concluiu, em seu trabalho sobre o Rio de Janeiro, que “em lugar da regulamentação, o que ocorreu foi uma generalização dessa estratégia de negociação pontual e local” do poder de polícia envolvendo prisões e apadrinhamentos. Nesse sentido, oficialmente, o país não assumia uma política regulamentarista, apesar das polícias estaduais, como a de São Paulo e a do Rio de Janeiro (LEITE, 2005), terem organizado mecanismos de intervenção na prática do meretrício semelhantes ao sistema francês. 410 141 legislação que criasse a polícia de costumes ou regulamentasse a prostituição.412 Assim, a regulamentação no Brasil não ocorreu como política nacional, mas isso não impediu a elaboração, no seio das polícias estaduais, de argumentos que sustentavam a legitimidade de a polícia ocupar-se da vigilância, prisão e manutenção da ordem moral nos espaços do meretrício, durante as primeiras décadas republicanas. Analisando a experiência da Delegacia de Costumes, a partir desses pressupostos, observo repercussões do debate internacional em relação ao problema da polícia de costumes e a prostituição. Edgard Franzen de Lima, chefiando essa delegacia, promoveu um registro do meretrício no Estado, identificando 1084 mulheres em diversos municípios do Estado e 972 na capital. 413 Suas medidas enfrentaram oposição, sendo impetrados, segundo o próprio delegado, 23 pedidos de habeas corpus a favor de meretrizes. Tal empreitada teria sido, segundo Edgard, “prestigiada pelo Poder Judiciário firmando a egrégia Câmara Criminal [de Colendo Tribunal de relação do Estado], jurisprudência uniforme no assunto”.414 O registro promovido pela Delegacia de Costumes ocupava-se de “mulheres que se entregam notoriamente à prostituição” e consistia na elaboração de “prontuários com fotografias da prontuariada, qualificação, sinais e de um índice por sistemas de cartões”.415 Entre essas medidas e os sistemas de regulamentação promovidos em diversos países existem francas semelhanças. O critério da notoriedade da prática do meretrício, a inscrição e a adoção de cartões foram utilizados em diferentes localidades, com maior ou menor intensidade, partindo da variante do “sistema francês”. 416 Essa forma de promover o registro 412 Além disso, tendo em vista vários acordos internacionais e convenções sobre a repressão ao trânsito de pessoas que favoreciam ou exploravam a prostituição, o país promulgou a lei n. 4269, de 17 de janeiro de 1921, que regulava a repressão do anarquismo, declarando, ainda, o crime de lenocínio como inafiançável. A perseguição a estrangeiros foi uma das medidas tomadas pelas autoridades para conter o fluxo de mulheres que chegavam para compor o cenário do comércio dos prazeres. 413 O relatório indica os seguintes dados do registro: meretrizes identificadas em Araguari, 45; em Alfenas, 13; em Barbacena, 2; em Bom Despacho, 63; em Borda da Mata, 16; em Bambuí, 22; em Conquista. 82; em Campestre, 9; em Carmo do Rio Claro, 38; em Curvelo, 10; em Caratinga, 26; em Divinópolis, 65; em Diamantina, 137; em Extrema, 5; em Formiga, 9; em Grão Mogol, 59; em Guapé, 15; em Itajubá, 32; em Juiz de Fora, 4; em Itabirito, 7; em Lavras, 4; em Maria da Fé, 19; em Monte Santo, 36; em Muriaé, 5; em Nova Lima, 40; em Ouro Fino, 40; em Pedra Branca, 6; em Perdões, 7; em Pirapora, 7; em Pouso Alegre, 67; em Queluz, 56; em Sabará, 22; em Sacramento, 30; em Santo Antonio do Monte, 14; em São João d'El-Rei, 1; em Uberaba, 42; em Uberabinha, 6; e em Varginha, 23. Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 131-132. 414 Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 131. Tratarei, logo adiante, sobre a questão. 415 Relatório da SSA, 1928, p. 49. 416 Boiron (1926, p. 123-152), apresentou as tendências regulamentaristas em diferentes países em meados da década de 1920, como Alemanha, França, Itália, a cidade de Zurique e outras localidades na Holanda. O argumento da notoriedade do exercício da prostituição e do hábito dessa prática foi 142 era defendida por ser uma arma contra os erros de se registrar ou prender uma mulher honesta. Mas há, também, diferenças entre essas práticas. O sistema de cartões adotado em Paris funcionava para marcação das consultas médicas e indicar se as meretrizes estavam doentes ou saudáveis. Esse sistema fazia parte das obrigações da polícia de costumes e a “prefeitura de polícia” mantinha, integrados em seus serviços, esses consultórios.417 Já em Belo Horizonte, no período do registro, funcionava um serviço de “Doenças Venéreas”, que estava sob a direção do médico Antonio Aleixo, e era vinculado à Secretaria de Segurança e Assistência Pública, mas não há indícios de um vínculo direto deste serviço com a Delegacia de Costumes.418 Assim, o cartão das meretrizes, em Belo Horizonte parecia funcionar mais como identificação “criminal” do que parte de uma política antivenérea, como nos países regulamentaristas. Além do registro, duas outras características comuns à atuação da polícia de costumes, em diferentes localidades, foram observadas na experiência em Belo Horizonte. A primeira consiste nos casos de arbitrariedade das prisões promovidas pela Delegacia de Costumes. Como visto no final do capítulo anterior, o delegado Edgard Franzen de Lima foi bastante criticado pelas suas atitudes pouco convencionais e bastante arbitrárias em relação à circulação e às condutas de meretrizes na capital. De certa forma, suas atitudes assemelham-se às abordagens policiais francesas criticadas pelos estudos de Fiaux e Flexner. Jean-Marc Berlière comenta a repercussão na imprensa parisiense de casos em que “mulheres de família” foram presas e acusadas de abordar homens para o meretrício, entre outros casos de prisões irregulares. Para ele, a polícia, entretanto, nunca assumia seus erros e sempre argumentava que as acusações eram inverossímeis e partiam de seus adversários.419 É interessante notar a utilizado, por diversos autores, como norteador da definição da prostituição (1926, p. 2-8). Boiron afirma, ainda, que o “hábito”, desde o trabalho de Flexner, não seria condição necessária para definição de prostituição (1926, p. 9). 417 BERLIÈRE, p. 23. 418 A Secretaria de Segurança e Assistência Pública também era responsável pelos serviços de saúde pública, tais como o Instituto Raul Soares, Hospital Central de Alienados em Barbacena, entre outros serviços. Ver Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 181. Encontrei indícios de outros serviços com essa mesma função na cidade, como o Posto Central de Profilaxia das moléstias venéreas na capital, localizado na rua Santa Rita Durão, inaugurado em 1921; o Dispensário para sífilis e doenças venéreas no Centro de Saúde da Capital, à avenida João Pinheiro, implantado em 1928; o Dispensário Central Antivenéreo, que passa a ser sediado na Santa Casa em 1928; e o Dispensário Preventório Antivenéreo, aberto na rua Guaicurus em 1934. Da mesma forma, nenhum deles, aparentemente, possuía conexão com a polícia nem com a Delegacia de Costumes. Diário de Minas, 06-09-1921, p. 2; Estado de Minas, 06-09-1928, p. 2; Diário da Tarde, 12-04-1934, p.1. 419 BERLIÈRE, 1992, p. 87-129. 143 semelhança desse processo com as evasões do delegado Edgard Franzen de Lima quando indagado sobre suas arbitrariedades. Solicitadas do dr. Edgard de Lima as necessárias informações, ele respondeu, prontamente, que na realidade intimara as pacientes para se submeterem à identificação, mas que depois da intimação de nenhum constrangimento estavam ameaçadas. À vista dessas informações e porque, até prova em contrário, tem-se como verdadeira a palavra da autoridade, o dr. Juiz de Direito julgou prejudicado o habeas-corpus, por despacho de 9 deste mês. É bem claro que esse habeas-corpus não seguiu o curso processual até o fim porque, o delegado informou à autoridade judiciária que nenhum constrangimento iminente estavam sofrendo as pacientes. E tanto foi a afirmativa policial que pôs termo rápido ao processo do habeas corpus que o Juiz de Direito, julgando prejudicado o pedido, deixou de cassar os salvo-condutos, cuja expedição declarara. Pois, ontem, rasgando salvo-condutos, demonstrando que a informação oficial prestada ao Juízo fora escabroso ardil para evitar a decisão do habeascorpus pedido, aproveitando a ausência de seus superiores hierárquicos o dr. Edgard Franzen de Lima, com expressão de achincalhe para juízes e advogados, prendeu todas as mulheres e violentamente as identificou.420 Como já mencionei em outro momento, Edgard declarou que o registro do meretrício teve aceitações, e mesmo apoio, do meio judicial. O que não estava claro era que tal apoio teria surgido por meio de uma anulação dos pedidos de habeas corpus, conforme indicado na notícia acima. Não se trata de tomar o partido do discurso do jornal, mas de compreender como Edgard lançava mão de ardis jurídicos para realizar seu projeto – pessoal, profissional, ou mesmo, institucional – de moralização do meretrício na cidade. Isso é importante na medida em que devemos resolver os ressentimentos de nossa história. É preciso, então, assumir que Edgard, assim como os guardas que faziam o policiamento, como visto no segundo capítulo, promoviam inúmeras arbitrariedades em nome das prescrições que integravam as funções da Delegacia de Costumes. Assim, as práticas de prisão celular, por hora, por noite, correcional ou para averiguações, de mulheres tidas como meretrizes, que foram analisadas no capítulo anterior, dizem respeito a uma circulação de ideias a respeito de punição, controle e vigilância do