FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
A CONQUISTA DO POVO: NOTÍCIAS POPULARES E A OPOSIÇÃO AO
GOVERNO JOÃO GOULART
APRESENTADA POR
LARISSA RAELE CESTARI
PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO: MARLY SILVA DA MOTTA
Rio de Janeiro, Março de 2013.
1
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
A CONQUISTA DO POVO: NOTÍCIAS POPULARES E A OPOSIÇÃO AO
GOVERNO JOÃO GOULART
APRESENTADA POR
LARISSA RAELE CESTARI
Rio de Janeiro, Março de 2013.
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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO: MARLY SILVA DA MOTTA
LARISSA RAELE CESTARI
A CONQUISTA DO POVO: NOTÍCIAS POPULARES E A OPOSIÇÃO AO
GOVERNO JOÃO GOULART
Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em História.
.
Rio de Janeiro, Março de 2013.
3
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Cestari, Larissa Raele
A conquista do povo : Notícias populares e a oposição ao governo João Goulart
/ Larissa Raele Cestari. – 2013.
179 f.
Dissertação (mestrado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens
Culturais.
Orientadora: Marly Silva da Motta.
Inclui bibliografia.
1. Goulart, João, 1918-1976 – Fontes. 2. Brasil - História - 1961-1964 - Fontes.
3. Notícias Populares (Jornal). 4. Levy, Herbert, 1911-2002. I. Motta, Marly Silva
da. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título.
CDD – 981.06342
4
5
SUMÁRIO
Agradecimentos ..............................................................................................................8
Resumo...........................................................................................................................10
Abstrat............................................................................................................................11
Introdução......................................................................................................................12
Capítulo 1
Herbert Levy e o desafio da ascensão política popular..............................................26
Quem foi Herbert Levy? .................................................................................................26
Antigetulismo, liberalismo e classes populares ..............................................................31
Ensaio Popular ................................................................................................................34
Liberdade e justiça social ...............................................................................................36
Dos idos de 1961... ........................................................................................................39
Lições de 1961 ................................................................................................................44
Quem era o povo a ser conquistado? ..............................................................................47
Estratégias de conquista ..................................................................................................49
O campo político parlamentar (1961-1962) ...................................................................51
A campanha pelo plebiscito ............................................................................................57
Eleições de 1962 .............................................................................................................62
O presidencialismo e as reformas de base ......................................................................66
A radicalização nas ruas .................................................................................................69
As articulações golpistas ................................................................................................71
Capítulo 2
A criação e a visão de povo do jornal Notícias Populares (1963-1964)....................82
Em busca do povo: Notícias Populares x Última Hora..................................................82
6
A polarização e a radicalização.......................................................................................88
A montagem do jornal.....................................................................................................91
A linha editorial do Notícias Populares..........................................................................95
A concepção de povo do jornal Notícias Populares......................................................100
“Povo-plebs” e “povo- populus”...................................................................................108
Capítulo 3
O discurso do jornal Notícias Populares (1963-1964)...............................................118
O discurso anticomunista no Notícias Populares .........................................................120
A desconstrução do modelo soviético ..........................................................................122
O perigo comunista no Brasil .......................................................................................130
Agentes do comunismo no Brasil .................................................................................132
No calor da hora ...........................................................................................................136
As reformas de base ......................................................................................................140
Tal qual Vargas? O continuísmo de Goulart ................................................................147
“32 + 32= 64”. A memória liberal de 1932 e a alternativa liberal e democrática”......155
Considerações Finais...................................................................................................164
Fontes e Bibliografia....................................................................................................167
Anexo
Imagens digitalizadas do jornal Notícias Populares.................................................173
7
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profª Dra. Marly Motta, pelo cuidado e seriedade com que
orientou este trabalho. Suas intervenções foram fundamentais para a minha formação
acadêmica.
À Faperj, pelo auxílio concedido, sem o qual este trabalho não poderia ter sido
realizado.
Aos professores Américo Freire e Andréa Casa Nova Maia, pelas valiosas
sugestões dadas no Exame de Qualificação.
Aos amigos feitos no CPDOC, Maria Alice Nogueira, Ana Paula Sampaio,
Thiago Moreira, Lucina Mattos e Paula Cresciúlo. À Vera Miranda, que, nesse
caminho, se tornou também amiga.
À Aline Torres, que se tornou grande amiga, interlocutora e companheira nos
percalços impostos pelo mestrado. Obrigada por me apresentar às maravilhas do Rio de
Janeiro: Largo das Neves e Morro da Conceição estarão para sempre comigo.
Aos amigos de São João del Rei: Wlamir Silva, pelas valiosas discussões sobre o
governo Jango; Maria da Luz Coelho, companheira no ensino de História; Luiz
Francisco Miranda, pela aula sobre Norbert Elias; João Paulo Rodrigues, pela torcida e
interesse; Adriana Marques, pelas dicas sobre o projeto. À Silvia Brugger, ao Josemir
Nogueira e à dona Nelvia que, com tanta gentileza, me cederam o apartamento no Rio
de Janeiro. À Cássia Palha, pelas indicações bibliográficas sobre imprensa, e ao Márcio
Moreira, sempre tão solícito.
8
À Dedé (Cecília Zioni), que tanto me ajudou com o Levy e me ensinou sobre o
ofício do jornalista. À Graziella Beting e ao Vico Iasi, pelas valiosas discussões.
À Silvana Zioni, grande companheira de Rio de Janeiro e de mundo acadêmico.
Aos demais membros da grande família Zioni.
Aos meus sogros Priscila e Eduardo, por todo apoio, carinho e convocação do
Espírito Santo!
À minha mãe, Maísa, que correu atrás de bibliografia para o meu curso de
Teoria, e ao Nazário, pela torcida. Ao meu pai, Gilberto, por todo carinho, e à Miriam,
pelas orações via Skype. Ao meu irmão, Luis, que desde pequeno se interessa pelas
discussões que faço. À minha irmã Raissa e agora, também, ao meu irmão Thiago. Às
minhas avós queridas, Elisa e Ivone (in memoriam), por todo apoio e carinho nesta
empreitada!
À Mira, grande Mira! Sua amizade, cuidado e atenção foram fundamentais para
que eu conseguisse terminar este trabalho. E ao pêndulo, claro.
Finalmente, e mais importante, ao Danilo, amor da minha vida, por tudo e
sempre!
9
RESUMO
Esta dissertação tem como tema mais amplo o movimento político de oposição
ao governo João Goulart (1961-64) promovido pela elite liberal paulista, que englobava,
ao mesmo tempo, segmentos do empresariado e lideranças políticas filiadas à União
Democrática Nacional (UDN). Para entender esse movimento, elegi como objeto de
estudo o jornal Notícias Populares, criado, em 1963, como parte das estratégias
empreendidas por Herbert Levy, empresário paulista, e, à época, presidente nacional da
UDN, contra o governo Goulart. O jornal era voltado para leitores oriundos das classes
populares urbanas de São Paulo. O objetivo desta dissertação é compreender o papel
desempenhado por Notícias Populares na luta política do período, o que implica,
também, analisar a percepção dos setores representados por Herbert Levy sobre o papel
das classes populares no início dos anos de 1960.
Palavras- Chave: Notícias Populares, Herbert Levy, governo João Goulart (1961-1964)
10
ABSTRACT
This dissertation analyzes the political opposition movement against João
Goulart‟s administration (1961-1964), led by the Paulista liberal elite, simultaneously
involving business segments and political leaders affiliated to the União Democrática
Nacional (UDN). To understand such movement, I chose to examine the newspaper
Notícias Populares, founded in 1963 by the national president of UDN, the Paulista
entrepreneur Herbert Levy, as part of his strategy against Goulart. The newspaper aimed
at readers from the urban popular classes in São Paulo. The goal of this dissertation is to
understand the role played by Notícias Populares in the political struggle of the period,
which implies also the analysis of the perception of the popular classes by the sector
represented by Levy in the beginning of the 1960s.
Keywords: Notícias Populares, Herbert Levy, João Goulart administration (1961-1964)
11
INTRODUÇÃO
O jornal Notícias Populares, publicado em São Paulo entre 1963 e 2001,
construiu a imagem de um jornal de escândalos, com manchetes sensacionalistas, ao
lançar mão da fórmula “sexo, crime e esportes” para atrair leitores, vindos
principalmente das classes populares. É praticamente desconhecido o sentido político da
criação do jornal, em 1963, por Herbert Levy, representante da elite liberal paulista e
um dos líderes da ofensiva política contra o governo João Goulart (1961-1964). No
início dos anos de 1960, Herbert Levy, um dos mais proeminentes membros do
empresariado paulista, era o presidente nacional da União Democrática Nacional
(UDN), principal partido de oposição.
O objetivo desta dissertação é compreender o papel que o jornal Notícias
Populares exerceu nas estratégias de luta empreendidas por Herbert Levy para combater
o governo João Goulart e os grupos de esquerda atuantes no período. Como
desdobramento desse objetivo, analiso a percepção de Levy e seu grupo sobre a atuação
das classes populares urbanas, público-alvo do jornal, bem como a relação que com elas
pretendeu estabelecer naquele contexto.
A criação do Notícias Populares fez parte de um trabalho de contra-ofensiva
política à conquista das classes populares pelo governo João Goulart. O objetivo era
“roubar” o público do jornal Última Hora (edição paulista), de Samuel Wainer,
percebido como um importante instrumento da politização dessas classes, vale dizer, de
seu engajamento nas propostas defendidas pelo presidente da República. Para combater
a ação de Última Hora, Herbert Levy decidiu atuar no campo político do adversário, ao
fundar o Notícias Populares, periódico idealizado pelo jornalista romeno anticomunista,
Jean Mellé.
12
Segundo Gisela Goldenstein, pioneira em apontar o sentido político da criação
do jornal, o objetivo principal do Notícias Populares foi roubar o público de Última
Hora, não para obter o seu apoio às mobilizações contra João Goulart, mas sim para
despolitizá-lo. Apoio, os setores liberais representados por Levy buscariam nas classes
médias, pois somente a elas reconheciam atributos de cidadania política.1
Com base nas reflexões de Weffort sobre o populismo,2 Goldenstein explica a
história do Notícias Populares em função do “drama burguês” devido às dificuldades da
incorporação política das classes populares no Brasil pós-45. A autora situa o
surgimento do jornal no momento de “crise do populismo”, quando a autonomia
conquistada pelas classes trabalhadoras era entendida como um processo de
esquerdização. A criação de Notícias Populares expressaria a decisão da ala direita da
UDN, representada por Herbert Levy, de atuar em todas as frentes possíveis para evitar
a ascensão e politização das classes populares.
A proposta de Notícias Populares, segundo Goldenstein, era ser um jornal
político, mas sem tratar de política, ou seja, dos temas da chamada política formal,
aqueles relacionados ao poder do Estado, ao Legislativo, aos partidos políticos e
instituições que compõem o quadro de representação política em uma democracia
representativa. Segundo a autora, o jornal teria recorrido ao “sensacionalismo”,
entendido pelo grupo de Levy como o caminho mais eficaz para o estabelecimento do
1
Goldenstein, 1987.
Nos últimos anos, o conceito de populismo tem sido revisto por abordagens acadêmicas que,
influenciadas pelo conceito de classe de E. P. Thompson e pela história cultural, rejeitam a ideia, central
no populismo, de manipulação e tutela do Estado sobre as classes trabalhadoras. Autores como Angela de
Castro Gomes e Jorge Ferreira questionaram o uso desse conceito a partir do argumento de que as
relações entre Estado e classe trabalhadora, embora assimétricas, são de interlocução. Negam, assim, uma
posição política passiva aos trabalhadores, reconhecendo sua presença na interlocução com o Estado o
que, segundo Angela de Castro Gomes, “significa reconhecer um diálogo entre atores com recursos de
poder diferenciados, mas igualmente capazes não só de se apropriar das propostas político-ideológica um
de outro, como de relê-las”. Sigo essa linha de análise. Ver Gomes, 2001 e Ferreira, 2001.
2
13
contato com os “populares”. O recurso ao sensacionalismo teria sido, assim, “a
expressão de um “liberalismo oligárquico” incapaz de reconhecer as classes populares
como um interlocutor legítimo”, bem como uma forma de excluí-las da cena política.3
Última Hora e Notícias Populares, segundo a autora, representaram concepções
diferentes em termos de jornal popular. Em ambos, as classes populares eram vistas de
cima, mas, enquanto a Última Hora tentava incorporá-las sob controle, o Notícias
Populares buscava tirá-las do caminho. Como prova disso, já em dezembro de 1963,
Notícias Populares teria deixado os temas da política formal de lado e enfatizado o
noticiário sensacionalista. Isso significaria que o objetivo de criação do jornal estaria se
cumprindo: um jornal político, mas sem a parte política4. Goldenstein baseia sua
afirmação na análise dos primeiros sete números do jornal (outubro de 1963) e dos
primeiros números do mês de dezembro do mesmo ano.
Na contramão dessa interpretação, defendo que, por meio do Notícias Populares,
Herbert Levy buscou o apoio das classes populares aos movimentos que se formavam
contra o governo e que tiveram como desfecho o golpe de 1964. Como mostra a análise
que fiz do discurso do jornal entre outubro de 1963 e março de 1964, os temas da
política dita formal não foram deixados de lado; pelo contrário, o noticiário político foi
uma das pautas mais importantes do Notícias Populares. No combate ao governo João
Goulart e às esquerdas e, ao mesmo tempo, na busca pela predominância do projeto
político do grupo de Levy, Notícias Populares buscou deslegitimar os adversários, bem
como socializar um ideário liberal entre as classes populares ao afirmar as posturas
políticas da UDN.
3
4
Goldenstein, 1987:153.
Idem, 1987:93.
14
Algumas questões podem ser levantadas: até que ponto seria possível manter as
classes populares fora do jogo político? Ao perceberem a inevitabilidade da participação
popular nesse jogo, os segmentos representados por Herbert Levy não teriam mudado a
estratégia para uma política de cooptação e busca do apoio desses setores?
Trabalho com a ideia de que um conjunto de eventos ocorridos nos primeiros
anos da década, sustentados por ampla campanha popular – a luta pela posse de Goulart
(1961), a campanha pelo plebiscito (1962), o crescimento eleitoral do PTB (1962) e a
vitória do presidencialismo (1963) –, serviu de pedagogia política para Herbert Levy.
Tomados como derrotas políticas, tais fatos foram atribuídos, em parte, às mobilizações
populares favoráveis a João Goulart, o que, por si só, evidenciou a necessidade de
ampliar a base de apoio popular aos setores de oposição ao governo. Defendo que as
classes populares foram reconhecidas pelos setores representados por Levy como atores
políticos estratégicos que precisavam ser conquistados.
Dessa maneira, este trabalho se justifica e busca relevância ao questionar e matizar
uma certa interpretação que desqualificaria sumariamente as classes populares como
agentes políticos. Por essas interpretações, mesmo a partir de 1945, quando as massas
populares urbanas adquiriram peso político por meio da centralidade do voto, e
passaram a fazer parte diretamente do jogo político institucional, os setores
representados por Herbert Levy teriam mantido a defesa de um “liberalismo elitista” e
condenado o “cortejo das massas”5.
A criação de Notícias Populares indicou outra postura em relação às classes
populares, que resultou na adoção de estratégias de ação que, a meu ver, precisam ser
recuperadas para melhor entendimento da luta política que se deu no período Goulart.
5
Um exemplo é o próprio trabalho de Goldenstein, 1987.
15
Afinal, o jornal representou um canal de comunicação entre uma ala do empresariado e
de políticos udenistas representados por Levy e as classes populares. Analisar o papel
político do jornal é, também, explicar o comportamento político do grupo do qual
Herbert Levy era representante, sua visão de mundo, seus valores, as motivações de
seus atos políticos e, assim, melhor elucidar a luta política dos anos de 1960, tema mais
amplo deste trabalho. Ao mesmo tempo, o estudo desse jornal permite levantar a
questão da incorporação das classes populares no processo político brasileiro e
contribuir para o debate sobre a democracia no país.
Pode-se justificar ainda tomar o Notícias Populares como objeto de estudo na
lacuna historiográfica sobre o jornal. A maioria das obras sobre esse periódico busca
compreender o caráter “psicossocial” da imprensa sensacionalista, como é o caso do
livro de Danilo Angrimani, Espreme que sai sangue6. O recorte temporal dessas obras é
o período entre 1965 e 2001, quando Notícias Populares foi vendido para o grupo Folha
da Manhã e perdeu seu objetivo político original. São raros os estudos sobre a primeira
fase do Notícias Populares (1963-1965), quando pertencia à Herbert Levy. Na verdade,
o livro Do jornalismo político à indústria cultural, de Gisela Goldenstein, publicado em
1987, e já citado, é a principal referência sobre o assunto.
Os outros estudos que abordam a primeira fase do Notícias Populares (19631965) não se dedicam à análise do discurso do jornal e reproduzem o trabalho de
Goldenstein7. Já no livro Nada mais que a verdade. A extraordinária história de
Notícias Populares, os jornalistas e historiadores Celso de Campos, Denis Moreira,
Giancarlo Lepiani e Maik Lima recuperam toda a trajetória do jornal, de 1963 até 2001.
Quanto à primeira fase do jornal - de 1963 a 1965 -, os autores inovaram ao resgatar os
6
7
Ver Angrimani, 1994.
Como exemplo, ver Proença, 1992 e Capelato, 1988.
16
bastidores da redação de Notícias Populares e a trajetória de Jean Mellé até seu
encontro com Herbert Levy. No entanto, o maior destaque desse trabalho está na
abordagem da história posterior de Notícias Populares, ou seja, quando já pertencia ao
Grupo Folha da Manhã e não tinha mais o objetivo político explícito de sua primeira
fase 8.
Dessa forma, não existe nenhum trabalho específico sobre o discurso político do
Notícias Populares ao longo do governo Goulart, questão fundamental para entender o
papel desempenhado por esse jornal na luta política dos anos sessenta. Ao mesmo
tempo, a análise que realizei indicou interpretações diferentes das de Goldenstein e
apontou um novo posicionamento no debate historiográfico.
Esta dissertação toma, portanto, o jornal Notícias Populares como objeto
historiográfico e não apenas como fonte, o que implica escolhas teórico-metodológicas,
a principal delas relacionada à história política.
Sigo a linha interpretativa de René Rémond, e considero o político como uma
esfera autônoma, com características próprias, mas que, ao mesmo tempo, interage com
outros fatores, como o econômico e o social, e deles sofre influência9. A política é
entendida como a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício e a prática do
poder e as atividades a ele relacionadas. A imprensa é uma delas, pois “os meios de
comunicação não são, por natureza, realidades propriamente políticas, mas podem
tornar-se políticos em virtude de sua destinação”10. Notícias Populares foi um jornal
essencialmente político. Sua existência esteve relacionada às disputas políticas correntes
no país, na luta pela conquista e prática do poder e, em consequência, pela imposição da
hegemonia de determinados grupos sobre outros.
8
Campos et al., 2002.
Rémond, 2003.
10
Rémond, 2003:441.
9
17
Dessa forma, a imprensa se torna objeto da história política quando se
transforma em instrumento de determinados grupos para levar suas ideias, valores e
propostas, buscando o convencimento da sociedade e a intervenção na vida política de
um país. A importância da imprensa se torna clara quando pensamos que ela tanto
influencia que acontecimentos se tornarão públicos, quanto oferece interpretações de
como compreendê-los.
Considero, ainda, que a imprensa é um dos veículos de difusão e socialização de
determinada cultura política, já que, em um campo de batalha formado por bens
simbólicos, a imprensa “didatiza” um conjunto de elementos que compõem uma cultura
política ao transformar determinadas doutrinas em conceitos compreensíveis por meio
de imagens, valores, representações, símbolos, etc., e, assim, alcança estratos mais
amplos da sociedade. Esses aspectos são importantes quando consideramos que os
embates políticos vão além da adesão a ideias racionais, mas que os fenômenos
políticos passam também pela força das emoções11.
Adoto, assim, o conceito de cultura política tal como definido por Sirinelli,
Bernstein e Motta12, ou seja, um conjunto de representações portadoras de imagens,
valores, crenças, mitos, símbolos e tradições, que une um grupo no plano político e
estrutura as suas práticas. Como tal, fornece uma base filosófica ou doutrinal, uma visão
de mundo partilhada, uma leitura comum do passado e uma projeção no futuro vivida
em conjunto, conduzindo, no combate político, à aspiração de determinada forma de
regime político e de organização socioeconômica.
Tratar a imprensa como objeto da pesquisa histórica implica, ainda, cuidados
metodológicos a fim de não repetir a história narrada pelos jornais. Segundo Tânia de
11
12
Motta, 2009.
Ver Sirinelli, 1998; Bernstein, 1998; Motta, 2009.
18
Luca, os discursos jornalísticos adquirem significados de muitas formas, por isso é
necessário que o historiador esteja atento, sobretudo, para a forma como os impressos
chegaram às mãos dos leitores, sua aparência física, a hierarquia entre as seções do
jornal, a publicidade, o público a que visa atingir, e os objetivos propostos
13
. A ênfase
dada para certos temas, a linguagem utilizada, os vocabulários escolhidos são elementos
essenciais na análise do discurso dos jornais, pois ajudam na compreensão da linha
editorial.
Na mesma abordagem, Maria Helena Capelato alerta que “a categoria abstrata
imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de seus produtores como
sujeitos dotados de consciência determinada na prática social”14. A autora chama
atenção para o fato de que, na construção da notícia, interferem não apenas elementos
subjetivos de quem a produz, mas também os interesses aos quais o jornal está
vinculado15.
As orientações teórico-metodológicas expostas acima foram incorporadas na
análise do discurso de Notícias Populares. Considerando a multiplicidade de textos que
compõem o jornal, analisei o discurso emitido por meio de suas diversas colunas,
reportagens, texto noticioso, notas editoriais (o jornal não possuía uma página central de
editoriais, nem regularidade nas notas editoriais), etc.
A fonte principal desta dissertação é, portanto, o próprio jornal Notícias Populares
que foi analisado no período entre 15 de outubro de 1963, data de seu lançamento, e
abril de 1964, quando Goulart foi derrubado por um golpe de Estado. Recorri, como
recurso analítico, ao jornal Última Hora para melhor entender os motivos da criação do
Notícias Populares.
13
De Luca, 2008: 138.
Capelato, 1988:16.
15
Capelato, 1988:18.
14
19
Secundariamente, o jornal O Estado de São Paulo (entre 1961 e 1964), e os
discursos que Herbert Levy fez na Câmara dos Deputados no mesmo período,
representaram um outro tipo de fonte, cuja importância reside na possibilidade de
mapear o posicionamento e a atuação política do empresário-parlamentar naquele
período, bem como entender suas escolhas políticas, entre elas a criação do Notícias
Populares. O livro Liberdade e justiça social, escrito por Herbert Levy em 1958, com
uma segunda edição em 1962, também foi utilizado, o que permitiu qualificar o projeto
liberal que orientou o seu discurso e a sua prática política.
A análise feita nesta dissertação da atuação política de Levy no contexto do
governo Goulart segue um determinado posicionamento historiográfico. Determinados
autores foram selecionados tendo em vista as seguintes questões: 1) a relação entre o
empresariado e as classes trabalhadoras; 2) a qualificação do projeto liberal de Levy; 3)
o golpe de 1964
Sobre as relações entre as classes trabalhadoras e o empresariado paulista, sigo a
análise de Barbara Weinsten16. A autora analisa as estratégias de controle social dos
trabalhadores empreendidas pelas lideranças industriais paulistas no período entre 1920
e 1964. Defende que, neste período, a questão operária deixou de ser apenas uma
questão de polícia, e o empresariado paulista passou a atuar dentro das próprias
organizações operárias com o objetivo de construir uma base ideológica e de
comportamento político em consonância com um projeto de racionalização da
produção. Essa prática do empresariado em relação à classe trabalhadora foi seguida por
Levy na luta política dos anos de 1960.
16
Weinstein, 2000.
20
Já as análises de Maria Vitória Benevides17 e de Otávio Dulci18 sobre a UDN
contribuíram para o entendimento do projeto liberal de Herbert Levy e sua relação com
as classes populares. Para ambos os autores, apesar do elitismo ter sido uma das marcas
mais fortes do liberalismo brasileiro, isso não impediu que os liberais udenistas
apresentassem pretensões de expansão nos meios populares, dada a importância do voto
no período entre 1945 e 1964, conforme revelaram as próprias práticas de Levy.
Sobre a crise que desembocou no golpe de 196419, as análises de Argelina
Figueiredo20 e Jorge Ferreira21 são importantes ao enfatizar os aspectos políticos da
crise, sobretudo a radicalização política e a recusa da construção de um consenso em
prol da governabilidade. Para Figueiredo, havia um caminho para reformas moderadas
dentro da ordem democrática, mas os atores escolheram maximizar suas possibilidades
a favor ou contra as reformas de base.
Os diversos trabalhos de Jorge Ferreira22 permitem entender as estratégias dos
grupos de esquerda atuantes no período, como a política do confronto e as mobilizações
de rua pelas reformas. O autor contesta a ideia de que a radicalização política foi
patrocinada somente pelos grupos de “direita”, enquanto as “esquerdas” defenderiam as
reformas e a democracia. Na mesma trilha segue Daniel Reis, ao mostrar como os
grupos de esquerda passaram para a ofensiva política e desafiaram a legalidade
existente23. Dessa forma, deram os argumentos que faltavam para que a “direita”
assumisse o discurso da legalidade, antes monopólio dos defensores da posse de Goulart
17
Benevides, 1981.
Dulci, 1986.
19
Sobre os diferentes enfoques historiográficos referentes ao golpe de 1964, ver Delgado, 2010; Fico,
2004; Mattos, 2008.
20
Figueiredo, 1993.
21
Ferreira, 2003, 2004 ,2011.
22
Idem, Ibidem.
23
Reis, 2001.
18
21
em 1961, e mobilizasse um movimento civil de grandes proporções para legitimar um
golpe de Estado.
Na definição de Jorge Ferreira, as categorias clássicas de direita e esquerda
entre1945 e 1964, relacionaram-se “ao embate entre dois grandes projetos para o país
que marcaram a agenda do debate político do período”24. De um lado, a esquerda com
um
projeto
reformista
e
“nacional-estatista”,
definido
como
a
defesa
do
desenvolvimento nacional autônomo e da justiça social que deveria ser garantida por um
Estado interventor na economia e regulador das relações entre as classes sociais. De
outro, a direita, com a defesa do liberalismo econômico, da abertura ao capital
estrangeiro e do alinhamento incondicional aos Estados Unidos, além das restrições à
ampliação dos direitos sociais e políticos25. Para Daniel Reis, as categorias “esquerda” e
“direita” devem ser sempre no plural, já que, em cada termo, agrupam-se posições,
lideranças e forças diversas, das mais moderadas às mais radicais26. Ou seja, falo em
meu trabalho de “esquerdas” e “direitas”.
Sobre o golpe de 1964, sigo também a análise de Rodrigo Motta, para quem o
discurso anticomunista foi o eixo das mobilizações contra Goulart e propiciou a
unificação de setores heterogêneos em uma frente favorável à derrubada do presidente.
O autor contesta a ideia de que o anticomunismo foi apenas fachada para o golpe. O
medo era real, e ganhava verossimilhança à medida que Goulart se acercava das
esquerdas e dava sinais de entrar em choque com o Congresso Nacional27.
Outra obra importante para esta dissertação é a de René Dreifuss, ao mostrar
como o empresariado brasileiro, por meio do “complexo Ipes/Ibad”, agiu politicamente
24
Ferreira, 2005:14.
Idem, Ibidem.
26
Reis, 2004.
27
Motta, R., 2002.
25
22
de forma organizada e teve papel de destaque nas articulações contra o governo Goulart.
Embora se possa argumentar contra a tese de Dreifuss que a conspiração contra Goulart
não possuía uma frente única, ou que ela não é suficiente para explicar o golpe em si, o
trabalho é particularmente importante para este estudo por revelar a participação
empresarial e definir o caráter civil do golpe. Segundo o autor, o que houve em 1964
não foi um mero golpe militar, mas um movimento civil-militar28.
Esta dissertação está estruturada em três capítulos.
No primeiro capítulo, analiso a trajetória política de Herbert Levy, com ênfase no
contexto de radicalização política e fortalecimento dos grupos de esquerda e dos
movimentos populares que marcaram o governo Goulart (1961-1964). As posturas de
Levy são analisadas em quatro frentes de atuação: 1) a relação com as classes populares;
2) a articulação política com setores empresariais; 3) o jogo político-partidário; 4) o
discurso ideológico em defesa do liberalismo. O objetivo é dar subsídios para entender
o papel que a criação do Notícias Populares desempenhou nas estratégias políticas de
Levy.
Nesse capítulo, trabalho com a hipótese de que um conjunto de eventos
ocorridos nos primeiros anos da década de 60, sustentados por ampla campanha popular
– a luta pela posse de Jango (1961), o crescimento eleitoral do PTB (1962) e a vitória do
presidencialismo (1963) –, serviu de pedagogia política para os setores do empresariado
e líderes udenistas representados por Herbert Levy. Tomados como derrotas políticas,
Levy passou a atribuir tais fatos, em parte, às mobilizações populares favoráveis a João
Goulart, o que por si só, evidenciaria a necessidade de ampliar a base de apoio popular
aos setores de oposição ao governo.
28
Dreifuss, 1987.
23
Outra ideia defendida é que o antigetulismo e o anticomunismo formaram a
bandeira ideológica e o recurso mobilizatório utilizado por Levy contra o governo
Goulart. A denúncia de uma aliança entre Goulart, representante da herança getulista, e
os grupos de esquerda, rotulados de comunistas, serviu de esteio para a oposição
desenvolvida por ele naquele contexto. E o perigo dessa aliança tornava-se maior à
medida que setores das classes populares forneciam apoio decisivo às propostas do
governo Goulart.
No segundo capítulo, analiso o processo de criação e montagem do jornal
Notícias Populares, articulando-o à concepção de povo e de jornal popular que orientou
seus criadores. O objetivo é entender a relação que Herbert Levy procurou estabelecer
com as classes populares bem como o significado que imprimiu à fundação desse jornal
na luta política dos primeiros anos de 1960.
Para isso, proponho uma caracterização geral do Notícias Populares, o que
implica recuperar: 1) os motivos de sua criação; 2) os nomes envolvidos no
empreendimento; 3) a tiragem; 4) a forma como o jornal chegou às mãos dos leitores; 5)
o projeto gráfico; 6) a forma de apresentação e distribuição dos conteúdos assim como a
natureza destes; 7) a linguagem utilizada; 8) as relações que o jornal mantinha com o
mercado editorial. Esses aspectos são importantes para a compreensão da linha editorial
do Notícias Populares, explicitando o projeto político que orientou seus propugnadores,
o lugar das classes populares nesse projeto, bem como a sua forma de inserção no
universo político da época. Ainda neste capítulo, por razões já explicitadas, resgato o
papel que o jornal Última Hora/São Paulo desempenhou na criação do Notícias
Populares
24
No terceiro capítulo, analiso o discurso político do jornal Notícias Populares a
partir dos elementos abaixo relacionados:
1) Anticomunismo. Notícias Populares “alertou” as classes populares sobre as
implicações “maléficas” da implantação de um regime socialista no Brasil e
identificou esse perigo no governo Goulart e no conjunto das esquerdas atuantes
no período.
2) Reformas de base. O objetivo era retirar essa bandeira das esquerdas e de João
Goulart e esvaziar o sentido redistributivo das reformas.
3) “Golpe continuísta”. O jornal insistiu na ideia de que Goulart, herdeiro político
de Vargas, pretendia dar um golpe de Estado para permanecer no poder com o
apoio dos comunistas, entendidos como todo o conjunto dos grupos de esquerda.
4) Leitura liberal da “Revolução Constitucionalista de 1932”. Foi utilizada para
difundir elementos da cultura política liberal entre as classes populares e
justificar o golpe de 1964 como um novo “1932”.
A análise do discurso do jornal foi fundamental para a compreensão da maneira pela
qual foi utilizado no combate a João Goulart e às esquerdas, bem como a relação que
Levy pretendeu estabelecer com as classes populares naquele contexto. Cabe ressaltar,
no entanto, que não é meu objetivo analisar como esse discurso foi recebido pelos
leitores de Notícias Populares, já que, como assinala Motta, “a produção do discurso
não é garantia de que tenha impressionado o público, tampouco de que sua mensagem
tenha sido interpretada da maneira desejada”29. Mas, se não é possível identificar como
as classes populares reagiram ao seu discurso, busco identificar as expectativas dos
setores representados por Levy em relação a essas classes.
29
Motta, R., 2006:13.
25
CAPÍTULO 1:- Herbert Levy e o desafio da ascensão política popular
A criação de Notícias Populares, no final de 1963, inseriu-se em um quadro de
radicalização política e de crescimento dos grupos de esquerda e dos movimentos
populares que marcou o governo João Goulart (setembro 1961/março 1964). Para
compreender o papel que esse periódico desempenhou na luta política do período, o
objetivo deste capítulo é recuperar as posições assumidas por Herbert Levy, proprietário
do jornal, a partir da posse de João Goulart, em 1961, até o golpe civil-militar de 1964.
As posturas de Levy serão analisadas em quatro frentes de atuação: 1) as referências
políticas e ideológicas; 2) a relação com as classes populares; 3) a articulação interna às
elites; 4) o jogo político-partidário.
Quem foi Herbert Levy?
Herbert Levy nasceu em São Paulo, em 1911, filho da italiana Anna De Matino
e de Alberto Eduardo Levy, vice-cônsul inglês que se estabeleceu em São Paulo. Na
década de 30, se ligou aos negócios de sua família e se associou ao escritório Percy D.
Levy&Irmãos, que lidava com atividades de corretagem, câmbio e títulos do café
emitidos pelo governo de São Paulo. Em 1934, comprou o jornal Gazeta Mercantil,
dedicado a assuntos econômicos, e voltado para a elite paulista. Até os anos de 1970, a
Gazeta seria um periódico de pequena circulação. Os investimentos no jornal
começariam somente naquela década, quando foi objeto de cuidados mais intensos por
parte de Levy devido ao crescente interesse no país por temas econômicos.
Nos anos de 1940, Levy fundou o Banco América que, na época, se tornaria a
instituição bancária mais ativa em operações cambiais, superando o Citibank. O Banco
América, que em 1969 se fundiu ao Banco Itaú, era responsável por um terço das letras
de exportação em dólares da Praça de Santos, a maior do país. Ao longo dos anos, Levy
26
diversificou seus empreendimentos, investiu em fazendas de café e gado, em corretora
de títulos e valores imobiliários, bem como na propriedade de diversos imóveis em São
Paulo.30
Já em 1960, período que interessa a este trabalho, Levy era dono de um
conglomerado econômico que envolvia atividades relacionadas ao capital financeiro,
agrícola e comercial. Sua atividade como agente econômico não se dissociaria de sua
prática política, como deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN), entre
1947 e 1965, pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), entre 1965 e 1979, e pelo
Partido Democrático Social (PDS), entre 1982 e 1986. A defesa intransigente dos
negócios do café no Parlamento; a aproximação com a Sociedade Rural Brasileira (da
qual, no entanto, não fez parte); a oposição ferrenha à lei de remessa de lucros e aos
projetos de reforma agrária, durante o governo João Goulart, tudo visava articular suas
ações no Congresso Nacional aos seus interesses econômicos privados.
Interessante, também, é destacar a sua formação, no final dos anos de 1930, na
Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Ainda que sejam poucas as informações
existentes e as menções que ele próprio faz a esse passado, a ELSP parece ter sido
importante em sua formação política e empresarial, e na forma como lidaria,
posteriormente, com a questão social e o movimento sindical nos anos 1960.
Fundada por um grupo de intelectuais e empresários liderado por Roberto
Simonsen em 1930, a ELSP foi uma das primeiras instituições de ensino superior no
estado. Surgiu em um contexto em que o empresariado paulista buscava assumir a
liderança na reorganização das relações industriais e na construção de uma nova
sociedade urbano-industrial e, para isso, tinha que lidar com um operariado em
30
Para uma biografia de Herbert Levy, ver Lachini, 2002.
27
crescente mobilização, conforme analisa o trabalho Weinstein, com o qual seguirei para
a análise das relações entre o empresariado e as classes trabalhadoras.31.
