estácio de sá ciências humanas
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ISSN 1984-2848 ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS REVISTA DA FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE GOÂNIA SESES - GO Vol. 02, N. 9, JULHO 2013 / JANEIRO 2014 FICHA CATALOGRÁFICA DA REVISTA DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CPI) FACULDADE DE GOIÁS CATALOGAÇÃO NA FONTE / BIBLIOTECA FAGO JAQUELINE R. YOSHIDA – BIBLIOTECÁRIA – CRB 1901 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e (org.). Revista de Ciências Humanas da Faculdade Estácio de Sá de Goiás-FESGO. Goiânia, GO, v. 02, nº 09, Jul. 2013/Jan. 2014. ISSN 1984-2848 Nota: Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiás – FESGO. I. Ciências Humanas. II. Título: Revista de Ciências Humanas. III. Publicações Científicas. CDD 300 ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ GOIÁS – FESGO VOLUME 02, n. 09, Jul. 2013/Jan. 2014 PERIODICIDADE: SEMESTRAL ISSN: 1984-2848 Cursos de da Faculdade Estácio de Sá de Goiás: Administração Enfermagem Farmácia Educação Física Fisioterapia Psicologia Recursos Humanos Redes de Computadores Editoria Científica: Edmar Aparecido de Barra e Lopes Nildo Viana Conselho Editorial Executivo: Anderson de Brito Rodrigues Cleyson M. Mello Edmar Aparecido de Barra e Lopes Eguimar Felício Chaveiro Jaqueline Veloso Portela de Araujo Nildo Silva Viana Conselho Editorial Consultivo: Claudio Luiz Correia de Freitas Edicassia Rodrigues de Morais Cardoso Edmar Aparecido de Barra e Lopes Elisa Mara Silveira Fernandes Leão Jose Walber Borges Pinheiro Margareth Ribeiro Machado Santos Silva Maria Aparecida Teles Rocha Nildo Viana Paulo Henrique Castanheira Vasconcelos Tadeu Alencar Arraes Valdeniza Maria Lopes da Barra Equipe Técnica: Editoração Eletrônica, Coordenação Gráfica, Capa e Revisão de Texto em Inglês: Edclio Consultoria: Editorial Pesquisa e Comunicação Ltda Projeto Editorial, Projeto Gráfico, Preparação, Revisão Geral: Edmar Aparecido de Barra e Lopes Revisão Técnica: Josiane dos Santos Lima Endereço para correspondência Address for correspondence: Rua, 67-A, número 216 – Setor Norte Ferroviário, Goiânia-GO - Brasil CEP: 74.063-331 Coordenação do Núcleo de Pesquisa Informações: Tel.: (62) 3212-0088 Email: [email protected] FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ GOIÁS - FESGO Diretora Geral Sirle Maria dos Santos Vieira Gerente Acadêmico Sandra Regina Silva Santos Regulatório Sue Christine Siqueira Editor Científico Edmar Aparecido de Barra e Lopes Coordenador de Pesquisa e Extensão Edmar Aparecido de Barra e Lopes COORDENADORES(AS) DE CURSOS E NÚCLEOS Coordenação de Enfermagem Enilsa Vicente Ferreira Coordenação de Administração Ana Cláudia Pereira de Siqueira Guedes Coordenação de Gestão de Recursos Humanos Maristela Monteiro Oliveira Coordenação de Farmácia Edson Sidião de Souza Júnior Coordenação de Fisioterapia Kliver Antônio Marin Coordenação de Educação Física Eduardo Henrique de Assis Coordenação de Psicologia Andreia Costa Rabelo Mendonça Coordenação de Redes de Computadores Marcelo Almeida Gonzaga Coordenação de Coordenadora do EAD Mara Silvia dos Santos Estácio de Sá Goiás - FESGO www.go.estacio.br Fones: (62) 3601-4937 SUMÁRIO ARTIGOS 08-23 DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA E INOVADOR AMANDA OLIVEIRA MAGALHÃES 24-32 DINHEIRO ELETRÔNICO E AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL CLEITO PEREIRA DOS SANTOS 33-40 EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO VISANDO A INCLUSÃO DIGITAL DE PESSOAS ADULTAS FLÁVIA VALÉRIA C. BRAGA MELO DIÓRGENES DOS SANTOS JUNILSON DIAS BARBOSA 41-59 MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA NILDO VIANA 60-71 MÚSICA SERTANEJA UNIVERSITÁRIA E VALORES DOMINANTES: UM ESTUDO DO DISCURSO DAS CANÇÕES E SUA RELAÇÃO COM OS VALORES SOCIAIS CAPITALISTAS GABRIEL TELES VIANA FELIPE MATEUS DE ALMEIDA 72-83 MARX E SATRE: MÉTODO DIALÉTICO E REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS MARIA ANGÉLICA PEIXOTO 84-94 QUESTÕES SOBRE MERCADORIA E CONSUMO EM KARL MARX ERISVALDO SOUZA 95-99 U M PENSAR SO BRE A ÉTICA NAS RELAÇÕES DOCENTE E ALUNO NO ENSINO SUPERIOR MARIANA SIQUEIRA SILVA 100-112 CONCEPÇÃO MARXISTA ACERCA DA NOÇÃO DE INTELECTUAL LEONARDO VENICIUS PARREIRA PROTO 113-125 JUVENTUDE E UTOPIA ANDRÉ DE MELO SANTOS 126-139 O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NA SUCESSÃO DE REGIMES DE ACUMULAÇÃO MATEUS ORIO 140-161 A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE OS AMBULANTES/FEIRANTES DA REGIAO CENTRAL DE GOIÂNIA ENTRE 1970 E 2012: NEGOCIAÇÕES DISCURSIVAS COM A MEMÓRIA DA HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL SOBRE SUJEITOS ESQUECIDOS DO MUNDO DO TRABALHO EDMAR APARECIDO DE BARRA E LOPES _________________________ ARTIGOS 8 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA E INOVADORA Amanda Oliveira Magalhães RESUMO ABSTRACT A universidade contemporânea confronta-se com uma realidade que tem gerado vários desafios relacionados aos processos de formação de professores. Na perspectiva de ruptura com o paradigma atual surge uma série de estudos sobre inovações, buscando uma dimensão emancipatória. Neste artigo reflete-se sobre docência universitária, inovação seguinte as orientações de um novo paradigma – o da complexidade. Apresenta-se neste artigo a análise de práticas pedagógicas consideradas inovadoras, por alunos do curso Psicologia, disciplinas de Metodologia Científica e Oratória, em função dos objetivos alcançados no processo ensinoaprendizagem. Buscou-se verificar se os pressupostos da Teoria da Complexidade podem auxiliar na redefinição das práticas pedagógicas nos cursos de formação. Pode-se resumir que a inovação é esperada e ajuda na promoção da conscientização o que marcou definitivamente a relação dos alunos com o objeto de conhecimento, além de favorecer a autonomia e a confiança. The contemporary university is faced with a reality that has generated a number of challenges related to the processes of teacher training. In the perspective of a break with the current paradigm arises a series of studies on innovations, seeking an emancipatory dimension. This article reflects on university teaching, innovation follows the guidelines of a new paradigm - that of complexity. This paper presents the analysis of innovative pedagogical practices considered by students of psychology, disciplines of scientific methodology and Oratory, depending on the objectives achieved in the teaching-learning process. This research sought to verify the assumptions of Complexity Theory may help redefine the pedagogical practices in training courses. This research sought to verify the assumptions of Complexity Theory may help redefine the pedagogical practices in training courses. It can be summarized that innovation is expected and helps in promoting awareness which definitely marked the relationship of the students with the knowledge object, besides favoring Palavras-chave: Docência Universitária. Inovação. autonomy and confidence. Complexidade. Processo de Formação. Keywords: University teaching. Innovation. Complexity. Teachers’ formation. Universidade brasileira e sua crise no século XXI Dizer que as universidades brasileiras estão em crise parece expressar um julgamento consensual a respeito de uma instituição que vive sérios problemas, mesmo quando se fala das universidades particulares. Ambas, pública e particular, passam por problemas de difícil solução que se expressam tanto no modelo pedagógico quanto na pesquisa e saberes produzidos. Essa crise relaciona-se também a questão da mercantilização do ensino superior, que conforme é discutido por 9 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. Santos (2000), estes sinais manifesta amplos aspectos entre si relacionados, compreendidos pelo mesmo autor como sendo a expressão da crise de hegemonia, de legitimidade e institucional. No caso da perda da hegemonia tem-se que a universidade brasileira enfrenta atribuições funcionais contraditórias, uma vez que, além de produtora da alta cultura e formadora das elites, atualmente é também produtora de padrões culturais médios e de conhecimentos instrumentais, responsáveis pela formação de mão-de-obra qualificada. A crise de legitimidade representa a perda da consensualidade que outorgava à universidade o papel de organizadora do conhecimento, a universidade entra nesse aspecto da crise ao se consumar a hierarquização dos saberes especializados. Já a crise institucional diz respeito a perda da autonomia universitária, em função do atual quadro de políticas públicas, crise que afeta sobretudo o ensino superior público, mas também o particular, que modifica o papel das universidades no campo da responsabilidade social, pois exige que tenham eficácia de natureza empresarial. Entende-se que a universidade passou a ser intimada a participar mais diretamente de outras relações sociais, sejam de produção, ou de emancipação. Priorizando as crises descritas por Santos (2005), no caso do Brasil, é possível destacar seu aciramento em função das argumentações históricas contextuais na década de 1990, quando agudizou-se a descaracterização intelectual entre os professores das universidades, com a superfragmentação e desvalorização dos diplomas universitários, em geral. Santos A. C. (2007, p.318) é crítico ao comentar esse processo: a “universidade, de produtora para o mercado, passou a se produzir como mercado”. Desde então, vários discursos críticos e metáforas foram elaborados sobre a crise das universidades, além de serem altamente sugestivos, também revelam que ela não se restringe à América Latina, afeta todas as instituições que se encontram sujeitas aos efeitos desagregadores das políticas educacionais neoliberais. Criticamente analisando, de certo modo, a crise que envolve as universidades expressa também o processo de precarização do espaço universitário, fazendo com que se diminua sua importância na formação integral dos alunos. Aqui cabe a expressão de uma contradição, ao mesmo tempo que se tem uma gama enorme de novas instituições formadoras, de financiamentos, bolsas de estudos, e outras ações que favorecem a entrada dos alunos nas universidades, o que se percebe é que a cada dia caminha-se à perda da identidade nacional e da cultura, ao enfraquecimento da tecnologia e à baixa resolução dos complexos conflitos sociais (TRINDADE, 1999). Mesmo na versão nacional da referida crise, tem-se que as políticas governamentais optaram por uma estratégia de incentivo à iniciativa privada, engendrando uma sintonia fina entre o 10 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. Ministério da Educação (MEC) e o pensamento do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com vista a implantar a reforma universitária, cuja lógica da produtividade transformou as universidades em instituições operacionais (CHAUÍ, 1999). Sob a mesma lógica da produtividade, é fácil observar como os padrões de avaliação assumem muito mais prestígio do que os de emancipação, isso acirra os desafios relacionados aos processos de formação, e envolve seriamente os professores universitários. Nessa contextualidade, parece que inovar pode ser uma maneira de reagir a um modelo político que mostra-se perverso e se impõe, e no campo da docência universitária, significa manifestar a vontade de tornar o ato educativo um fazer pedagógico que traduza a preocupação com a formação do ser humano integral, autônomo, cônscio e emancipado. O que se propõe é inovação, muito embora, como se sabe, em sua geração, a inovação carregue o ônus da complexidade da iniciativa, não há como negar que convive-se com a urgência de fazer vigorar uma perspectiva transformadora, se existe a imposibilidade de mudar a instituição formadora, quem sabe iniciar pelos cursos formadores? Essa é a proposta desta reflexão, leva-se em consideração a crise que envolve as universidades, em função das demandas por uma formação que atenda o mercado de trabalho, mas entende-se que é preciso inspirar a reinvenção de cenários pedagógicos tão inovadores quanto possível, aplicar-se na criação e articulação de saberes que respondam as exigências atuais quanto a formação, ao mesmo tempo ajudar na construção mais dinâmica do pensar dos alunos. Quiçá, seja possível elaborar práticas pedagógica que ajudem os sujeitos a superarem conformismos cognitivos e intelectuais, de forma que os alunos se tornam mais criativos e interventivos no social (MORIN, 1991). Docência universitária: uma perspectiva inovadora baseada na teoria da complexidade Os pressupostos construídos historicamente para a docência universitária brasileira, quando não traduzem uma concepção de docência alicerçada na compreensão epistemológica da ciência moderna, remetem-nos à um grande paradoxo: o não-lugar da formação. Para o exercício da docência na educação infantil, fundamental e média, por exemplo, há exigência legal de formação específica o que não acontece quando se trata da educação superior. Uma referência importante dessa discussão pode ser localizada no artigo 206 da Constituição Federal (1988) e na Lei de Diretrizes e Bases - LDB (Lei 9.394/96), que exigem a formação do professor em curso superior para os vários níveis de ensino, menos o universitário. Esse estado de coisas legitima a seguinte ideia: quem sabe fazer sabe ensinar. 11 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. Esse não-lugar de formação coloca a possibilidade de a docência universitária ser realizada a partir de elementos que o professor traz de sua trajetória de aluno e/ou de esquemas prévios e/ou da rotina que lhe é colocada, conhecimento que não é suficiente para o exercício da docência, além de reforçar significativamente uma epistemologia da prática, cujo principal objetivo parece ser apenas “montar o aluno” em ritmo fordista. Um avanço nas discussões sobre a docência universitária já passa pela profissionalidade, saberes, práticas, e por elementos não menos concretos, como: a tradição, a cultura, a subjetividade dos envolvidos, valores, a política, a ampliação do ensino privado, os marcos regulatórios do Estado e suas agências, a pressão das agências internacionais de financiamento, a exigência da produtividade quantitativa, as exigências do mercado, o aumento da carga de trabalho dos docentes, os baixos salários, e a desvalorização dos professores, aspectos que se não fizerem parte das reflexões no campo da docência, faz com que ela seja vista como uma profissão paralela, um “bico”. Vale ressaltar que historicamente a licenciatura é um grau complementar e opcional, e tem desaparecido dos cursos de formação, o que manifesta sua desvalorização, bem como deste campo de atuação profissional. Como conseqüência, a preocupação com os conteúdos pedagógicos ficou distante da formação do professor universitário, mas é preciso reconhecer que se existe a necessidade de saberes próprios (do professor) para o exercício da profissão, no ensino superior, também há a necessidade de um saber pedagógico presente, o que hoje é estudado pelo campo denominado - pedagogia universitária. Pode-se afirmar que os estudos produzidos no campo têm ajudado o professor universitário a “ser professor”, refletir sobre essa função, ocupar o espaço da docência consigo mesmo, com seus pares (estudantes e outros professores) e com a instituição em que trabalha. Neste mesmo campo tem ganhado destaque a temática inovação, ela tem recebido a atenção de vários pesquisadores que atuam no campo da pedagogia universitária, sob vários aspectos: currículos dos cursos, atividades extracurriculares, processos de parcerias com a sociedade, formas de gestão, novas tecnologias, estágio, e outros, estudos que também indicam que a compreensão do que vem a ser inovação na docência exige vários olhares (FREIRE e SHOR, 1986; CONTRERAS, 1997; SACRISTAN, 1999; VEIGA, RESENDE E FONSECA, 2002; VEIGA e CASTANHO, 2000; CUNHA, 2001; CUNHA e LUCARELLI, 2007). Neste sentido, para definir o conceito de inovação que aqui relaciona-se à docência, é preciso destacar as contribuições de Freire (1975, 1980, 1992, 1996), no que se refere às ideias pedagógicas contemporâneas inovadoras. Mesmo não tomando a docência inovadora como ponto 12 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. particular de análise, Freire delineou uma revolucionária forma de ver a educação e seus agentes. Para ele somente um professor compromissado com um projeto pedagógico e político-social pode promover uma docência inovadora com vistas a superar a atual racionalidade técnica. Em parceria com Schor, traçou elementos fundamentais para que os professores entendessem melhor a construção de seus saberes profissionais, valorizando os chamados saberes da prática, além de promover uma educação com base em uma perspectiva historicamente construída (FREIRE e SCHOR, 1986), o que contribui significativamente com o processo ensino aprendizagem dos alunos e implemento da criatividade e criticidade na sala de aula. Fechando a articulação docência universitária e inovação, tem-se em Lucarelli (2000) o destaque da necessidade de alterações nas relações unilaterais de uma classe tradicional. Para a autora, ao mudar as relações unilaterais, alteraria-se o sistema intersubjetivo do estudante como sujeito, ainda que a aula universitária não esgote todas as suas estruturas subjetivas. Sendo assim, entende-se que a inovação na educação universitária, passa a reunir ideias de progressão, de novo, de intencionalidade, de aperfeiçoamento consciente, e emancipação. Com Fuenzalida (1993) e Cunha (2004; 1998) constroi-se o conceito de inovação que significa promover a ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; significa também desenvolver uma gestão participativa, por meio da qual os sujeitos do processo inovador (sala de aula) sejam protagonistas da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados. Também significa promover a mediação entre as subjetividades dos envolvidos e o conhecimento, englobando a dimensão das relações e da sensibilidade, do respeito mútuo, dos laços que se estabelecem entre os sujeitos e o que se propõe a conhecer. Em termos de concepção pedagógica, ainda é necessário acrescentar a proposta de Hargreaves (1998, p. 218): uma docência inovadora necessita ter como “princípio a colaboração mútua”, o que nos encaminha para a compreensão de que a mudança no âmbito da docência universitária inclui, ao mesmo tempo, mudanças paradigmáticas, mas importante mudanças nos sujeitos e em suas formas de pensar e agir. Parece que este é um ponto crucial, ou seja, as características de uma ação docente inovadora ligam-se ao esforço humano, mas sem dúvida, no nosso tempo histórico passa também pelo alicerçar novas bases epistemológicas, como sugeridas pelo paradigma da Complexidade. Para esclarecer, julga-se que os caminhos propostos pela Complexidade podem ajudar na constituição de uma nova forma de pensamento – o complexo. Esse seria importante norteador de novas condutas, estruturante de importantes formas de ver, ser, estar e agir no mundo. Em Morin 13 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. (1991) tem-se que a complexidade exige um pensamento que não separa, não é disjuntivo como o pensamento cartesiano (que separa em pares cada vez menores para compreender o objeto), ao contrário, une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos da vida humana. Resumidamente, trata-se de um pensamento que integra os diferentes modos de pensar, que considera todas as influências recebidas (internas e externas) na construção do conhecimento e, ainda ajuda a enfrentar a incerteza e a contradição presentes no viver, reforçando o conviver solidário. A base epistemológica da complexidade advém de três teorias surgidas na década de 1940: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas, cujos impactos e aplicações práticas só se manifestariam mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Com bases nestas três teorias (informação, cibernética e sistema), o pensamento complexo se sustenta, metaforicamente, através de três princípios: o dialógico, recursão e o hologramático. Para Morin (1999) o princípio dialógico permite manter a dualidade no seio da unidade. O termo dialógico quer dizer que duas lógicas, dois princípios que estão unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade, como por exemplo claro-escuro, amigo-inimigo, na lógica cartesiana esses e muitos outros seriam pares inconsiliáveis, mas com este princípio é possível e esperado o diálogo dos opostos. Neste sentido, esse princípio ajuda o pensamento associar dois termos, complementares e antagônicos, ao mesmo tempo, pois para a dialogia os antagonismos podem ser estimuladores e reguladores. O segundo princípio é o da recursividade organizacional, a partir do qual os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz. Por exemplo, a sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas, essa mesma sociedade, uma vez produzida, retroatua sobre os indivíduos e os produz. Com o princípio hologramático, entende-se que não só as partes estão no todo, mas também o todo está nas partes. A ideia do holograma nos ajuda a compreender que o indivíduo é parte da sociedade e a sociedade está presente em cada indivíduo por meio da linguagem, da cultura, e de valores. Essa separação entre os princípios é apenas didática, pois estes articulam-se simultaneamente buscando a superação da lógica linear, aquela velha conhecida instituída nos processos formativos. O pensamento complexo aspira a superação de uma prática pedagógica organizada nos moldes da disjunção dos pares binários, tais como: simples-complexo, parte-todo, local-global, unidade-diversidade, particular-universal, subjetivo-objetivo, procura envolver a superação da descontextualização do agir pedagógico tão enraizada na universidade, da subdivisão 14 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. do conhecimento em áreas, institutos e departamentos, nas quais cada um delimita suas próprias fronteiras epistemológicas (MORIN, 2001). A partir das bases epistemológicas da complexidade para o educar, busca-se propor reconceitualizações da visão de homem, de realidade, de sociedade e de mundo. Ontologicamente o sujeito complexus é um ser não-dicotomizado, possui natureza multidimensional íntegra, torna-se capaz de superar a fragmentação do saber, ir além das perspectivas limitadoras. A realidade, sociedade e o mundo são constituídos por processos complexos, dinâmicos e relacionais, formados por objetos interconectados por fluxos de energia, matéria e informação. A educação nesta lógica tende a ser emancipadora, porque busca favorecer a reflexão do cotidiano, além de estabelecer o diálogo entre os envolvidos no processo e entre estes e o conhecimento, entre os diversos tipos de pensamento, assegurando o pluralismo e a diversidade de opiniões e pontos de vista. Pode-se inferir que ainda estimula um modo de pensar marcado pela articulação (MORIN, 2002a), algo desejado e esperado nos cursos formadores. Petraglia e Almeida (2006, p. 03), no livro Estudos de Complexidade, assumem que a relação entre educação e complexidade é um dos caminhos para a superação da fragmentação do saber, para tanto destacam sete ideias complementares e interdependentes para a reforma do pensamento linear, aspecto que julga-se importante para o campo da docência universitária: a compreensão das noções de “homo complexus”; a utilização de diversas linguagens no contexto educacional; presença da dialogia na educação; suporte na transdisciplinaridade; convivência com a incerteza; desenvolvimento e aprendizagem da autoética e reforma do pensamento. Neste sentido, o humano complexus é também sapiens e demens na relação consigo, com o outro e com o universo, tem sua consciência de mundo ampliada, o que o ajuda na reelaboração do pensamento. Para educar reconhecendo esse homo complexus, pressupõe-se que se leve em consideração as diferenças e peculiaridades de cada sujeito, por isso exige-se que o professor utilize diversas linguagens na sala de aula, de modo a facilitar a aprendizagem. Não é difícil perceber que a heterogeneidade da sala de aula assinala para a necessidade de se desenvolver atividades e métodos também diversos, a fim de se atingir o maior número de sujeitos. Essas ideias ajudam compreender que para ser possível a inovação nos termos da complexidade, existe a necessidade metodológica da transdisciplinaridade. Para maior discussão sobre o tema, o termo trans de transdisciplinaridade significa o que está [...] entre as disciplinas, através delas e além, dando uma ideia de transcendência e de inter-relações no mundo e na vida. A transdisciplinaridade propõe o diálogo entre as diferentes áreas do saber, de forma a articular a multidimensionalidade e a multireferencialidade do ser humano e do mundo (NICOLESCU, 2000). 15 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. Morin (2002b) trata a transdisciplinaridade como esquemas cognitivos reorganizadores que atravessam as disciplinas. Em situações práticas, o termo transdisciplinar tem sido empregado para designar projetos dos quais participam mais de uma disciplina, no sentido de um trabalho comum para buscar respostas amplas e criativas. Para a complexidade, o diálogo entre os diferentes tipos de pensamento propicia a transcendência do aqui e do agora na elaboração do conhecimento complexo. A convivência com a incerteza, ainda segundo a mesma teoria, passa a ser compreendida tal como formulado por Heisenberg, físico quântico e um dos fundadores da mecânica quântica (CHIBENI, 2005), ou seja, tem sua base assentada na falibilidade lógica, no surgimento da contradição e na indeterminabilidade da verdade científica. O pensamento complexo, que é desprovido de fundamentos de certezas absolutas, permeia os diversos aspectos do real, por isso ele pode nos ajudar a viver no risco e na incerteza, que é o grande desafio da condição humana na contemporâneidade. Neste sentido, a universidade, e é claro seus professores, encontram-se diante do desafio de preparar o sujeito para conviver com essa dualidade, seus limites e possibilidades. O desenvolvimento e aprendizagem na universidade envolve o aspecto técnico, mas muito mais do que isso, envolve sua auto-eco-organização (PETRAGLIA e ALMEIDA, 2006). Isso passa necessariamente pela reforma do pensamento, essa pode promover conscientização que, segundo Freire (1980, p. 26), manifesta-se como um teste de realidade, ou seja, quanto mais conscientização, mais se “des-vela” a realidade, mais se penetra na essência do objeto frente ao qual se quer analisar. Por essa mesma razão, mesmo que Freire esteja dialogando a partir de uma base epistemológica dialética, assume-se com ele que a conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação-reflexão, que constitui uma unidade dialética, de maneira permanente, o que caracteriza o modo de ser ou de transformar o mundo que distingue os homens. Assim entendendo, a universidade pode ser (e deve ser) uma instituição inovadora, ao mesmo tempo conservadora, regeneradora e geradora. Conservadora porque integra, memoriza e ritualiza saberes, ideias e valores culturais; regeneradora, pois rediscute e atualiza saberes e os propicia às novas gerações; e geradora porque cria, elabora e processa os novos saberes que serão herdados sucessivamente. Neste sentido, apresenta-se como campo frutífero para a reflexão sobre a docência e inovação, na qual é possível articular os pressupostos epistemológicos da Teoria da Complexidade, como base de novas ações pedagógicas no sentido de promover um pensar mais abrangente, multidimensional e contextualizado. 16 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. A experiência universitária: o processo de ensinagem desenvolvido na disciplina de Oratória Com base no referencial proposto, empreendeu-se uma pesquisa que visa identificar processos de inovação na universidade. Se tem buscado analisar as práticas pedagógicas consideradas inovadoras por discente, em função dos objetivos alcançados no processo ensinoaprendizagem. Neste artigo relata-se a análise dos dados referentes a experiência com alunos cursistas da disciplina Metodologia do Ensino e Oratória, do curso de Psicologia da Faculdade Estácio de Sá, Campus Goiânia, ano de 2013. Procurou-se verificar se os pressupostos da Teoria da Complexidade poderiam auxiliar na redefinição das práticas pedagógicas no entendimento dos alunos e dos resultados alcançados no processo ensino-aprendizagem. Explora-se como os alunos elaboram e vivenciam essas novas práticas, além de buscar identificar o que eles valorizavam nas práticas inovadoras pautadas na proposta do paradigma da complexidade. Buscando promover o processo de (trans)formação dos alunos e revitalizar uma formação unificadora, a disciplina teve como objetivo geral “compreensão sobre técnicas de orátória, desde o preparo da apresentação passando pela postura do orador até as técnicas de argumentação. Capacitar e desinibir pessoas para apresentação em público” (PLANO DE ENSINO – CCA0340 - ESTÁCIO DE SÁ, p. 1). A ementa da disciplina foi organizada em: 1) História da arte oratória; 2) Técnicas de relaxamento e concentração; 3) Qualidades do orador; 4) Como preparar uma boa apresentação; 5) Tipos de ouvintes; 6) Esquemas de uma apresentação; 7) Organização de racioncínio; 8) Estratégias de argumentação. Para desenvolver esses conteúdos, optou-se por uma metodologia de trabalho que contemplou a participação dos alunos, , envolvendo aulas expositivas dialogadas, seminários de leitura, interpretação e discussão de textos, estudos dirigidos, apresentação de filmes, debates, aulas práticas com filmagens, e análise de desenpenho dos estudantes. o desafio consistia em criar situações de aprendizagem com toda a turma de forma criativa, crítica e inovadora, que possibilitassem alcançar os objetivos propostos pelo plano de ensino, constituindo-se, assim, um processo de ensinagem. A carga horária da disciplina contemplava 40 h/semestrais, sendo desenvolvida em um encontros semanal. Após apresentação da proposta de trabalho construída pela Professora da disciplina, o grupo de alunos apresentou-se coerente e com compromisso em relação a seu papel enquanto 17 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. acadêmicos, concordando com as propostas inovadoras a cada encontro, buscando superar e criar novas situações de aprendizagem coletiva, e aprofundar conceitualmente as discussões. Buscando um movimento de inovação, propos-se na disciplina algumas atividades como por exemplo: “Quiz da persuasão”, que envolvia o sorteio de temas diversos, não conhecidos pelos alunos, a partir dos quais eles deveriam criar uma apresentação utilizando as técnicas até então estudadas (postura, fala, entonação, movimentação, vestimenta, teatrialização, etc.), a fim de motivar e persuadir os ouvintes. Utilizou-se como temas norteadores os capítulos do livro “A arte de ser leve” de Leila Ferreira, Editora Globo, 2010. Os temas escolhidos foram: O sorriso de Mona Lisa, Velório drive-through, Tarja Rosa, O medo de e-mail, Ah! Os celulares, Ovos de grife, A tal da felicidade, Travesseiro de penas, A obrigação de ser feliz, Um lugar chamado trajédia, dentre outros. As atividades gerava a abertura para que os alunos construíssem suas ideias nas aulas em cada encontro, ou seja, rompendo com o modo tradicional de dar aulas, inovando para o refletir sobre e o fazer aulas, o que é esperado atualmente no contexto da formação unversitária. Os alunos ainda desenvolveram a atividade “Oratória e Mídias, Seminário de leitura, Banners com a exposição de vários conteúdos, Planejamento e Organzação de evento – Chá com ideias”, evento este que finalizava a proposta da disciplina. A inovação também pela permissão para que as aulas fossem ministradas por estratégias dinâmicas, assim como sugerem Anastasiou e Alves (2005), rompendo com o perfil das aulas ministradas de forma tradicional que, infelizmente, na sua maioria, ainda segue o modelo cartesiano de reprodução do conhecimento, com exceção das aulas que são realizadas através da discussão e debates de textos, mas não avançando além disto. Em função do processo ensino-aprendizagem desenvolvido, solicitou-se aos grupos que participaram da disciplina e das atividades que respondessem um questionário sobre a proposta empreendida. Neste questionário os estudantes foram instigados à reflexão, discussão sobre a inovação nos seus cursos de formação; as perguntas que nortearam esse momento foram: 1) o que significa inovar em sala de aula; 2) tem professores inovadores? O que eles fazem?; 3) práticas inovadoras são importantes em sala de aula?; 4) O processo ensino-aprendizagem pode ser facilitado com práticas pedagógicas inovadoras?; 5) descreva práticas pedagógicas inovadoras que voce gostaria que se repetissem em outras matérias. De posse das respostas foi possível perceber que as bases teóricas da complexidade é frutífero marco de reflexão, instigou um novo entendimento da relação professor-alunoconhecimento, sem dissociar essa reflexão dos dilemas, exigências e desafios mais amplos da vida acadêmica coletiva. 18 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. Para uma síntese reflexiva Parte-se do pressuposto que o ensino superior parece padecer de dificuldades singulares, primeiro produzir conhecimento, segundo formar pessoas capazes, competentes, íntegras, críticas, via-de-regra, essa proposta é constituída com base em noções simplificadoras, dicotomizadas que implicam em consideráveis mutilações não só no conhecimento produzido, mas infelizmente nas pessoas que são formadas. Assim entendendo, a proposta de inovação no campo da docência universitária da disciplina de Oratória, inicia pelo entendimento que exite uma pluralidade de teorias e metodologias desenvolvidos nos cursos formadores com poucas articulações e diálogos entre si, o que nos coloca o questionamento: até que ponto os professores podem desenvolver estudos e teorizações condizentes com a complexidade que sustentem suas práticas pedagógicas? Não se tem uma resposta direta, mas a pesquisa desenvolvida ajudou a perceber que o paradigma simplificador muito presente no ensino superior tem sido questionado pelos alunos e pelos professores. Pois já se entende, ou pelo menos já se dicute, que não se tem propiciado a construção de uma visão complexa sobre os fenômenos, e isso tem dificultado entre os alunos a construção de possíveis caminhos para a constituição de uma nova compreensão epistemológica nesse sentido. Aqui propõe-se a compreensão complexa, inspirada particularmente pela obra de Edgar Morin implica não apenas nas possíveis articulações entre as distintas contribuições, mas, principalmente, na contextualização dessas articulações no cenário de questões epistemológicas fundamentais como as que dizem respeito às disjunções clássicas do paradigma ocidental, como a relação sujeito-objeto. A experiência vivenciada na disciplina provou que é possível favorecer uma formação que destaque a importância não só o desenvolvimento técnico, mas a produção de conhecimento para quem dela participa; e também que é muito importante avançar na articulação entre sujeito e objeto de estudo, pensamento e ação, teoria e prática, homem e sociedade, homem e relações, de tal forma que o estudante possa avaliar, criticar e ensinar um viver, uma experiência relacional cujo teor envolva necessariamente sua história de vida e a dos seus estudantes. Abaixo alguns comentários dos alunos: [...] evoluí bastante, apesar de ter um pouco de timidez, com o processo acabei evoluindo bastante. Aprendi muito com as apresentações que foram propostas (Sujeito A). 19 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. [...] a disciplina me ajudou a ser menos sério e mais simpático, mudou minhas formas de relações sociais. Isso faz parte de uma boa integração com o público (Sujeito B). [...] no início a proposta foi difícil para mim, mas aprendi a me expressar publicamente. Essa disciplina ensina muito mais que técnica de falar em público, aprendi a perceber e relacionar comigo e com os outros (Sujeito C). Distancia-se, assim, uma docência voltada para o simples treinamento, e se aproxima do entendimento de novas formas de interação consigo, com outros, e com a vida. As diversas formas de feedback devolvidas aos estudantes ajudou a construir os conhecimentos por meio de ações sobre os objetos, a realidade, o que otimizaria a aprendizagem de maneira em geral. [...] Meu aprendizado foi muito reforçado, com o feedback dado pela professora, pelas orientações e liberdade criativa, pude evoluir e aprender muito (Sujeito E). Ainda é necessário pontuar as resistências por parte de alguns estudantes. Essas foram trabalhadas no grupo, o que gerou o entendimento de que as resistências eram fruto de uma representação ancorada numa perspectiva tradicional de educação, qual seja, a de que a sala de aula não é espaço de discussões que envolvam questões para além do racional. [...] No começo foi difícil, mas a exigência da disciplina me ajudou a romper com muitas dificuldades. O professor tem que despertar a curiosidade do aluno, tem que instiga-lo a participar, busca o melhor de cada aluno (Sujeito G). Gradativamente, os estudantes foram compreendendo que as atividades propostas demandavam novas formas de pensar e proceder. Não se pode negar que houve um processo de aceitação e cooperação entre todos, também foram estabelecidas várias negociações que exigiram o entendimento das diferenças e tolerância nas relações – realização de diferentes atividades que exigiam encontro, treino, gravação de videos, etc.. O processo envolveu regulação, autoprodução e auto-organização, tendo os futuros professores relatado que foi necessário compreender não só os outros parceiros e suas dificuldades, mas também sua própria dificuldade relacionada às questões afetivas, para poder resolvê-las (MAGALHÃES, 2011). Os relatos abaixo trazem a importância das práticas inovadoras no ensino superiror. Ser inovador é: [...] mudar as formas de dar aula, criar uma forma que facilite o entendimento dos alunos (Sujeito H). [...] é saber interagir com os alunos, trazer coisas novas do contexto e atualidade para comparar com o assunto abordado (Sujeito J). [...] propor novas maneiras de propor os conteúdos e avaliar o aluno de maneira integral (Sujeito B). 20 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. [...] trazer novidades para o contexto da aula, motivar o aluno para que ele se interesse pelo conteúdo (Sujeito A). Resumidamente os relatos destacaram que os momentos da aula foi possível contemplar o que o “aluno sabe”, porque as aulas eram dialógicas; valorizavam o diálogo. As relações em sala de aula eram positivas o que facilitava o domínio afetivo e do cognitivo, alguns alunos destacaram a importância da relação professor-aluno. Também havia a promoção de várias formas de se conduzir os conteúdos, o que é necessário para estimular a independência dos alunos criando condições para uma visão crítica da sociedade e da profissão; estimular a participação; manifestar uma postura ética e política clara. Eles alegaram que foram estimulados a serem autênticos e verdadeiros. Ainda afirmaram que a oportunidade de lidar com o estranho, inusitado e diferente, favoreceu o posicionar, colocar idéias e opiniões sinceras, mesmo que estas sejam divergentes do grupo. Pensar a relação docência universitária e inovação requer uma permanente reconstrução epistemológica e metodológica, na busca de promover uma atividade auto-organizativa que assegure que o aluno é uma organização viva e contextualizada. Esse entendimento não visa à acumulação de conhecimentos, mas pretende que os alunos dialoguem com os conhecimentos, reestruturando-se e retendo o que é significativo. Certamente, a mudança no campo da docência universitária exige consolidar novas bases epistemológicas (novos paradigmas) como aqui se refletiu na forma da teoria da complexidade, para ressignificar o conhecer, o ser, o conviver, e o aprender a apreender, mas enquanto isso não acontece é necessário dar voz aos alunos, buscando atender o que têm reinvindicado para otimizar importantes interlocuções nos processos formativos. Espera-se que o que foi discutido aqui ajude na organização das aulas e nas relações interpessoais tornando o desenvolvimento da disciplina inovador, como um processo de ensinagem. Sem querer oferecer receitas, apenas apontamentos para reflexões, percebe-se que inovar pode ser concebido no ensino superior como proposto por Souza (2008, pp.60-71): (1) considerar os conhecimentos prévios dos alunos, que consiste em ponto de partida para a reelaboração e ampliação de construções mais significativas, ao invés da justaposição de conhecimentos; (2) aprendizagem cooperativa, definida em criação de estratégias para construção recíproca de aprendizagens individuais e coletivas, incentivando a cooperação para novos saberes e fazeres; (3) metacognição, processo de consciência reflexiva sobre o modo próprio de pensar, de apreender; (4) motivação, enquanto atitude intrínseca ao aprendiz, que deve ser estimulada por professores também motivados que desenvolvem projetos inovadores; (5) autonomia, criticidade e criatividade: atitudes interdependentes, que no processo de ensinagem constituem em princípios metodológicos 21 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 08-23, Jul. 2013/Jan. 2014. para a formação de um sujeito ativo, integral e competente; e (6) relações dialéticas entre pensamento e emoção, articuladas para formação integral do sujeito que pensa e que sente. A forma como as práticas pedagógicas foram organizadas envolveu a tentativa de auxiliar todos os estudantes na elaboração de novas atividades, inclusive formas de solução de conflitos, e tomada de consciência sobre as questões abordadas. Foram trabalhadas diversas estratégias de atuação, mas a vivência do processo, a colaboração, o trabalho individual e coletivo, a solidariedade, o respeito às angústias, aos erros, foram aspectos que marcaram gradativamente as conquistas do grupo. Foi possível perceber que ampliou-se a consciência, ao mesmo tempo em que os estudantes mostravam ser possível uma nova reflexão sobre a realidade que os cercavam. Com as práticas desenvolvidas em sala de aula foi possível entender que as diretrizes assumidas em cada actividade foi pensadas com intencionalidade para gerarem condições para propiciar o desenvolvimento da reflexividade, flexibilidade, criticidade, criatividade, autonomia, raciocínio lógico, afetivo, resiliência e espírito de investigação. Como afirma Morin (1999, p.182), nós, sujeitos humanos, somos um “centro de sensibilidade que se torna centro de sentimento e de afetividade”. Entende-se que houve a integração de um novo fluxo de ser, de saber, de conhecer, de sentir, de fazer, de conviver, de sensibilizar-se, e aprender a participar. Os pressupostos da teoria da complexidade auxiliaram na compreensão de que esse processo acaba envolvendo as pessoas em círculos de reflexão sobre a vida, o cosmos, o que acaba religando as pessoas. REFERÊNCIAS CHAUÍ, M. A universidade em ruínas. In: TRINDADE, H. (Org.). Universidade em ruínas. 