meretrício, que também são observadas em outras localidades.421 420 “O Estado de Minas”, Arbitrariedades policiais, 11-10-1928, p.1, grifos meus. Como já foi bastante comentado, Jean-Marc Berlière (1992) expõe esses problemas existentes em Paris. Mary Gibson (1999) afirma que na Itália “a polícia possuía amplos poderes discricionários para decidir quais as mulheres iria prender e cadastrar” (p. 114) e que depois de uma regulamentação, em 1891, esse poder era exercido mais especificamente sob a forma de “reiteradas prisões” (p.131). Margareth Rago (1991) apresenta um panorama sobre essas prisões em São Paulo, descrevendo violências físicas e simbólicas pelas quais as meretrizes passavam com a polícia (p. 118-119). Paulo Santos Júnior (2005, p. 97), afirma que em Manaus “as crônicas policiais denotaram ausência de acusações específicas, a não ser as que implicaram infração ao decoro. O essencial era mantê-las 421 144 A segunda característica diz respeito às semelhanças entre prescrições da polícia de costumes francesa, paulista e mineira em relação à prostituição. Em 1896, o delegado Candido Motta lançou um “Regulamento provisório da polícia de costumes” para o policiamento na capital paulista. Este documento prescrevia que as meretrizes deveriam morar em domicílio particular, com no máximo três mulheres; que suas janelas possuíssem persianas na parte externa e cortinas duplas na parte interna; que era proibido chamar ou provocar os transeuntes, que não poderiam permanecer nas portas das casas, estabelecendo horários nos quais as persianas se conservariam fechadas; que deveriam se vestir com decência; bem como manter recato nos teatros, não sendo permitidas conversas com homens nos corredores.422 Se compararmos essas prescrições com o texto da capital mineira e com um texto de 1864 de Paris, podemos perceber os indícios da circulação desses preceitos. As mulheres inscritas, que possuem cartão, são obrigadas a comparecer, pelo menos, uma vez a cada duas semanas ao dispensário de saúde, para serem examinadas. São intimadas a mostrar seus cartões a todas requisições de oficiais e agentes da polícia. Estão proibidas de provocar licenciosidades durante o dia; só podem circular na via pública meia hora depois do horário fixado para o início do acendimento dos candeeiros; e não podem, em nenhuma estação, sair antes das sete e permanecer depois das onze horas. Elas devem estar vestidas de modo simples e decente, de forma a não chamar atenção dos olhares, seja pela riqueza ou cores dos tecidos, seja pelos modos exagerados. São interditos os cortes e penteados de cabelos. Proibição expressa lhes é dada, de falar com homens acompanhados de mulheres ou crianças e de direcionar, a qualquer pessoa, provocações em voz alta ou com insistência. Elas não podem, em nenhuma hora e sob nenhum pretexto, se mostrar em suas janelas, que devem estar constantemente fechadas e guarnecidas com cortinas. Fica proibido estacionar na via pública, de formar grupos ou organizar reuniões, de ir e vir entre um ponto e outro, e de fazer com que os homens as sigam e acompanhem. É expressamente proibido frequentar estabelecimentos públicos ou casas particulares onde se favoreça a prostituição e as hospedagens, de fixar domicílio nas casas em que existam pensionatos ou externatos e de exercer o meretrício fora do bairro em que habita. É igualmente proibido dividir seu apartamento com um concubino ou outra mulher, sem autorização. Neste caso de obter essa autorização, é expressamente proibido se prostituir no alojamento. reclusas, longe das vistas públicas, como as “francesinhas” no interior dos bordéis de luxo”. E, finalmente, Cristiana Schettini (2006) argumenta que as relações de sociabilidade entre policiais e meretrizes foram marcadas por disputas de autoridade envolvendo prisões por descumprimento de regulamentos (p. 43-50). 422 MOTTA apud FONSECA, 1982, p. 169-170. 145 As mulheres que desobedecerem estas disposições, aquelas que resistirem às ordens dos agentes de polícia, e aquelas que derem indicações falsas de sua residência ou nome, incorrerão em sanções proporcionais à gravidade do caso.423 É interessante notar como certas prescrições se fizeram presentes tanto nas portarias de Paris de 1860, como na de São Paulo, no final da década de 1880 e na de Minas Gerais, no final da década de 1920. Algumas, como as que se referem ao cartão de inscrição das meretrizes, não perduraram, como já exposto, em razão de não ter ocorrido uma regulamentação propriamente dita no Brasil. Outras, porém, persistiram e relacionavam-se com os principais pontos das reclamações difundidas pela polícia e pelas colunas sociais de jornais. Algazarras, licenciosidades, escândalos, devassidão e reunião em uma via pública são elementos incorporados nas críticas que habitantes de Belo Horizonte faziam ao livre exercício da prostituição no espaço público, como vimos nos capítulos anteriores. A janela é um exemplo muito interessante das permanências e semelhanças entre os modos de se tratar o problema da prostituição. Pode-se entender a importância histórica, internacional, conferida às proibições de meretrizes permanecerem nas janelas, como uma forma de circulação do conhecimento técnico que as instituições policiais elaboraram sobre a prática do meretrício.424 A meretriz, ao postar-se nas janelas ou varandas de seus domicílios, praticaria abordagens, provocações, solicitações aos transeuntes. O conceito de “racolage”, que se caracteriza pelo ato de abordagem feita pela prostituta a um possível cliente, foi bastante difundido, nas obras consultadas, como um dos principais comportamentos que mereciam atenção da polícia. Essa prática poderia ocorrer tanto no nível das ruas, como nas intersecções entre o espaço das residências e os espaços de trânsito. Assim, pode-se propor a hipótese de que a recorrência das prescrições policiais em relação à permanência das meretrizes na janela tenha relação com a circulação, naturalização e legitimação da tese que entendia a abordagem como a mais importante forma da meretriz “recrutar” clientes e que, por isso, precisava ser combatida. Forel, como outros autores, assumia que a prostituição se manifestava por diversas formas, mas classificou a prostituição de rua, caracterizada pela “abordagem”, como a forma mais baixa de prostituição. Essas abordagens, segundo o autor, ocorriam, dentre outras maneiras, quando uma prostituta permanecia “na janela de seu quarto” fazendo “sinais aos 423 DECANTE, 1909, p. 116-118, grifos meus. Boiron (1926), Decante (1909) e Forel (1922) apresentaram a recorrência de prescrições para o meretrício referentes aos usos das janelas e portas, em diferentes países europeus. 424 146 passantes”, provocando-os, convocando-os para um encontro.425 Boiron, comentou sobre um decreto parisiense de 1919, que proibia as mulheres de “se exibirem nas portas e janelas de suas casas”, indicando, também, um reforço de prescrições de horários e itinerários para circulação de meretrizes.426 A janela nos cenários urbanos brasileiros possui importância marcante nas relações entre o espaço da rua e o da casa. Muitas vezes “englobados” um no outro, a casa e a rua possuem espaços de “arruamento”, como as janelas, as varandas, as entradas de serviço.427 Para além da cisão tradicional entre público e privado, a janela, segundo a perspectiva de Roberto Damatta, exerceria uma função de “mediação” entre o espaço da rua e da casa, estabelecendo comunicações entre o íntimo e o coletivo, exercendo papel importante nas redes de sociabilidade de habitantes do cenário urbano. A polícia carioca, no período republicano, se ocupou em proibir e reprimir esse comportamento entre as meretrizes, gerando diversos conflitos e prisões. Esses episódios, narrados por cronistas, como João do Rio, e em notícias de jornais, evidenciam a importância da janela tanto para a prática da prostituição quanto para sua vigilância e repressão.428 Em Belo Horizonte, a portaria da Delegacia de Costumes, lançada em 1928, continha duas prescrições a respeito da janela. Uma “proibia” que as meretrizes permanecessem com “trajes menores” em “portões, janelas e alpendres e assim transitem pela rua”; a outra “coibia” o “abuso de meretrizes se postarem nas janelas, nos portões e nos alpendres com o intuito de forçar transeuntes a entrar nas respectivas pensões ou casa, segurando-os, tomando-lhes os chapéus e usando de outros meios escandalosos postos em prática no seu comercio imoral”.429 É interessante, enfim, notar como essas prescrições estabelecem critérios muito semelhantes em espaços e tempos tão distintos. Essas semelhanças são comentadas e discutidas por alguns autores e contamos com algumas explicações possíveis para o problema. Margareth Rago encontrou indícios de que a polícia de São Paulo tinha forte influência da organização francesa.430 André Rosemberg, por 425 FOREL, 1922, p. 341. BOIRON, 1926, p. 100. 427 DAMATTA, 1997, p. 40. 428 Alguns casos de prisões são comentados em SCHETTINI, 2006, p. 49-52. João do Rio faz uma leitura sobre o comportamento de homens, trabalhadores braçais, nas ruas de prostituição do Rio de Janeiro. Ao se juntarem nesses espaços, segundo análise de Schettini, baseada no escritor, criava-se uma situação propicia para afirmação de hierarquias e pertencimentos das identidades masculinas. 429 Relatório da SSA, 1929 v. II, p. 89. 430 RAGO, 1991, p. 111. 