A ELSP estava estreitamente vinculada ao Instituto de Organização Racional do
Trabalho (Idort), instituição que tinha como um dos objetivos promover o aumento da
produtividade e a racionalização do trabalho industrial. Os fundadores da Escola
consideravam a pesquisa o instrumento adequado para resolver os conflitos sociais. A
opção por discutir a questão social como “questão técnica” era uma forma de, mediante
o emprego de uma linguagem científica, contornar temas como salários, condições de
trabalho e padrão de vida das classes trabalhadoras.32
Desde o final dos anos de 1920, as lideranças industriais paulistas, que tinham na
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) seu principal órgão de
representação, consideravam que os termos do debate sobre a questão social haviam
mudado. Não se tratava mais de impedir que o Estado interviesse nas relações de
trabalho, mas sim de modificar, circunscrever e conformar essa intervenção o mais
possível aos interesses dos industriais. As lideranças industriais paulistas, naquele
período, adeptas da racionalização, passaram a pregar a paz social, ou seja, o fim dos
conflitos entre capital e trabalho, tanto um pré-requisito quanto uma consequência da
implantação do seu projeto. A necessidade de harmonia entre as classes tornava
necessárias algumas concessões aos trabalhadores, sem, entretanto, dispensar o
tradicional apelo às forças repressoras do Estado para manter a ordem33.
No contexto da redemocratização política do Brasil foi criado o Serviço Social
da Indústria (Sesi), por inspiração dos líderes da Fiesp e do Ciesp. O principal objetivo
do Sesi, expresso tanto nos seus programas sociais quanto nos educacionais, era
31
Weinstein, 2000.
Idem, 2000: 94.
33
Idem, 2000: 71-98.
32
28
combater o “extremismo de esquerda” e o reaparecimento de organizações autônomas
entre as classes trabalhadoras. Outro objetivo era desenvolver o espírito da colaboração
entre as classes para melhoria e aumento da produção industrial. Uma de suas tarefas
mais importantes era demonstrar aos operários as funções sociais da propriedade
privada, o que possibilitaria o melhoramento de suas condições econômicas e sociais
sem necessidade de subversão das instituições.34
Deve ser destacada a ênfase do Sesi na preparação de líderes sindicais, por meio
de aulas de oratória, legislação trabalhista e sindicalismo. Os sindicalistas eram
aconselhados a abandonar a luta de classes e, ao mesmo tempo, a não fazer exigências
exorbitantes que pudessem prejudicar os interesses, considerados “comuns”, de patrões
e empregados. O papel político do sindicato deveria ser limitado, e seus membros
educados para a “legítima democracia”, inspirada nos princípios cristãos.35 Essa forma
de abordar a questão social e o movimento sindical seria, nos anos de 1960, seguida por
Levy e pelo empresariado articulado em torno do Instituto de Pesquisa e Estudos
Sociais (Ipes).
No entanto, no campo político-partidário, Levy apresentava um posicionamento
diferente daquele assumido por setores do empresariado paulista, a começar pelo criador
da ELSP, Roberto Simonsen. Nos anos de 1930 e 1940, ao contrário dessas lideranças
empresariais que se aproximaram de Getúlio Vargas, Levy se alinhou à elite liberal
paulista, que fazia oposição intransigente ao governo Vargas. Entre os integrantes de
seu grupo estavam: Armando Salles de Oliveira e Júlio de Mesquita Filho, proprietários
do jornal O Estado de S. Paulo; Hermann de Moraes Barros, dono do Banco Sul
Americano; e Waldemar Ferreira, professor de Direito na Universidade de São Paulo.
34
35
Idem, 2000:167-186.
Idem, Ibidem.
29
Com eles, Levy integrou o movimento armado denominado Revolução
Constitucionalista de 1932, que pretendia reverter a marginalização política das forças
paulistas e, pelo menos, forçar o governo Vargas a negociar. Na patente de capitão,
comandou a coluna Romão Gomes, em Campinas. Para o núcleo liberal paulista, a
memória de 1932 se tornaria um dos elementos mais importantes de sua cultura política
e seria, ao longo dos anos, mobilizada na luta contra Vargas e seus herdeiros políticos,
como João Goulart.
O antigetulismo de Levy se intensificou a partir do Estado Novo (1937-1945) –
quando foi preso por seis vezes36 -, e ganhou forma partidária com a criação da UDN,
em 1945, partido que o projetou como importante liderança política nacional. Levy foi
deputado federal por São Paulo entre 1947 a 1965, e presidente nacional do partido
entre 1961 e 1963.
A UDN surgiu como uma frente de oposição à ditadura estadonovista e
congregou tendências políticas e raízes históricas variadas. No entanto, o que conferia
união a esse partido era a identidade formada principalmente pelo antigetulismo e pela
defesa do liberalismo, mas também pela ênfase em uma ética moralista, na tradição e no
sentido de excelência de seus membros. Esses aspectos distinguiram a UDN, em termos
de imagem e de estilo político, no cenário partidário brasileiro.37
Em São Paulo, a UDN tendeu a ser uma réplica das forças lideradas por
Armando Salles de Oliveira, Herbert Levy e Júlio de Mesquita Filho. Era um
agrupamento de elites e expressou os interesses do empresariado agrícola e financeiro,
36
37
Lachini, 2002:51
Sobre a UDN, ver Benevides, 1981 e Dulci, 1986.
30
bem como as ideias dos intelectuais ligados ao jornal Estado de S. Paulo, conforme
avalia Dulci.38
Com a volta de Vargas à presidência da República em 1951, dessa vez escorado
em milhões de votos, Levy passaria a integrar a ala udenista conhecida como “Banda de
Música”, caracterizada pela oposição intransigente à política social e econômica do
governo, defendida principalmente pelo PTB e apoiada pelo PSD, partidos que, à sua
maneira, representavam a herança getulista.39 Os componentes da “Banda de Música”
combatiam fortemente o modelo nacionalista então adotado, em termos de intervenção
do Estado em determinados setores da economia e de controle do capital estrangeiro,
bem como a política de ampliação da legislação trabalhista e de maior participação dos
trabalhadores na cena política.
Entre os integrantes dessa ala estava Carlos Lacerda, principal líder civil da
direita brasileira, e bem conhecido pelos ataques virulentos contra o comunismo. Nas
eleições de outubro de 1960, Lacerda se tornaria o primeiro governador eleito do estado
da Guanabara, unidade federada em que se transformou a cidade do Rio de Janeiro após
a transferência da capital para Brasília. Nessa condição, montou um excelente palanque
de onde lançava severas críticas ao governo, vindo a se tornar a principal voz pública de
oposição a João Goulart 40.
Antigetulismo, Liberalismo e Classes Populares
Para entender o sentido da luta política de Levy nos anos de 1960, bem como as
mudanças de estratégias em relação às classes populares nesse período, é importante
38
Dulci, 1986:129.
Conforme assinala Delgado, no cenário político partidário do pós-1945, a herança getulista foi o
elemento catalisador dos conflitos. A ela se vincularam, por apoio, o PTB e o PSD, criados sob inspiração
direta de Vargas, e, por negação e oposição, a UDN. Ver Delgado, 2003:135.
39
40
Sobre Lacerda, ver Motta, M., 2001.
31
qualificar algumas dimensões do projeto liberal defendido por ele nas décadas
anteriores.
Segundo Benevides, a herança liberal udenista proveio, em grande parte, do
grupo paulista capitaneado por Armando de Salles Oliveira, do qual Herbert Levy foi
um dos maiores representantes. Essa herança era marcada tanto pela restrição à
intervenção do Estado na economia, quanto por um “liberalismo elitista” baseado na
tese da presciência das elites, cujo dever seria educar e guiar politicamente o povo, na
medida em que estabelecia reservas quanto à extensão da participação política popular e
à ampliação da legislação trabalhista.41 Para Levy, o povo só teria direito à participação
política quando seu nível educacional tivesse atingido um grau apreciável, tal como
avaliou em 1958: “é necessário educar o povo a fim de prepará-lo para o exercício da
tarefa que, por ora, só é possível aos mais competentes”.42
Uma das consequências dessa defesa do elitismo praticada pelo grupo de Levy
na UDN foi o constante apelo à intervenção militar e ao golpe como ações políticas
válidas para consertar os “erros do povo”. A contestação dos resultados eleitorais,
quando os eleitos eram vinculados ao getulismo, sob o argumento de que o “povo não
sabe votar”, ou a identificação dos movimentos sociais com a vitória de Getúlio Vargas,
justificavam o apelo ao golpe para “salvar a democracia”.43 Como exemplos, pode-se
citar a tese udenista da maioria absoluta, que pretendia invalidar a vitória de Vargas em
1951 e de Juscelino Kubitschek em 1955, ou a tentativa de impedir a posse de Goulart
após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961.
Ao analisar o liberalismo do grupo de Levy na UDN, Dulci afirma que ele se
pautava pelo liberalismo clássico, restrito ao problema da garantia das liberdades
41
Benevides, 1981: 241-258
Levy, 1958.
43
Ver Benevides, 1981:252-258
42
32
individuais, como liberdade de pensamento e livre iniciativa econômica. Nessa vertente,
o Legislativo, os partidos, as eleições e instituições que compõem o quadro de
representação política em uma democracia representativa eram considerados os únicos
meios legítimos de exercício de poder. Para o autor, esse formalismo carregava
implicações conservadoras, ao opor o formalismo legal aos direitos sociais, como
greves, ou à ampliação da cidadania política, com o voto do analfabeto, o que limitava o
sentido da democracia.44
A defesa desse “liberalismo elitista” resultou em uma prática política que
marcou a oposição feita pelo grupo de Levy ao segundo governo Vargas (1951-54),
especialmente no que toca às relações que o presidente estabeleceu com as classes
trabalhadoras. Essa oposição ficou clara com a nomeação de João Goulart para o
Ministério do Trabalho em 1953, com o objetivo de construir uma base de apoio
operária que respaldasse politicamente o presidente, e aproximasse o PTB do
movimento sindical. No Ministério do Trabalho, Jango iniciou um novo estilo de
relacionamento entre Estado e o movimento sindical, baseado na negociação e nas
concessões salariais, ao mesmo tempo em que apoiava e incentivava as mobilizações
reivindicatórias dos operários e se aproximava das forças de esquerda, incluindo o
Partido Comunista.45 Como avalia Motta, “desde então, os laços entre Goulart e o
movimento sindical foram se estreitando, e estes ofereceram apoio decisivo ao
presidente [Goulart] em momentos importantes, como na Campanha da Legalidade, que
viabilizou sua posse, em agosto de 1961”.46
44
Dulci, 1986:36-45
Sobre as relações entre Goulart e o movimento sindical, ver Delgado,1989; Ferreira, 2011 e Gomes,
2006.
46
Motta, R., 2006:103.
45
33
A movimentação de Goulart junto aos sindicatos, associada à sua crescente
popularidade e à proposta de aumento de 100% do salário mínimo, levou Levy, ao lado
de Carlos Lacerda e de Aliomar Baleeiro, a articular, na Câmara, uma acirrada oposição
ao Ministro do Trabalho, denunciado como subversivo e manipulador da classe
operária. As relações de proximidade entre o Estado e o movimento sindical eram
interpretadas como uma ameaça às instituições democráticas, e Goulart era acusado de,
ao lado de Getúlio Vargas, manobrar os sindicatos com o objetivo de estabelecer, no
país, uma “ditadura sindicalista” ao estilo de Perón na Argentina. Esse foi um dos
principais argumentos utilizados pelo grupo de Levy para traçar o perfil de Goulart
como um “caudilho”, denúncia que o perseguiu ao longo de toda a sua trajetória política
e que seria um dos fatores responsáveis por gerar uma poderosa mobilização contra o
seu governo. Nesse sentido, vale destacar o pronunciamento de Levy, na tribuna da
Câmara, em 1º de setembro de 1953:
“[...] a ação do Sr. Ministro do Trabalho, João Goulart, cujo ministério
passou a constituir um foco de agitação que precisa ser convenientemente
policiado e reprimido [...] A atenção especial que dedicamos à atuação do
sr. João Goulart à testa do Ministério do Trabalho não é produto de
impressões mais ou menos fundamentadas quanto aos objetivos que o
orientam, mas provém do conhecimento de fatos que identificam o atual
ministro, de maneira iniludível, como adepto de regimes de exceção e
inimigo declarado, portanto, das instituições vigentes no Brasil”. [grifos
meus]47
Dessa forma, as relações entre Goulart e as classes trabalhadoras, especialmente
grupos sindicalistas, foco da retórica oposicionista de Levy desde os anos 50, parecem
explicar o investimento que fez, na década seguinte, com vistas à criação de um jornal
popular como o Notícias Populares.
Ensaio popular
47
Lachini, 2002: 89
34
Enquanto as relações entre Vargas/Goulart e as classes populares eram
denunciadas pelo grupo de Levy como “espúrias”, as sucessivas derrotas da UDN nas
urnas levaram setores udenistas a considerarem o partido como “ruim de voto”. Essa
constatação mostrava a necessidade de renovação das práticas udenistas para atingir um
eleitorado que tendia a participar cada vez mais da arena política.48
Em 1958, ao lado dos deputados Carlos Lacerda e Juracy Magalhães, então
presidente da UDN, Levy foi um dos organizadores das chamadas “Caravanas da
Liberdade”, que consistiram em uma série de comícios pelo interior do país, cujo
objetivo era popularizar a imagem do partido. A ideia intrínseca nas “Caravanas” era
que a UDN precisava “crescer para vencer”, ou seja, tinha que ampliar o seu eleitorado,
o que demandava uma maior aproximação do povo. Esse aceno popular da UDN pode
ser entendido como uma mudança de tática política, haja vista a centralidade do voto
naquele período. Nesse mesmo movimento de busca de ampliação do eleitorado, Levy
foi, ao lado de Carlos Lacerda, um dos principais articuladores da candidatura de Jânio
Quadros à presidência da República, a fim de quebrar “os obstáculos impostos entre a
UDN e as massas trabalhadoras”.49 Jânio Quadros era o candidato ideal, pois, ao mesmo
tempo em que tinha o prestígio popular, defendia uma plataforma que incluía um
programa privatista da política econômica e elementos tradicionais do moralismo
udenista, como o combate à corrupção.50
A vitória de Jânio Quadros foi um dos elementos centrais para a eleição de Levy
à presidência nacional da UDN, em abril de 1961. Nessa condição, Levy estabeleceu
como objetivo fundamental do partido a sua aproximação com as classes populares. O
slogan de sua gestão era “Vamos trazer a UDN para as ruas”. Nesse sentido, organizou
48
Dulci, 1986:150-151
O Estado de São Paulo, 26 fev. 1961:3
50
Benevides, 1981:108.
49
35
uma série de “Concentrações Nacionais Udenistas”, no mesmo espírito das “Caravanas
da Liberdade”, dessa vez com vistas às futuras eleições parlamentares marcadas para
outubro de 1962. O objetivo era transformar a UDN no partido majoritário no
Congresso Nacional.51
A eleição de Levy para presidir o partido teve outro objetivo: barrar o avanço
das propostas do grupo parlamentar chamado “Bossa Nova”, que surgiu, publicamente,
na convenção nacional udenista, em abril de 1961. A “Bossa Nova” defendia uma linha
ostensivamente oposta à da “Banda de Música”, já que era favorável a algumas medidas
de corte nacionalista, como as leis antitruste e de remessa de lucros. Considerado mais
progressista na avaliação de alguns, o programa da “Bossa Nova” era visto por Levy
como a presença do perigo comunista “disfarçado”.52
Liberdade e justiça social
Na virada de 1950 para a década seguinte, o anticomunismo associado ao
liberalismo e ao antigetulismo tornava-se a marca do discurso e da prática de Levy,
convertendo-se em um dos elementos mais fortes da cultura política liberal
compartilhada por ele, e eixo central da oposição que moveria contra o governo Goulart.
As razões desse anticomunismo eram tanto de ordem externa quanto interna. No
plano internacional, sob o impacto da Revolução Cubana em 1959, a América Latina se
viu lançada no centro da Guerra Fria. O exemplo dessa Revolução foi reiteradamente
acionado por Levy para mostrar que o perigo comunista não era uma realidade
longínqua da qual o Brasil estaria imune. Para Levy, o regime cubano era a “ponta de
lança revolucionária e antidemocrática no hemisfério”53. Já no plano interno, era visível
51
Ver O Estado de São Paulo, 6, maio 1961:3
Benevides, 1981:115
53
O Estado de São Paulo, 8 mar. 1963:3
52
36
a tendência ao crescimento das organizações de esquerda, especialmente após a posse
de João Goulart na presidência da República em 1961.
Segundo Motta, a tradição anticomunista brasileira foi construída a partir de três
matrizes: a liberal, a católica e a nacionalista de viés conservador. Essas matrizes se
ligavam, respectivamente, aos empresários, aos católicos e aos militares. A matriz
liberal enfatizava a defesa da liberdade e da propriedade privada contra o “estatismo
comunista”. A católica via o comunismo como uma ameaça à religião e aos valores
cristãos. Já a nacionalista conservadora fazia a defesa da integridade da nação, vista
como um conjunto orgânico, contra o inimigo externo54.
No entanto, apesar de terem origem e fundamentação diversas, essas matrizes
foram combinadas no combate ao comunismo. Foi o que aconteceu com Levy, pois,
embora em seu discurso prevalecesse a matriz liberal, isso não o impediu de fazer uso
político das outras duas vertentes, do que o lema “Deus, Pátria e Família” é um bom
exemplo.
De todo modo, a oposição anticomunista de Levy se fazia principalmente a partir
da defesa dos princípios liberais. Em 1958, publicou o livro Liberdade e justiça social,
reeditado com grande alarde pela imprensa paulista em 1962, quando o debate sobre as
reformas de base estavam a pleno vapor. Seu objetivo era defender a superioridade do
liberalismo político e econômico em relação ao comunismo para alcançar o bem estar
da coletividade. O livro servia como um alerta ao “perigo” da sedução do povo pelas
“ideologias extremistas”.55
Um dos pontos principais do livro era a ideia de que o comunismo destruía os
fundamentos básicos do regime democrático, ou seja, a propriedade privada e o regime
de livre iniciativa, símbolos máximos das liberdades consideradas fundamentais pelo
54
55
Motta, R. 2002:15-47
Levy, 1962.
37
liberalismo. Seria por meio da propriedade privada que a liberdade se concretizaria,
possibilitando ao homem a maximização de sua capacidade. Ela deveria consolidar-se
ao ponto de se constituir o esteio do regime democrático.56
A contraposição entre democracia e comunismo foi um dos argumentos
principais de Levy, e servia para enfatizar a luta contra o intervencionismo estatal, já
que considerava o “estatismo como o caminho mais curto para a comunização” 57. Ao
mesmo tempo, é interessante observar que a ênfase na luta contra o intervencionismo
estatal na economia servia para relegar ao segundo plano o debate sobre a questão da
participação política. Um exemplo disso está na oposição ferrenha que moveu à
extensão do voto aos analfabetos, proposta do governo Goulart, que pretendia
incorporar ao sistema político, pela via da representação institucional, um significativo
contingente das camadas populares. Vale destacar que o direito de voto aos analfabetos
só seria incorporado à Constituição brasileira após a redemocratização em 1985.
Na década de 1960, o anticomunismo se converteu em um dos elementos mais
fortes do liberalismo professado por Levy e foi, certamente, um dos fatores que o
levaram ao desencanto com o governo Jânio Quadros, eleito em outubro daquele ano. A
chamada política externa independente, aberta a relações com todos os países, mesmo
sob a chancela do udenista Afonso Arinos, então ministro das Relações Exteriores, era
denunciada pela “Banda de Música” como a porta de entrada do comunismo no Brasil.
A inesperada renúncia de Jânio Quadros colocou problemas maiores para Levy e
seu grupo, já que o vice era um nome pouco confiável. Como já foi dito, João Goulart,
além de herdeiro político de Vargas, possuía fortes ligações com sindicalistas e com
grupos de esquerda, especialmente os comunistas. Goulart era ainda comprometido com
um programa nacionalista e reformista, que incluía desde a reforma agrária até o
56
57
Idem. Ver também Mendes, 2003.
O Estado de São Paulo, 18 jun. 1963:3
38
controle do capital estrangeiro no país. Mas, acima de tudo, seu governo poderia
representar a ampliação da participação política das classes populares, que foram vistas
como o grande suporte para as ações anteriores do presidente da República e dos grupos
de esquerda que o apoiavam. Esses fatores conjugados foram, a meu ver, os motivos
que levaram à forte oposição de Levy ao governo Goulart, e que, certamente, viriam a
justificar a criação de Notícias Populares.
Parte-se, assim, da hipótese que diversos eventos ocorridos a partir da posse de
Goulart em 1961 funcionaram para Herbert Levy como elementos de pedagogia
política, ao guiar sua ação especialmente no que diz respeito às relações com as classes
populares. Para tornar mais claro o ponto aqui defendido, ou seja, para compreender a
percepção de Levy sobre o campo político do período, bem como as estratégias de
atuação então traçadas, entre elas a criação do jornal Notícias Populares, é necessário
recuperar o embate político decorrente da renúncia de Jânio Quadros.
Dos idos de 1961...
A renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, gerou grave crise
político-institucional. Os ministros militares – general Odílio Denis, da Guerra, vicealmirante Silvio Heck, da Marinha, e o brigadeiro Gabriel Grun Moss, da Aeronáutica –
tentaram impedir a posse de João Goulart. As principais acusações que pesavam sobre o
vice eram de fomentar agitações nos meios sindicais e de entregar postos-chave aos
“agentes do comunismo internacional”. Segundo Argelina Figueiredo, o objetivo dos
ministros militares era aglutinar apoio para um golpe de baixo custo, ou seja, um golpe
com aquiescência do Congresso Nacional.58
58
Figueiredo, 1993:37.
39
No entanto, essa tentativa de setores militares de impor um “golpe de baixo
custo” foi frustrada graças a uma ampla articulação de diversos setores da sociedade
civil, que incluía sindicatos de trabalhadores, estudantes, intelectuais, imprensa e
empresários que defendiam a “legalidade”, vale dizer, a preservação da Constituição e
das instituições democráticas. Nesse processo, teve destaque a atuação de Leonel
Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, pelo PTB, que organizou uma cadeia
nacional de comunicações, a Rede da Legalidade, e por ela conclamou a população do
país a resistir ao golpe, projetando-se como uma importante liderança política no campo
das esquerdas e capturando a bandeira da legalidade para esse campo.59
Em todas as partes do país surgiram manifestações de apoio popular à posse de
Goulart, sobretudo por meio de greves de trabalhadores. Na crise da renúncia, os
trabalhadores de vários estados criaram o “Comando Geral de Greve” (CGG), com
sedes em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, cujo único objetivo era defender a
posse de Goulart.60 Em São Paulo, o maior parque industrial do Brasil, a greve geral em
defesa da legalidade mobilizou diversos setores, entre eles o têxtil, o portuário, o
bancário, o metalúrgico e o de transportes, que constituíam a parcela mais dinâmica do
sindicalismo desse estado. No Rio Grande do Sul, foram formados “batalhões
operários” que seguiram os apelos de Brizola e se mobilizaram para defender a
Constituição.61
Dentro e fora do Congresso Nacional formou-se uma ampla coalizão para
preservar a legalidade. No entanto, enquanto os grupos de esquerda, liderados por
Brizola, defendiam a posse imediata de Goulart sob o regime presidencialista, outros
atores mais moderados, como setores da UDN e do PSD, com o apoio da ala legalista
59
Sobre a resistência à tentativa de golpe em 1961 e o papel de Brizola nesse processo, ver Ferreira,
2005.
60
Delgado, 1986: 51-52.
61
Ferreira, 2005:288
40
das Forças Armadas, conduziam negociações com vistas à alteração da Constituição,
introduzindo o parlamentarismo como regime político.
A crise de 1961 abriu um dos períodos mais agitados da vida política do país,
marcado, sobretudo, pelo protagonismo das classes populares. Para autores como Daniel
Aarão Reis, a resistência a essa tentativa de golpe deve ser tomada como o marco da
ascensão política dessas classes, processo que se esboçava desde a redemocratização,
em 1945, e que iria em um crescendo até o golpe em 1964.62 Ao longo do governo
Goulart, parcelas significativas dos trabalhadores da cidade e do campo, com base em
organizações próprias, uniram-se aos grupos de esquerda na defesa de um conjunto de
reformas na sociedade conhecido pela expressão “reformas de base”, alicerce do
programa de governo.
O objetivo dessas reformas era alterar as estruturas política, econômica e social
do país, a fim de promover uma sociedade mais igualitária por meio da ampliação da
participação política popular. O carro-chefe era a reforma agrária, mas também havia as
reformas urbana, bancária, fiscal, universitária e eleitoral, com ênfase na extensão do
voto ao analfabeto e aos subalternos das Forças Armadas, além da legalização do
Partido Comunista Brasileiro (PCB). A ampliação da intervenção do Estado na
economia, o controle do capital estrangeiro nos setores estratégicos e o incentivo ao
capital nacional faziam parte do programa reformista.
A posse de Goulart representou também um fortalecimento das organizações de
esquerda. Naquele momento, a etiqueta “esquerda” era atribuída a organizações,
partidos, movimentos, frentes e grupos sociais que apoiavam as reformas de base. As
ideias e estratégias das esquerdas nem sempre coincidiam, já que se tratavam de
62
Reis, 2001:324-325, 328-331
41
organizações bastante heterogêneas63. No campo, elas estavam representadas pelas
Ligas Camponesas, as quais, surgidas no final da década de 1950, tinham como objetivo
organizar os trabalhadores rurais para a luta pela reforma agrária e pela extensão dos
direitos trabalhistas. Na década de 1960, sob a liderança do advogado Francisco Julião,
setores mais radicais, influenciados pela bem sucedida experiência cubana, aderiram ao
projeto revolucionário de guerrilhas no campo.
Na cidade, destacava-se o movimento sindical liderado pelo Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), criado em 1962, com forte papel na politização à esquerda dos
trabalhadores urbanos. Sua direção era partilhada entre o PTB e o PCB. Havia ainda o
movimento estudantil, representado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), que
defendia uma aliança entre estudantes, operários, camponeses e militares nacionalistas.
Os suboficiais das Forças Armadas, em especial os sargentos, entraram no
cenário político como força atuante no campo das esquerdas, principalmente a partir da
crise de agosto de 1961. Apresentavam-se como o “povo em armas”, e estavam afinados
com as demandas de ampliação da cidadania. Entre outros aspectos, reivindicavam o
direito de eleger e serem eleitos para os cargos legislativos.
No campo partidário, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), organização de
maior tradição no campo das esquerdas, pregava a necessidade de um partido operário
organizado como vanguarda da revolução comunista. A partir de 1958, adotou uma
linha moderada, ao defender mudanças graduais, de forma pacífica, em direção ao
socialismo. Havia também organizações menores, como o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e o Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T), influenciadas pelas
experiências revolucionárias da China e de Cuba, e com pouca penetração na sociedade.
63
Sobre as esquerdas e suas estratégias, ver Ferreira, 2004.
42
Deve-se incluir ainda a Ação Popular (AP), de origem católica, que havia adotado o
socialismo, embora recusasse o marxismo, e que possuía ampla aceitação entre os
estudantes universitários.
No raiar dos anos de 1960, o PTB poderia ser dividido em duas grandes facções:
um grupo moderado, que postulava reformas moderadas e defendia maior aproximação
com o PSD; e um grupo ideológico, que procurava manter uma linha de independência
em relação a Goulart e defendia a realização de reformas de cunho radical, além da
adoção de políticas antiimperialistas como a expropriação de empresas estrangeiras.
Neste último grupo, destacavam-se os “nacional-revolucionários”, que seguiam a
liderança de Brizola. Desde a sua atuação na campanha pela legalidade, Brizola
expressou e unificou ideias e crenças dos grupos esquerdistas, representando o que
havia de mais à esquerda no trabalhismo brasileiro. À medida que aumentava seu
prestígio político e popularidade, rivalizava com Goulart pela liderança nos campos
popular e da esquerda64.
Vale destacar que o PTB, naquele momento, havia se tornado “o principal fórum
de agitação e debates em torno do ideário nacionalista e das reformas de base”,
conforme analisa Maria Celina d‟Araujo65. De fato, no final dos anos de 1950, o partido
buscou ampliar suas bases sociais por meio do alargamento de seu projeto político que
extrapolou os interesses específicos do mundo do trabalho. Iniciou, assim, o
planejamento de um projeto nacional, que conjugava a defesa dos direitos do
trabalhador a um conjunto de reformas de caráter nacionalista, reformista e
distributivista, que ficaram conhecidas como “reformas de base”, e que formaram a base
do programa do partido. A campanha de João Goulart em 1960, com vistas à
64
65
Idem.
D‟Araújo, 1990:199.
43
recondução ao cargo de vice-presidente que ocupava desde 1956 em dupla com
Juscelino Kubitschek, tinha na defesa dessas reformas sua principal bandeira66.
Ao longo do governo Goulart, esses grupos de esquerda formaram o que
Argelina Figueiredo denominou de “coalizão radical pró-reformas”, que adotou,
gradativamente, estratégias de ação direta, por meio de mobilizações populares nas ruas,
a fim de pressionar o Congresso Nacional para aprovar as reformas de base. A coalizão
radical pró-reformas descartava concessões e compromissos e adotava uma estratégia
maximalista, principalmente em torno da reforma agrária.67
Lições de 1961
No que toca especificamente a Levy, importa destacar a sua percepção sobre o
campo político aberto com a posse de João Goulart, já que foi a partir dessa percepção
que ele traçou suas estratégias de luta, entre elas Notícias Populares.
Na qualidade de deputado federal e presidente nacional da UDN (1961-1963),
Herbert Levy participou ativamente das articulações que resultaram na adoção do
parlamentarismo, em ampla conexão com políticos do PSD, como Ernani Amaral
Peixoto. Forte adversário de Goulart, compartilhava a ideia de que o parlamentarismo
seria a solução adequada, pois diminuiria os poderes do presidente da República, no
momento em que as elites política e econômica do país encontravam-se divididas, e em
que os movimentos populares forneciam apoio decisivo à posse do vice-presidente,
eleito por voto popular.
No entanto, os episódios de 1961 funcionaram como uma espécie de pedagogia
política para Levy, em função da forte mobilização e do apoio popular dado a João
66
67
Sobre o PTB, ver também Delgado, 1986; Gomozias, 2010.
Figueiredo, 1993:66.
44
Goulart, bem como da ampla articulação dos grupos de esquerda capitaneados por
Brizola.68 Nesse sentido, a visão liberal elitista, marca da atuação de Levy desde os anos
de 1930, foi fortemente tensionada pela mobilização das classes populares em busca de
reconhecimento como contendores políticos estratégicos. Assim, parece ter prevalecido
a ideia de que, a partir daquele momento, intervenções no processo político brasileiro só
poderiam ser realizadas se contassem com o apoio dessas classes ou, alternativamente,
com a sua neutralização. Isso ficou evidente na postura assumida por Levy, que liderou
os setores udenistas e empresariais paulistas os quais, em busca de eficácia política,
reorientaram suas práticas de atuação, passando a adotar as mesmas táticas de
mobilização popular que, no passado, haviam condenado como “ilegítimas” e fruto da
“demagogia populista”.
Essa linha de atuação vinha se esboçando desde o final dos anos de 1950, com as
“Caravanas da Liberdade”, já descritas. Entretanto, o objetivo das Caravanas era
limitado à conquista do voto popular. No governo Goulart, esse objetivo foi ampliado
para estratégias que pretendiam competir com o governo e as esquerdas na mobilização
da classe trabalhadora nos diversos espaços políticos, especialmente no campo sindical.
Além disso, o perigo representado por uma possível adesão das classes
populares aos projetos de esquerda era agravado pelo quadro internacional de Guerra
Fria. Nesse contexto, as esquerdas brasileiras de diversos matizes foram rotuladas de
comunistas, pois, mesmo a esquerda não-revolucionária era considerada perigosa por
abrir caminho para a progressão do comunismo. Por exemplo, a vitória da reforma
68
A ideia de que os episódios de 1961 serviram de pedagogia para os “grupos de direita” é discutida
também nos trabalhos de Dreifuss, 1987 e Mendes, 2003.
45
agrária poderia abrir caminho para outras propostas mais radicais, como a expropriação
urbana ou das indústrias.
Outra lição que parece ter sido tirada dos episódios de 1961 foi a de que setores
da elite do país deveriam se articular e reforçar sua unidade. Essa articulação tomou
forma com a criação do Ipes, em novembro de 1961. Ao lado de integrantes do núcleo
liberal paulista como Hermann Moraes de Barros e Júlio de Mesquita Filho, Levy
começou a participar de uma série de reuniões entre empresários paulistas e cariocas,
cujo objetivo principal era estimular uma reação ao que foi percebido como uma
tendência esquerdista na vida política do país. Além de setores influentes do
empresariado, o Ipes congregava políticos e militares em defesa de um projeto que
exaltasse as vantagens da livre iniciativa e da associação com o capital externo em
comparação com aquelas oferecidas pelo comunismo e o estatismo. Fundamental para o
sucesso desse projeto seria a vitória na disputa com o governo e as esquerdas pelos
diversos
espaços
políticos,
principalmente
aqueles
ocupados
pelos
setores
“subordinados” da sociedade.
Pela congruência de valores e objetivos, o Ipes incorporaria, em julho de 1962, o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), criado em 1959 para combater o
comunismo e intervir na vida política do país. O Ibad atuava principalmente em duas
frentes: no Congresso Nacional, por meio do financiamento da candidatura de
parlamentares anticomunistas; e na mídia, com a difusão de amplo material
antigovernista e anticomunista.69
Levy participou das atividades do Ipes/Ibad, sem, entretanto, deixar de lado sua
própria campanha feita através da UDN. Ao longo do governo Goulart, sua atuação
69
Sobre o Ipes\Ibad, ver Dreifuss, 1987.
46
política se desenvolveu em três frentes: na disputa com as esquerdas pela influência
sobre as classes populares; na articulação entre setores das elites; e no jogo políticopartidário. Pode-se dizer ainda que no grupo político de Levy estava representado o
núcleo liberal, composto tanto por setores do empresariado paulista articulado em torno
do Ipes, como Herman Moraes de Barros e Júlio Mesquita Filho, quanto por
parlamentares udenistas da “Banda de Música”, entre eles Carlos Lacerda, Abreu Sodré,
Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro, entre outros.
Quem era o povo a ser conquistado?
Reafirmada a hipótese de que uma das metas de Levy durante o governo Goulart
foi a conquista do apoio das classes populares, é bom registrar que havia um interesse
particular nos trabalhadores sindicalizados, considerados o principal suporte político do
governo e dos grupos de esquerda. Afinal, o processo mais amplo de crescente
participação popular se verificou, sobretudo, na intensificação do movimento sindical,
apor meio do aumento do número de greves, da criação de intersindicais, da visibilidade
dos sindicatos e de sua participação na formulação de pautas nacionais.70 Para isso
muito contribuiu a aliança entre trabalhistas e comunistas nos meios sindicais,
compondo uma corrente à esquerda que acabou por hegemonizar a parcela mais
significativa e representativa do movimento sindical do período.71
Entretanto, a aliança entre PTB e PCB não foi feita sem tensões e de forma
linear. Segundo Santana, os dois partidos competiam em aliança, buscando sempre, de
forma estratégica, o avanço de suas posições sobre os demais aliados72. Dentro do PTB,
existiam ainda diferentes propostas quanto às relações com o movimento sindical, com
destaque para duas: uma mais identificada com práticas sindicais ligadas ao Ministério
70
Mattos, 2003:38-39.
Santana, 2007:267
72
Idem, Ibidem.
71
47
do Trabalho; outra, que se radicalizou ao longo do tempo e se identificava com o
movimento “mais vivo” dos trabalhadores.73
A intensificação do movimento sindical se verificou em São Paulo, estado com o
maior parque industrial do país. Embora tivessem que enfrentar a concorrência de
ademaristas e janistas e outras correntes trabalhistas, o PTB e o PCB, muitas vezes em
aliança, conquistaram progressivamente os principais sindicatos paulistas no período.74
Os estudos recentes sobre o movimento operário paulista, como os de Luigi Negro e
Fernando Silva, mostram como os militantes do PTB e do PCB demonstraram
capacidade de organizar e mobilizar o movimento sindical para além do discurso de
orientação de cúpula partidária.75 Mostram, também, como não houve predomínio de
greves no setor público em detrimento do setor privado, como tradicionalmente se
afirma na historiografia, e que frequentemente serve como argumento para indicar uma
suposta fraqueza do movimento sindical paulista da época.
Trata-se de um período fértil na criação de intersindicais que pretendiam unir
diferentes categorias de trabalhadores a fim de dotá-las de organizações fortes para
expressar demandas salariais e políticas coletivas. Essas organizações decorriam da
tentativa de líderes de esquerda de fugir da estrutura sindical corporativa criada para
evitar a politização das questões trabalhistas e, ao mesmo tempo, restringir as
reivindicações ao plano exclusivamente salarial. Entre as principais intersindicais que
atuaram no período, especialmente no cenário paulista, destacam-se o Pacto de Ação
Conjunta (PAC), o Fórum Sindical de Debates (FSD), ambos reunindo os principais
sindicatos de trabalhadores das empresas privadas de São Paulo e, por fim, o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT), com expressão em âmbito nacional e presidido por
Dante Pellacani, do PCB de São Paulo.
73
Delgado, 1986.
Ver Benevides, 1989.
75
Negro, 2001 e 2003; Silva, 2003.