2. ed. Petrópolis:Vozes, 1999. CHIBENI, S. S. Certezas e incertezas sobre as relações de Heisenberg. Rev. Bras. Ensino Fís. [online], v. 27, n. 2, p. 181-192, 2005. CONTRERAS, J. D. La autonomia del profesorado. Madrid: Morata, 1997. CUNHA, M. I. Formatos avaliativos e construção da docência: implicações políticas e pedagógicas. Avaliação. Revista da Rede de Avaliação Institucional de Ensino Superior, v. 6, n. 20, p. 17-32, jun. 2001. ______. O professor universitário na transição dos paradigmas. Araraquara: JM, 1998. ______. Diferentes olhares sobre as práticas pedagógicas no ensino superior: a docência e sua formação. Educação. 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Pedagogia Universitária: a aula em foco. 3 ed. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). Campinas, São Paulo: Papirus, 2002. 24 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. DINHEIRO ELETRÔNICO E AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL Cleito Pereira dos Santos1 RESUMO ABSTRACT O capitalismo transnacional do século XXI, rompe os limites territoriais e comerciais impostos pelo papel-moeda e paulatinamente tem estendido sua esfera de ação incorporando novos mecanismos tecnológicos que redefinem o sistema de pagamento em termos da substituição de moedas e cheques como forma predominante de transações no interior da economia. O dinheiro eletrônico tem substituído o dinheiro tradicional de forma eficaz. As transações decorrentes de sua utilização têm demonstrado que os caixas eletrônicos e as máquinas registradoras em estabelecimentos comerciais dispensaram a relação vendedor-cliente e/ou bancário-cliente e instituíram a relação máquina-cliente como suporte de novas formas de controle e hierarquia tanto na empresa quanto na sociedade. The transnational capitalism of the century, breaks the boundaries and commercial taxes by paper and has gradually extended its sphere of action incorporating new technological mechanisms that redefine the payment system in terms of replacing coins and checks as the predominant form of transactions in within the economy. Electronic money has replaced the traditional money effectively. Transactions arising from their use have shown that ATMs and cash registers in shops waived the vendor-customer relationship and / or bank-customer relationship and instituted the client machine as supporting new forms of control and hierarchy both in company and in society. Keywords: Capitalism, Social Control, Electronic Palavras-Chave: Capitalismo; Dinheiro Eletrônico; Money, Domination, Technology Controle Social; Dominação; Tecnologia No capitalismo contemporâneo o desenvolvimento do sistema de pagamentos conduziu ao aparecimento do dinheiro eletrônico. Essa forma de realização da riqueza conduz a um novo padrão de organização do movimento do capital. Bancos, empresas e organizações estabelecem relações a partir da rapidez e da dinâmica da nova forma de dinheiro, o dinheiro eletrônico. Aqui abordaremos a questão do dinheiro eletrônico e as formas de controle instituídas pela sua aplicação. O dinheiro, na sua forma tradicional ouro ou papel-moeda, representa a coerção estatal sobre um conjunto de ações previamente determinadas. O Estado-nação ergue seu poder a partir da capacidade de emitir moeda e controlar o seu fluxo no interior da economia. O dinheiro funciona como o articulador da economia nacional, da circulação de mercadorias e simbolicamente representa e dá status ao seu possuidor. A forma tradicional de representação do dinheiro está restrita a um conjunto de elementos que garantem a autonomia do Estado nacional e o 1 Doutor em Sociologia Política/UFSC. Professor da Faculdade de Ciências Sociais/UFG. [email protected] 25 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. funcionamento da economia. Estes elementos, mobilidade da riqueza, impessoalidade nas transações econômicas, extensão territorial, dentre outros, fundamentam a organização social. No capitalismo o dinheiro assume uma importância vital para a expansão das relações econômicas. O dinheiro transpõe fronteiras e assim expande o capitalismo para todo o globo terrestre. A capacidade de criar riquezas está associada à mobilidade que o dinheiro possibilita à circulação da mesma. Dinheiro, portanto, associa-se aqui a expansão constante da riqueza e à circulação de mercadorias à escala global. A emergência do dinheiro eletrônico situa-se na segunda metade do século XX. O capitalismo gestado no pós-Segunda Guerra Mundial vivia sua época de ouro. Produção material e consumo de massa a todo vapor, revigoravam a economia dos países capitalistas centrais e permitia a expansão em busca de novos mercados. A acumulação de capitais assume a forma fordistakeynesiana que se estende do período pós-Segunda Guerra até a metade dos anos 1970. (Hobsbawn, 1995; Chesnais, 1996; Harvey, 2003). Para Aglietta (2002), o dinheiro eletrônico poderá vir a substituir o dinheiro escritural tendo em vista sua maior eficiência em transmitir maior número de informações e ao mesmo tempo porque permite a identificação mais segura dos utilizadores. Nesse sentido, os cheques poderão desaparecer no futuro transformando o dinheiro escritural em mero objeto do passado. Por outro lado, a questão é mais complexa quando se trata do dinheiro fiduciário, expresso pelo uso de moedas e notas. O usuário de dinheiro eletrônico é facilmente identificável; o utilizador do dinheiro fiduciário não. O segundo, oferece anonimato e segurança. O dinheiro eletrônico é centralizado através da interligação eletrônica e personalizada; o fiduciário é descentralizado, mecânico e anônimo. Nesse sentido, Aglietta aponta que, no futuro, (...) o porta-moedas electrónico pode ser utilizado em vez do dinheiro fiduciário em casos limitados, mas não o deverá substituir completamente. É mais provável que o porta-moedas electrónico ocupe uma posição intermédia entre o dinheiro fiduciário e formas já existentes de transferência de dinheiro entre contas bancárias, de forma a alargar o leque de meios de pagamento.” (Aglietta, 2002, p. 77-8). As mutações nas formas de pagamento têm início na época de ouro do capital. A partir dos anos 1950 as empresas passam a transacionar, embora de forma limitada, com cartões de papelão que autorizam os clientes a efetuarem compras em lojas previamente autorizadas. Este tipo de cartão inicialmente disponibiliza compra de serviços tais como transportes, restaurantes e hotéis. Posteriormente, avança-se para a efetuação de um conjunto maior de operações. Segundo Weatherford (1999), a empresa Diners Club foi a pioneira no lançamento do cartão de crédito nos EUA. A criação de formas de pagamento alternativas ao sistema padrão papel- 26 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. moeda transformará o contexto das relações de troca e as inovações serão de tal importância que despesas dos usuários passam a ser relacionadas com o limite de crédito do cartão. O cartão personifica uma relação social entre o usuário, o dinheiro (dinheiro plástico) e os estabelecimentos comerciais aptos a realizar as operações financeiras consolidadas com o consumo de bens e serviços. Esta fase inicial do desenvolvimento de novas formas de pagamento, que coincide com o desenvolvimento do capitalismo na segunda metade do século XX, significou a capacidade dos agentes do capital em solucionar uma questão prática: a intensificação dos fluxos monetários e a correspondente dificuldade dos indivíduos em portarem determinados valores para tipos de serviços específicos. Nesse sentido, a invenção do cartão de crédito se associa à busca de praticidade nas formas de pagamento, dispensando a presença de dinheiro convencional. Por conseguinte, a história do dinheiro plástico tem início em um período de plena expansão do capital e do consumo de massa. Dessa forma, (...) em 1950, a Diners Club criou o primeiro cartão de crédito moderno. Esse cartão de crédito era aceito em 27 dos melhores restaurantes do país e era usado originalmente por ricos homens de negócios como forma conveniente de cobrar despesas relacionadas a viagens e entretenimento. (...). Os primeiros cartões Diners Club eram apenas de papelão com o nome do cliente em um dos lados e do outro uma lista dos restaurantes em que era válido. Em 1955, a Diners Club mudou para cartões plásticos, lançando assim uma tendência monetária totalmente nova na cultura de consumo. (Weatherford, 1999, p. 231). Desde então, o dinheiro plástico conheceu as mais variadas evoluções. Ainda nos anos 1950 os bancos iniciaram a emissão de cartões de crédito. Em 1958, o Bank of América criou o BankAmericard que a partir de 1977 se transformou em Visa. Posteriormente, anos 1990, este cartão se transformou no mais usado em escala mundial. Atingindo cerca de 12 milhões de estabelecimentos e estando em circulação cerca de 400 milhões de cartões. (Weatherford, 1999, p. 231). A crise de acumulação dos anos 1970, passagem para a acumulação flexível, intensificou ainda mais o desenvolvimento das formas de pagamento. O dinheiro eletrônico, aparece em um contexto de flexibilização da produção e do trabalho e de intensificação do consumo de massa da era do toyotismo. A dinâmica do capital, à medida que procura superar os próprios limites do modelo de acumulação, oferece respostas para a continuidade de sua reprodução ampliada. O dinheiro eletrônico (cartão de crédito e débito, cartões inteligentes, etc.) se inscreve no contexto da ampla financeirização da sociedade. Movimento este marcado pelo remodelamento dos sistemas produtivo-financeiro. A emergência do dinheiro eletrônico ocorreu de forma hesitante, segundo Bernardo (2004). Para este autor, a implantação do sistema de débito e crédito a partir do processamento 27 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. eletrônico das informações contidas em um cartão magnético decorreu de maneira mais rápida nos EUA. A década de 1970 é decisiva como marco inicial da emergência dessa nova forma de dinheiro no capitalismo. Sendo assim, (...) os ensaios iniciais de dinheiro eletrônico - definido aqui como os cartões de crédito e de débito e a extensão do dinheiro contabilístico graças a processos eletrônicos - foram muito hesitantes. O primeiro caixa bancário eletrônico, capaz não só de transferir fundos eletronicamente mas ainda de dispensar dinheiro material e de aceitar depósitos em dinheiro material , entrou em funcionamento em 1970 nos Estados Unidos, e passados oito anos havia ainda apenas 21.000 terminais eletrônicos instalados por instituições financeiras, dos quais só 7.700 eram caixas bancários. Em 1981, contavam-se nos Estados Unidos 20.000 caixas eletrônicos (...). No ano seguinte estavam instalados em todo mundo 70.000 caixas eletrônicos, dos quais 26.000 situavam-se nos Estados Unidos, onde já havia em 1993 mais de 40.000 caixas e cerca de 6 milhões de cartões de débito. Em meados desse ano contavam-se na Grã-Bretanha mais de 4.600 caixas eletrônicos, mas o seu nível tecnológico era ainda bastante rudimentar e eles estavam longe de efetuar todas as operações que eram já correntes nos caixas norte-americanos. Foi a partir de então que se acentuou a expansão dos caixas eletrônicos, até chegar aos níveis hoje conhecidos. (Bernardo, 2004, p. 140). Não resta dúvida que a expansão do sistema de cartões de crédito ampliou as bases do endividamento em escala estratosférica. Tal sistema dispensa a existência do dinheiro tradicional no ato da compra ou do consumo e posterga a preocupação do cliente com o saldo devedor. Assim, a economia instituída pelo dinheiro eletrônico é a economia da dívida permanente e do consumo diário e frenético. Costa (2004), analisando a chamada “sociedade de controle”, enfatiza que na era das tecnologias informacionais e da linguagem digital a cifra (senha) substitui a assinatura e o número tidos como os mecanismos de controle usuais até então. A sociedade de controle pode ser definida a partir da emergência de novas tecnologias que alteram o padrão de dominação societal. De acordo com Benites (2004, p. 291): O advento da ‘sociedade de controle’ marca a mudança de uma forma de uma forma de organização societal marcada por técnicas e saberes que forjaram o homem confinado, individualizado, produtor descontínuo de energia, para uma forma na qual o controle é de curto prazo, contínuo e ilimitado, uma sociedade de comunicação rápida e instantânea.” Em suma, a sociedade de controle representa a mudança estrutural nas formas de comunicação no capitalismo contemporâneo. Instrumentos tecnológicos e comunicacionais revelam as novas formas de controle vigente. Senhas, câmeras, e-mail, dinheiro eletrônico, cartões variados, celulares, etc. compõem o universo da dominação do capital em escala global. Dominação tanto sobre o universo do trabalho quanto do lazer e do ócio. Estamos diante da nova cartografia da dominação do capital. (Costa, 2004). 28 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. O dinheiro eletrônico se inscreve nessa nova cartografia do controle. Se por um lado, “o dinheiro papel é caro e sem controle em sua circulação”, por outro lado, “o dinheiro eletrônico, além de reduzir os custos, acaba gerando mais controle sobre os indivíduos e a circulação do capital. O papel moeda é anônimo, o dinheiro eletrônico não.” (Costa, 2004, p. 167). As empresas já dispõem de amplos meios para controlar a ação dos trabalhadores. O dinheiro eletrônico é mais um desses meios explicitados no estabelecimento de perfis a partir do consumo e das transações financeiras realizadas pelos trabalhadores. Os fluxos de dinheiro expõem as ações daqueles que o usam, uma vez que a identificação das transações e do usuário ocorre no momento da própria transação. Coloca-se também a questão da própria mobilidade dos trabalhadores. A mobilidade no espaço e no tempo passa a ser controlada pela identificação do usuário através das transações realizadas no decorrer de um período. Novamente cabe chamar a atenção para o fato das transformações ocorrerem de modo desigual no âmbito da economia transnacional. Nos países de capitalismo avançado, a sociedade de controle opera de modo mais visível do que no capitalismo periférico. Ainda de acordo com Weatherford (1999), algo de novo se instaurou com a chegada do cartão de crédito. O elemento pessoal presente nas transações com papel moeda é suprimido e a relação estabelecida é com o administrador do cartão que irá julgar se o usuário pode ter ou não ter o cartão com determinado limite de crédito. Ao mesmo tempo, a emergência do cartão ampliou a capacidade consumo e, conseqüentemente, das transações monetárias. Dinheiro passou, então, a ter sua capacidade de circulação ampliada: as restrições são eliminadas. O cartão de crédito expandiu o crédito, mas também eliminou o elemento pessoal. Por meio do pagamento de uma taxa, a empresa de cartão de crédito agora assumia a responsabilidade e o risco de julgar a validade do crédito de um consumidor. A difusão dos cartões de crédito que teve início nos anos 60 provocou importantes mudanças nos padrões de compras e pagamento dos consumidores. O cartão de crédito isentou seu dinheiro de restrições temporárias permitindo que as pessoas usassem o dinheiro que elas ainda não haviam ganho ou recebido, mas que esperavam receber em uma data posterior. (Weatherford, 1999, p. 232). Esse movimento de expansão do crédito revela o caráter disciplinador e controlador do dinheiro eletrônico. À medida que o possuidor do cartão de crédito está liberado para estabelecer uma relação de crédito-débito baseado em salário ou renda futura, ele se relaciona em uma rede de relações dominada prioritariamente pelas empresas detentoras do controle do cartão de crédito. A emissão do cartão de crédito e de débito está sujeita ao cadastro do cliente que coloca á disposição da empresa um conjunto de informações que irão constituir um valioso banco de 29 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. dados. Essas informações são manipuladas pelas empresas em vários sentidos. Desde as informações cadastrais mais comuns, passando pelas preferências de consumo, o tipo do consumo registrado no ato da transação, as qualificações do titular do cartão. As tecnologias de informação e da comunicação desenvolvidas nos últimos anos colaboram para acentuar o controle através do processamento contínuo e eficaz dos dados do cliente. Segundo Bernardo (2004), indica também a magnitude do controle estabelecido pelas empresas, constituindo bancos de dados que disponibilizam a qualquer momento um montante infinito de informações sobre os usuários. O registro de todos os artigos comprados com cartão de crédito, facilitado pela generalização dos códigos de barras, é processado e guardado pela firma emissora do cartão. Em 1992, com 52% do volume mundial total das transações com cartões de crédito e com mais de trezentos milhões de cartões em circulação, aceites em cerca de dez milhões de estabelecimentos comerciais, a Visa era, tal como continua a ser, a maior firma do ramo. Ora, um software sofisticado, instalado em 1993, permite que a Visa analise todas as transações efetuadas e constitua um banco de dados com as preferências e as qualificações de cada um dos detentores dos seus cartões. Além do montante colossal de informação de que dispõem as firmas emissoras de cartões de crédito, note-se ainda que nos casos em que as chamadas telefônicas são efetuadas com este tipo de cartão a coleta de informações multiplica os resultados. (Bernardo, 2004, p. 153). (Grifos do autor). O dinheiro eletrônico também estabeleceu uma estratificação e hierarquização dos usuários. As empresas logo estabeleceram uma forma de diferenciar os possuidores dos cartões de crédito. Diversos tipos e classes de cartões foram lançados para estratificar os usuários. O dinheiro eletrônico cria, então, formas de hierarquias e controle associadas ao prestígio e tipos de cartões que o usuário possui. Para Weatherford (1999), as empresas nos EUA logo descobriram o significado da estrutura de classes e prestígio e o modo de pagamento adequado para a reprodução de tal estrutura. Assim, (...) reconhecendo a importância do modo de pagamento na estrutura de classe e prestígio do país, os fabricantes de cartões de crédito de plástico freqüentemente criavam anúncios enfatizando o prestígio como benefício integral ao uso de um determinado cartão. Anúncios freqüentemente mostram cartões de crédito sendo usados por pessoas bem vestidas em locais luxuosos com clubes de campo, hotéis e restaurantes finos, navios luxuosos, limusines, e viagens aéreas em primeira classe, e os anúncios são repletos de palavras como exclusivo, refinado, somente mediante convite e pretígio. (Weatherford, 1999, p. 233). (Grifos do autor). Esta não é uma particularidade norte-americana. Em todos os países onde operam, as empresas procuram segmentar a clientela de acordo com a estrutura de classes e os símbolos de 30 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. status e prestígio presentes em cada um deles. Esta segmentação corresponde ao sistema de hierarquias e controles existentes em cada país e, também, em escala global. Ainda segundo Weatherford, (...) nos prósperos e reluzentes anos 80, a American Express tinha aproximadamente meio milhão de titulares de cartões ouro e precisava refiná-los por categorias. Durante um período em 1984 a empresa tentou um serviço ainda mais exclusivo que chamou de black card, mas esse deu lugar ao cartão platinum em 1985. A MasterCard e a Visa acrescentaram seus próprios cartões platinum, gold e regular em meados dos anos 90. O sistema de cartões de crédito platinum, gold e regular correspondiam às classes superiores, média e trabalhadora na estratificação de débitos nos Estados Unidos. (Weatherford, 1999, p. 234). (Grifos do autor). Portanto a segmentação dos cartões de crédito representava a reprodução da estrutura de classes da sociedade capitalista e a hierarquização e controle das despesas, dos costumes e das preferências dos clientes. Na extensão da sociedade tal prática tornou-se predominante à medida que a utilização do cartão de débito e de crédito se expande de forma a institucionalizar práticas de transações caracterizadas pela utilização de uma forma de dinheiro, o dinheiro eletrônico. Hoje podemos afirmar que o dinheiro eletrônico estendeu sua influência na sociedade de uma tal maneira que é impossível realizar certas transações e aquisições sem sua utilização. Em outros termos, (...) o dinheiro eletrônico alcançou uma tal hegemonia que se torna difícil o acesso a certos serviços básicos quando não se possui cartões eletrônicos de crédito e de débito. Em países onde não existem carteiras de identidade, os cartões de crédito cumprem regularmente essa função, adquirindo portanto um estatuto de documento oficial, e em qualquer parte do mundo tornou-se impossível a hospedagem num hotel, mesmo de categoria média, se não se apresentar logo de entrada em cartão de crédito. (Bernardo, 2004, p. 141). Esta expansão dos meios de pagamentos eletrônicos, notadamente o dinheiro eletrônico, transformou as relações de compra e venda, colocando as transações comerciais em outro patamar. Se o dinheiro tradicional, material, implicava a posse direta do objeto dinheiro, agora com o dinheiro eletrônico pode-se realizar as transações sem imediatamente possuir renda ou salário que garanta o pagamento futuro. Cria-se dinheiro ao comprar ou vender e, posteriormente, o cliente efetua o pagamento. Isso tem conseqüências radicais para os assalariados, uma vez que salários mensais e despesas mensais não estão mais separados, se confundem. Para Bernardo, (...) com a generalização do dinheiro eletrônico, para a grande maioria dos assalariados nos países mais evoluídos deixou de haver uma separação clara entre o salário mensal e as despesas mensais. Existem dois fluxos paralelos, um dos salários e outro das despesas, e tudo pressiona os assalariados a não distinguirem nem os períodos nem os ciclos relativos desses fluxos. Recentemente, os bancos começaram mesmo a substituir os cartões usados pelos seus clientes por outros cartões, que retiram automaticamente dinheiro das contas a prazo fixo, quando não existem saldos suficientes nas contas correntes. Assim, o endividamento tem-se tornado progressivamente mais fácil, a tal ponto que o consumo passou a assentar no crédito. Ora, uma situação de endividamento sistemático contribui para reduzir a capacidade de resistência dos assalariados, e prejudica portanto a sua aptidão 31 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. para impor aumentos de salários ou para se opor a despedimentos coletivos. (Bernardo, 2004, p. 141). A gestão da força de trabalho no capitalismo contemporâneo realiza-se amplamente apoiada em métodos de convencimento e repressão característicos do modo de regulamentação atual da força de trabalho. O uso da tecnologia amplia e reforça a vigilância e o controle, expandindo-os para além do universo do trabalho. A vida social, o espaço físico, o tempo recebem novas colorações na era da sociedade digital. O crédito e o correspondente endividamento funcionam como poderosos mecanismos de pressão e de controle sobre o universo do trabalho. A expansão da utilização de cartões expõe o fato de cada vez mais os indivíduos estarem lançando mão dos mesmos para realizar compras e outras transações. O volume de transações implica na existência de um mercado eletrônico que tende a substituir o dinheiro convencional, na forma papel moeda, pelo dinheiro eletrônico expresso em cartões inteligentes (Smart Cards) com chip interno capaz de armazenar um conjunto de informações e combinando as funções de cartão de crédito, cartão de débito, cartão de identificação pessoal, autenticação digital, dentre tantas outras. O capitalismo transnacional do século XXI, rompe os limites territoriais e comerciais impostos pelo papel-moeda e paulatinamente tem estendido sua esfera de ação incorporando novos mecanismos tecnológicos que redefinem o sistema de pagamento em termos da substituição de moedas e cheques como forma predominante de transações no interior da economia. O dinheiro eletrônico tem substituído o dinheiro tradicional de forma eficaz. As transações decorrentes de sua utilização têm demonstrado que os caixas eletrônicos e as máquinas registradoras em estabelecimentos comerciais dispensaram a relação vendedor-cliente e/ou bancário-cliente e instituíram a relação máquina-cliente como suporte de novas formas de controle e hierarquia tanto na empresa quanto na sociedade. Seguindo a análise de Costa (2004), uma nova lógica está se instalando no capitalismo. A “cidade digital” possibilita que tanto em casa quanto no trabalho, e através de uma rede interconectada, possamos acessar infinitos produtos e serviços sem nos deslocarmos. O desenvolvimento das tecnologias de informação e da comunicação, nos últimos anos, criou um universo composto da junção da tecnologia com o aparato da produção – material e imaterial - e deste com o consumo. Esse aspecto é central na era do capitalismo flexível dos países desenvolvidos. As contradições afloram à medida que países e classes sociais são integrados de modo desigual à lógica do capital transnacional. 32 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014. REFERÊNCIAS AGLIETTA, Michel. Qual a Origem e o Destino do Dinheiro?. In. Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Lisboa: Ministério da Economia, 2003. pp. 37-84. BENITES, Luiz Felipe Rocha. A governamentalização do Estado contemporâneo: uma cartografia dos mecanismos estatais de controle. Sociologias, Porto Alegre, ano 6, nº12, jul/dez 2004. BERNARDO, João. Democracia Totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez Editora, 2004. CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996. 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EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO VISANDO A INCLUSÃO DIGITAL DE PESSOAS ADULTAS Flávia Valéria C. Braga Melo Diórgenes dos Santos** Junielson Dias Barbosa*** INTRODUÇÃO Este texto pretende discutir a questão da exclusão de pessoas em geral, especialmente, acima dos quarenta anos de idade, do mundo digital e do mundo do trabalho informatizado. O tema em questão refere-se ao Projeto de Extensão realizado na Unidade Universitária de Aparecida de Goiânia da UEG no ano de 2013, intitulado Inclusão Digital e Assessoria de Emprego para pessoas acima de quarenta anos de idade. Pretendia-se oferecer curso de informática básica, palestras e assessoria no intuito de auxiliar o público alvo na recolocação no mercado de trabalho, visando assim, a qualificação destas pessoas a fim de que sejam aumentadas as oportunidades de gozar de melhores condições de vida. Incialmente, este artigo pretende abordar o mundo do trabalho globalizado e competitivo, além da necessidade do conhecimento sobre informática básica para se obter qualificação profissional e também apresentar as maiores dificuldades dos brasileiros com idade madura de conseguir emprego, quando esses fazem parte do grupo de trabalhadores sem qualificação. Haverá ainda, sob a forma de relato, a descrição de algumas experiências de ensino e aprendizagem vivenciadas no projeto de extensão para expor algumas dificuldades e êxitos, que foram percebidos pelos acadêmicos extensionistas no decorrer das aulas e palestras à comunidade convidada. Assim, o artigo discorre sobre a execução e trajetória dessas aulas, pelo desejo de se Graduada e especialista em Sociologia; mestre em Ciências da Religião pela PUC (GO). Professora de Sociologia da UEG de Aparecida de Goiânia, da Faculdade Nossa Senhora Aparecida - FANAP e do Colégio Prevest. É coordenadora do Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de Aparecida de Goiânia. ([email protected]) ** (Coautor) Acadêmico do curso de Administração de Empresas da UnU de Aparecida de Goiânia e participa do Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de Aparecida de Goiânia. *** (Coautor) Acadêmico do curso de Administração de Empresas da UnU de Aparecida de Goiânia e participa do Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de Aparecida de Goiânia. 34 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. obter respostas para uma variedade de questões que aguçaram a curiosidade dos acadêmicos que, mesmo antes do projeto se encerrar, começaram buscar por respostas e novas discussões. 1 NOVAS TECNOLOGIAS E EXCLUSÃO DE PESSOAS Há no país, um significativo número de pessoas sem acesso digital. Apesar da pesquisa não ser recente, mas apenas para se ter uma ideia, de acordo com divulgação da Unesco (2008), mais da metade dos brasileiros (54,4%) nunca havia usado um computador. Menos de 20% tinha o equipamento em casa, e apenas 14,5% dos domicílios com computador estavam ligados à rede mundial. Foi o que disse a Pesquisa sobre o Uso Domiciliar das Tecnologias de Informação e Comunicação – a chamada TIC Domicílios –, realizada pelo Instituto Ipsos Opinion, a pedido do Comitê Gestor da Internet (CGI) em 2005 e 2006. Inclusive, promover e tornar acessível o acesso das novas tecnologias a todos, representa um dos objetivos da ONU (Organização das Nações Unidas), para o desenvolvimento e bem-estar dos povos no século XXI. A ONU estabeleceu, portanto, oito metas (até o ano de 2015) que visam erradicar a pobreza extrema e amenizar problemas sociais graves como fome, incidência de doenças, analfabetismo, dentre outros. Assim, a inclusão digital faz parte do oitavo objetivo estabelecido como Meta para o Milênio, que é: “avançar no desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, previsível e não discriminatório [...], tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial de informação e de comunicações.” (ONU, 2013). A acessibilidade na internet é uma das formas de garantir a cidadania das pessoas. De acordo com o Programa Nacional de Inclusão Social (BRASIL, 2013), “a inclusão digital é um dos caminhos para atingir a inclusão social. Por meio dela, as camadas mais carentes da população podem se beneficiar com novas ferramentas para obter e disseminar conhecimento, além de ter acesso ao lazer, à cultura e melhores oportunidades no mercado de trabalho”. De acordo com Viana (2009), a informatização dos serviços sociais é uma consequência crescente do capitalismo em expansão. Assim, a informatização amplia a camada de trabalhadores que já passaram pelo processo de inclusão digital, que exige cada vez mais a incorporação do saber técnico no processo produtivo, embora esteja contribuindo para a produção de mais-valor capitalista. De acordo com Cantú (2003), para alcançar a qualificação por meio da educação profissionalizante, o Brasil tem se apoiado no engajamento institucional de algumas entidades públicas e privadas, visando uma efetiva oferta de formação profissional, com o intuito de desenvolver a massa de trabalhadores aptos ás novas tecnologias e demandas organizacionais. 35 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. Ainda, a autora explica que, a preocupação com a qualificação profissional faz parte do sindicalismo brasileiro desde os anos 1990. Dentre elas estão elencadas: formação continuada para trabalhadores desempregados; iniciativas de reciclagem de trabalhadores; cursos técnicos para filhos e associados abertos à comunidade; cursos de formação profissional para a população adulta de baixa renda; alfabetização de jovens e adultos e, ainda, formação profissional de dirigentes. Para fazer comparação entre o tempo de escolaridade dos brasileiros e o acesso digital, tem-se o levantamento do IBGE (2010) que aponta que o nível de instrução dos usuários da Internet foi acentuadamente mais elevado que o das pessoas que não utilizaram esta rede. O número médio de anos de estudo dos usuários da Internet foi de 10,7 anos, enquanto o das pessoas que não utilizaram esta rede ficou em 5,6 anos. Observa-se, portanto, que quanto maior o tempo de escolaridade dos brasileiros, maior o acesso à internet. Logo, a escolaridade de uma pessoa, está intrinsecamente vinculada ao conhecimento, habilitação para o mercado de trabalho, capacidade de dominar as ferramentas da informática e o aumento da perspectiva de vida do indivíduo em relação ao futuro. Embora certas dificuldades de trabalho e qualificação profissional façam parte daquelas pessoas consideradas maduras, numa faixa etária acima de quarenta anos idade, um estudo realizado pelo Ministério da Previdência (BRASIL, 2008), observou que o emprego com carteira assinada aumentou nas duas pontas: entre os mais jovens e os que têm acima de 50 anos. O levantamento sugere que houve uma mudança no comportamento das empresas: em 2007, houve um crescimento do número de jovens que conseguiram o primeiro emprego e de trabalhadores com mais de cinquenta anos que voltaram ao mercado de trabalho formal. Entre as pessoas que tinham entre dezesseis e dezenove anos, foram contratados quase 1,9 milhão de jovens, um aumento de 20,54% em relação a 2006. Entre os trabalhadores com mais de cinquenta anos, o maior crescimento foi na faixa dos cinquenta e cinco aos cinquenta e nove anos: mais de 2,1 milhões de pessoas conseguiram emprego, 11% acima do ano anterior. Isto aponta que há mais vagas de emprego no Brasil para pessoas mais maduras do que antes. Este levantamento sugere, portanto, que é possível aumentar esse percentual de pessoas adultas e não mais consideradas jovens, no mercado de trabalho, se estas pessoas fossem mais qualificadas. E, ainda, supõe que boa parte destas pessoas, encontra-se fora do mercado em decorrência de fatores como: idade, baixa escolaridade, exclusão digital, longo período de desemprego e dificuldades financeiras em procurar qualificação profissional, etc. Segundo o IBGE (2010), a maioria dos profissionais brasileiros tem entre vinte e cinco a quarenta e nove anos de idade, compõe 62,5% dos trabalhadores no país. A pesquisa revelou também que o mercado brasileiro registrou aumento de profissionais com cinquenta anos ou mais, representando um grupo de 21,5 % do total de pessoas que trabalham. 36 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. Segundo Malaquias (2003), hoje, "navegar" é imprescindível, sobretudo, dominar as tecnologias de informação. Sem embargos, informação é poder. O analfabetismo digital é um grande fator de exclusão, que resulta em sérias implicações sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Logo a inserção de um público, que até certo ponto possui pouca ou nenhuma afinidade com o mundo virtual, é algo que atualmente se faz extremamente necessário, para sua integração junto a sociedade tanto a nível pessoal ou profissional. As pessoas da terceira idade necessitam de um tempo maior e seguem um ritmo mais lento para aprender a manipular e assimilar os mecanismos de funcionamento desses artefatos (Kachar, 2003; 2009) Sendo assim ao propiciarmos um ambiente amigável, onde possam se sentir seguros, permitimos que assim eles se familiarizem e consigam ampliar seus horizontes, com relação a este novo mundo. Ainda segundo Kachar (2003), o uso dessa ferramenta permite a pessoas com mais idade, uma melhora das condições de interação social e estímulo à atividade mental. Malaquias (2003) afirma que, nosso país não pode perder essa chance histórica e singular que é se desenvolver, concomitantemente, com o desenrolar da revolução da Informática. De forma que se faz necessário, consequentemente, seja dada a oportunidade de acesso aos brasileiros à educação visando a inclusão digital, no sentido que de só assim haverá o exercício democrático da cidadania plena. 2 DESCRIÇÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO O avanço da tecnologia cresce a cada dia e a ausência desse conhecimento nos deixa alheios do mundo digital e globalizado. Segundo Carreazo (2010) a tecnologia é uma necessidade absoluta, dela não podemos escapar. Ela tem um papel muito grande na maioria dos aspectos de nossas vidas. Em outras palavras, ela responde a maioria dos problemas da humanidade. A importância da tecnologia está apontando para maior conforto de utilização em qualquer forma. Ela sempre orienta para a facilidade na vida. Nesse sentido, o conhecimento da informática se tornou algo indispensável tanto para atender às necessidades do mercado de trabalho quanto para atender às necessidades pessoais. Porém, a falta do conhecimento da informática na educação fez com que parte da população brasileira chegasse à fase adulta ou madura, sem ao menos “tocar” em um computador. Pensando neste desafio, na tentativa de inserir pelo menos uma pequena parte desta população no mundo da tecnologia, o projeto foi planejado. 37 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. Inicialmente, é importante descrever algumas informações relevantes sobre esse projeto de extensão. Com a finalidade de promover inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas a partir de quarenta anos de idade, ele possui a participação de 11 acadêmicos extensionistas, pertencentes aos cursos de Administração de Empresas e Ciências Contábeis da UnU de Aparecida de Goiânia e assiste um total de 18 pessoas da comunidade, com apenas duas desistências ao longo do semestre. Iniciado em setembro de 2013, o projeto ocorre duas vezes na semana, com carga horária de 2h/a por dia, no período vespertino. Os encontros são intercalados, numa aula ocorre aula de informática básica e na outra ocorre a assessoria de emprego (com palestras sobre empregabilidade, dicas e noções de como procurar emprego e nele se manter). Por esse motivo, os acadêmicos extensionistas dividem-se em duas equipes e fazem revezamento entre as aulas, embora boa parte desses alunos tenha optado pela participação e atuação nos dois encontros semanais, situação gerada pelo envolvimento ativo dos mesmos no projeto e percepção destes da necessidade da presença de um grupo maior de monitores para alcançar a demanda dos aprendizes. São os próprios acadêmicos que, na condição de monitores fazem a pesquisa bibliográfica, elaboram as aulas, organizam os slides, organizam teatros e dinâmicas motivacionais e organizam o lanche nos intervalos das aulas (a intenção do café com biscoitos é de promover um ambiente mais acolhedor para aliviar a tensão no momento do aprendizado). Observou-se durante as aulas que já foram ministradas uma grande dificuldade entre as pessoas que estão aprendendo informática básica, muitas delas não sabiam sequer ligar um computador e chegaram a relatar que nunca haviam feito isso anteriormente. Foram detectadas algumas dificuldades consideradas simples tais como: manusear o mouse, posicionar as mãos no teclado, minimizar ou fechar um arquivo que esteja sendo utilizado, etc. A necessidade de acompanhamento destas pessoas de forma individualizada era e ainda continua sendo constante. Dentre os membros da comunidade que participam do projeto, estão pessoas com idade acima de sessenta anos de idade, que embora possuam muita dificuldade, não demonstram resistência em aprender. E por isso, para alcançar a aprendizagem de todos, os monitores realizam sucessivas pausas até que todos confirmem que conseguiram executar a atividade sugerida e, ainda, algumas atividades ficam pendentes para a próxima aula. Todavia, o declínio de algumas atividades não inviabiliza a apropriação e o domínio do recurso tecnológico, mas exige um contexto educacional específico que atenda às condições de aprender sobre a máquina e por meio dela explorar outras possibilidades de desenvolvimento do indivíduo. As pesquisas sobre a aprendizagem e utilização do computador, por idosos, no Brasil, são ainda escassas, por isso a metodologia de ensino e aprendizagem específica, para eles, apresenta muitos aspectos ainda a serem estudados (Kachar, 2003). 