426 147 outro lado, explicitando essas influências, argumentou que havia no Brasil, desde o século XIX, uma busca por “modelos estrangeiros de policiamento mais pertinentes às realidades práticas, cada qual respondendo as necessidades mais pungentes de manutenção da ordem e que variavam no tempo e no espaço”.431 Essa variação, é importante ressaltar, tem relação com a forma descentralizada da organização policial, que se deu em nível provincial e estadual, e não nacional, como na França.432 Por isso, observamos que diferentes organizações europeias, principalmente a inglesa e a francesa, tiveram forte influência na organização policial no Brasil, identificada, inclusive, pela troca de correspondências entre autoridades policiais francesas e brasileiras. 433 Marcos Bretas observou uma tendência, durante as últimas décadas do século XIX, de reformulação da organização policial, que foi reestruturada com a proclamação da República. A disputa em relação à adoção do melhor modelo para a organização policial persistiu, entretanto, ao longo das primeiras décadas republicanas. Em 1913, observa-se uma tentativa de inserção das polícias estaduais no campo da polícia científica. Naquele ano um famoso criminologista alemão, Rudolph Archibald Reiss, visitou as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, contratado pelas autoridades policiais para ministrar palestras sobre a polícia técnica e científica. Além disso, foram implantados no Rio de Janeiro e em Minas Gerais serviços como o Gabinete de Identificação e Estatísticas, que faziam parte de um desejo difundido entre as autoridades policiais estaduais de ampliar e qualificar os processos de comunicação e interação entre as polícias dos Estados brasileiros.434 Assim, a circulação pode ser percebida para além de um processo de difusão e reprodução de conhecimentos. “Trata-se de um duplo movimento de inda e vinda, de reapropriação e transformação local de conhecimentos”, como os saberes jurídico-médicopolicial a respeito do meretrício, entre diferentes países e, no caso do Brasil, as dinâmicas estaduais.435 Apesar da falta de elementos suficientes para analisar esse processo, observa-se a 431 ROSEMBERG, 2010, p.47-48. BRETAS, 1997a, p. 40. 433 ROSEMBERG, 2010, p. 43.44. 434 Sobre a instalação dos Gabinetes e comentários sobre as comunicações policiais ver BRETAS, 1997a, p. 50-51 e SILVA, 2009, p.49. 435 GOMES, 2009, p. 10, nota 9. A investigação deste processo não pode ser aprofundada dada às limitações temporal, espacial e teórica deste trabalho. Entretanto os indícios apresentados neste capítulo permitem pensar na circulação desta maneira mais fluida. Elysio de Carvalho, por exemplo, quando chefe de polícia do Distrito Federal, proferiu diversas conferências nos Institutos de Polícia na França, publicando esses textos numa coleção denominada “Biblioteca do Boletim Policial”. Ver, CARVALHO, 1912, BN - I226, 2, 28 M.5. 432 148 elaboração de estratégias para tornar possível a circulação analisada neste capítulo, que envolveu a organização de redes sociais, acadêmicas, profissionais e a produção de materiais impressos. Todos esses elementos contribuíram para conformação de uma ambiência na qual saberes, ideias, representações, posturas, desejos e interesses de racionalização da organização policial circularam por meio das diferentes esferas de comunicação existentes, como ofícios, telégrafos, jornais, livros, congressos e cursos de formação. Essa dinâmica propiciou uma difusão de ideias e propostas para o policiamento do meretrício no país envolvendo, no mínimo, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A viagem de Edgard Franzen de Lima para São Paulo, em 1926, constitui-se, então, como um dos indícios da chegada dessas ideias por meio das relações profissionais travadas com a polícia paulista. Assim, é plausível afirmar que Edgard já estivesse familiarizado com algumas ideias sobre o policiamento do meretrício, antes mesmo da chegada de livros técnicos e científicos sobre a questão, o que ocorreu em 1928. Levando em conta que diferentes projetos para a organização policial circulavam naquele momento e que até mesmo o debate abolicionista seria minimamente conhecido pelas autoridades policiais no Brasil, como analisar “os silêncios” da Delegacia de Costumes de Minas em relação a esse processo? É claro que se pode refutar esta pergunta, afirmando-se, simplesmente, que eles não tiveram acesso à literatura abolicionista, mas isso seria “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Ora, já anunciei neste capítulo que há uma vasta discussão sobre o problema das diferentes formas de leitura e compartilhamento dessa prática, que envolve todo evento ou prática que tenha relações com a palavra escrita. 436 Nesta perspectiva, ainda que os livros adquiridos não tenham sido lidos, é plenamente possível que a discussão sobre abolicionismo e regulamentarismo tivesse alguma repercussão no meio policial. Como vimos ao longo deste trabalho, a Delegacia de Costumes desenvolveu um conjunto de práticas de repressão ao meretrício, por meio do seu policiamento, do registro e outras práticas que visavam à transformação do comportamento das meretrizes. Assim, podese conjecturar que o delegado responsável pelos cursos de instrução desta delegacia, possivelmente Edgard Franzen de Lima, tenha lançado mão de elementos que corroborassem as políticas que a instituição pretendia realizar. Nesse sentido, qualquer leitor munido dos interesses desta organização – ou mesmo aqueles que, sem ler nenhum dos livros adquiridos 436 Sobre o assunto ver MOREL, 2005 e GALVÃO, 2005. 149 pela biblioteca, entraram em contato com as ideias difundidas em diferentes instâncias da instituição policial – simplesmente ignoraria ou discordaria dos argumentos contrários aos seus interesses, como os abolicionistas, quebrando o protocolo de leitura previsto por editores e autores.437 Dessa forma, mais do que uma passividade em relação à autoridade dos textos a favor da regulamentação, mais do que desconhecimento do abolicionismo, houve um reconhecimento, por parte dos sujeitos envolvidos com os trabalhos da Delegacia de Costumes, da necessidade de promover ações para organizar o meretrício e por outro lado, de um afastamento dos argumentos abolicionistas. É preciso dizer, enfim, que não se tratava de ignorar tais ideias, uma vez que o Estado brasileiro deslegitimava a regulamentação, mantendo a decisão de não legislar sobre o assunto. Mas, sim, de uma estratégia que pretendia manter o poder discricionário da polícia de promover ações no intuito de conhecer, vigiar, controlar e intervir na prática do meretrício, a despeito, ou antes, em vista da posição nacional. Há, por fim, uma questão importante a se ressaltar, que diz respeito às propostas de combate à prostituição via ações educativas. Asúa e Decante, como vimos, sugeriram a difusão de conhecimentos científicos para formar a juventude nos princípios de uma educação moral e sexual. No Brasil, esses temas foram debatidos nos congressos da Associação Brasileira de Educação, onde se lançaram e defenderam teses sobre a necessidade de se organizar e sistematizar uma educação sexual no ambiente escolar do país.438 Esse interesse foi gestado no final da década de 1920, ganhando força política no governo Vargas. 439 Não há notícias, contudo, de uma ação educativa da polícia que consistisse nos métodos, técnicas e pressupostos pedagógicos tradicionais, como aulas, divulgação de 437 “Por mais que os produtores do texto e do impresso multipliquem seus protocolos de leitura e procurem orientar os mínimos movimentos do leitor, sua atualização, seus usos e os significados que serão de fato produzidos encontrarão sempre nos contextos de leitura um regime de condições que poderá ou não favorecer a realização das leituras visadas. Por um lado, do mesmo modo que autores e produtores do livro, os leitores estão também - quanto maior for o grau de institucionalização das situações em que leem - submetidos às múltiplas determinações que organizam as esferas sociais em que utilizam os textos. Por outro lado, eles são socialmente formados, compartilham um conjunto de competências e um horizonte de expectativas em relação aos textos e a sua leitura que não é, necessariamente, o previsto pelos produtores dos textos. Podem desenvolver, portanto, formas de apropriação que pouco têm a ver com aquelas visadas em sua produção e constituir, desse modo, um novo texto, com novos objetivos, novos usos, novos significados” (BATISTA e GALVÃO, 1999, p. 25). 438 OLIVEIRA e LINHALES, 2006. 439 VIDAL, 1998. Não encontrei nenhum estudo que tenha sistematizado esse processo em Belo Horizonte. 150 cartilhas, entre outros elementos. É possível que os serviços de profilaxia tivessem esse tipo de sensibilidade, mas em Belo Horizonte, o problema da disseminação da sífilis, não se tornou uma preocupação para a polícia. Sérgio Carrara, aliás, observou que o campo da luta antivenérea no Brasil se constituiu majoritariamente no meio médico.440 A única “ação educativa” que foi defendida pela esfera policial, e que dizia respeito ao conjunto de problemas acarretados pela prostituição e não somente ao contágio venéreo, consistia na organização de regulamentos, registros, prescrições e localização do meretrício, como apresentado ao longo desse trabalho. Nesta perspectiva, não consigo deixar de pensar no papel educativo que os Estados, no caso o Estado de Minas Gerais, podiam e pretendiam assumir. A circulação de tendências pedagógicas durante a década de 1920, que defendiam uma educação ampla e interessada em preparar as pessoas para a vida, é uma constatação que pode corroborar com essa hipótese. Noguera-Ramírez argumenta que a modernidade “entendida como aquele conjunto de transformações culturais, econômicas, sociais e políticas que tivera início nos século XVI e XVII na Europa, tem uma profunda marca educativa”. 