74
48
Fundado em agosto de 1962, o CGT foi a mais importante entidade do gênero e
reuniu os mais ativos sindicatos brasileiros, entre eles os dos marítimos, dos
ferroviários, dos portuários, e de diversas categorias de trabalhadores fabris. Controlado
pelo PTB e pelo PCB, adquiriu grande notoriedade em âmbito nacional, tornando-se um
importante instrumento de pressão política. O CGT pretendia tanto ampliar o leque de
conquistas econômicas das classes trabalhadoras, como também interferir diretamente
nas decisões políticas do país ao articular a luta dos sindicatos com instituições
comprometidas com as reformas de base.76
O estreitamento das relações entre os sindicatos sob orientação do CGT e o
governo Goulart permitiu uma ampliação da influência das lideranças sindicais no
cenário político nacional. Ao mesmo tempo, fornecia elementos que reforçavam as
denúncias do perigo da instauração de uma “República Sindicalista” no país, assunto
que será tratado no último capítulo.
No entanto, embora houvesse uma crença do movimento sindical no governo
Goulart como um canal de ampliação dos direitos, o CGT não deixou de manter certa
independência, já que se uniu aos grupos mais à esquerda, radicalizou a luta pelas
reformas de base, contrariando o governo que temia o acirramento dos ânimos
conspirativos das forças golpistas.77
É fácil entender por que Herbert Levy fez da disputa no campo sindical uma de
suas principais estratégias políticas. A fim de contrabalançar a força da esquerda nos
meios operários, intensificou seu envolvimento com sindicatos anticomunistas, como o
Movimento Sindical Democrático (MSD).
Estratégias de conquista
76
77
Negro; Silva, 2003:72-73
Idem, Ibidem.
49
O MSD, criado em julho de 1961, era chefiado pelo presidente da Confederação
Nacional dos Trabalhadores no Comércio, Antônio Magaldi. Constituiu-se como uma
frente sindical de caráter anticomunista, favorável à empresa privada, cuja mensagem
baseava-se na negação da luta de classes, e na busca do consenso entre empresário e
trabalhador com vistas à conquista de uma maior produtividade que beneficiasse a
ambos. Defendia, ainda, uma concepção corporativa da estrutura sindical, que excluía a
participação dos sindicalistas na vida política nacional e, por isso mesmo, passava ao
largo das discussões sobre as reformas de base.78 Nas principais greves políticas
ocorridas no país ao longo do governo Goulart, o MSD atuou para conter e condenar as
mobilizações sindicais. Vale destacar que Levy, que havia apoiado a fundação do MSD
em 1961, só veio a efetivamente estreitar seus laços com essa organização no governo
Goulart.
No entanto, a despeito dos esforços de Herbert Levy e do Ipes, o MSD não foi
um sério concorrente aos sindicatos liderados por trabalhistas e comunistas, e nem
obteve a adesão dos sindicatos que constituíam a base de apoio efetivo ou potencial do
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Enquanto a esquerda sindical dominava
quatro das seis confederações de estrutura sindical corporativa, o MSD era forte em
apenas duas: a dos Trabalhadores do Comércio e a dos Trabalhadores em Transportes
Terrestres. Esse fato revelava o engajamento sindical à esquerda dos trabalhadores no
período.
Essa forma de aproximação de Levy com o sindicalismo se alinhava a uma
determinada prática do empresariado paulista em relação à questão operária. Conforme
discutido no início do capítulo, desde a redemocratização, em 1945, as lideranças
78
Sobre o MSD, ver Delgado, 1989:266-273; Dreifuss, 1987; Negro; Silva, 2003 e Weinstein, 2000:343344.
50
industriais paulistas passaram a atuar dentro das próprias organizações operárias a fim
de construir uma base ideológica e de comportamento político em consonância com a
sociedade industrial. Nesse sentido, a crescente mobilização operária no governo
Goulart deu origem não tanto a uma nova orientação do discurso das lideranças
empresariais em relação ao movimento sindical, mas a uma amplificação dos seus
temas. Para competir no meio sindical, o empresariado articulado em torno do Ipes
desenvolveu, por exemplo, atividades de doutrinação e treinamento de lideranças
operárias, e organizou seminários e congressos sindicais. O objetivo era enfatizar a
função social do capital e promover a possibilidade de ascensão econômica individual
como alternativa à luta de classes.79
No entanto, diante da crescente mobilização dos trabalhadores afinados com as
propostas do PTB, Herbert Levy incorporou elementos da legislação trabalhista no seu
discurso político. Como exemplo, a forte defesa que fez, em 1963, da aprovação do
salário-família ou da escala móvel de salário, com objetivo de tirar do PTB a autoria
desses projetos e usá-los como trunfo na luta pelo apoio da classe trabalhadora.
O campo político parlamentar (1961-1962)
Outro espaço importante da luta política de Levy contra a ameaça de uma
esquerda em ascensão foi o campo parlamentar. Na qualidade de presidente da UDN,
liderou a campanha pela imposição do parlamentarismo como resposta à crise políticomilitar à posse de Goulart na presidência da República. Tal posição advinha tanto de
razões programáticas, já que o parlamentarismo era parte do programa udenista desde
1957, quanto conjunturais, em face da intenção de exercer controle sobre o dispositivo
político do presidente a ser empossado.80
79
80
Ver Dreifuss, 1987:305-319.
Dulci, 1986:176.
51
O parlamentarismo como arranjo institucional, segundo Argelina Figueiredo,
excluía a possibilidade de aprovação e adoção de um programa abrangente de reformas
políticas e sociais mais profundas, consideradas radicais por alguns setores.81 Nesse
sentido, o primeiro gabinete parlamentarista (setembro de 1961 a junho de 1962),
capitaneado por Tancredo Neves, do PSD, caracterizou-se por uma tentativa de formar
um governo de coalizão, contendo representantes de diversos espectros políticos,
incluindo a UDN. Conhecido como “gabinete da conciliação”, tinha uma abordagem
cautelosa das reformas, evitava questões como desapropriações e redistribuição de terra,
a fim de não ameaçar interesses arraigados.
Para conter o “esquerdismo demagógico”, as críticas de Levy eram direcionadas
às “omissões de Tancredo Neves e a absorvente intromissão de João Goulart na área de
competência constitucional do gabinete”82. Ao mesmo tempo, articulava, junto com
Amaral Peixoto, presidente nacional do PSD, uma “aliança de centro” no sentido de
formar “uma frente comum daqueles que professam o regime democrático e que
queiram realizar as verdadeiras reformas de base, sem agitação, sem demagogia” 83. O
objetivo de Levy era obter maioria no Congresso para estabelecer uma coalizão de veto
às propostas do Executivo e, dessa forma, contornar possíveis ameaças provenientes de
uma esquerda em ascensão.
Vale destacar que, embora o PSD continuasse um aliado formal do PTB na
sustentação do governo Goulart, o contexto de polarização ideológica que marcou o
período também atingiu o interior do partido, provocando divisões internas e sua
fragmentação. Nesse sentido, setores mais conservadores, assustados com o crescente
perfil reformista do PTB, embora não passassem à oposição ostensiva ao governo,
estabeleceram uma aliança tácita com a UDN.
81
Figueiredo, 1993:53
O Estado de São Paulo, 7 jan. 1962:3
83
Idem, Ibidem.
82
52
Segundo Lucia Hipólito, o PSD, partido majoritário no Congresso Nacional, foi
o principal partido de centro e o fiador do sistema político brasileiro no período entre
1945-1964. Entretanto, durante o governo Goulart, as divisões internas no partido
deram origem a três correntes. A primeira, foi formada pelo grupo que se opunha à
Goulart. Embora não assumisse qualquer compromisso com as decisões do presidente
da República, somente no início de 1964 decidiria romper os vínculos com a legalidade.
Na segunda corrente, estavam os setores mais à esquerda, a “Ala Moça”, reunidos na
Frente Parlamentar Nacionalista, o que, entretanto, não implicava apoio automático às
propostas do Executivo. A terceira, era liderada por Juscelino Kubitschek e se dispunha
a apoiar ostensivamente o governo. Foi por meio desse grupo que o PSD auxiliou
Goulart a superar os impasses no Legislativo. Buscando um equilíbrio entre essas áreas,
situava-se Amaral Peixoto, embora sua tendência fosse cada vez mais para uma aliança
com a UDN84.
Para selar a aliança entre PSD e UDN, Levy percorreu, ao longo de 1962, os
diversos estados da federação para estabelecer contatos com dirigentes partidários e
governadores, a fim de superar as áreas de atrito entre os dois partidos. Ao mesmo
tempo, dentro da própria UDN, tinha que enfrentar o grupo “Bossa Nova”, favorável a
certas reformas defendidas pelo governo. Vale destacar que as teses deste grupo jamais
foram vitoriosas dentro do partido, obrigando-o a compor com o PTB na Frente
Parlamentar Nacionalista (FPN), bloco interpartidário que defendia o nacionalismo e as
reformas de base no Congresso. Levy foi ainda um dos mais ferrenhos defensores da
expulsão de militantes udenistas da “Bossa Nova”, como o deputado Ferro Costa.85
Vale notar que o quadro mais comum naquele cenário político era a união de
partidos adversários na defesa de interesses comuns, e a divergência entre grupos dentro
84
85
Hipólito, 1985:222- 223
O Estado de São Paulo, 18 set. 1962:3
53
do mesmo partido.86 A formação de frentes parlamentares, que incluíam políticos de
diferentes agremiações, tornou-se a alternativa política naquele contexto. Levy, por
exemplo, integrou a Ação Democrática Parlamentar (ADP), criada para se contrapor às
propostas da FPN. A ADP era constituída principalmente por políticos da UDN e do
PSD, mas também contava com alguns deputados dissidentes do PTB, além de partidos
menores. Suas principais bandeiras eram a defesa da iniciativa privada, do liberalismo,
do alinhamento aos EUA e do apoio incondicional aos investimentos estrangeiros no
Brasil.87 Os deputados da ADP recebiam apoio financeiro e ideológico do Ibad para dar
combate ao projeto das esquerdas no Congresso Nacional.
No entanto, apesar da oposição histórica ao herdeiro político de Vargas, Levy,
até o início de 1962, ainda não considerava João Goulart como um inimigo
irreconciliável. Na contramão de seu próprio grupo dentro da UDN, tentou atrair o
presidente da República para o campo das forças políticas por ele denominadas de
“centro”. Em declaração ao jornal O Estado de São Paulo, em novembro de 1961,
comentava:
“Goulart poderia situar-se num plano histórico de onde poderia divisar uma
outra perspectiva para a sua alta contribuição à consolidação do regime
parlamentarista. Curvando-se ao espírito do regime, o presidente nele
desempenharia as funções de um poder moderador, ao qual todos
recorreriam nos momentos de crise”88
O recado era claro: Goulart teria apoio desde que se adequasse aos limites
impostos pelo parlamentarismo, e afastasse a esquerda do círculo de poder.
Nas suas declarações pela impressa, Levy comentava: “a UDN deve esquecer o
passado e viver o presente e o futuro”89. Interessante observar que a posição de Levy em
relação a João Goulart não pode ser confundida com a do governador mineiro da UDN,
86
Benevides, 1981:179
Delgado, 2003:150-151.
88
O Estado de São Paulo, 10 nov. 1961:3
89
Lachini, 2002:130.
87
54
Magalhães Pinto. Este último se aproximava do presidente da República e das forças de
esquerda interessado na antecipação do plebiscito e na formação de uma base popular
visando às eleições presidenciais de 1965.
Como membro da comitiva do presidente da República em sua visita oficial aos
EUA, em abril de 1962, Levy foi autorizado por Goulart a discutir com o presidente
Kennedy os problemas da superprodução do café, questão que afetava diretamente seus
interesses econômicos.90 Na volta ao Brasil, passou a distribuir elogios e afagos ao
presidente da República.
Apesar dessa iniciativa ter-lhe rendido severas críticas públicas dos udenistas da
“Banda de Música”, o episódio é relevante, pois mostra que a solução golpista ainda
não estava no horizonte do grupo liberal. Até o final de 1962, a conquista do poder
pelas vias institucionais, ou seja, pelo processo político eleitoral, era o objetivo maior.
Apoiar um golpe gerava o risco de interromper esse processo. Levy apostava fortemente
na vitória de Carlos Lacerda à presidência da República nas eleições previstas para
1965, como forma de a UDN chegar, finalmente, ao poder, já que a tentativa com Jânio
Quadros havia sido frustrada. Além disso, ele seria o provável candidato da UDN
paulista ao governo de São Paulo.91
No entanto, a reconciliação com Goulart foi abandonada quando, a partir de
maio de 1962, se tornou claro que o presidente estava interessado em inviabilizar o
parlamentarismo e voltar ao sistema presidencialista. De fato, desde que assumiu a
presidência, Goulart adotou duas estratégias políticas. A primeira foi reaproximar o
PTB do PSD, na tentativa de formar uma maioria no Congresso Nacional para aprovar
as reformas de base de modo consensual. As reformas seriam fruto de acordos e
negociações e, portanto, mais moderadas do que desejavam as esquerdas mais radicais
90
91
O Estado de São Paulo, 5 abr. 1962:3
Levy, 1990.
55
lideradas por Brizola. A segunda estratégia foi minar o regime parlamentarista e restituir
os poderes do Executivo, com o que contava com forte apoio dos grupos reunidos na
“coalizão radical pró-reformas”, com destaque para o movimento sindical. Brizola,
liderando as esquerdas mais radicais, afirmava que o Legislativo, ao aceitar o
parlamentarismo, havia perdido sua legitimidade.92
A partir daí, Levy assumiu uma linha de oposição e fiscalização do presidente e
recuperou o velho estilo de oposição udenista marcado por denúncias e vigilância, que
foi em um crescendo até a deposição de João Goulart em 1964. As denúncias das
“intenções golpistas” de Goulart e do perigo da comunização do país assumiram o
primeiro plano dessa oposição.
O ponto principal defendido por Levy, que se tornaria o mote da oposição até o
final do governo Goulart, proclamava que havia um acordo entre o “caudilhismo
ditatorial”, representado pelo presidente da República, com o comunismo, representado
pelas esquerdas de diferentes matizes. O intuito era eliminar a democracia no Brasil. Os
comunistas colocavam-se ao lado de Goulart para realizar a sua política do “quanto pior,
melhor”, ou seja, levar o país ao caos e à anarquia, para criar um clima propício para a
revolução93. Goulart, por sua vez, buscava aliança com os comunistas com o intuito de
permanecer no poder. Segundo Levy:
“a realidade é que a extrema direita, representada pelo caudilhismo
redivivo no Brasil, e a extrema esquerda se encontram unidas em mais uma
dessas alianças ímpias de que a História nos dá vários exemplos, cada qual
com objetivos diferentes, uma procurando servir-se da outra para alcançar
seus propósitos”94
92
Ferreira, 2003:350.
O Estado de São Paulo, 1 dez. 1962:3
94
Idem, Ibidem.
93
56
Na visão de Levy, o campo político estaria divido em três forças: a “extrema
direita” ou o caudilhismo redivivo na figura de João Goulart; a “extrema esquerda”,
interessada na comunização do país, e as forças de “centro”, representadas pela união
entre UDN e PSD, que seriam as verdadeiras forças democráticas.
A campanha pelo plebiscito
Em maio de 1962, Goulart se aproximou das forças de esquerda e da Frente
Parlamentar Nacionalista e deu início à campanha pelo retorno do presidencialismo. Em
junho, com pretexto de se desincompatibilizar para concorrerem às eleições de outubro
de 1962, todos os ministros do Gabinete Tancredo Neves pediram demissão, apesar dos
esforços, fracassados, de Levy e Amaral Peixoto no sentido de fazer aprovar a emenda
“Mem de Sá”95. Essa emenda tinha como o objetivo permitir a candidatura dos ministros
às eleições parlamentares de 1962 sem necessidade de desincompatibilização. A saída
do gabinete Tancredo Neves, sabia Levy, abriria o caminho para a volta do
presidencialismo e a restituição dos poderes a Goulart.
Com a renúncia de Tancredo Neves, San Thiago Dantas, que, à frente do
Ministério das Relações Exteriores, havia patrocinado a continuidade da política externa
independente, recebeu o apoio das forças das esquerdas e do movimento sindical para
assumir o cargo de primeiro-ministro. Entretanto, udenistas e pessedistas vetaram a sua
indicação. Diante dessa resistência, Goulart, em uma clara manobra para causar um
impasse político, nomeou Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, apoiado
ostensivamente pela UDN e pelo PSD.96 A reação das esquerdas foi imediata. O
movimento sindical declarou greve geral pela nomeação de um gabinete nacionalista.
As mobilizações populares, naquele momento, davam suporte à estratégia de
boicotar o parlamentarismo. Como mostra Delgado, foi um período no qual a prática
95
96
A emenda Mem de Sá foi rejeitada no Senado por 33 votos a 10. Hipólito, 1985:216
Auro de Moura Andrade havia ficado contra a posse de Goulart em 1961 e apoiaria do golpe em 1964.
57
político-partidária foi permeada, sem disfarces, pela prática sindical e vice-versa
97
.
Assim, em 5 de julho, o movimento sindical brasileiro realizou a sua mais importante
greve geral do período. Convocada por CNTI, PAC, FSD e outras entidades, lideradas
por trabalhistas e comunistas, a greve reivindicava um gabinete nacionalista capaz de
efetuar as reformas de base, além da aprovação do abono do Natal e do salário-família.
Combinava, dessa forma, lutas econômicas e políticas, o que marcaria o movimento
sindical no período98
A organização da greve de julho levou à renúncia de Auro de Moura Andrade,
antes mesmo de assumir o ministério, e à indicação de Brochado da Rocha, exsecretário do Interior de Brizola, claramente comprometido com a antecipação do
plebiscito e a volta do presidencialismo. Além disso, como um dos resultados dessa
greve foi criado o CGT, em agosto de 1962. Em setembro, o movimento sindical
voltaria à tona. Dessa vez, a tese do gabinete nacionalista seria substituída pela
reivindicação da antecipação do plebiscito para viabilizar as reformas de base.
Como reação à pressão das esquerdas, Levy denunciava a “crise artificial”
insuflada no sentido de “coagir o Congresso em uma tentativa de solapar as instituições
democráticas” e outorgar maiores poderes ao presidente. Um dos grandes perigos que se
desenhou nesse processo foi o suporte que o movimento sindical deu às pretensões de
João Goulart. Sem bases parlamentares, o presidente mobilizava apoio fora do
Congresso Nacional e a estratégia obtinha sucesso. Novamente a lição: a esquerda
ganhava as ruas e precisava ser freada nesse processo.
Por isso Levy intensificou sua inserção junto ao movimento sindical. Por meio
do Ipes, incentivou organizações que fizessem frente aos sindicatos alinhados com as
esquerdas e o governo. Uma de suas estratégias para desqualificar o movimento sindical
97
98
Delgado, 1989:236
Melo, 2009:113
58
de esquerda era atribuí-lo a um grupo restrito e sem capilaridade social, bem como
vinculá-lo à ameaça comunista. O objetivo era mostrar as greves de julho e setembro de
1962 como eventos artificiais. Levy salientava sua preocupação em eliminar do controle
dos sindicatos “a influência de doutrinas importadas, onde se vê a existência não de
preocupação de atender aos trabalhadores, mas de vincular ideias incompatíveis com a
nossa formação”. Segundo ele, a presidência nacional da UDN estaria disposta a
auxiliar os líderes sindicais que desejassem realmente a “democratização” no
sindicalismo brasileiro.
Assim, entre julho e setembro de 1962, Levy apoiou as caravanas em direção a
Brasília organizadas pelo MSD, representando sindicatos da Guanabara, de São Paulo,
do Rio de Janeiro, de Goiás, de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul. O
objetivo era, por meio de contrademonstrações de força, desagravar o Congresso
Nacional da pressão sindicalista à esquerda. Afirmando-se como “de fato e de direito
representante da grande maioria ativa do operariado brasileiro”, para a liderança do
MSD, a greve geral de julho “não passa de grossa chantagem praticada por aqueles que
se apoderam das cúpulas das principais organizações sindicais operárias do Brasil”99.
Acentuava, também, que “os falsos dirigentes pretendem servir aos interesses de certa
potência imperialista e autoritária”, em referência clara à URSS.
A ideia principal defendida pelo MSD era que o movimento sindical não deveria
se envolver nas questões políticas partidárias. Essa ideia, com visto, constituía o cerne
da luta de Levy e dos setores empresariais:
“O Movimento Sindical Democrático entende que não deve imiscuir-se nas
questões político-partidárias. E assim tem procedido não só em respeito à
legislação vigente, como também, e principalmente, em atenção aos
princípios esposados pelo sindicalismo livre e democrático. Todavia, os
inimigos da pátria, do povo e dos trabalhadores, usando processos imorais
impróprios, utilizaram-se indecentemente do nome dos órgãos sindicais
democráticos do país para mais uma de suas costumeiras manobras de
99
O Estado de São Paulo, 26 jun. 1962:3
59
cúpula, tentando desta feita, enxovalhar o sistema de governo em vigor e
consequentemente as legítimas representações do povo, pelo Congresso
Nacional, e dos trabalhadores, pelos sindicatos livres e democráticos.”
[grifos meus]100
Os cartazes da marcha do MSD em Brasília revelavam o conteúdo ideológico do
movimento e estampavam as seguintes frases: “condenamos toda e qualquer pressão
sobre o Congresso”; “pressão de base, palavra de ordem de Moscou”, “Anticomunista
sempre, reacionários, nunca”, “nacionalismo não pode ser comunismo”; “Movimento
Sindical Democrático repudia a greve política” 101.
Nesse contexto, Levy liderou a abertura de uma CPI no Congresso Nacional,
para investigar a atividade comunista nos meios sindicais. Por meio da CPI, que obteve
grande ressonância na grande imprensa paulista, ele empreendeu uma verdadeira
batalha para fechar os sindicatos controlados por trabalhistas e comunistas, bem como
das intersindicais como o PUA e o CGT. Ao mesmo tempo, pretendia fortalecer as
lideranças do sindicalismo chamado democrático, como a União dos Ferroviários do
Brasil. Ao abordar a “infiltração comunista” nas companhias ferroviárias, alertava:
“...Os comunistas já conseguiram dominar totalmente as entidades sindicais
dos aeroviários e aeronautas, na proporção de 80 % as entidades marítimas e
portuárias, só estando em minoria nas estradas de ferro, por força da
gigantesca luta que vem desenvolvendo pela entidade nacional desta última
categoria profissional que é a União dos Ferroviários do Brasil [...] A UFB
vem sofrendo tenaz perseguição por parte das direções ferroviárias, somente
pelo fato de se colocar na posição defensiva das instituições democráticas,
denunciando, por outro lado, os propósitos comunistas da Federação das
Ferrovias” 102
Um dos principais pontos de “acusação” feitos por Levy durante a CPI foi a de
que os sindicatos pretendiam tomar o lugar dos partidos políticos. Para ele, isso
significava o fim do regime democrático:
100
Idem, Ibidem.
Idem, Ibidem.
102
O Estado de São Paulo, 25 jul. de 1962: 5
101
60
“[...] a constituição é clara. A expressão da vontade política da nação se
faz por meio dos partidos políticos. Os sindicatos têm a seu cuidado, nos
vários estágios da sua hierarquia, a defesa dos interesses e reivindicação de
suas categorias. É o que está claramente estabelecido. Mas o que se pretende
fazer é substituir a ação dos partidos pela ação dos sindicatos ou das
organizações sindicais, ilegais [...]103
A resistência de Levy em admitir a participação política das classes populares,
era típica do pensamento liberal clássico, que negava legitimidade às mobilizações
populares como instrumento de pressão. Apenas o Legislativo, os partidos, as eleições e
instituições, que compõem o quadro de representação política em uma democracia
representativa, eram considerados os meios legítimos de exercício de poder. Para
Carvalho, essa postura corresponderia a uma concepção de que a organização do
governo é uma questão de administração e de competência das elites responsáveis e não
expressão dos conflitos oriundos dos interesses que afloram no tecido social104.
Entretanto, é interessante observar que a participação política dos sindicatos se
apresentava ilegítima somente quando estava alinhada aos interesses dos grupos aos
quais Levy fazia oposição. Do contrário, quando o movimento sindical estava alinhado
aos setores representados por Levy, suas mobilizações, embora políticas, não eram
classificadas dessa forma.105
Assim, para combater as pressões pela antecipação do plebiscito, Levy
reorganizou o esquema das concentrações populares udenistas que deveriam enfatizar a
“integração e apoio aos líderes sindicais que chefiam o admirável movimento em prol
do trabalhismo democrático, combatendo o comunismo no meio sindical”106. As
Caravanas Cívicas udenistas sairiam em defesa do regime e das instituições
democráticas contra a infiltração comunista. Nesses comícios, ao lado de Levy, era certa
103
Anais da Câmara dos Deputados, 30 nov. 1962.
Carvalho, 2010:121
105
Ver Mendes, 2003
106
O Estado de São Paulo, 3 jun. 1962:3
104
61
a presença de líderes sindicais como Antonio Magaldi, Darcy Gatto e Ourival Portal da
Silva, integrantes da Federação dos Empregados do Comércio, ligada ao MSD.
Eleições de 1962
Paralelamente à campanha que desenvolvia contra a antecipação do plebiscito e
a infiltração comunista nos meios sindicais, Levy concentrou seus esforços em torno das
eleições que ocorreriam em outubro de 1962 para a Câmara dos Deputados, parte do
Senado e 11 governos estaduais e que definiriam as possibilidades futuras para a UDN,
além dele próprio como candidato à reeleição para deputado federal por São Paulo.
Estava em jogo, acima de tudo, a composição do Congresso que legislaria por todo o
governo de João Goulart, até 1965, e que, portanto, decidiria se o presidente da
República teria ou não apoio institucional para seu programa político.
A estratégia de campanha udenista planejada por Levy deveria basear-se na ideia
de que as eleições representavam uma polarização absoluta entre “democracia” e
“comunismo”. Em agosto de 1962, ele expediu uma circular para as bases regionais do
partido que continha as orientações programáticas que deveriam ser seguidas na
campanha dos candidatos. O documento sugeria, enfaticamente, a adoção do
anticomunismo como estratégia eleitoral:
“[...]precisamos empunhar decididamente a bandeira do combate aos
extremismos, sobretudo o comunismo internacional que pretende
transformar nosso país na próxima vitima da escravização soviética, bem
como o caudilhismo nacional que lhe serve inconscientemente de
instrumento”107
A ideia era relacionar a eleição dos candidatos de esquerda, incluindo o PTB,
considerado representante do “caudilhismo nacional”, ao comunismo e, assim, atrair
votos de setores da população amedrontados com o crescimento das esquerdas no
cenário político.
107
O Estado de São Paulo, 24 agosto 1962:3
62
As eleições para governador em São Paulo fornecem um exemplo da bandeira
anticomunista empunhada por Levy. O candidato da UDN nesse estado, José Bonifácio
Nogueira, formou uma frente ampla que contava com apoio, entre outros partidos, do
PTB, a fim de angariar votos das classes populares. O resultado foi uma pregação
política que continha ideias reformistas e declarações de apoio ao governo Goulart,
levando à oposição setores da “Banda de Música” da UDN. É nesse sentido que Levy,
discretamente, apoiou a eleição de Ademar de Barros, que concorria contra o candidato
do seu partido. Assim, apesar da oposição e das denúncias de corrupção que Levy fazia
contra Ademar desde os anos de 1950, o momento exigia a união contra um perigo
considerado maior. Conforme assinala Dulci, Ademar representava o partido da ordem,
atacava o sindicalismo, o comunismo e anunciava a intervenção militar para restaurar a
ordem no Brasil. O apoio que Levy lhe deu mostrou que setores udenistas foram
deixando de lado o “atestado de boa conduta”, substituindo-o pela exigência de uma
espécie de atestado ideológico108.
Em nível nacional, o PTB e a UDN representaram os principais polos do debate
público em uma atmosfera de acentuada polarização política. Ambos os partidos
estavam assentados no voto urbano. Entretanto, enquanto o PTB tinha suas bases nas
classes populares, a UDN as tinha nas classes médias.109 Na visão de Levy, urgia que o
partido ampliasse sua base eleitoral com o voto popular, a fim de aumentar suas chances
eleitorais. Para tanto, reeditou as caravanas udenistas que contavam com a presença
significativa do sindicalismo “democrático”.
A novidade é que essas caravanas passaram a incorporar, a seu modo, o tema das
reformas de base que se mostrava extremamente popular e que sinalizava uma
progressiva guinada à esquerda do sistema político. Esse tema estava contido na Carta
108
109
Dulci, 1986:182
Benevides, 1981:213
63
de Princípios da UDN, lançada em fevereiro de 1962, com objetivo de fazer frente às
eleições daquele ano. A reforma agrária, por exemplo, prioridade do governo Goulart,
era contemplada na Carta. Entretanto, para os udenistas, mais do que distribuição de
terras, a ênfase recaia em medidas de assistência financeira e técnica. Para não ser
ultrapassada pelas forças de esquerda no campo político, a direção nacional da UDN,
Levy à frente, revelava uma disposição para endossar uma política reformista de teor
moderado. Ao mesmo tempo, procurava anular o que considerava “radicalidade” dessas
propostas: o país precisava de reformas, desde que por via legal do entendimento
parlamentar e dentro de um programa de estabilidade econômica, com ênfase no
controle da inflação.
Vale destacar que a marca das eleições de 1962 foi o forte envolvimento das
organizações extra-partidárias, tão combatidas por Levy quando mobilizadas pela
esquerda. Do lado da oposição ao governo, o Ibad destacava-se ao financiar candidatos
antijanguistas e anticomunistas e patrocinar uma intensa campanha na mídia. O próprio
Levy participava dessa campanha, sendo figura frequente nos programas de televisão e
rádio patrocinados por esse instituto, o que lhe renderia dividendos políticos: foi o
candidato da UDN mais votado em São Paulo para deputado federal110. Do lado do
governo Goulart, houve um forte investimento nos candidatos do PTB, especialmente
por meio dos recursos vindos do sistema previdenciário.
Entretanto, apesar de todo o apoio do Ibad, o resultado da eleição foi uma nova
derrota para o grupo de Levy. O PTB quase dobrou sua representação na Câmara dos
Deputados, tornando-se a segunda força no parlamento: suas cadeiras aumentaram de 66
para 116, representando 28% do total. Os partidos liberais e conservadores haviam
perdido a hegemonia, embora a UDN e o PSD, juntos, alcançassem 54% das cadeiras.
110
O Estado de São Paulo, 10 out.1962:3
64
Com diz Lavareda, certamente o PTB deveria firmar sua liderança nas próximas
eleições parlamentares marcadas para 1966111. Essa nova derrota serviu de aprendizado
para Levy que, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, declarava reconhecer
que as “forças de centro” estavam sendo surpreendidas com alguns resultados
desfavoráveis112.
Uma vez terminada a campanha eleitoral, as atenções de Levy voltaram a se
concentrar na questão do plebiscito que sondaria a população quanto à volta do
presidencialismo. Apesar de seus esforços junto a Amaral Peixoto, a aliança entre UDN
e PSD se desfez, já que a facção amaralista perdeu terreno para a facção juscelinista
que, preocupada com as eleições presidenciais de 1965, era favorável à recomposição da
aliança com o PTB para aprovação do plebiscito. Da mesma forma, na UDN,
evidenciou-se a divergência, antepondo o grupo liderado por Herbert Levy, que assumia
uma postura intransigente na defesa da manutenção do parlamentarismo, e denunciava o
plebiscito como sinal verde para o “golpismo” de Goulart, e a “Bossa Nova” e os
realistas, capitaneados por Magalhães Pinto, interessados na aprovação das reformas de
base e nas eleições de 1965. Finalmente, em setembro, foram vencidos os obstáculos
parlamentares e a realização do plebiscito foi aprovada para 6 de janeiro de 1963.
O resultado do plebiscito foi uma nova derrota para Levy. A vitória do
presidencialismo foi avassaladora, em uma proporção de cinco votos para um. Além
disso, o comparecimento em peso do eleitorado colocou por terra a tese de que o povo
não tinha “interesse em uma votação sem nomes em torno de uma tese abstrata”, e
revelou o crescente grau de politização do eleitorado do período.
Tomados como derrotas políticas, os resultados das eleições e do plebiscito
foram, por Levy, atribuídos, em parte, às mobilizações populares favoráveis a João
111
112
Lavareda, 1991:95
O Estado de São Paulo, 10 out.1962:3
65
Goulart e às esquerdas, o que evidenciava a necessidade de ampliar a base de apoio
popular aos setores oposicionistas. Por isso mesmo, o projeto de criação do jornal
Notícias Populares, oferecido pelo jornalista romeno Jean Mellé, no início de 1963,
seria muito bem recebido por Herbert Levy, assunto que será discutido no próximo
capítulo.
O retorno do presidencialismo indicava um outro risco, já que sepultava o
principal recurso institucional – o parlamentarismo – para a contenção das ações do
governo. Ao mesmo tempo, o resultado do plebiscito fortaleceu a posição de João
Goulart, que retirou do episódio todas as vantagens possíveis, emprestando ao retorno
do presidencialismo o significado de apoio popular ao seu programa de reformas de
base.
O presidencialismo e as reformas de base
As clivagens ideológicas em torno das reformas de base sobrepuseram-se por
completo a quaisquer outros temas. De fato, em março de 1963, após a tentativa
fracassada de conciliar medidas de estabilização econômica com propostas reformistas
através do Plano Trienal113, Goulart, pressionado pelas esquerdas, voltou-se para as
reformas de base, sobretudo a agrária.
Em abril de 1963, o PTB lançou seu programa de reforma agrária, prevendo
desapropriações de terras sem indenizações em dinheiro. Para isso, o líder do partido na
Câmara dos Deputados, Bocaiúva Cunha, encaminhou um projeto de emenda
constitucional que propunha alterações no artigo 146 da Constituição. O objetivo era
113
Formulado por Celso Furtado, Ministro do Planejamento, o plano pretendia conter a inflação e, logo
depois, promover as reformas de base. Para isso, propunha uma política de restrição salarial, o que
desagradou ao movimento sindical, e uma política de limite de crédito e preços, que contrariou segmentos
importantes do empresariado. Sem acordo entre as partes, o plano foi condenado ao fracasso, já que
Goulart não estava disposto a arcar sozinho com os custos políticos do Plano. Ver Argelina, 1993:91-113.
66
permitir que as indenizações fossem feitas em títulos da dívida pública resgatáveis em
longo prazo. Um dos argumentos era que o Estado não teria os recursos necessários para
pagar em dinheiro as terras a serem desapropriadas. Além disso, temia-se que a
operação se transformasse em um grande negócio para os proprietários.
Apesar da oposição das bases do PSD, formadas em grande parte por
proprietários de terras, suas lideranças estavam dispostas a chegar a um acordo com o
governo. Como condição prévia, exigiam que o valor das indenizações em títulos da
dívida pública deveria ser protegido da inflação e que as terras produtivas e as
propriedades urbanas não seriam incluídas. O PTB, entretanto, recusava qualquer
modificação no projeto inicial, o que levou à aproximação do PSD com a UDN.
Já a oposição da UDN, Levy à frente, foi imediata e se fez a partir de uma dupla
denúncia: da reforma agrária como caminho para a comunização do país; e da reforma
constitucional como estratégia para um golpe continuísta de Goulart. Esses temas
seriam desenvolvidos incansavelmente pelo jornal Notícias Populares.
Na visão de Levy, a reforma agrária proposta pelo PTB representava um
atentado ao direito de propriedade, considerado a mola mestra da sociedade liberal e
democrática e, por isso, seria o primeiro passo para a “comunização do país”. Por outro
lado, o antirreformismo do grupo de Levy também era tático, na medida em que
pretendia evitar o êxito do governo e do PTB e, dessa forma, impedir que os poderes de
João Goulart e das esquerdas fossem reforçados. Ao apoiar projetos reformistas, Goulart
fortalecia suas bases de sustentação política e consolidava a imagem de um líder
dedicado aos interesses do povo.
Para deslegitimar as pretensões reformistas de Goulart, Levy argumentava que,
sob pretexto das reformas, o presidente visaria, na verdade, abrir caminho para outras
67
alterações constitucionais como, por exemplo, no capítulo referente às inelegibilidades,
que proibia a reeleição presidencial. O objetivo do presidente seria permanecer no
poder, tal como seu “mestre” Getúlio Vargas, e, para isso, estabelecia alianças espúrias
com as esquerdas e os comunistas. Da tribuna da Câmara, Levy denunciava:
“Depois da primeira concessão virão outras: a expropriação urbana, a
expropriação das indústrias – como fizeram as nações que capitularam ao
comunismo internacional – e, finalmente, a pretexto da reforma
constitucional para a reforma agrária, o voto do analfabeto ou aquilo que
mais interessa, sobretudo, ao caudilho: a alteração do capítulo das
inelegibilidades”114
A postura de Levy quanto à reforma agrária ficou explícita na Convenção
Nacional da UDN, realizada em Curitiba em abril de 1963. Naquele momento, ele
deixou a presidência do partido e, em seu lugar, assumiu Bilac Pinto, outro integrante da
“Banda de Música”. As conclusões dessa convenção marcaram a vitória desse grupo
mais radical para fixar a posição do partido em relação ao governo Goulart e às
propostas de reformas. A nova palavra de ordem era “a Constituição é intocável”. Com
isso, o partido colocava-se contra qualquer emenda constitucional. Além disso, tomava
para si o discurso da defesa da legalidade, como haviam feito as esquerdas em 1961.