38 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. As pessoas com uma maior idade, como é o caso de nossos alunos, apresentam uma maior dificuldade com relação ao manuseio, visualização e memorização das informações que dizem respeito ao computador, porém o ambiente que é proporcionado durante as aulas permite uma interação entre os alunos e o estabelecimento de uma amizade entre eles e os tutores, assim sendo, as dificuldades que foram apresentadas ao longo do tempo acabaram diminuídas ou até sanadas. Entretanto, alguns autores salientam a necessidade de se planificar propostas metodológicas direcionadas para a população idosa, tendo em atenção o seu processo cognitivo, o ritmo que é mais lento, os recursos que se tornam mais limitados e as restrições sensoriais próprias do envelhecimento. Mais especificamente, no que concerne ao ensino das TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) a idosos, é necessário promover um ambiente de aprendizagem próprio para os indivíduos em questão, que passa pela criação de uma interação com a máquina de acordo com as suas necessidades e condições físicas (PEREIRA; NEVES, 2011). Foi criado um ambiente onde podemos corroborar para a diminuição das dificuldades dos alunos e também foi elaborada uma metodologia de ensino participativa e com uma interação aluno-professor muito grande, de modo que conseguimos trazer uma segurança aos alunos, para apresentarem suas dificuldades e aceitarem nosso auxilio. Observou-se que, durante o semestre, a assiduidade e envolvimento dos acadêmicos envolvidos no projeto foram acima do esperado. Dentre alguns relatos feitos pelos alunos monitores podemos mencionar: [...] fui um dos primeiros acadêmicos a fazer a inscrição neste projeto, confesso que me inscrevi com muita insegurança pois sempre fui tímido, calado, nunca fui de interagir com pessoas que não conhecia. [...] posso afirmar que este projeto também mudou a minha vida, no sentido de me ajudar a falar em púbico, hoje consigo falar com segurança com as pessoas que estão olhando para mim. [...] Me sinto honrado de fazer parte deste projeto, fico realizado de ver estas pessoas com o sorriso no rosto pela satisfação de aprender algo novo, isso não tem preço, este projeto da professora me fez perceber que podemos mudar o mundo algum dia. (Relato do acadêmico Jandersson Ferreira de Paula no dia 13 de dezembro de 2013, atua como monitor do Projeto de Extensão Inclusão Digital e Assessoria de Emprego) [...] O projeto de extensão – Inclusão Digital é uma experiência que levarei comigo para a vida toda. Não sabíamos que ajudar as pessoas é tão bom, o mais legal é que são coisas simples que modificam a vida das pessoas. [...] O projeto ajudou os acadêmicos da universidade a se desenvolverem na apresentação em público e no diálogo com as pessoas. E, sem contar que ajudamos a população que nunca nem teve contato com o computador a manuseá-lo apesar das dificuldades por ser o primeiro contato com o mesmo. Mais que no final deu tudo certo e os alunos adoram sentar em frente o computador e usá-lo. Foi uma coisa tão interessante, que nunca tinha vivenciado. No percorrer das aulas criamos muito afeto e carinho uns pelos outros, isso foi incrível a relação entre aluno e professor em sala de aula motiva nós acadêmicos participantes do projeto e aos alunos da região que estão aprendendo de forma básica a mexer e manusear um computador. [...](Relato da acadêmica Lorena Xaves no dia 15 de dezembro de 2013, atua como monitora do Projeto de Extensão Inclusão Digital e Assessoria de Emprego). 39 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. Em adição, a utilização de computadores e das tecnologias de informação e comunicação a eles agregados, abrem uma nova perspectiva de resgate e inclusão social, por contribuírem para o aumento da autoestima das pessoas idosas já que, além de ampliar os horizontes da comunicação, aumenta sua interação social e independência, como também a legitimação do idoso enquanto cidadão crítico e reflexivo. (Sales; Xavier; Bayer, 2003). Com o projeto pretendia-se trazer um novo leque de informações aos alunos, que agora têm um maior conhecimento sobre essas novas tecnologias e podem se inserir de uma maneira mais acentuada nesse novo ambiente. Permitindo um aumento da interação social com os demais usuários da rede, sendo que agora se tornaram mais independentes com relação ao manuseio da máquina. Assim, possibilitando às pessoas que fazem parte de uma faixa etária mais madura, meios de se familiarizam com as novas tecnologias, estima-se que consigam acompanha-las. Podemos então, demonstrar esses mecanismos de uma forma participativa e acolhedora, transformando e dando novos horizontes aos alunos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora o desemprego seja um fator preocupante para todas as faixas etárias, ele é mais grave entre as pessoas que já passaram dos 40 anos de idade. Entretanto, adequadamente preparadas, as pessoas desempregadas que se encontram no universo da faixa etária proposta, certamente terão reduzido o tempo de desemprego. É sabido que sem a devida qualificação, elas possuem um tempo maior que as aquelas consideradas jovens para conseguir um novo trabalho. Por este motivo, é que emerge a necessidade de viabilizar o mais rápido possível, oportunidade de trabalho a essas pessoas. É indubitável que, mesmo em proporção pequena, este projeto esteja alcançando essa possibilidade. Por isso é que a extensão numa Instituição de Ensino Superior é considerada um de seus pilares. Tem-se observado maior autonomia dos alunos inscritos, não somente no uso do computador, como também no manuseio de caixas eletrônicos, celulares e outros aparelhos eletrônicos, assim, a experiência do projeto faz-se satisfatória. Essa autonomia é libertadora, gera sentimento de pertencimento à sociedade em sua era pós-moderna e torna a ação extensionista relevante. Os relatos deixados neste texto não são conclusivos, por isso, ficam as considerações de que a inclusão digital é necessária e viável e, principalmente, desejada por aqueles que não se sentem aptos a manusear uma simples operação num computador. Por isso, fica aqui a descrição de 40 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014. alguns relatos e discussões, como possibilidade de reflexões, sugestões, mudanças e retomadas de posições. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho?: ensaio sobre metamorfose e a centralidade do mundo do trabalho. SP: Cortez, Universidade Estadual de Campinas, 1998. BRASIL. Ministério da Previdência. Disponível em: http://www.mpas.gov.br/buscaGeral.php. Acesso em: 15 abr. 2013. BRASIL. Programa de Inclusão Social. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/sobre/educacao/acesso-a-bibliotecas-publicas-na-rede. Acesso em 01 mai. 2013. CANTÚ, Margarete. Qualificação profissional, inserção, reinserção e permanência no mercado de trabalho: os egressos do programa Integrar. UFRS: 2003. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2057/000363361.pdf?sequence=1. Acesso em: 02 mai. 2013. CARREAZO, Diana Isabel. A importância da Tecnologia em Nossas Vidas. 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A conclusão é a de que os mitos modernos podem ser manifestar tanto como ideologia quanto como utopia, sendo que a classe social que é responsável pela sua produção oferece a tendência ideológica ou utópica, tal se percebe nas manifestações analisadas do mito como antissemitismo e como messianismo. This article aims to discuss the myth and its manifestation in the modern world. Forms of myth in capitalist society are analyzed based on the concepts of ideology and utopia. The conclusion is that modern myths can be manifested as both ideology and utopia, and social class that is responsible for its production offers the utopian or ideological bias, as can be seen in the demonstrations analyzed the myth as anti-semitism and how messianism. Palavras-Chave: Mito, Ideologia, Utopia, Classes Keywords: Myth, Ideology, Utopia, Social Classes, Sociais, Messianismo, Antissemitismo. Messianism, Anti-Semitism. O mito é uma das manifestações culturais mais antigas da humanidade. Apesar disso, não recebeu a mesma atenção que outros fenômenos culturais. Uma das razões para isso é a suposição, comum nas representações cotidianas, de que os mitos desapareceram na sociedade capitalista, na qual a secularização e racionalização não permitiriam manifestações do “pensamento primitivo”. Essa suposição, no entanto, pode ser questionada. Sem dúvida, os mitos na sociedade moderna não poderiam se manifestar exatamente da mesma forma que nas sociedades simples ou pré-capitalistas, mas a suposta racionalização total de nossa sociedade é uma ficção. Por conseguinte, para saber se o mito se manifesta ou não na sociedade capitalista, é necessário, em primeiro lugar, explicitar o que é um mito. Dentre as diversas concepções de mito (LÉVI-STRAUSS, 1978; CASSIRER, 1985; GODELIER, 1982; ELIADE, 1989a)2, grande parte assume um caráter ideológico, ou seja, são um sistema de pensamento ilusório que busca definir o mito mas que acaba ofuscando o seu verdadeiro caráter (VIANA, 2011). Nesse sentido, começaremos definindo mito para depois ver suas manifestações na sociedade moderna. 1 Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB. Sem dúvida, existem di versas outras abordagens do mito, mas não julgamos necessário citar todas elas. Para uma análise crítica destas quatro abordagens do mito, cf. Viana (2011). 2 42 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. O primeiro ponto a se destacar é que o conteúdo do mito não se encontra nele mesmo, pois uma representação não pode se autonomizar em relação àqueles que a produziram, ou seja, os seres humanos. Segundo Marx: (...) “As representações que estes indivíduos elaboram são representações a respeito de sua relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações de atividades, de sua produção, de seu intercambio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente condicionados, em outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram” (MARX e ENGELS, 1982, p. 36). Os mitos são representações que buscam explicar e conhecer o mundo, devido às necessidades existenciais e sociais, e que servem para se atuar sobre a realidade reconhecida ou pelo menos se situar diante dela sem ocorrer ricos desnecessários. Entretanto, existem várias outras representações que buscam o mesmo objetivo, pelo menos motivos, e apresentam os mesmos resultados. Portanto, a definição do mito não pode se limitar a isto, pois é necessário delimitar a forma específica em que ele se manifesta para compreendermos sua especificidade enquanto forma cultural. Entretanto, não se pode autonomizar esta forma cultural, pois aí retornaríamos ao formalismo (com todos os seus defeitos: descrição ao invés de explicação, generalização abusiva a todas as formas parecidas de discurso, etc.). A definição do mito, assim como de todas as formas culturais, deve se basear na unidade de seu “fundamento material” e sua forma específica de manifestar tal fundamento. A especificidade do mito encontra-se, como diria Hegel (1980), nas “imagens” ou na “forma do figurativo” sob as quais se manifesta. A característica dom mito é que ele se manifesta sob uma determinada “linguagem simbólica”. Entretanto, em antropologia muito se fala dos “símbolos” e do “simbólico”, mas geralmente não se define esses termos. Concordamos com a definição de Erich Fromm: (...) “Costuma-se definir símbolo como 'algo que representa outra coisa'. Essa definição parece um tanto decepcionante. Torna-se mais interessante, entretanto, caso nos interessemos pelos símbolos que são expressões sensoriais da visão, audição, olfato e tato como representando 'outra coisa' que é uma experiência interior, um sentimento ou pensamento. Um símbolo dessa espécie é algo exterior a nós mesmos; o que ele simboliza é algo dentro de nós. A linguagem simbólica é aquela por meio da qual exprimimos experiências interiores como se fossem experiências sensoriais, como se fosse algo que estivéssemos fazendo ou que fosse feito com relação a nós no mundo dos objetos. A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e nossas mentes” (FROMM, 1983, p. 20). 43 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. Resta, então, esclarecer qual é a relação entre o símbolo e o que é simbolizado. E, Fromm distingue três espécies de símbolos: o convencional, o acidental e o universal. O símbolo convencional é aquele que aplicamos na linguagem cotidiana. Tomemos como exemplo a palavra “mesa”: ela representa outra coisa, que é um objeto que nós vemos, tocamos e usamos. Qual é a relação entre a palavra e o objeto? Não existe nenhuma relação inerente entre esta palavra e este objeto. A única razão para tal palavra simbolizar tal objeto se encontra na convenção de dar o nome de “mesa” a este objeto determinado, ou seja, determinado nome foi dado a determinado objeto por convenção. Não só as palavras, mas também as imagens podem ser símbolos convencionais. Por exemplo, uma bandeira que representa determinado país e foi adotado convencionalmente como símbolo. Segundo Erich Fromm: (...) “O oposto exato do símbolo convencional é o símbolo acidental, apesar de ambos terem uma coisa em comum: não há relação intrínseca entre o símbolo e o simbolizado. Suponhamos que alguém teve em certa cidade uma experiência dolorosa; ao ouvir o nome dessa cidade, facilmente ligará o nome a um estado de espírito deprimido, tal como o associaria a uma disposição alegre se a experiência tivesse sido agradável. Está claro nada existir de um triste ou alegre na natureza da cidade: é a experiência individual ligada à cidade que transforma em símbolo de um estado de ânimo”(FROMM, 1983, p. 21). O símbolo universal, segundo Erich Fromm, apresenta uma relação intrínseca entre o símbolo e o simbolizado. Fromm explica esta espécie de símbolo através do exemplo do fogo: (...) “Ficamos fascinados por certas qualidades dum fogo aceso numa lareira. Antes de mais nada, por sua atividade, ele muda constantemente, mexe-se todo o tempo, e no entanto há constância nele: permanece igual sem ser o mesmo. Dá impressão de força, energia, graça e leveza. É como se tivesse uma fonte inexaurível de energia. Quando usamos o fogo como símbolo, descrevemos a experiência interior caracterizada pelos elementos percebidos na experiência sensorial do fogo: o estado de espírito de energia, leveza, movimento, graça e regozijo – às vezes outro desses elementos, predominando no sentimento” (FROMM, 1983, p. 22-23). Acontece que em determinadas sociedades certos símbolos universais mudam de significado. O sol, por exemplo, nos países nórdicos assume um aspecto simbólico positivo devido à existência abundante de água e todo o crescimento depender da luz solar enquanto que, nos países tropicais, o sol assume um aspecto negativo, pois, devido seu calor intenso, lá ele se apresenta como uma força perigosa da qual é necessário se proteger. Portanto, as experiências se manifestam simbolicamente diferentes e por isso podemos dizer que existem diversos “dialetos simbólicos”. Além disso, um mesmo símbolo pode ter mais de um significado, pois diferentes tipos de experiências podem ser relacionados e associados a um mesmo fenômeno natural. Qual é a relação destas três espécies de símbolos e linguagem simbólica? A linguagem simbólica como expressão do “mundo interior” descarta o símbolo convencional, pois este não possui os seus elementos fundamentais. O símbolo acidental, por sua vez, dificilmente pode ser compartilhado por outros indivíduos e por isso é muito raro sua utilização nos mitos ou na 44 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. literatura, nos contos de fada, etc. Escritas em linguagem simbólica. Portanto, a linguagem simbólica dos mitos utiliza, fundamentalmente, os símbolos universais. Entretanto, não é suficiente definir o mito como uma “linguagem simbólica”, pois a poesia também é uma linguagem simbólica e não é um mito. Embora o mito se utilize dos símbolos universais isto não é privilégio seu. A especificidade do mito está não só no fato dele se manifestar sob linguagem simbólica, mas na forma específica na qual realiza isto. Consideramos que esta linguagem simbólica tem como características próprias: a) tal como colocou Mircea Eliade (1989a; 1989b; 1988), aqueles que produzem e reproduzem o mito acreditam dele como algo verdadeiro e, além disso, sua reprodução se dá em coletividade, que é a dos seus produtores e reprodutores; b) o mito realiza o processo de personificação e é desta forma que ele busca explicar o mundo. Portanto, se formos definir os mitos em poucas palavras, diríamos que eles são representações que buscam explicar e conhecer o mundo provocadas por necessidades existenciais e sociais que servem para atuar sobre a realidade buscando controlá-la ou se situar diante dela. Essas representações se manifestam sob uma linguagem simbólica que é considerada verdadeira pelos que a produzem e reproduzem e que executa o processo de personificação e assim busca explicar o mundo. Estas necessidades existenciais são as necessidades de resposta ao que Erich Fromm (1961) chama de “dicotomias existenciais”, que são a posição do homem diante da morte, a sua impossibilidade de desenvolver toda a sua potencialidade devido a curta duração da vida e o fato do homem ser um ente individual orgânico (logo, sozinho) que só se sente bem ao lado de outros de sua espécie. As necessidades sociais estão ligadas às relações dos homens entre si e com a natureza, inclusive para satisfazer as suas outras necessidades (biológicas e psíquicas). Existe, obviamente, um entrelaçamento entre esses tipos de necessidades. Portanto, esse é o conteúdo do mito, sua “essência”. Mas, como dizia Hegel (1980), a essência em sua manifestação concreta é existência. Por isso, o mito assume formas diferentes em sociedades e tempos históricos diferentes. Os mitos nas sociedades simples tratam da origem do cosmos, do homem, das instituições, etc. A dependência do homem em relação à natureza nestas sociedades faz com que ela se torne o tema fundamental dos mitos, embora as relações sociais se apresentem também como temas. Tal como colocou Hegel (1980) e Godelier (1985), as mitologias nas sociedades simples apresentam-se sob a forma do antropomorfismo. Os seres da natureza ganham características humanas. Dentre essas características existe uma que é fundamental e que explica todas as outras: a intencionalidade. O sol, a lua, o mar, etc. ganham intencionalidade, se tornam agentes. Essa intencionalidade não difere em nada da intencionalidade humana, a não ser as “razões ocultas” que movem as ações das divindades. 45 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. Resta saber os motivos que levam os homens a executar esse procedimento. Uma explicação para isso foi dada por E. P. Tylor. Segundo Pierre Smith (1978), Tylor afirmava que foram as ilusões do sonho que criaram a crença em almas e espíritos que, para os indígenas, tudo povoam e assim fundaram os mitos. Estes seriam uma análise confusa da realidade. Os deuses e heróis da mitologia seriam personificações de forças naturais explicadas por “doença da linguagem” que permite a transformação de objetos inanimados em sujeitos de ação. Portanto, a explicação do antropomorfismo se encontra nas “ilusões do sonho”. Esta explicação, entretanto, nos parece inconsistente. Consideramos que a relação do homem com a natureza é mediada pelo trabalho e neste o homem atua sobre a natureza e esta, de acordo com a regularidade seu funcionamento, responde à ação humana. Além do trabalho material que o homem realiza sobre a natureza, mas relacionando-se com ele, há também um trabalho intelectual sobre ela, onde se busca compreendêla. Essa busca de compreensão da natureza (e também das relações sociais) é mediada pelo trabalho intelectual da consciência. O homem não pode possuir uma “consciência da natureza”, mas sim uma consciência da sua relação com a natureza (VIANA, 2007b). Esta autoconsciência produz uma visão da natureza que tem como referencial o próprio homem em sua relação com a natureza. Sendo o homem o referencial para a compreensão da natureza torna-se compreensivo o antropomorfismo. Os conceitos, os sentimentos, as relações que são próprias do homem são transferidos para a natureza por serem o referencial que eles possuem para buscar compreendê-la e explicá-la. A personificação dos seres naturais, que assim se tornam “sobrenaturais”, é um procedimento racional realizado em condições sociais determinadas3. Essa situação se modifica com o processo crescente de separação entre o homem e a natureza, provocado pelo desenvolvimento das forças produtivas. O homem adquire, com isto, a autoconsciência da real diferença entre ele e a natureza. São os homens que são portadores de intelectualidade e não a natureza. Quando as populações das sociedades simples entram em contato com outras populações (principalmente no caso dos povos ocidentais e suas invasões) há uma reformulação dos mitos, ou seja, os mitos também estão envolvidos da dinâmica histórica. Vejamos isto através de um exemplo. Os índios hidatsa, norte-americanos, tinham mito que dizia o seguinte: “(...) dois demiurgos criaram a terra e fizeram emergir os humanos do mundo subterrâneo. Depois que as tribos e as línguas se diversificaram, aconteceu, em certo lugar, que uma 3 “As religiões e as mitologias dos povos são produtos da razão que se torna consciente. Embora pareçam ainda tão insuficientes, tão pueris, contudo contém o momento da razão; o instinto da racionalidade as fundamenta” (HEGEL, 1980, p. 112). Para Hegel, a mitologia é produto da “razão fantasiadora”. No entanto, isto só pode ser afirmado partindo do ponto de vista de nossa sociedade, que tem outro referencial, caracterizada por possuir uma relação diferente com a natureza e relações sociais também distintas e que por isso a mitologia aparece como equivalente da “fantasia”. Portanto, a mitologia não é produto da “razão fantasiadora” e sim da razão, só que esta trabalhando a partir de outro referencial. 46 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. mulher 'ofereceu de beber' (provavelmente um eufemismo) a seu jovem cunhado. Este julgou o oferecimento inconveniente e declinou do convite. Furiosa por ter sido repelida, a mulher acusou seu cunhado de ter pretendido violá-la, e, a pretexto de conduzi-lo à guerra, o marido ultrajado abandonou seu irmão mais novo numa ilha. Os deuses intrometeram-se na questão, tomando partido por um ou por outro dos irmãos. Os protestos do irmão prevaleceram finalmente e destruíram, numa conflagração, o irmão casado e quase todos os habitantes da aldeia. Os sobreviventes separaram-se. Os que partiram para o norte, tornaram-se os Crow-hidatsa; os que formam para o sul, os awaxawi, cuja migração foi provocada por um dilúvio, que se seguiu aos acontecimentos, dirigiram-se para o Missouri, onde encontraram, mais tarde, outro grupo hidatsa, os awatixa. Quanto aos Crow-hidatsa propriamente ditos, voltaram para o sul, onde se cindiram, dando origem às duas tribos respectivamente conhecidas por esses nomes (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 147-148). (...) questão, tomando partido por um ou por outro dos irmãos. Os protestos do irmão prevaleceram finalmente e destruíram, numa conflagração, o irmão casado e quase todos os habitantes da aldeia. Os sobreviventes separaram-se. Os que partiram para o norte, tornaram-se os Crow-hidatsa; os que formam para o sul, os awaxawi, cuja migração foi provocada por um dilúvio, que se seguiu aos acontecimentos, dirigiram-se para o Missouri, onde encontraram, mais tarde, outro grupo hidatsa, os awatixa. Quanto aos Crow-hidatsa propriamente ditos, voltaram para o sul, onde se cindiram, dando origem às duas tribos respectivamente conhecidas por esses nomes (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 147-148). Este mito relata migrações, fusões e separações de tribos que ocorreram historicamente. Segundo Lévi-Strauss, De fato essas migrações são aquelas provocadas por ataques dos Ojibwa dos bosques, armados pelos colonos franceses do Canadá, e em consequência de que os ancestrais comuns dos Crow e dos hidatsa tiveram que refugiar nas planícies. A arqueologia confirma esses movimentos de populações. A chegada dos Awatika ao Missouri, a separação ulterior dos Crow-hidatsa em duas tribos, são também fatos históricos atestados (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 149). Vemos, portanto, que as novas condições históricas e a nova situação social se refletiram na explicação mítica do mundo, inclusive criando novos temas, pois muda-se também o próprio significado de elementos existentes no mito, tal como demonstra os maias de Yucatán que consideravam os Dzules (estrangeiros) como deuses e após a invasão espanhola passaram a considerá-los como destituídos de sabedoria, palavras e ensinamentos, aqueles que vieram para “ensinar o terror”, “secar as flores”, “mutilar o sol”, e que deixaram apenas “a amargura” (GENDROP, 1987). Demonstrando que o mito muda temas e significados com a mudança histórica e social e que tais mudanças ocorreram dentro de sociedades simples. Resta saber qual é o tipo de mudança que ocorre no mito quando se instaura uma sociedade complexa em substituição a uma sociedade simples. Portanto, é aqui que devemos colocar a questão do mito no mundo moderno 4. A contradição entre o homem e natureza como tema fundamental dos mitos nas sociedades simples é substituída pelo tema das contradições sociais nas sociedades de ascensão da sociedade capitalista traz consigo a “secularização” (parcial) da cultura e juntamente com ela se expande o racionalismo 4 Por “mundo moderno” entendemos as sociedades em que predomina o modo de produção capitalista, ou seja, capitalismo e modernidade são uma única e mesma coisa. 47 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. e o cientificismo. Entretanto, isso não afeta todas as classes sociais com a mesma intensidade, pois classes trabalhadoras possuem menor acesso às “conquistas da ciência” e as classes privilegiadas possuem um maior domínio neste campo. Cada classe social produz aqueles que irão sistematizar as ideias e/ou ilusões sobre si e sobre a sociedade. Na classe dominante realiza-se uma divisão entre aqueles que executam o trabalho manual e aqueles que executam o trabalho intelectual (MARX e ENGELS, 1982). No caso das classes trabalhadoras, a elaboração de suas concepções acerca de si e da sociedade é realizada principalmente pelos seus próprios integrantes que não exercem uma profissão intelectual embora existam algumas exceções. Se retornarmos a tese de que os homens criam representações reais ou ilusórias como expressão consciente de suas relações sociais então devemos ver a diferença entre estes dois tipos de representações e como elas se relacionam com as classes sociais. A ideologia dominante é, como dizia Marx, a ideologia da classe dominante (MARX e ENGELS, 1982). Esta busca “naturalizar” e “universalizar” o mundo existente e assim evitar o reconhecimento da história e das contradições sociais. Ela é, portanto, uma representação ilusória da realidade, ou seja, é uma inversão da realidade, falsa consciência, sistematizada pelos ideólogos (MARX e ENGELS, 1982). As classes exploradas, devido a sua própria situação social, não podem evitar o reconhecimento da história e das contradições sociais e por isso apresenta em suas representações a necessidade da mudança. Portanto, a classe dominante evita reconhecer a história e as classes exploradas buscam, ao contrário, reconhecê-la e, consequentemente, as ideias da classe dominante são conservadoras e as ideias das classes exploradas são revolucionárias. No primeiro caso, temos a ideologia e, no segundo caso, a utopia. Se a ideologia busca “naturalizar” e “universalizar” o existente, a utopia traz, ao contrário, a proposta de um novo existente, ou, mais exatamente, uma nova sociedade que constitui uma mudança radical. Entretanto, tal como exposto por Ernst Bloch, existem dois tipos de utopia: a utopia abstrata e a utopia concreta (BICCA, 1987). A utopia concreta é aquela que leva em consideração as possibilidades de sua realização enquanto a utopia abstrata não fundamenta as condições de sua concretização. A relação entre mito e ideologia é bastante complexa, pois a ideologia só surge com a divisão entre trabalho manual e intelectual, ou seja, quando surgem os ideólogos, e o mito surgiu antes de tal divisão. Em outras palavras: a ideologia surge com a ascensão das sociedades de classes e o mito é anterior ao surgimento dessas sociedades. Isto quer dizer que o mito não é uma ideologia nas sociedades sem classes, embora possa, numa sociedade classista assumir a forma de ideologia. A ideologia, por sua vez, pode assumir a forma de mito, embora isto seja raro por possuir inúmeras outras formas de se manifestar. 48 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. A relação entre mito e utopia é semelhante mas não é igual. A utopia também surge com o aparecimento das sociedades de classes e se apresenta sob as duas formas acima citadas. O mito surge antes mas se reproduz de forma modificada nas sociedades classistas. O mito, quando propõe uma nova sociedade e realiza a crítica da sociedade existente, assume a forma de utopia, embora por suas características intrínsecas, como demonstraremos mais à frente, somente pode assumir a forma de utopia abstrata. A utopia, assim como a ideologia, possui inúmeras outras formas de se manifestar. Se recordarmos a definição de mito apresentada anteriormente, veremos como ele se manifesta no mundo moderno. O deslocamento da contradição do homem com a natureza para as contradições sociais cria a necessidade se buscar compreender e controlar principalmente os fenômenos sociais, ao invés, como nas sociedades simples, os fenômenos naturais, neste sentido, o tema dos mitos modernos são “secularizados” e tornam-se sociais. A transformação ou conservação das relações sociais tornam-se produtos da ação social. Se os mitos das sociedades simples personificam os seres da natureza transformando-os em “seres sobrenaturais”, os mitos das sociedades complexas fazem com que essa “natureza personificada”, reconhecida pela “herança cultural”, se materialize em pessoas e/ou grupos sociais. Os mitos, nas sociedades simples, servem como regularizador das relações e ações sociais por serem “modelo exemplar” que se deve reproduzir, seja através de tabus ou rituais5. Nas sociedades complexas, os mitos também cumprem o papel de incentivar ações sociais, seja através da prática política ou de rituais. Os mitos são representações que fundamentam ações sociais e por isso não podem ser analisados isoladamente em sua dimensão simbólica, pois as ações que eles provocam estarão sempre presentes. Podemos dizer que os mitos na sociedade capitalista foram precedidos por outros nas sociedades de classes pré-capitalistas. Entretanto, como nosso objetivo é tratar dos mitos no mundo moderno, só trataremos dos mitos nas sociedades classistas pré-capitalistas quando contribuírem para compreensão dos “mitos modernos”. Os mitos no mundo moderno se manifestam tanto como ideologia quanto como utopia abstrata. O exemplo mais típico nesse último caso é o do messianismo. Embora alguns autores coloquem que o messianismo tenha surgido a partir do declínio do mundo feudal (MANNHEIM, 1986), o primeiro movimento messiânico na história foi representado pelo cristianismo primitivo6. 5 Georges Sorel, utilizando-se da distinção bergsoniana do “eu superficial” (resultado da adaptação mecânica ao mundo exterior) e do “eu profundo” (que age livremente, de modo criador), coloca que o mito é a tradução em imagens do “eu profundo” das massas e por isso as tornam protagonistas de uma transformação radical. Portanto, o mito com sua linguagem simbólica é “mobilizador” e gera ações sociais. apesar do acerto dessa colocação, Sorel apresenta uma concepção, em alguns aspectos, equivocada do mito e por isso pode julgar a “greve geral” como um mito (cf. PAOLA, 1984). 6 Sobre o caráter messiânico e utópico do cristianismo primitivo existe uma ampla bibliografia (LUXEMBURGO, 1986; FROMM, 1986; HOUTART, 1982). Sobre a integração do cristianismo na sociedade feudal há também uma 49 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. Mas antes de tratarmos do messianismo no mundo moderno, devemos primeiro defini-lo. Os termos “messias” e “messianismo”. Surgiram a partir dos relatos bíblicos e posteriormente passaram a ser aplicados a outros fenômenos fora da religião cristã e judaica, devido à descoberta dos etnólogos da existência de crenças e figuras messiânicas em sociedades primitivas. Segundo Jean-Pierre Dozon o messianismo tem como aspectos essenciais: “1. negação do mundo presente; 2. espera de um mediador: profeta ou messias; 3. crença no milênio” (DOZON, 1978, p. 13). A partir dessa definição vemos que o messianismo é uma subcategoria do milenarismo, pois este pode existir sem a figura de um messias. O milenarismo também apresenta uma estrutura mítica, mas geralmente se reproduz no interior de uma seita e tem suas manifestações bastante reduzidas no mundo moderno7. O profetismo, segundo Dozon, pode ser considerado uma subcategoria do messianismo, pois o profeta é o mensageiro que anuncia a vinda do messias. Maria Isaura P. De Queiróz diz que Max Weber e P. Alphandery apresentaram uma definição muito próxima de messias: “o messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do bem sobre o mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do paraíso terrestre, tratando-se, pois de um líder religioso e social” (1976, p. 27). Portanto, resta saber se podemos definir o messianismo como um mito. Julgamos que sim, pois o messianismo se manifesta, tal como os mitos, sob uma linguagem simbólica que se caracteriza por: a) é considerada verdadeira pelos que a produzem e reproduzem coletivamente; b) realiza a encarnação de um ser ‘sobrenatural’ – tal como definido anteriormente – ou então dota um ser humano de atributos mágicos por ser um enviado dos seres divinos. Entretanto, essa definição é incompleta, pois o mito também é: a) uma representação que busca compreender e explicar o mundo; b) esta representação é provocada por necessidades existenciais e sociais; c) seu objetivo é, ao compreender e explicar o mundo, controla-lo ou se situar diante dele. Consideramos que estes elementos também estão presentes no messianismo. O messianismo também busca compreender e explicar as contradições sociais, pois ele surge em momentos de crise social ou em regiões extremamente empobrecidas, sendo gerado a partir de necessidades existenciais e sociais e seu objetivo é controlar o mundo através da instauração de uma nova “idade de ouro”. As diferenças são evidentes: as representações voltam-se para as contradições sociais, sendo expressão mais destas do que da contradição homem-natureza. E sua atuação sobre o mundo também assume característica de ação política. Outra diferença está em que a personificação de seres da natureza é pressuposta e essa natureza personificada se manifesta através de um homem, o messias que é a encarnação de um ser sobrenatural ou seu “enviado”. ampla bibliografia (LUXEMBURGO, 1986; MANNHEIM, 1972; DOZON, 1978) e sobre o caráter utópico da doutrina cristã no antigo testamento há a obra de Fromm (1988). 7 Sobre o milenarismo, o pré-milenarismo e o pós-milenarismo é interessante a leitura de Dozon (1978), Queiróz (1976); Hobsbawn (1978). 50 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. Portanto, o messianismo é uma forma de manifestação de mito. Tanto o mito quanto o messianismo são representações que possuem as mesmas características e as mesmas raízes. O messianismo, no entanto, é também uma mobilização social, manifestação da luta de classes, além de ser uma representação. O mito, nas sociedades simples, produz um conjunto de atividades que lhe são complementares, assim como o messianismo nas sociedades complexas. O mito e o messianismo são mobilizadores, pois são representações que geram ações coletivas. Entretanto, o messianismo é não só um mito, mas uma manifestação deste sob a forma de utopia abstrata. Isto é comprovado pelo seu discurso utópico que propõe a instauração de uma nova sociedade e por isso traz implícita ou explicitamente uma crítica da sociedade existente. O messianismo surge como uma negação da sociedade existente. Entretanto, existem outras formas de negação da sociedade existente que não utilizam a linguagem mítica. Por isso, para explicarmos o surgimento do messianismo temos que realizar uma análise que supere tanto o reducionismo sociológico (que explica o fenômeno messiânico por razões puramente sociais) quanto o reducionismo religioso (que explica o messianismo por razões puramente religiosas). Ernst Bloch (1973) já dizia que a compreensão da rebelião camponesa liderada por Thomas Münzer, sob a forma de milenarismo, não pode ser proporcionada pelo estudo isolado do aspecto econômico, pois é necessário compreender o contexto cultural em que ele se realizou. (...) convém olhar as rebeliões camponesas mais profundamente e não só levar em conta o seu aspecto econômico, se se quer realmente apreender, o que então aconteceu e podia acontecer, tem-se de levar necessariamente, em consideração, uma outra coação e um outro apelo, ao lado do choque econômico. Pois o apetite econômico é, aliás, o mais sóbrio e permanente, porém não o motivo mais peculiar da alma humana, sobretudo em exaltados tempos religiosos. Não só vacilantes e livres orientações da vontade, bem como estruturas de sentido espiritual, pelo menos sociologicamente reais e amplamente compreensivas, agem efetivamente sobre o acontecimento econômico, ou ao lado dele. A situação do respectivo modo de produção é já, em si mesmo enquanto desígnio econômico, dependente de conjunto de decisões mais altas e complexas, principalmente de sentido religioso, conforme Max Weber demonstrava; portanto, a economicidade logo se encontra bastante sobrecarregada com superestrutura e, no seu autônomo processo, condiciona e efetiva aparição de conteúdos culturais-religiosos, porém de nenhum modo isolada, por sua parte, deste conteúdo. O que significa que não pode, sozinha, fazê-los eclodir, abstraída de um intercondicionamento, entrelaçado com características nacionais, com sobreviventes ideológicos de anteriores relações econômicas, com a ideologia da sociedade em ascensão, cuja superestrutura se encontrava, pois, em vários aspectos, já mais amadurecida que a econômica, cuja madureza só em seguida ocorria. E, finalmente, existe, percebida pela respectiva classe revolucionária, a influência, a longo prazo, por parte do autônomo processo espiritual-religioso, pelo menos ‘histórico-filosófico’ – com frequência interrompido – enquanto autoeducação do gênero humano” (BLOCH, 1973, p. 47-48)8. A partir disto consideramos que o messianismo só pode ser compreendido como expressão das lutas de classes. Acontece que ele é uma expressão específica dessas lutas e para ser 8 A ideia geral de Bloch está correta, apesar de sua linguagem carregar problemas (economia, supesrestrutura, etc.), mas é importante para questionar o economicismo, tal como outros fizeram, especialmente Korsch (1977) e Pannekoek (1978). 51 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. compreendido em sua especificidade é necessário compreender aqueles que estão envolvidos nestas contradições e contexto cultural em que eles vivem. Não tratamos do messianismo na sociedade escravista e na sociedade feudal com suas características particulares, mas apenas de sua manifestação na sociedade moderna. O messianismo surge como produto das contradições sociais, seja a miséria e a destruição do mundo rural tradicional, seja a opressão colonial (principalmente no caso da África) e revela a necessidade sentida pelas classes exploradas de lutar por mudanças sociais. Essa luta por mudanças sociais é realizada muitas vezes inintencionalmente e é esse caráter inintencional que revela suas limitações políticas e faz com que ele não ultrapasse o nível da utopia abstrata. A penetração do modo de produção capitalista em nações ou regiões pré-capitalistas ou não-capitalistas destrói relações sociais tradicionais e traz a resposta das classes exploradas sob a forma de messianismo9. Portanto, um dos motivos fundamentais do surgimento dos movimentos messiânicos é a desestruturação de relações sociais tradicionais pela expansão capitalista. Tal expansão se caracteriza pela subordinação de modos de produção pré-capitalistas ou nãocapitalistas às suas necessidades. Os modos de produção pré-capitalistas são aqueles que são anteriores ao capitalismo (escravismo, feudalismo, modo de produção tributário, etc.) enquanto que os não-capitalistas são aqueles que surgem simultaneamente com o capitalismo (por exemplo, modo de produção camponês e o artesão) e se caracterizam por serem subordinados a ele. A penetração capitalista em modos de produção pré-capitalistas ocorre apenas a nível nacional e somente após isto é com a formação do predomínio do capitalismo juntamente com a formação de modos de produção não-capitalistas é que há a penetração sobre estes últimos, o que leva, com o desenvolvimento capitalista, à sua destruição. Portanto, podemos dizer que o capitalismo só cria relações de produção tipicamente capitalistas e a produção de relações de produção não-capitalistas é produto do contato entre capitalismo e pré-capitalismo ou passagem deste para aquele10. O messianismo como produto do primeiro caso ocorre principalmente em países africanos e como produto do segundo caso em países como o Brasil. O fenômeno messiânico não surge somente da expansão capitalista, mas também da formação cultural de onde ele emerge. O cristianismo primitivo surgiu como uma apropriação/assimilação cultural das mitologias anteriormente existentes realizada pelo povo judeu. O messianismo africano das classes exploradas se caracteriza por ser uma apropriação cultural feita 9 O messianismo nem sempre é uma resposta apenas das classes exploradas quando a penetração capitalista se dá em nações, pois as elites locais podem se utilizar da religiosidade popular para romper com o pacto colonial e implantar sua própria dominação, tal como no exemplo do kimbaguismo na África (DOZON, 1978). 