441 O autor parte da hipótese de que a expansão da disciplina – significando saber, mas também poder – e da governamentalidade – os atos de governar os povos – constituíram-se como problemas pedagógicos e tiveram implicações nas transformações políticas, econômicas e sociais. 442 Marcos César Alvarez, estudando a formação do campo da criminologia no Brasil, argumenta que A maioria dos autores, acompanhando neste aspecto as opiniões correntes já manifestadas na Europa, se mostra cética quanto ao papel da simples instrução no combate à criminalidade. Para eles, o máximo que se conseguiria, com a ampliação da instrução primária para o conjunto da população, seria formar criminosos mais bem preparados intelectualmente para as tarefas delituosas. Eles defendem, em contrapartida, a necessidade de uma educação moral, pois é esta que poderia, ao fornecer um senso moral adequado às necessidades da sociedade, coibir os atos antissociais. Instituições como o Instituto Disciplinar também são concebidas sob os mesmos parâmetros, já que não se trata mais explicitamente de uma instituição penal, mas de uma “escola para crianças anormais”, capaz de garantir a formação moral para os abandonados pelos pais ou responsáveis. O objetivo da instituição é agir sobre essas crianças, cujo senso moral débil poderia leva-las ao crime. Ainda, como vimos, em virtude do caráter educativo deste tipo de estabelecimento, sua direção deveria ser deixada a cargo de um médico, pois este era o profissional por excelência da “cura moral”.443 440 CARRARA, 1996, p.165-166. NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 20. 442 NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 21. 443 ALVAREZ, 2003, p. 159, grifos meus. 441 151 Não foi possível observar ecos desta defesa, elaborada no seio jurídico, nas propostas e ações policiais em Belo Horizonte, que teria como função, para diferentes sujeitos, exercer uma “discreta e criteriosa energia de uma ação preventiva”. 444 Mas se as artes de governar são envolvidas por inquietações profundamente pedagógicas, é plausível levantar a hipótese de que determinados governos tenham se empenhado mais claramente em levar a cabo essas propostas a níveis mais amplos. Jacques Revel, refletindo sobre a consolidação de sentimentos e normas de civilidade em um período de complexificação social, argumentou que “os procedimentos de controle social tornam-se mais severos, através das formas educativas, da gestão das almas e dos corpos, encerram o indivíduo numa rede de vigilância cada vez mais compacta”.445 Destarte, a hipótese de que há implicações pedagógicas na ação estatal e policial se reforça, e pode-se até mesmo cogitar que “incutir uma atitude sociável, tarefa de múltiplas instituições, como a escola, a polícia, o Estado e a família, passa por uma dimensão coercitiva, mas que tem, por fim, implantar um trabalho sobre si, em relação ao outro”.446 Retomo, assim, as justificativas policiais de que a organização da Delegacia de Costumes buscava, ao definir parâmetros para repressão e prevenção dos atentados à moral e aos bons costumes, produzir “influência educativa” na vida das meretrizes. A influência pedagógica no “governo das meretrizes” se daria, então, pela promoção do policiamento moral do meretrício – que envolvia as relações de sociabilidades, as prisões e também o registro – pautado na experiência vivida, adquirida, repensada e compartilhada pelos guardas-civis e investigadores, tanto no cotidiano policial quanto em momentos específicos de formação profissional. Segundo um ditado citado por Spencer, “a experiência custa caro”, mas seria por meio dela “que os homens abandonam qualquer gênero de proceder mau ou tolo que até então tenham adotado”.447 Essa lógica utilitarista não é explicitada na 444 Relatório da SSA, 1929, v. II, p. 85. Observa-se, por outro lado, a abertura de instituições educacionais que atenderiam a “infância desvalida”, como o Instituto João Pinheiro, e que possuíam um caráter de formação moral (FARIA FILHO, 1991). Podemos destacar, também, a aposta no modelo terapêutico do cárcere, fundamentada a partir do governo Antonio Carlos, que “se orientava por objetivos de “tratamento”, em oposição à perspectiva punitiva ou meramente custodial. A terapia recomendada era o trabalho e o sistema penitenciário deveria se edificar em torno de duas grandes unidades – a Penitenciária Agrícola em Neves e a Industrial em Juiz de Fora” (PAIXÃO, 1991, p. 36). A primeira foi inaugurada em 1934 e o projeto da segunda não foi desenvolvido. De todo modo, percebo uma distância entre a produção dos juristas e as definições das políticas de policiamento e de ações policiais. 445 REVEL, 1991, p.170. 446 SEGANTINI, 2010, p. 127. 447 SPENCER, s/d, p. 160. 152 documentação consultada, mas traduz, de forma interessante, o desejo das autoridades policiais a cargo da Delegacia de Costumes de transformar, pela experiência de vigilância e repressão sistematizada, os comportamentos das meretrizes em Belo Horizonte. Finalmente, não posso deixar de explicitar que, enquanto a polícia de costumes tendia a um desaparecimento na França e em outros países, as autoridades políticas e policiais em Belo Horizonte, assim como em São Paulo e no Rio de Janeiro, se ocupavam em formar investigadores para atuar na vigilância direta da zona do meretrício e na fiscalização moral dos costumes. Informados diretamente ou indiretamente por saberes acadêmicos sobre o tema, os sujeitos envolvidos com a administração policial apostaram na importância e legitimidade de ações regulamentaristas para a prostituição na cidade. Deste modo, procurei evidenciar diversos esforços de racionalização do policiamento urbano, mesmo que poucos tenham se cumprido ou mantidos. A Delegacia de Costumes teria sido apenas um entre outros investimentos policiais para cultivar os corpos “em suas maneiras e em seus modos”, na materialização dos projetos de modernidade em disputa na capital mineira. 448 448 MORENO e VAGO, 2011, p. 68-69. 153 5 SÍSIFO NAS ALTEROSAS Eliane Marta Teixeira Lopes conclui sua tese reafirmando o processo dialético na aprendizagem das lutas políticas, que permitiu a emergência de projetos políticos e possibilitou a formação da “consciência” de “viver em colônia”, ao longo do século XVIII.449 Retomo essa conclusão, quase 27 anos depois – em um trabalho cujo objeto é profundamente distinto daquele analisado no livro “Colonizador-Colonizado” –, por entender que ela me auxilia a organizar os problemas discutidos ao longo deste estudo. Realizar uma análise sobre o processo educativo vivenciado nas relações que a polícia manteve com a prática da prostituição em Belo Horizonte implicou um grande esforço de refinamento teórico. Entretanto, esse esforço se deu, sistematicamente, de maneira muito dispersa e numa busca por sustentar as hipóteses levantadas, de acordo com as especificidades das fontes e das questões formuladas. Por isso, é preciso voltar ao problema proposto no início deste trabalho, a fim de sugerir uma leitura mais ampla do conjunto de perguntas que foram desenvolvidas. Ao encerrar este estudo, tenho maior clareza sobre as formas como o “pedagógico” pôde se desenvolver nas relações travadas entre policiais e meretrizes e entre a instituição policial e a prática do meretrício. Mais do que um simples jogo de imposição e submissão, essa relação foi marcada por um conjunto de negociações, estratégias, astúcias e problematizações, que envolveram projetos distintos para as formas de “viver na capital”, pela disputa por diferentes modos de existir. Mais do que um projeto policial de conformação ou de adequação dos corpos das meretrizes, foi um processo de idas e vindas, que envolveram os corpos dos homens que frequentavam a prostituição, daqueles que policiavam esses espaços urbanos, das “mulheres de família”, que precisavam de proteção e das meretrizes, que mereceram atenção especial da polícia. Ademais, para além da organização local de projetos de racionalização dos trabalhos policiais, ocorreu uma ampla circulação de ideias, práticas, saberes e materiais impressos, advindos de outros Estados brasileiros e países, conformando projetos de formação física e intelectual dos agentes policiais. A tese de Lopes me auxiliou, assim, a redimensionar as questões propostas e desenvolvidas nesta dissertação. Pois, se, de um lado, os discursos são capazes de evidenciar as estratégias de controle e de produção de poder das instituições estatais, por outro, eles dão 449 LOPES, 1985, p. 207-215. 