Após a convenção udenista, Levy participou de uma reunião, no Congresso
Nacional, com os membros da Ação Democrática Parlamentar, quando foi decidida uma
contraofensiva para recuperar, da esquerda, a iniciativa no parlamento115. Assim, em 30
de abril de 1963, ele apresentava seu projeto de reforma agrária, “contido dentro dos
princípios liberais e democráticos”116. O projeto afastava a ideia de desapropriação e
redistribuição de terras e, em seu lugar, propunha a colonização de terras de domínio
público, a concessão de mais crédito e assistência aos proprietários rurais.
114
O Estado de São Paulo, 30 maio 1963:3.
Souza, 2001:3106
116
Santos, 1999:10
115
68
Com essa proposta, Levy pretendia evitar que a UDN ficasse isolada da opinião
pública, naquele momento majoritariamente favorável a mudanças na estrutura
fundiária117. Entretanto, coerente com sua tradicional defesa dos proprietários de terras
de São Paulo, descartava mudanças radicais como as desapropriações de terras. Dessa
forma, procurava esvaziar o sentido redistributivo da proposta do governo. Em seus
pronunciamentos, aprovava as reformas de base, mas repudiava as pressões ao
Congresso e denunciava a “influência comunista no governo”.
Levy recomendava o veto às emendas constitucionais a fim de eliminar qualquer
possibilidade de negociação com as propostas do governo. A UDN transformava-se em
um bloco paralisador das decisões do Legislativo, agravava consideravelmente o
impasse entre o Legislativo e o Executivo, e desgastava o governo Goulart. Para autores
como Wanderley Guilherme dos Santos, a radicalização política do período teria
impedido que os partidos se engajassem em cooperação e compromisso, o que teria
levado a um processo de “paralisia decisória”, retirando do sistema político sua
capacidade de funcionamento118.
A radicalização nas ruas
O impasse no Legislativo levou as esquerdas lideradas por Brizola a assumir o
que Jorge Ferreira denominou de “estratégia do confronto”. Na visão desses grupos, as
reformas só sairiam se houvesse mobilização popular e pressão sobre o Congresso.
Assim, nesse início de 1963, surgiu a Frente de Mobilização Popular (FMP), uma
organização extraparlamentar de caráter reformista e nacionalista. Nela estavam
representados os principais grupos de esquerda: sindicalistas com o CGT, estudantes da
UNE, associações de sargentos, marinheiros e fuzileiros navais; setores das Ligas
117
Pesquisas realizadas em março de 1964 mostravam que 72% dos eleitores das principais capitais do
país consideravam necessária a reforma agrária. Ver Lavareda, 1991:156 e Grynspan, 2006:62.
118
Santos, 1986.
69
Camponesas, grupos revolucionários como a AP e o POR-T, militantes dissidentes do
PCB, o grupo compacto do PTB, os “nacional-revolucionários”, e a Frente Parlamentar
Nacionalista (FPN); além dos seguidores de Miguel Arraes, governador de
Pernambuco119.
A estratégia da FMP era pressionar o Congresso Nacional por meio de
movimentos de rua como passeatas, comícios, manifestações e greves operárias. Os
líderes da FMP exigiam que o presidente Goulart pusesse fim ao que denominavam de
“política de conciliação”, termo mais pejorativo entre as esquerdas naquele período.
Exigiam a ruptura com o PSD, a nacionalização de empresas estrangeiras e a
implementação imediata das reformas de base, com aprovação ou não do congresso. O
seu lema era: “reformas de base na lei ou na marra”. Portanto, ao contrário do ocorrido
em 1961, as esquerdas lideradas por Brizola estavam dispostas a romper com a
legalidade constitucional120.
Para Daniel Reis, essa nova estratégia relacionava-se com a forma como esses
grupos interpretaram os acontecimentos de 1961. Empolgada com a vitória sobre o
golpe de 1961, as esquerdas superestimaram as suas possibilidades concretas e sua força
política. Não avaliaram que a anulação do golpe fora condicionada pela improvisação
de seu desencadeamento, pela indecisão e pelas divisões que se operaram no seio
daqueles que queriam impedir a posse de Jango. Da mesma forma, perderam de vista
que a posse de Goulart foi garantida por um argumento essencial na conjuntura – a
defesa da lei e da ordem constitucional – e não de um programa propositivo e ofensivo
de reivindicações populares121.
119
Sobre a Frente de Mobilização Popular e suas estratégias, ver Ferreira, 2004.
Idem, Ibidem.
121
Reis, 2001: 327-328
120
70
A radicalização do cenário político reforçou, no grupo de Levy, a necessidade de
atuar com as mesmas estratégias escolhidas pelo adversário. Assim, se a esquerda
radicalizava, os setores do empresariado e políticos udenistas também decidiram partir
para o confronto. Nesse sentido, Levy integrou a linha de frente da oposição radical a
João Goulart e estreitou seus contatos com o grupo de políticos, empresários e militares
que, por meio do Ipes, planejava uma ofensiva contra o governo. Entre as estratégias
desse grupo estava a preparação de contramobilizações para competir com as esquerdas
pelo espaço das ruas e pelo apoio das classes populares.
De maio a julho, Levy visitou 230 cidades e participou de manifestações
públicas organizadas pelo Ipes para arregimentar a opinião pública contra o governo.
Dentre essas manifestações destacou-se a chamada Convenção do Pacaembu, realizada
em São Paulo, em junho de 1963122. Nesse comício, foi enfatizada a presença de líderes
do MSD, como Antonio Pereira Magaldi e Hary Normantom, presidente do Sindicato
dos Ferroviários. O objetivo era dar uma cara popular ao comício e legitimar as ações
que estavam sendo planejadas contra o governo, que serão discutidas no próximo
tópico.
As articulações golpistas
Com a vitória do presidencialismo, a opção por uma aliança com os setores
militares para derrubar João Goulart foi colocada por elementos do grupo de Levy. Era
vista como a forma de barrar o crescimento das esquerdas e de João Goulart, bem como
o processo de politização à esquerda das classes populares, já que o principal recurso
institucional para frear as ações do governo, o parlamentarismo, havia sido sepultado.
Segundo Hélio Silva, com esse objetivo foi realizada uma reunião na casa de Júlio de
122
Dreifuss, 1987
71
Mesquita Filho, após o comício do Pacaembu. A tarefa dada a Levy seria a articulação
com os militares do II Exército123.
Ele deveria convencê-los de que a ruptura
institucional seria um ato legítimo. O argumento utilizado era a necessidade de defesa
do regime democrático contra as “intenções golpistas” do presidente e a mobilização
das esquerdas. Segundo Levy, seria um “contragolpe preventivo”124. Para Júlio de
Mesquita Filho, a intervenção das Forças Armadas deveria ser feita de maneira drástica,
com o afastamento dos elementos nocivos, mas efêmera, para restabelecer o poder civil
em um curto período125.
Levy tinha trânsito fácil entre os setores militares antigetulitas e anticomunistas.
Essas relações tinham sido construídas desde os anos de 1950, quando a volta de
Getúlio Vargas ao poder e a nomeação de Goulart para o Ministério do Trabalho, levou
a “Banda de Música” udenista a promover articulações com os militares, especialmente
com aqueles vinculados à Cruzada Democrática126. No início dos anos de 1960, Levy
reforçaria essas relações por meio do Ipes.
Aqui pode-se resgatar a análise de Dreifuss sobre a atuação do Ipes. O autor
mostra como empresariado brasileiro aí reunido agiu de forma organizada e teve papel
decisivo na articulação do golpe em 1964. Segundo o Dreifuss, os membros do Ipes
estiveram no centro dos acontecimentos como homens de ligação e como organizadores
do movimento civil-militar, ao dar apoio material e preparar o clima para a intervenção
123
Silva, 1975:249-252.
Levy, 1990.
125
Ver Ferreira, M., 2001: 3791.
126
A Cruzada Democrática foi um movimento organizado em março de 1952 com o objetivo de concorrer
às eleições para a presidência do Clube Militar. Era constituído por oficiais da ala conservadora das
Forças Armadas, que tinham no anticomunismo sua principal bandeira. Dirigiu o Clube entre 1952 a
1956, retomando ao poder em 1962.
124
72
militar, como revela a própria atuação de Levy. Dessa forma, o que ocorreu em 1964
não teria sido um golpe apenas militar, mas um movimento civil-militar127.
No início de 1963, os setores golpistas ainda eram minoritários e fragmentados,
diferente do que defende Dreifuss. A conspiração contra Goulart não era unificada, mas
múltipla e descentralizada. Existiam diferentes grupos, enunciando diferentes
propostas128. Além disso, até o final de 1963, os setores golpistas não tinham bases
políticas, sociais e militares. No Congresso, o PSD, partido majoritário, considerado o
fiador do sistema político, apesar das relações cada vez mais desgastadas com Goulart,
mantinha a defesa da legalidade. Da mesma forma se posicionava a maioria da
oficialidade das Forças Armadas. Na sociedade civil, segmentos importantes do
empresariado, da classe média e da imprensa apoiavam a legalidade. Isso, sem falar dos
movimentos populares, especialmente o sindical, que davam expressivo apoio ao
governo.
Essa situação mudou entre setembro e outubro de 1963: a crise política assumiu
nova dimensão e, paulatinamente, foi tornando o golpe a opção mais viável para afastar
Goulart do poder. A meu ver, dois eventos concorreram para isso: a revolta dos
sargentos, em setembro; e o pedido de decretação do estado de sítio feito por Goulart ao
Congresso, em outubro.
No dia 11 de setembro de 1963, sargentos tomaram Brasília e convocaram
diversas unidades militares do país a aderir. O movimento foi uma reação à decisão da
Justiça Eleitoral de negar os mandatos de alguns suboficiais eleitos no pleito de 1962. A
insurreição armada tomou de assalto pontos vitais da capital da República, como o
Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. O levante recebeu forte apoio do
127
128
Dreifuss, 1981: 483
Mendes, 2003.
73
movimento sindical liderado pelo CGT e representou um dos pontos altos da estratégia
de mobilização direta das esquerdas.
Para o grupo de Levy, o movimento foi interpretado como sintoma do
crescimento das ideias revolucionárias no Brasil. Goulart foi responsabilizado pelos
acontecimentos, e acusado de tolerar a infiltração comunista nas Forças Armadas. Ao
mesmo tempo, o grupo procurou tirar vantagens do episódio, já que a cúpula militar, e
principalmente, setores militares que até então se mantinham legalistas, viram no
episódio uma quebra de hierarquia intolerável.
Em outubro, mais um incidente se somou para aumentar o clima de tensão
política no país. O jornal Tribuna da Imprensa publicou a entrevista concedida por
Carlos Lacerda ao jornal Los Angeles Times, em que denunciava a infiltração comunista
nos sindicatos e no governo, acusava Goulart de “caudilho autoritário” e pedia a
intervenção norte-americana no Brasil129.
A entrevista de Lacerda teve repercussão imediata entre os ministros militares,
que pressionaram Goulart a pedir ao Congresso a decretação do estado de sítio. Para
Goulart, essa medida representaria a possibilidade de frear as conspirações que ocorriam
contra o seu governo. Para os militares, seria a forma de controlar a hierarquia militar e
a agitação social. Assim, no dia 4 de outubro de 1963, o presidente da República enviou
o pedido de estado de sítio ao Congresso Nacional. A comoção política foi enorme, e a
oposição conseguiu reunir quase a unanimidade das forças políticas. Da esquerda à
direita, cada lado se viu como alvo do estado de sítio. Vendo-se isolado, o governo não
teve outra alternativa senão retirar o pedido.
129
Ver Motta, M., 2001:219-220
74
O episódio reforçou a ideia de que Goulart planejava implantar uma ditadura no
país. Essa ideia, conforme discutido, decorria, em parte, do vínculo político e ideológico
do presidente com o getulismo. Por ser herdeiro político de Vargas, o grupo de Levy via
Goulart como um líder com vocação ditatorial, um político capaz de se apoiar nas
massas para viabilizar um regime autoritário, uma espécie de República Sindicalista ao
molde peronista. Esse perigo seria reforçado pelas alianças de Goulart com as esquerdas
e com sindicalistas.
A partir do pedido do estado de sítio, Goulart foi perdendo a bandeira da
legalidade para a oposição. As conspirações golpistas, que existiam desde a sua posse,
deixaram de ser confabulações de grupos minoritários. Surgiram, ainda, apelos, vindos
dos campos de “centristas” e de “direita”, para a formação de frentes anti-Goulart.
As articulações de Levy com os militares seriam reforçadas e, a partir de janeiro
de 1964, ganhariam nova dimensão com a denúncia, feita por Bilac Pinto, do perigo de
uma “guerra revolucionária”. O presidente da UDN acusava Goulart de ter se tornado
instrumento dos comunistas ao entregar postos-chave do governo, tolerar infiltrações
nos sindicatos e estimular a espiral grevista. Anunciava, também, que a “guerra
revolucionária” alcançava a terceira fase: a da subversão da ordem e a obtenção de
armas, antevéspera do assalto ao poder pelos comunistas. O objetivo de Bilac Pinto era
estreitar os contatos entre a cúpula da UDN e os militares, de quem recolheu a
teorização da “guerra revolucionária”. Ao adotar um linguajar caro aos militares, o
grupo de Levy na UDN prestigiava os meios castrenses e conquistava a sua
confiança130.
130
Sobre a “guerra revolucionária”, ver Motta, R., 2002:260-261.
75
No início de 1964, o quadro era propício para a formação de uma frente antiGoulart, que reuniu elites empresariais, militares, políticos e as classes médias. O sinal
foi dado com a guinada de Goulart à esquerda, após as tentativas fracassadas de
reconstruir sua base política formada pela aliança entre PSD e PTB e afastar as
esquerdas mais radicais. Como mostra Jorge Ferreira, o malogro da estratégia de
conciliação entre as diversas forças políticas se deu não pela incapacidade do presidente
de negociar, atividade que ele dominava com maestria, mas da recusa entre as partes a
pactuar acordos. Da esquerda à direita, a estratégia escolhida foi a do confronto. Nesse
sentido, Goulart avançou em direção a organizações que, ao longo do tempo,
sustentaram sua trajetória política: os trabalhadores das cidades e do campo, estudantes,
as esquerdas e seus partidos, a exemplo do PTB e do PCB. Naquela conjuntura, apenas
nesses grupos ele poderia conseguir apoio político131.
Essa guinada à esquerda seria demonstrada com comícios nas principais cidades
do país. O objetivo era mobilizar a população e pressionar o Congresso Nacional a
aprovar as reformas de base. Esses eventos selariam o comprometimento público do
governo com a coalizão de esquerda pelo programa máximo das reformas de base. O
primeiro comício foi no dia 13 de março, no Rio de Janeiro, na Central do Brasil,
organizado pelo movimento sindical liderado pelo CGT e por grupos de esquerda.
Durante o comício, Goulart assinou dois decretos: um, nacionalizando refinarias
de petróleo particulares, como era o caso da refinaria de Capuava; o segundo, elaborado
pela Superintendência de Reforma Agrária (Supra), declarava sujeitas à desapropriação
as propriedades que ultrapassassem 100 hectares, localizadas em uma faixa de 10 km à
margem de ferrovias e rodovias federais, e as terras de 30 hectares situadas nas zonas
que constituíam bacias de irrigação dos açudes públicos federais. Além disso, anunciou
131
Ferreira, 2003:375-376
76
o encaminhamento ao Congresso da proposta que dava direito de voto aos analfabetos e
praças, bem como a reforma urbana, que pretendia o tabelamento dos preços dos
alugueis de imóveis residenciais.
O grupo de Levy estabeleceu a relação entre o comício, o comunismo e as
intenções golpistas de João Goulart. O perigo residia na crescente mobilização das
classes populares, e na jogada ambígua de Jango e dos comunistas. Goulart pretendia
usar o apoio dos comunistas em beneficio de um projeto continuísta e depois livrar-se
deles. Os comunistas, por seu lado, desejariam o mesmo, ou seja, utilizar-se de Goulart
para chegar ao poder e derrubá-lo na primeira oportunidade132.
Nesse sentido, considero importante a interpretação de Motta ao criticar autores
que classificam o anticomunismo como simples “fachada” ou estratégia para legitimar o
golpe de Estado. A meu ver, o temor de Levy era efetivo, daí sua pregação
anticomunista desde os anos de 1950. A ideia do perigo comunista ganhava
verossimilhança à medida que Goulart se acercava da esquerda e dava sinais de entrar
em choque com o Congresso Nacional. O apoio dos movimentos populares,
especialmente sindical, à estratégia de ação direta das esquerdas – na campanha pelo
plebiscito ou pelas reformas de base, ou ainda na realização do comício da Central –
produzia a sensação de um perigo comunista iminente133.
O medo ao comunismo teria sido, pois, o cimento da mobilização anti-Goulart, o
elemento que propiciou a unificação de setores heterogêneos em uma frente favorável
ao golpe. Alguns setores sociais, que até então se mantinham favoráveis às reformas,
mudaram de posição, alinhando-se à bandeira do anticomunismo. O objetivo principal
era combater a ameaça revolucionária. Parcelas mais conservadoras e radicais da frente
132
133
Motta, R.,2002:273-277
Idem, Ibidem.
77
anticomunista desejavam o autoritarismo simplesmente, enquanto alguns setores
recusavam qualquer alteração na ordem social e econômica. Outros tinham como
principal preocupação a vocação ditatorial do presidente Goulart, considerado a
expressão do caudilhismo redivivo. A única posição unânime era a recusa à
comunização134.
O comício da Central se tornaria a senha para a união de todos os conspiradores
civis e militares que, sob a bandeira da defesa das instituições democráticas, iniciaram
os preparativos para a derrubada de Goulart. Como afirma Jorge Ferreira, após o
comício, a questão crucial passou a ser a tomada do poder político. A questão
democrática não estava na agenda da direita nem da esquerda. Ambos os grupos
subscreviam a noção de governo democrático apenas ao que servisse às suas
conveniências135.
Enquanto Goulart e as esquerdas ganhavam as ruas, os setores de oposição
passaram a agir com a mesma estratégia. O desdobramento mais importante da reação
ao comício ocorreu em 19 de março, em São Paulo, com a realização da Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, da qual Levy foi um dos participantes de destaque. O
objetivo era fazer frente às mobilizações esquerdistas, estratégia que o grupo de Levy
usava desde 1961, e criar um clima propício para uma intervenção militar e a deposição
do presidente da República. Conforme afirmava Castelo Branco, então chefe do Estado
Maior do Exército, considerado o coordenador da conspiração, as Forças Armadas só
agiriam se fossem estimuladas pela opinião pública. As lições de 1961 não haviam sido
esquecidas.
134
135
Idem, Ibidem.
Ferreira, 2004: 209
78
A marcha reuniu, sobretudo, as elites empresariais, políticos, religiosos e as
classes médias paulistas. Contudo, as classes populares, embora em menor número,
também estiveram presentes, principalmente operários filiados ao “sindicalismo
democrático”, como o MSD. Foi grande o esforço de Levy nesse sentido, como
demonstraram os apelos por meio do jornal Notícias Populares, assunto do último
capítulo, para dar legitimidade popular ao evento.
A fagulha para o golpe veio no final de março, com a revolta dos marinheiros,
que convenceu a oficialidade militar da existência de um processo revolucionário em
curso. Forneceu argumentos de que os comunistas incentivavam a indisciplina e a
quebra da hierarquia das Forças Armadas para acelerar a tomada do poder. Esses
argumentos seriam reforçados em 30 de março, quando Goulart participou de uma
comemoração organizada por uma associação de sargentos, na sede do Automóvel
Clube, no Rio de Janeiro.
Segundo Luis Otávio de Souza, em entrevista ao jornal O Globo em janeiro de
1977, Levy esclareceu sua participação às vésperas do golpe contra Goulart, em 31 de
março de 1964. Declarou que, como integrante de um grupo de conspiradores paulistas,
fora encarregado de transmitir a José Maria Alckmin, Secretário do Interior de Minas
Gerais, todas as informações sobre a situação militar em São Paulo. Acrescentou que os
conspiradores paulistas conheciam a opinião do general Humberto de Alencar Castelo
Branco de que o movimento não deveria ser iniciado em São Paulo, para evitar que
fosse considerado separatista, a exemplo da Revolução de 1932 136. Ainda que esse
protagonismo possa ser reputado como uma intenção de supervalorizar a sua atuação, o
depoimento de Levy, ao ser confrontado com a sua trajetória política, corrobora o seu
alinhamento e sua participação na derrubada do governo Goulart.
136
Souza, 2001:3107.
79
Após o golpe, Levy apoiou todas as medidas formalizadas pelo Ato Institucional
Número 1 (AI1), tais como: intervenções nos sindicatos à esquerda; dissolução das
organizações populares, como o CGT, a UNE e as Ligas Camponesas; cassações e
suspensões dos direitos políticos; prisões e instalação de Inquéritos Policiais Militares
(IPMs), etc. Contrariado com as hesitações do presidente-general Castelo Branco quanto
às cassações, Levy não admitia que “o sentido generoso da Revolução deite a perdê-la
em seus objetivos essenciais”137. Como discutido, o golpe era justificado pela ideia da
ilegitimidade de um governo apoiado pelas esquerdas e, sobretudo, pela conquista
política das classes populares por esses grupos. Nesse sentido, tratava-se de restabelecer
a ordem social baseada no governo de “elites competentes”, como se autodenominavam.
Ao avaliar as posições assumidas por Levy na luta política do início dos anos de
1960, bem como sua participação no golpe que derrubou João Goulart, considero que
foram resultado de uma combinação de fatores: a ideia de uma ameaça comunista; o
perigo do caudilhismo redivivo em João Goulart e, acima de tudo, a emergência
popular.
Como discutido ao longo do capítulo, o antigetulismo foi um dos principais
aspectos da luta de Levy, desde os anos de 1930. Nesse sentido, a posse de Goulart na
Presidência da República foi interpretada como o perigo do caudilhismo redivivo.
Goulart era acusado de pretender governar de forma autoritária tal como seu mestre
político Getúlio Vargas. Entretanto, esse perigo tornava-se maior devido à aliança de
Goulart com as esquerdas, que poderia abrir caminho para um processo revolucionário
no Brasil.
137
Benevides, 1981: 128
80
A ideia de uma ameaça comunista, que constituía a bandeira ideológica de Levy
desde o final dos anos de 1950, foi exacerbada pela união das esquerdas de diferentes
matizes que pressionavam o presidente da República a adotar um programa máximo de
reformas. Tal como proposta pelas esquerdas, essas reformas, na visão de Levy,
levariam a um processo de subversão social, com o fim da propriedade privada
considerada mola-mestra do regime liberal-democrático.
Mas, acima de tudo, o grande perigo estava na forte participação política popular
que marcou o governo Goulart, já que as estratégias do presidente e das esquerdas só
teriam sucesso se fossem respaldadas pela ação dos movimentos populares. Por isso o
empenho de Levy em conquistar e subtrair as classes populares da influência do
governo Goulart e das esquerdas. A disputa pelo apoio dessas classes apareceu tanto na
sua atuação junto ao movimento sindical quanto na própria criação de um jornal de
perfil popular como o Notícias Populares, assunto dos próximos capítulos.
81
CAPÍTULO 2:- A criação e a visão de povo do jornal Notícias Populares (19631964)
Este capítulo recupera o processo de criação e montagem do jornal Notícias
Populares, articulando-o à concepção de povo e de jornal popular que orientou seus
criadores. O objetivo é trazer elementos que ajudem na compreensão do significado que
Herbert Levy imprimiu à fundação desse jornal no âmbito da luta política da primeira
metade dos anos de 1960. Para isso, proponho uma caracterização geral do Notícias
Populares, o que implica analisar, entre outros, os motivos e as intenções de sua
criação; os nomes envolvidos no empreendimento, com destaque especial a Jean Mellé;
a tiragem; a forma como o jornal chegava às mãos dos leitores; o projeto gráfico; a
forma de apresentação e distribuição dos conteúdos; a linguagem utilizada; e,
finalmente, o tipo de relação que mantinha com o mercado jornalístico. Esses aspectos
são importantes, pois contribuem para a compreensão da linha editorial do Notícias
Populares ao explicitar o projeto político que orientou seus propugnadores e o lugar das
classes populares nesse projeto.
Levo em conta o papel que o jornal Última Hora/São Paulo desempenhou na
criação do Notícias Populares em 1963. O jornal de Samuel Wainer foi a referência
principal de competição estabelecida no campo político, cujo parâmetro foi o
reconhecimento da classe trabalhadora como ator político e a conquista de sua adesão a
um determinado projeto.
Em busca do povo: Notícias Populares x Última Hora
A ideia da criação do jornal Notícias Populares partiu do jornalista romeno,
exilado no Brasil, Ittik Mellé, conhecido como Jean Mellé. Na Romênia, Mellé, bem
relacionado no meio da então monarquia romena, foi proprietário de um dos jornais
82
mais populares do país chamado Momentul. Quando, em 1947, o exército soviético
transformou a Romênia em uma república comunista, Mellé fez oposição ao novo
regime e foi preso após publicar a manchete “Russos roubam o pão do povo”138. Depois
de dez anos nos campos de concentração da Sibéria, foi libertado em 1958. No ano
seguinte, buscou exílio no Brasil, onde morava seu irmão.
Não se sabe se Mellé veio ao Brasil apenas para escapar temporariamente de
possíveis perseguições ou se já tinha planos de mudar-se definitivamente para o país. O
fato é que daqui nunca mais saiu. Estabelecido em São Paulo, reencontrou, ao acaso,
durante um passeio pela Avenida São Luiz, seu conterrâneo Joseph Halfin, que havia
trabalhado na seção esportiva do Momentul. Halfin era repórter da edição paulista do
jornal Última Hora, e apresentou Mellé a Samuel Wainer. Desse encontro o romeno
saiu como colunista internacional do Última Hora139.
No entanto, no final do ano de 1962, assustado com o “perigo comunista” que
acreditava assolar o Brasil, Mellé deixou a redação do Última Hora, que, na sua visão,
caminhava cada vez mais à esquerda, para dedicar-se à elaboração de um jornal popular
anticomunista, nos moldes do antigo Momentul, sonho que nunca tinha abandonado140.
A volta do regime presidencialista, em janeiro de 1963, facilitou a realização
desse sonho. Foi quando Mellé procurou Herbert Levy, então presidente nacional da
UDN, e um dos líderes da oposição do empresariado paulista ao governo Goulart.
Avisou que o assunto era de “segurança nacional” e expôs seu projeto de criação de um
jornal popular, cujo objetivo seria roubar o público do Última Hora para impedir que o
seu discurso chegasse às classes populares. No encontro com Levy, Mellé alertou que
138
Sobre a trajetória de Jean Mellé, ver Campos Jr. et al., 2002: 34-40.
Idem, Ibidem.
140
Idem, Ibidem.
139
83
Última Hora, periódico identificado com as posições do PTB, exercia um papel
perigoso no jogo político da época, pois, em meio a suas notícias, que considerava
“sensacionalistas”, difundia mensagens da esquerda ao promover a politização das
classes populares e o apoio ao governo de João Goulart.
Lançado por Samuel Wainer, em 1951, no Rio de Janeiro, Última Hora, embora
fosse voltado para um público policlassista, dedicou-se, conforme mostra Carla
Siqueira, especialmente às classes populares141. O objetivo do jornal era ser porta-voz
da política getulista, especialmente do trabalhismo e do nacionalismo, reforçando os
laços entre Vargas e as classes trabalhadoras. Para atingi-lo, Wainer utilizou as técnicas
de sedução do público com a exploração de temas sensacionalistas, os quais, no entanto,
ficaram limitados a determinados espaços do jornal – na capa, na contracapa e nas
editorias de polícia, esportes e cidades. Campanhas nacionalistas e temas de
reivindicação social eram articulados a temas considerados do gosto popular como
“sexo, crime e esportes”. Última Hora assumiu, também, uma “postura de intermediário
entre o povo e o governo, prestando serviços efetivos e importantes como nas queixas
dos leitores e aconselhamento em relação às questões trabalhistas”142.
Como mostra Goldenstein, as técnicas da indústria cultural143, voltadas para um
público policlassista, foram adaptadas aos objetivos políticos do jornal que passou a
apresentar um conteúdo diverso capaz de atender aos diferentes tipos de interesses.
Notícias políticas e econômicas eram misturadas a colunas sociais, faits-divers144,
141
Siqueira, 2002.
Siqueira, 2002.
143
Segundo Goldenstein, a busca do lucro, através da tentativa de obtenção do maior público possível, é a
lógica da indústria cultural. Por isso a ênfase em temas seguros, como diversão, lazer, entretenimento, que
não ferem a suscetibilidade do público, e a falta de ênfase em temas políticos. Nesse sentido, segundo a
autora, o jornal Última Hora teve as técnicas da indústria cultural, mas não a lógica dela, pois o sentido
do jornal foi eminentemente político. Goldenstein, 1987.
144
Segundo Marialva Barbosa, Fait-divers “são notícias variadas de importância circunstancial,
constituindo-se elemento fundamental para promover o entretenimento no noticiário”. Barbosa, 2004:7.
142
84
esportes, polícia, colunas de crítica literária, de cinema, de artes plásticas, entre
outros145. Vale destacar que Última Hora também inovou ao adotar uma diagramação
moderna com paginação acessível, coberturas fotográficas, valorização de notícias
através de jogos de espaços e fotos, o que facilitava a leitura e fazia com que o jornal se
apresentasse de maneira “digestiva”, sem o ar da imprensa tradicional.146
Ainda em 1951, Vargas sugeriu a Samuel Wainer a criação de uma sucursal em
São Paulo, onde o PTB não conseguia capitalizar inteiramente a popularidade de Vargas
entre os trabalhadores, sendo um partido fraco eleitoralmente e tendo que disputar com
outras correntes o movimento sindical147. A edição paulista de Última Hora deveria ser
um instrumento para a afirmação da relação de Vargas e do PTB com as classes
trabalhadoras no principal centro industrial do país.
Para a fundação do Última Hora em São Paulo, Vargas sugeriu que Wainer
procurasse o industrial Francisco Matarazzo Jr., maior empresário de São Paulo à época,
para buscar financiamento. O apoio de Matarazzo a um jornal popular se explicaria, em
parte, pelo desejo do empresário de contar com uma publicação que se opusesse aos
Diários Associados, de Assis Chateaubriand, seu inimigo político. Outro motivo seria a
mudança de atitude de setores industriais paulistas, desde o início dos anos de 1930, em
relação à questão social. Como mostra o trabalho de Weinstein 148, não se tratava mais
de impedir que o Estado interviesse nas relações de trabalho ou de se opor a qualquer
tentativa de legislação trabalhista, mas sim de modificar, circunscrever e conformar essa
intervenção, o mais possível, aos interesses dos industriais. As lideranças industriais
paulistas passaram a pregar que, para a obtenção da paz social, ou seja, a redução dos
145
Goldenstein, 1987.
Ver Abreu ,2002 e Capelato, 1996
147
Benevides, 1989.
148
Weinstein, 2000.
146
85
conflitos entre capital e trabalho, deveriam ser feitas algumas concessões aos
trabalhadores. Foi nesse sentido que Matarazzo concordou em prover fundos para a
criação de um jornal popular, mas, antes, questionou a postura que ele adotaria em
relação às greves, que não eram admitidas pelas lideranças industriais. Wainer ponderou
que “um jornal popular não poderia opor-se a movimentos do gênero”, mas ressaltou
que “Última Hora só apoiaria greves até a porta da fábrica, condenando qualquer
violação dessa fronteira”149.
Assim, em março de 1952, surgiu o Última Hora de São Paulo, que passou a
contar com duas edições diárias, uma matutina e outra vespertina. Em pouco tempo, o
novo jornal tornou-se o periódico mais vendido em São Paulo, superando O Estado de
S. Paulo e Folha de S. Paulo, tradicionalmente os veículos mais importantes desse
estado150.
No entanto, o discurso político de Última Hora, no que buscava o apoio popular
a Getúlio Vargas, somado ao sucesso comercial do jornal junto a esses leitores,
despertou a oposição de setores liberais udenistas. Nesse sentido, não foi por acaso que
a Comissão Parlamentar de Inquérito contra Última Hora, promovida pela oposição
liberal em 1953, e da qual Herbert Levy participou como deputado federal, coincidiu
com os ataques udenistas à política trabalhista de Vargas, especialmente durante o
período em que João Goulart ocupou a pasta do Trabalho. As próprias lideranças
industriais paulistas que, através da Fiesp, haviam apoiado Vargas, no início do seu
governo, passaram a expressar crescente apreensão diante das “excessivas” concessões
do Estado ao operariado e do aumento da influência comunista no movimento sindical.
149
Wainer, 1988:160.
Essa informação está em Goldenstein, 1987; Campos Jr, et al, 2002; Wainer, 1988. Não disponho de
dados sobre a circulação dos jornais nesse período com os quais cotejar essas informações.
150
86
A campanha contra Última Hora foi baseada nos argumentos de dumping,
concorrência desleal e favoritismo oficial através do Banco do Brasil, no tocante à
concessão de créditos ao jornal. Wainer também foi acusado, por Carlos Lacerda, de
não ser brasileiro. Essa era uma estratégia para impedi-lo de permanecer à frente do
jornal, já que a lei brasileira não permitia que estrangeiros fossem proprietários de
empresas jornalísticas.
O relacionamento de Goulart, herdeiro político de Vargas, com as classes
trabalhadoras, que o jornal Última Hora ajudou a construir, teria sido, a meu ver, o
principal motivo para o apoio que Herbert Levy deu à sugestão de Mellé para fundar o
jornal Notícias Populares. Como discutido no capítulo anterior, as classes populares
eram vistas, pelo grupo de Levy, como o principal apoio político das ações do governo
Goulart.
Dessa forma, a percepção do perigo que Última Hora representava foi acentuada
no início da década de 1960, quando a polarização política e ideológica do período
influenciou a própria linha editorial do jornal. Última Hora passou a defender e a
acompanhar a radicalização das teses das esquerdas, especialmente do PTB, e se
incorporou ao esquema de sustentação do governo Goulart. Segundo Wainer, o jornal
nunca foi comunista, mas “houve momentos em que Última Hora pareceu favorável à
execução de reformas perigosamente ousadas, ou até mesmo à consumação de um golpe
de esquerda”151.
Em outubro de 1963, após o episódio da tentativa fracassada de aprovação do
estado de sítio, Última Hora conclamou o governo a não perder suas bases de apoio
entre as classes populares, e nem protelar as reformas de base, o que implicava,
151
Wainer, 1988: 249.
87
necessariamente, propor alterações na Constituição. Última Hora atribuía, ainda, as
denúncias de “comunização do Brasil” a setores retrógrados, compostos por “udenistas
aliados ao capital estrangeiro”, que se opunham à implementação de reformas no país e
articulavam um golpe contra o governo. Títulos como “Povo unido conquistará
reformas”152; “Goulart inicia a ofensiva das reformas”153 ou “Constituição está
superada”154 eram recorrentes no jornal. Em 25 de outubro de 1963, Última Hora
publicava:
“[...] todos falam na intransigente defesa da legalidade, mas, no fundo, estão
defendendo a sobrevivência da arcaica e superada estrutura política e
econômica. [...] Estacionar apenas na palavra legalidade seria afastar as
manifestações da consciência nacional que deseja ser beneficiada por uma
grande mudança social.[...] Afinal, o que entendem como legalidade? É legal
defender a miséria, a exploração do povo brasileiro?[...] Com essa legalidade
tão mal interpretada estão colaborando com a fraudes antigas, mas vigentes
em todos os governos; estão auxiliando a sustentação do status quo tão
rendoso para a reação; estão ajudando o impedimento de toda e qualquer
reforma econômica, política e social clamada pelo país, por defenderem uma
legalidade sem conhecimento do que ela realmente seja e deva ser,
colaboram para a permanência da velha estrutura que oferece maravilhosa
vitória à política econômica internacional [...]”155
É fácil entender por que Última Hora tornou-se um alvo importante a ser
combatido. Na visão de Levy, após o êxito do plebiscito e o retorno do
presidencialismo, no início de 1963, “[...] Última Hora, sob a direção de Samuel
Wainer, passou a ser um instrumento escancarado para ganhar terreno popular.”156
A polarização e a radicalização
Como discutido no capítulo 1, desde a crise de 1961, quando a tentativa de
oposição à posse do então vice-presidente João Goulart foi impedida pela resistência de
amplos setores da sociedade civil, com destaque para a mobilização das classes
152
Última Hora. 1 nov. 1963:2
Última Hora. 6 nov. 1963:2
154
Última Hora, 1 nov. 1963:2
155
Última Hora. 25 out. 1963:2
156
Levy, 1990.