10 Isso entra em visível contraposição com a concepção de José de Sousa Martins, que defende a tese da “produção capitalista de relações de produção não-capitalistas”, inspirado em Rosa Luxemburgo, pois, em nossa concepção, a produção capitalista se expande sobre relações de produção já existentes e tornar o resultado desse contato como produto exclusivo do capitalismo é um equívoco (cf. MARTINS, 1985). 52 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. por estas do cristianismo do colonizador e das mitologias africanas, criando, assim, o sincretismo messiânico. São os agentes histórico-concretos, as classes sociais, que, partindo de suas condições reais de existência que assimilam os elementos culturais existentes para satisfazerem suas necessidades e interesses. Esse processo de assimilação é um processo cultural comum, pois é a partir das necessidades e cultura já existente que se interpreta e produz novas representações. É por isso que no período de crise da sociedade feudal todas as mobilizações sociais contestatórias assumiam uma linguagem religiosa e herética. Os camponeses conviviam com a desarticulação do modo de produção feudal e a formação do capitalismo e sofriam as consequências sociais da ascensão do domínio do capital e do predomínio do mundo urbano e mercantil. A forma dominante da ideologia dominante era a teologia e era esta, portanto, que servia de referencial cultural para os camponeses lutarem pela sua emancipação. Foi por isto que Engels afirmou que no mundo feudal “todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas tinham de ser ao mesmo tempo e principalmente heresias teológicas” (ENGELS, 1978). Vejamos o exemplo do messianismo brasileiro expresso no caso de Canudos e Contestado. Em ambos os casos havia uma desestruturação das sociedades tradicionais e esta atingia as classes sociais mais empobrecidas tanto destruindo seu modo de vida tradicional quanto criando uma situação social insuportável para elas. O conflito de terras, a pobreza, as dificuldades para sobrevivência, que se agravaram depois da proclamação da república, fizeram com que os camponeses identificassem a “República dos Coronéis” como o reino do mal e por isso uma volta à monarquia era tida como um retorno ao reino do bem. A penetração capitalista durante a república dos coronéis acirrou as lutas de classes expressas na luta pela terra, provocando as rebeliões camponesas (MARTINS, 1986; QUEIRÓZ, 1977). Entretanto, isso, por si só, não explica por qual motivo a classe camponesa reagiu diante desta situação usando uma linguagem mítica. É preciso, para compreendermos isto, conhecermos a formação cultural predominante no campo brasileiro nesta época. Neste, o que predominava era a cultura rústica11. A base cultural do messianismo brasileiro era o “catolicismo rústico” (MONTEIRO, 1982). As classes exploradas retiram do universo cultural existente, no caso, do catolicismo rústico, os elementos culturais e os re-elabora fazendo uma assimilação dele para satisfazer suas necessidades, produzindo assim o messianismo. Portanto, o messianismo de Canudos e Contestado são produtos da expansão capitalista no campo e em regiões não-capitalistas e da assimilação cultural que as classes exploradas realizam do catolicismo rústico para compreenderem e explicarem sua realidade e a partir disto agirem diante das transformações sociais que lhes atingiam. A volta da “monarquia”, ou seja, do reino onde 11 Sobre o conceito de “cultura rústica”, cf. Queiróz (1976). 53 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. predomina a “Lei do Céu”, em substituição à “República”, onde predomina a “Lei do Diabo”, é a proposta de uma nova “idade de ouro”, com a implantação do “igualitarismo comunitário”. Os mitos no mundo moderno também se manifestam sob a forma de ideologia. Vamos retomar, então, a discussão sobre ideologia e utopia, mas agora como formas de manifestação do mito. O mito como utopia abstrata é um produto principalmente das classes exploradas enquanto que sob a forma de ideologia é um produto das classes auxiliares da burguesia e em momentos de crise recebem o apoio da classe dominante e tornam-se consolidados socialmente. Outra diferença se encontra no fato de que, como utopia abstrata, o mito coloca a ênfase na construção de uma nova sociedade e na ação do enviado da divindade que representa o bem enquanto que o mito como ideologia coloca a ênfase no combate àqueles que representam o mal para proteger a sociedade existente de suas ações maléficas. Outra diferença substancial encontra-se no fato de que o mito enquanto utopia se manifesta principalmente em regiões subordinadas ou colonizadas, surgindo como negação desta situação, mas o mito como ideologia surge nas regiões dominantes e colonizadoras. Todas essas diferenças podem ser sintetizadas em uma só: o mito como utopia é uma assimilação cultural das classes exploradas da cultura existente para satisfazer suas necessidades e interesses e o mito como ideologia é uma assimilação cultural da burguesia e suas classes auxiliares. Uma das manifestações do mito na sociedade capitalista sob a forma de ideologia é o antissemitismo. O que é o antissemitismo? Antes de responder a esta pergunta é necessário responder outra: o que é semita? Semitas são os “descendentes de Sem”, um dos filhos de Noé, que depois do dilúvio teriam povoado a Ásia, assim como os filhos de Cam povoaram a África e os de Japmet a Europa. Isto, obviamente, é uma crença popular que nem mesmo é coerente com a genealogia bíblica. Nesse sentido, é melhor buscar uma definição melhor fundamentada: (...) A palavra foi criada em 1781 pelo filósofo alemão Schözer para designar um grupo de línguas que constitui uma família, de parentesco evidente, e comparável ao grupo indoeuropeu, a que pertencem idiomas tão diversos como o latim, o alemão, o russo e o sânscrito. As principais línguas semitas são o árabe, o hebraico, o aramaico (ainda falado hoje por uns poucos milhares de indivíduos), além das mortas, como o acadiano ou babilônico e o assírio, usadas nos antigos documentos cuneiformes (MORAIS, 1972, p. 45). Portanto, a palavra semita não possui conotação racial, pois parentesco linguístico não implica parentesco racial. Além disso, os que falam a língua semita pertencem à raças diferentes. Apesar de uma grande diversidade de concepções sobre raças e quantidade de raças, a que é mais próxima da realidade é a que reconhece a existência de apenas três raças: a negroide, a mongoloide e a caucasoide (LEWIS, 1968; VIANA, 2009a; VIANA, 2009b) demais concepções fazem proliferar uma grande quantidade de raças, que, no entanto, dificilmente são sustentáveis. Portanto, por tudo que foi visto é pouco convincente pensar na existência de uma “raça semita”. Resta saber, nesse caso, qual é o sentido da palavra antissemitismo. Segundo Vamberto 54 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. Morais (1972), tal palavra é um “eufemismo incorreto” que busca dar uma “fachada respeitável” ao antijudaísmo. Por isso, a pergunta correta é a seguinte: o que é o judaísmo? Ele era uma religião unitária que se dividiu em duas outras: a dos judeus rabínicos e a dos judeus cristãos. Os primeiros mantiveram as suas crenças originárias intactas enquanto que os outros se tornaram cristãos, ou seja, passaram a defender que o messias – Jesus Cristo – já havia surgido e que teria morrido para salvar a humanidade (MARGULIES, 1976). Os judeus, inclusive, serão acusados de serem responsáveis pela morte de Cristo. Em poucas palavras, o antissemitismo é o antijudaísmo e o judaísmo é uma religião de um povo que se dispersou pelo mundo e sofreu diversas mudanças no decorrer de sua longa história. A origem histórica do antissemitismo se encontra na separação entre judeus e cristãos. Além da divergência sobre a vinda ou não de Cristo, eles se separavam porque o judaísmo se caracterizava por ser um messianismo nacional e o cristianismo um messianismo social. Por isso, os judeus continuaram combatendo o império romano enquanto que os cristão defendiam a tese do “daí a César o que é de César”, pregando um messianismo universalista que não se opunha, diretamente, a Roma. Os cristãos acusavam os judeus de “deicídio”: “a culpa pelo sangue de Cristo cairá sobre todos os descendentes do povo deicida (Mateus, 27, 25), que se assemelhará ao Diabo (João, 8, 44)” (MARGULIES, 1976). Com a integração do cristianismo na sociedade feudal, o judaísmo se tornou ainda mais marginalizado e acabou sendo, em muitos casos, perseguido pela Igreja Católica e os judeus passaram a ser relegados a guetos, de acordo com os interesses dos senhores feudais. Mas o nosso interesse é no antissemitismo na sociedade moderna. O antissemitismo vem para compreender e explicar as razões das tensões sociais, das crises sociais e financeiras, das dificuldades das classes sociais subsidiárias, e, como em todo mito, a partir deste “saber”, busca controlar ou se situar diante da situação existente. As necessidades que levam os seres humanos a adotar essa visão da realidade é o sentimento de insegurança e impotência de determinadas classes diante da crise social e financeira e o temor da burguesia em relação ao proletariado. Tal compreensão e explicação do mundo são consideradas “verdadeiras” pela coletividade que a produz e reproduz, ou seja, os antissemitas. O antissemitismo busca concentrar o mal nos judeus. No fundo, eles criam um inimigo imaginário (VIANA, 2007a; VIANA, 2009a). A “conspiração judaica” para dominar o mundo é apresentada como obra dos “judeus capitalistas” ou dos “judeus comunistas”. Claro que isto é bastante confuso e ambíguo. Segundo Jean-Paul Sartre: (...) Para o antissemita, o que faz o judeu é a presença nele da judiaria, princípio judeu análogo ao Flogístico ou à virtude dormitiva do ópio. Não nos iludamos: as explicações pela hereditariedade e pela raça apareceram mais tarde, são como o tênue revestimento científico desta convicção primitiva; muito antes de Mendel e Gobineau, existia o horror ao judeu e os que o experimentavam não poderia explicá-lo senão dizendo, como Montaigne 55 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. dizia de sua amizade por La Boetie: ‘porque é ele, porque sou eu’. Sem esta virtude metafísica, as atividades atribuídas ao judeu seriam rigorosamente incompreensíveis. De fato, como conceber a obstinada loucura de um rico comerciante judeu que deveria, se fosse razoável, almejar a prosperidade do país onde comercia e que, segundo nos afiançam, se encarniça em arruiná-lo? Como compreender o internacionalismo nefasto de homens cujas famílias, afetos, costumes, interesses, natureza e fonte de suas fortunas deveriam ligá-lo ao destino de um país particular? Os hábeis falam de uma vontade judaica de dominar o mundo: mas ainda aqui, se não possuirmos a chave, as manifestações desta vontade correm o risco de nos parecer ininteligíveis; pois, ora nos apontam atrás do judeu, o capitalismo internacional, o imperialismo dos trustes e dos traficantes de canhões, ora o bolchevismo, com seu punhal entre os dentes, e não se vacila em tornar igualmente responsáveis pelo comunismo os banqueiros israelitas, a quem deveriam horrorizar, e pelo capitalismo imperialista, os judeus miseráveis que povoam a Rue des Rosiers. Mas tudo se esclarece se dispensarmos o judeu de uma conduta racional e conforme com seus interesses, se discernirmos nele, ao contrário, um princípio metafísico que o impele a praticar o mal em todas as circunstâncias, ainda que para tanto deva destruir-se a si mesmo. Este princípio, não resta a menor dúvida, é mágico: de um lado, é uma essência, uma forma substancial, e ao judeu, faça o que fizer, não é dado modificá-la, assim como o fogo não pode impedir-se de arder. E, de outro, como é necessário que se possa odiar os judeus e como não se detesta um tremor de terra ou a filoxera, esta virtude é também liberdade. Só que a liberdade em questão é cuidadosamente limitada: o judeu é livre para praticar o mal, não o bem, pois dispõe de livre arbítrio suficiente apenas para arcar com a plena responsabilidade dos crimes que comete, mas não o bastante para que possa reformar-se. Estranha liberdade que, em vez de preceder a essência, lhe permanece inteiramente submetida, que não passa de uma qualidade irracional e continua sendo, não obstante, liberdade. Só há uma criatura, que eu conheça, tão absolutamente livre e acorrentada ao Mal: é o próprio Espírito do Mal, é Satã. Destarte, o judeu é assimilado ao espírito maligno (SARTRE, 1960, p. 25-26). O antissemitismo inverte a realidade ao produzir um inimigo imaginário e responsabilizá-lo pelos males que afetam a sociedade. Assim, ofusca a percepção das verdadeiras determinações dos fenômenos e da crise social e a concentra num grupo social específico: os judeus. A culpabilidade coletiva dos judeus pelos problemas sociais é uma inversão da realidade e se organiza sob forma sistemática, ou seja, é uma ideologia, e se manifesta sob uma linguagem mítica. É preciso entender como o antissemitismo é reproduzido no mundo moderno. As contradições do modo de produção capitalista faz com ele viva constantes “crises cíclicas” e estas criam uma situação de insegurança social. O antissemitismo tem nas classes privilegiadas e algumas outras que ficam entre a burguesia e o proletariado, os seus produtores e reprodutores, mas, como o acirramento das lutas de classes, a burguesia se utiliza dessa ideologia para combater o “perigo da revolução”. A competição social, elemento fundamental da sociabilidade capitalista (VIANA, 2008) é outra razão para que as classes ameaçadas pela crise reproduzirem o antissemitismo, pois assim permite encontrar setores da sociedade que podem ser chamados de “inferiores” que lhe possibilita se sentir “superior”, para compensar o sentimento de inferioridade em relação à burguesia. Sartre, tratando da relação entre antissemitismo e as classes que ficam entre a burguesia e o proletariado, afirma: (...) Parece, com efeito, que a maioria dos ricos utiliza esta paixão mais do que se lhes entrega: tem mais o que fazer. Propaga-se comumente pelas classes médias, precisamente 56 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. porque não possuem terra, nem castelos, nem casas, mas apenas dinheiro líquido e algumas ações no banco, não foi por acaso que a pequena burguesia alemã de 1925 era antissemita. A principal preocupação deste ‘proletariado de colarinho postiço’ era distinguir-se do autêntico proletariado. Arruinado pela grande indústria, ridicularizado pelos junkers, dedicava todo o coração ao junkers e aos grandes industriais. Entregou-se ao antissemitismo com o mesmo calor que usava roupas burguesas: porque os operários eram internacionalistas, porque os junkers possuíam a Alemanha e ele também queria possuí-la (SARTRE, 1960, p. 17-18). Karl Marx dizia que uma classe social que busca se tornar uma “nova classe dominante” deve concentrar todas as falhas da sociedade numa outra classe social (1968). Acontece que a classe dominante busca, também, concentrar o mal em alguns setores da sociedade para que esta seja responsabilizada pela situação de crise social e/ou financeira e com isso tenta evitar a revolta contra o conjunto das relações sociais que ela mesma é representante. Por isso, a classe dominante utiliza a ideologia antissemita, e não só ela, para criar o inimigo imaginário12 e busca jogar o resto da sociedade contra os “culpados” pela situação social indesejável. A burguesia se utiliza deste artifício de forma consciente ou nao-consciente, pois ela tem que evitar o re-conhecimento da histórias e das lutas de classes. Tal como demonstrou Lukács (1989), a “consciência possível” da burguesia nao pode ultrapassar certos limites e re-conhecer as lutas de classes e a historicidade do capitalismo seria re-conhecer o seu próprio fim enquanto classe social, o que só ocorre com indivíduos no interior da classe, mas não no seu conjunto ou maioria, muito menos nos seus representantes ideológicos. Entretanto, a escolha do grupo específico que será a “vítima” da ação repressora só pode se realizar a partir de dois pressupostos: a) é preciso que exista um grupo social que seja diferenciado em relação ao resto da sociedade; b) é preciso que haja uma tradição cultural que já alimente preconceitos contra tal grupo. Em determinadas sociedades e períodos históricos é possível utilizar como inimigos imaginários mais de um grupo social (na Alemanha nazista, o alvo principal eram os judeus, mas também se visava os homossexuais e os comunistas). Não deixa de ser esclarecedor, nesse sentido, que o neonazismo no Brasil, na falta de judeus e de uma forte tradição antissemita, coloque como inimigos imaginários os negros, os homossexuais e os nordestinos. O antissemitismo na Alemanha tinha toda uma tradição cultural de preconceito contra os judeus e foi isto que possibilitou, juntamente com outras determinações, tal como a crise financeira e social, a ascensão do nazismo. Portanto, chegamos à conclusão de que existem mitos no mundo moderno e que eles se manifestam tanto como utopia abstrata quanto como ideologia. Claro que neste último caso, segundo o exemplo do antissemitismo, ele se apresenta “disfarçado” como “ciência”, tal como no 12 Em termos populares, também usado na psicologia, o inimigo imaginário é chamado de “bode expiatório”, mas também de “inimigo objetivo”, na expressão de Hannah Arendt (1975). O termo “inimigo imaginário” é utilizado por Viana (2007a) e Agacinski (1991). Para uma análise crítica da concepção de “bode expiatório” e “inimigo objetivo”, cf. Viana (2007a). 57 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014. caso do nazismo que prega a “superioridade” da “raça ariana” e a inferioridade dos judeus como justificativa para a “solução final” (extermínio) usando discurso pseudocientífico. Entretanto, nem os “arianos”, nem os “judeus” podem ser considerados uma “raça” e o mecanismo do pensamento antissemita, tal como demonstrou Sartre, é mítico. O mito, de representação inocente e homogênea nas sociedades simples, passa a ser, nas sociedades de classes, uma representação libertária ou conservadora do mundo existente, expressando uma ou outra classe social existente. Em síntese, o mito como ideologia é uma manifestação geralmente das classes privilegiadas ou que estão entre a burguesia e o proletariado e o mito como utopia é expressão das classes exploradas e essa diferença dos produtores dessas formas de mito também mostra a diferença de perspectiva e objetivo, sendo uma concepção contestadora ou conservadora. REFERÊNCIAS AGACINSKI, S. O Poder do Mito. Filosofia Política. Vol. 20, num. 06, Porto Alegre: L&PM, 1991. ARENDT, H. Anti-Semitismo, Instrumento do Poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1975. BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo: Edicoes Loyola, 1988. BLOCH, Ernst. Thomas Münzer, Teólogo da Revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. 2a edição, São Paulo: Perspectiva, 1985. DOZON, Jean-Paul. Os Movimentos Políticos Religiosos. In: AUGÉ, Marc. A Construção do Mundo. Lisboa: Edições 70, 1978. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Lisboa: Edições 70, 1989. ____, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. 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Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. MÚSICA SERTANEJA UNIVERSITÁRIA E VALORES DOMINANTES: UM ESTUDO DAS CANÇÕES E SUA RELAÇÃO COM OS VALORES SOCIAIS CAPITALISTAS Gabriel Teles Viana Felipe Mateus de Almeida RESUMO ABSTRACT O presente artigo propõe refletir sobre a transmissão de valores dominantes (axiológicos) através das letras da música sertaneja universitária. Nesse sentido, far-se-á uma discussão sobre elementos que compreendemos como fundamentais para se analisar este fenômeno, quais sejam, a questão do regime de acumulação integral, valores, a história da música sertaneja, o vínculo com a totalidade das relações sociais e por fim, a análise de uma música sertaneja universitária com o objetivo de demonstrar seu caráter axiológico. This article offers a reflection about the transmission of dominant values (axiologics) through lyrics of the new country music. Accordingly, will be made a discussion on what we understand as fundamental elements to analyze this phenomenon, which they are, the issue of accumulation values, the history of country music, the bond with the totality of social relations and finally, examination of the new country music in order to demonstrate its axiological character. Keywords: new country music, accumulation, Palavras-chave: Música Sertaneja Universitária, values, speech analysis Regime de Acumulação, Valores, Análise do discurso INTRODUÇÃO Este trabalho se vincula principalmente a questão da produção cultural e a música sertaneja universitária. Pretendemos analisar os valores inseridos e reproduzidos pelo chamado “Sertanejo Universitário” através do discurso transmitido em suas letras e canções. Como objetivo geral, pretendemos apresentar uma análise crítica dos valores inseridos e reproduzidos pelo sertanejo universitário. Além disso, pretende-se fazer uma discussão teórica sobre os valores e sua produção social e apresentar uma reflexão sobre a relação entre música e sociedade. Inicialmente, será feita uma análise histórica sobre as transformações do modo de produção capitalista. Após isso, será feita uma análise das transformações ocorridas na música sertaneja a partir da reestruturação capitalista e do nascimento do chamado regime de acumulação integral (Viana, 2009) para que se possa compreender os valores que se tornaram dominantes na 61 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. contemporaneidade e, consequentemente, se tornaram presentes no campo da produção cultural e musical. AS TRANSFORMAÇÕES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA A crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista ocorrida com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento do regime de acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de mercadorias e nas demais estruturas existentes no capitalismo, trouxeram mudanças significativas. O fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo Viana: Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais profunda. O método elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de trabalho, que passa a ser cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é aumentar a produtividade do trabalho (o que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo) através de diversos artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso do cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das tarefas, a formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de elaboração e de execução etc (op.cit., 2009, pp. 65 e 66). O taylorismo possuía como características um regime rígido que priorizava a vigilância profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho; possuía um caráter burocrático devido a criação dos cargos de gerentes científicos e, além disso, tinha uma produção centralizada e baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo foi o primeiro regime que se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo1 e com a aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos operários e dos especialistas encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma burocracia nesse regime de acumulação. Desde o final dos anos 60 até o começo da década de 70, várias tentativas com o objetivo de deixar o espaço fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem mais pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o absenteísmo e os demais descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o modo de regulação fordista do trabalho. Além disso, segundo Heloani (2003, p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a fragmentação e consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”, fizeram com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no regime de acumulação que vigorava no modo de produção capitalista. 1 Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade física do trabalho por meio da mecanização. 62 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. É nesse contexto que surge o modo de regulamentação/acumulação toyotista ou como alguns preferem chamá-lo, ohnista. Para Heloani o toyotismo pode ser caracterizado como uma: (...)inovadora forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a descentralização do processo produtivo. Uma enorme rede constituída por pequenas empresas responsabiliza-se pelo fornecimento de peças e outros elementos para serem utilizados por núcleos centrais que dispõem da visão do conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande poder de barganha com seus fornecedores (op.cit., 2003, p.119). Nesse sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como características a descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In Time (JIT) e a flexibilização e integração das subjetividades dos trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o sistema Just In Case (JIC)2, o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo onde a produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por produtos. Porém, o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores ( Harvey, 2003; Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação do trabalho era mais rígido e fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia, no toyotismo substituíram-se as ordens pelas regras, ou seja, foi disseminada uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte importante da empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou discordar das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus companheiros de função. O trabalhador passou a acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado e vigiado, e além da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora ele também era vítima de uma ideologia3. Nesse sentido, podemos afirmar que ao contrário do que pensava David Harvey em seu livro “condição pós-moderna” onde defende a concepção de que vivemos em um regime de acumulação flexível, podemos afirmar – assim como pensa Viana (2009) – que vivemos em um regime de acumulação integral. Portanto, faz-se necessário uma breve discussão sobre esse debate entre regime de acumulação integral e regime de acumulação flexível para que se possa salientar a importância das transformações do modo de produção capitalista e sua relação com as transformações no campo da produção cultural. 2 No sistema Just In Case a produção era em massa. O conceito de Ideologia que está sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia como falsa consciência sistematizada. 3 63 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. REGIME DE FLEXÍVEL? ACUMULAÇÃO INTEGRAL OU REGIME DE ACUMULAÇÃO Harvey em seu livro “Condição Pós-Moderna” faz uma discussão sobre taylorismo, fordismo e toyotismo e diz que o toyotismo pode ser caracterizado como um regime de acumulação flexível. Harvey recorre à linguagem da escola de regulamentação que pode ser entendida como uma escola que cria um modo de regulamentação que vai fazer com que haja uma materialização do regime de acumulação que toma a forma de hábitos, leis e redes que regulamentam e garantem a unidade e a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução (Harvey, 2003).O autor conceitua a acumulação flexível como: (...)um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2003, p.140). A acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer os serviços financeiros e como uma acumulação que é responsável por uma nova inovação comercial, tecnológica e organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção. Nildo Viana em seu livro “O Capitalismo na era da Acumulação Integral” apresenta uma concepção diferente da concepção defendida por Harvey. Segundo Viana: Ao se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais-valor relativo. (op.cit., 2009, pp.69 a 70) Percebe-se com esta citação, o quanto a proposição de Viana é diferente e mais radical do que a de Harvey. Enquanto Harvey defende a ideia de que o atual regime cria uma flexibilização nos processos de trabalho, no aparato de produção, um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores, Viana diz o contrário e defende a ideia de que existe um regime de acumulação integral que provoca uma extensão no processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor. Acreditamos que - assim como é colocado por Viana -, essa ideia de acumulação flexível é bastante equivocada. É um termo que deve ser superado e, por isso, também utilizaremos o termo acumulação integral (op.cit., 2009, p.70). Não existe flexibilização dos processos de trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores; o termo flexível é apenas 64 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. mais uma tentativa da burguesia e de suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro sentido do processo de superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo muito maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos trabalhadores, ou seja, um conjunto de discursos, ideias, equipamentos, materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia uma grande facilidade para exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação integral invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e apenas no ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer, nos seus programas de TV, nas suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades e, para polemizar um pouco mais, até dentro das igrejas que ainda são um “braço invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação integral engloba a esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e se coloca a serviço dos interesses do capital. Pensando pela lógica da acumulação integral, a produção cultural no modo de produção capitalista também passa por mudanças que são necessárias para que se possam manter vigentes os valores da classe dominante em uma sociedade capitalista. Nesse sentido, a música sertaneja passou e tem passado por diversas mutações no decorrer de sua história e acreditamos que isso esteja associado às transformações do modo de produção capitalista e a influência do capital fonográfico e comunicacional (indústria cultural). MÚSICA E SOCIEDADE A relação entre música e sociedade é complexa, pois se insere em determinado contexto histórico e em determinadas relações de produção desta sociedade. É necessário partir do pressuposto que a música é produto do trabalho humano, cuja consciência e valores expressos são constituídos socialmente, portanto, a partir relações sociais; e no caso da sociedade moderna, produto das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a seguir, partiremos das determinações concretas para analisar o desenvolvimento histórico da música caipira, passando pela música sertaneja até culminar em nosso objeto de análise fundamental: a música sertaneja universitária. DA MÚSICA CAIPIRA A MÚSICA SERTANEJA O que compreende-se por música caipira e música sertaneja? O que consiste suas particularidades e vicissitudes? Através destas perguntas, permearemos as convergências e distinções entre estas concepções musicais. Uma das principais características da música caipira é o seu caráter espontâneo enquanto manifestação artística. Originada da classe camponesa paulista, as manifestações 65 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. espontâneas eram ligadas à produção, ao trabalho, à religião, ao lazer, enfim, ao universo das relações de produção do caipira paulista. A determinação fundamental da música caipira é, pois, “a sua função enquanto mediador das relações sociais, no sentido de evitar a própria desagregação” (CALDAS, 1979, p. 80). Portanto, a mediação é feita desde a sobrevivência econômica, como os mutirões, até o convívio social, como essência da integração entre as populações de bairros. Antônio Candido nos traz a ideia deste papel agregador O pequeno número de componentes da comunidade, e o entrosamento íntimo das manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar, seja a uma participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos padrões de expectativa, que mal se chega a distinguir. Na vida do caipira paulista vemos manifestações como a canaverde, onde praticamente todos os participantes se tornam poetas, trocando versos e ápodos; ou o cururu tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da inspiração dos presentes, ampliando-se os contendores (CANDIDO, 1967, pág. 39). Quanto ao texto da canção na música caipira, raramente o autor particulariza o seu discurso; ao contrário, o poeta caipira, através de sua cantoria, assume a posição de porta-voz de seu povo. Waldenyr Caldas afirma que “o texto da canção está sempre carregado de uma mensagem que permite a identidade com a comunidade, e que atende aos anseios desta” (CALDAS, 1979, pág. 81). No entanto, este cenário começa a esboçar mudanças quando, a partir de uma nova estruturação econômica brasileira, pautada na crescente industrialização e urbanização do país (sobretudo nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro), ocorre uma abertura para um novo regime de acumulação. Com a crise do café, o êxodo rural se intensifica, aumentando significadamente o contingente diário daqueles que emigram para o centro urbano, procurando melhores condições de vida na cidade. É nesse sentido que a arte “rústica” 4 se urbaniza, destituindo-se de um valor e revestindo-se de outro (CALDAS, 1979). De acordo com a bibliografia sobre a gênese da música sertaneja (CALDAS, 1987; NEPOMUCENO, 1999), esta deu início com os trabalhos da Turma do Cornélio Pires. Após frutífera receptividade deste “novo gênero” musical, Waldenyr Caldas analisa a incorporação da música sertaneja na Indústria Cultural: Quando os agentes da indústria cultural percebem a grande receptividade dessas músicas no meio rural, e já então com certa, ressonância no meio urbano, com a apresentação da dupla Alvarenga e Ranchinho no Cassino da Urca no Rio de Janeiro, em 1930, e com a gravação de grande aceitação de “Tristeza do Jeca”, por Paraguasu, incentivadas pelas gravadoras. São muitas as duplas que dão início à incorporação da música sertaneja pela indústria cultural (CALDAS, 1979). 4 Definição dada por Antonio Candido, que exprime “um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultam do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígene” (Candido, 1971) 66 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. Compreendemos aqui Indústria Cultural nos termos de Adorno e Horkheimer (1975) onde ocorre uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo. O resultado disso foi o exponencial crescimento da música sertaneja enquanto “novo estilo musical”. Consequência deste crescimento foi a perda de autonomia por parte de seus compositores e cantores, que passaram a produzir não aquilo que ansiavam e conheciam, mas o que era determinado por elementos especializados em mercadologia. Nasce, com este movimento histórico, a canção sertaneja de caráter mercantil; caráter esse domina sua existência já desde seus primórdios até os dias de hoje. Com essas incorporações da música sertaneja pela indústria cultural, percebem-se agora novas conotações ideológicas, que se manifestam de forma evidente na linguagem. O tema predominante, que era antes o viver no campo, alterna-se (não é substituído) agora com os “casos de amor” vividos na cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já não pertence mais somente ao meio rural e ao interior, de que ela, agora, é urbana também (CALDAS, 1979). Com o processo de neoimperalismo (o que alguns ideólogos irão chamar de “globalização”), a música sertaneja sofreu diversas transformações e deixou de representar e atingir apenas uma parcela de uma população que vivia no campo e trabalhava o dia todo para poder ter o que comer e sustentar sua família. Em decorrência disso, a música caipira, que falava do cotidiano de seus compositores e de seus ouvintes passou a se denominar música sertaneja e a atingir um público cada vez mais diversificado e desinteressado sobre o cotidiano, as letras, os problemas e os anseios que eram trazidos pela música caipira. Segundo Santos: A música sertaneja desde a década de 60 vem apresentando mudanças significativas em vários aspectos, e isso de deve à incorporação de elementos associados à estrutura musical, adequação aos instrumentos elétricos (guitarra, contrabaixo), mistura de ritmos, dentre outros (SANTOS, 2010, p. 159-160). O sertanejo universitário é a principal prova dessa transformação da música sertaneja. Nesse ritmo musical, a viola e o violão acústico deixam de serem os únicos instrumentos de acompanhamento e abrem espaço para a bateria, o contrabaixo, a guitarra, o violino e o teclado. O rock, o Axé, e o pop se misturam e criam um ritmo que cada vez mais se afasta da realidade dos trabalhadores ouvintes e compositores da música caipira que falava de seu cotidiano e de suas dificuldades. Nesse sentido, podemos afirmar que o sertanejo universitário é um ritmo advindo da indústria cultura e do regime de acumulação integral capitalista. Isso se deve ao fato de suas letras serem escritas com o intuito de passar os valores de consumismo. Cria-se uma cultura consumista 67 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. que é passada através das letras e do estilo dos cantores e compositores do sertanejo universitário que acaba por propagar e disseminar essa cultura fazendo com que ela se torne dominante. Antes de iniciarmos a análise sobre o discurso nas letras destas música, esboçaremos uma discussão teórica sobre valores e música sertaneja universitária, utilizando algumas canções como um exemplo de reprodução de valores dominantes (axiológicos). MÚSICA E VALORES A música sertaneja – assim como todas as outras representações artísticas e culturais -, perpassa valores. Todas as relações sociais desenvolvidas em um determinado modo de produção são orientadas segundo determinados valores e determinadas concepções. Em uma sociedade onde vigora o modo de produção capitalista e, consequentemente, uma sociedade onde existem antagonismos entre classes, os valores também são heterogêneos: O ser humano é um ser social e por isso as relações sociais são fontes de valores. [...] em sociedades heterogêneas (de classes) existe heterogeneidade de valores. [...] cada classe social bem como outros grupos sociais, produzem valores diferentes e, em muitos casos, conflitantes. O conflito social é acompanhado pelo conflito de valores (VIANA, 2007, p. 24). Tendo como base essa citação de Viana, podemos afirmar que a ideia de neutralidade é algo impossível de se provar porque todos nós somos orientados segundo determinados valores e concepções orientados por nossa condição de classe. Em sociedades classistas, os valores podem ser definidos como valores autênticos e valores inautênticos, sendo os valores autênticos universais e os valores inautênticos históricos, transitórios e particularistas (VIANA, op. cit., p. 24). Isso quer dizer que os valores inautênticos são valores falsos que servem como base de legitimação para a ideologia da classe dominante e de suas vontades para que os mecanismos de exploração da classe trabalhadora (no caso do modo de produção capitalista) continuem funcionando de maneira correta sem que ajam conflitos ou levantes revolucionários contra o sistema capitalista. Esses valores são históricos porque são construídos em uma determinada época; são transitórios porque mudam de acordo com as necessidades de reestruturação produtiva do modo de produção capitalista e são particularistas porque representam as vontades apenas da classe dominante e não possuem um caráter universal, verdadeiro e emancipatório com o objetivo de superar as contradições do capital, libertando os sujeitos de suas amarras e de suas contradições. Esse papel de libertação está associado à questão dos valores autênticos que por conta da dominação dos valores inautênticos se encontram acobertados e esquecidos no inconsciente da classe trabalhadora. Partindo dessa discussão, nossa concepção de valores está associada à discussão apresentada por Viana que diferencia valores axiológicos de valores axionômicos. Os valores 68 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. axiológicos podem ser definidos como: “[...] aqueles valores que correspondem aos interesses da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais. Eles “transformam em virtude”, aquilo que é para reprodução de uma determinada sociedade de classes, uma necessidade” (VIANA, op. cit., p.34). Os valores axiológicos são os valores da classe dominante e representam as necessidades, anseios e vontades dessa classe que acabam sendo universalizados por conta de ideologias5 que legitimam os interesses dessa classe dominante através de instituições e representações sociais, artísticas e culturais. Os valores axionômicos podem ser definidos como uma “forma assumida pelos valores autênticos, expressando, geralmente, os interesses das classes exploradas e/ou grupos sociais oprimidos (VIANA, op. cit., p. 35). Os valores axionômicos são os valores reais e universais que expressam as concepções dos grupos ou classes excluídas em uma determinada sociedade. Portanto, nesse artigo, estamos partindo do pressuposto de que a música sertaneja universitária é responsável por transmitir os valores axiológicos da classe dominante que são transitórios, inautênticos, históricos e particularistas através de suas mensagens passadas através de suas letras. Um exemplo disso está na música “Camaro Amarelo” que é interpretada por Munhoz & Mariano. A letra da música diz o seguinte: Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x] Agora eu fiquei doce igual caramelo Tô tirando onda de camaro amarelo Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!" Quando eu passo no camaro amarelo Quando eu passava por você na minha CG Você nem me olhava Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber Mas nem me olhava Aí veio a herança do meu ‘véio', Resolveu os meus problemas, minha situação E do dia pra noite fiquei rico Tô na grife, tô bonito Tô andando igual patrão Agora eu fiquei doce igual caramelo Tô tirando onda de camaro amarelo Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!" Quando eu passo no camaro amarelo Agora você vem, né? E agora você quer, né? Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher Agora você vem, né? E agora você quer, né? Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher 5 Ideologia como falsa consciência sistematizada, para utilizar a terminologia de Marx. 69 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. Quando eu passava por você na minha CG Você nem me olhava Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber Mas nem me olhava Aí veio a herança do meu ‘véio', Resolveu os meus problemas, minha situação E do dia pra noite fiquei rico Tô na grife, tô bonito Tô andando igual patrão Agora eu fiquei doce igual caramelo Tô tirando onda de camaro amarelo Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!" Quando eu passo no camaro amarelo [2x] Agora você vem, né? E agora você quer, né? Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher Agora você vem, né? E agora você quer, né? Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher Agora eu fiquei doce igual caramelo Tô tirando onda de camaro amarelo Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!" Quando eu passo no camaro amarelo Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!" Quando eu passo no camaro amarelo Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce A escolha desta música deu-se por seu caráter hegemônico e dominante de sua reprodução nos meios de comunicações (rádios, televisores, shows e etc.). De autoria da dupla Munhoz & Mariano, oriundos da capital do Mato Grosso do Sul, Campos Grande, a música inicialmente foi lançada na gravação do segundo DVD da dupla “Ao Vivo em Campo Grande Vol. II” em maio de 2012 e posteriormente lançada em formato de download digital em 25 de junho de 2012. Em menos de seis meses, a música, de acordo com Crowley Broadcast Analysis 6, atingiu a primeira posição da tabela brasileira das músicas mais tocadas e ouvidas nas grandes centrais radiofônicas do Brasil. Portanto, impera-se uma análise de quais valores são reproduzidos e perpetuados através do discurso da letra desta música. De modo geral, a música conta a história, em primeira pessoa, de um jovem rapaz que almeja chamar a atenção de uma moça. No entanto, por não portar elementos (dinheiro, carro, status, etc.) que possibilitam o êxito de convencê-la de ser um rapaz que possa trazer o que ela almeja e valoriza, acaba não conseguindo chamar sua atenção. Mas um acontecimento muda toda a história: seu pai morre e o jovem rapaz recebe uma grande herança, transfigurando sua vida; 6 Crowley Brodcast Analysis é uma empresa que faz a monitoração em rádios, para informações musicais e de veiculação publicitária. Outro elemento que demonstra sua importância para o capital fonográfico é que ela fornece, desde 2009, as paradas para a revista Billboard Brasil que se baseia na grade-básica de rádios com mais de 350 emissoras. 70 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. vestindo roupas de grife, cuidando de sua aparência, “andando igual um patrão” e, sobretudo, com um novo carro: um Camaro Amarelo. É aqui que ocorre uma guinada na história: a moça, que antes o ignorava, por ter apenas uma CG (modelo de uma moto popular), agora com a herança herdada, torna-se interessada pelo rapaz, agora com status social e ostentando artigos de luxo. Mas o rapaz despreza a moça, já que sua nova condição o faz ter possibilidades de chamar a atenção de várias mulheres. E assim a história torna a repetir. É evidente uma grande quantidade de elementos axiológicos presentes na letra desta música. O primeiro deles é a valoração do dinheiro: o dinheiro como valor fundamental (VIANA, 2012). Com a intensificação da mercantilização das relações sociais após a instauração do regime de acumulação integral, a cultura e o universo psíquico dos indivíduos acabam tornando-se cada vez mais mercantilizados, fazendo com o que a essência do indivíduo, o Ser, seja obliterado e substituído pela aparência do TER, como bem salientou Erich Fromm (1987). O rapaz só poderá conseguir atenção caso tenha dinheiro, o que possibilita comprar roupas de grife, melhorar sua aparência e, acima de tudo, obter um Camaro amarelo, mercadoria de grande apresso e fundamental dentro da música. O status social do dinheiro, portanto, possibilita o indivíduo ter importância dentro da sociedade capitalista. Outros elementos que estão subordinados a valoração do dinheiro, tais como o tratamento de outro indivíduo como mercadoria, a valoração daquilo que o indivíduo tem e não daquilo que ele é, reforçam o caráter axiológico dos valores inseridos na letra desta música. O exemplo de “Camaro Amarelo” de Munhoz & Mariano não constitui um caso isolado dentro do universo da Música Sertaneja Universitária; a grande maioria das músicas deste “estilo” refere-se a valores axiológicos do consumismo, da alienação enquanto relação social, do amor romântico burguês, da valoração da ostentação e etc., tais como “Piradinha” de Gabriel Valim, “As mina pira” de Gusttavo Lima, “Ai se eu te pego” de Michel Telo e entre outras. Claro que há exceções, onde o discurso da ostentação e do dinheiro como valor fundamental não são reinantes, como nas músicas de Victor & Léo, Paula Fernandes etc., no entanto, estes cantam representações cotidianas que em grande medida são ilusórias, sobretudo sobre o amor romântico burguês. CONCLUSÃO A luta cultural perpassa uma luta mais ampla, que é a luta de classes. Nesse sentido, a análise e crítica de produtos culturais que expressam valores axiológicos tornam-se necessários para demonstrar que as relações sociais que constituem estes produtos culturais são determinadas, não naturais e que reforçam a exploração e dominação. Nesse sentido, a Música Sertaneja 71 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul. 2013/Jan. 2014. Universitária cumpre um papel de obliterar o avanço na consciência para a emancipação humana e perpetuar valores axiológicos da classe dominante. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1975, vol. XLVIII. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 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MARX E SATRE: MÉTODO DIALÉTICO E REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS Maria Angélica Peixoto RESUMO ABSTRACT A discussão sobre a dialética encontra em Marx e Sartre duas grandes referências. O presente artigo busca analisar brevemente a concepção de dialética destes dois autores e, após isto, realizar uma comparação entre ambos. O objetivo, manifesto na última parte do presente texto, é resgatar suas contribuições para se pensar um referencial metodológico e teórico que ajude a trabalhar a questão das representações cotidianas. The discussion of the dialectic in Marx and Sartre finds two major references. This article seeks to briefly examine the concept of the dialectic of these two authors and, after that, to make a comparison between them. The goal, manifest in the latter part of this text, is to rescue their contributions to think for a methodological framework and theoretical work that helps the issue of everyday representations. Palavras-chave: Dialética, método, representações Keywords: Dialectic method, cotidianas, Marx, Sartre. representations, Marx, Sartre. everyday INTRODUÇÃO Discutir o método dialético e analisar suas implicações na pesquisa social e das representações cotidianas é algo urgente. Verificar as conexões entre a concepção de Marx e a de Sartre é um elemento desse processo. O estudo do método dialético tem a contribuição de vários autores e em meio à diversidade de interpretações e desdobramentos, esse recorte permite um trabalho possível. O foco aqui será a concepção de Marx e após uma discussão sobre como esse autor desenvolveu o método dialético, ver alguns apontamentos sobre o método dialético em Sartre e assim estabelecer uma comparação entre ambos. Por fim, observar-se-á a contribuição destas duas abordagens para se pensar uma pesquisa voltada para o fenômeno das representações cotidianas. MARX E A DIALÉTICA O método dialético em Marx tem como pressuposto o materialismo histórico, ou seja, a teoria da história que aponta para a discussão sobre conceitos como luta de classes, relações de produção, forças produtivas, consciência, superestrutura, entre outros. Nessa concepção de história, Marx e Engels destacam que a consciência é expressão do ser social e que o modo de produção é a base que institui as formas jurídicas, políticas e ideológicas ou “superestrutura”. O modo de 73 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. produção constitui um modo de vida, a divisão social do trabalho e as classes sociais – a partir de certo nível do desenvolvimento histórico e das forças produtivas, quando surgem as sociedades divididas em classes sociais antagônicas e, deste momento em diante, a história é a história das lutas de classes. Esses aspectos não serão aqui desenvolvidos, por que nosso objetivo é trabalhar o método dialético em Marx, cuja base está no materialismo histórico sendo que este fica, então, subentendido. O texto em que Marx desenvolve de forma mais aprofundada a discussão sobre o método dialético é Contribuição à crítica da economia política (MARX, 1983). Por isso, tomarei essa obra como eixo fundamental da discussão sobre método dialético, o que não impede de ver outras contribuições em outras obras desse autor e de outros autores. Esse livro é um aprofundamento das análises sobre o capitalismo que já havia iniciado e um esboço do que iria desenvolver em O Capital. A obra parte da análise da mercadoria e da produção capitalista, e ao mesmo tempo, que busca reconstituir no pensamento esse modo de produção, também lança mão e critica a economia política em vários aspectos. Um destes aspectos se encontra no capítulo "O método da economia política", no qual discute o método usado pelos economistas e aproveita para expor o seu próprio método: o dialético. Depois dessa obra, publicada em vida, mas que, por problemas pessoais e financeiros, inclusive ele afirmou que ninguém escreveu sobre "dinheiro sofrendo de tal falta de dinheiro” produz outra em que aprofundaria mais ainda sua teoria do modo de produção capitalista: O Capital (que também ficou inacabada). Marx não estava preocupado em compreender apenas a existência de diversas formas de sociedade, mas principalmente compreender o seu processo de transformação, o que significa compreender a transição de uma forma de sociedade para outra. O objetivo do método dialético é descobrir as leis dos fenômenos e mais ainda as suas leis de transformação (MARX, 1988). O importante aqui é compreender o processo de transformação social. É por isso que Marx no Prefácio à Contribuição à crítica da economia política irá apresentar a transformação da correspondência entre forças produtivas e relações de produção e entre estas e a superestrutura em contradição. É em determinado momento histórico que esta correspondência se transforma em contradição e isto marca a instauração de um período de mudança social. Para efetivar a análise do desenvolvimento histórico das sociedades humanas, Marx utilizará o método dialético. Segundo Marx este método tem como objetivo descobrir as leis dos fenômenos e de suas transformações. Marx diz que para se compreender o processo de transformação social não se utiliza os mesmos procedimentos que um químico ou um físico. No estudo da sociedade não se pode usar nem reagentes químicos, nem experiências de laboratórios e devem ser substituídos pela faculdade de abstrair (MARX, 1988). 74 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. Em sua discussão sobre o Método da Economia Política Marx expõe os procedimentos do método dialético. Segundo ele, o mais natural seria começar pelo que existe efetivamente, pelo concreto. Foi assim que procedeu a Economia Política em seu nascimento. Ela partia sempre de uma realidade viva, concreta e a partir daí, ia descobrindo as suas determinações mais simples. Por exemplo, os economistas partiam do estudo da população e chegava a conceitos cada vez mais simples, tais como: divisão social do trabalho, valor, mercado, entre outros. Marx irá considerar isto equivocado. Considerará como o método científico correto o procedimento que foi adotado posteriormente pela Economia Política. O método dialético consiste em chegar às determinações mais simples, mais abstratas, já colocadas em evidência pela tradição do pensamento econômico, até chegar a determinações cada vez mais complexas. É através do reconhecimento das diversas determinações que se pode reconstruir o concreto no pensamento. O concreto, neste sentido, é a síntese de suas múltiplas determinações. É através do processo de abstração que o pesquisador irá reconstruir o concreto no pensamento, descobrindo, assim, suas determinações. Assim, o ponto de partida, após as formulações teóricas, passa a ser a teoria e o concreto-dado e por isso o real, a sociedade, “deve figurar sempre na representação como pressuposição”. A abstração assume papel fundamental no método dialético. É com o recurso da mediação do processo de abstração que se reconstrói o concreto no pensamento. (VIANA, 1998; DAL ROSSO & GONZALES, 1994). Como ocorre este processo de abstração? Tal processo visa compreender o aspecto essencial do fenômeno. Busca apreender sua determinação fundamental. Ele é um processo mental de reconstituição do real na consciência humana, pois, embora o real exista independentemente da consciência humana, é “somente quando esta trabalha a realidade através da abstração” é que ele é reconstituído no pensamento, tornando-se consciente (VIANA, 1998, p. 52). O ponto de partida e o ponto de chegada da pesquisa é o concreto. Porém, o concreto que é o ponto de partida da pesquisa é um concreto não pensado, não determinado, mas que continua sendo ponto de partida por ser o ponto de partida da intuição e da representação. Este é um concreto dado. Através do processo de abstração que se descobrirá as múltiplas determinações do fenômeno, que se chega ao concreto pensado, determinado: “não uma representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e relações numerosas” (MARX, 1983, p. 218). A gênese do concreto já é determinada na realidade e existe independentemente do pensamento, antes de sua reconstrução mental. Marx elabora o seu método dialético que toma a realidade social como fenômeno histórico e transitório e por isso os conceitos ou as categorias que são expressões da realidade também são históricos e transitórios. Cabe ao cientista buscar descobrir estas leis da transformação social. Marx afirma que: 75 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. “Do mesmo modo em que toda a ciência histórica ou social em geral, é preciso nunca esquecer, a propósito da evolução das categorias econômicas, que o objeto, neste caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como no cérebro; não esquecer que as categorias exprimem, portanto, formas de existência determinadas, muitas vezes simples aspectos particulares desta sociedade determinada, deste objeto, e que esta sociedade de maneira nenhuma começa a existir, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir do momento em que ela está em questão como tal” (MARX, 1983, p. 224). Para Marx, o acesso à verdade é possibilitado para quem parte da perspectiva do proletariado. Para Marx, partir da perspectiva burguesa é um obstáculo ao desenvolvimento da consciência. Para ter acesso à verdade é preciso partir da perspectiva contrária, ou seja, da perspectiva do proletariado. Segundo suas próprias palavras: “O desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía a possibilidade de qualquer desenvolvimento original da economia burguesa, mas não a sua crítica. À medida que tal crítica representa, além disso, uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes — o proletariado” (MARX, 1988, p. 24). Esse breve resumo do método dialético de Marx é por demais resumido, sendo que existem diversos outros aspectos e questões envolvidas. Não poderei desenvolver uma análise mais extensa do mesmo, pois o objetivo do presente trabalho remete para a comparação com a concepção de Sartre de método dialético e suas repercussões no processo da pesquisa social e das representações cotidianas mais especificamente, o que limita a possibilidade de uma análise mais extensa. SARTRE A DIALÉTICA Sartre parte para a discussão sobre o método dialético a partir de sua concepção existencialista, que ele formula duas versões, sendo a primeira versão mais fenomenológica e a segunda mais próxima do marxismo (VIANA, 2008a). A obra O Ser e o nada faz parte da primeira concepção e a obra Crítica da razão dialética (2002) faz parte da segunda. A dialética sartreana se distingue da engelsiana (ENGELS, 1996). Engels pensa a dialética como existindo na natureza, sendo composta por leis do pensamento, da sociedade e da natureza (ENGELS, 1996). Sartre terá objeções a Hegel, Marx e outros, apesar de sua proximidade com o último, mas não deixará de criticar a concepção engelsiana de dialética. Um dos elementos de crítica de Sartre a Engels é a partir do pressuposto que as ideias não se impõem à matéria. A relação entre ideia e matéria é mais problemática do que parece à primeira vista. A primazia da matéria reside no fato do objeto se revelar aos nossos olhos, gerando o modo de abordagem. Sartre parece ficar entre uma análise hegeliana e marxista, mas reconhece que o ser é irredutível à consciência, existe um processo de totalização que não está finalizado e o objeto possui a primazia sobre o sujeito. A questão do sujeito humano, para Sartre, remete ao mundo humano. É 76 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. neste contexto que ele observa a união do sujeito com a humanidade. O mundo social é o mundo de indivíduos múltiplos, do prático-inerte. Nesse nível, aparece a classe social como coletivo: “no nível do campo prático-inerte, ela revela-nos a classe como coletivo, e o ser-de-classe como um estatuto de serialidade imposto à multiplicidade que a compõem” (SARTRE, 1987, p. 33). O vínculo do indivíduo com a humanidade se dá via sua posição social, marcada pela escassez e pelo conflito derivado dela. Sartre, assim, não abandona a luta de classes, elemento fundamental do pensamento de Marx. Nosso método é heurístico, ele nos ensina coisas novas porque é regressivo e progressivo ao mesmo tempo. Seu primeiro cuidado é, como o do marxista, recolocar o homem no seu quadro1. Pedimos à história geral que nos restitua as estruturas da sociedade contemporânea, seus conflitos, suas contradições profundas, e o movimento de conjunto que estas determinam. Assim, temos de início um conhecimento totalizante do momento considerado, mas, em relação ao objeto de nosso estudo, este conhecimento permanece abstrato. Começa com a produção material da vida imediata e completa-se com a sociedade civil, o Estado e a ideologia. Ora, no interior deste movimento, nosso objeto já figura e é condicionado por estes fatores na medida mesma em que ele os condiciona. Assim, sua ação já está inscrita na totalidade considerada, mas permanece para nós implícita e abstrata. De outro lado, temos certo conhecimento fragmentário de nosso objeto: por exemplo, conhecemos já a biografia de Robespierre na medida em que é uma determinação da temporalidade, isto é, uma sucessão de fatos bem estabelecidos. Tais fatos parecem concretos porque são conhecidos pormenorizadamente, mas falta-lhes a realidade, uma vez que não podemos ainda vinculá-los ao movimento totalizador. Esta objetividade não significante contém em si, sem que nela possamos apreendê-la, a época inteira cm que apareceu, da mesma maneira que a época, reconstituída pelo historiador, contém esta objetividade. E, entretanto, nossos dois conhecimentos abstratos caem fora um do outro. Sabe-se que o marxista contemporâneo pára aqui: ele pretende descobrir o objeto no processo histórico e o processo histórico no objeto. Na realidade, ele substitui um e outro por um conjunto de considerações abstratas que se referem imediatamente aos princípios. O método existencialista, ao contrário, quer permanecer heurístico. Não terá outro meio senão o "vaivém": determinará progressivamente a biografia (por exemplo), aprofundando a época, e a época, aprofundando a biografia. Longe de procurar integrar logo uma à outra, mantê-las-á separadas até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um termo provisório na pesquisa (SARTRE, 1987, p. 170-171). Sartre reconhece o método dialético como um “método heurístico”, tal como defendido por Korsch (2008) e Viana (2007a; 2007b) e defende a necessidade do vaivém entre o indivíduo e a totalidade. Esse processo significa uma revalorização do indivíduo, o que era de esperar em uma abordagem existencialista, e uma crítica ao “marxismo contemporâneo”, que fica nas abstrações gerais e desconsidera do indivíduo. Nesse sentido, a abordagem de Sartre se diferencia da de Marx, mas de forma não tão intensa como seria de se imaginar. Isso, obviamente, é resultado da aproximação de Sartre em relação ao pensamento marxista. Também é possível imaginar que tal aproximação é apenas metodológica, mas, no entanto, a proximidade de Sartre com o pensamento de Marx é mais geral e adentra para outras questões (VIANA, 2008a), que por não ser objeto do presente artigo será deixado de lado. 1 Outra tradução coloca “contexto” (SARTRE, 1967). 77 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. MARX, SARTRE E A PESQUISA SOCIAL COM REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS O objetivo central do presente artigo é realizar uma comparação geral do pensamento de Marx e Sartre, a nível metodológico, para observar seus desdobramentos na pesquisa social, mais especificamente na pesquisa com representações cotidianas. A pesquisa com representações cotidianas tem como base teórico-metodológica o marxismo, sendo que algumas obras são fundamentais em sua constituição (MARX e ENGELS, 1992; VIANA, 2008b). Esta é uma abordagem que se distingue de outras e que vem recebendo diversos estudos e pesquisas, ganhando contribuições teóricas (VIANA, 2008b; PEIXOTO, 2010; VIANA, 2013a; VIANA, 2013b; SOARES et al. 2011) e empíricas (PEIXOTO, 2010; LACHTIN, 2010; SOARES e LACHTIN, 2011; PANINO, 2010). Nesse sentido, torna-se útil e importante analisar a vitalidade da discussão metodológica de Marx e Sartre e sua contribuição para a pesquisa social com representações cotidianas. O procedimento a seguir parte de uma comparação entre estes autores e o que eles podem fornecer de contribuição metodológica para a pesquisa social com representações cotidianas. A breve, e também muito incompleta, síntese da concepção sartreana de dialética, bem como da marxista, deixa transparecer um antagonismo com a concepção de Marx. Contudo, mais do que antagonismo o que há é um desdobramento e, em certos momentos, uma oposição. Os desdobramentos se encontram no fato de que Sartre aponta como preocupação principal o indivíduo – e daí sua discussão sobre biografia. Daqui também podemos encontrar uma oposição. Essa oposição, no entanto, não é antagonismo. A oposição é diferenciação, distinção, diferença, o antagonismo é o irreconciliável (CHAUÍ, 1990). Quando Sartre afirma que seu método é heurístico, no fundo, coincide com Marx. Este, em seu Prefácio à Crítica da economia Política, coloca que sua teoria dos modos de produção é um “fio condutor” e Karl Korsch (2008) destacará que a dialética é um instrumento heurístico. Aliás, não é sem motivo que Sartre critica os “marxistas” (na passagem citada fala de “marxistas contemporâneos”) e não Marx. Numa análise marxista sobre o indivíduo, usando o método dialético, ele deveria ser entendido como algo concreto, ou seja, síntese de múltiplas determinações. Isso coincide com a situação como apontado por Sartre, o “quadro”, “contexto”. Nesse caso, Sartre inova ao colocar a necessidade do vaivém, de pensar o indivíduo no interior da época e a época com relação ao indivíduo. Marx não abandonou essa possibilidade, mas ao não se preocupar com a explicação do indivíduo, pouco desenvolveu nesse aspecto. Claro que a concepção de Sartre deve ter sido inspiradora do método regressivoprogressivo de Henri Lefebvre (1981a; 1981b). Deste autor, a ideia apontada por Frehse, é também útil para nossa análise: 78 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. Se, como afirma Lefebvre, a “lei de desenvolvimento desigual de formas análogas e de interação dessas formas parece ser uma das grandes leis da história”, isso implica que num mesmo espaço, “local de pesquisa”, convivam essas relações sociais e concepções historicamente diversas (FREHSE, 2001, p. 180). Ao recordar Marx, segundo o qual devemos evitar as especulações (MARX e ENGELS, 1992) ou Sartre, ao abordar a primazia do objeto, percebe-se que é extremamente útil realizar uma reflexão sobre a contribuição metodológica de ambos para a pesquisa social. Não deixa de ser importante tanto a discussão geral sobre método quanto observar as potencialidades do método para tal processo de pesquisa. A pesquisa com representações cotidianas pode ganhar bastante com reflexões metodológicas e estabelecimento de relações destas com o processo concreto de realização da pesquisa social. O primeiro ponto é a discussão sobre o conceito básico de nossa análise. Como Marx coloca, toda pesquisa deve partir das determinações mais simples para chegar às mais complexas, e tais determinações são reconstituídas através dos conceitos. O conceito fundamental aqui é o de representações. Nesse sentido, abordarei a concepção de representações na obra de alguns autores para expor a que adotarei. A abordagem das representações sociais é uma das grandes referências hoje. Ela se inspira, em parte, em Durkheim (1994). A concepção de representações sociais esteve em evidência durante os anos 1990 e foi perdendo espaço progressivamente. As críticas endereçadas a esta concepção (VIANA, 2008b) fizeram desabar seu edifício ideológico. A obra de Moscovici (1977), o grande arquiteto dessa concepção, mostra lacunas e problemas não superados. Um dos principais pontos problemáticos dessa abordagem é que, para ela, as representações são objetivas, verdadeiras. Desta forma, é necessário buscar caminhos alternativos. Um destes caminhos é a inspiração no sociólogo Henri Lefebvre. A abordagem de Lefebvre, inspirada em Hegel e principalmente Marx, aponta para uma visão contrária à da concepção de representações sociais. Uma das principais divergências das duas abordagens reside no fato de para Lefebvre as representações são falsas: “A força das representações reside nessa capacidade de estabelecer vínculos inexistentes no plano da realidade, mas bastante eficazes quando representados” (ABREU, 2003: 49). Assim, notamos a diferença entre a concepção de Lefebvre e a das representações sociais. Inclusive ele usa apenas o termo representações, mas não sociais, por julgar que todas as representações são sociais (LEFEBVRE: 2006). A sua abordagem vem sendo resgatada por diversos pesquisadores (ALMEIDA: 2001; ABREU: 2003) e se torna uma concepção alternativa para a abordagem das representações sociais. Contudo, é possível encontrar uma conexão entre estas duas concepções e a de Marx. Assim, alguns autores tentaram relacionar ou vincular a concepção de Marx e a abordagem das 79 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. representações sociais (SAWAYA, 1995; SOUSA FILHO, 2003), mostrando a vitalidade do pensamento deste autor. Por outro lado, Henri Lefebvre tem como uma das fontes inspiradoras o pensamento de Marx. Nesse contexto, a oposição entre a concepção de Lefebvre que coloca as representações como falsas e a abordagem das representações sociais que as colocam como verdadeiras pode ser resolvida pela posição de Marx cuja tese mostra concordância e ao mesmo tempo discordância em relação a ambas as posições. Para Marx, as representações podem ser reais ou ilusórias, verdadeiras ou falsas. Se existe limitação nas relações sociais reais, então haverá limitações nas próprias representações e é assim que elas são explicadas: As representações que estes indivíduos elaboram são representações a respeito de sua relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são a expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente condicionados, um outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais deste indivíduo é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram (MARX & ENGELS, 1992: 36). Desta forma, as representações podem ser falsas ou verdadeiras e é essa uma contribuição de Marx que não é possível descartar. Curiosamente, depois de Marx já ter estabelecido a discussão num nível superior, outros, inclusive tomando como base seu pensamento, realizam o retrocesso e caem no equívoco de considerar que as representações sejam sempre falsas ou sempre verdadeiras. É por isso que é necessário resgatar a concepção de Marx e desenvolvê-la, inclusive no sentido da pesquisa social. A teoria das representações cotidianas (VIANA, 2008b), lança as bases desse processo de retomada, por um lado, da concepção de Marx sobre as representações e, desenvolvimento, por outro. Esse é um processo que vem sendo desenvolvido contemporaneamente (PEIXOTO: 2010; VIANA: 2008b) e consiste não apenas em mostrar que as representações podem ser verdadeiras ou falsas mas no sentido de desenvolver uma análise mais profunda, tal como compreender as suas características formais e de conteúdo, entender que no mundo das representações cotidianas existe um núcleo fundamental que é composto pelas convicções e um conjunto de elementos que são ideias sem maior enraizamento nos valores e crenças dos indivíduos, o mundo das opiniões, de caráter mais passageiro e menos firme (VIANA, 2008b). Entender que as representações cotidianas são formas de pensamento simples, cuja simplicidade é uma característica 80 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. complementada pela regularidade e pela naturalização2 e que, portanto, são diferentes do pensamento complexo (VIANA, 2008b) é outro elemento importante. Se a base teórico-metodológica da teoria da representações cotidianas é fundada no marxismo, então nada mais adequado do que a contribuição de Marx e Sartre na pesquisa social sobre este fenômeno. O primeiro elemento é a exigência metodológica de dar mais atenção à situação real do que à consciência” (LAPASSADE, 1975) e é por isso que o estudo das representações cotidianas remete, necessariamente, ao seu processo de produção (VIANA, 2008b) que é, evidentemente, social. Isso significa manter-se estritamente de acordo com a proposição metodológica de Marx, ter a sociedade como pressuposição, e teórica, segundo a qual é a vida que determina a cosciencia (MARX, 1983) e não o contrário, como supõe os idealistas. Desta forma, para saber como se pode reconstituir as representações cotidianas no pensamento esses apontamentos metodológicos são fundamentais. É preciso entender o “contexto”, a “época”, a “sociedade”, tal como Marx e Sartre colocam. A exigência metodológica de focalizar mais as relações sociais concretas do que as representações cotidianas (VIANA, 2008b; LAPASSADE, 1975) não é mais do que a tradução de um princípio do método dialético. Esse processo, no entanto, requer pesquisa sobre as relações sociais, além do acesso às representações cotidianas. As relações sociais concretas são a base das representações cotidianas e ambas precisam estar presentes no processo da pesquisa para atender à exigência metodológica dialética. O passo seguinte é analítico, é buscar as determinações, desde as mais simples até as mais complexas, das representações cotidianas e isso requer análise das relações sociais concretas. Nesse ponto, a contribuição de Sartre se manifesta de forma mais cristalina. Além da necessidade do vaivém entre relações sociais concretas e representações cotidianas, é preciso entender não só o contexto de produção das relações sociais mas também a inserção dos indivíduos nesse contexto. O modo de vida e a cotidianidade que estão na base da produção das representações cotidianas não são homogêneas na sociedade capitalista, elas são perpassadas pela divisão social do trabalho (VIANA, 2008b), especialmente na sua forma de divisão de classes, mas não somente nesta. Nesse momento, a contribuição de Sartre ajuda no sentido de colocar que as representações cotidianas são de um indivíduo, com determinado pertencimento de classe, raça, sexo, entre outras determinações, que se manifestam num contexto geral, num conjunto de relações sociais. Por isso, é preciso ver a posição do individuo no interior das relações sociais. E ver o seu histórico, pois sua situação não é estática e suas representações cotidianas foram construídas historicamente (VIANA, 2013b). 2 “A vida cotidiana é a base real sob a qual se erguem as representações cotidianas. Nada mais natural, portanto, que as representações cotidianas estejam impregnadas de cotidianidade e suas características. As três características. As três características da cotidianidade que apontamos anteriormente estão também presentes nas representações oriundas desta cotidianidade: naturalização, simplificação e regularidade” (VIANA, 2008b: 111). 81 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. Após ter o acesso ao material informativo sobre as relações sociais concretas e representações cotidianas o processo prossegue com o momento da análise, no qual se utiliza a base teórico-metodológica da pesquisa para sua realização3. O referencial teórico auxiliará a ordenação e análise do material informativo oriundos das entrevistas4 e demais informações adquiridas. A etapa posterior será a análise de conjunto e revisão do material informativo em seu conjunto, visando reconstituir as representações cotidianas no pensamento. Desta forma percebemos que a concepção de Marx e Sartre a respeito do método dialético abrem novas e amplas perspectivas para a pesquisa social e contribuem com a pesquisa em representações cotidianas, mais particularmente. CONSIDERAÇÕES FINAIS A conclusão final depois das considerações anteriores é a de que a abordagem dialética é rica em potencialidades analíticas. Ela visa, ao mesmo tempo, perceber as condições sociais e históricas, por um lado, e as representações, por outro. Assim, tal como apontado por Marx, visa compreender as representações a partir de sua inserção numa determinada realidade social e ao mesmo tempo analisar as condições sociais nas quais elas emergem e, como coloca Sartre, observando o vaivém entre condições reais e representações, ampliando, por conseguinte, a capacidade analítica do pesquisador, já que não se restringe apenas ao contexto e nem somente ao indivíduo, mas em relações complexas e de influência recíproca entre ambos. O método dialético em Marx e a contribuição de Sartre ajudam a pensar e fundamentar a base metodológica de análise das representações cotidianas e da pesquisa social em geral. O quadro comparativo entre os dois autores, ao demonstrar a inexistência de antagonismo, abre amplas perspectivas de desenvolvimento de pesquisas fundadas na contribuição destes dois autores e outros que compartilhar a mesma perspectiva de uma dialética crítica. REFERÊNCIAS ABREU, Leonor O. Atuação e formação: As representações sociais como base de análise da subjetividade na acadêmica dos psicólogos. Cadernos de Pós-Graduação em Educação/Uninove, vol. 02, 2003. 3 Alguns autores distinguem entre análise e interpretação, enquanto que outros englobam esta última na primeira. Concordo com esta última concepção, que é a de Minayo: “somos partidários desse posicionamento por acreditarmos que a análise e a interpretação estão contidas no mesmo movimento: o de olhar atentamente para os dados da pesquisa” (MINAYO, 1998: 68). 4 O mais adequado, no caso da pesquisa com representações cotidianas, é o uso da entrevista interpretativa (VIANA, 2013b; PEIXOTO, 2010), um desenvolvimento do “questionário interpretativo” (FROMM e MACCOBY, 1972). Embora, se o foco for as opiniões ao invés das convicções, aí seja possível usar outras técnicas de pesquisa (VIANA, 2013b). 82 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul. 2013/Jan. 2014. ALMEIDA, José Luiz de. Tá na rua. São Paulo: Xamã, 2001. ALMEIDA, Rosemary. Violência urbana, exclusão social e identidade. In: LINS, Daniel & BARREIRA, César. Poder e violência. 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Esta análise parte das principais obras deste autor para fundamentar conceitualmente este trabalho. Destaca-se inicialmente a questão destas obras, bem como seu método de análise da sociedade, que é o método dialético. Seus textos iniciais sobre Economia Política são importantes para essa análise, mas posteriormente a obra O Capital que vai nos possibilitar ampliar a discussão, pois é onde o autor trabalha de forma mais aprofundada estas questões. Analisa-se a partir da perspectiva do autor, a produção de mercadorias, a distribuição e o consumo das mesmas, bem como busca-se compreender o consumo a partir da produção de mercadorias e do próprio fetichismo que também é analisado neste artigo. This article aims to develop an analysis of some key questions about the merchandise and consumption from the perspective of Karl Marx. This analysis part of the main works of this author to be able to justify conceptually this work. Initially the question stands out of these works, as well as its method of analysis of society, which is the dialectical method. Their initial texts on political economy are important for this analysis, but subsequently the work the Capital that will enable us to broaden the discussion, because that's where the author works further these issues. Analyzed from the perspective of the author, goods production, distribution and consumption of the same, as well as seeks to understand the consumption from the production of goods and own fetishism which is also analyzed in this article. Palavras-chave: Mercadoria, Distribuição, Trabalho. Keywords: Commodity, consumption, distribution, Work. Consumo, INTRODUÇÃO O livro O Capital é uma das principais obras de Karl Marx, onde ele desenvolve uma análise aprofundada da sociedade capitalista e seus diversos aspectos, dentre eles: sociais, políticos, econômicos e culturais etc. Para desenvolver sua análise, Marx parte da análise dos economistas clássicos, principalmente Adam Smith e David Ricardo, ao mesmo tempo em que mostra suas limitações, pois estes partiam de uma perspectiva da economia burguesa, ou seja, estes eram defensores do liberalismo enquanto doutrina, perspectiva contrária a de Karl Marx, que para analisar a sociedade capitalista, partiu da visão dos explorados, ou seja, da classe trabalhadora. Para entendermos a questão da mercadoria e do próprio consumo na obra de Marx, é necessária a análise destas que são importantes para o desenvolvimento tanto de sua obra como de seu método de análise da sociedade capitalista, como é o caso de Os Manuscritos Econômico- 85 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. Filosóficos (2004); Para a Crítica da Economia Política (1978a); Salário, Preço e Lucro (1978b); O Capital (1988), seu método de análise está expresso de forma embrionária no Manifesto do Partido Comunista de 1848 (1998) escrito em conjunto com Engels e que foi desenvolvido de forma mais sistemática em O Capital, mas seu método está presente em toda sua obra. Em Para a Crítica da Economia Política de 1857, Marx desenvolve alguns apontamentos teóricos e metodológicos de algumas questões que serão analisadas em sua obra máxima O Capital, o autor nos possibilita o entendimento de alguns elementos como: a produção, o consumo, troca e a distribuição de mercadorias, pois nesse contexto específico o capitalismo como modo de produção estava se consolidando. “A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial. Este mercado desenvolveu enormemente o comércio, a navegação, a comunicação por terra” (Marx & Engels, 1998, p. 11,12). Para Marx, o objeto de seu estudo em Para a Crítica a Economia Política, é em primeiro lugar a produção material, “indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida” (Marx, 1978a, p. 103). A sociedade capitalista tem por base a produção de mercadorias a partir do trabalho humano, onde normalmente o fruto deste trabalho não pertence ao trabalhador, que é expropriado pelo capitalista, é neste sentido que Marx analisa a produção material na sociedade capitalista, ou seja, a produção social de determinados indivíduos, que podemos chamar de classes sociais que compõem a sociedade capitalista. “Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado” (Marx, 1978a, p. 103). A sociedade capitalista é marcada pela luta de classes que gera a concorrência e disputa entre as classes sociais, e até mesmo entre os indivíduos isolados que buscam se inserir nesta mesma sociedade, esta disputa acontece nos diversos espaços da sociedade e com objetivos distintos, neste caso, não é somente uma concorrência econômica, mas também política, social e cultural. Assim, pode-se colocar: A ideia que se apresenta por si mesma é esta: na produção, os membros da sociedade apropriam-se [produzem, moldam] dos produtos da natureza para as necessidades humanas; a distribuição determina a proporção dos produtos particulares em que queira converter a quantia que lhe coube pela distribuição, finalmente no consumo, os produtos convertem-se em objetos de desfrute individual (Marx, 1978a, p. 107). É a produção que vai criar os objetos e que irão corresponder as necessidades humanas. Por outro lado só é possível a produção a partir do trabalho humano, mas antes temos a transformação da natureza que também é fruto da ação humana. Desses diversos aspectos 86 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. analisados por Marx, sejam eles, produção, troca, distribuição, consumo, é também imediatamente produção. Vejamos essa questão de forma mais organizada: A produção é pois, imediatamente consumo; o é, imediatamente, produção. Cada qual é imediatamente, seu contrário. Mas ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais não teria objeto. Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o sujeito, para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo (Marx, 1978a, p. 109). Marx ainda exemplifica que, sem a produção não há consumo, mas sem consumo tampouco há produção, desta forma, ele diz que o consumo produz de uma dupla maneira a produção, porque na realidade o produto só se torna um produto efetivo quando é consumido. Está presente uma relação direta um com o outro, mas ao mesmo tempo é o seu contrário, Marx coloca ainda outro elemento fundamental, ao afirmar que o consumo cria a necessidade de uma nova produção, ou seja, o fundamento ideal que move internamente a produção, e que é a sua pressuposição. Algumas questões discutidas por Marx e em outros momentos por Marx & Engels, são fundamentais para que possamos entender a formação histórica da sociedade capitalista, desta forma a discussão do seu método de análise (que será realizado em outro momento), a definição de mercadoria, consumo, distribuição, produção etc. são conceitos importantes para o desenvolvimento deste artigo. Neste sentido buscando ainda um entendimento sobre a sociedade capitalista, “a burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou para si, no Estado representativo moderno autoridade política exclusiva” (Marx & Engels, 1998, p. 12,13). A burguesia como classe social precisa se instalar em todos os lugares para poder produzir e vender suas mercadorias. Desta forma: “precisa instalar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares” (Marx & Engels, 1998, p. 15). Isto quer dizer que a burguesia como classe social vai se organizando e estabelecendo conexões em todo o mundo, pois de forma isolada, esta deixaria de existir. Assim, “a burguesia, por meio de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países” (Marx & Engels, 1998, p. 14). De fato a produção capitalista no que diz respeito ao conjunto de mercadorias produzidas e sua forma de estabelecer um mercado mundial, torna, pessoas e produtos em “coisas e que estas são cosmopolitas, pois na sociedade contemporânea, não há como negar esse caráter das mercadorias, inclusive da música, mesmo existindo contradições na sociedade capitalista, onde alguns países têm uma economia desenvolvida e outros de economia subordinada, mas como coloca 87 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. o próprio Marx, quando falamos na produção artística ou cultural, esta independe da produção material de determinada sociedade, isto quer dizer que podemos ter uma produção cultural desenvolvida em um país da periferia do capitalismo. Cabe ressaltar ainda que “a burguesia, pelo aperfeiçoamento rápido de todos os instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, arrasta todas as nações, até a mais bárbara, para a civilização” (Marx & Engels, 1998, p. 16). É a renovação, transformação das técnicas de produção que ocorrem na sociedade capitalista, que faz com que a produção de mercadorias passa a se expandir por todo o mundo, os meios de comunicação é outro elemento facilitador da expansão capitalista, neste caso, estes acabam reproduzindo o modo de produção capitalista, pois é no contexto do século XIX que os meios de comunicação e a própria difusão em massa começa a acontecer em alguns países da Europa, é a origem da chamada indústria cultural que no século XX será fruto de diversos estudos e polêmicas, mas vem contribuir de forma pontual para a produção e reprodução dos produtos da cultura. Vimos que com seus produtos, a burguesia arrasta as mais bárbaras sociedades para o mundo civilizado, este mundo civilizado é o mundo burguês, é por isso que Marx vai afirmar que esta classe social cria um mundo à sua imagem, ou seja, o melhor mundo é o mundo burguês, fato este que deve ser contestado, pois nem sempre as mercadorias capitalistas satisfazem as necessidades humanas, o próprio Marx realiza essa crítica e ao mesmo tempo busca superar esse modelo de sociedade. A história das sociedades que Marx estudou ao longo de sua vida, principalmente a sociedade capitalista em sua totalidade, é o objeto de pesquisa desse autor em O Capital, que de alguma forma resume e retoma parte da sua produção intelectual, bem como vai influenciar diversos outros estudos sobre sociedade, economia, história, política etc. Esta obra é fundamental para o entendimento da sociedade capitalista que estava se consolidando e se ampliando no contexto do século XIX. Na primeira parte desta obra, o autor analisa a mercadoria, pois segundo ele, a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” e a mercadoria individual como sua forma elementar, assim ressalta o autor, nossa investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria. Para encaminharmos o nosso entendimento, faz-se necessário fazer alguns questionamentos: o que é a mercadoria? Quais são suas características? São questões iniciais que ajudam a pensar o tema proposta neste artigo. Marx afirma que: “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (Marx, 1988, p. 45). A mercadoria não é uma coisa única, esta se apresenta em 88 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. suas múltiplas determinações como pressupõe o método dialético de Marx, para satisfazer necessidades humanas em seus diversos aspectos e que estas necessidades podem se organizar tanto do estômago como aponta Marx, como da fantasia, que não irão alterar em nada na coisa, ou seja, na mercadoria. Fazendo uma relação com a indústria cultural, podemos afirmar que esta além de produzir mercadorias culturais a partir do trabalho humano, também de alguma forma acaba produzindo “fantasias” e que são consumidas em todo o mundo, pois as mercadorias em uma forma de comércio mundializado são vendidas em todos os lugares, obviamente que algumas realidades são distintas umas das outras, neste caso a produção, difusão se dá também de forma diferente. A mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e “valor”. Ela apresenta-se como esse duplo que ela é, tão logo seu valor possua uma forma rápida de manifestação, diferente da sua forma natural, a do valor de troca, e ela jamais possui essa forma quando considerada isoladamente, porém sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo, mas serve como abreviação (Marx, 1988, p. 62,63). Podemos dizer que as mercadorias não são coisas simples, e que às vezes ela acaba confundindo a mente dos indivíduos desatentos, pois estas vão além do simples valor de uso e de troca. Todas as mercadorias têm algo em comum, Marx afirma que: “deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos” (Marx, 1988, p. 47). Toda mercadoria existe a partir da ação humana (trabalho), isto quer dizer que uma mercadoria é trabalho acumulado, e que a partir do acúmulo de trabalho na produção dessas mercadorias, estas passam a ter um valor mercantil, onde o trabalho humano acrescenta valor a estas mercadorias. Marx ainda coloca que: “portanto, um valor de uso ou bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato” (Marx, 1988, p. 47). Isto quer dizer que sem o trabalho humano não há mercadorias no sentido capitalista do termo, pois eu posso muito bem produzir um valor de uso, sem ser valor de troca ou até mesmo mercantil. Segundo Marx, todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e essa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso. Em relação à música em geral, esta forma um público que não é homogêneo, pois cada classe social estabelece seu gosto musical, ou é influenciada pelos meios de comunicação que tem seus interesses, que é a produção, difusão e venda de objetos musicais (música), vale dizer que o 89 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. produto musical não é um mero fragmento, este é um elemento dentro de uma totalidade. No modelo de produção da sociedade capitalista, existe uma relação entre o produtor e seu produto. “Entre o produtor e os seus produtos se coloca a distribuição, a qual, por meio de leis sociais, determina sua parte no mundo dos produtos e interpõe-se, portanto, entre a produção e o consumo” (Marx, 1978a, p. 112). É outro elemento presente na análise que Marx desenvolve, onde a distribuição é a mediadora entre produção e consumo. O autor aponta alguns resultados que são importantes para entendermos esse conjunto de elementos: “o resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, o intercambio, o consumo, são idênticos, mas que todos eles são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (Marx, 1978a, p. 115). Por fim, o autor afirma que as necessidades do consumo determinam a produção. Esta produção acontece a partir do interesse das classes sociais em luta é por isso que Marx afirma que o motor da história é a luta de classes que acontece na sociedade, onde a classe burguesa produz sua ideologia ao mesmo tempo em que coloca os seus interesses particulares como sendo coletivos. Neste caso ver a obra A Ideologia Alemã de Marx e Engels (2005). A música como manifestação social/espiritual pode ser uma forte aliada contra a alienação ou até mesmo a ideologia produzida pela classe dominante e seus ideólogos, pois a música e suas manifestações podem contribuir com um pensamento contestatório, mas esta também está vinculada a sociedade capitalista. Essas contradições colocadas existem nas relações sociais cotidianas, mas em alguns momentos estas podem se desenvolver, aumentando assim, o acirramento entre as classes sociais, ou até mesmo a contestação completa da sociedade. O método de Marx é o método dialético que ele utiliza como recurso heurístico para a análise da sociedade. O correto para Marx é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva, mas o pesquisador não deve partir de concepções equivocadas como fizeram os economistas clássicos que analisaram somente determinados aspectos da sociedade capitalista, bem como a produção da vida material. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido (Marx, 1978, p. 130). A sociedade em geral neste caso pode incluir as diversas classes sociais que integram esse modo de produção da vida material e que de alguma forma vai possibilitar a vida social, até mesmo formas de vida que não acontecem somente a partir de uma determinação econômica, como 90 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. foi muito discutido ao longo da história do marxismo, mas também outras formas, como: sociais, políticas e principalmente culturais e que na verdade o ser social é o ser consciente, não aquele ser que passa a acreditar nas fantasias da sociedade capitalista e de uma classe dominante. Para que possamos entender a mercadoria a partir da concepção marxista de sociedade e o consumo que é a nossa proposta inicial, torna-se fundamental uma análise sobre a concepção de trabalho expressa em Marx, pois sem trabalho humano não há produção de mercadorias ao modelo da sociedade capitalista. O trabalho é uma categoria fundamental para que possamos entender a obra de Marx, desta forma ele afirma que nesse processo de trabalho acontece a alienação do trabalhador que é reduzido a uma simples mercadoria, que também é vendida no mercado como qualquer outra mercadoria, aqui está presente a relação entre mercadoria e trabalho ou seu contrário. Para Marx (2004) o trabalho dentro do sistema de produção industrial capitalista, inexoravelmente, leva à alienação do homem, que “objetifica” diante da máquina e se torna uma ferramenta, instrumento utilizado pelo capital a fim de explorá-lo. Este mesmo operário no processo de produção de mercadorias, quanto mais riqueza produz, mas pobre ele fica, pois os objetos produzidos por ele, não pertencem a ele. Marx analisa as relações de trabalho no contexto do século XIX período marcado pelo avanço do capitalismo, principalmente na Inglaterra, principal país capitalista desse período. É um momento onde as relações de trabalho estão sendo transformadas, pois até o momento, grande parte dos trabalhadores na Europa, trabalhavam no campo e não tinham um trabalho assalariado e industrial, fato novo na história das relações trabalhistas. Para desenvolver sua análise sobre as relações de trabalho, Marx inicia sua obra tratando de uma questão fundamental quando falamos em trabalho, a questão do salário, que para ele, “o salário é determinado mediante o confronto hostil entre capitalistas e trabalhador. A necessidade da vitória do capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o trabalhador do que este sem aquele”. (Marx, 2004, p. 23). Este confronto hostil que o autor se refere, é a luta de classes que ocorre entre patrão e empregado, tanto no interior das fábricas ou em momentos de greves que os trabalhadores reivindicam melhores condições de trabalho e aumento salarial, onde o capitalista vai tentar a todo custo vencer o trabalhador. Marx afirma que o capitalista proprietário, pode viver mais tempo sem o trabalhador, porque este é proprietário de fábricas, por exemplo, e o trabalhador por outro lado, só tem sua força física para poder sobreviver, então o trabalhador é forçado a vender a sua força de trabalho para poder receber um salário e realizar o sustento de sua família. Na sociedade capitalista, o capital é trabalho acumulado, bem como é um trabalho que tem uma divisão social extremamente racional para que cada trabalhador possa desenvolver uma função dentro da fábrica. “Com esta divisão do trabalho, por um lado, e o acúmulo de capitais, por 91 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. outro, o trabalhador torna-se sempre mais puramente dependente do trabalho, e de um trabalho determinado, muito unilateral, máquina” (Marx, 2004, p. 26). Esta dependência do trabalhador em relação ao trabalho é fruto do desenvolvimento do capitalismo e da própria forma de organização do mesmo, que vai ao longo da história realizar investimentos em tecnologia e fazer com que o trabalhador se torne cada vez mais dependente do trabalho e consequentemente da máquina. Por outro lado, “mesmo na situação de sociedade que é mais favorável ao trabalhador, a consequência necessária para ele é, portanto, sobre trabalho e morte prematura, descer à condição de máquina, de servo do capital que se acumula perigosamente diante dele, nova concorrência, morte por fome ou mendicidade de uma parte dos trabalhadores” (Marx, 2004, p. 27). Na sociedade do trabalho, resta ao trabalhador, trabalhar para poder manter sua sobrevivência, o trabalho da forma que a sociedade capitalista estabelece, não é nada bom para o trabalhador, pois este é forçado ao trabalho, pois o trabalho pode levar o homem a morte prematura como o próprio Marx afirma, essa morte depende das condições de trabalho que este trabalhador está enfrentando, pois este se torna a partir dessas relações uma máquina e ao mesmo tempo que esta mesma sociedade capitalista, vai jogar parte desses trabalhadores em um tipo de vida hostil em relação ao consumo e ao próprio trabalho, pois nem todos irão encontrar trabalho, pois a sociedade capitalista tem por base a concorrência e a competição entre os trabalhadores, que devem segundo Marx buscar formas de contestação e transformar a sociedade. Segundo Marx, a relação entre trabalhador e capitalista, há ainda que observar que a elevação do salário é mais do que compensada, para o capitalista, pela redução da quantidade de tempo de trabalho, e que a elevação do salário e o aumento do juro do capital atuam sobre o preço das mercadorias como juro simples e composto. Desta forma podemos afirmar que não é interessante para o trabalhador lutar por simples aumento de salário ou até mesmo diminuir sua quantidade de tempo de trabalho, pois na lógica capitalista o patrão dono de fábrica vai sair sempre no lucro, pois o preço da mercadoria vai aumentar. Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do trabalho, a riqueza e o aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até [a condição de] máquina. Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem-estar da sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do capitalista, leva-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida por uma correspondente queda de intensidade (Marx, 2004, p. 29). Na prática a divisão social do trabalho, desenvolve uma produção de mercadorias, pois essa divisão acaba sendo organizada para esse fim, que é uma produção maior de mercadorias, aumentando assim, a riqueza dos capitalistas e o próprio aprimoramento da sociedade, o mais estranho dessa relação é que quem produziu essas mercadorias continua pobre e quanto mais 92 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. mercadorias esses trabalhadores produzem, mais pobres eles ficam, isto quer dizer que as mercadorias que são produzidas pelo trabalhador não pertence a ele. Nessa sociedade do trabalho o trabalhador vive em uma condição de máquina. O trabalho humano produz riquezas para a sociedade (capitalistas) e o trabalhador cada vez mais fica dependente do capitalista, levando a uma concorrência entre os próprios trabalhadores que não deveria ocorrer, pois se os trabalhadores concorrem entre sim, estes facilitam a vida dos capitalistas no sentido de explorá-los. Desta forma a economia burguesa, tem no trabalhador a fonte de riquezas da sociedade. “Mas a economia conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais” (Marx, 2004, p. 31). O trabalho da forma que é colocado para o trabalhador, somente como fonte de riqueza para o capitalista, vai cada vez mais fortalecer a economia burguesa e desumanizar o próprio trabalhador, que normalmente trabalha em condições desumanas, quanto às necessidades humanas, estas vão além de simples necessidades corporais, pois estes precisam de cultura, lazer etc, para que possam desenvolver melhor suas potencialidades enquanto ser humano, fato este que nas relações de trabalho os trabalhadores vão se alienando e perdendo essas potencialidades. Enquanto, a economia burguesa considera o trabalho humano algo abstrato como uma coisa, Marx analisa o trabalho como sendo uma mercadoria que é vendida como qualquer outra, pois o trabalhador assalariado no sistema capitalista não tem outra opção a não ser trabalhar para receber um salário que nem sempre é justo. “O trabalhador não está defronte àquele que o emprega na posição de um livre vendedor... o capitalista é sempre livre para empregar o trabalho, e o trabalhador é sempre forçado a vendê-lo. (Marx, 2004, p. 36). Desta forma percebemos que na realidade existe uma relação entre indivíduos e mais ainda que é uma relação desigual, onde a liberdade reina somente para um desses indivíduos, que é o patrão, como fica evidente, pois o trabalhador é forçado a vender sua força de trabalho. O próprio trabalho segundo Marx se torna um objeto, onde o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. “A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital” (Marx, 2004, p. 81). Mesmo sendo um produtor de mercadorias e diversos objetos que são utilizados na sociedade, grande parte dos objetos produzidos pelo trabalhador se torna algo estranho para sua vida, pois estes objetos não lhe pertencem, nem como propriedade e nem como mercadoria, pois seu dinheiro não é suficiente para esse fim. O estranhamento do trabalho em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores 93 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador (Marx, 2004, p. 82). As leis e a organização da economia burguesa levam à alienação do trabalhador em relação ao que ele está produzindo, são objetos que tem um determinado valor no mercado, mas esses objetos o trabalhador não consegue comprar. Na lógica capitalista, como é apontado acima em diversos aspectos, o fruto do trabalho humano não pertence a quem produziu, gerando uma série de conseqüências ao próprio trabalhador, a alienação é uma delas. Marx afirma que o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privações para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. O trabalhador na sociedade capitalista trabalha 10 ou 12 horas diariamente e não consegue sequer comprar uma moradia por outro lado o burguês desfruta de seus palácios, fruto da exploração do trabalho alheio, por outro lado a vida não é nada bela e feliz para o trabalhador, pois como o próprio Marx coloca o trabalho desumaniza o homem. Portanto, as relações de trabalho na sociedade capitalista são fundamentais para a manutenção desta mesma sociedade e o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora. Para superar essa dominação e exploração o trabalhador devem se organizar coletivamente e lutar em busca de superar esta situação. Marx propõe uma transformação social total Marx & Engels (1998) e Marx (1988). A proposta dos autores que tem por base a luta entre as classes sociais é a supressão das próprias classes sociais, pois segundo os autores, somente o proletariado organizado é capaz de enfrentar a burguesia enquanto classe social e transformar radicalmente a sociedade. Outro elemento importante na obra de Marx e que é analisado em O Capital é o conceito de fetichismo que também está vinculado à mercadoria. Assim, temos alguns apontamentos importantes sobre o consumo, a produção de mercadorias e distribuição, bem como esta difusão de mercadorias passa a ser um dos principais objetivos do mercado capitalista, pois a cada dia essa produção de mercadorias se amplia e novas mercadorias surgem e a busca por consumidores a partir de propagandas na televisão, rádio, internet, revistas, jornais, passa a ser algo fundamental para que os empresários capitalistas possam atingir certos objetivos, que é principalmente o consumo de seus produtos. REFERÊNCIAS MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Nova Cultural, 1988. Vol. I. MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo, Nova Cultural, 1978a. 94 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan. 2014. MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. São Paulo, Nova Cultural, 1978b. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004. MARX, & ENGELS, Fredrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Centauro, 2005. MARX, Karl & ENGELS, Fredrich. O Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998. 95 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 95-99, Jul. 2013/Jan. 2014. UM PENSAR SOBRE A ÉTICA NAS RELAÇÕES DOCENTE E ALUNO NO ENSINO SUPERIOR Mariana Siqueira Silva1 RESUMO ABSTRACT É comum nos dias atuais encontrarmos profissionais It is common nowadays find afflicted professionals aflitos, buscando alternativas para viabilizar seus seeking alternatives to allow their relationships, and relacionamentos e, por seguinte, a qualidade de seu following, the quality of their work. Many of these trabalho. Muitos desses profissionais estão centrados professionals are focused on education, are na Educação, são professores. Além das mudanças teachers. In addition to social changes and the sociais e das novas exigências do mercado de changing demands of the labor market, the trabalho, o próprio sistema educacional no Brasil educational system itself in Brazil is outdated. This encontra-se defasado. Tal contexto sugere novas context suggests new attitudes, break paradigms posturas, a ruptura de paradigmas e um pensar sobre and think about the values of educators and schools. os valores dos educadores e do meio escolar. Em tais In such a perspective reflection on ethics is needed perspectivas uma reflexão sobre a ética se faz in professional performances. The ethics implies a necessária nas atuações profissionais. A ética moral commitment to their own actions, vital for implica em um compromisso moral com suas the teacher, who today, in addition to technicalities próprias ações, atitude vital para o professor, que educator is a global educator who prepares the hoje, além de educador tecnicista é um educador individual to society attitude. The article presented global, que prepara o indivíduo para a sociedade. O here has as its central objective address ethics in the artigo aqui apresentado possui como objetivo central teaching profession, explaining moral values and abordar a ética na profissão docente, explanando os responsibilities of educators and institutions of valores morais e as responsabilidades dos higher education in the training of citizens. educadores e das Instituições de Ensino Superior na formação do cidadão. Keywords: Ethics, professor, global education, Higher Education. Palavras-chave: Ética, professor, formação global, Ensino Superior. INTRODUÇÃO Toda relação interpessoal requer ética. Nas últimas décadas, talvez pela intensificação de assuntos sociais, a palavra ética é ouvida com grande frequência. Entendemos de modo consistente o significado da palavra, mas as práticas dos valores morais e éticos precisam, por vezes, ser exploradas. É comum ao ingressarmos no Ensino Superior, como docentes ou educandos, recebermos uma série de orientações dadas como Código de Ética e Conduta. Tal iniciativa se dá 1 Cursando Mestrado em Educação, graduada em Pedagogia. Atualmente é Analista de PCP Jr. e coordenadora de Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá. 96 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 95-99, Jul. 2013/Jan. 2014. por um princípio básico da ética que, segundo Vázques (1997), é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano. A nossa definição sublinha, em primeiro lugar o caráter científico desta disciplina; isto é, corresponde à necessidade de uma abordagem científica dos problemas morais. De acordo com esta abordagem, a ética se ocupa de um objeto próprio: o setor da realidade humana que chamamos moral, constituído por um tipo peculiar de fatos ou atos humanos. Como ciência, a ética parte de certo tipo de fatos visando descobrir lhes os princípios gerais. Enquanto conhecimento científico, a ética deve aspirar a racionalidade e objetividade mais completas e, ao mesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos sistemáticos, metódicos e, no limite do possível, comprováveis. (Vasquez, 1997, p. 12-13). Para Cortella (2007) a ética é o conjunto de princípios e valores de uma pessoa que possui como objetivo conduzir suas atitudes, de tal modo, a moral é a prática das condutas éticas de um determinado indivíduo. É importante perceber que a postura ética é um fenômeno que ocorre no interior de cada um de nós, assim ela ultrapassa um pensamento individualista e emerge para o social, distribuindo valores morais e estimulando comportamentos que transformam a sociedade. Percebe-se que o docente, além de seus conhecimentos técnicos e científicos, é tido como referência de conduta, ou seja, moral para seus alunos. Buscando aporte na História da Educação narrada nas correntes pedagógicas, o mestre é um espelho que reflete para o aluno exemplificações de postura, decisões, pensamentos e conceitos. Assim, o professor, também no contexto universitário, não se deve restringir apenas aos conhecimentos acadêmicos contemplados em sua área de conhecimento, pois ele é, constantemente, tido como referencial de conduta para seus alunos. Talvez um dos grandes entraves geradores do fracasso escolar e da formação dos alunos universitários, motiva-se pelo fato de que os professores já não se consideram responsáveis pela moral de seus alunos. Engana-se aquele que ingressa na docência universitária imaginando depararse com alunos formados, em caráter e personalidade, e situados em seu contexto social, muitos ainda carregam consigo indagações e anseios que influenciam sua formação como adultos. Para tanto, ainda assim, na idade considerada adulta, os professores são peças chaves em sua formação não só educacional, mas global. É fundamental que o docente tenha a percepção da sua importância sobre a formação de seus alunos, sendo um agente transformador, que indague e motive uma postura crítica. Apesar de conviver durante alguns anos em um mesmo ambiente – a sala de aula, departamentos como a reitoria e a direção são figuras marcantes para os universitários, mas por não lidarem diariamente com eles, não constituem a realidade do aluno. A figura que de modo constante 97 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 95-99, Jul. 2013/Jan. 2014. preenche o cotidiano universitário é, de fato, o professor. Podemos logo pensar que além dos conteúdos técnicos do curso escolhido, o professor prepara o aluno para a vida, para os desafios que encontrará a partir da conclusão do Ensino Superior. Os vínculos estabelecidos nas relações de ensino e aprendizagem corroboram para essa troca entre professor e aluno, tal ação pode ser intensificada de acordo com as vivências e afinidades. No nível superior as relações, por vezes, são mais consistentes e até mesmo duradouras, trata-se de uma relação entre adultos, onde a razão sustenta a emoção e estreita os laços. De tal modo, ao atentar-se para cada detalhe afirma-se a grande importância da postura docente e da ética empregada nas ações dos professores perante seus alunos e sociedade acadêmica. A postura ética revela a face transformadora da Educação, ou seja, sugere pensamentos e comportamentos que empreendam um caminho de reconstrução, que penetre o aluno e, por seguinte, o meio em que ele vive. O Relatório elaborado para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação do Século XXI (2000) aborda os quatro pilares que devem sustentar um sistema educacional de qualidade: aprender a conviver, aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer. Com essas quatro características marcantes, que nos remetem a uma aprendizagem que exceda os murros das Instituições de Ensino, a Educação passa a abranger valores aquém dos conteúdos descritos nos currículos escolares e, mais uma vez, o professor é elemento chave em tal objetivo. Para uma função educadora que, por princípios éticos, vise transformações, o perfil do professor universitário não deve apenas se resumir nos conhecimentos científicos acerca de sua área do conhecimento, pois ele em todos os momentos é dado como referencial para seus alunos. Como agente transformador, baseado em uma conduta que reflita sobre a moral e a ética, o docente carrega consigo o dever e a responsabilidade acerca da formação global de seu aluno. Formação que exceda aos conteúdos curriculares e permita ao aluno um pensamento critico que o torne cidadão. As maiorias das universidades hoje não promovem o ensino de modo global, formam o profissional e não o sujeito em sua totalidade: O professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo: passar do papel de solista ao de acompanhante, tornando-se não mais alguém que transmite conhecimento, mas aquele que ajuda seus alunos a encontrar, organizar e gerir o saber, guiando, mas não modelando os espíritos, demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem orientar toda a vida. (Delors, 2000). Assim como em toda relação interpessoal, é sabido que nem sempre a relação professor e aluno é salubre e promove um vínculo adequado. Todavia, os professores, quando conscientes de seu papel carregam consigo a responsabilidade e a gana por uma sociedade mais justa. Sendo assim, 98 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 95-99, Jul. 2013/Jan. 2014. toda a jornada da relação professor e aluno deve ser vivenciados com base nos valores vitais para a vida social: respeito, cordialidade, ética, empatia e educação. As atitudes diárias, baseadas em tais valores, estabelecem a confiança entre professor e aluno, tecendo fios que fortalecem uma relação permeada pela ética. Sendo assim, juntamente com os conhecimentos técnicos e científicos, o professor transmite para o aprendiz os saberes morais e éticos, que lhes proporcionará uma formação global, corroborando para a sua postura profissional e cidadã. Cabe ressaltar que o benefício de um trabalho docente baseado em tais conceitos traz resultados satisfatórios não só para o aluno, mas transforma uma realidade social, uma vez que as premissas ensinadas ultrapassam as barreiras da escola e refletem na sociedade. No contexto universitário não podemos nos esquecer de que lidamos com a formação profissional, formamos futuros médicos, advogados, engenheiros, professores, jornalistas, pedagogos e uma lista com diversos profissionais em distintos meios de atuação, portanto, a percepção da contribuição para a formação ética e moral desses profissionais é primordial para o educador. Existe um ciclo não factível de rupturas, o professor transmite princípios éticos para que o futuro profissional atue baseado nos mesmos princípios. Os princípios e as posturas designados éticos são norteados pela reflexão. A reflexão é crucial para o desenvolvimento, pois possibilidade a estruturação de pensamentos e ações, consolidando a práxis docente e as responsabilidades para com o educando. Cortella (2007) supõe que três reflexões orientam a conduta ética, desafiando e instigando nossas escolhas: Quero? Devo? Posso? É importante considerar que a liberdade não pode nos omitir de tais questões, quando agimos com transparência e somos capazes de responder as três perguntas indagadas pelo autor, somos referenciais de conduta. Assim, percebemos que o exercício da ética consiste em refletir nossas ações de modo coletivo e sendo o professor um referencial para a formação do aluno, as responsabilidades se agravam neste sentido. O exemplo das condutas éticas propagadas pelos docentes, embasadas no estimulo de competências e habilidades, são de extrema importância para a formação do aluno. Cabe ao professor preparar o aluno para enfrentar os desafios futuros não somente com conhecimentos técnicos e segurança, mas também com responsabilidade, ética e determinação: Atribui-se a grande força dos professores nos exemplos que dão, manifestando sua curiosidade e sua abertura de espírito, mostrando-se prontos a sujeitar as suas hipóteses à prova dos fatos e até mesmo a reconhecer seus próprios erros. (Delors, 2000) Assim, conclui-se que a ética nasce do exercício de reflexão e autoavaliação continua também da postura docente no Ensino Superior, revisar valores e analisar as práticas em sala de 99 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 95-99, Jul. 2013/Jan. 2014. aula é zelar pela formação moral dos alunos. É certo que todas as reflexões podem ser insuficientes para a formação global do individuo, mas toda a transformação, inclusive a transformação social, ocorre de modo gradativo partindo de um principio e de um compromisso moral. REFERÊNCIAS CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a sua obra? Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. Ed. Vozes, 14º ed. Rio de Janeiro, 2011. DELORS, Jean (org.). Educação: um tesouro a descobrir. UNESCO MEC, 4 ed., 2000. VÁZQUES, Adolfo Sánchez. Ética. Civilização Brasileira, 15 ed., 1997. ROCHA, Carla Beatriz; CORREIRA, Genilce Souza. Ética na docência do Ensino Superior. Revista Educare, v. 2, p. 1-7, 2006. 100 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. CONCEPÇÃO MARXISTA ACERCA DA NOÇÃO DE INTELECTUAL Leonardo Venicius Parreira Proto A proposta de discussão a qual desenvolveremos o presente texto tem como principal objetivo elaborar a concepção de intelectual partindo de premissas teórico-metodológicas fundamentadas no materialismo histórico dialético e tendo como eixo o conceito de intelectual trabalhado pelo marxismo, numa perspectiva de compreensão deste conceito a partir da noção de totalidade. Em um primeiro momento do texto explicitaremos algumas notas sobre conceituações do termo no sentido de entendermos como a expressão intelectual é recente enquanto categoria conceitual e uma forma de distinção social desenvolvida no interior da sociedade capitalista. Posteriormente, e para fundamentar nosso texto lançaremos mão de como Marx e alguns de seus intérpretes elaboraram este conceito tendo presente às formas de desenvolvimento das relações sociais de produção no conjunto da sociabilidade capitalista e como, em certa medida, esta noção é permeada pela ideologia e seu agente produtor, o ideólogo. Numa leitura marxista da realidade e sua apropriação feita pelos intelectuais e suas interpretações do real, é preciso considerar como estes se inserem na lógica empreendida pelo desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classes instituída na dinâmica histórica do embate entre a classe dominante e os reais sujeitos de emancipação, o proletariado. O DEBATE ENTRE JACOBY E MANNHEIM: UMA BREVE NOTA Os intelectuais é uma expressão utilizada recentemente, localizada com maior precisão na Rússia do século XIX pelo uso recorrente do termo intelligentsia, que para Russel Jacoby (2001) significava a consciência de pertencimento a um grupo. Segundo este autor, a experiência russa é reveladora, porque legou não apenas uma palavra, intelligentsia, como debates densos e instrutivos. Críticos, romancistas e revolucionários que compunham essa intelligentsia desempenharam um papel decisivo ao longo de todo o século XIX e o início do século XX (JACOBY, 2001, p. 138). A existência de indivíduos intelectuais com a função específica de produção de ideias pode ser observada anteriormente já na antiguidade clássica pela formação dos chamados filósofos, 101 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. responsáveis naquela sociedade escravista pelo auxílio e manutenção do status quo das classes dominantes gregas. Dotados de uma especificidade na divisão social do trabalho, a partir do trabalho intelectual, os filósofos constituem-se em um dos primeiros grupos de indivíduos cuja tarefa está circunscrita por um trabalho demarcado por dada característica específica, a do trabalho intelectual. A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., ‘puras’ (MARX e ENGELS, 1991, p. 45). Para Jacoby (2001), o caso Dreyfus1 é uma referência da noção de intelectual moderno e do qual as esquerdas se apropriaram como modelo, apesar de todo esgotamento que esta referência sofreu no final do século passado. Este movimento de intelectuais motivado por questões nacionais, de conteúdo antissemitista e questionador das atribuições do Estado, propicia pensar como a figura dos intelectuais numa visão moderna vai se aproximando da tentativa destes de se tornarem autônomos em relação às várias instituições, apesar de níveis de dependência e∕ou mesmo de indivíduos identificados como a defesa e sustentação da utopia. “O destino de toda visão utópica está vinculado ao destino dos intelectuais, pois se em algum momento a utopia pode sentir-se em casa, é entre os pensadores independentes e nos cafés por eles freqüentados” (JACOBY, 2001, p. 139). Por outro lado, segundo este autor, a utopia propugnada pelos intelectuais vai dando lugar a absorção das burocracias pelos intelectuais, muito presentes pelo nível de envolvimento destes com a academia e o cotidiano das universidades. O universo dos intelectuais vai cada vez mais ganhando contornos de defesa do progresso e do desenvolvimento da ciência, e com isto a conseqüência mais célere é a miopia. A noção de intelectual nesta burocratização de suas práticas vai configurando a perca de uma dimensão de engajamento das questões sociais em virtude de vida ordenada pela rotinização do pensamento, tal como teorizou Adorno e Horkheimer em Conceito de Iluminismo (1983), cuja mecanização do pensar é algo presente na instrumentalização da razão moderna, próprios do desenvolvimento do capitalismo. 1 Na França, durante o caso Dreyfus a palavra intelectual é evocada publicamente, devido ao movimento criado a favor deste militar francês, cujas acusações de alta traição e espionagem o levaram a prisão como também vários outros pensadores à época se engajaram contra a sentença e uma onda antissemita e xenófoba no país. Anatole France, Theodorl Herzl (um dos fundadores do sionismo) e Émile Zola participaram ativamente desta campanha de indignação contra a acusação do Estado frente a situação de Alfred Dreyfus, a ponto de Zola escrever uma carta dirigida ao presidente da República à época contra esta ação estatal. 