154 indícios, quando observados em uma série, como nas colunas policiais dos jornais, “daquilo que não foi”, das tensões e conflitos que sinalizam para a existência e a persistência de outros projetos de vida, mesmo que não tenha sido possível esmiuçá-los.450 Michel Foucault afirmou, certa vez, que as vidas de milhares de anônimos só podem ser esmiuçadas pelos historiadores, porque, em meio a diversas outras possibilidades, elas “cruzaram os caminhos” de um poder legitimado, chocando-se com ele e alimentando a produção de registros – judiciais e policiais – sobre suas existências.451 Penso que esses choques são a manifestação da relação dialética do “pedagógico”, de que nos falou Eliane Lopes. Assim, as práticas da polícia/Delegacia de Costumes, mais do que repressão, mais do que projeto de civilização dos costumes, estabeleceram-se também, segundo a hipótese defendida neste trabalho, como uma experiência pedagógica, que envolveu três processos interligados: a legitimação da atuação policial na resolução de problemas morais; a prática do policiamento moral e as experiências prisionais de meretrizes para “correção” dos seus comportamentos; e, ainda, o incentivo para uma formação intelectual dos profissionais de polícia, capaz de prepará-los para intervenção nos problemas morais na cidade. Busquei, ao longo desta narrativa, sistematizar essa hipótese. Inicialmente, analisei as nuanças do processo de problematização que determinados grupos de cidadãos e a polícia realizaram a respeito da necessidade de organização do meretrício, em defesa da moralidade pública. Esse movimento foi marcado pela proteção da família, por propostas de policiamento dos costumes e de regulamentação da prostituição, que, no entanto, não questionavam a existência da prostituição em si, e, sim, sua “adequação” à vida urbana da capital. Também argumentei que para além de discursos e prescrições sobre os comportamentos, a pedagogia pode ser entendida como práticas que incidem sobre os corpos.452 Assim, a ação educativa se daria, de maneira mais direta, na relação entre os policiais e as meretrizes, nas práticas de policiamento, prisão e admoestação. E, por fim, realizei uma análise do processo de “racionalização” da prática policial, que se deu por meio de uma estratégia de formação, que implicou na organização de trabalhos acadêmicos a respeito da relação entre polícia e prostituição, em uma biblioteca; no investimento da relação entre a polícia mineira e as instituições congêneres de outros Estados; e nas proposições de sistematização do 450 Como advertiu Paul Veyne (1983), historiadores e historiadoras devem observar os compossíveis não realizados, aquilo que poderia ter sido, mas não foi. 451 FOUCAULT, 2006, p. 97-99. 452 VIGARELLO, 2005. 155 policiamento, por meio de registro, que possibilitaria um conhecimento prático da prostituição na cidade. Com isso, observei algumas possibilidades de leituras e de sua difusão, existentes naquela ocasião, que contribuíram para a circulação de ideias e práticas, envolvendo diferentes Estados brasileiros e países. Essas reflexões me permitiram observar, assim, que as lutas pelas mudanças e intervenções nos comportamentos das meretrizes fizeram parte do processo de transformação, ou antes, de consolidação de um espaço público na cidade. As demandas pela moralização do espaço público, mais do que sinônimo de uma invasão promovida pela esfera privada, evidenciam a construção de demandas sociais e coletivas, baseadas em princípios íntimos e morais. Dito de outra forma, antes de se configurar como uma “tirania da intimidade” na consolidação de projetos políticos, como defende Richard Sennet, trata-se de um exemplo da especificidade das relações sociais na produção de projetos de civilidade e de formas de habitar e organizar o espaço urbano na experiência de uma “cidade moderna”.453 Assim, entendo que as campanhas pelo policiamento do meretrício e pela repressão aos comportamentos das meretrizes – baseadas em uma defesa da família, das filhas e esposas honradas – devem ser compreendidas pela chave das relações intrínsecas travadas entre os sujeitos e as instituições públicas, num processo de moralização dos interesses políticos. Mas, da mesma forma que pude responder a algumas questões propostas inicialmente, várias outras não puderam ser aprofundadas. Algumas delas são importantes e precisam ser anunciadas. Em primeiro lugar, há um conjunto de elementos que não foram discutidos devido à limitação das próprias fontes. Não tive o intuito de investigar se os projetos de transformação dos comportamentos das meretrizes, de alguma forma, “funcionaram”, ou melhor, se as meretrizes “incorporaram” os preceitos desse processo educativo. 454 Mas, por outro lado, observei que elas participaram ativamente destes projetos, num movimento de negociação, em que tiveram que lidar com as arbitrariedades policiais, bem como com as “perseguições” e as “proteções”, nos momentos de “aplicação” das prescrições da Delegacia de Costumes. Assim, a consolidação, ou não, de prescrições para os comportamentos corporais e para os modos de se viver na cidade, foi um processo marcado por 453 Para Sennett (1998), ocorreu uma perda de “autenticidade” nas relações político-sociais com o advento da modernidade. Essa perspectiva assume que a “essência” do público encontra-se no caráter impessoal e só consegue perceber a modernidade como uma deturpação do sentido original dessa noção. Entendo, por outro lado, que o “público” é aquilo que as pessoas fizeram dele e que a modernidade é marcada por relações intrínsecas entre o indivíduo e o mundo social. Sobre as críticas à perspectiva negativa de Sennett sobre a modernidade, ver NADER, 1989. 454 Digo “incorporado” no sentido de Bourdieu, discutido no segundo capítulo. 156 ressignificações das ordens iniciais. Um grande exemplo disso, foi a aplicação das ordenações da Delegacia de Costumes, que eram originalmente destinadas às mulheres, para reprimir também os comportamentos de homens. Não foi possível, entretanto, analisar profundamente a experiência daquelas mulheres e daqueles homens na relação com esse processo ao longo de suas vidas, o que pode se tornar um tema de pesquisas futuras. Além disso, não pude explorar de maneira mais sistemática o debate teórico a respeito dos processos de circulação de ideias e das possibilidades de leitura dos policiais. Ao analisar um conjunto de indícios que apontavam para os projetos de investimentos na educação formal dos policias, para o exercício de sua prática, optei por mapear essas possibilidades propondo algumas hipóteses e caminhos de análise desse movimento. Esse exercício, aliás, também me permitiu observar o problema proposto do ponto de vista da interação, das permanências e da recorrência de práticas em localidades e tempos tão distintos, perspectiva pouco explorada em estudos historiográficos mais recentes. De todo modo, é certo que não pude analisar mais detidamente a formação dos guardas-civis, dos investigadores, tampouco dos delegados, o que seria extremamente interessante e produtivo para análises mais sólidas sobre a questão. Penso ser necessário, ainda, investigar as relações travadas entre a instituição policial e a população da cidade, sob a ótica das disputas entre os projetos para “viver na capital”. Acredito que a experiência educativa nas relações sociais e as formas pelas quais nossas relações afetuosas, morais, políticas e econômicas foram educadas ao longo do tempo, seja um grande terreno historiográfico a ser (re)aberto e explorado. Se a limitação temporal deste trabalho já me permitiu observar a consolidação gradativa de uma problematização moral e sexual no campo policial, fico curioso para saber em que medida uma pesquisa que analisasse essas relações ao longo de um ou dois séculos poderia contribuir para a compreensão das formas pelas quais nossos comportamentos morais e sexuais foram educados ou, antes, alvos de uma pedagogia. Esse tipo de história, ao que parece, ainda está por se fazer e não quero dizer que ela seria menos ou mais importante do que a produção acadêmica atual já faz, mas sim, que há pouco investimento/interesse nesse tipo de pesquisa, tanto material quanto intelectual. Na perspectiva da história da educação do corpo e das sensibilidades, penso ser crucial problematizar e compreender as tensões em torno da construção de corpos e de sensibilidades “ideais”. No trabalho, na escola, na vida cotidiana da cidade, nos momentos festivos e conflituosos podemos observar não somente prescrições para educação dos corpos e das 157 sensibilidades, mas principalmente “uma relação educativa no movimento da história”.455 Essa perspectiva permite observar e analisar essas pedagogias como um processo de luta, de negociação, ou seja, que pressupõem uma relação e não uma simples imposição pacífica de valores, ideologias, princípios estéticos, políticos e éticos. Não haveria, dessa forma, um projeto central, mas um encontro de várias leituras do mundo, que criam sentidos e caminhos diversos para a vida humana. Apesar disso, é necessário dizer que conhecemos muito dos projetos “vitoriosos”, restando um número ainda não mensurável de projetos escondidos em forma de ruína, de “derrota”.456 Ao longo do trabalho de pesquisa que deu origem a este estudo, transitei ao largo da metáfora da prostituição como um “mal necessário”. Curiosamente, porém, as fontes que dizem respeito à Belo Horizonte fizeram poucas referências explicitas à necessidade da existência da prostituição. Por outro lado, os sujeitos que problematizaram essa prática na capital das alterosas justificavam suas ações com o argumento da necessidade de organizá-la, determinando espaços, preceitos morais e comportamentos das mulheres que se ocupavam do amor venal. As lutas que buscaram definir soluções para o problema transformaram a prostituição numa pedra de Sísifo para a instituição policial, que precisou, periodicamente, rever suas ações de policiamento.457 Num curto período a prostituição foi legitimada como um assunto de uma polícia especializada, que atuou na promoção políticas de policiamento e controle dessa prática. A existência da Delegacia de Costumes até o início da década de 1970 também sugere que o “problema” da prostituição teve de ser retomado ao longo do século XX. Nesse processo, a “pedra de Sísifo” parece ter sido compartilhada com outras esferas, como a da saúde, da pastoral, da luta feminista e das “profissionais do sexo” mobilizadas em torno de seus direitos individuais e coletivos, no decorrer do “breve” século. Atualmente, ainda existem propostas, na Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte, de se “proibir a localização e o funcionamento de usos tradicionalmente utilizado para a prática da prostituição” nas ruas Guaicurus e São Paulo, para “criar condições favoráveis ao incremento do processo de revitalização 455 Expressão tomada de empréstimo do título da tese de Eliane Marta Lopes (1985). Os historiadores, segundo Benjamin (1994), deveriam observar essas ruínas, de onde podem retirar material suficiente para problematizar e propor uma leitura a “contrapelo” da história. 