153
88
populares, tornou-se claro que intervenções no processo político brasileiro, a partir
daquele momento, só poderiam ser realizadas se contassem com o apoio dessas classes.
Essa percepção foi acentuada após o retorno do presidencialismo, em 1963, quando os
grupos de esquerda começaram a apostar, cada vez mais, na mobilização das classes
populares, por meio de ações políticas extrainstitucionais como manifestações de rua,
comícios e greves políticas, a fim de pressionar o Congresso a aprovar as reformas de
base. Além disso, em um contexto democrático, em que a classe trabalhadora adquiria
peso eleitoral, a conquista de uma base popular tornava-se condição sine qua non para a
conquista ou preservação do poder, bem como para a implementação de projetos
políticos.
Em entrevista dada a Gisela Goldenstein, em 1974157, Luis Fernando Levy, filho
de Herbert Levy que ficou responsável pela administração do jornal Notícias Populares,
mostrou como o governo Goulart foi percebido pelo seu grupo, e de que modo seus
membros atuaram naquele período:
“[...] Quando Goulart assumiu, houve aquela degringolada e rapidamente
alguns grupos começaram a influir decisivamente junto a ele: [...] grupos
interessados em esquerdizar radicalmente a posição do governo brasileiro
[...] No início de 1963 [...] nós, dentro da linha que vínhamos seguindo,
resolvemos atuar em todos os campos no sentido de impedir que o caos
tomasse conta das coisas e que os grupos ligados tanto ao radicalismo de
esquerda quanto aos corruptos que se aproveitavam do poder – e que
estavam associados no processo de mudança da situação - alcançassem seus
objetivos.”158.
Conforme assinala Goldenstein, se no discurso de Luis Fernando Levy estão
presentes o elemento moral – “os corruptos que se aproveitam do poder” – e o político –
157
A entrevista foi dada a Goldenstein em 1974. Deve-se lembrar, neste ponto, que a memória segue uma
dinâmica própria, em que, como afirma Beatriz Sarlo, “é inevitável a marca do presente no ato de narrar o
passado” . Com isso não se quer negar a pertinência de a memória ser usada como fonte, pelo historiador,
para a reconstituição do passado, como, aliás, realizo nesta pesquisa. Mas isso deve ser feito mediante o
confronto do testemunho com outras evidências disponíveis, em um trabalho de tratamento crítico do
relato subjetivo. Ver Sarlo, 2007:49.
158
Goldenstein,1987:77- 79.
89
“a esquerda que conseguiu influência decisiva no governo Goulart” –, na prática, a ação
concreta visava mais a esquerda que a corrupção. Segundo a autora, “o alvo das ações
era o movimento sindical „dirigido‟, a reforma agrária, o movimento estudantil, na
medida em que significavam esquerdização. Foi aí que se concentrou o fogo”159.
Ao mesmo tempo, ao afirmar que “aprendemos a lição”, Luis Fernando Levy
mostra como, em um contexto de fortalecimento das esquerdas e ampliação da
participação política popular, os setores udenistas e do empresariado paulista
representados por Herbert Levy, em busca de eficácia política, reorientaram suas
estratégias de ação e passaram a atuar no mesmo campo do adversário, o que incluía a
adoção de táticas de mobilização popular, conforme discutido no capítulo anterior.
Nesse sentido, a proposta de Mellé de criar um jornal popular para fazer uma
contraofensiva à atuação de Última Hora foi ao encontro dos interesses de Herbert Levy
que, naquele momento, atuava de diferentes formas no combate ao governo de João
Goulart e à influência dos grupos de esquerda na mobilização dos trabalhadores.
Segundo Luis Fernando Levy:
“[...] A ideia de fazer Notícias Populares nasceu quando, neste trabalho de
contra-ofensiva, nós verificamos que um dos instrumentos de ação
perigosos, porque pegavam uma população desprevenida e desorientada no
sentido de formação de opinião, era o Última Hora, que, em São Paulo, tinha
cerca de uns duzentos mil jornais de tiragem e que, ao lado da alimentação,
vamos dizer, que davam para o povo – que era sexo, crime, sindicatos –
jogavam ideias, distorciam fatos, enfim dirigiam a opinião da população e
dos trabalhadores, através desse órgão de comunicação. Nós, em
contrapartida, não tínhamos o acesso, não só porque, na verdade, o sistema
de comunicação com o povo é sempre mais complicado e mais difícil, como
também porque nós não tínhamos aquilo que eles queriam „beber‟, que era
um jornal popular.[...]”160
159
160
Idem, Ibidem.
Goldenstein, 1987:79.
90
Assim, para Herbert Levy, o perigo de Última Hora estava tanto na eficácia da
forma da sua mensagem que, por meio da fórmula “sexo, crime, sindicato”, promovia a
politização das classes populares, quanto no despreparo atribuído aos seus leitores que,
como assinala Goldenstein, eram considerados “vitimas ignorantes e indefesas a
receber, inadvertidamente, junto com a alimentação que desejavam, ideias e fatos
distorcidos.”161 Perigo estava também no fato de os “jornais liberais e conservadores
fieis à democracia terem pouca penetração na área popular”162, deixando livre o
mercado de jornais populares paulista para a atuação de Última Hora. Levy, por
exemplo, era proprietário do jornal Gazeta Mercantil, voltado para assuntos financeiros
e para leitores da elite paulistana.
Além disso, diferente do Rio de Janeiro, em que jornais como A Luta
Democrática, de Tenório Cavalcanti, ou O Dia, de Chagas Freitas, disputavam o
mercado da imprensa popular com o jornal Última Hora, em São Paulo, esse mercado
era praticamente monopolizado pela Última Hora. O concorrente mais próximo era o
jornal Diário da Noite, publicação dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand,
que, no entanto, não estava a serviço de uma determinada postura política, mas agia ao
sabor das circunstâncias. Outros jornais que circulavam no mercado editorial da
imprensa popular em São Paulo eram O Esporte e A Gazeta Esportiva, ambos voltados
para a área de esportes. O Dia também circulava em São Paulo, mas sua vendagem era
irrisória, não podendo ser considerado um concorrente para o Última Hora163. Assim,
do acordo entre Levy e Jean Mellé, nasceu o jornal Notícias Populares.
A montagem do jornal
161
Goldenstein, 1987: 80.
Levy, 1990.
163
Sobre os jornais populares em São Paulo, ver Goldenstein, 1987: 95-135.
162
91
Em 19 de abril de 1963, foi criada a Editora Notícias Populares S.A., mas a
montagem da estrutura do novo jornal levou alguns meses e a primeira edição só saiu
em 15 de outubro daquele ano.
Levy tornou-se o proprietário e delegou a administração ao seu filho, Luis
Fernando Levy. Jean Mellé tornou-se o editor-chefe. A organização empresarial do
jornal, no início, foi precária e marcada pela improvisação, com a utilização de oficinas
e equipamentos do Gazeta Mercantil, provavelmente porque a vendagem interessava
mais na medida em que faria chegar a mensagem de Notícias Populares às classes
populares do que a lucratividade propriamente dita. Foi por isso que, após o golpe de
1964, Levy desinteressou-se pelo jornal e o vendeu para o grupo Folha da Manhã S.A.,
de Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, em outubro de 1965. Outro motivo
para o seu desinteresse, provavelmente, foi a frustração de sua candidatura às eleições a
governador de São Paulo, que deveriam ocorrer em 1966 e que foram suspensas pelo
regime militar. Levy era o nome da UDN para essas eleições, o que contribuía para o
seu interesse por Notícias Populares. Entretanto, o seu nome foi preterido pelos
militares em favor de Paulo Egídio Martins.
Os recursos financeiros para a criação de Notícias Populares vieram quase na
totalidade de Herbert Levy. Como esperado, o empreendimento foi deficitário, apesar da
boa vendagem164. Poucas empresas fizeram anúncios no jornal. No entanto, não
podemos deixar de notar o apoio inicial, em forma de contribuição financeira, de
empresários paulistas como José Ermírio de Moraes Filho (Grupo Votorantim) e João
Arruda (proprietário da tecelagem Santana), que indicava a necessidade que esse setor
sentiu de tirar as classes populares da influência dos grupos de esquerda. Por isso o seu
164
Goldenstein, 1987.
92
apoio à criação de um jornal popular que fizesse um “fogo de encontro” ao Última
Hora.
A divulgação do Notícias Populares foi feita à base de pichação de muros, lugar
de tradicional difusão de mensagem dos candidatos de esquerda. Para reforçar o apelo
popular, o jornal chegou às bancas ainda por um preço mais baixo do que o da
concorrência. Enquanto Última Hora custava 30 cruzeiros, Notícias Populares saía por
20. O horário de circulação também foi pensado estrategicamente: o jornal saia à noite,
mas com data do dia seguinte, para que, pela manhã, quando os trabalhadores seguissem
para o trabalho, já o encontrassem à venda, antes de Última Hora. Era também vendido
tanto nas bancas quanto por “jornaleiros ambulantes”. Segundo Goldenstein, “nas
bancas em que fosse possível, o jornal deveria ser mantido mesmo que não vendesse, de
modo a fazer o público leitor acostumar-se com sua presença”165. Outra estratégia foi
fazer a cobertura dos acontecimentos dos bairros populares paulistanos, colocando-os na
capa do jornal. Assim, em 19 de outubro de 1963, um dos títulos da primeira página era
“Vila Pompéia também tem vulcão”, para a notícia sobre a explosão de uma fábrica
nesse bairro. Em pouco tempo a tiragem começou a subir vertiginosamente. De 20 a 30
mil exemplares em novembro de 1963, passou para 70 a 90 mil em agosto de 1964.166
O público visado, segundo Goldenstein, era as classes populares urbanas em
geral, tanto o operariado quanto as camadas inferiores de assalariados não industriais e
trabalhadores autônomos167. Pesquisa realizada pelo Ibope, no período, mostrou que
Notícias Populares vendia essencialmente nas “zonas 3 e 4” da cidade de São Paulo,
que correspondiam, respectivamente, a “bairros de classe média e pobre” e “bairros
pobres”. Última Hora, embora vendesse também nas zonas 1 e 2, respectivamente,
165
Goldenstein, 1987:87.
Campos Jr., et al., 2002: 53- 66.
167
Ver Goldenstein, 1987: 35.
166
93
“bairros de classe rica” e “bairros de classe média e rica”, zonas que Notícias Populares
não atingia, vendia mais nas zonas 3 e 4168. Era nessas áreas que Notícias Populares
pretendia disputar o público com Última Hora.
Interessante observar o índice de identificação partidária pré-64, pois ele ajuda a
mapear o quadro político em que Levy se movimentava e entender algumas de suas
escolhas e estratégias políticas. Em São Paulo, o PTB tinha, nas classes A e B, uma taxa
de identificação de 10%; na classe C, 19%, e na classe D, 25%. Já a UDN tinha, nas
classes A e B, uma taxa de identificação de 14%, na classe C, 5% e na classe D, 7%. No
entanto, a taxa de eleitores, na classe C, que não se identificava com nenhum partido era
de 48%, enquanto na D, era de 42%.169 Esses dados revelam um grande contingente de
trabalhadores que estavam abertos para serem conquistados e disputados por diferentes
correntes políticas. Mais um motivo para o interesse de Levy pelo Notícias Populares.
A tarefa de montagem da equipe do jornal coube a Jean Mellé que, pagando
salários maiores, “roubou” uma grande parte dos jornalistas do Última Hora,
experientes na imprensa popular. É o caso de Narciso Kalili, secretário de redação, e
Ramão Gomes Portão, da editoria de polícia. Na equipe do jornal estavam: Cícero
Leonel (chefe de reportagem), Sílvio Sena (editor-chefe), Carlos Tavares, Sérgio
Pompeu e Mauro Santayana (redatores); Dalmo Pessoa, Vital Battaglia, Rui Falcão,
Adriano Neiva, Tão Gomes Pinto e Celso Brandão (esporte); Percival de Souza e José
Carlos Bittencourt (geral); Fábio Mendes (correspondente de Brasília); Radu Henry,
filho de Mellé (correspondente em Paris)170.
Entre os colunistas havia gente de renome, como Nelson Rodrigues, com a
coluna diária “A vida como ela é”, e Claudio Marques, que se tornaria conhecido por
168
A pesquisa do IPOPE está reproduzida em Goldenstein, 1987.
Lavareda, 1991: 137.
170
As informações sobre a equipe do jornal estão em Campos Jr, et al., 2002.
169
94
delatar jornalistas durante o regime militar, entre eles Wladimir Herzog. O próprio
Mellé tinha uma das mais importantes colunas diárias no jornal, a “Jean Mellé
Informa”, sobre política nacional e internacional, cujo eixo era o forte conteúdo
anticomunista.
Outro colunista importante foi o jovem jornalista Waldo Claro que, no período,
era presidente da Aliança Democrática Brasileira (ADB). A ADB era uma organização
de direita, formada por jovens estudantes de classes média e alta. Seu programa de ação
visava combater a “comunização” nos meios estudantis, as reformas propostas por
Brizola e Goulart, a legalização do PCB, a UNE e a UBES, a encampação das refinarias
particulares, o preenchimento de postos-chave da administração com elementos
considerados comunistas, a influência de líderes sindicais nos assuntos do país. Por
meio de sua coluna diária “Waldo Claro denuncia”, situada, estrategicamente, na página
sindical, Waldo Claro alertava sobre a “infiltração comunista” no Brasil.
Na equipe do jornal havia também muitos simpatizantes do governo Goulart, em
geral, jornalistas saídos do Última Hora. Segundo Mauro Santayana, eles até tentavam
“sabotar as notícias anti-Goulart”171, ao procurar diminuir o teor das críticas ao
presidente da República. No entanto, a posição do dono, Herbert Levy, e do editorchefe, Jean Mellé, determinava a última palavra.
A linha editorial do Notícias Populares
Segundo Gisela Goldenstein, a intenção de Notícias Populares de “roubar” o
público de Última Hora, motivo principal da sua criação, não era buscar o apoio dos
trabalhadores para as mobilizações contra João Goulart, mas sim a sua despolitização.
Apoio, o grupo de Levy buscaria nas classes médias. Teria sido para elas que dirigiu a
171
Campos Jr. et al., 2002: 63.
95
campanha da imprensa, buscando formar uma opinião pública mobilizada contra o
governo Goulart. Sobre as classes populares, diz Goldenstein, apesar de temê-las mais
do que nunca, continuava a negar-lhes cidadania política. Por isso o projeto de criação
de Notícias Populares definia que o noticiário político deveria ser mínimo. Além disso,
seus criadores acreditavam que, se as classes populares liam Última Hora, o faziam não
pelo seu conteúdo político, mas pelo entretenimento e pelas notícias sensacionalistas
desse jornal. Dessa forma, em seu projeto inicial, Notícias Populares deveria se
assemelhar a Última Hora, mas sem a parte política, ou seja, aproveitando apenas as
técnicas de sedução do público utilizadas por esse jornal. Segundo Luiz Fernando Levy,
em depoimento a Goldenstein:
“A fórmula sexo-crime-sindicato não é nenhuma invenção nossa. É, na
verdade, o resultado de pesquisas que se faziam e era isso que levava o
pessoal a comprar o jornal. Junto com isso é que vinham os outros
ingredientes em Última Hora. O objetivo do jornal era, claramente, roubar o
público de Última Hora. Era dar pelo menos uma alternativa, senão uma
substituição, que era o que nós desejávamos e que aconteceu; nós queríamos
trazer uma alternativa para fazer um fogo de encontro. [o jornal Notícias
Populares] falava pouquíssimo de política, o mínimo necessário: às vezes
dava cobertura a uma ou outra manifestação, dentro daquela linha de contraofensiva ao trabalho de desordem [...] e dar aquilo que eles estavam
querendo e mais alguma coisinha água com açúcar, às vezes algumas
informações [...] mas com muito cuidado e com muito critério para que não
cometêssemos o erro de querer dar para nosso leitor aquilo que ele não
estava nem com vontade de ler [...]”172 [grifos meus]
Assim, o jornal Notícias Populares deveria ser estruturado para neutralizar a
ação do jornal Última Hora sem, no entanto, polemizar com o rival. Seria um jornal
político, mas que falaria o mínimo possível da política dita formal e que teria na
linguagem e na temática sensacionalistas o seu carro-chefe. Essa postura dos criadores
de Notícias Populares expressaria, segundo a autora, uma visão sobre as classes
172
Goldenstein, 1987: 83.
96
populares próxima à ideia de que “o povo não pensa e nem tem interesse nisso”.173
Expressaria, também, o desejo de tirar as classes populares da influência das esquerdas
e, ao mesmo tempo, evitar que elas participassem de qualquer outra forma.
No entanto, ao confrontar o depoimento de Luiz Fernando Levy com o discurso
de Notícias Populares, percebi que, em meio ao sensacionalismo, o jornal investiu no
noticiário político quase tanto quanto Última Hora, sinal de que a participação dos
trabalhadores no cenário brasileiro foi percebida em um ponto de não-retorno. As
classes populares teriam que ser reconhecidas como interlocutor/ator político. A própria
iniciativa de fazer um “fogo de encontro” ao Última Hora ou o apoio de Herbert Levy
aos sindicatos anticomunistas revelam essa percepção.
Assim, se Notícias Populares pretendia anular a atuação do Última Hora, teria
de abordar os temas políticos por meio de um discurso alternativo ao do concorrente. E
assim o fez. Nos primeiros meses de Notícias Populares, entre outubro e dezembro de
1963, o noticiário político, centrado na deslegitimação do governo Goulart e das
esquerdas, predominou no jornal, ocupando seis das suas 12 páginas. A partir de
dezembro, as editorias de polícia, esportes e cidades tiveram seus espaços ampliados,
por decisão de Mellé, que pretendia, com isso, aumentar a vendagem do jornal.
Entretanto, o noticiário político continuou sendo pauta importante e ocupou, sozinho,
entre quatro e cinco páginas do Notícias Populares.
As posições da UDN e de Herbert Levy pautaram o noticiário político. Levy foi
ponto frequente no jornal, ocupou as colunas, gerou notícias, fotos, elogios. Aparecia
sempre como protagonista dos acontecimentos. Denunciava o perigo da infiltração
comunista no Brasil, os “planos golpistas” de João Goulart, e se posicionava como
173
Goldenstein, 1987:77-87.
97
opositor intransigente do governo na defesa da democracia brasileira. Títulos como
“Levy: Jango atrasa mínimo para fazer revolução”174; “Levy: governo tem interesse em
subverter a ordem” ou “Levy: nenhum acordo com Goulart”175 davam o tom dessa
editoria.
Não por acaso, o jornal empreendeu a tarefa de construção da imagem política
de Levy. Como exemplo dessas iniciativas, estavam as diversas matérias publicadas por
Notícias Populares em que o empresário e político udenista pedia urgência na
aprovação da escala móvel de salários, que propunha aumentos semestrais com base nos
índices da inflação do país. O objetivo de Levy era disputar com o PTB a autoria do
projeto e retirar essa bandeira das esquerdas. No dia 19 de novembro de 1963, Notícias
Populares publicava:
“O presidente João Goulart enviará hoje mensagem ao Congresso,
determinando a revisão do salário mínimo duas vezes por ano [...] Esta é
uma vitória da UDN, pois representa antiga reivindicação do partido[...]
Coube ao deputado Herbert Levy pedir urgência para a votação do
projeto que institui o salário móvel, o qual, uma vez aprovado virá
solucionar os problemas salariais [...]” [grifos meus]176
A defesa do projeto de escala móvel de salários era um importante instrumento
de expansão partidária e eleitoral. Havia uma forte rivalidade entre a UDN e o PTB,
ambos interessados em apadrinhar a proposta. Além disso, o PTB não poderia renunciar
à autoria de um projeto de alcance trabalhista. Nessa disputa, Última Hora também deu
o seu recado:
“[...] A Câmara Federal deverá prosseguir esta semana os entendimentos
sobre a reforma agrária aguardando também a chegada da mensagem
presidencial encaminhando projeto de lei que institui o salário móvel para
todos os trabalhadores, bem como o décimo terceiro salário para os
servidores federais. Surpreendentemente, tão logo foi anunciada a
174
Notícias Populares, 19 fev. 1964:6
Notícias Populares, 18 out. 1963:4
176
Notícias Populares, 19 nov.1963:6
175
98
disposição foi governo de apresentar aquela proposição, os elementos
oposicionistas [...] tratam de reviver o projeto que trada do mesmo
assunto, apresentado já em 1951 [...]”
O posicionamento de Última Hora reforça a ideia defendida, nesta dissertação,
sobre a importância estratégica da criação do Notícias Populares na luta política do
período.
Como foi discutido no capítulo anterior, o golpe não foi a única opção de Levy
para derrotar Goulart. Ele investiu, ao mesmo tempo, na manutenção do calendário
eleitoral, ao promover forte campanha em torno do nome de Carlos Lacerda para a
presidência da República, além de ser ele próprio um nome de peso para sucessão ao
governo de São Paulo. Como diz Fico “[...] enfraquecer o governo, bloquear quaisquer
eventuais pretensões continuístas do presidente e torná-lo um eleitor fraco na campanha
presidencial de 1965 eram alternativas admissíveis para personagens que, depois,
optariam definitivamente pelo golpe”177.
Em suas páginas, Notícias Populares desenvolveu, ainda, uma verdadeira
pedagogia política anticomunista a fim de combater o proselitismo dos grupos de
esquerda. O objetivo era fornecer ideias, imagens e valores de uma tradição
anticomunista, especialmente a de matriz liberal, que conformasse a visão de mundo das
classes populares e estimulasse o medo e a insegurança em relação ao comunismo,
identificando esse perigo no governo Goulart. Para garantir o sucesso de sua campanha,
os jornalistas adotaram a estratégia de manter o assunto em evidência. Publicavam,
quase diariamente, textos criticando o comunismo, de modo a fixar no público as suas
mensagens.
177
Fico, 2004: 76.
99
Isso mostra, portanto, a necessidade de reavaliar a interpretação de Goldenstein e
questionar até que ponto era possível manter as classes populares fora do jogo político.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento do povo como sujeito político gerou tensões.
Embora considerado ator político de peso, que deveria ser conquistado, continuava
sendo visto como despreparado intelectualmente para agir e pensar por si mesmo, já que
sua ação política era atribuída a manipulações dos grupos de esquerda.
A concepção de povo do jornal Notícias Populares
A visão de “povo” compartilhada por setores udenistas e do empresariado
paulista apareceu na linha editorial do jornal, sob a responsabilidade de Jean Mellé. A
tarefa de Mellé seria adequar a linguagem e o discurso de Notícias Populares às
características culturais que ele supunha ser dos seus leitores. Na sua visão, para que
houvesse eficácia no convencimento dos leitores, os jornalistas deveriam trabalhar com
temas que fossem sensíveis às classes populares, relacionados, portanto, ao seu universo
simbólico.
A fórmula encontrada foi mesclar elementos tradicionais da imprensa
sensacionalista, que ele acreditava ser o chamariz para os leitores, com temas políticos
contemporâneos. Apostando que o leitor popular compra jornal por impulso, a primeira
orientação de Mellé foi fazer da manchete de Notícias Populares e da primeira página o
carro-chefe do jornal178. Assim, a primeira página do dia 10 de março de 1964 trazia
como manchete, Aluguéis: JG assina lei no dia 13. E como títulos: Bacanal na rua
Clélia: janelas abertas; Preso Miguelito rei dos impalas; OEA: Cuba faz agitações no
Brasil; PUC: mais 2.000 em greve; Óleos e ovos subiram; Brejão: líder quer 1 bilhão
pelas terras; De Gaulle vai falar espanhol; Pivetes presos dormindo.
178
Goldenstein, 1987.
100
Neste ponto, é interessante retomar algumas considerações sobre o
sensacionalismo, pois foi recorrendo a ele que Mellé buscou forjar a identificação do
jornal com o público. Segundo Marialva Barbosa, a fórmula sensacionalista está
baseada no enquadramento dramático (trágico ou cômico) dado à notícia que, ao
mesclar realismo e romance e superdimensionar os acontecimentos, apela às sensações
que provocam emoção pela proximidade com o fato reconstituído. A edição fantasiosa
característica da narrativa sensacional deve ser apresentada dentro de parâmetros de
verossimilhança, que permitam ao leitor reconhecer, na trama, um mundo romanceado,
que não pode ser encarado sem a carga de ficcionalidade, mas, ao mesmo tempo, real;
caso contrário, perde a credibilidade diante do leitor179.
Nesse sentido, a narrativa sensacionalista evoca não apenas aquilo que se
passou, mas também uma realidade semelhante ao que se desenrola na vida do leitor,
aumentando a identificação dele com o jornal. Além disso, o texto sensacionalista apela
a valores duais, carregados de ensinamentos morais, como a ideia do mal contra o bem.
Tudo isso narrado sob a forma de um melodrama cotidiano.
As chaves do jornalismo sensacionalista estariam, ainda, na intensificação e
exagero gráfico, temático, linguístico, com o abuso das ilustrações e fotografias e temas
que valorizam um conteúdo melodramático centrado, na maioria das vezes, na
violência. A linguagem informal e irreverente, baseada em imagens e pobre em
conceitos, é, ao lado da valorização das manchetes que buscam o insólito e a
extravagância dos fait-divers, outra característica desse tipo de jornalismo. Os títulos
são seguidos por subtítulos que resumem o drama e facilitam a leitura de um público
que se considera ter pouco hábito de leitura.
179
Barbosa, 2004. Para uma discussão sobre o sensacionalismo, ver também Siqueira, 2002 e Amaral,
2006.
101
Todos esses elementos estiveram presentes, em maior ou menor grau,
dependendo da seção do jornal, na fórmula do discurso de Notícias Populares. O estudo
das partes componentes do jornal, que saía com 12 páginas, ajuda a compreender o que
os seus criadores definiram como sendo de interesse popular, o lugar do
sensacionalismo e a concepção de classes populares que os pautou.
O noticiário do Notícias Populares dividia-se em espaços para políticas
nacional, estadual e internacional, temas trabalhistas e sindicais, polícia, esportes e os
problemas do cotidiano que afetavam as classes populares. As colunas sociais, faitsdivers, vida de artistas, lazer, coluna feminina, horóscopo, turfe, quadrinhos
completavam o quadro e buscavam reforçar a atração do público popular. Não havia
espaço para editorial, mas as numerosas colunas assinadas, como a “Jean Mellé
Informa” ou a “Waldo Claro denuncia”, faziam esse papel.
A edição diária de Notícias Populares, entre outubro de 1963 e março de 1964,
estava assim organizada180:
Capa: mesclava assuntos diversos, da política formal à polícia, além da presença
de uma enorme quantidade de fotos, praticamente uma para cada título. A manchete
principal variava tematicamente, conforme a editoria entendesse o grau de importância
da informação. A partir de dezembro de 1963, a política perdeu espaço na capa para as
editorias de polícia e esportes que Mellé acreditava terem maior apelo comercial.
Página 2: era dedicada a assuntos diversos, indo de problemas do cotidiano da
cidade de São Paulo a fait-divers, passando por notícias policiais, políticas, econômicas
e sindicais. Alguns dos assuntos do dia 6 de dezembro de 1963, nessa página, eram:
“Carne: COAP favorece câmbio negro e estabelece a censura”; “Salário deve
180
Para melhor visualização do jornal, ver as páginas 112 a 115 deste capítulo.
102
acompanhar aumento do custo de vida”; “Aluguel de 10 mil poderia subir a 70 mil
cruzeiros”; “Encampação ou greve geral: operários intimidarão Goulart”; “Menina de
dez anos foi degolada num matagal”; “Sarita Montiel estreia amanhã e dia 11 estará
em São Paulo”.
Página 3: lugar da coluna “Jean Mellé informa”, dedicada a assuntos políticos
nacionais e internacionais, tendo como eixo o discurso anticomunista. As matérias que
apareciam ao lado dessa coluna também poderiam variar de temática. Assim, no dia 30
de dezembro de 1963, ao lado da coluna de Jean Mellé, que discutia a crise econômica
da União Soviética, aparecia matéria com o título “Polícia invadiu „inferninho japonês‟:
alegria de nisseis terminou na central”, que mostra a mistura entre elementos do
sensacionalismo e temas políticos contemporâneos, característica do jornal.
Página 4: dedicada à política estadual, e, principalmente, nacional. Nessa seção,
as posições da UDN e de Herbert Levy, no cenário nacional, e a batalha para a
deslegitimação do PTB e do governo Goulart pautavam o noticiário.
Página 5: era dedicada à política internacional, abordada sob a ótica da Guerra
Fria. O jornal posicionava-se na defesa do bloco capitalista, procurava assinalar os
conflitos internos e “fracassos” do bloco comunista, denunciando-o como um “regime
proscrito”. Essa página também contava com notícias sobre a vida privada de
celebridades internacionais. Assim, em 5 de novembro de 1963, ao lado da matéria cujo
título era “Novo incidente em Berlim gera tensão: 44 americanos detidos pelos
soviéticos”, aparecia a notícia sobre o casamento da ex-mulher do Xá da Pérsia, sob o
título: “Xá aprova casamento de Soraya: Maximiliam é um homem sério”. Esse era
mais um exemplo da mistura entre matérias de teor diverso.
103
Página 6: dividia o espaço entre a editoria sindical, que abria a página com a
seção “São Paulo trabalhista”, e a política nacional, por meio das colunas “Waldo Claro
denuncia” e “Fábio Mendes: Nossa redação em Brasília”. A coluna “Fábio Mendes”
fazia a cobertura dos debates no Congresso. Destacava a fala e a ação dos políticos
udenistas, principalmente de Herbert Levy, e denunciava as “propostas demagógicas do
governo”. A coluna “Waldo Claro denuncia” fazia a denúncia da infiltração comunista
nos vários órgãos do governo e em organizações sociais como a União Nacional dos
Estudantes (UNE), sindicatos, Ligas Camponesas.
Vale ressaltar que os temas sindicais, além de terem ocupado quase a página
toda, também apareciam espalhados em outras partes do jornal, mostrando que um dos
objetivos de Herbert Levy era disputar com a esquerda o setor mais politizado das
classes populares. O próprio nome “São Paulo trabalhista” era uma apropriação, por
Notícias Populares, do vocabulário do seu oponente: a tradição trabalhista representada
principalmente pelo PTB. Uma das estratégias adotadas pelo jornal, a fim de não perder
os seus leitores, foi apoiar as reivindicações salariais, mas condenar as “greves
políticas”. Interessante, também, é que, nessa seção, o destaque estava nas
mobilizações, encontros sindicais e greves promovidas pelos sindicatos trabalhistas e
comunistas, e não do sindicalismo do MSD, apoiado pelas lideranças empresariais,
como se poderia supor de um jornal cujo proprietário era Herbert Levy. Uma explicação
para isso pode estar na própria intensificação da atividade sindical das esquerdas que,
naquele contexto, assumiam a ofensiva política.
Entretanto, o MSD aparecia em momentos-chave do discurso do jornal para dar
sustentação sindical às ações do grupo de Herbert Levy, ao contrapor a ideia de
“trabalhadores” x “subversivos”. O exemplo mais forte dessa estratégia se deu após o
golpe de 1964, quando o MSD ocupou as páginas de Notícias Populares para defender a
104
repressão aos sindicatos liderados por trabalhistas e comunistas e a prisão de seus
líderes. No dia 8 de abril de 1964, Notícias Populares publicava:
“O movimento Sindical Democrático do estado de São Paulo divulgou
ontem manifesto enviado às autoridades federais e estaduais assinalando que
„em nome da grande maioria dos trabalhadores paulistas, hipotecamos nosso
inteiro apoio ao Congresso Nacional, às Forças Armadas e aos governadores
do estado, por terem interpretado positivamente os incontidos anseios do
povo paulista em preservar o regime de liberdade, de democracia que
estavam ameaçados pela canalha comunista‟ [...] os trabalhadores
democráticos reivindicam das autoridades responsáveis: a) a cassação dos
direitos políticos de todos quantos, comprovadamente, no executivo,
legislativo federal e estadual vinham facilitando a infiltração comunsita,
apoiando os vendilhões da pátria; b) expurgo imediato e cassação dos
direitos sindicais, nos termos dos dispositivos mencionados, dos dirigentes
de confederações e sindicatos comprometidos como comunismo
internacional e que eram pagos para conspirar contra os trabalhadores e a
nação; c) extinção imediata das organizações comunistas, como o CGT,
PAC, FSD [...]”
Outro ponto a ser ressaltado é que entre o final de fevereiro e o início de março
de 1964, o noticiário sindical praticamente sumiu da página 6. O próprio nome “São
Paulo trabalhista”, que abria a página, foi extinto. Em seu lugar, foram colocadas
notícias policiais, faits-divers e, principalmente, notícias sobre o aumento dos preços
dos gêneros alimentícios. A meu ver, as notícias alarmantes sobre a alta dos gêneros
alimentícios visavam desestabilizar e retirar o apoio ao presidente da República, já que
afetavam diretamente a vida das classes populares.
As páginas seguintes eram dedicadas basicamente a entretenimento, incluindo
esportes, principalmente futebol, quadrinhos, horóscopo, televisão, e coluna feminina,
de variedades e social. A página 11 era dedicada à editoria de polícia. Nessa página, tal
como em Última Hora, havia espaços para assuntos militares, como a “Coluna Militar”
e “Força Pública”, que visavam atingir principalmente setores subalternos das Forças
Armadas, então em processo de politização. No entanto, o objetivo era esvaziar o
caráter político das reivindicações desses setores. Por isso o jornal noticiava apenas
105
promoções e eventos ligados à corporação, como transferências, premiações, além de
informar sobre facilitação da compra da casa própria, entre outros. Na contracapa,
apenas notícias policiais e de futebol e, raramente, política.
Como visto, embora os diversos temas tivessem espaços mais ou menos cativos,
a diagramação não era rígida, podendo aparecer, lado a lado, faits-divers, notícias
policiais, econômicas, políticas, sindicais e do cotidiano. Considerando as possíveis
limitações do seu público em relação a uma educação formal, a paginação do jornal foi
feita de modo acessível, com textos geralmente curtos, manchetes e títulos em letras
garrafais e uma enorme quantidade de fotos que, muitas vezes, não condiziam com a
importância da matéria. Mellé também usou e abusou de fotos de mulheres bonitas, de
preferência de espartilho, mesmo quando estavam nas páginas policiais.
A linguagem da abordagem dos temas também era diversa. Assim, nas editorias
de polícia, de esporte e de cotidiano, recorria-se à linguagem sensacionalista. Já nas
editorias política e sindical, embora não excluísse recursos do sensacionalismo,
predominou uma linguagem mais formal – exceto nas manchetes e títulos. No entanto,
também essa divisão não era rígida: as linguagens poderiam ser misturadas em uma
mesma notícia ou no mesmo espaço do jornal.
Para conquistar o leitor popular, o jornal também dava ampla cobertura para
problemas do cotidiano, como a questão do tabelamento do preço dos gêneros de
primeira necessidade ou dos alugueis, sempre com alarde, insinuando uma situação de
caos no país. A cobertura econômica do Notícias Populares, diferente da cobertura
política, tendia a se restringir ao universo dos problemas do cotidiano popular. Entre os
dias 18 e 30 de outubro de 1963, por exemplo, o jornal, diariamente, noticiou o locaute
dos açougueiros contra o tabelamento do preço da carne pela Sunab. O título principal
106
da segunda página, no dia 16 de outubro, era: “Açougueiros vencem a parada. Demitido
presidente da COAP”181. No dia 18 de outubro de 1963, o jornal publicava a seguinte
matéria:
“[...] grande número de açougueiros desta cidade continua desafiando os
comandos do departamento de policiamento econômico da COAP impondo
aos consumidores preços superiores aos do vigente tabelamento da carne
através da velha ameaça: „se não quiser, deixar ficar, pois tem quem
compre‟. A COAP santista, a despeito de sua firme atuação frente aos
exploradores da economia popular, vem permitindo claros na sua ofensiva
contra os “tubarões” da carne. Ontem, os moradores da rua Professor Torres
Homem pagaram 520 cruzeiros o quilo da carne tabelada em 490. No
mercadinho do bairro a exploração é semelhante [...]”182
Com essa pauta firmemente ancorada nos interesses da população, associada a
esporte, entretenimento, notícias policiais, o jornal buscava construir seu vínculo com
os leitores.
Vale destacar que no início Notícias Populares era parecido com Última Hora.