102 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. Jacoby (2001) recupera Mannheim com intuito de enfatizar na figura do intelectual uma preocupação em transformá-lo num profissional desta sociedade imune ao processo de transformação social e as tais ideologias esquerdistas, mas envolvido com a capacidade racional de previsão dos fenômenos sociais. Em Mannheim (1986), o intelectual era um indivíduo desenraizado de suas origens de classe e distante de configurações ideológicas e luta pela utopia, bastando a si o fato de ser um indivíduo da ciência e da racionalidade dos processos. (...) o pensador sistemático oculta cuidadosamente suas contradições, tanto para si mesmo como para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as contradições constituem uma fonte de desconcerto, o pensador experimental nelas percebe pontos de partida, em que o caráter fundamentalmente polêmico de nossa situação atual torna-se, pela primeira vez, realmente aberto ao diagnóstico e à investigação (MANNHEIM, 1986, p.78). O intelectual nesta compreensão mannheimiana é o indivíduo dotado de uma erudição capaz de transcender a própria realidade, pensando estar acima das ideologias e quaisquer perspectivas políticas, negando a si mesmo o fato de ser produto de concepções ideológicas, que aqui poderia ser entendido como o cientista “crente” na neutralidade axiológica e no mito da ciência como consciência puramente objetiva. “Também aqui poderíamos tomar Mannheim como uma figura típica, vendo-se como alguém que defendia os intelectuais independentes. Como refugiado, sentia-se sem raízes e sem pátria (...) Mannheim tentou transformar esta instabilidade em virtude, rejeitando a visão esquerdista típica que classificava os intelectuais como burgueses. Nem acreditou que pudessem ser considerados membros da classe trabalhadora. Os intelectuais estariam, isto sim, “situados entre as classes”, relativamente desvinculados ou “flutuando livremente” (JACOBY, 2001, p. 148). A crítica a esta noção sociológica dos intelectuais como grupo social desvinculado assume uma dimensão incontestável nas elaborações jacobyanas, e este é uma das razões pelas quais critica a ideia de neutralidade ou do não envolvimento de intelectuais com a dimensão política da sociedade presente na obra de Mannheim, o que demonstra sua insatisfação perante a (im)postura da posição dos intelectuais nesta sociedade contemporânea e como estes aderiram sem muita resistência as formas burocráticas de atuação no âmbito das instituições. Em uma perspectiva de análise marxista da realidade, e neste caso específico, da posição e tarefa dos intelectuais no conjunto das relações sociais de produção e para uma analítica crítica é necessário atentarmos para a noção de totalidade no referencial do materialismo histórico dialético e de como esta categoria deve ser assumida como recurso heurístico para analisar a própria compreensão do que seja o conceito de intelectual. 103 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. A CATEGORIA DA TOTALIDADE E A NOÇÃO DE DETERMINAÇÃO FUNDAMENTAL No ensaio intitulado Totalidade e Determinação Fundamental, Nildo Viana (2007a), fundamentará sua explicação de totalidade tendo como referência o método do materialismo histórico. Para este, o materialismo histórico, baseado no pensamento de Marx existe uma determinação fundamental em quaisquer sociedade, e esta é o modo de produção. A partir dessa compreensão, Viana (2007a) vai desenvolvendo sua reflexão sobre a questão da totalidade. Para o autor, “de forma mais simples, totalidade é o que abarca o todo. Abarcar o todo de um ser é perceber sua totalidade” (p. 105). Como somos seres sociais, a idéia expressa aqui de totalidade é considerar o indivíduo no conjunto da sociedade ou totalidade como condição ontológica dos indivíduos em suas relações sociais. Para o marxismo, a totalidade é uma dialética das partes em relação com o todo e viceversa, relação necessária do todo com a composição das partes. “Acontece que uma dessas partes exerce uma “determinação fundamental” sobre as outras, ou seja, sobre a totalidade. A própria totalidade é uma derivação desta parte fundamental” (VIANA, 2007a, p. 106). A sociedade seria essa totalidade desenvolvida em relação à complexidade das partes, vividas e experimentadas no cotidiano dos indivíduos dessa mesma sociedade. Há nessa perspectiva a negação da atomização ou fragmentação da realidade, como decorrência das análises feitas pela pós-modernidade. O isolacionismo das questões do indivíduo é nesse sentido anulado, por ser um ente social. As demandas individuais, por mais particularistas que pareça ser às situações de vivência, ao existirem, a ser elaborada, relaciona-se na esfera social, na dinâmica das múltiplas determinações. Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante é, em última instância, a produção e reprodução da vida real. Portanto, se alguém distorce esta afirmação para dizer que o elemento econômico é o único determinante, transforma-a numa frase sem sentido, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas, e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos – excercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma (ENGELS, 1987, p. 39). A totalidade constituída ou constituinte é uma dimensão da realidade concreta dos indivíduos. E por realidade concreta entende-se a síntese de múltiplas determinações (MARX, 1983; VIANA, 2007a). As relações sociais concretas, de indivíduos também concretos dão-se na dialética do materialismo histórico considerando os seres nas suas formações sociais e nas suas formas de 104 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. produzirem sociabilidades. A concreção dessas relações sociais se dará na práxis desses indivíduos históricos. É na práxis que podemos perceber a totalidade concreta, à ação do humano e sua constituição histórica (VIANA, 2007b). Determinação fundamental ou modo de produção e totalidade ou sociedade como recursos heurísticos de explicação da realidade são fundamentais no materialismo histórico dialético por compreender o real na perspectiva do “desenvolvimento de uma consciência correta da realidade”. Essa consciência, de acordo com a perspectiva de Viana parte do interesse de classes e como se fala em “consciência correta da realidade”, fundamentam-se no interesse da classe trabalhadora e na falsificação da realidade, como imprime a ideologia dominante burguesa (VIANA, 2007c). Portanto, ao se falar de totalidade concreta é necessário trabalhar o materialismo histórico dialético tendo como sujeitos imprescindíveis, o proletariado e sua perspectiva de ruptura com sociedade de classes, pois essa sociedade classista reduz a noção de totalidade e a substitui por uma visão parcelar, fragmentária do processo histórico. Interessa à ideologia da classe dominante uma visão fragmentada da realidade ou da consciência da mesma, pois é essa visão que a permite seguir com o processo de dominação e estruturação das classes sociais como justificativa da naturalização da condição histórica dos indivíduos. O materialismo histórico dialético, enquanto método contribui no combate a ideologização da sociedade de classes. É método que explicará a realidade concreta, um aporte para o entendimento da totalidade. Assim, podemos definir método como um recurso mental para analisar a realidade concreta e assim reconstituí-la no pensamento. A reconstituição da realidade concreta no pensamento significa a expressão da realida- de tal como ela é e o método é um recurso que possibilita isto (VIANA, 2007d, p. 866-867). O método constitui de um aporte teórico para proceder a um processo de abstração que visa analisar o concreto-dado e transformá-lo em um concreto-abstrato. Eis aqui a compreensão da totalidade em termos da dialética materialista, pois a analisar a sociedade com a mediação do método pretende-se descobrir a essência dos fenômenos, ou seja, “a determinação fundamental do seu processo de transformação” (VIANA, 2007c, p. 88). Parece que o melhor método será começar pelo real e pelo concreto, que sã o a condição prévia e efetiva; assim, em economia política, por exemplo, começar pela população que é a base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, numa observação atenta, apercebermo-nos de que há aqui um erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousa, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do 105 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples, do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar no sentido contrário até se chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas. A primeira foi a que, historicamente, a economia política adotou ao seu nascimento. Os economistas do século XVII, por exemplo, começam sempre por uma totalidade viva: população, Nação, Estado, diversos Estados; mas acabam sempre por formular, através de análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc. A partir do momento em que esses fatores isolados foram mais ou menos fixados e teoricamente formulados, surgiram sistemas econômicos que partindo de noções simples tais como o trabalho, a divisão do trabalho, a necessidade, o valor de troca, se elevavam até o Estado, às trocas internacionais e ao mercado mundial. Este segundo método é evidentemente o método cientificamente correto. O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade na diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento (MARX, 1983, p. 218-219). No método, a explicação da realidade é mediada pela noção de categoria. Segundo Viana (2007d) a formação das categorias são necessárias como instrumentos de análise da realidade concreta, subsídios para apreensão intelectual do mundo real. É nesse conjunto do concreto-dado e concreto-pensado, que, “Marx vai destacar a totalidade enquanto categoria fundamental do método dialético. Para Marx, a totalidade é o concreto. O processo de reconstituição da realidade no pensamento significa a passagem do concreto tal como visto imediatamente pela consciência para a descoberta de suas determinações, seu processo de constituição, reconstituindo-o enquanto concreto-determinado. Este processo, realizado via abstração, significa o uso do método dialético para reconstituir o concreto enquanto totalidade com suas múltiplas determinações e sua determinação fundamental. Assim, Marx concebe o real, o concreto, como uma totalidade e assim esta categoria assume papel fundamental em seu método” (VIANA, 2007d, p. 868869). Para Nildo Viana, Lukács e Korsch são continuadores do pensamento marxista no que consiste a idéia de totalidade concreta. Essa preocupação de ambos pensadores, de recuperar a categoria de totalidade estaria associada à crítica a deformação da dialética marxista pelo reformismo social-democrata e bolchevismo (2007d). Lukács (2003) tendo como perspectiva analítica o ponto de vista do proletariado na história e sua ontologia como ser social, trabalha a idéia da dialética marxista no conjunto totalizante da práxis desse mesmo proletariado. Na perspectiva do proletariado, o ponto de partida é a condição da sociedade burguesa para a transformação social. “Ir além da empiria só pode significar, ao contrário, que os objetos da própria empiria são aprendidos e compreendidos como aspectos da totalidade, isto é, como aspectos de toda a sociedade em transformação histórica” (p. 330). 106 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. Na concepção lukacsiana de totalidade, “O método dialético distingue-se do pensamento burguês não apenas pelo fato de ele ser capacitado para o conhecimento da totalidade, mas por este conhecimento ser possível somente porque a relação do todo com as partes tornou-se fundamentalmente diferente daquela existente no pensamento reflexivo. Dito de maneira breve, a essência do método dialético – a partir desse ponto de vista – consiste no fato de que a totalidade está compreendida em cada aspecto assimilado corretamente pela dialética e de que todo o método pode desenvolver-se a partir de cada aspecto” (LUKÁCS, 2003, p. 342-343). Assim, a noção de totalidade na compreensão do materialismo histórico dialético colabora para o entendimento de que as múltiplas determinações sociais podem ser analisadas por esse viés teórico. Isso significa à recusa dos particularismos, ou das concepções que criticam o próprio marxismo, justificando que Marx não conseguiu elaborar uma teoria que pensasse questões da nossa contemporaneidade: como os estudos de cultura, de gênero, étnico-raciais, da sexualidade, etc2. No texto sobre a “Dialética de Marx”, Karl Korsch (2008), originalmente escrito em 1923, expõe que a dialética materialista se constitui enquanto “expressão teórica” do proletariado numa construção da práxis libertária. A idéia de totalidade está vinculada ao movimento histórico do proletariado revolucionário, pois estes são sujeitos da ruptura com a determinação fundamental e sujeitos da construção emancipação humana. A categoria da totalidade somente pode ser pensada na esfera da luta de classes. O marxismo é a expressão teórica do proletariado revolucionário (KORSCH, 2008) e tem como tarefa fundamental o esforço de romper com modo de produção capitalista a partir da luta de classes. Esse movimento é possível com a consciência histórica do desenvolvimento das forças produtivas e da inserção da classe trabalhadora e as várias determinações em relação à totalidade social. Uma indagação que podemos fazer quanto a essa noção da categoria totalidade é: como a classe trabalhadora perceberá a si mesmo como potencial revolucionário na esfera da sociedade de classes? Em termos de apreensão da totalidade, a classe trabalhadora e sua inserção na luta de classes exercitarão sua práxis para além de si, entendendo que a abolição da sociedade de classes exige posturas e reflexões que a colocam como sujeito histórico revolucionário e responsável pela construção de uma nova totalidade: a sociedade comunista. 2 A proposta do texto é discutir fundamentalmente duas questões relacionadas ao marxismo (totalidade e divisão do trabalho intelectual) e a apropriação do marxismo sobre determinadas concepções. Teríamos que desenvolver outro aspecto, quiçá em outro texto ou produção mais elaborada, sobre a contraposição entre as noções de totalidade e fragmentação no pensamento social. Porém, para dar apenas um indicativo da problemática levantada, o marxista Lisandro Braga (2007) desenvolve uma discussão importante sobre as cotas raciais e a pós-modernidade, ou seja, como as discussões parciais de problemas sociais são minimizadas diante da dimensão da totalidade, ou seja, o atual desenvolvimento das forças produtivas apropria-se de forma redutora das várias demandas sociais, reduzindo-as em seus particularismos. 107 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. Não é possível acrescentar que os homens não são os livres árbitros das suas forças produtivas – que são a base de toda a sua história – pois qualquer força produtiva é uma força adquirida, o produto de uma atividade anterior. Assim, as forças produtivas são o resultado da energia prática dos homens, mas esta energia está ela mesma circunscrita pelas condições nas quais os homens se encontram, pelas forças produtivas adquiridas, pela forma social que existe antes deles, que eles não criam, que é o produto da geração anterior. Pelo simples fato de que toda a geração posterior encontra forças produtivas já adquiridas pela geração anterior, que lhe servem de matéria-prima para novas produções, forma-se uma conexidade na história dos homens , forma-se uma história da humanidade, que é tanto mais história da humanidade quanto se desenvolveram as forças produtivas dos homens, e consequentemente, as suas relações sociais. A conseqüência necessária é que a história social dos homens nunca é mais do que a história do seu desenvolvimento individual , quer tenha consciência disso ou não. As suas relações materiais formam a base de todas as suas relações. Essas relações materiais não são mais do que as formas necessárias nas quais se realiza a sua atividade material e individual (MARX, 2006, p. 176-177). Na construção de práticas revolucionárias da classe trabalhadora contra o conservadorismo das ações e reprodução da ideologia dominante burguesa, o proletariado precisa no seu cotidiano possibilitar práticas culturais e políticas que objetivam a crítica impiedosa das forças de reprodução do capital, no escopo de uma nova determinação fundamental, ou o novo modo de produção: comunista, aponta Viana (2007a; 2008). Assim, a sociedade dos trabalhadores, aqueles que trabalham e se realizam no trabalho, tanto satisfazendo suas necessidades quanto através da própria satisfação do trabalhado não alienado, manifestação da objetivação, se torna uma sociedade de repartição igualitária da produção coletiva (VIANA, 2008, p. 82-83). A apropriação da categoria de totalidade e a formulação de uma nova visão de mundo a partir do proletariado devem romper com as formas alienantes do trabalho. Isso significa uma ruptura com as formas da divisão social do trabalho, em especial aqui, com a divisão do trabalho intelectual, um dos pontos fulcrais da sociedade de classes. CRÍTICA DA DIVISÃO DO TRABALHO INTELECTUAL Na dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas um dos aspectos ou determinações vigentes diz respeito à divisão social do trabalho e suas formações especializadas, tal como manifestada na divisão do trabalho intelectual. “As forças produtivas são os instrumentos, matérias-primas, instalações, meios de circulação etc, necessários à produção e circulação dos produtos. As relações de produção se dão entre os indivíduos histórico-concretos no seio da produção e circulação dos bens materiais (...). Nas sociedades classistas, a divisão social do trabalho já apresenta uma maior complexidade, aparece a figura do apropriador e a do explorado. É o momento também do florescimento de determinadas formas de regularização necessárias à manutenção destas relações antagônicas” (MAIA, 2007a, p. 10). A contribuição da epistemologia marxista enseja ressaltar a crítica ao universo da especialização, uma das variantes ideológicas do capitalismo, centrada na “importância” da 108 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. competição, da concorrência, da meritocracia, atingível pelo mecanismo da escolarização e o valor ofertado aos indivíduos “pensantes” em detrimento dos que representam sua negação, aqueles/as trabalhadores/as ligados/as a produção manual, braçal ou técnica (no sentido da repetição de procedimentos mecânicos). No âmbito da divisão do trabalho intelectual, o marxismo é o referencial possível de crítica às formas de regularização social da burguesia dominante. Uma de suas formulações culturais dá-se em torno da formação intelectual, em grande parte incentivada pela escolarização dos indivíduos e sua valoração ao conteúdo meritocrático. O desenvolvimento da ciência burguesa é uma forma de elaboração sistemática ideologizada de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Sua apologia discursiva em favor da racionalidade moderna e dos avanços do conhecimento humano reforça o processo de fragmentação do saber, além de imprimir a lógica cartesiana: a idéia de dicotomização entre o sujeito e objeto do conhecimento, numa alusão explícita da separação entre ser e a consciência, inviabilizando assim a dimensão de totalidade do sujeito. Assim, a ciência vê o todo através da separação, soma a hierarquização das partes. O processo de separação produzido pela ciência é tão evidente que basta lembrarmos a famosa divisão (separação) entre ciências naturais e ciências humanas. Há também uma tentativa de hierarquização, onde, geralmente, as ciências naturais são tidas como o “centro” exemplar da produção científica (VIANA, 2007a, p. 127-128). A entrada no mundo moderno, tendo como determinação fundamental o capitalismo, propiciou o desenvolvimento da ciência enquanto saber especializado, atomizado, cultor de variantes da perspectiva reducionista e determinista do campo das chamadas ciências: exata, natureza e humana. Essa visão parcelar do processo de constituição do conhecimento produziu condições e hábitos burgueses que celebrariam a evolução científica como um dos referenciais do projeto de consolidação da dominação burguesa e de sua primazia enquanto classe detentora dos meios de produção. Em termos ideológicos, “este procedimento cria um reino de especialização. Cada especialista passa a ver o mundo através das lentes de sua ciência” (VIANA, 2007a, p. 129). A divisão do trabalho (...) expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros relacionam-se com estas idéias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm 109 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios (MARX e ENGELS, 1991, p. 73)3. Portanto, os ideólogos enquanto classe auxiliar da burguesia e a serviço da mesma tem como função a formulação de idéias, de pensamentos que reforçam a tese da sociedade de classes e em muitas situações políticas, desenvolvem aspectos de convencimento das formas de regularização social, por meio de discursos reprodutores dos valores burgueses, tais como ascensão social, defesa da máxima liberdade dos indivíduos e de seus direitos de consumação da propriedade privada, etc. O surgimento dos intelectuais ocorre com a separação entre trabalho intelectual e manual (...). O discurso dos intelectuais possui uma legitimidade devido ao fato de ser considerado verdadeiro, superior. A legitimidade do discurso do intelectual se encontra na sua autodeclarada capacidade de monopolizar a veiculação da verdade, através da razão, da interpretação da palavra de Deus, da pesquisa empírica, ou qualquer outra justificativa, ela mesma ideológica, mas aceita socialmente (VIANA, 2006, REA). Para Nildo Viana (2006), os intelectuais como classe social ou como classe auxiliar da burguesia, para ser mais exato segundo sua proposição, colabora com a institucionalização de práticas de defesa dos interesses de si enquanto grupo social a serviço do processo de dominação. De acordo com a formulação de discursos apologéticos à razão emancipatória, defendem o estatuto científico e o ethos da neutralidade da própria ciência. Nesse sentido, é o próprio Weber em sua obra “Ciência e Política: duas vocações”, ao explicar o sistema de inserção como docente-pesquisador na universidade alemã, que vai dar a dimensão real da constituição do modo de produção capitalista e absorção por parte da determinação fundamental do trabalho intelectual na vida universitária. Nos últimos tempos, podemos observar claramente que, em numerosos domínios da ciência, desenvolvimentos recentes do sistema universitário alemão orientam-se de acordo com padrões do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciência e de medicina se transformaram em empresas de “capitalismo estatal”. Já não é possível geri-las sem dispor de recursos financeiros consideráveis. E nota-se o surgimento, como aliás em todos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fenômeno específico do capitalismo, que é o de “privar o trabalhador dos meios de produção”. O trabalhador – o assistente – não dispõe de outros recursos que não os instrumentos de trabalho que o Estado coloca a seu alcance; conseqüentemente, ele depende do diretor do instituto tanto quanto o empregado da fábrica depende do seu patrão – pois o diretor de um instituto imagina, como inteira boa-fé, que aquele é seu instituto, dirige-o à seu bel-prazer. Assim, a posição do assistente é, com freqüência, nesses institutos, tão precária quanto a de qualquer existência “proletaróide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas (WEBER, p. 19-20, 2011). Essa explicação weberiana do sistema de constituição de cátedras no ensino universitário especializado alemão e norte-americano oferece elementos para aquilo que Makhaïsky 3 Em relação à temática da aparência e sua construção ideológica é importante ressaltar a reflexão tendo como instrumental de análise a sociedade do espetáculo, entendendo-a, como fez Guy Debord (2007), como esforço de visibilizar, dar aparência (produção de imagem), à determinação fundamental e a totalidade nesse movimento dialético de produção e reprodução do capital na sociedade contemporânea (PROTO, 2011). 110 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. (apud VIANA, 2006) caracterizou de apropriação por parte dos intelectuais da extração de maisvalor do proletariado, pois para este, os intelectuais serviriam como auxiliares da burguesia com o intuito de obter vantagens do nível de vida burguês. É por esse motivo que Makhaïsky (1981) em seu texto, O Socialismo de Estado, critica radicalmente os intelectuais a serviço do Estado e preocupados com as formas de devolução de prestação de serviço, no caso, por meio de salários. De acordo com suas teses, há um ataque impiedoso contra o rendimento salarial da intelectualidade, pois o salário falsifica os verdadeiros motivos para a abolição do Estado Socialista e a derrocada do capital. Mas o grande problema gerado por tal divisão do trabalho intelectual não se encontra apenas nisto. O “ovo da serpente” choca noutro lugar. Ele se encontra na prática derivada desta formação. A ideologia não só é falsa consciência, não somente legitima o status quo, como também é mobilizadora, é constituinte de técnicas, ações, práticas, políticas estatais etc. Vejamos alguns exemplos para perceber a amplitude das conseqüências da divisão do trabalho intelectual. Em certas ciências ou categorias profissionais ela gera ideologias. A forma mais visível destas se encontra nos chamados determinismos: geográfico, biológico, genético, econômico etc. Assim nasce o biologismo, o sociologismo, o economicismo etc. Mas elas também se manifestam sob formas mais amenas. Esta ideologia, por sua vez, além de ser uma forma de falsa consciência, também gera outras conseqüências. A falsa consciência pode legitimar o status quo, desmobilizar os movimentos de contestação social, corroer a crítica e a percepção da totalidade da vida social etc. Mas uma vez existindo, pode se tornar uma fonte de ações, práticas, políticas estatais e técnicas extremamente nocivas, seja ao conjunto da população ou a parte dela (VIANA, 2002, REA). A divisão do trabalho intelectual impele reforça o nível ideológico promovido pelos intelectuais da “ordem”, e de suas razões discursivas, legitimadoras da estrutura de classes, imposta pelas várias mediações do capitalismo, como as instituições do saber especializado promotoras do desenvolvimento do modo de produção: escolas4, universidades, indústrias, meios de comunicação social, instituições financeiras e o Estado (aliás, é um grande benemérito “social” do capital, pois regula e organiza as relações sócias de produção). Qual seria uma possível solução para este problema? Devemos reconhecer que a base social da especialização (a inserção numa categoria profissional), não pode ser removida no contexto da sociedade moderna. Isto só seria possível com uma profunda transformação social, o que pode constituir num objetivo, mas não numa prática imediata. Apesar disto, é possível superar a divisão do trabalho intelectual através de uma formação mais ampla. Portanto, tanto a predisposição individual dos pesquisadores como ações coletivas podem contribuir com o processo de questionamento da divisão do trabalho intelectual e buscar formas de superá-la. Assim, algumas serpentes não irão nascer e iremos contribuir para que as universidades deixem de ser um ninho de serpentes e passem a ser semente de um mundo novo (VIANA, 2002, REA). 4 Para Gramsci (2010), a civilização moderna e a organização da cultura escolar foram desenvolvidas em dois tipos de escola: a dos dirigentes e especialistas e a organizada para as classes subalternas. A escola voltada para as classes dirigentes seguiam como orientação a formação humanista e para a formulação do pensamento complexo. Para as classes subalternas, a escola propícia era a de base técnica, voltada para a formação profissional e instrumental. 111 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. Outras perguntas também são imprescindíveis, a nosso ver. É possível a elaboração de uma crítica a divisão capitalista do trabalho intelectual fundada no materialismo histórico dialético? Qual o papel dos intelectuais que radicalizam suas críticas a formação social do capital? Existem intelectuais anticapitalistas? Quais suas ligações com a classe trabalhadora? A resposta a essas indagações está diretamente interligada a própria existência do proletariado enquanto classe. O intelectual vinculado a classe trabalhadora tem como condição existencial a constituição de um projeto coletivo junto ao proletariado e a negação de si mesmo como indivíduo pertencente a uma “classe autônoma”. O intelectual, neste caso, deve realizar um engajamento na luta pela transformação social e abolição das classes em geral, inclusive da sua própria classe social. Isto pode ser feito sob as mais variadas formas, desde a ação política concreta até a própria atividade profissional, direcionada para a crítica das ideologias, da burocracia e do próprio papel do intelectual na sociedade moderna. A articulação do intelectual com o movimento operário, os movimentos sociais, as lutas políticas concretas também assume importância neste contexto. Além disso, é fundamental a contribuição com o desenvolvimento do pensamento complexo no sentido de desvendar as diversas formas de dominação e reprodução da exploração e opressão. Assim, os intelectuais passam de serviçais do poder para críticos do poder e este é o papel do intelectual que supera os seus interesses imediatos e egoístas e passa a defender os interesses gerais da humanidade, que são também seus interesses, contribuindo, assim, com a emancipação humana (VIANA, 2006, REA). Portanto, a luta de classes é esse movimento no qual os intelectuais devem engajar-se junto aos/as trabalhadores/as com o objetivo primordial: a superação do capitalismo e a supressão da sociedade classista. Isso exigirá dos/as intelectuais um esforço militante na construção de uma sociedade livre do domínio do capital e a favor da humanidade emancipada, na qual os indivíduos e sujeitos livres se associarão para construírem a sociedade comunista. De acordo com essa constatação, os/as que tiverem do lado desse projeto revolucionário, inclusive, os intelectuais, terão de predisporem a realizar tarefas militantes para a construção de “coletivos de autogestão social” (VIANA, 2008, p. 53). Para concluir, o legado marxista, em sua práxis com a possibilidade concreta da realização de outra lógica de sociedade. O esforço teórico do marxismo é de radical significação para a classe trabalhadora, pois possibilita o crescimento crítico do projeto da socialista e de movimentos da classe trabalhadora em prol de sua emancipação. O marxismo vê no materialismo histórico dialético o método de explicação da realidade, no qual alimenta a realização concreta da totalidade histórica e social (KORSH, 2008). 112 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112, Jul. 2013/Jan. 2014. 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Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. JUVENTUDE E UTOPIA André de Melo Santos RESUMO ABSTRACT As manifestações que tem ocorrido recentemente no Brasil evidenciaram uma grande participação de jovens e estudantes. Diante disso buscamos discutir o conceito de juventude na sociedade moderna, como esta categoria social entrou em evidência no cenário político. Diante dessa massiva participação de jovens nos movimentos sociais buscaremos discutir o conceito de utopia, no sentido de que desejo move esses jovens, utopia que busca algo alcançável ou sonhos da juventude? The events that have occurred recently in Brazil showed significant participation of young people and students. Therefore we discuss the concept of youth in modern society, as this social category came into prominence in the political arena. Given this massive youth participation in social movements seek to discuss the concept of utopia, in the sense that desire moves these young people, seeking something attainable utopia and dreams of youth? Keywords: Youth, Palavras-chave: Juventude, sociedade moderna, movements, utopia. movimentos sociais, utopia. modern society, social Introdução As manifestações que ocorreram no Brasil no mês de junho além de não serem previstas -se bem que não existem meios nas ciências sociais de fazer previsões- milhares de pessoas tomaram as ruas numa onda de protestos que começaram com o movimento passe livre reivindicando a revogação do aumento da tarifa em algumas cidades como Goiânia e São Paulo e com a proximidade do evento que antecede a copa do mundo que será realizada no Brasil entraram na pauta protestos contra os gastos públicos com a realização do evento no Brasil e contra a corrupção entre outros Uma característica marcante desse movimento foi a grande participação de jovens e estudantes algo que no ocidente desde o fim da II Guerra Mundial se tornou algo frequente, lembremo-nos do maio de 1968 (GROPPO, 2000) um movimento que teve na França a maior repercussão e que questionou as bases da sociedade capitalista. Desde então os movimentos estudantis ganharam força e tomaram as ruas. Segundo Marx (2011) como classe explorada caberia à classe trabalhadora lutar pela destruição da sociedade capitalista, as organizações de trabalhadores tiveram segundo Bihr (2012) 114 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. dois caminhos a seguir um mais radical que buscaria a revolução e outro defendido pela socialdemocracia que tinha como ideia central a participação na democracia burguesa e consequentemente a vitória eleitoral significaria que as reformas fossem implantadas para fazer com que os interesses da classe trabalhadora fossem atendidos. Contudo a socialdemocracia nunca realizou essas reformas e, aonde chegou ao poder o que se viu foi à continuidade da hegemonia capitalista. O fim da Segunda Guerra Mundial presenciou transformações na sociedade capitalista, a destruição ocorrida no conflito permitiu uma estabilidade e crescimento econômico, um novo regime de acumulação foi implantado e este permitiu nos países imperialistas o que se chamou de integração da classe operária a sociedade de consumo e, para isto foram criados mecanismos de assistência e seguridade para a classe trabalhadora, embora nos países subordinados que estavam sendo industrializados com a utilização de capitais transnacionais, as condições dos trabalhadores foram muito ruins (COSTA, 1997). Desta forma quando o regime de acumulação entrou em crise e o maio de 1968 é um sintoma disso, a classe trabalhadora dos países imperialistas entrou tardiamente na luta e desde então vive o dilema de lutar contra a sociedade capitalista ou buscar o retorno ao modelo do regime intensivo-extensivo que lhe proporcionou certos benefícios. Neste contexto que emergiram as lutas estudantis, no momento em que nos países imperialistas a classe operária oscilava entre lutar ou buscar reformas coube ao movimento estudantil liderar as ondas de revoltas. Diante disso que nos propomos a discutir dois pontos que acreditamos serem relevantes, o conceito de juventude e o de utopia. Conceito de Juventude O conceito de juventude fez isso porque uma característica dos movimentos sociais do pós II Guerra, no ocidente tem forte presença de grupos estudantis, como exemplo o maio de 1968 e, o próprio movimento antiglobalização, atualmente em Goiânia um movimento estudantil questiona o aumento da passagem de ônibus, embora este atinja a todos inclusive os trabalhadores, é visível que as manifestações são compostas em sua maioria de jovens. Desta forma se faz necessário definir a juventude, a que grupo ela pertence e, diante disso o motivo da contestação juvenil. Por outro lado se faz notar o interesse do estado em relação à juventude, segundo Groppo: Os nazistas pregavam claramente que queria da juventude ( e dos líderes da juventude, incluindo os professores) uma integração militante ou ativa. Nos princípios da política nazista para a educação e juventude, segundo George L. Mosse, está a busca da cooptação da juventude e das novas gerações, deixando-se relativamente de lado as velhas gerações 115 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. consideradas contaminadas por vestígios de liberalismo e até socialismo/comunismo (2000, p.159-160) A juventude seria o ímpeto cultural do Terceiro Reich, e assim fica claro como o partido nazista mobilizou a juventude da Alemanha e, como esta foi uma das bases de sustentação do regime. Assim se faz necessário buscar uma definição de juventude, e neste caso é útil observar como os sociólogos tratam o termo. Iniciaremos com as análises de Mannhaeim, passando por Lapassade até chegar a autores contemporâneos como Groppo e Viana para chegarmos a uma definição que colabore com a nossa pesquisa. Mannheim no livro Diagnóstico de Nosso Tempo esboça uma definição de juventude, inicialmente colocando a questão do conflito de gerações, colocando que: Na sociedade moderna a juventude tem a função específica da mocidade é a de um agente revitalizante, é uma espécie de reserva que põe em evidência quando essa revitalização for necessária para ajustamento a circunstâncias em rápida mudança ou completamente novas (Mannheim, 1972, p50) Ele coloca que a juventude não está completamente envolvida na ordem social (1972), daí seu espírito aventureiro, desta forma disposta a enfrentar com mais entusiasmos as novas situações do que as gerações mais velhas. Outro ponto debatido é se a juventude é de uma perspectiva mais progressista ou conservadora, visto que socialmente o jovem é visto como progressista e o adulto conservador. Desta forma, para Mannheim o jovem ainda não tem direitos adquiridos e sua potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade, tendo escrito sobre a juventude na época da ascensão do nazismo, no livro escrito em 1931, Diagnóstico de Nosso Tempo, devido à manipulação que os nazistas faziam com a juventude pode ter colaborado para ele elaborar essa definição de juventude que se assemelha a um vagão de trem que pode ser puxado para qualquer lado. Segundo ele, na linguagem da sociologia, ser jovem significa, sobretudo ser um homem marginal, em muitos aspectos um estranho no grupo (1972, p.53), mais adiante ele coloca: Evidentemente esta situação de elemento estranho é somente um potencialidade e, como eu disse, depende em grande parte das influências orientadoras e diretoras vindas de fora saber se essa potencialidade será suprimida ou se será mobilizada e integrada em um movimento (1972, p.53). Uma obra importante para discussão sobre juventude é o livro A Entrada na Vida, de Georges Lapassade. Nesta obra de grande importância para o debate sobre a juventude na sociedade moderna e escrita na década de 1960, no tempo dos grandes movimentos contestatórios da sociedade capitalista fez uma discussão sobre o significado da juventude. O autor começa questionando o papel do adulto padrão na sociedade moderna. Segundo ele: 116 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. O homem moderno aparece cada vez mais, em todos os planos da sua existência, como um ser inacabado. O inacabamento da formação tornou-se uma necessidade, num mundo marcado pela transformação permanente das técnicas, o que implica numa educação igualmente permanente (LAPASSADE, 1975, p. 16) A ideia que se tem de adulto como um ser amadurecido, terminado, é colocada em xeque na sociedade moderna já que as transformações constantes da sociedade capitalista colocam o indivíduo em uma situação de estar sempre preparado para novas situações, diferente, por exemplo, da sociedade feudal, onde se tinha a estabilidade na vida inteira. Assim, a juventude se caracteriza por essa transição entre a infância e a vida adulta, segundo Lapassade: A adolescência é um período de passagem, de transição. Pode considerar-se adolescência como uma mudança na pertença ao grupo. Até aqui, o indivíduo pertença ao grupo das crianças; esta pertença termina na idade em que o jovem se esforça seriamente por entrar na vida adulta, pelos projetos de futuro e pelo seu estilo geral de vida. (1975, p.158-159). Assim a juventude é um período de mudança e segundo o autor esse período é marcado por uma grande plasticidade na personalidade, visto que sai de um mundo conhecido e seguro, o da infância, e entra num mundo desconhecido, o do adulto dai o radicalismo de opiniões. O ser adulto na sociedade capitalista é ser para a classe trabalhadora, ou ser explorado. Muitos se recusam a se tornar adulto, pelo que isso significa: trabalhadores alienados (Lapassade, 1975, p.189). Mesmo que a escola, os meios de comunicação e a sociedade tenham o papel de formar não só o jovem, mas toda a sociedade a aceitar sua condição de classe, os jovens acabam se rebelando contra isso, pois muitos não querem seguir o destino dos pais, neste ponto chegamos às revoltas juvenis, um confronto do indivíduo com seu meio social, o jovem se depara com o mundo que terá que viver. Pode-se ver esta contradição, precisamente nas expectativas da sociedade em relação aos jovens: tudo mostra que esta sociedade, por um lado, manifesta uma certa desconfiança a respeito do indivíduo que levasse demasiado longe o espirito crítico e a iniciativa: o ideal da organização é, neste ponto, um ideal que caracteriza o conjunto do sistema social. Mas, por outro, a mesma sociedade não pode verdadeiramente manter-se senão pela adesão dos indivíduos que a compõem. É nisso que está a sua contradição: manter um sistema conformista, fundado sobre valores ilusórios, e, ao mesmo tempo, pretender preparar adultos capazes de humanizarem um tal sistema e nele se