457 Na mitologia grega, Sísifo, rei de Ephyra – futuramente conhecida como Corinto –, foi condenado, após sua morte, a carregar diariamente uma rocha até o lugar mais alto de uma montanha, de onde ela sempre rolava morro abaixo. Essa ideia de que a luta contra a prostituição é um empreendimento de grandes esforços que precisam ser retomados, constantemente, do ponto inicial é evocada por Boiron (1926) em sua conclusão sobre a prostituição do ponto de vista da história. 456 158 urbana”.458 Não digo que este tipo de proposta tenha relações diretas com o processo estudado neste trabalho, mas entendo que a persistência do tema em órgãos da administração pública corresponde a uma longa tradição de se problematizar, moralmente e politicamente, a prostituição, que se encontra dividida entre os argumentos da necessidade de uma intervenção direta do Estado, da necessidade de criação de espaços especiais e da defesa dos seus direitos individuais. Todavia, as especificidades desse processo ainda estão por serem analisadas e historicizadas em novas propostas de pesquisa, que podem dar continuidade às reflexões desenvolvidas neste estudo. 458 Justificativa do Projeto de lei 1450/07, de autoria do vereador Alexandre Gomes, que visava criação de Área de Diretrizes Especiais. O projeto foi vetado pela Comissão de Legislação e Justiça, pela Comissão de Direitos Humanos e pela Comissão de Meio Ambiente e Política Urbana, mas é indício de que a prostituição ainda é um tema de problematização moral que é alvo de projetos de intervenção pública. 159 FONTES Entidades consultadas Arquivo Público Mineiro – APM Biblioteca Nacional – BN Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa – BPLB Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa – HH Relatórios de autoridades policiais, da segurança e da justiça. BRASIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. 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José Francisco Bias Fortes, Secretário da Segurança e Assistência Pública referente ao ano de 1928. Volume I. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1929, p. 54 -80: Para a biblioteca do Serviço de Investigações foram adquiridas ultimamente as seguintes obras que já foram recebidas: AGUIAR (dr. Asdrúbal A. de) – Sciencia Sexual – Livro I – Órgãos copuladores da mulher; Sciencia sexual - livro II – Virgindade ACHARD (Ch.) - Sémiologie Nerveuse (XXI do N. Traité de Méd. de Brouardel et Gilbert – Gilbert et Thoinot) ANDRÉ (Louis) – Le récidive ARBINET (S.) – Le Jury criminel AUBIN (René Saint) – Des faux correctionnalisés. ANDRÉ (Leonce) – Tribunaux pour enfants et liberté surveillée AREXY (G.) – Les jeux de hasard, loteries et paris – Traité de police ALIMENA (B.) - Studi di Procedura Penale AGUILERA DE PAZ (E.) - Tratado de las Cuestiones Prejudiciales y Prévias en el Procedimiento Penal. ALTAVILLA (E.) - Le aggravanti e le qualifiche del furto ALVES (João Luiz) - Código Civil ALBOISE (M.M.) el Maquet (A.) – Les prisions de l'Europe AZEVEDO (Domingos de) – Grande dicionário contemporâneo Francês-Português e Português-Francês AULETE (F. J. Caldas) - Dicionário contemporâneo da língua portuguesa ASSÚA (Luiz Jeminez (D) - Endocrinologia y Derecho Penal – Eutanasia y homicídio por compasion – La legislación penal y la practica penitenciaria en Suramerica – La lucha contra el delito de contagio venéreo. AMA[R] (Jules) - Organisation physiologique du travail ANDREÁNI (Isidoro) – Il Perito calígrafo ABRIL Y OCHA (D. José) – Leyes penitenciarias de España ARNAUS (Pedro) – Policia práctica ALBÓ Y MARTI (Ramón) - Los tribunales para Niños ALMANDOS (Luis Reyna) - Origen e Influencia jugentino[sic]. Dactiloscopia argentina ANNUAIRE de la Presse Française et étrangère et du monde politique, 1928. AUGÉ (Claude) – Nouveau Larousse illustré 8 vols. ALLEN’S Commercial Organic Analysis, 6 vols. AUTENRIETH (W.) e WARREN (W. H.) - Laboratory Manual for the detection of poisons and powerful drugs. AUTENRIETH (W.) - Nachweis und Bestimmung der Gifte auf chemischem Wege. ANNALES de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de la Plata, 1926. Ano I. Diretor, dr Henrique Ruiz Guiñazú ABDERHALDEN (dr. Emil) - Handbuch der biologischen Arbelis-Methoden SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 1 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 2 - 1ª parte SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 2 - 2ª parte 172 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 3 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 6 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 7 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 8 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 9 SEÇÃO 1ª Chemische Methoden, vol 11 ANGEWANDTE Chemische und Phisikalische Methoden SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 3-1ª parte SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 4-1ª parte SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 5-1ª parte SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 5-2ª parte SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 7-a SEÇÃO 4ª “ “ Vol. 7-b ABDERHALDEN (dr. 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BROUARDEL (P.) - La mort et la mort subite – Les asphyxies – Les blessures et les accidents du travail – La responsabilité Médicale – Le mariage- L'infanticide – Les attentats aux mœurs – L'exercice de la médicine et le charlatanisme – Les explosifs et les explosions au point de vue médico-légal – Les empoisonnements criminels e accidents – La pendaison, la strangulation, la suffocation et la submersion. BROUARDEL (P.) et OGIER (J.) - Le laboratoire de toxicologie. BINDING (Carlo) – Compendio de diritto penale (Parte generale) BENEDETTI (C. de) – Il ricorso per cassazione in materia penale BASTOS (J. Tavares) – A polícia estadual ante os crimes federais BARTJE (L.) - Toxicologie chimique BRIAND et CHAUDÉ – Médecine Légale BLACHE (A.) - Études sur le code Pénal BARBIER (G.) - Code Expliqué de la Presse BRICHETTI (G.) - Le rinunzie nel diritto processuale penale BARRETO (Tobias) – Menores e Loucos 173 BOIRON (N.M.) - La prostitution dans l'Histoires, devant le Droit, devant l'Opinion. 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De tres maneras cabe enfrentarle: 1) Declararla por si misma un delito, por [p. 45] su caracteres inmorales; es decir, sistema de prohibición y castigo. 2) Considerarla como un mal necesario, que es preciso consentir y reglamentar, en bien de la salud y del orden público; es decir, sistema de reglamentación. 187 3) Estimarla como una inmoralidad, imposible de suprimir, abandonándola a sus propios desenvolvimientos, sin perjuicio de reprimir los delitos que puedan cometerse con ocasión de ella; es decir, sistema de libertad. El primer procedimiento lleva implícita la idea de que la prostitución es un delito. Dugdale, y, sobre todo, César Lombroso, han creído ver en ella el equivalente del delito en la mujer. “La prostitución – dice el fundador de la escuela positivista penal – es a las mujeres lo que el delito a los hombres, porque las prostitutas tienen los mismos caracteres físicos y morales que el delincuente”. Aunque no faltan algunas leyes – como las de muchos cantones suizos – que adoptan este criterio prohibitivo, castigando a las prostitutas habituales, puede afirmarse que se halla abandonada la dudosa tesis de la prostitución como delito. Gana cada día más terreno la idea de no considerar a las mujeres públicas como delincuentes, ni siquiera como seres despreciables, y los ademanes tolerantes y comprensivos sustituyen a las posturas demasiado rígidas. Lo que preocupa de manera superlativa es atenuar los daños ocasionados por la transmisión de enfermedades venéreas. El sistema de reglamentación, que es el más seguido por las legislaciones, persigue un objetivo sanitario. El Estado se cree en la necesidad de intervenir en la prostitución para atenuar sus peligros, principalmente los que derivan del contagio de enfermedades sexuales. Pero también este método ve disminuir, de día en día, sus secuaces. Higiénicamente, no tiene valor alguno. Los reconocimientos médicos, verificados en una masa enorme de prostitutas, no pueden ser llevados con rigor científico, y en la mayoría de los casos quedan reducidos a un examen superficial, que no garantiza la salud de las mujeres observadas. Además crea en los frecuentadores de prostíbulos una confianza falsa: estimándose protegidos por los reconocimientos oficiales, abandonan los hombres las prácticas de profilaxis, que tal vez adoptarían si la prostitución no se hallase reglamentada. Este sistema es más lamentable aún desde el punto de vista del orden