Sua diagramação era semelhante, especialmente na capa, onde conviviam diversos
assuntos em chamadas, manchetes em letras garrafais, muitas fotos, especialmente de
crimes, tragédias e mulheres bonitas. Notícias Populares também aproveitou de Última
Hora o formato das editorias de cidades, política, esportes e sindical e as notas sociais
de clubes populares, apresentando-se, no entanto, como uma versão mais pobre desse
jornal e não só no número de páginas - Notícias Populares saía com 12 páginas contra
24 do Última Hora. Enquanto Última Hora apresentava, ao lado das matérias de
promoção dos artistas e de shows, colunas de crítica literária, cinema, artes plásticas,
Notícias Populares só tinha o primeiro tipo de matéria: fofocas, promoção de artistas e
espetáculos183. Outra diferença é que Notícias Populares não fez uso de espaços de
comunicação com os leitores como a “tendinha das reclamações” ou a seção de cartas
181
COAP era o órgão federal responsável pelo tabelamento dos preços dos gêneros alimentícios.
Notícias Populares, 18 out. 1963:2
183
Esse aspecto é ressaltado por Goldenstein, 1987.
182
107
dos leitores, que, em Última Hora, se mostraram instrumentos fundamentais para o
jornal construir a imagem de intermediário entre povo e governo.
“Povo-plebs” e “Povo-populus”
Tomando de empréstimo conceitos formulados por Chartier, considero que
Notícias Populares oscilou em caracterizar seus leitores como povo-plebs, aquele que
não é considerado sujeito político, pois não seria iluminado pela razão, forma de
participar do mundo político-institucional na modernidade, e povo-populus, esse sim
sujeito político, ativo nas esferas de participação da política formal184.
Na visão de Notícias Populares, o povo-plebs era aquele que comprava o jornal
pelo entretenimento, pela emocionalidade das matérias policiais, pelas informações do
cotidiano em detrimento do mundo político institucional. Era o “povo” que buscava o
jornal não para ampliar o seu conhecimento do mundo, mas para resolver problemas
concretos do seu cotidiano, como o preço da carne, ou para buscar histórias
interessantes, insólitas, que não levavam a reflexões mais profundas além do inusitado
do fato imediato. Era principalmente para ele que se destinavam matérias, como a
publicada no dia 22 de outubro de 1963, que rendeu a seguinte manchete: “Criança
assassinada com um tiro no coração”185. A matéria é interessante não somente por
ajudar a revelar a visão subjacente que o jornal tinha de seus leitores, mas também a
representação do povo que divulgava em suas páginas. Apesar de ser capa do jornal, o
assunto foi tratado numa pequena nota na página 2 – a foto era maior que o texto – e foi
narrado da seguinte forma:
“A família de Isidora foi, na tarde de ontem, visitar Marcolino conhecido
passador de maconha em Vila Nice e imediações de Vila Gustavo. Todos os
presentes passaram a fumar a erva. No sofá, Isidora “rosnava” sob o efeito
184
185
Chartier,1990.
Notícias Populares, 22 out. 1963: 1-2.
108
da droga. Sua mulher Adelina também estava maconhada (...) o tiro foi
disparado acidentalmente”186.
No mesmo dia, na página policial, Notícias Populares continuava apostando no
efeito “maconha”, dessa vez misturada com samba, para compor um cenário de
violência na matéria “Rudi entrou no cordão: ladrões e maconha numa escola de
samba”:
“Numerosas viaturas da rádio-patrulha e da Rudi movimentaram-se nas
primeiras horas de ontem para efetuar a prisão dos componentes de uma
escola de samba que batucava na Rua da Glória, proximidade da av.
Liberdade. Momentos antes o nipônico Massao Ikeda (...) fora barbaramente
espancado por aqueles sambistas delinquentes (...) conta ainda que eles
portavam maconha”187.
Nas matérias, as representações do povo e de elementos da cultura popular,
como o samba, foram feitas de forma caricaturizada, transformando-as em estereótipos
da desordem e da irracionalidade, chegando à animalização (“Isidora rosnava”).
Mas não foi só nas páginas policiais que se considerou o “povo-plebs”. Ele
esteve também na forma da abordagem dos problemas socioeconômicos da cidade de
São Paulo como na matéria “Miséria faz fila no albergue do Cambuci”188: “No albergue
noturno do Cambuci a miséria realmente faz fila para entrar. Centenas de desgraçados
se reúnem ali (...) são procedentes de estados do norte atraídos pela promessa da cidade
grande (...)”
Percebe-se a manutenção do tom dramático, típico da narrativa sensacionalista,
mas agora em outra chave, buscando despertar a empatia do leitor com os personagens
186
Notícias Populares, 22 out. 1963:2
Notícias Populares, 22 out. 1963:11
188
Notícias Populares, 19 out.1963: 1 e 3.
187
109
da matéria. Na continuação da reportagem, é enfatizado que a maioria dos migrantes só
quer trabalhar, mas não consegue devido ao saturamento do mercado de trabalho em
São Paulo. Além disso, é denunciado o desprezo das autoridades, como o caso do
policial que cuida da fila do albergue.
Assim, o migrante foi dignificado, na matéria, por ser trabalhador, papel social
reconhecido positivamente para o homem pobre. Porém, esse mesmo trabalhador seria
vítima da sociedade. Sua marca seria a impotência e a ausência de iniciativa própria.
Dessa forma, a narrativa do jornal, ao sentimentalizar a questão social, buscou criar a
penalização e reforçar uma visão subalterna do integrante das classes populares, na sua
condição de excluído e passivo, de não-cidadão. Apesar de ter apontado o desemprego
como um problema da organização econômico-social, a matéria não desenvolveu
argumentos nem apontou soluções, em um momento em que esse tema se inseria no
debate sobre as reformas de base. O conteúdo da mensagem acabou por particularizar o
fenômeno social descrito a fim de valorizar a emoção pela vitimização dos personagens.
Nas matérias acima, tanto a concepção do leitor popular quanto as próprias
representações do povo, veiculadas em determinadas páginas do jornal demonstravam
uma visão do povo como “plebs”. Ou seja, um povo despolitizado, cujas manifestações
eram qualificadas muitas vezes por sua emocionalidade, mas de quem o jornal não
poderia descuidar em função de um contexto de radicalização, no país, em que as
esquerdas avançavam na conquista dos setores populares.
Mas se, de um lado, Notícias Populares trabalhou com a ideia de um povo
despolitizado que buscava no jornal o trio “sexo, crime, esportes”, por outro, não deixou
de considerar a existência de amplos setores populares mobilizados, que participavam
do embate político. Esse “povo-populus”, na visão do jornal, seria formado
110
principalmente pelos trabalhadores assalariados sindicalizados. Era especialmente para
ele, embora não só, que o jornal dirigia o noticiário político e sindical. Era ele que
pretendia tirar da influência dos grupos de esquerda. A coluna “Jean Mellé informa”, no
dia 18 de outubro, fornece um exemplo desse trabalho de “contraofensiva”. Sob o título
“Magalhães Pinto modifica sua posição política para volta a linha do partido”,
publicava:
“Das mais interessantes a nova posição do Sr. Magalhães Pinto, depois que
tentou, sem sucesso, aproximar-se da chamada esquerda. Vítima de um erro
de cálculo – o de que a “esquerda” teria importância na opinião pública
nacional – o governador de Minas arriscou perder o apoio da maioria da
UDN[...] O incidente da recusa do estado de sítio, da sua repulsa por todo o
país, convenceu o Sr. Magalhães Pinto, como convenceu o Sr. João Goulart,
de que o povo brasileiro prefere a defesa das liberdades democráticas, contra
qualquer tentativa ditatorial.[...]
Mellé lançava mão de uma linguagem formal para abordar os conflitos internos
udenistas como o apoio de Magalhães Pinto ao governo Goulart, que contrariava a linha
radical do partido liderada por Lacerda. Com isso, pretendia formar um entendimento da
realidade para o seu leitor, tratando-o como um sujeito político que precisava ser
conquistado. Para desqualificar o adversário, associava a esquerda e o governo João
Goulart à demagogia e a um regime ditatorial – a tentativa de decretação do estado de
sítio, em outubro de 1963, comprovaria isso – e, no mesmo movimento, ressaltava os
liberais da UDN e as classes populares como baluartes da democracia no país. Nesse
ponto, o discurso veiculado por Mellé em nada diferia do discurso veiculado pela
grande imprensa para os leitores de classe média. Interessante é que, na matéria, a
linguagem e a forma como o conteúdo foi abordado foram diferentes das orientações
gerais de Mellé para a estruturação do discurso do jornal.
No entanto, essa imagem do povo como sujeito político não foi construída sem
tensão: a abordagem do tema do sindicalismo no jornal revela isso. O movimento
111
sindical, no período analisado, foi um dos grandes temas abordados por Notícias
Populares, exatamente por ser o sindicato, naquele contexto, tanto o lugar por onde os
trabalhadores se politizavam e se mobilizavam, quanto por ser uma das bases do
governo Goulart, que tratava os líderes sindicais como interlocutores privilegiados.
A análise que Notícias Populares fez da greve geral dos 700 mil, ocorrida em
São Paulo entre outubro e novembro de 1963, permite vislumbrar as ambiguidades na
visão do povo como sujeito político divulgadas pelo jornal. Desde 18 de outubro de
1963, 11 dias antes da eclosão da greve, o jornal vinha noticiando as tensões entre os
trabalhadores de vários ramos da indústria de São Paulo, representados pelo Pacto de
Ação Conjunta (PAC), intersindical ligada ao Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), de orientação de esquerda, e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Indústria (CNTI), então nas mãos do PTB-PCB189. Sob o título “Aumento para os
industriários: guerra fria pode pegar fogo”, o jornal anunciava o conflito entre o PAC,
e depois a CNTI, representando 79 sindicatos, e os empresários representados pela
Fiesp. Enquanto o PAC e a CNTI reivindicavam aumento de 100% do salário e
negociação em bloco, o empresariado só aceitava negociação categoria por categoria,
negando-se a reconhecer o PAC como interlocutor. Até dia 29 de outubro, quando teve
início a greve geral, o jornal, num tom moderado, deu voz, nas suas páginas, tanto ao
operariado quanto ao empresariado. Ao veicular as demandas do operariado, as mesas
de negociação com a Fiesp e a forma de organização dos sindicatos e suas relações com
as intersindicais, o jornal oferecia, a despeito da linguagem irreverente muitas vezes
usada, uma visão de maturidade dos trabalhadores na defesa dos seus direitos e
reivindicações.
189
Negro; Silva, 2003:83.
112
No entanto, quando da eclosão da greve geral, marcada por forte mobilização e
participação dos trabalhadores, o jornal mudou o tom e buscou reverter a situação. No
dia 29 de outubro de 1963, toda a primeira página, cuja manchete era “Greve
estourou!”, e que tinha como um dos títulos “Fiesp não reconhece ditadura sindical”,
foi dedicada ao tema da greve. Um dos pontos mais ressaltados foi a questão da
ilegitimidade da greve, já que seria “política” e liderada por “elementos subversivos” e
“líderes sindicais pelegos”. Esse discurso se repetiu em vários espaços do jornal, como
na coluna “Waldo Claro denuncia”:
“São Paulo pode amanhecer paralisado por uma greve completamente
espúria, no sentido de dar continuidade ao esquema acionado pelo governo
federal ansioso de concretizar uma intervenção armada nas duas maiores
trincheiras que se opõem hoje aos seus desejos confessos de continuísmo
[...] Basta uma rápida e superficial análise nos nomes dos promotores do
“putsch” grevista, para se ter um idéia de que não são os operários quem a
promove [...] a fraternidade dos agitadores reunidas em torno do poder
constituído [...]” objetivando estabelecer “[...] o reinado do totalitarismo
vermelho [...]. Não há o desejo honesto de luta pela melhoria salarial e social
dos trabalhadores [...] Não, essas greves estão umbilicalmente ligadas aos
interesses políticos, dos políticos dominantes [...] Setecentos mil
trabalhadores, segundo o IBGE do CGT, deixarão de cumprir com seu dever
perante a pátria e perante as necessidades de sua famílias. Seguirão pelo
caminho de dubiedades, para obedecerem simplesmente e passivamente os
que fizeram do instituto da greve, a indústria para um enriquecimento fácil e
sem grandeza. Que os trabalhadores que trabalham [...] abominem mais essa
tentativa de subversão dos valores que presidem nossa formação. [...] a hora
não é de seguir os pelegos amestrados em Havana, é de continuar seguindo
pela trilha brasileira, que é nossa e é cristão [...] [grifos meus]
No texto acima, a participação do trabalhador na greve foi explicada pela
manipulação do governo federal com vistas a seu projeto continuísta, e dos “pelegos
comunistas” do CGT. No discurso de Waldo Claro, os sindicatos e a greve perderam a
sua legitimidade por serem órgãos cooptados por líderes “corruptos e pelegos”, que não
representavam verdadeiramente os trabalhadores e que os estariam usando para atingir
113
objetivos políticos, alheios ao que o jornal entendia como sendo as reivindicações da
categoria. Assim, o trabalhador, que “obedece simplesmente e passivamente”, perdeu,
no discurso do jornal, a sua condição de sujeito político, de indivíduo livre e autônomo
com capacidade para tomar suas próprias decisões e agir politicamente. Para anular a
mobilização dos trabalhadores, o jornal desqualificou o espaço (sindicato) e o momento
(greve) de ação política dos trabalhadores e definiu um lugar social para o operário:
zelar pela pátria e por sua família através da sua produção. Vale destacar que, nesse
ponto, Notícias Populares fazia coro com o discurso das lideranças industriais paulistas
para as quais os sindicatos teriam uma participação construtiva nas relações de trabalho
e no fomento da paz social desde que não se tornassem veículos de agitação extremista
ao incentivar greves ou outros obstáculos para a produtividade. Ao considerar a ação
política da classe trabalhadora como fruto da manipulação, Notícias Populares negouse, ainda, a reconhecer uma relação de reciprocidade, mesmo que assimétrica, entre
Estado e classes trabalhadoras, já que o trabalhador seria apenas uma vítima das
maquinações do Estado e dos grupos de esquerda.
Interessante notar, também, o investimento feito no discurso do jornal em prol
de uma redefinição do sentido da palavra pelego, que compunha o vocabulário próprio
das esquerdas, na crítica ao modelo Vargas de representação sindical190. No discurso de
Notícias Populares, “pelego”, embora tenha mantido a identificação com o governo e
com a ideia de não representar as legítimas reivindicações operárias, deixou de ser
aquele que visava diminuir o choque entre as classes, passando a ser identificado como
o agente, ligado à extrema esquerda, que politizava essas classes.
Em continuidade a essa linha de argumentação, no dia 31 de outubro de 1963, o
jornal publicou, quase na íntegra, a resposta de Herbert Levy a Almino Afonso, do PTB,
190
Sobre a estrutura sindical na Era Vargas, ver D‟Araújo, 2003.
114
sobre a greve geral em São Paulo. Sob o título “Levy adverte aos intervencionistas: São
Paulo pegará em armas”, o jornal fez das palavras de Levy a sua posição:
“(...) a extrema esquerda foi reduzida na sua expressão eleitoral e política.
Isto demonstrou (...) a saturação em que se encontram os verdadeiros
trabalhadores esses que não são pelegos, esses que não são líderes da
extrema esquerda a serviço de ideologias exóticas; demonstrou como a
maioria absoluta de trabalhadores está cansada de ser explorada, na forma de
greves políticas que não encontram acolhidas na constituição (...) Se estes
sindicatos precisam ter ação política (...) é porque o partido de V. Excia.
(...)” “(...) está fracassando, não interpreta mais os sentimentos dos
trabalhadores (...) enquanto em São Paulo há ordem, trabalho e, como aqui
se diz, mais de 70% dos trabalhadores não querem ouvir falar em greve, em
Pernambuco, através de impressionantes relatórios das classes produtoras
(...) o que se verifica é a comunização (...)
Novamente aqui se contrapôs o trabalhador ao grevista e ao líder sindical “que
buscavam subverter as relações político-sociais no Brasil”. No mesmo movimento, a
matéria buscou deslegitimar o PTB, partido mais popular no período, enquanto
representante dos trabalhadores. Mas, diferente do texto de Waldo Claro, o que se
ressaltou na comunicação de Levy foi a contraposição da imagem da ordem em São
Paulo, onde os trabalhadores não aderem a ideologias exóticas, à comunização,
portanto, à desordem, em Pernambuco, de Miguel Arraes, importante líder das
esquerdas. Dessa forma, o mito da índole cordial e pacífica do povo brasileiro, que o
comunista queria corromper, era acionado para deslegitimar o movimento dos
trabalhadores. Na reportagem, o jornal ainda deixava claro que Levy encarava todas as
greves reivindicatórias como legítimas, não lhes fazendo restrição. O problema estava
no fato de elas serem manipuladas por elementos exteriores ao operariado. Esse foi o
discurso predominante do jornal nas abordagens de praticamente todas as greves. As
reivindicações salariais eram reconhecidas – afinal, o jornal não poderia perder a
interlocução com o seu público –, mas a participação política dos trabalhadores, quando
115
envolvia sindicatos à esquerda, era vedada sob a acusação de manipulação dos
trabalhadores.
Dessa forma, Notícias Populares construiu um discurso que definia os limites do
comportamento político da classe trabalhadora ao articular o reconhecimento dessa
classe como ator político, visto como inevitável naquela conjuntura política, e o
controle dessas classes. O lugar da cidadania para as classes populares, na visão do
jornal, estava no trabalho, ou mesmo em uma ação política limitada aos “valores
cristãos e democráticos”, ou seja, desde que fosse contrária ao governo Goulart e às
esquerdas – daí todo o investimento de Levy em fundar sindicatos anticomunistas ou de
conclamar, pelo jornal, as classes populares a comparecerem às Marchas da Família em
1964. Como diz Jorge Ferreira, o perigo não era o pelego, mas o movimento sindical em
processo de mobilização e politização crescente. No projeto político conservador dos
liberais brasileiros não havia espaços para a cidadania plena dos trabalhadores191.
O argumento da manipulação do povo buscava não só mascarar e reverter o fato
de milhares de trabalhadores estarem mobilizados na greve e participando do cenário
político do país, mas também revelava as ambiguidades e tensões com que os setores
representados por Levy, do qual Notícias Populares era porta-voz, encaravam o povo.
Pois se, de um lado eram obrigados, pela realidade das mobilizações populares, a
reconhecer esse povo como sujeito político – a própria tentativa de reverter e controlar o
processo de politização dos trabalhadores mostra isso –, por outro, continuavam
resistindo em reconhecê-los como cidadãos políticos dotados de plena autonomia, ao
caracterizar suas mobilizações como fruto de manipulação. Essa ambiguidade pautou a
linha editorial do jornal e apontou para a forma como os setores representados por
191
Ferreira, 2001:119.
116
Herbert Levy buscaram se relacionar com as classes populares no contexto do governo
de João Goulart.
117
CAPÍTULO 3:- No calor da hora: o discurso oposicionista do jornal Notícias
Populares (1963-1964)
Este capítulo analisa o discurso político do Notícias Populares entre outubro de
1963 e março de 1964. O objetivo é recuperar as estratégias traçadas para combater
João Goulart e os grupos de esquerda e, dessa forma, melhor compreender o papel
atribuído ao jornal e às classes populares na luta política do período.
É importante lembrar que a primeira edição do Notícias Populares saiu no dia 15 de
outubro de 1963. Portanto, após a recusa pelo Congresso Nacional do pedido de estado
de sítio feito por Goulart, onze dias antes. Nos setores oposicionistas, esse episódio
reforçou a ideia de que o presidente, aliado aos comunistas, planejava um golpe
continuísta. A partir desse evento, Goulart perdeu a bandeira da legalidade para a
oposição que passou a articular um movimento ofensivo contra o governo. Ao mesmo
tempo em que as opções democráticas se estreitavam, as apostas golpistas se alargavam
para os grupos de diversos matizes políticos, quer da direita ou da esquerda.
Trabalho com a hipótese de que o discurso elaborado por Notícias Populares teria
acompanhado o clima de tensão e as opções políticas feitas então pelo grupo de Levy.
O jornal foi transformado em um instrumento estratégico cujo objetivo era retirar o
apoio que as classes populares costumavam dar a Goulart e aos grupos de esquerda, e
preparar o clima para a aceitação de um possível golpe de Estado.
O final de 1963 e os primeiros meses de 1964 podem ser considerados um dos
períodos mais imprevisíveis da história recente do Brasil. Como visto no capítulo 1, o
quadro era propício para a formação de uma frente anti-Goulart, reunindo elites
empresariais, militares, políticos e as classes médias. O sinal foi dado com a guinada de
presidente à esquerda, após tentativas fracassadas de reconstruir sua base política
118
formada pela aliança entre PSD e PTB. Da esquerda à direita, a estratégia escolhida foi
a do confronto.
Nesse cenário, a ideia de uma “ameaça comunista” foi exacerbada pela união das
esquerdas de diferentes matizes que pressionavam o presidente a adotar um programa
máximo de reformas. Mas, acima de tudo, o grande “perigo” estava na forte
participação política popular, já que as estratégias do presidente e das esquerdas só
teriam sucesso se fossem respaldadas pela ação dos movimentos populares. Por isso o
empenho de Levy em conquistar e subtrair as classes populares da influência do
governo Goulart e das esquerdas. A disputa pelo apoio dessas classes apareceu na
própria criação de um jornal de perfil popular como Notícias Populares.
Iluminado pelas formas de atuação nas acirradas disputas políticas que
marcaram o período em análise, o jornal Notícias Populares focou seu discurso político
nos seguintes temas:
1) “anticomunismo”, o que implicou a desconstrução do modelo soviético e seus
congêneres internacionais e a denúncia da infiltração comunista no Brasil;
2) “as reformas de base”, com o objetivo de retirar essa bandeira das esquerdas e de
João Goulart;
3) “o golpe continuísta”, baseado na ideia de que o presidente da República, na
esteira da tradição varguista, planejava implantar uma ditadura no país;
4) a mobilização de uma leitura liberal sobre a “revolução constitucionalista de
1932”, que apontava para a necessidade de uma “resistência democrática e liberal” às
investidas de João Goulart e das esquerdas.
119
Esses temas articulavam a visão do grupo de Levy sobre o campo político brasileiro,
segundo a qual três grandes forças atuavam na cena política: a “extrema esquerda”,
interessada na comunização do país; a “extrema direita”, formada pelo caudilhismo
redivivo e personificada na figura de João Goulart; e o “centro”, representado pelas
“forças democráticas” e liberais. A “extrema direita” e a “extrema esquerda”, embora
tivessem objetivos diferentes, supostamente se aliavam para tomar o poder. Nesse
sentido, caberia ao “centro”, “democrático e liberal”, impedir a concretização desse
perigo. Essa ideia constituiu o eixo discursivo do jornal para legitimar o golpe de Estado
em 1964.
O discurso anticomunista no Notícias Populares
No início dos anos de 1960, o anticomunismo, além de ter se convertido em um
dos elementos mais fortes do pensamento liberal, desempenhou, também, um forte
papel na arregimentação dos grupos adversários do governo. Por isso foi um dos
principais argumentos do Notícias Populares contra João Goulart e os grupos de
esquerda.
Como editor-chefe do jornal, Jean Mellé descrevia o comunismo como um “regime
proscrito”, que só teria fim quando “fosse eliminado como ideologia”192. A principal
forma de combater o inimigo vermelho seria no plano das ideias, por meio de um
trabalho de contrapropaganda ao proselitismo comunista e das esquerdas em geral. Para
tanto, a imprensa, como instrumento de pedagogia política anticomunista, foi acionado
pelo jornalista, para quem as classes populares, pouco instruídas, eram incapazes de ter
uma noção do perigo real do comunismo e, portanto, passíveis da ação “nefasta” desses
agentes.
192
Notícias Populares, 22 jan.1964:3
120
Um dos objetivos do Notícias Populares era fornecer ideias, imagens, valores de
uma tradição anticomunista, especialmente a de matriz liberal, que conformasse a visão
de mundo das classes populares e estimulasse o medo e a insegurança em relação a esse
“perigo” no governo Goulart. Para garantir o sucesso dessa campanha, o jornal adotou
como estratégia manter o assunto em evidência. Publicou, diariamente, textos de crítica
ao comunismo de modo a fixar no público sua mensagem. E para que houvesse eficácia
no convencimento dos leitores, trabalhou com temas sensíveis às classes populares,
relacionados ao seu universo simbólico.
Vale destacar que a tradição anticomunista foi sendo construída, no Brasil, desde a
década de 1920, quando, logo após a revolução russa de 1917, o comunismo deixou de
ser uma abstração teórica para se tornar uma experiência concreta que, do ponto de vista
dos setores liberais, precisava ser combatida para a manutenção da ordem dominante. A
imprensa, em geral, participou da construção dessa tradição, ao oferecer um conjunto de
representações que contribuiu para associar o comunismo às imagens do mal, tais como
violência, desordem, infiltração, totalitarismo, destruição da tradição cristã193.
Notícias Populares reforçou essa tradição ao se apropriar dos seus temas,
interpretações e símbolos de modo que, uma vez constituindo parte do imaginário social
brasileiro, fosse compreendida facilmente pelo leitor. Mas também incorporou temas
específicos do seu contexto histórico. Imagens clássicas do comunismo como uma
planta exótica, estranha aos valores democráticos e cristãos ocidentais, foram
reelaboradas e reapresentadas em um contexto permeado pela revolução cubana, pelas
crises e disputas no bloco comunista, especialmente entre China e URSS194, e pelo
crescimento dos grupos de esquerda no Brasil.
193
Motta, R., 2002.
Desde os anos de 1950, os dirigentes chineses criticavam o “revisionismo” soviético e sua ação em
favor da coexistência pacífica com o Ocidente. Em 1963, o conflito entre China e URSS foi acirrado após
194
121
Para análise das matérias formuladas sobre o tema, escolhi especialmente as colunas
diárias de Jean Mellé e Waldo Claro, jornalistas que mais se empenharam na difusão de
um imaginário anticomunista baseado no medo e na insegurança. Enquanto Jean Mellé
se fixava nas representações sobre o modelo soviético e o mundo comunista, Waldo
Claro se dedicava ao “avanço” do comunismo no Brasil.
A desconstrução do modelo soviético
No conjunto de imagens e representações sobre o comunismo elaborado por
Mellé, o tema que mais se destacou foi o da realidade vivida na URSS, especialmente a
denúncia da falta de gêneros alimentícios, consequência de um sistema econômico
baseado na coletivização e estatização. Sem mencionar os avanços da industrialização
soviética, o jornalista destacava o ponto fraco de sua economia: a agricultura. Títulos
como “Por que falta pão na URSS: pela primeira vez em Moscou filas diárias para
alimentos”195 ou “Confirmado o colapso total da economia soviética: povo nada tem
para matar a fome”196 buscavam anular o sucesso do discurso comunista em prover os
mais pobres.
A construção de uma visão positiva da URSS como um lugar, no mundo, livre
da exploração e da desigualdade social poderia “provar, concretamente, para as classes
populares, que o socialismo não era apenas uma utopia, mas constituía uma
realidade”197. Para Mellé, urgia que essas representações fossem destruídas, a fim de
a publicação pelo PC Chinês de uma declaração de 25 pontos enumerando as divergências com a União
Soviética. As principais restrições diziam respeito à natureza do regime soviético, qualificado de burguês,
e à sua insistência em querer dirigir o movimento comunista internacional. Havia, também, disputas
territoriais entre as duas nações. Sobre o conflito Sino- soviético, ver Berstein, et al., 2007.
195
Notícias Populares, 2 nov.1963:3
Notícias Populares, 11 jan. 1964:3
197
Motta, R., 2002, 2006.
196
122
anular a tentativa de criar simpatia pelo comunismo entre as camadas mais pobres.
Assim, no dia 2 de novembro de 1963, ele publicava o seguinte artigo:
“O interesse do mundo concentra-se hoje sobre o que ocorre na URSS e nos
países do bloco comunista, onde a falta de trigo e de outros alimentos
afastou a cortina que escondia realidades cruéis [...] os correspondentes
estrangeiros em Moscou divulgam, sem cessar, aspectos inéditos das filas
que se formam diante das lojas de gêneros alimentícios. Quando uma fila de
trezentas pessoas chega à metade, anuncia-se que a carne, o pão ou a gordura
acabaram. Figuras tristes, cabisbaixas e de olhos vermelhos, voltam para os
lares, sem ter o que comer e dar às crianças. Sempre, nos 46 anos de
regime marxista-leninista na URSS, verificaram-se crises alimentares
[...] como consequência evidente do regime inadaptável e defeituoso de
coletivização. Mas nunca, em Moscou, Leningrado, Kiev, Harkov e
Vladivostock, cidades onde existem corpos diplomáticos, jornalistas e
turistas, os gêneros faltaram. Sempre, nessas cidades, as lojas, que são do
Estado e por ele dirigidas, apresentaram suas vitrinas cheias de carne,
conservas, gorduras, peixes, frutas, pão de várias qualidades, vinhos e etc.
Verdade que os preços eram inacessíveis para a população soviética que não
podia adquirir essas coisas divinas! [...]”198 [grifos meus
]
Ao mobilizar a emoção do leitor por meio de imagens como a da família que não
consegue alimentar os filhos, ou de um vocabulário carregado de significações
negativas como as expressões “realidades cruéis” ou “horror”, Mellé mostrava para seus
leitores que as promessas de melhoria de vida sob o regime comunista eram falácias
propagandísticas de um governo autoritário. O povo russo viveria na mais completa
miséria, onde não faltariam apenas alimentos básicos, mas também um mínimo de
conforto ou “standard de vida”, como ele gostava de chamar. Em outro momento, ele
escrevia: “[...] falta comida, as roupas, etc.”199 itens que, na sua argumentação, eram
básicos para mundo ocidental, mas tornavam-se “coisas divinas” nos países comunistas,
onde “todos estão preocupados com a comida por duas razões: a falta de gêneros e os
198
199
Notícias Populares, 2 nov.1963:3
Notícias Populares, 28 mar. 1964:3.
123
baixos salários, insuficientes para pensar em outra coisa que não comida”200. Além
disso, as promessas de igualdade não teriam sido cumpridas, na URSS, como
demonstravam as diferenças de vida entre o corpo de burocratas do Estado e o resto da
população.
A ênfase na crise social da URSS foi a grande estratégia do jornalista para tentar
convencer as classes populares da necessidade de refutar o comunismo. Na disputa com
as representações de esquerda, ele tinha consciência de que “a principal justificativa do
projeto bolchevista era a transformação social, o que significava que, se a URSS não
apresentasse avanços nessa área, o apelo comunista sofreria um golpe mortal”201. Mellé
sabia que o ponto mais sensível do seu leitor estava exatamente na lida com os
problemas cotidianos da sobrevivência. Questões como a fome, a falta de conforto e de
gêneros alimentícios não eram realidades desconhecidas pelos brasileiros, ainda mais
em um quadro de crise inflacionária, como a do início dos anos de 1960, em que os
salários eram desvalorizados e locautes contra o tabelamento dos preços pela SUNAB
eram constantes na cidade de São Paulo.
No entanto, enquanto a situação de crise econômica no Brasil era atribuída a um
problema conjuntural, relacionado ao “caos” e à “subversão” que marcavam o governo
de João Goulart, na URSS, a crise econômica era identificada como um problema
estrutural, ligado à própria razão de ser do comunismo, que destruíra a propriedade
privada e implantara a coletivização e a estatização:
“[...] Revelam os jornalistas que mesmo as estatísticas oficiais e publicitárias
soviéticas comprovam o que o visitante pode observar: o consumidor local
depende cada vez mais da produção de particulares para obter carne, frutas,
legumes e leite. O governo soviético combate, pelos jornais, o agricultor que
faz comércio particular, classificando-o de explorador do público, mas
encoraja, discretamente, sua ação a fim de garantir o abastecimento urbano.
200
201
Notícias Populares, 22 nov.1963:3.
Motta, R., 2002:75
124
A crise de produtos alimentares no mercado interno da União Soviética, a
qual levou o país à necessidade de importar cereais dos Estados Unidos, está
provocando um debate entre as autoridades russas e os agricultores, em torno
da expansão da agricultura particular. O governo luta para manter a
agricultura coletivizada enquanto os donos de pequenas propriedades
defendem o crescimento do cultivo privado, como única forma de recuperar
a produção agrícola nacional”202
Dessa forma, Mellé procurava abalar um dos fundamentos da identidade
socialista que é a crença em um regime coletivista e na aptidão do Estado para conduzir
a economia. O fato de agricultores particulares e a importação de cereais dos EUA, país
líder do bloco capitalista na Guerra Fria, aparecerem como salvadores do povo russo
mostrava tanto a superioridade do regime capitalista, baseado na propriedade privada e
na livre iniciativa, em que “um lavrador dos EUA produz por seis da URSS”, como
também seria prova da incapacidade da fórmula comunista para solucionar os
problemas socioeconômicos da humanidade.203
A defesa da propriedade privada e da livre iniciativa estava diretamente
relacionada à defesa das liberdades individuais e da democracia liberal. Em artigo
contrário à estatização da refinaria de petróleo de Capuava, proposta do governo
Goulart, Waldo Claro conclamava os trabalhadores a resistirem à “bolchevização da
economia nacional” para que não se destruísse, no Brasil, “o instituto básico da
democracia: a propriedade privada”. O comunismo era tratado como um regime
totalitário em que o “Estado autocrata, policial, centralizado, onde os cidadãos são
perseguidos pela polícia secreta”204 intervinha fortemente no domínio privado
sufocando todas as liberdades individuais. Vale ressaltar que esses temas eram
abordados de forma superficial, reproduzindo-se os chavões convencionais sobre a
202
Notícias Populares, 15 dez.1963:3.
Notícias Populares,27 abr.1964:3.l
204
Notícias Populares, 28 nov.1963:6.
203
125
ditadura comunista ou sobre a democracia ocidental que se prestavam mais a um efeito
retórico para fixar uma imagem do comunismo como antítese da democracia.
Ao mesmo tempo, os jornalistas silenciavam em relação ao forte debate que
ocorria, no Brasil, sobre a ampliação do regime democrático. Com a proposta de
extensão do voto aos analfabetos, o governo Goulart pretendia incorporar, pela via da
representação institucional, um significativo contingente das camadas populares ao
sistema político. O grupo de Herbert Levy combateu, sistematicamente, essa proposta,
pois enxergava nela uma abertura para que outros projetos do governo fossem
aprovados. A oposição de Levy ao voto do analfabeto se fazia, também, a partir de uma
visão baseada na tese da presciência das elites, conforme discutido no capítulo 1. No
entanto, essa postura não poderia aparecer em um jornal voltado para as camadas
populares, já que seriam elas as principais beneficiárias dessa proposta. Essa tensão
constituiu o dilema central do Notícias Populares, um jornal liberal que disputava o
campo popular.
Mellé e Waldo Claro apresentavam os EUA como a maior expressão do regime
democrático ocidental e exemplo a ser seguido pelo Brasil. Defensores de um
alinhamento incondicional ao governo norte-americano e críticos da política externa
independente mantida por João Goulart, a valorização dos EUA era fundamental para a
argumentação dos jornalistas que justificavam e clamavam pelas intervenções armadas
que o governo norte-americano fazia nos países comunistas. Assim, para que seus
leitores fossem convencidos de que “o problema cubano só será resolvido com a
intervenção dos Estados Unidos”205, o jornal precisava vencer uma batalha contra o
anti-imperialismo das esquerdas que conquistavam fatias cada vez maiores da opinião
pública e conseguia expressivas vitórias como as encampações das empresas norte205
Notícias Populares, 23 nov.1963:6.
126
americanas no Rio Grande do Sul, no governo de Leonel Brizola, ou, no caso da política
externa, o reatamento das relações diplomáticas com a URSS.
Mellé procurou inverter um dos maiores discursos de setores da esquerda que,
por meio da denúncia do racismo e do apartheid, mostrava a falta de extensão dos
direitos civis e políticos nos EUA, pondo em xeque a imagem daquele país como
bastião da democracia. No combate implacável ao inimigo vermelho, o jornalista
buscou inserir o racismo como um dos elementos de sua pregação anticomunista e, com
isso, conquistar fatias dos seus leitores formadas especialmente por negros e mestiços
para quem esse tipo de discurso teria um forte apelo:
“[...] o duplo jogo dos governantes comunistas: de um lado propaganda
contra os países ocidentais, na base do antirracismo, de outro, a prática
odiosa do racismo em pleno território russo. (...) os estudantes negros, em
princípio cursavam as várias universidades soviéticas, mas depois foram
confinados numa só, a Lumumba, especialmente criada para isso, isto é, para
que não seja mantido nenhum contado com os colegas brancos. Acabaram
sendo afastados do convívio da família russa [...]”206
A defesa da superioridade do regime democrático capitalista, representado pelos
EUA, aliado à denúncia da crise socioeconômica e das condições políticas da URSS
levavam Mellé a prognosticar, reiteradamente, o fim do comunismo. Por meio do mote
“depois de 46 anos de marxismo-leninismo”, fazia uma leitura do passado comunista
como um regime fracassado em que só teria ocorrido “fome, trabalhado forçado, falta
de liberdade”, consequências inerentes à própria ideologia comunista. Na sua
argumentação, essa experiência pretérita seria a responsável pela situação de caos do
presente soviético que, por sua vez, levaria o povo russo a não ver sentido na
206
Patrice Lumumba foi um dos líderes da luta pela independência do Congo Belga. Em 1960, tornou-se
Primeiro Ministro da República Democrática do Congo. Dez semanas depois foi deposto por um golpe de
Estado promovido pelos governos norte- americano e Belga. A URSS nomeou a Universidade Russa da
Amizade dos Povos com o nome de Lumumba. A Universidade foi fundada em 1960 e era voltada para
jovens do terceiro mundo- Ásia, áfrica e América. Notícias Populares, 2 jan.1964:3.