moral, ya que conduce indefectiblemente a fomentar el tráfico de blancas y pervierte el sentido ético de los jóvenes, haciéndoles pensar que lo que el Estado organiza y reconoce debe ser una necesidad pública. El sistema de libertad se abre rápidamente ancho camino. El abolicionismo gana, cada hora, un nuevo adepto. Una dama inglesa, la señora Josefina E. Butler, después de arrancar numerosas víctimas a la prostitución, fundó en 1874 la Federación abolicionista internacional., logrando que el Parlamento británico aboliera la llamada policía de las buenas costumbres, implantada en Inglaterra por el ejemplo de Francia. En los pueblos escandinavos, y en casi todo el Noroeste de Europa, la reglamentación ha desaparecido. Incluso en territorio francés – país clásico del sistema reglamentista –, y en el suelo de España, se escuchan nutridas voces abolicionistas. En la República Oriental del Uruguay propaga sin descanso la certera doctrina una mujer de rectas intenciones: la doctora Paulina Luisi.” ASÚA, 1925, p. 48-50: “Las objeciones de orden sanitario que puede levantar la tesis abolicionista están ausentes de contenido. Los sistemas reglamentadores no garantizan la higiene de la vida sexual y as estadísticas comprueban que los países que han acogido el abolicionismo han visto disminuir sus enfermedades sexuales. Los datos publicados en Londres demuestran que, en Inglaterra, han decrecido las afecciones venéreas, sufridas por todas las clases sociales, en 188 un 50 por 100, desde 1883, y, sobre todo, desde 1886, en que se suspendió y abolió definitivamente la reglamentación de la prostitución. Mauricio Gregory, en nombre de la Asociación inglesa para promover la Pureza Social y para la Abolición de la reglamentación del vicio por el Estado, presentó gráficos inequívocamente reveladores de este hecho, en el Congreso de Madrid, para la Supresión de la trata de blancas. En Alemania, A. Adam confiesa también que en los pueblos que han implantado el criterio abolicionista– Inglaterra, Noruega, Dinamarca, etc. – se ha producido un descenso de las enfermedades sexuales.” BOIRON, 1926, p. 114: “Aussi la doctrine est-elle unanime à proclamer l’arbitraire du régime pratiqué à Paris. On lit notamment dans les Pandectes françaises (Voir Arrestations, n. 35) : Si l’on examine la question au point de vue du droit commun, l’arrestation des filles soumisses, prévenues d’une simple contravention à un arrêté administratif paraît injustifiable, puisqu’une contravention, alors même qu’elle devrait être punie d’emprisonnement, ne comporte pas l’arrestation préventive. Nous ne pensons pas qu’il y ait lieu d’indiquer ici les règles du droit commun ; l’intérêt des mœurs et de la salubrité publique domine cette question.” BOIRON, 1926, p. 270-271: “Quoique, à nos yeux, le régime de la réglementation réformée soit incontestablement le plus propre à combattre pratiquement le mal vénérien issu de la prostitution, maintenant surtout que le contrôle sanitaires est organisé sur les bases puissantes que nous avons plus hait rapportées, nous ne nous sentons pas autorisé, en raison de ses tares congénitales, à le considérer comme le seul système capable de réaliser les nobles buts qui forment ses objectifs. (…) Quant au statut définitif de la prostitution, nous pensons que des tâtonnements propres à l’état de gestation des tendances nouvelles, sortira enfin un régime de justice et d’équité, réellement approprié à ces objectifs dominants de l’intérêt social : le maintien du bon ordre, le respect des bonnes mœurs, et la préservation si urgente de la santé publique contre le terrible mal vénérien.” COMMENGE, 1897, p. 447-448: “LA PROSTITUTION EST UM MÉTIER - La prostitution doit être considérée comme une profession d’une nature particulière. Lorsque la femme fait le métier de prostituée, elle fait commerce de son corps, qu’elle livre au premier venu, pendant une période qui varie suivant des conventions acceptées de part et d’autre. Son corps est une marchandise qu’elle vend plus ou moins cher, suivant qu’il a des qualités plus ou moins reconnues. La prostituée qui trafique de son corps comme d’une denrée fait un commerce public reconnu par elle et reconnu par tout le monde. Ne doit-elle pas, dans ces conditions, être soumise à certaines règles auxquelles sont soumis les marchands de produits plus ou moins sains? La prostitution est une industrie nuisible, puisqu’elle peut être la cause de maladies contagieuses; elle doit, par suite, comme tous les métiers nuisibles, être atteinte pas les ordonnances de police. (…)” 189 COMMENGE, 1897, p. 558: “J’ai une profonde pitié pour les malheureuses qui sont tombées dans la prostitution, quel que soit le chemin parcouru, quels que soient les motifs de leur chute mais ma pitié est plus ardente et ma sympathie est plus vive, lorsqu’il s’agit de toutes ces infortunées victimes innocentes que la syphilis est venue atteindre! La prostitution doit être surveillée, pour diminuer les dangers qu’elle fait courir à la santé publique. Je n’ai jamais compris pourquoi on a voulu rattacher à une question politique ou à une question religieuse, ce qui touche à la prostitution. Pourquoi mêler la politique ou la religion à des mesures qui ne doivent ressortir que du domaine de la prophylaxie? Le médecin doit avoir une préoccupation constante et exclusive, l’intérêt de l’hygiène publique, la conservation de l’espèce et son développement dans l’état de santé parfaite.” DECANTE, 1909, p. 8: “La question de la prostitution est donc intimement liée à celle du paupérisme et doit intéresser au premier chef tous ceux que préoccupent les problèmes d’assistance et d’hygiène sociales. Puisse notre modeste contribution à la lutte contre le fléau, encourager les efforts de ceux qui songent à le combattre. Le temps semble passé où l’homme, qui souvent commençait à faire la victime, demeurait inexorable contre la victime ellemême. Le souci des responsabilités hante le législateur et, sur ce terrain comme sur celui de la générosité á l’égard des femmes qui subissent les conséquences d’un état social fâcheux, la lutte contre la prostitution semble devoir donner les résultats qu’on eût en vain attendu d’un régime d’injuste rigueur.” DECANTE, 1909, p. 236-238: “Mais, comme le fait bien remarquer M. Dolléans, le vice du système de Lombroso c’est qu’il n’établit nulle part le lien de causalité qu’il prétend exister entre un certain pathologique et l’exercice de la prostitution. L’éminent auteur apporte à l’appui de sa thèse une multitude de faits, mais, malgré la richesse des détails sur lesquels il cherche à l’étayer, il n’établit pas la correspondance entre l’état physique des prostituées et leur état social. Il présente une description pathologique et une analyse psychologique sans lien nécessaire entre elles. (…) Pour la jeune fille des grandes villes, nous trouvons à la base une éducation défectueuse ; trop souvent les ménages ouvriers se désintéressent de la formation morale de leurs enfants, et cette amoralisation devient bientôt une démoralisation par la promiscuité des sexes dans les mêmes logements, par les exemples de la rue où le vice s’étable, par les mauvais conseils qui commencent à l’école et prennent à l’atelier une intensité qu’on ne peut soupçonner, si l’on n’a reçu les confidences de l’apprentie, au lendemain de sa première révolte contre l’immoralité qui l’enserre et veut en faire sa proie.” FIAUX, 1902, p. VII-X: “L’ordre extérieur plus ou moins obtenu par l’emploi d’agents secrets et de procédés d’inquisition occulte que l’on conçoit guère à l’usage d’une police 190 que pour la recherche des criminels de droit commun, a fait oublier la réalité des faits : or cette réalité est la perpétration quotidienne d’abominables délits de droit public contre des personnes que leur sexe, leur jeunesse, leur pauvreté, leur imprudence et leur ignorance mettent sans défense légale ou coutumière aucune à la merci des personnages officiels d’un caractère souvent suspect. (…) Dans le bilan de la Révolution française, il existe à nos yeux, sauf erreur, l’établissement positif d’un droit public et constitutionnel au nom duquel aucun citoyen, quel qu’il soit, ne peut être privé de liberté sans un jugement régulier rendu au nom d’un texte de loi par un tribunal d’ordre judiciaire. L’emprisonnement préventif ne fait point exception à cette règle fondamentale : il est ordonné par le juge moins pour assurer éventuellement l’exécution de la peine que pour rassembler les preuves, interroger l’inculpé, les témoins, en un mot préparer l’instruction. Ces formes sont capitales elles assurent à l’homme social (faut-il ajouter à la femme elle-même ?) les garanties sans lesquelles une société ne mérite plus ce nom. (…) Parent-Duchâtelet, qui a d’ailleurs écrit sur la Prostitution dans la ville de Paris un livre rempli de pages documentaires de premier ordre, a accrédité cette philosophie radicalement fausse et imaginaire de la condition et de la biologie des femmes du prolétariat qui tombent dans la prostitution”. FLEXNER, 1919, p. 30: “Je ne veux pas dire que l’emploi de ces expressions implique l’existence préalable d’une quantité donnée de demande qui est et doit être satisfaite par la production, sous une forme ou sous une autre, d’une offre correspondante. Nous verrons que la demande comme l’offre sont des facteurs variables. La demande peut être stimulée ou réfrénée dans certains limites ; l’offre peut être exploitée de façon à accroître la demande. En outre, une offre donnée peut servir à