127
interpretação do mundo a partir de conceitos como a luta de classes e a submissão do
indivíduo à causa política de um Estado pretensamente representante dos interesses da
coletividade:
“[...] soviéticos não gostam mais de participar das reuniões partidárias e
consideram que existem para eles coisas melhores que matar-se para o
Estado. Os jovens querem ver os filmes feitos no Ocidente, espetáculos
teatrais apresentados pelos conjuntos artísticos ocidentais, querem ler
revistas, jornais, livros estrangeiros [...] não desejam mais acreditar que as
classes sociais, pelas suas separações, sejam a causa de todos os males
existentes [...]”207
Como um alerta para que os leitores do jornal não se deixassem seduzir pelos
discursos da esquerda comunista no Brasil, Mellé argumentava que, se a revolução
comunista obteve sucesso no passado, isso ocorreu porque o povo ainda não tinha
atingido “o estágio de discernimento político em que hoje se encontra [quando], mesmo
correndo perigo de ir para um campo de concentração, começa a discutir e rejeitar o
regime soviético”208. Se o próprio povo soviético tinha percebido o fracasso do regime,
por que, então, os brasileiros se deixariam seduzir por essa doutrina que, concretamente,
só mostrava resultados fracassados?
No quadro da Guerra Fria, Mellé argumentava que URSS estaria derrotada, pois
de nada adiantariam as “bombas atômicas de 100 megatons e foguetes que poderiam
provocar o fim do mundo, se a URSS e todo o bloco comunista não conseguem
alimentar seu povo”209. A superioridade econômica e militar dos EUA era
constantemente
resgatada,
pois
enquanto
“Kennedy
dispõe
de
elementos
extraordinários, atingindo uma potencialidade militar três vezes superior à da URSS
207
Notícias Populares, 22 nov.1963:3.
Notícias Populares, 25 mar.1964:3.
209
Notícias Populares, 11 jan.1964:3.
208
128
(...), o adversário soviético enfrenta crises em todos os sentidos”210. O fracasso do bloco
comunista, portanto, não se daria só no plano interno, mas também no externo.
Outro motivo do enfraquecimento do bloco comunista estaria nas suas
dissensões internas, como mostrava o conflito entre URSS e China. Segundo Motta, a
propaganda anticomunista silenciou sobre as divergências entre os países comunistas,
mantendo a imagem de um bloco coeso a fim de aumentar o medo e a insegurança e
provocar a arregimentação contra o comunismo211. A estratégia de Mellé, no entanto,
foi inversa. Para tentar dissuadir seus leitores de se engajar na causa comunista,
apresentou as disputas e dissensões entres os países comunistas a fim de indicar o
enfraquecimento e ruína do bloco. O comunismo seria um “regime proscrito”, pois com
a crise da URSS, nenhum outro país do bloco seria capaz de substituí-la. O candidato
mais forte, a China, “sem bombas atômicas [ a bomba chinesa é de 1964] e muito
atrasada em sua economia, não tem condições para figurar entre as grandes potências do
Globo” .212
A partir dessas críticas contundentes, Mellé mostrava para seus leitores que o
único caminho seguro para o Brasil era o alinhamento às normas das democracias
liberais ocidentais e seu regime capitalista baseado na livre iniciativa. O recado era
endereçado para o presidente Goulart, mas o alvo era o leitor:
“[...] verá o presidente do Brasil que as agitações esquerdistas em nosso país
são encaradas com curiosidade no exterior, onde o movimento marxista está
superado pela realidade nova que o próprio Krushev ilustra com seus
desesperados apelos no ocidente para ajudar economicamente a URSS
[...]”213
210
Notícias Populares, 20 nov.1963:3.
Motta, R., 2002:56.
212
Notícias Populares, 25 fev.1964:3.
213
Notícias Populares, 25out.1963:3.
211
129
“[...] falar, pois, de experiência e regime marxista, em países que, até agora,
puderam conservar-se fora dessas dificuldades significa ignorar que, no resto
do mundo, ninguém mais espera qualquer coisa do bloco comunista.”214
O perigo comunista no Brasil
Enquanto Jean Mellé se fixava nas representações sobre a URSS e o mundo
comunista e procurava identificar no comunismo um retrocesso político e econômico
para mundo ocidental, nas páginas restantes de Notícias Populares, especialmente na
coluna Waldo Claro, foram fornecidos argumentos e indicações sobre o avanço do
comunismo na cena política brasileira.
No discurso de Notícias Populares, o Brasil sofreria uma ameaça iminente já
que João Goulart, para prolongar sua permanência no poder (questão que será discutida
adiante), estabelecia alianças com os comunistas e as esquerdas em geral permitindo
que se infiltrassem em vários órgãos do governo e em organizações sociais como UNE,
sindicatos, Ligas Camponesas.
Um dos principais pontos de denúncia do jornal estava na “complacência” de
Goulart com a entrada de comunistas estrangeiros que vinham treinar agentes brasileiros
para a fomentação de guerrilhas no Brasil. Assim, logo na primeira semana de edição do
Notícias Populares, em outubro de 1963, a coluna Waldo Claro denunciava a
embaixada cubana no Brasil, cujos diplomatas seriam “agentes secretos do governo
cubano” encarregados de dar treinamento guerrilheiro às Ligas Camponesas:
“[...] aos poucos, as verdades relativas às atividades extradiplomáticas da
embaixada de Cuba sobem à tona. Podemos assegurar, hoje, que muitas das
orientações foram dadas por essa missão diplomática às Ligas Camponesas
de Francisco Julião. O diplomata responsável pelas orientações de guerrilhas
214
Notícias Populares, 12 nov. 1963:3.
130
ao “pacífico” movimento era Miguel Brugueras, agente do serviço secreto
cubano [...]”215
Nesse caso, o jornalista resgatava um episódio ocorrido no final do ano de 1962,
quando foi descoberto um campo de treinamento das Ligas Camponesas no interior de
Goiás. No lugar, foram encontradas descrições de fundos financeiros enviados pelo
governo cubano para montar diversos acampamentos guerrilheiros, bem como esquemas
para sublevação armada em outras regiões do país. O exemplo da experiência
guerrilheira em Cuba foi seguido por setores mais radicais das Ligas: a proposta de
organizar os trabalhadores do campo foi substituída pela revolução socialista216.
O episódio foi bastante explorado pelo jornal e serviu como um alerta, para os
seus leitores, de que o perigo comunista no Brasil era real. Ao mesmo tempo, ao
denunciar a infiltração cubana no Brasil, Waldo Claro pretendia, também, reverter as
acusações que corriam, naquele momento, contra Carlos Lacerda. Em outubro de 1963,
foram encontradas armas em um sítio, em Jacarepaguá, que supostamente teriam sido
levadas para lá por carros oficiais do governo da Guanabara. Havia rumores de que um
grupo militar lacerdista, composto por oficiais da Marinha e do Exército, planejava um
atentado contra João Goulart. Vale destacar que, desde o final de 1963, havia um clima
de confrontação armada no país provocado tanto pelos grupos de direita quanto de
esquerda.
Em suas colunas, Waldo Claro justificou o armazenamento dessas armas como
parte do “esquema defensivo” montado pelo governo da Guanabara para garantir a
segurança da sua população, já que “guerrilheiros treinados em Cuba infestam o
subúrbio guanabariano”. O armazenamento de armas e munições teria sido feito “dentro
da lei e em respeito à lei”. Entretanto, ao tornar público o episódio, João Goulart
215
216
Notícias Populares, 18 out. 1963:6.
Ferreira, 2004:192
131
favorecia “criminosamente o golpe montado pelos amigos da subversão”, pois
possibilitava aos guerrilheiros comunistas o conhecimento do “esquema defensivo” do
governador Lacerda217.
Waldo Claro, assim como o restante das páginas do jornal, buscou tirar
dividendos desse episódio. Para isso, mobilizou estrategicamente a ideia de nação una e
coesa, e conclamou os leitores a seguirem o exemplo do povo cubano que lutava para
recuperar sua terra dos comunistas:
“[...] exilados políticos do regime fidelista se arregimentam no sentido de
recuperar sua pátria do domínio estrangeiro. Contrarrevolucionários cubanos
preparam-se para desembarcar com possibilidade de vitória em sua terra
[...]”218
O comunismo era apresentado como uma doutrina exótica, divorciada da “nossa
forma cristã de viver219 e do nosso “modelo democrático de pensar”. O “comunismo
ateu” visava destruir os pilares básicos da civilização ocidental: a família, a religião e a
propriedade. Ele se constituía em uma ameaça estrangeira que, por meio da luta de
classes, semeava a divisão da nação como tática para alcançar seus objetivos de tomada
do poder. Afinal, “as chamadas guerrilhas da libertação nacional são as ferramentas
básicas de uma nova classe de imperialismo que ameaça a todos por igual” 220. Dessa
forma, a revolução socialista era explicada como um pretexto para encobrir os interesses
do imperialismo soviético e de seus países satélites como Cuba.
Agentes do comunismo no Brasil
217
Notícias Populares, 17 out.1963:6.
Notícias Populares, 20 out.1963:6.
219
Os temas anticomunistas de matriz católica, tais como a ideia do comunismo que prega o materialismo
ateu contrapondo-se à família, à moral e à religião, embora não tenham sido ausentes nas colunas de
Mellé e Waldo Claro, não tiveram a mesma ênfase que os temas abordados no corpo deste texto.
220
Notícias Populares, 20 out.1963:6.
218
132
Pelas páginas de Notícias Populares, o exemplo da revolução cubana foi
reiteradamente acionado para mostrar que o perigo comunista não era uma realidade
longínqua da qual o Brasil, se não se organizasse para combatê-lo, estaria imune. Nesse
sentido, a figura de Brizola, mais do que Prestes ou outros comunistas, praticamente
ausentes no jornal, era tomada como símbolo dessa ameaça, sendo identificado como o
“Fidel Castro brasileiro”. Sobre a entrevista dada por Brizola ao jornalista venezuelano
Miguel Angel Caprieles, em novembro de 1963, Waldo Claro comentou:
“[...] Na entrevista, disse o deputado do PTB que tomaria logo o Brasil por
intermédio de uma revolução e expôs seus planos de governo [...] o político
gaúcho afirmou com todas as letras que as suas ideias e os seus planos para o
Brasil jamais poderiam ser postos em prática por intermédio de eleições e
por meios pacíficos [...] o único caminho a ser adotado era o da insurreição
popular [...]”221
A escolha de Brizola como símbolo da “cubanização do Brasil” se deu pelo fato
de o político gaúcho, nesse período, ter se projetado como a grande liderança das
esquerdas que assumiam alternativas de lutas extraparlamentares e pressionavam o
governo Goulart a implantar as reformas de base “na lei ou na marra”222. Segundo
Daniel Reis, as atitudes de Brizola e das esquerdas que o seguiam permitem falar em um
movimento “reformista revolucionário”, pois apresentava as reformas de tal forma que
sua realização tendia a implicar uma ruptura revolucionária223.
Outro aspecto importante denunciado, reiteradamente, por Notícias Populares
foi a “infiltração comunista” nos meios sindicais com o objetivo de tomar o poder por
meio do desencadeamento de greves gerais no Brasil. O movimento sindical foi um dos
grandes temas abordados por Notícias Populares, exatamente por ser o sindicato tanto o
lugar onde os trabalhadores se politizavam e se mobilizavam quanto por ser uma das
bases do governo Goulart, que tratava os líderes sindicais como interlocutores
221
Notícias Populares, 15 nov.1963:6.
Ferreira, 2001
223
Reis, 2004:35.
222
133
privilegiados. Por isso mesmo, um dos principais objetivos de Levy na luta política do
período foi promover uma campanha de conquista e subtração dos trabalhadores
sindicalizados da influência de João Goulart e dos grupos de esquerda. Notícias
Populares reforçou essa estratégia ao construir uma dicotomia entre “trabalhadores” e
“subversivos”, conforme discutido no capítulo anterior.
Assim, no dia 28 de novembro de 1963, por ocasião da greve dos ferroviários da
Estrada de Ferro Sorocabana, organizada pelo PAC e pela CGT, o jornal publicou a
seguinte manchete: “Ademar (dramático) na TV: Brasil às portas da revolução
vermelha!”. Na página 4, seguia o título: “Comunistas preparam tomada (total) do poder
no Brasil”. Ao dar voz a Ademar de Barros, Notícias Populares alertava seus leitores
sobre um “plano maquiavélico” que visaria a tomada do poder pelos comunistas, no
Brasil, a exemplo do que ocorreu, em 1948, na Tchecoslováquia. A senha para o
movimento seria a greve da Estrada de Ferro Sorocabana, que conquistava a
solidariedade de diversas outras categorias de trabalhadores. A intenção era “paralisar o
Brasil inteiro, de Norte a Sul, esperando que a estrutura da pátria, combalida pela
inflação, se destrua”. Os comunistas empregariam a técnica leninista do “quanto pior,
melhor”, pois o objetivo era criar, na população, um ambiente de revolta propício à
agitação comunista.
Na matéria, a referência a João Goulart vinha de forma velada. Junto com os
comunistas, ele seria a “cabeça da hidra”, já que, para transformar os operários em
“instrumento dócil de suas manobras”, teria permitido que “órgãos espúrios e sem
respaldo na lei, como CGT, PAC, PUA”, arrogassem a condição de “superórgão do
134
Estado” e tentassem sobrepor-se aos “poderes legítimos” da República como o
Congresso Nacional e o poder judiciário224.
É importante destacar, ainda, a referência à Tchecoslováquia. Em 1962, o Ibad
traduziu o livro “Assalto ao parlamento”, do escritor tcheco Jean Kosak, como parte da
campanha contra João Goulart e o comunismo. O livro descreve como os comunistas
chegaram ao poder na Tchecoslováquia, por meio da ação de uma minoria bem
coordenada que dominou rapidamente os postos-chave daquele país até a intervenção
soviética225. A obra foi utilizada como pedagogia pelo grupo de Levy e acionada pelo
jornal para mostrar que o Brasil estava correndo o mesmo risco. Segundo essa
interpretação, Goulart representaria um papel semelhante ao do presidente Edvard
Benes, líder nacionalista que liderou o governo tcheco após a II Guerra. Benes contou
com o apoio dos comunistas no seu governo. Entretanto, em 1948, foi por eles tirado do
poder. O recado era claro: Goulart, com suas alianças, estaria abrindo caminho para a
comunização do Brasil.
Ao mesmo tempo, Notícias Populares fazia um forte trabalho de
contrapropaganda ao movimento sindical de esquerda, com vistas a deslegitimá-lo
perante seus leitores, muitos dos quais trabalhadores sindicalizados, e, assim, conquistálos para a causa anticomunista. No dia 27 de janeiro de 1964, o jornal empreendia uma
campanha contra a participação de trabalhadores brasileiros no Congresso da Central
Única de Trabalhadores da América Latina (CUTAL), que seguia orientação de
esquerda. A estratégia do jornal foi dar voz a Pedro Paonte, líder dos trabalhadores
cubanos anticastristas no exílio.
224
225
Notícias Populares, 28 nov.1963:4.
Dutra,1963:14.
135
Em entrevista para Notícias Populares, Paonte afirmava que líderes operários
cubanos eram aprisionados pelo “delito de não terem aceitado o regime soviético”.
Além disso, afiançava que “antes do regime comunista, o operário cubano tinha o
melhor padrão de vida da América Latina, com direito a sindicalizar-se e apresentar
suas reivindicações”. Entretanto, após a revolução, os comunistas foram se apoderando
dos sindicatos e impedindo que os trabalhadores cubanos elegessem líderes
democráticos. No final da entrevista, Paonte afirmava: “Hoje, o proletário cubano é um
escravo. Antes não era”226.
As declarações do cubano eram tomadas, pelo jornal, como pedagogia para os
leitores. O objetivo era desfazer a imagem dos países comunistas como a “pátria dos
operários” e afastar os trabalhadores sindicalizados da influência das organizações de
esquerda. Além disso, a denúncia da repressão e da falta de liberdade sindical em Cuba
era particularmente importante para influenciar os leitores do jornal. Vale lembrar que,
no início dos anos de 1960, uma das principais reivindicações do movimento sindical
brasileiro era o rompimento da estrutura corporativa que limitava a sua liberdade de
ação.
No calor da hora
A partir do mês de janeiro de 1964, a ideia do perigo comunista no Brasil foi
exacerbada com a divulgação da denúncia da “guerra revolucionária” pelo então
presidente da UDN, Bilac Pinto. Nesse momento, o partido já apresentava disposição
em apoiar uma ruptura institucional e, para isso, se aproximava das chefias militares que
conspiravam contra o governo. As atividades dos líderes udenistas, entre eles Levy,
estavam orientadas no sentido de criar um momento adequado para dar início à ação
226
Notícias Populares, 27 jan. 1964:6.
136
militar contra o governo constituído. E, para isso, era necessária a aprovação popular, se
não em forma de apoio, pelo menos com a sua neutralização.
Notícias Populares encampou a denúncia da “guerra revolucionária” e
supervalorizou o “grupo dos onze” de Brizola ao disseminar a ideia de que era iminente
um ataque comunista. Organizado desde novembro de 1963, o “grupo dos onze” era
denunciado como a prova de que a esquerda estava armando grupos de guerrilha em
todo o território nacional227. A proposta de Brizola era organizar o povo em grupos de
onze pessoas, como em um time de futebol, para atuar contra as “forças reacionárias”
que impediam a concretização das medidas nacionalistas e reformistas. Os militantes
mais qualificados tinham com tarefa observar o cotidiano de oficiais de alta patente com
objetivo de prendê-los em caso de tentativa de golpe militar. Entretanto, como diz Jorge
Ferreira, a maior consequência foi gerar o medo entre a direita civil-militar228.
Notícias Populares estabeleceu uma contraposição entre “democracia” e
“comunismo” e buscou arregimentar seus leitores contra os grupos liderados por
Brizola. No dia 18 de janeiro de 1964, publicava o discurso de Bilac Pinto que
conclamava o povo à mobilização:
“[...] é necessário que o povo se organize e se arme para defender o
regime [...] Já que o cunhado do presidente está arregimentando grupos
em todas as vilas e povoações, para, no momento do golpe, tomar conta dos
centros-chave, os democratas devem se organizar e se armar, porque,
assim, o governo fracassará mais uma vez. Os cidadãos que não querem
ver a cubanização ou a sovietização do pais devem se organizar, tendo
em vista que a guerra revolucionaria é muito difícil de ser combatida pelas
Forças Armadas. Os brasileiros têm de ser os guerreiros da democracia”229
[ grifos meus]
227
Sobre o discurso da “Guerra Revolucionária”, ver Motta, R., 2002:260-261; Benevides, 1981:124
Sobre o “grupo dos onze”, ver Ferreira, 2004.
229
Notícias Populares, 18 nov. 1964:4.
228
137
No dia 19 de fevereiro de 1964, o jornal trazia matéria intitulada “Levy: Jango
atrasa o mínimo para fazer a revolução”, situada estrategicamente na página sindical.
Herbert Levy denunciava o retardamento da assinatura do decreto do novo salário
mínimo como parte do esquema de “guerra revolucionária” de João Goulart. O objetivo
de Goulart seria dificultar as condições de vida do trabalhador para que este,
desesperado, aceitasse qualquer condição.
Para dar legitimidade popular à fala de Levy, o jornal dava voz, também, ao líder
do MSD, Antonio Magaldi, para quem a protelação do mínimo era uma “bem
arquitetada manobra com a finalidade de criar ambiente de revolta entre o povo,
propício à agitação comunista”. Magaldi argumentava que as lideranças de esquerda
estariam de acordo com o presidente da República nessa manobra, visando aproveitar a
situação. Entretanto, as “forças sindicais democratas” estariam unidas para “combater as
investidas esquerdizantes do governo que se nega a atender à reivindicação salarial”230.
Ao ressaltar a voz do “sindicalismo democrático”, Notícias Populares procurava
desvincular o conjunto do movimento sindical das lideranças sindicais que apoiavam
Goulart. Como visto, essa foi uma estratégia do jornal para desqualificar o apoio
popular que era o grande trunfo do presidente da República.
Outro exemplo dessa estratégia ocorreu com a notícia do Comício da Frente de
Mobilização Popular, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 29 de fevereiro de 1964.
Sob o título “Baderna no Comício da Frente de Mobilização”, o jornal afirmava que o
evento comprovava falta de apoio do presidente e das esquerdas “mesmo onde as
camadas esquerdistas sempre pretenderam ter grande influência, isto é, nos meios
230
Notícias Populares, 19 nov. 1963:6.
138
sindicais”231. Vale destacar que o Comício da FMP foi impedido de acontecer por
organizações
anticomunistas
como
o
chamado
Movimento
de
Mobilização
Democrática232.
Mas foi com o Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que, nas
páginas do jornal, a “guerra revolucionária” havia se concretizado. Chamado de
“comício totalitário”, ele comprovaria a aliança de Goulart com os comunistas no
sentido de destruir o regime democrático brasileiro. A luta de classes seria estimulada
abertamente como meio para se chegar à vitória da revolução. Entretanto, enquanto o
presidente da República insuflava a radicalização da esquerda, visando ao próprio
benefício, ou seja, sua permanência no poder (assunto que será tratado no final deste
capítulo), os comunistas pretenderiam abrir caminho para uma revolução socialista.
Assim, o jornal publicava as declarações de Levy:
“[...] iniciou-se, no comício de anteontem, a guerra revolucionária há tanto
tempo denunciada e que tem por objetivo, da parte dos comunistas, a
conquista do poder, e, da parte do presidente da República e seu cunhado, a
permanência no poder, a qualquer custo, ainda que ensanguentando a nação
[...]”233
Como diz Rodrigo Motta, na interpretação dos setores liberais, Goulart pretendia
usar o apoio dos comunistas em benefício de um projeto continuísta e depois livrar-se
deles. O problema é que os comunistas desejariam o mesmo, ou seja, utilizar-se de
Goulart para chegar ao poder e derrubá-lo na primeira oportunidade234.
Após o comício, o jornal passou a evocar a imagem das Forças Armadas como
elementos decisivos para a manutenção da ordem democrática e da segurança interna do
país contra a ameaça comunista. Dessa forma, por meio de uma pedagogia que difundia
231
Notícias Populares, 29 fev. 1964:6.
Macedo, 2011.
233
Notícias Populares, 16 mar. 1964:4.
234
Motta, R., 2006:167.
232
139
imagens e representações negativas sobre o comunismo e que associava esse “perigo”
ao governo Goulart, o jornal pretendia incutir o medo e a insegurança em seus leitores, e
assim, buscar um clima favorável para que a deposição do governo fosse aceita pelas
classes populares, assunto que será retomado no último tópico do capítulo.
Como diz Mariani, a imprensa criou formas de representar o comunismo por
meio da cristalização de sentidos que ganharam “espessura pela repetição, pela crítica às
vezes nítida, às vezes sutilmente disfarçada em explicação, contribuindo, assim, para
consolidar uma visão negativa”235. Em Notícias Populares, essas representações, por
mais que fossem caricaturizadas e supervalorizadas, foram articuladas de forma crível,
pois só assim seriam reconhecidas pelos seus leitores. A denúncia sobre a crise
econômica na URSS, por exemplo, só pôde ser feita porque, de fato, no início dos anos
de 1960, o “socialismo real” experimentou esse processo. Ou então, por mais que
exagerassem sobre a extensão da infiltração comunista e dos planos para a implantação
de uma revolução no Brasil, a esquerda, embora com um peso desproporcional ao
número efetivo de seus militantes236, radicalizava e passava a posições ofensivas
pregando uma ruptura constitucional, se fosse preciso, para implantar as reformas de
base.
As reformas de base
No seu combate a João Goulart, Notícias Populares também fez um trabalho de
contrapropaganda ao projeto de reformas do governo. Um dos objetivos do jornal era
tirar essa bandeira de João Goulart e das esquerdas, a fim de anular um provável apoio
que o governo poderia obter das classes populares com essas propostas. Outro objetivo
235
236
Mariani, 1998:63
Reis, 2004:36.
140
era esvaziar o sentido redistributivo mais amplo das reformas, sem, entretanto, parecer
reacionário para seus leitores.
Embora o programa de reformas proposto pelo governo Goulart fosse mais
amplo, o discurso de Notícias Populares centralizou-se em dois pontos: a reforma
agrária e a reforma urbana. Isso pode ser explicado, pois essas eram as reformas que o
jornal acreditava terem maior apelo e receptividade entre os seus leitores. A reforma
urbana, com a proposta de tabelamento dos alugueis, beneficiava diretamente a vida das
classes populares urbanas, recebendo forte apoio desses setores. Já a reforma agrária,
além de ocupar o centro do debate político nacional, também era apoiada por
organizações de trabalhadores urbanos que denunciavam a concentração fundiária como
um forte entrave à industrialização e ao desenvolvimento econômico do país.
Uma das estratégias de Notícias Populares para deslegitimar o programa de
reformas proposto pelo governo e pelas esquerdas foi estabelecer uma contraposição
entre “reformas” e “agitação”. Segundo o jornal, as “verdadeiras forças democráticas
desejavam as reformas, em termos democráticos pela conformidade das nossas
tradições, de sorte a proporcionar, por via delas, novas e mais satisfatórias condições
sociais para o povo e maior impulso a nossa pátria”237. Entretanto, os obstáculos seriam
o presidente da República e seu partido, que não teriam interesse verdadeiro nas
reformas, mas sim na agitação do problema, a fim de permitir um golpe continuísta.
A UDN aparecia nas páginas do jornal como propositora de uma reforma
agrária, cristã e democrática. O projeto de lei do deputado udenista Milton Campos238,
237
Notícias Populares, 20 out.1963:6
O projeto Milton Campos constituía o exemplo da reforma agrária pregada pela UDN e defendida pelo
jornal. Segundo Argelina Figueiredo, era um projeto moderado que não requeria alterações
constitucionais. Enfatizava a taxação progressiva da terra e medidas que visavam à elevação da
produtividade. Quanto à desapropriação por interesse social, restringia-as aos imóveis localizados em área
necessária ao desenvolvimento econômico do país e desde que se mantivesse inexplorado e sem
238
141
recusado pelo PTB, no Congresso, era apresentado como um exemplo do empenho
desse partido na solução do problema e, ao mesmo tempo, outra prova de que o
presidente da República e seu partido não tinham interesse real no tema. Na publicação
de entrevista dada por Herbert Levy, em novembro de 1963, o jornal destacava que, se
não fosse pela recusa do PTB, a reforma agrária proposta pela UDN “poderia estar em
plena execução, minorando dos problemas do campo”239 .
Com esses argumentos, Notícias Populares acompanhava as posturas dos setores
representados por Levy e reagia à proposta das esquerdas e do presidente da República
de promover alterações constitucionais no sentido de viabilizar as reformas,
especialmente a agrária. Vale lembrar que Brizola, liderando as esquerdas mais radicais,
acusava, sistematicamente, o Congresso de reacionário, propondo seu fechamento caso
não aprovasse as reformas pretendidas pelas esquerdas. Como vimos, para esses grupos,
as reformas só sairiam se houvesse mobilização popular e pressão sobre o Congresso.
Conforme assinala Motta, nesse viés, as mudanças sociais demandariam algum tipo de
processo revolucionário, pois se acreditava que as elites não aceitariam, pacificamente,
alterações nas estruturas sociais e econômicas240. Daí o argumento utilizado por
Notícias Populares de que as reformas eram pretexto para o governo e as esquerdas
desencadearem a subversão no país.
Entretanto, foi a partir do final do mês de janeiro de 1964 que o tema da reforma
agrária ganhou destaque no jornal. Contribuíram para isso, também, as notícias sobre as
articulações entre Goulart e o presidente da Supra (Superintendência de Reforma
Agrária) no sentido de elaborar um decreto que permitisse a desapropriação de 20
benfeitorias por mais de 10 anos. Além disso, ponto central de discórdia com o PTB, estabelecia a
indenização em dinheiro.
239
240
Notícias Populares, 19 nov.1963.
Motta, R., 2006:117.
142
quilômetros de cada lado de ferrovias, rodovias federais, açudes e rios navegáveis para a
reforma agrária. A medida assustou udenistas que acusavam Goulart de ferir os direitos
de propriedade e exacerbavam as denúncias do perigo da “guerra revolucionária”. A
declaração de Bilac Pinto, publicada no jornal, mostrava esse temor:
“O Brasil não precisa da reforma agrária que está sendo pregada pela
SUPRA, pelo próprio presidente da República [...] o assunto é mais
complexo, não consistindo em dar terras àqueles que não possuem, mas
constitui-se, antes de tudo, no preparo do homem que explora a terra e nos
elementos assistenciais que se integram à jornada rural, tais como:
assistência médica, entrega de adubos a preços acessíveis e material técnico
necessário para aqueles que exploram as terras”241
Notícias Populares buscava deslegitimar a reforma agrária proposta pelo
governo a partir de dois pontos: a ideia de que faria parte de um plano golpista e
subversivo e a ideia de que reforma agrária não se reduzia à distribuição de terras.
Assim, evitava se colocar contra a reforma agrária enquanto buscava anular medidas
consideradas radicais, como a desapropriação de terras e, dessa forma, esvaziar o
sentido redistributivo mais amplo da proposta do governo.
Nesse sentido, o jornal empreendeu uma intensa campanha contra a Supra.
Passou a publicar notícias em que líderes udenistas pediam a extinção do órgão que teria
se transformado em “instrumento de subversão”, trazendo “desassossego e
intranquilidade a toda a zona rural”242. Títulos como “SUPRA comanda invasão de
terras em São Paulo”243 ou “SUPRA agita São Paulo” tornaram-se recorrentes. Ao
mesmo tempo, dava voz aos deputados da UDN que afirmavam que os dados
241
Notícias Populares, 4 fev. 1964.
Notícias Populares, 25 jan.1964.
243
Notícias Populares, 12 fev.1964.
242
143
distribuídos pela SUPRA eram falsos e, portanto, ilegítima a reforma agrária pretendida
pelo governo244.
Mas se o posicionamento do Notícias Populares contra a reforma agrária
proposta pelo governo era explícito, o mesmo não se pode dizer em relação à reforma
urbana. A explicação para isso está no forte apoio que a proposta encontrava entre as
classes populares urbanas, público alvo do jornal, já que atingia diretamente suas vidas.
Isso fez com que a abordagem do jornal sobre o tema fosse marcada por uma constante
tensão.
Em um primeiro momento, Notícias Populares buscou capitalizar o tema da
reforma urbana para os setores udenistas. No dia 6 de novembro, noticiava a proposta de
uma lei do inquilinato do deputado Ferro Costa, da UDN. Segundo o jornal, apesar de o
deputado estar divorciado da linha da UDN – ele pertencia à ala “Bossa Nova” – a
proposta obtinha todo o apoio do partido.
O projeto de Ferro Costa, que seria encampado pelo governo Goulart,
determinava, entre outros aspectos, o tabelamento dos alugueis, que passariam a ter
como base o salário mínimo. O menor aluguel corresponderia a 1\5 do salário mínimo e
o maior aluguel permitido por lei seria de 1 1\2 sobre o salário. Imóveis acima de 120
metros quadrados teriam aluguel liberado, entretanto o valor não poderia ser superior a
1% do valor tributário atribuído ao imóvel. O projeto também previa a desapropriação,
por interesse social, para efeito de venda aos inquilinos ou arrendatários, de todos os
imóveis rurais ou urbanos, alugados ou arrendados por mais de dez anos. Entretanto,
esclarecia que não seriam atingidos pela desapropriação dos bens, os proprietários de
apenas três residências locadas, bens de viúvas, órfãos ou menores, até o número que
244
Notícias Populares, 31 jan.1964:6.
144
proporcionasse rendimentos indispensáveis ao pleno atendimento de suas necessidades,
e os bens filantrópicos ou educacionais245. Um dos objetivos do governo era evitar a
especulação imobiliária, além de proteger o trabalhador que consumia a maior parte do
salário com a moradia.
É importante ressaltar que o grupo de Levy na UDN não tinha interesse, de fato,
na aprovação da reforma urbana, pois enxergava nela a abertura para a desapropriação
das indústrias e a comunização do país. Entretanto, na disputa com o PTB e com João
Goulart, interessados em apadrinhar o projeto, o grupo tentou retirar essa bandeira
desses agentes.
A partir de março de 1964, o tema ocupou quase diariamente o jornal. Nesse
mês, o presidente João Goulart, aliado às esquerdas, assumiu a ofensiva das reformas de
base, incluindo a reforma urbana. Os setores udenistas representados pelo jornal, por
sua vez, adotavam posições de oposição intransigente a todas as medidas do governo. O
objetivo era impedir que Goulart e as esquerdas se fortalecessem politicamente com a
aprovação dessas medidas. Nesse sentido, para acompanhar as posturas políticas desses
setores, Notícias Populares chegava a uma encruzilhada. A questão era: como
desqualificar uma medida que encontrava forte apoio entre os seus leitores?
A estratégia foi acenar com o fantasma do desemprego. No dia 12 de março de
1964, às vésperas do Comício da Central, quando Goulart anunciaria o decreto da
reforma urbana, o jornal publicou notícia com o seguinte título: “Decreto dos alugueis
trará desemprego em massa”. Segundo o jornal, a reforma urbana proposta por Ferro
Costa, e encampada pelo governo Goulart – portanto, a mesma que o jornal havia
apoiado meses antes –, traria desemprego. Os prejuízos para a economia do país seriam
245
Ver Notícias Populares, 6 nov.1963:6.
145
enormes, pois paralisariam as construções, com reflexos nas transações imobiliárias, na
indústria e no comércio. Acionava, assim, um importante argumento para seus leitores,
já que o desemprego é o grande fantasma do trabalhador.
Outra estratégia de Notícias Populares foi estabelecer um contraponto com as
obras de desfavelamento na Guanabara promovidas por Lacerda. O jornal mostrava o
“sucesso” dos núcleos residenciais “Vila Esperança”, “Vila Aliança” e “Vila Kennedy”,
na zona norte da cidade, para onde teriam sido removidos os moradores das favelas da
zona sul do Rio de Janeiro. Destacava, ainda, que até mesmo a criação de pequenas
indústrias estaria no programa do governador para propiciar condições de trabalho aos
ex-favelados que, deslocados de seu ambiente, encontrariam dificuldades para ganhar
seu sustento246. Com isso, o jornal pretendia capitalizar os dividendos políticos da
reforma urbana para a UDN e desqualificar a proposta do governo Goulart.
Ao valorizar as obras de Lacerda, o jornal omitia um dado fundamental: a
política de remoção das favelas foi marcada por forte tensão e conflito entre os
moradores e o governo. Os moradores protestavam contra a falta de espaço das
habitações, de um quarto e sala, e pela distância do seu local de trabalho, pois a maioria
trabalhava na zonal sul do Rio247. Mas esse protesto não poderia aparecer no Notícias
Populares, pois invalidaria as ações promovidas pela UDN em prol das classes
populares.
Entretanto, como dito, a abordagem da reforma urbana causava tensão no
discurso do Notícias Populares. Assim, a partir do dia 23 de março de 1964, o jornal
assumiu a posição de defensor do povo e fez denúncias diárias sobre o golpe dos
proprietários de imóveis a fim de burlar a lei do inquilinato proposta pelo governo
246
247
Notícias Populares, 19 mar. 1964:6.
Ferreira, 2011:159.
146
Goulart. O jornal descrevia o mecanismo do golpe e cobrava atitudes das autoridades
competentes com claro objetivo de firmar o vínculo com o seu leitor.
Por causa do forte apelo popular, Notícias Populares não se opunha
explicitamente às reformas. A polêmica não aludia à necessidade de reformas, mas ao
que se entendia por elas. Uma das intenções era esvaziar o seu sentido redistributivo
mais amplo, sem parecer reacionário para seus leitores. Entretanto, o principal objetivo
era tirar essa bandeira de João Goulart e das esquerdas. Ao apoiar projetos reformistas,
Goulart fortalecia suas bases de sustentação política, consolidando uma imagem de líder
dedicado aos interesses do povo. Para os setores do empresariado e políticos udenistas
representados pelo jornal, urgia impedir que isso acontecesse.