satisfaire une demande plus ou moins considérable, de sorte que l’étendue de la prostitution ne dépend pas seulement du nombre des personnes qui y sont engagées, mais aussi de l’intensité de leur activité. Les deux partenaires – l’homme et la femme – n’interviennent pas seulement l’un et l’autre, mais sont tous deux les instruments d’influences extérieures.” FLEXNER, 1919, p. 220-221: “Et ici, nous arrivons à l’objection finale et irréfutable contre toute forme de réglementation. L’État moderne – l’État européen moderne – est une organisation chargée du devoir positif d’assurer et de développer les conditions qui assurent le bien-être, le bonheur et l’utilité de chaque membre de la société. Jusqu’à quel point il peut à un moment quelconque imposer de meilleures conditions, c’est un détail à déterminer ; mais il est certain que la base fondamentale de la constitution moderne de l’État est violée par cette notion que certains membres peuvent être sacrifiés, corps et âme, en vue de procurer un trivial avantage policier. La prostitution existe, et cela sur une grande échelle. L’État est obligé de tenir compte du fait, obligé d’admettre son existence actuelle, sa longue histoire dans le passé, ses menaces pour l’avenir. Mais, que les perspectives de sa disparition ou de sa réduction soient bonnes ou mauvaises, favorables ou défavorables à tout le moins la force totale du pouvoir et de l’influence de l’État, directe et indirecte, doit être dirigée contre elle comme étant destructrice, démoralisante et infâme. Si des mesures positives sont possibles, elles doivent être prises ; si la désapprobation sociale n’est même que faiblement effective, il faut la proclamer avec toute l’autorité de la société. « La loi doit être une 191 éducatrice », tout au moins pour autant qu’elle renferme une expression de ce qui devrait être. Il est absurde de supposer que l’État peut prendre cette position – quelle que soit sa valeur - et en même temps autoriser la prostitution sous n’importe quel prétexte – absurde de prêcher la continence et de patenter la vice.” FOREL, 1922, p. 348-349: “La psychologie des prostituées est un chapitre difficile et compliqué. Selon le point de vue auquel se placent ceux qui les jugent, on les considère comme des femmes d’instincts mauvais et incorrigibles ou au contraire comme les victimes de notre mauvaise organisation sociale. Ces deux assertions sont par leur exclusivisme également fausses. Poussées par la charité chrétienne, beaucoup de sociétés pour le relèvement de la moralité se sont occupées à relever les jeunes filles tombées, c’est-à-dire les prostituées. En somme, les résultats sont fort peu satisfaisants, ce qui est facile à comprendre. En effet, le cerveau de la femme est bien autrement dominé par les images sexuelles et surtout par leurs irradiations que celui de l’homme. Il est en outre moins plastique, et devient plus facilement l’esclave de l’habitude et de la routine. Si donc une femme a été dès sa jeunesse, peutêtre même dès son enfance, systématiquement dressée aux aberrations sexuelles, puis maintenue dans cette voie, toutes ses idées, du soir au matin et du matin au soir, se concentrent sur la débauche et les rapports sexuels, de sorte qu’il devient impossible plus tard de la ramener à une vie de travail et à l’accomplissement de devoirs sociaux sérieux.” FOREL, 1922, p. 359-361: “La fausse sécurité donnée officiellement aux hommes par la réglementation les end d’autant plus imprévoyants. La multiplication des rapports sexuels de chaque prostituée augmente le danger d’infection au moins autant que le diminue l’élimination para les médecins de quelques individus plus gravement malades. La corruption de l’État et de ses fonctionnaires, surtout de la police et des médecins de bordels, la dépravation générale des mœurs qui résulte de la tolérance officielle, enfin la perversion dans le public des notions de la morale, augmentent les habitudes de prostitution et avec elles les dangers d’infection. (…) En ce que concerne la prostitution en elle-même on ne peut en faire un délit sans ouvrir l porte toute grande à l’arbitraire le plus complet. L’État ne peut interdire à un individu adulte et responsable de disposer de son propre corps, à moins de jouer le rôle d’avocat du bon Dieu et d’introduire dans la législation des considérations de religion et de métaphysique. Ce que l’État peut exiger, c’est que celles ou ceux qui se prostituent ne molestent ni le public, ni des tiers. Il a donc le droit de punir le racolage, c’est-à-dire la provocation dans la rue, d’amendes ou même d’incarcération, surtout en cas de fréquentes récidives. Il peut en outre donner aux personnes des deux sexes qui ont été victimes de maladies vénériennes , le droit d’exiger par voie civile des dommages-intérêts. On a beaucoup contesté la légitimité e ce droit d’indemnité. Pour moi, il est aussi absolument indiscutable qu’il est légitime, dès que l’État ne tolère et ne réglemente plus la prostitution. Tant qu’il le fait et qu’il soumet les prostituées à un traitement médical obligatoire, il prend en même temps la responsabilité de leur salubrité”. 192 8.3 Prescrições das polícias de costumes de São Paulo e de Paris: Regulamento da polícia de costumes de Paris, em vigor no ano de 1926: “La réglementation actuellement en vigueur à Paris a donc pour base l’inscription à la Préfecture de police des femmes qui font métier de prostitution. Cette inscription a lieu volontairement ou d’office, conformément à la règle suivante posée dans la notice administrative de 1864 sur les mesures dont les filles publiques sont l’objet à Paris: La filles étant inscrite, voici quelles sont les obligations et les défenses qui lui sont imposées: Les filles publiques en carte sont tenues de se présenter une fois au moins tous les quinze jours au dispensaire de salubrité pour être visitées. Il leur est enjoint d’exhiber leur carte à toute réquisitions des officiers et agents de police. Il leur est défendu de provoquer à la débauche pendant le jour ; elles ne pourront entrer en circulation sur la voie publique, qu’une demi-heure après l’heure fixée pour le commencement de l’allumage des réverbères, et, en aucune saison, avant sept heures du soir et y rester après onze heures. Elles doivent avoir une mise simples et décente qui ne puisse attirer les regards soit par la richesse ou les couleurs éclatantes des étoffes, soit pas les modes exagérées. La coiffure en cheveux leur est interdite. Défense expresse leur est faite de parler à des homes accompagnés de femmes ou d’enfants, et d’adresser à qui e soi des provocations à haute voix ou avec insistance. Elles ne peuvent, à quelque heure et sons quelque prétexte que ce soit, se montrer à leurs fenêtres, que doivent être tenues constamment fermées et garnies de rideaux. Il leur est défendu de stationner su la vie publique, d’y former des groupes, d’y circuler en réunion, d’aller et venir dans un espace trop serré, et de se faire suivre et accompagner par des hommes. Il leur est expressément défendu de fréquenter les établissements publics ou maisons particulières où l’on favoriserait la prostitution et les tables d’hôte, de prendre des domiciles dans les maisons où existent des pensionnats ou externats et d’exercer en dehors du quartier qu’elles habitent. Il leur est également défendu de partager leur logement avec un concubinaire ou une autre fille, sans autorisation. Dans le cas où elles obtiendraient cette autorisation, il leur est expressément interdit d se prostituer dans le garni. Les filles qui contreviendront aux dispositions qui précèdent, celles qui résisteront aux agents de l’autorité, celles qui donneront de fausses indications de demeure ou de noms, encourront des peines proportionnées à la gravité des cas. La transgression de ces obligations entraîne des sanctions. Ces punitions consistent dans l’envoi à Saint-Lazare pour une période de quatre à quinze jours au maximum. Les filles soumises, seules, peuvent être punies parce que l’administration considère qu’elle n’a pas le droit de servir à l‘égard d’une femme tant qu’elle n’a pas été inscrite sur les contrôles de la prostitution. Les insoumises ne sont donc jamais envoyées en punition à Saint-Lazare et n’y sont transférées que pour être soignées à l’infirmerie si elles sont maladies. (…)” (DECANTE, 1909, p. 116-118) Prescrições da polícia de costumes em São Paulo, datadas de 1896, segundo relato de Cândido Motta: 193 “a) Que não são permitidos os hotéis e conventilhos, podendo as mulheres públicas viver unicamente em domicílio particular, em número nunca excedente a três; b) As janelas de suas casa deverão ser guarnecidas, por dentro de cortinas duplas e por fora de persianas; c) Não é permitido chamar ou provocar os transeuntes por gestos ou palavras e entabular conversações com os mesmos; d) Das 6 h da tarde às 6 da manhã nos meses de abril à setembro inclusive e das 7 h da manhã nos demais, deverão ter as persianas fechadas, de modo aos transeuntes não devassarem o interior das casas, não sendo-lhes permitido conservarem-se às portas; e) Deverão guardar toda a decência no trajar uma vez que se apresentem às janelas ou saiam às ruas, para o que deverão usar de vestuários que resguardem completamente o corpo e o busto; f) Nos teatros e divertimentos públicos que frequentarem deverão guardar todo recato, não lhes sendo permitido entabular conversação com homens nos corredores ou nos lugares em que possam ser observadas pelo público.” (CÂNDIDO MOTTA, apud FONSECA, 1982, p. 169-170).