Tal qual Vargas? – o continuísmo de Goulart
Outro argumento importante para deslegitimar João Goulart e justificar a ofensiva
contra o seu governo foi a ideia de que presidente da República planejava um golpe
continuísta para se perpetuar no poder. Essa ideia decorria, em parte, do vínculo político
e ideológico de Goulart com o getulismo. Como avalia Motta, o fato de ser herdeiro
político de Vargas levava os setores liberais a verem Goulart como um líder com
vocação ditatorial, um político capaz de se apoiar nas massas para viabilizar um regime
autoritário248. A diferença entre eles estaria no fato de Goulart possuir inclinação para se
ligar às esquerdas e aos sindicalistas, grupos cujo apoio havia conquistado desde a sua
passagem pelo Ministério do Trabalho. Nesse sentido, era grande a especulação de que
suas alianças o levassem a instaurar uma ditadura no país.
Ao mesmo tempo, a suposição de que Goulart concebia um plano continuísta
ganhava verossimilhança à medida que a crise política de seu governo se tornava mais
248
Motta, R., 2006:142.
147
aguda e que ele próprio adotava medidas nessa direção249. O pedido de autorização ao
Congresso para que fosse decretado estado de sítio, em 4 de outubro de 1963, foi um
marco nesse sentido e reforçou a ideia de que o presidente da República planejava um
golpe.
No noticiário de Notícias Populares, Goulart era representado articulando vários
caminhos para o golpe. Um deles era a mobilização do movimento sindical à esquerda
com o objetivo de criar bases de apoio para um eventual regime autoritário. Esse
argumento levava, muitas vezes, à afirmação de que o seu interesse era criar uma
“república sindicalista” no Brasil, denúncia que o perseguia desde os anos de 1950,
quando assumiu o Ministério do Trabalho. No início dos anos de 1960, o argumento
voltava a ganhar força entre setores do empresariado e políticos udenistas, que
consideravam os sindicatos o principal suporte político do governo Goulart.
É preciso destacar que não existia uma definição clara do que poderia ser uma
“república sindicalista”. Havia apenas a sugestão de que seria um regime ditatorial
apoiado nos sindicatos. Eles assumiriam as atribuições que, no regime democrático, são
do Congresso. O presidente da República conferiria um poder a essas organizações que
ficariam acima dos partidos e instituições legais de representação.
Novamente, a questão colocada para o jornal era: que argumentos utilizar para
tornar um possível aumento do poder político dos sindicatos em algo negativo? Afinal,
muitos dos seus leitores possivelmente seriam trabalhadores sindicalizados.
A estratégia do Notícias Populares foi estabelecer uma dicotomia entre
“trabalhadores” e “subversivos” ao afirmar que apoio sindical dado a Goulart estava
restrito a uma minoria de sindicalistas “pelegos” e “comunistas”, que não representavam
249
Idem, Ibidem.
148
a maioria dos trabalhadores sindicalizados e seus interesses. Além disso, o jornal
encampava a tese do empresariado paulista e de políticos udenistas que limitava o papel
do sindicato às reivindicações trabalhistas, como mostrou a abordagem feita por
Notícias Populares sobre a “greve dos 700 mil”, discutida no capítulo anterior.
Assim, no dia 1 de novembro de 1963, por ocasião da “greve dos 700 mil”, em
São Paulo, o jornal trazia, como destaque, uma entrevista dada por Carlos Lacerda, na
qual o então governador da Guanabara procurava estabelecer laços entre Goulart e o
peronismo como “prova” da sua intenção em implantar uma “república sindicalista” no
Brasil. Segundo Lacerda, em 1951, Goulart teria afirmado que “apesar de não ser
peronista, era grande amigo e admirador de Perón”, já que aquele político “organizou a
Argentina de modo que, apertando um botão, desencadeava uma greve e, depois,
premindo outro, a fazia cessar”250.
Esse era mais um argumento utilizado pelo grupo de Levy para traçar, no
Notícias Populares, o perfil do presidente da República como um “caudilho” que, tal
como Perón, manobrava os sindicatos, insuflando artificialmente as crises, para
conseguir seu intento de permanecer no poder. No dia 18 de novembro de 1963, o jornal
publicava: “quando a crise se torna pior, verifica-se que uma palavra do presidente da
República faz com que o comando sindical denuncie ou chegue a entendimentos que
horas antes eram repudiados”251.
Mas, diferente da imagem construída nos anos de 1950, a ideia de “república
sindicalista” aparecia, no início de 1960, vinculada ao comunismo. A denúncia era que
Goulart insuflava a radicalização da esquerda e se aliava aos comunistas visando sua
permanência no poder. Vale lembrar que, na argumentação de Herbert Levy, Goulart
250
251
Notícias Populares, 1 nov.1963:4.
Notícias Populares, 18 nov 1963:4.
149
apesar de compor as forças da “extrema direita”, representadas pelo caudilhismo
redivivo, interessado apenas no poder, estabelecia alianças com a “extrema esquerda” a
fim de destruir o regime democrático liberal.
Assim, ao lado da matéria em que Lacerda denunciava as relações entre Goulart
e Perón, Notícias Populares publicava o discurso de Ademar de Barros em que o
governador de São Paulo afirmava que o “dispositivo sindical do presidente é, na
realidade, o dispositivo comunista”. A matéria, intitulada “Ademar: planejadas em
certos palácios agitações em São Paulo”, afirmava que Goulart e os comunistas
preparavam um golpe de Estado por meio dos movimentos grevistas. As greves seriam
deflagradas “por uma minoria, que articula a cúpula sindical com o governo federal,
tendo como objetivo criar um clima revolucionário para iniciar um golpe dirigido contra
as instituições democráticas”252.
Ainda no mês de novembro de 1963, Notícias Populares apresentou outra
“prova” de que Goulart se aliava às esquerdas, em especial aos comunistas, e
mobilizava o movimento sindical a fim de planejar um golpe continuísta: a remoção do
general Peri Bevilácqua do II exército.
O general Peri Bevilácqua, após a revolta dos sargentos, em setembro de 1963,
vinha dando declarações contendo críticas ao movimento sindical, especialmente às
intersindicais de esquerda, que haviam apoiado o movimento. Segundo ele, era preciso
“estar em guarda contra a solidariedade dos malfeitores sindicais, CGT, PAC, e FSD”.
Denunciava, também, a greve como “uma ditadura exercida por um pequeno grupo, em
252
Notícias Populares, 1 nov. 1963:4
150
nome do proletariado [portanto] não há motivos para escrúpulos de consciência ao tratar
grevistas como criminosos que são, em flagrante delito”253.
A reação dos políticos e sindicalistas à esquerda não tardou. Em nota conjunta, o
CGT, a FPN, a FMP e a UNE repudiaram as declarações do general e exigiam a sua
imediata exoneração. A solução encontrada por Goulart foi a promoção de Bevilácqua
para a chefia do Estado Maior das Forças Armadas, um cargo sem comando de
tropas254.
No discurso de Notícias Populares, a transferência do general foi tratada como a
prova do plano arquitetado por João Goulart para tomar o poder apoiado nos
“organismos sindicais espúrios”, divorciados dos interesses dos trabalhadores. Segundo
declarações de Herbert Levy ao jornal, Goulart teria removido todos os oficiais
anticomunistas de São Paulo para deixar caminho livre para que pudesse concretizar seu
golpe continuísta255.
A partir daí, Notícias Populares assumiu, como estratégia, um discurso de
defesa das instituições democráticas, para justificar as posições ofensivas contra o
governo Goulart.
Em novembro de 1963, o noticiário político do jornal abriu espaço para
denúncias feitas por Herbert Levy e outros políticos udenistas sobre uma suposta trama
de Goulart contra o Congresso Nacional. Segundo Levy, Goulart pretendia desmoralizar
a principal instituição representativa do país ao afirmar que o Congresso Nacional não
produzia nada em matéria legislativa e não votava as reformas de base. A “trama” faria
253
Ferreira, 2011: 363-364. Ver também Silva, 1975:226-230.
Ferreira, 2011:363-364.
255
Notícias Populares, 21 dez.1963.
254
151
parte das manobras continuístas do presidente que pretenderia, com isso, o fechamento
do Congresso.
No dia 19 de novembro, o jornal trazia, na capa, o título “Levy: nova trama
contra o Congresso”, e, na página 4, a reprodução de uma entrevista dada por ele ao
jornal O Globo, intitulada “Herbert Levy afirma que o presidente prepara outra ofensiva
contra o Congresso”. A matéria pretendia reverter as acusações feitas por Goulart e
pelas esquerdas de que o Congresso barrava as reformas de base. Levy alegava que era
o próprio governo e seu partido que armavam para que as reformas não fossem
aprovadas:
“[...] O Congresso empenhou-se, durante todos esses meses, na defesa da
preservação das instituições democráticas, denunciando e rechaçando –
como no caso do pedido do estado de sítio – manobras subversivas do
próprio governo federal [...] o Congresso repeliu reformas extremistas e
radicais, é certo, mas quem impediu a votação de proposições reformistas
cristãs e democráticas foi especialmente a representação do partido do
próprio presidente da República. [...] entende o deputado Herbert Levy que o
presidente João Goulart soma fatores de desagregação em todo o país,
buscando concretizar seus objetivos pessoais de continuísmo e subversão do
regime democrático [...]”256
Como discutido, no discurso de Notícias Populares, Goulart e o PTB não teriam
interesse verdadeiro nas reformas, pois seu objetivo era subverter a ordem para permitir
um golpe continuísta. Por isso a necessidade de deslegitimar o Congresso Nacional
diante da opinião pública, já que essa Casa teria se transformado no baluarte da
preservação das instituições democráticas contra as manobras do governo.
Outra denúncia era a de que, sob o pretexto das reformas, Goulart visaria, na
verdade, alterações constitucionais no sentido de abrir caminho para a continuidade. A
“tática” do presidente da República seria pregar as reformas de base com emendas
constitucionais para conseguir a alteração do capítulo das inelegibilidades, que proibia a
256
Notícias Populares, 19 nov. 1963:4.
152
reeleição presidencial ou a eleição de parentes para cargos executivos. A revisão desse
capítulo permitiria a Goulart ou Brizola, cunhado do presidente, concorrer às eleições
presidenciais previstas para 1965.
No dia 18 de novembro de 1963, era publicada a matéria intitulada “Goulart tem
compromisso com Brizola: possibilitar sua candidatura em 1965”. Segundo o jornal,
Goulart tinha uma preocupação política básica: viabilizar todos os meios para que
Brizola pudesse se candidatar à Presidência da República. O compromisso entre eles
teria começado em 1961, quando o então governador gaúcho liderou a campanha da
legalidade e, em troca, Goulart teria prometido que o apoiaria em 1965. As divergências
entre os dois cunhados seriam apenas de “tática”, pois estavam de acordo em que o
poder deveria “permanecer nas mãos da família”.
Vale destacar que a imagem construída sobre Brizola variava conforme a
estratégia política escolhida pelo jornal para deslegitimar sua figura. Assim, ora Brizola
era tratado como o “Fidel Castro brasileiro” ora era representado como um caudilho
interessado apenas no poder, tal como João Goulart.
A ideia de que Goulart preparava um golpe adquiriu maior intensidade a partir
de janeiro de 1964, quando Notícias Populares encampou a tese da “guerra
revolucionária” difundida por Bilac Pinto. Com a reprodução dos discursos de Bilac
Pinto, o jornal afirmava que João Goulart havia tentado golpear as instituições
democráticas em cinco ocasiões, entre elas a tentativa de implantar o estado de sítio, em
outubro de 1963. Mas, como não teria conseguido apoio das Forças Armadas, que se
mostravam legalistas, ele apelava para a “guerra civil, desencadeada com o poder
sindical que tem nas mãos e o grupo de onze pessoas organizadas revolucionariamente
pelo Sr Leonel Brizola”.
153
Como discutido, a divulgação da tese da “guerra revolucionária” foi utilizada
pelo jornal como apelo à mobilização popular contra Goulart. Ao mesmo tempo, abriu
espaço para que a ofensiva contra João Goulart fosse justificada a partir de posições
defensivas.
Entretanto, foi a partir do Comício da Central do Brasil, em 13 de março de
1964, que o rumo traçado pelo governo, segundo Notícias Populares, desaguaria
inexoravelmente num golpe. Segundo o jornal, sob a “demagogia das reformas”
esconder-se-ia o objetivo de um golpe contra as instituições democráticas. Segundo as
declarações de Herbert Levy:
“De fato, as máscaras foram desafiveladas e as ameaças que tantas vezes
denunciamos e advertimos a nação tornaram-se claras e inequívocas. Não
interessa reforma alguma, não interessa solução de problema algum. Só o
que está na mira do caudilhismo instaurado no poder é a permanência
neste além do prazo estabelecido na Constituição”257
No discurso de Notícias Populares, o comício estaria articulado com o projeto
golpista do governo que estimulava o confronto com as tradicionais instituições
representativas, como o Congresso Nacional, a fim de abalar o regime democrático.
Dessa forma, como porta voz do grupo de Levy, Notícias Populares negava
legitimidade à estratégia política das esquerdas, que valorizava a via extraparlamentar
para mudanças sociais. Apenas o legislativo, os partidos, as eleições, enfim, as
instituições que compõem o quadro de representação política na democracia liberal
eram consideradas meios legítimos de expressão política.
Após o comício, o jornal iniciou uma campanha em prol do impeachment de
João Goulart, sob a alegação de que ele estava pondo em risco as instituições
democráticas do país. No dia 25 de março de 1964, publicava declaração de Levy para
257
Notícias Populares, 16 mar. 1964:4.
154
quem “a nação prefere, claramente, uma Constituição sem presidente a um presidente
sem Constituição”. Com esse argumento, justificava a necessidade de impedimento de
Goulart.
O comício da Central provocou a consolidação das mobilizações anti- Goulart,
que tomavam para si o discurso da defesa da legalidade, como fizeram as esquerdas em
1961. Notícias Populares acionou esse discurso por meio de um importante instrumento
de luta política dos setores liberais paulistas: a leitura liberal da Revolução
Constitucionalista de 1932, centrada na ideia da defesa da democracia liberal e da
excepcionalidade paulista. Essa leitura sobre 32 foi mais uma das estratégias utilizadas
para dar combate ao governo de João Goulart e legitimar o golpe de Estado de 31 de
março de 1964 para seus leitores.
“32 +32=64.” A memória de 1932 e a alternativa liberal e “democrática”.
Um dos papéis de Notícias Populares, para Herbert Levy, seria criar um clima
favorável para que uma possível deposição do presidente da República fosse apoiada
por seus leitores. Para isso, uma das estratégias utilizadas pelo jornal foi difundir
elementos da cultura política liberal entre as classes populares. Assim, como parte da
grade de leitura oferecida pelo jornal estava uma visão do passado, sobre a “revolução
constitucionalista de 1932”, que foi utilizada como exemplo a ser seguido na “defesa
das instituições democráticas” contra João Goulart.
Como analisa Bernstein, as leituras do passado, que integram a cultura política
de um grupo, são mobilizadas nas lutas do presente. O passado é instrumentalizado de
modo a fornecer uma provisão de dados-chave, fatos simbólicos, personagens e
períodos que se revestem de caráter exemplar e mobilizam os membros de determinada
cultura política que tentam impor a sua concepção de mundo social, seus valores e o seu
155
domínio político. Lido em função dos acontecimentos e aspirações concretas do
presente, o passado se presta também à projeção de um futuro comum, na medida em
que serve de modelo a ser seguido ou rejeitado258.
A principal função da cultura política é que “ela constitui a base de
pertencimento político. É ela que leva o cidadão a se identificar quase instintivamente a
um grupo, a compreender facilmente seus discursos, a adotar sua ótica de análise, a
partilhar de seus objetivos (...)”259 levando indivíduos e grupos à ação política. Nesse
sentido, ao difundir uma cultura política liberal entre as classes populares, o objetivo do
jornal era conquistar o apoio dessas classes para o golpe que derrubou Goulart do poder.
Na conjuntura do início dos anos de 1960, o medo de uma suposta implantação de
ditadura por João Goulart, que poderia levar à comunização do país, arregimentou os
setores liberais paulistas que fizeram da luta contra o herdeiro político de Vargas um 32
redivivo.
Dessa forma, um dos temas mais candentes do jornal Notícias Populares foi a
ideia de que Goulart planejava uma intervenção no Estado de São Paulo, tal como fizera
seu mestre, Getúlio Vargas, em 1932. Entretanto, para concretizar seu golpe continuísta
e se perpetuar no poder, o presidente precisaria vencer a principal barreira que se
opunha aos seus intentos: o Estado de São Paulo, bastião da democracia liberal e da
normalidade constitucional.
Essa ideia ganhou força após a tentativa de decretação do estado de sítio, em
outubro de 1963. Um dos objetivos dos ministros militares de Goulart era intervir em
São Paulo para prender o governador Ademar de Barros que, naquele momento,
conspirava e desafiava publicamente o governo, como fazia Carlos Lacerda na
258
259
Bernstein, 2009:34.
Bernstein, 2009: 40.
156
Guanabara. O episódio forneceu munição aos setores representados por Herbert Levy,
que passaram a atacar o governo por meio do que, tomando de empréstimo expressão
cunhada por Marly Motta, chamamos de uma “estratégia da ameaça” 260 e que contou,
como incentivo, com uma leitura do passado, do movimento de 1932.
A “estratégia da ameaça” foi amplamente difundida por Notícias Populares e
estava baseada na ideia de que São Paulo, tal como em 1932, corria o perigo de perda da
sua autonomia com uma intervenção do governo federal que, aliado às esquerdas,
objetivava subverter a ordem democrática por meio da implantação de uma ditadura que
poderia levar o país ao comunismo. O fato de João Goulart ser herdeiro político de
Vargas facilitava a associação com os episódios de 1932. Dessa forma, assumindo
posições defensivas, incutindo a ideia de que São Paulo estava novamente ameaçado,
dessa vez pelo herdeiro de Vargas, os liberais paulistas passavam para a ofensiva contra
o governo, justificando-a com a ideia de que São Paulo era o único estado, no conjunto
da nação, capaz de defender a democracia e a normalidade constitucional. Por isso o
governo federal tinha planos de intervir nesse estado.
Em 31 de novembro, o jornal Notícias Populares publicava um discurso
proferido por Herbert Levy no Congresso Nacional, sob o título “Levy adverte aos
intervencionistas: São Paulo pegará em armas”:
“[...]Esclareceu o parlamentar udenista que „qualquer tentativa de
intervenção em São Paulo encontrará o estado de armas na mão.
Repetiremos 32 [...] o 32 voltado para a defesa da constituição e da
legalidade. É o 32 com o qual São Paulo se erguerá unido na defesa das
instituições democráticas‟[...] Herbert Levy [...] demonstrou sem deixar
dúvidas que se articula uma conspiração contra o estado que hoje é um das
260
Ao estudar as relações entre o governo federal e a Guanabara durante o governo de Carlos Lacerda
(1960-65), Marly Motta mostra como Lacerda utilizou-se da ameaça de intervenção do governo federal na
Guanabara como estratégia política acionada na disputa pelo governo estadual, em 1960, na oposição ao
governo João Goulart e, finalmente, na campanha para as eleições previstas para 1965. Motta, M., 2001.
157
barreiras que se erguem na defesa do país, ameaçado pelos propósitos
revolucionários pelo próprio governo da União.”261[grifos meus]
Vale destacar que, desde o término da guerra civil entre o Estado de São Paulo e
o governo federal presidido por Getúlio Vargas, em 1932, a “revolução
constitucionalista de 32”, como foi chamada pela memória liberal, que se tornou
dominante, foi convertida, pelos liberais paulistas, em um momento símbolo da luta da
democracia contra a ditadura, reforçando uma suposta identidade regional paulista
definida pelo “sentimento de excepcionalidade e liderança perante outros estados da
federação”262. No entanto, como mostram Santos e Mota, a intenção de
reconstitucionalizar o Brasil, tema que prevaleceu na memória liberal sobre o episódio
de 32, não era um fim em si, mas um meio para reconquistar a autonomia política
defendida pela elite política paulista e perdida com a centralização implantada por
Vargas. Segundo os autores:
“A causa constitucionalista dava guarida tanto aos que pretendiam restaurar
a radicalidade do federalismo que marcou as primeiras décadas da República
como também daqueles que vislumbravam a possibilidade de instaurar uma
nova ordem liberal e democrática no país, em substituição do regime
oligárquico” 263
No entanto, como toda memória guarda apenas parcialmente correspondência
com o real, sendo mobilizada e resignificada em função das lutas do presente, a
memória de 32 mobilizada pelos liberais paulistas na conjuntura do governo Goulart foi
apresentada como uma luta, defendida por todas as classes sociais de São Paulo, em
nome da nação, pela restauração da democracia e do constitucionalismo. Dessa forma,
essa versão do passado apagava tanto o fato de que, durante o conflito de 1932, a
identidade paulista tenha se definido pelo estabelecimento de uma clara alteridade em
261
Notícias Populares, 31 nov. 1963.
Mota, A.; Santos, 2010:7.
263
Mota, A.; Santos, 2010:17.
262
158
relação aos brasileiros presente, por exemplo, nos projetos separatistas que figuraram
entre alguns grupos envolvidos no conflito, como também de que 32 foi, no início, um
movimento articulado pelas elites políticas e que só com o desenrolar dos fatos e por
meio de uma forte campanha de persuasão popular abrangeu camadas mais amplas da
população264. No entanto, a atuação das elites políticas paulistas foi, pela memória
liberal, retratada como resultado da defesa dos interesses populares.
No início de 1964, em resposta à radicalização das esquerdas que assumiam a
ofensiva política e formulavam propostas de ruptura institucional, os liberais paulistas
capitaneados por Herbert Levy passaram a usar, como lema da sua arregimentação
contra o governo Goulart, a ideia de que 1964 era, até numericamente, o desdobramento
de 1932265. Nesse momento, o grupo de Herbert Levy, estreitando contatos entre a
cúpula da UDN e os militares, preparava-se para a possibilidade de um golpe de Estado
contra João Goulart, que seria desencadeado com a justificativa de defesa das
instituições democráticas contra o perigo comunista e as pretensões continuístas de João
Goulart; daí o farto uso político do passado por meio da memória sobre 1932.
Para dar ressonância popular a essa estratégia, o jornal Notícias Populares
pautou seu noticiário político pela ideia de excepcionalidade de São Paulo, considerado
“sentinela da democracia”. No dia 18 de janeiro de 1964, publicava o discurso do
deputado da UDN, Bilac Pinto, em que ele afirmava que “São Paulo é o estado melhor
preparado para enfrentar as forças antidemocráticas.” Logo abaixo da reprodução do
discurso do presidente da UDN, publicava o manifesto da Câmara Municipal de São
Paulo que afirmava: “[...] a herança cívica legada pelos heróicos revolucionários
constitucionalistas de 32 traduz-se hoje na firme disposição de manter São Paulo unido
264
265
Idem, Ibidem.
Silva,1975:247.
159
para a salvação do Brasil”.266 A tarefa do jornal era vender essa ideia aos seus leitores e,
dessa forma, convencê-los da necessidade de apoiar as ações contra Goulart.
Mas foi a partir da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada por
setores da elite paulista, em resposta ao comício de 13 de março de 1964, organizado
pelas esquerdas, que, na leitura dos liberais paulistas, um novo 32 estaria se iniciando.
Ao bradar pela defesa da intocabilidade do Congresso Nacional e da Constituição da
República, a Marcha da Família ocorria em São Paulo, em 19 de março de 1964, como
uma frente anticomunista e anti- Goulart, utilizando-se de diversos símbolos de 32
como hino, capacetes, etc., além de mitos como o do bandeirante paulista. Os laços
entre a marcha e a “tradição democrática” e antigetulista de São Paulo foram acionados
para mostrar que repulsa à “ditadura caudilhista” e ao comunismo estavam enraizadas
na tradição paulista. Não foi por coincidência que na primeira fileira marcharam os
voluntários paulistas de 1932, entre eles Herbert Levy e Herman Moraes de Barros.
Notícias Populares deu grande destaque à Marcha ao publicar grandes
manchetes, fotografias e discursos dos líderes udenistas, especialmente de Herbert
Levy.
Títulos como “Mobilização antigolpista: marcha com Deus é hoje”, “Povo
mobilizado contra o golpe”, “São Paulo de pé defende a democracia” foram recorrentes
no jornal e buscavam o engajamento dos seus leitores ao evento. O apoio popular era
fundamental nesse momento, pois daria legitimidade ao golpe que se preparava contra
Goulart. Conforme discutido no capítulo1, as lições de 1961 não tinham sido
esquecidas. Na edição do dia 20 de março de 1964, noticiava:
“São Paulo veio às ruas para defender a democracia [...] para proclamar a
intocabilidade do Congresso Nacional e da constituição da república
[...]eram estudantes, operários, donas de casa, religiosos, gente de todas as
266
Notícias Populares, 18 jan. 1964:4
160
classes [...] falou o deputado Herbert Levy: „ a vinda do povo em massa à
praça da Sé neste momento histórico, significa que o povo brasileiro não
quer a ditadura, o povo não quer o comunismo [...]. São Paulo inteiro
em praça pública revivendo o espírito de 32. Os lenços brancos lembram a
defesa da constituição feita com nosso sangue. E se São Paulo precisar, nós
todos, iremos, velhos, moços e até meninos para a trincheira de 32
defender a Constituição e a liberdade.[...]. Após as palavras de Herbert
Levy, a banda da guarda civil executava a marcha Paris Belfort, o hino da
revolução constitucionalista de 1932 [...] vários capacetes da revolução
eram notados em meio à passeata, eram os ex-combatentes tomando
parte da marcha [...]” [grifos meus]
Na última página, voltava a noticiar:
“São Paulo reviveu ontem as suas grandes e memoráveis jornadas cívicas,
aquelas mesmas jornadas que fizeram tremular, ao lado do pavilhão
nacional, sua invita bandeira das treze listas. O mesmo espírito indômito
que norteou os passos dos bandeirantes de antanho, que conduziu os
rumos das gentes de 1932, animou ontem o povo de São Paulo na grande
passeata [...]” [ grifos meus]
Tal como a memória oficial estabelecida sobre 1932, a Marcha, apesar de ter
sido um fenômeno predominantemente de elite e classe média, foi retratada por Notícias
Populares, como uma manifestação de todas as classes sociais de São Paulo, a fim de
conferir legitimidade popular ao movimento.
Outro símbolo apropriado da memória de 32 e difundido pelo jornal foi a ideia
de que São Paulo era defensor de uma causa nunca vencida: a da legalidade e defesa da
constituição. Essa ideia da “São Paulo invicta” remetia à memória elaborada sobre 1932
que defendia que o movimento, apesar de derrotado nas trincheiras, havia triunfado
moralmente, pois conseguira a convocação da Assembleia Constituinte de 1934. Dessa
forma, a Marcha de 1964 era encarada como o prelúdio de 32, ideia sintetizada nos
cartazes publicados no jornal que estampavam: “32+32=64”.
Mas, se a Marcha da Família foi considerada o despertar de um novo espírito de
32, o golpe que derrubou João Goulart, em abril de 64, foi interpretado como a sua
concretização, era o 32 redivivo. Por meio do Notícias Populares, o grupo de Levy
apresentou e justificou o golpe, para as classes populares, como a solução para a defesa
161
da ordem liberal democrática que, no seu discurso, estava ameaçada por Goulart,
representando a “extrema direita”, o caudilhismo redivivo, e pela extrema esquerda,
interessada na comunização do país. No dia 10 de abril de 1964, Notícias Populares por
meio de uma pedagogia que associava 1932 a 1964 e mobilizava heróis, eventos e
símbolos, publicava, com grande destaque:
“Nunca foi tão atual e tão presente como agora recordar e reviver a epopéia
da revolução constitucionalista de 1932, movimento armado que levantou
todo um estado da federação contra uma ditadura que negava uma
constituição à Nação. Nestes conturbados dias de crise político-militar,
quando se erguem todas as forças vivas da nacionalidade para defender a
democracia e as nossas tradições de país livre, os idos de 32 afloram mais
vivos e mais emocionantes, marcados pelos episódios de heroísmo, de
renúncia e de sacrifício sem par na história paulista [...]”267 [grifos meus]
Finalmente, as comemorações do 9 de julho de 1964 foram estampadas pelas
páginas do jornal como a grande festa das “duas revoluções”, a de 32 e a de 64. O golpe
de 1964 foi visto como o desfecho dos esforços iniciados em 1932:
“[...] o Sr. Herbert Levy acentuou que a maior homenagem que podemos
prestar ao movimento de 32 é dizer que, afinal, em 1964 foi efetivado o
coroamento desses esforços, no momento em que os desvios do
caudilhismo já não se apresentavam com contornos mais ou menos tênues,
mas com intenções indisfarçáveis de colocá-los sob um regime ditatorial”
[grifos meus]268.
Dessa forma, Notícias Populares revestia o golpe com o manto do legalismo
constitucional e enfatizava a vitória da alternativa “democrática” e liberal contra a
ameaça de duas forças extremistas: a “extrema direita”, representada pelo caudilhismo
redivivo em João Goulart, e a “extrema esquerda”, interessada na comunização do país.
267
268
Notícias Populares, 10 abr.1964:3
Notícias Populares, 10 jul.1964:4
162
Por meio da veiculação de elementos da cultura política liberal, de imagens e
representações difundidas sobre João Goulart e as esquerdas, Notícias Populares
pretendia que seus leitores compreendessem e apoiassem a deposição de Goulart como a
melhor solução para resolver os problemas que o país enfrentava.
Ao mesmo tempo, o forte investimento do jornal em um noticiário político
voltado para deslegitimar João Goulart e as esquerdas perante as classes populares
comprova a importância estratégica assumida por essas classes na luta política do
período. Afinal, desde os episódios de 1961, as classes populares foram reconhecidas
como interlocutores políticos estratégicos que precisavam ser conquistados.
Compreende-se, portanto, a importância que Notícias Populares assumiu para a luta
política empreendida por Herbert Levy.
163
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta dissertação, tive como objetivo pesquisar o papel que o jornal Notícias
Populares exerceu nas estratégias políticas de Herbert Levy contra João Goulart e os
grupos de esquerda (1961-1964). Para tanto, analisei a percepção de Levy sobre a
atuação das classes populares urbanas, bem como a relação que pretendeu estabelecer
com elas. Também analisei o discurso do Notícias Populares, que se mostrou
fundamental para a compreensão do seu papel na luta política do período.
A historiografia sobre o tema aponta para a “função despolitizadora” do jornal.
Segundo Goldenstein, criado para “roubar” o público do Última Hora/São Paulo, o
objetivo do Notícias Populares não era conseguir o apoio político das classes populares,
mas neutralizá-las por meio da sua despolitização. Por isso Notícias Populares teria sido
um jornal político, mas que não tratava de temas da política formal. O seu noticiário
seria pautado pela fórmula “sexo, crime, esportes”. O recurso ao sensacionalismo se
relacionaria a uma “visão liberal oligárquica” do grupo de Levy, incapaz de reconhecer
as classes populares como um interlocutor legítimo, bem como uma forma de excluí-las
da cena política.
Entretanto, a análise feita, nesta dissertação, mostrou outra postura do grupo de
Levy, em relação às classes populares, que permite matizar a análise de Goldenstein.
Um conjunto de eventos ocorridos nos primeiros anos da década, sustentados por ampla
campanha popular – luta pela posse de Goulart (1961), a campanha do plebiscito
(1962), o crescimento eleitoral do PTB (1962), a vitória do presidencialismo (1963) –,
evidenciou a necessidade de ampliar a base de apoio aos setores de oposição ao
governo. Na visão de Levy, as estratégias do presidente e dos grupos de esquerda só
teriam sucesso se fossem respaldadas pela ação dos movimentos populares. Daí o seu
empenho em conquistar e subtrair as classes populares urbanas da influência de João
164
Goulart e das esquerdas. A disputa pelo apoio dessas classes apareceu tanto na sua
atuação junto aos sindicatos operários quanto na própria iniciativa de fazer um jornal
como o Notícias Populares.
A ênfase dada pelo jornal ao noticiário político, que chegou a ocupar metade das
matérias redacionais, e o forte empenho em formular um discurso anti- Goulart e
anticomunista, revelou como o apoio das classes populares urbanas foi percebido como
imprescindível para que as ações contra João Goulart obtivessem sucesso. As classes
populares foram reconhecidas como atores políticos estratégicos que precisavam ser
conquistados.
Mas esse reconhecimento foi feito sob tensão, já que a ação política das classes
populares, consideradas carentes de qualificação cultural, era atribuída à manipulação
de João Goulart e dos grupos de esquerda. Daí a ambiguidade em considerar o povo ora
como “plebs” ora como “populus”, que apareceu nas representações elaboradas pelo
Notícias Populares. Pois se, de um lado, o grupo de Levy, pautado pela defesa de um
liberalismo baseado na ideia da presciência das elites, foi obrigado, pela realidade das
mobilizações populares, a reconhecer o povo como sujeito político que precisava ser
conquistado, por outro, continuava resistindo em reconhecê-lo como um setor formado
por cidadãos políticos dotados de plena autonomia.
Ao mesmo tempo, Notícias Populares construiu um discurso que definia os
limites do comportamento político das classes populares. O lugar da cidadania, para
essas classes, estaria no trabalho ou em uma ação política limitada aos “valores cristãos
e democráticos”, ou seja, desde que fosse contrário ao governo Goulart e às esquerdas;
daí o investimento do jornal em conclamar as classes populares à Marcha da Família,
em março de 1964.
165
Nesse sentido, Notícias Populares se tornou um instrumento estratégico de luta
política, na medida em que coube a ele divulgar as ideias, os valores e as propostas do
grupo de Levy às classes populares leitoras do jornal. Por meio de seu discurso, buscou,
ainda, difundir elementos de uma cultura política liberal. Dessa forma, procurava
convencer seus leitores a apoiar a deposição do governo Goulart como a melhor solução
para o país. Entretanto, como dito, a produção do discurso anti-Goulart por Notícias
Populares não significa que tenha impressionado o público ou que sua mensagem tenha
sido interpretada da maneira desejada. Para elucidar essa questão, são necessárias
pesquisas específicas sobre a recepção da mensagem do jornal pelo seu público.
Com o golpe em 1964, as classes populares foram neutralizadas e as esquerdas
reprimidas. Com seu objetivo político concretizado, Herbert Levy perdeu interesse pelo
jornal, vendendo-o, no ano seguinte, para o Grupo Folha da Manhã, de Octávio Frias de
Oliveira e Carlos Caldeira Filho, que também comprou o jornal Última Hora, de
Samuel Wainer. Afinal, não havia mais motivos para que os dois jornais se
apresentassem em campos políticos opostos. Notícias Populares foi publicado pelo
Grupo Folha de 1965 a 2001. Nesse período, ele ficou conhecido como um jornal
predominantemente sensacionalista.
166
FONTES E BIBLIOGRAFIA
Jornais
Notícias Populares, São Paulo, 1963-1964.
O Estado de São Paulo, São Paulo, 1961-1964.
Última Hora, São Paulo, 1963- 1964.
Publicações Oficiais
Brasil. Câmara dos Deputados. Anais da Câmara dos Deputados. 1961-1964.
Obras Gerais
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172
ANEXO :- Imagens digitalizadas do jornal Notícias Populares.
Imagem 1: Notícias Populares, 16 de janeiro de 1963, p.1.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Na primeira página, Notícias Populares, em meio ao sorriso de Brigite Bardot e aos
golpes de “peixeira”, destacava o “caos social” provocado greves e o apelo público de
Bilac Pinto à mobilização popular contra o comunismo.
173
Imagem 2: Notícias Populares, 19 de março de 1964, p1.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
A ideia do apoio popular à Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi destaque da
edição do dia 19 de março de 1964.
174
Imagem 3: Notícias Populares, 19 de março de 1963, p.4.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Notícias Populares convocou os leitores à Marcha da Família como meio de defesa da
democracia brasileira supostamente ameaçada pelo presidente João Goulart.
175
Imagem 4: Notícias Populares, 20 de março de 1964, p.6.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
A ideia de São Paulo como baluarte da democracia e de um novo “1932” foi um dos
principais elementos da cultura política liberal difundida pelo jornal. Notícias Populares
veiculava, ainda, a atuação política de Herbet Levy, seu proprietário, expoente da UDN
e ex-combatente da “Revolução Constitucionalista”.
176
Imagem 5: Notícias Populares, 20 de março de 1964, p.12.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
A Marcha da Família e a ideia de São Paulo como baluarte da democracia ocupou até a
última página do jornal, substituindo as notícias policiais e esportivas.
177
Imagem 6: Notícias Populares, 1 de abril de 1964, p.1.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
O apoio ao golpe e a ideia de união nacional contra o governo Goulart e o perigo
comunista foi a tônica da edição do dia 1 de abril de 1964.
178
Imagem 7: Notícias Populares, 2 de abril de 1964, p.1.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
João Goulart e Leonel Brizola foram deslegitimados enquanto líderes populares. Houve
ainda o empenho em apontar o golpe como solução para livrar o Brasil da presença
comunista.
179
180