integrarem ativamente (Lapassade, 1975, p.260) Na juventude, esse conflito se torna mais agudo, e, no caso da sociedade capitalista que aprofundando o processo de exploração, oferece ao jovem uma perspectiva não muito animadora em relação ao futuro, é normal que o jovem recuse o mundo do adulto. Outro sociólogo que discute a questão da juventude é Luís Antônio Groppo, no seu livro Juventude, de 2000, ele usa a Sociologia e a História para discutir o tema nas sociedades modernas. No seu texto ele coloca uma definição clara, segundo ele: 117 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. A juventude é uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de complementos e atitudes a ela atribuídos. Ao mesmo tempo, é uma situação vivida em comum por certos indivíduos. Na verdade, outras faixas etárias poderiam ser definidas assim, como a infância, a terceira idade e a própria idade adulta. Trata-se não apenas dos limites etários pretensamente naturais e objetivos, mas também, e principalmente, de representações simbólicas e situações sociais com suas próprias formas e conteúdos que tem importante influência nas sociedades modernas (Groppo, 2000, p.7-8). A juventude para Groppo é uma construção social da modernidade (Viana, 2012) com ênfase no aspecto cultural desta abordando aspectos que segundo este autor caracterizam a juventude: A noção de transitoriedade- na qual o juventude antecede a vida social plena; noção de projeto- a etapa juvenil como estágio de preparação para uma vida posterior socialmente estável; a noção de crise e ruptura (Groppo, 2000, p. 26) Por fim, chegamos a definição do sociólogo marxista Nildo Viana, que ao analisar a questão da juventude que ela se caracteriza por viver um processo de ressocialização, contudo na sociedade capitalista, devido à sua divisão em classes e, que uma classe, a burguesia, explora as demais, os jovens principalmente os provenientes da classe operária é uma ressocialização repressiva e coercitiva (VIANA,2004). A juventude é, pois, um grupo social em processo de ressocialização. No processo de socialização, a criança, através da família, da escola e da comunidade, é preparada para viver no interior de determinadas relações sociais, instituídas pelo capitalismo, adquirindo habilidades (falar, ler, escrever, etc.), valores, padrões de comportamento, etc., e um certo grau de saber necessário para sua idade e atividades sociais. O processo de ressocialização visa, fundamentalmente, preparar a força de trabalho para sua inserção no mercado de trabalho. A escola atua nos dois processos, mas de forma diferenciada, pois na ressocialização se fornece uma escolarização que permite a entrada no mercado de trabalho, seja promovendo a exigência mínima em determinadas fatias deste mercado (ensino médio), ou mais aprimorado (cursos técnicos) o maior exigência, o ensino superior especializado (universidade). Ao lado da preparação da força de trabalho, o jovem também é preparado para o processo de imputação de responsabilidades sociais. Além da inserção no mercado de trabalho, o adulto também deve realizar outras atividades sociais, entre as quais as obrigações familiares e sociais em geral (casamento, sustento da família, cuidado dos filhos, atividades civis e institucionais, etc.). O processo de ressocialização é uma preparação do jovem para que ele se insira na vida adulta (VIANA, 2004, p.38-39). Essa ressocialização é repressiva porque a sociedade tem que preparar o jovem para o que Lapassade (1975) coloca o trabalho alienado. Daí que outro sociólogo Rousselet na obra Alergia ao Trabalho (1974) coloca que cada vez mais os jovens não se interessam pelo trabalho e este significa entrar na vida adulta. Esse desinteresse manifesta-se mais amplamente contexto do regime de acumulação integral (VIANA, 2009), onde as condições de trabalho se tornam inflexíveis, apesar do discuro da flexibilidade, existe uma insegurança em relação a estabilidade no emprego e uma incerteza em relação ao futuro. Essa ressocialização é também coercitiva, porque, diante dessa realidade, o jovem é obrigado a se inserir no sistema. Embora os mecanismos de socialização (escola, família, igrejas, 118 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. etc.) reforcem e estimulem a necessidade dessa inserção, mesmo assim percebemos que muitos jovens resistem. Os que entram na universidade e, tem acesso a conteúdos mais críticos, geralmente ministrados em disciplinas como sociologia, história e filosofia tendem a desenvolver um espírito crítico maior. Na verdade isso explica a rebeldia jovem e estudantil, mas não casos concretos de radicalização. Para explicar esses casos é necessário remeter para outras relações sociais, tal como questões políticas, educacionais, aumento da repressão e pobreza, etc. Pode ser ai que encontramos um dos motivos do movimento estudantil ter assumido um caráter contestatório. Dito isto, temos que analisar o que vem a ser a contestação juvenil, segundo Viana: A contestação juvenil é uma das manifestações da contestação social e é uma das mais recorrentes na sociedade moderna. Ela também assume formas distintas a bases específicas e torna-se necessário analisá-las. Desde a contestação moderada e cotidiana até a participação em movimentos revolucionários ou até mesmo explosão inicial de processos de radicalização, a juventude emerge na cena política mostrando sua tendência contestadora (VIANA, 2012). Desta forma, a contestação juvenil nasce na crítica ao processo de ressocialização que ocorre na sociedade moderna. A sociedade reconhece o caráter rebelde do jovem, tanto que as instituições que atuam neste processo tentam canalizar essa rebeldia o exemplo mais claro é um grupo de jovens ligados à igreja denominados, Radicais de Deus, ou seja, reconhecem a contestação juvenil e tenta canalizá-la, outro exemplo é como o movimento Punk, que no seu início fazia uma crítica a sociedade capitalista, bandas como o The Clash se apresentavam como defensores do socialismo, até o movimento ter sido absorvido pelo capital ao ponto de surgir uma moda inspirada no movimento. Segundo Viana: A contestação juvenil pode ser, portanto de duas formas: a que fica nos limites da sociedade moderna e, por conseguinte, não ultrapassa os limites de diminuição da repressão e coerção, ou outros paliativos (o mercado consumidor jovem é rico em protestos culturais semelhantes) ou a contestação total, que assume caráter politizado e aponta para a transformação social (2012, p.8) Erich Fromm (1974) coloca uma diferença entre o caráter rebelde e o revolucionário, segundo ele o primeiro contesta a sociedade não por querer mudanças, se revolta contra este por não ter benefícios uma vez conseguidos à rebeldia cessa, os milhares de militantes de partidos de esquerda que outrora criticavam o governo e suas políticas uma vez que chegaram ao poder mudaram o discurso. Já o caráter revolucionário questiona a sociedade não por querer benefícios pessoais, sente os problemas da sociedade a almeja uma mudança que traga melhorias para todos os indivíduos. Neste ponto que faremos uma discussão com os autores que discutem a utopia especialmente Mannheim e Bloch que são para nós os principais teóricos sobre o tema podem nos 119 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. ajudar a explicar os motivos da contestação juvenil. Ambos concordam que a utopia transcende a realidade e, vemos que a contestação juvenil tem origem numa sociedade opressora e coercitiva. Porém, daí para frente os dois seguirão caminhos diferentes, Mannheim apontando para uma perspectiva conservadora, e Bloch buscando elementos para demonstrar que a utopia é um sentimento que no seu sentido concreto pode ser um combustível para as transformações sociais. Utopia e Sociedade Moderna Dando sequência à discussão teórica dede nosso trabalho chegamos ao conceito de utopia, buscaremos traçar um histórico do termo até chegarmos à discussão científica do termo tratado pelo sociólogo Karl Mannheim e pelo filósofo marxista Ernst Bloch. A ideia que se tem de utopia é de algo inalcançável, algo que transcende a realidade, portanto não realizável. O próprio termo utopia significa não lugar, algo pensado por Thomas More (2008) no Século XVI como uma sociedade ideal onde os homens viveriam com abundância e harmonia. A partir dai o termo passou a designar algo fora da realidade, uma pessoa utópica era visto como alguém distante do mundo real um sonhador que não tem consciência da realidade. Contudo, a utopia pode ser definida como uma consciência antecipadora, ou seja, ela pode ser o germe de novas realizações humanas, mesmo que pensadas de difícil concretização, parte do seu conteúdo pode vir a se realizar. A história está cheia de exemplos, de como que sonhos se tornaram realidade, embora não necessariamente o conteúdo sonhado fora transposto para a realidade. As revoluções burguesas são um bom exemplo para se livrar da nobreza, a burguesia criou o liberalismo, a democracia e estes como projetos tinham a perspectiva de tornar a vida na sociedade melhor, em tese estes princípios que se contrapunham à ordem feudal prometiam uma vida melhor para todas as classes, o ideal da revolução francesa ‘’Liberdade, Fraternidade e Justiça é um exemplo disso. O que esses ideais escondiam era que a sociedade capitalista, é uma sociedade divida em classes e, a forma de exploração que se diferenciava das sociedades anteriores e, que os ideais pregados por ela no período pré-revolucionário não passavam de ideologias, ou seja, formas de falsa consciência sistematizada. O que move os indivíduos a esses ideais é o sonho de uma vida melhor, na sociedade capitalista nem todos estão contentes com, o pouco, que têm e isso faz com que desejem uma forma de superar esta condição neste momento, surge a utopia, o desejo de transcender essa realidade buscando uma vida melhor. Assim é que entra a discussão que faremos com Mannhiem e Bloch, analisaremos o que cada um trata como utopia para por fim fazermos uma síntese e trazermos a 120 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. discussão para o nosso tema, movimentos contestatórios de juvens no regime de acumulação integral. Mannheim e Utopia Mannheim foi um sociólogo húngaro que viveu de 1893 a 1947, num período de muita agitação na Europa. Neste período temos a tentativa de revolução na Rússia em 1905, a primeira guerra mundial e a revolução Russa de 1917. Mannheim se instala na Alemanha e leciona em Heidelberg e Frankfurt. Com a ascensão do nazismo na Alemanha se exila na Inglaterra onde reside até falecer em 1947. Trataremos aqui da sua obra Utopia e Ideologia na qual ele define o termo. No começo do texto Mannheim diz que um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre (Mannheim, 1972, p. 216). Assim fica claro nesta definição de que se trata de algo que transcende a realidade, e isso não pode também se confundir com a ideologia, entendida como falsa consciência sistematizada da realidade. Ao limitar o significado do termo “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao mesmo tempo, rompe as amarras da ordem existente, estabelece-se uma distinção entre os estados de espíritos utópicos e os ideológicos. Uma pessoa pode-se orientar para objetos que sejam estranhos à realidade e que transcendam a existência real- e, não obstante, permanecer ainda ao nível e na manutenção da ordem de coisas existente. (1972, p. 216) As ideologias segundo Mannheim podem situacionalmente transcender a realidade, e desta forma influenciar no comportamento dos indivíduos, por ter seu conteúdo deformado, na prática não promove uma transformação. O autor cita o exemplo do amor fraterno cristão que embora fundado na boa fé, não ataca os fundamentos de uma sociedade fundada na servidão e acaba sendo irrealizável, pois não ataca as bases desiguais dessa sociedade. Para o autor, existe uma dificuldade de se identificar separadamente os elementos utópicos dos ideológicos, pois estes aparecem no mesmo contexto histórico. O exemplo foram às utopias desejadas pela burguesia que aparentemente eram para toda sociedade, mas que ocultava o seu significado real e, quando realizadas revelaram seu conteúdo ideológico. Para que uma utopia venha a se realizar é necessário que um grupo em determinada época No sentido de nossa definição, uma utopia real não pode, a longo prazo, ser trabalho de um indivíduo, já que o indivíduo não pode por si mesmo romper a situação histórica e social. Somente quando a concepção utópica do individuo se impõe a correntes já existentes na sociedade, dando-lhes expressão, quando, sob esta forma, reflui de volta ao horizonte de todo grupo, sendo por este traduzida em ação, somente então pode a ordem existente ser desafiada pela luta por outra ordem de existência. (1972, p. 231) 121 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. Ao buscar transcender a ordem existente o elemento utópico se torna um desejo dominante e na modernidade essa mentalidade utópica sofreu mudanças em suas formas conforme a época. Assim, segundo Mannheim a primeira forma de mentalidade utópica surgiu com os Anabatistas onde estratos oprimidos da sociedade acreditavam ser predestinados e depois do julgamento final ficariam mil anos na terra. A segunda forma foi a ideia liberal humanitária característica da época que antecedeu as revoluções burguesas e, que defendiam uma ordem segundo esses ideias. A terceira forma a ideia conservadora, que segundo o autor não detém nenhuma utopia, porém, acha-se por sua própria estrutura completamente em harmonia com a realidade sobre a qual, por hora, mantém o domínio (1972 , p.253). A última forma de mentalidade utópica, a socialista-comunista, segundo o autor, radicaliza a utopia liberal, no sentido de acreditar no domínio da liberdade e igualdade. Contudo, na medida em que a questão seja a da penetração da ideia no processo de evolução e no desenvolvimento gradativo dela, a mentalidade socialista não a experimenta nesta forma espiritualmente sublinhada (1972, p.264). Ao ascender ao palco político, conquistar espaço o socialismo tende a abandonar seus impulsos utópicos de transformação social, se interessando por questões isoladas do que uma perspectiva mais ampla. Por fim, Mannheim coloca a situação da utopia na época contemporânea, lembrando que o livro foi escrito na década de 1930, num mundo onde existia o nazi-fascismo e o comunismo soviético vivia os anos de terror de Stálin. Para o autor O próprio processo histórico nos mostra uma utopia que transcendia completamente a história, vir gradativamente descendo em uma aproximação cada vez mais chegada à vida real. Ao se tornar mais próxima da realidade histórica, sua forma sofre mudanças tanto em função com em substância (Mannheim, 1972, p. 271). Assim quando um grupo atinge o poder, a utopia se desliga da política e se aproxima de uma posição conservadora. Fica evidente que o autor identifica o elemento utópico ligado a grupos ou estratos sociais, o que significa que a utopia ligada a interesses de grupos específicos não tem uma perspectiva de transformação social mas visam apenas para seu grupo e não para toda sociedade. Os grupos que são portadores dessa mentalidade uma vez conseguindo ascender ao poder tendem a se tornarem conservadores e, outros grupos que então se tornam marginalizados tentem a desenvolver a mentalidade utópica até que consigam atingir o poder. Fica parecendo que a utopia é uma roda da história em que classes em conflito se utilizam para garantir sua hegemonia e assim sucessivamente. 122 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. Ernst Bloch e a Utopia Ersnt Bloch (1885-1977) também contribuiu para discussão sobre utopia, sendo militante marxista participou de vários movimentos que passaram o século XX e que diretamente tem relação com a teoria de Marx. O capitalismo passou por grandes transformações no século XX e estas tiveram influência no marxismo. A revolução Russa é o grande acontecimento do começo do século e, a perspectiva de uma transformação global logo foi se desvanecendo com os rumos que o modelo bolchevista deu para a revolução. Logo o regime se transformou num capitalismo de estado onde a exploração saiu das mãos da burguesia para ir para as mãos de uma burocracia estatal que de fato criou uma ditadura, não como dito por Marx no Manifesto Comunista, uma ditadura de uma classe e que até se esfacelar no fim da década de 1980 manteve as mesmas características. Tendo participado do grupo que formou o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, Bloch teve contato com correntes dentro do marxismo, um tema que é fundamental em sua obra é a questão da liberdade e, para Bloch somente o marxismo pode trazer ao homem a liberdade autêntica. Sua obra mais importante e, que nos interessa neste estudo Princípio Esperança escrita entre os anos 30 e 50 trata do tema da utopia. No começo da obra ele escreve: A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável o mais absolutamente insuportável para as necessidades humanas. É por isso que até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e perversamente estimulada. É por isto que até mesmo as últimas misérias da filosofia ocidental não conseguem mais apresentar sua filosofia da miséria sem a penhora de uma suplantação, uma superação (2005, p. 15). Desta forma, Bloch concebe a esperança como algo essencial para o ser humano, os sonhos tornam-se um elemento importante para a vida do ser humano, e estes contém o que ele denominou a consciência antecipadora. Define claramente com um novo tipo de consciência que nada tem a ver com a concepção freudiana do inconsciente que se refere às profundezas da psique humana, a uma paisagem lunática das perdas cerebrais, onde tudo o que foi recalcado é conservado. O ainda-nãoconsciente, é definido como uma instância da vida psíquica de produzir o sonhar para frente, que indica o provir geral (MUNSTER, 1993, p.32). Desta forma os sonhos são divididos em sonhos noturnos e os sonhos diurnos que são estruturas fundamentais e, repletos de conteúdos utópicos. A utopia seria o conteúdo que carregam estes sonhos diurnos. Bloch também identificou que o termo utopia carrega uma imagem de algo irrealizável. Como Mannheim e More, utopia transcende a realidade. Contudo, Bloch faz uma diferenciação do 123 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. termo, diferenciando as utopias abstratas das utopias concretas, estas últimas, segundo o autor pode levar o indivíduo a buscar a transformação, e apenas o marxismo contém elementos que podem fazer com que essa transformação realmente aconteça. O que fez com que o conceito de utopia, como já foi observado, fosse exageradamente reduzido (ou seja, restringido a romances que falam de um Estado ideal) e adquirisse justamente aquela modalidade abstrata (pelo caráter preponderantemente abstrato desses romances) que só foi superada quando o socialismo elevou essas utopias ao nível da uma ciência (Bloch, 2005, p24). Assim o marxismo, com a análise da sociedade capitalista pode fornecer os elementos para uma crítica que supere as ideologias e coloque o homem numa condição de realizar o que Marx chamou de entrar na história, pois todas as sociedades divididas em classes são a pré-história da humanidade e o socialismo pode fundar a história da humanidade sem exploração. Como Mannheim, Bloch vê a utopia como possibilidade, desta forma se faz necessário um conhecimento que possibilite que o conteúdo concreto da utopia se realize. Como foi dito antes esse conhecimento está para Bloch no marxismo e para tanto ele divide este em corrente fria caracterizada pela: A análise das condições materiais e subjetivas do processo de transformação, em paralelo ao ser-segundo-a-possibilidade. Pertence, consequentemente, a esta análise metódica da situação e das condições, não apenas o exame das tendências da história e dos indicadores econômicos, e sim, também, das superestruturas, principalmente das estritamente ideológicas (BICCA, 1986, p.116) E a corrente quente é definida por ela como o momento do entusiasmo na teoria marxista, portanto, da exortação para práxis transformadora, da formação de uma vontade para o novo, vontade de ser de outro modo, que remete ao ser-em-possibilidade (Bicca, 1986, p.116). A corrente quente contém a intensão libertadora, a vontade de criar uma nova sociedade, materialista e humanista na qual a igualdade e a liberdade serão reais. A corrente fria é a teoria, que auxilia as classes exploradas um conhecimento da real da sociedade capitalista. Portanto Bloch elabora um novo significado para o termo utopia, através de toda sua teorização o conteúdo utópico no seu sentido concreto, diferente de Mannheim ou More na qual a utopia transcende a realidade, mas não visa uma revolução na sociedade. Bloch diferencia a utopia abstrata da utopia concreta, abstrata porque seu conteúdo não visa uma transformação esta é vista como algo irrealizável. A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo (BLOCH, 2005, p.307). O conceito de utopia de Bloch é muito importante quando vemos o florescimento de movimentos contestatórios com o antiglobalização, que inicia com reivindicações mais específicas e destas vão surgindo outras questões e as concessões que a burguesia faz diante das reivindicações concretas vai se confrontando com o capital e deixando claro que as medidas paliativas que o 124 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014. capital adota para atender estas demandas são cada vez mais ineficazes e, somente uma revolução pode de fato levar o homem à liberdade. Esta revolução precisa segundo Bloch ser sonhado e este avançar para que se realize a revolução. Considerações Finais Embora a onda de manifestações entraram em refluxo, visto que poucos protestos ocorrem, o espírito que a fomentou, o desejo de buscar mudanças na sociedade permanecem vivos, embora conforme discutimos não temos condições de afirmar que estas manifestações sejam uma utopia concreta, que busquem uma transformação radical, podemos dizer que elas representam um sentimento de indignação. Embora essa indignação seja contra as mazelas da sociedade capitalista ela ainda não busca uma ruptura, se acredita que ainda é possível que esta sociedade seja mais justa, como almejam os manifestantes. Contudo, a sociedade capitalista é marcada pela exploração de classe e, portanto não tem como ser mais justa, pode em algum momento fazer concessões, porém como o desenvolvimento do capital gera suas crises se faz do ponto de vista da burguesia intensificar a extração de mais valor. Isso legitimado pelo Estado Neoliberal com sua política de corrosão dos direitos sociais. Desta forma a repressão estatal tende a aumentar, e daí podemos ter a possibilidade da própria radicalização do movimento, que se inicialmente lutava contra o aumento da tarifa do transporte, contra a corrupção, etc, pode assumir a luta contra a sociedade capitalista. Referências Bibliográficas ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. BARROT, J. O Movimento Comunista. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1977. BICCA, L. Marxismo e Liberdade. São Paulo: Loyola, 1986. BIHR, A. Da Grande Noite à Alternativa. São Paulo: Boitempo, 2012. COSTA, E. A Política Salarial no Brasil 1964—1985. 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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NA SUCESSÃO DE REGIMES DE ACUMULAÇÃO Mateus Orio1 RESUMO Este artigo tem como objetivo discutir o capitalismo como o modo contemporâneo de produção e reprodução da vida humana. Partindo da compreensão da exploração de mais-valor como essencial ao capitalismo, é empreendida uma análise do modo de produção compreendendo suas mudanças no decorrer da história segundo a sucessão de diferentes regimes de acumulação. A discussão se dá no sentido de apresentar elementos fundamentais da produção capitalista desde a acumulação primitiva de capital até a forma contemporânea: a acumulação integral. Assim, será discutida a composição do Estado capitalista, as relações internacionais, as formas pelas quais são desenvolvidos os processos de trabalho, assim como a criação de ideias que visam a legitimação do tipo específico de acumulação empreendido em cada época. A partir desta discussão é possível traçar uma análise crítica do modo de produção capitalista que aponte para a busca de sua superação. ABSTRACT The purpose of this article is to discuss the capitalism as the contemporary mode of production and reproduction of human life. Based on the understanding the exploitation of surplus value as essential to capitalism, an analysis is undertaken of the production process including its changes throughout history according to the succession of different regimes of accumulation. The discussion is developed in order to present the fundamental elements of capitalist production since the primitive accumulation of capital to the contemporary form: unabridged accumulation. Thus, will be discussed the composition of the capitalist state, international relations, the ways in which work processes are developed, as well as the creation of ideas aimed at legitimizing the specific type of accumulation undertaken each season. From this discussion, it is possible to draw a critical analysis of the capitalist mode of production to point to the pursuit of its overcoming. Palavras-chave: Produção contemporânea, mais- Key words: Contemporary production, surplus valor, mudanças na acumulação capitalista. value, changes in capitalist accumulation. Apresentação Este estudo tem como objetivo discutir o modo de produção capitalista em suas reorganizações no decorrer da história. Neste sentido, o ponto de partida é a constatação de que o referido modo de produção não foi suplantado por outra forma de reprodução das relações humanas. A discussão que se segue empreende um caminho em torno do desenvolvimento do capitalismo para tornar possível a compreensão do modo de produção da vida humana na contemporaneidade. 1 Sociólogo e Doutor em Sociologia na Universidade Federal de Goiás. 127 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. Entendendo o processo de construção de um conhecimento totalizante e verdadeiro compreendemos, tal como Marx e Engels na Ideologia Alemã (1984), a realidade como uma síntese de múltiplas determinações, ou seja, como uma unidade entre diversos acontecimentos que são determinantes para o conhecimento do passado, a existência do presente e para a apresentação de tendências para o futuro. Do mesmo modo, compreendemos a realidade como independente perante a consciência individual, ou seja, não é o pensamento que cria a realidade, a realidade existe quer pensemos nela quer não pensemos, existe independentemente de que nós, seres humanos, criemos representações corretas ou equivocadas sobre ela. E entendemos que o que define a veracidade das representações criadas pelos seres humanos acerca da realidade é a prática, ou seja, o valor de verdade das representações humanas refere-se à prática concreta. Por outro lado, o modo para se chegar à compreensão da realidade – que se confirme na prática concreta – parte de uma análise minuciosa dos diversos elementos que compõe a unidade, ou seja, das múltiplas determinações da realidade. Nesse sentido, o processo de concepção da realidade como representação, ou seja, o processo de apreensão da realidade no pensamento, é um processo de síntese. É um processo final, que de forma alguma cria a realidade, mas busca “recriar” esta realidade na consciência humana. Nesse sentido, a compreensão da realidade parte de uma análise minuciosa, ancorada na prática concreta e as representações que daí resultam constituem um conhecimento totalizante e verdadeiro. Tendo como pressupostos os indivíduos reais, a ação destes indivíduos reais e suas condições materiais de vida “tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria ação” (MARX; ENGELS, 1984, p. 26-27) compreendemos que o primeiro pressuposto da história humana é a existência de seres humanos vivos. E o primeiro ato histórico dos seres humanos, que os distingue dos animais, não é meramente pensar, mas produzir seus meios de vida (MARX; ENGELS, 1984). Tomando então o modo de produção contemporâneo, ou seja, o capitalismo, podemos compreendê-lo como um modo de vida determinado dos indivíduos. A forma de organizar a vida humana contemporaneamente parte da produção, distribuição, troca e consumo de mercadorias. E estas possuem tanto uma utilidade como uma grandeza de valor. A divisão social do trabalho no capitalismo separa aqueles que produzem as mercadorias daqueles que possuem os meios para produzi-las. Assim, aqueles que possuem os meios de produção (os indivíduos da classe burguesa) contratam outros para produzirem as mercadorias para si. Então, os frutos da produção não pertencem àqueles que produzem (os indivíduos da classe proletária), pois eles apenas recebem um salário que equivale a uma parte do resultado da produção. Por fim, excetuando-se os gastos gerais com a produção e os salários dos produtores, o restante dos frutos produzidos pertence à classe dos 128 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. donos dos meios de produção. A este resultado que é produzido pelo proletariado, mas que não chega até suas mãos e é, ao contrário, expropriado pela burguesia, chamamos mais-valor. O maisvalor é o que permite à classe burguesa sobreviver sem que tenha a necessidade de produzir sua subsistência. Deste modo, o mais-valor é o que evidencia o principal conflito de classe na sociedade contemporânea. Sendo assim, após partimos da compreensão da atualidade do capitalismo, reafirmando a sobrevivência do modo de produção fundamentado na extração de mais-valor por meio da exploração do trabalho, passaremos à análise das modificações ocorridas no modo de produção capitalista entendendo que o mesmo não fora suplantado por nenhuma outra forma social de produção e, por conseguinte, continua dominante na contemporaneidade. Portanto, partiremos da teoria dos regimes de acumulação (VIANA, 2003; 2009) para tratar das modificações no capitalismo de maneira dialética. As transformações desenvolvidas no modo de produção capitalista serão tratadas segundo a sucessão de regimes de acumulação que são, por sua vez, expressão da luta de classes que reverbera em consequências sociais gerais. Nesse sentido, a mudança na acumulação capitalista requer uma reorganização da sociedade incluindo não somente uma reorganização da produção, mas acompanhada de uma reorganização do Estado capitalista. Além disso, são necessárias também reorganizações em torno das relações internacionais: a forma política com que os países economicamente dominantes se comportarão com relação aos subordinados, e são necessárias também mudanças no que diz respeito à ideologia dominante, compreendendo a construção da legitimidade de ideias como perpassada pela compreensão da população acerca da dinâmica das relações sociais. Tudo isso compondo um todo de múltiplas relações de modo a manter a coesão social por determinado período de tempo. No item a seguir será discutida a concepção do conceito de regimes de acumulação à guisa de compreender o capitalismo em sua totalidade, assim como em sua atualidade. A partir de então, serão discutidas as diferentes formas de acumulação desenvolvidas no capitalismo, ou seja, os diferentes regimes de acumulação e suas especificidades. Nesse sentido serão abordadas: a acumulação primitiva de capital que proporcionou o desenvolvimento das condições para a produção fundamentada na exploração de mais-valor; o regime de acumulação extensivo que foi o primeiro regime de acumulação propriamente capitalista; o regime de acumulação intensivo que se desenvolveu a partir da administração científica do trabalho; o regime de acumulação intensivoextensivo que, após o capitalismo de guerra, trouxe a produção em massa e a tecnologia para ditar o ritmo do trabalho; e, por último, o regime de acumulação integral que busca a máxima acumulação 129 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. por meio de formas variadas de organização do trabalho. No item final são apresentadas algumas considerações que apontem para uma reflexão crítica do modo de produção capitalista. Desenvolvimento capitalista e regimes de acumulação O modo de produção capitalista não foi suplantado. Ele ainda é predominante nas relações sociais contemporâneas e estende seus tentáculos cada vez mais, impossibilitando formas alternativas e até mesmo subordinadas de relações sociais de produção. O capitalismo vai invadindo todas as comunidades humanas mesmo havendo forte resistência em algumas localidades. Naturalmente a sociedade do século XXI não é idêntica à sociedade do século XVI, quando o capitalismo estava emergindo, e nem à sociedade do século XVIII, já com o capitalismo predominando e se expandindo para todo o mundo. Muitas relações sociais, incluindo relações de produção, formas jurídicas, composições estatais, etc. foram extintas e muitas outras desenvolvidas. Mas o que é fundamental é percebermos que a exploração do trabalho por meio da extração de mais-valor2 é, ainda, a base da produção humana. A extração de mais-valor é a essência do capitalismo e esta essência já foi demonstrada por Marx (1996a3) no século XIX. O que podemos observar são diversas mudanças na organização da produção, nas instituições sociais que servem de apoio à legitimação da produção capitalista, bem como na ideologia dominante. Foram necessários o movimento real da sociedade e o predomínio do capitalismo na Europa para que Marx pudesse compreender o mais-valor como essência deste modo de produção. Da mesma maneira, a compreensão teórica do desenvolvimento do capitalismo é perpassada pelo desenvolvimento concreto deste modo de produção no decorrer da história. De uma forma dialética, Marx parte das concepções de diversos autores acerca da sociedade, sem as quais não poderia ter elaborado sua teoria, confronta estas concepções com a realidade e, a partir de um processo de profunda reflexão, tomando por base a realidade, elabora sua teoria concreta da sociedade. Então, para que seja elaborada uma teoria acerca do desenvolvimento concreto do capitalismo e suas mudanças é necessário compreender o movimento histórico real da sociedade, promovendo uma análise das concepções produzidas no período, mas confrontando-as com a realidade de maneira dialética. Para compreender as mudanças no capitalismo em uma totalidade é necessário não se perder de vista a essência deste modo de produção, ou seja, a produção de mais-valor, assim como o 2 Preferimos a utilização da expressão “mais-valor” em detrimento da tradução mais comum, “mais-valia”, por considerar aquela uma tradução mais elucidativa do conceito de Marx. 3 Obra originalmente publicada em 1867. 130 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. antagonismo de classe subsistente a esta relação, ou seja, a exploração do trabalho do proletariado pela burguesia. Além disso, não podemos limitar a análise a uma localidade isolada, pois isso fragmentaria a compreensão das relações sociais e provocaria equívocos relativos principalmente à divisão internacional do trabalho. Assim, a teoria dos regimes de acumulação (Viana, 2003; 2009) expressa as mudanças no capitalismo em sua totalidade: [...] um regime de acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, marcado por determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização), determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional. (VIANA, 2009, p. 29-30). Desta forma, um regime de acumulação específico é expressão da luta de classes contemporânea em uma correlação relativamente estável seja no âmbito da organização da produção ou mediada pelos estados nacionais de modo a influenciar as relações internacionais. Além disso, a mudança no regime de acumulação provoca mudanças gerais na sociedade, pois a cada novo regime de acumulação surgem diferentes expressões culturais, ideológicas, etc. (VIANA, 2009). Com uma mudança no regime de acumulação a sociedade precisa se reorganizar como um todo para que o regime seja aceito, bem como reproduzido. Desta forma, reorganizam-se a composição estatal, no sentido da maneira como o Estado irá intervir na sociedade e da forma mais ou menos restrita como permitirá a participação da população nas decisões políticas; reorganiza-se a sociedade civil, compreendendo o espaço privado que não diz respeito às regulamentações estatais: na sociedade civil também são constituídas mediações políticas e jurídicas de modo à mediatizar e a integrar organizações e reivindicações da sociedade em torno de instituições privadas. E há todo um aparato ideológico que se normatiza em leis e costumes, favorecendo a uma aceitação e integração social generalizadas nos momentos de estabilidade do regime de acumulação. (VIANA, 2003; 2009). A partir disso as ideias criadas e difundidas durante o período de estabilidade de um regime de acumulação são apreendidas como verdadeiras, “pragmáticas”, ou mesmo inquestionáveis. A construção da legitimidade destas ideias é inseparável do processo de constituição do regime de acumulação. As mesmas ideias, porém, caem por terra e são impugnadas com maior ou menor intensidade tão logo o regime de acumulação comece a dar indícios de esgotamento. Ao passar por cada regime de acumulação tentaremos trazer alguns elementos que demonstrem como a sociedade vai se reorganizando a partir das mudanças ocorridas na produção e também como as regulamentações sociais interferem na mudança da própria produção. 131 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. Acumulação primitiva Tratando enfim do desenvolvimento do capitalismo, podemos perceber inicialmente que o processo de gênese da acumulação capitalista remonta ao desenvolvimento secular das condições para a produção fundamentada no mais-valor. Entre estas condições estão a formação de um capital acumulado e de uma classe trabalhadora livre e sem propriedades. Estas duas condições expressam que as atrocidades engendradas pela busca impiedosa do lucro são comuns desde as origens do modo de produção capitalista. Muito do que foi tratado como comércio – um meio pelo qual o capital era acumulado antes da instauração do modo de produção capitalista – não era simplesmente a troca de mercadorias, mas incluía “também a conquista, pirataria, saque, exploração.” (HUBERMAN, 1986, p. 163). A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. (MARX, 1996b, p. 370) No que diz respeito ao trabalho livre não podemos esquecer do desemprego provocado pelos cercamentos de terras e pelo próprio avanço das indústrias que solaparam a produção artesanal (e posteriormente também a manufatureira) fazendo com que não restasse a antigos camponeses e artesãos nada mais que sua própria força de trabalho, promovendo a separação compulsória dos produtores de seus meios de produção, engendrando a classe proletária. E assim temos a chamada acumulação primitiva de capital (MARX, 1996b) que abriu as portas para a produção efetivamente capitalista. Regime de acumulação extensivo Seguindo a teoria dos regimes de acumulação de Nildo Viana (2003; 2009): após a acumulação primitiva de capital inicia-se o primeiro regime de acumulação propriamente capitalista: o regime de acumulação extensivo, que tinha como característica, principalmente a extração de mais-valor absoluto4. A forma de organizar o trabalho neste período era então baseada 4 O mais-valor designa, nada mais que, um valor excedente. Este excedente advém da exploração do trabalho. Maisvalor implica em mais-trabalho (Cf. MARX, 1996a), ou seja, um trabalho que se estende para além do necessário à subsistência do trabalhador. Concluímos então que falar em mais-valor implica falar em exploração dos trabalhadores. 132 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. na máxima exploração que incluía baixos salários e o constante aumento da jornada de trabalho, bem como a ampla utilização de força de trabalho infantil e feminina. Para desenvolver a acumulação capitalista desta maneira, a forma estatal surgida neste regime de acumulação foi o Estado liberal, que tinha como um de seus pilares a democracia censitária. O Estado liberal trazia a defesa do livre mercado, mas é necessário compreender que a acumulação primitiva, que possibilitara este primeiro regime de acumulação capitalista, foi baseada no protecionismo que favoreceu a acumulação de capital nos países que primeiro desenvolveram a produção capitalista. O livre mercado passa a ser então a bandeira dos países capitalistas desejosos de suplantar os demais. A democracia censitária era o resultado das revoluções antimonárquicas, capitaneadas pela burguesia, classe que tem como fundamental a estima pelo direito natural à propriedade privada. O neocolonialismo (Cf. VIANA, 2003) era, neste período, a forma predominante das relações internacionais em que os países que primeiro desenvolveram a produção capitalista buscavam exportar suas mercadorias e importar as matérias-primas dos países subordinados, desenvolvendo o processo de acumulação de capital e abrindo caminho para a expansão do capitalismo. Este primeiro regime de acumulação capitalista, o regime de acumulação extensivo, apresenta já consigo uma característica intrínseca ao referido modo de produção: o caráter expansivo. O capitalismo começa a estender seus tentáculos da Europa para o mundo. A luta de classes neste período se deu no sentido da busca de melhores condições de trabalho, bem como da luta pela ampliação dos direitos civis. A partir então da década de 1840 este regime de acumulação encontra dificuldades para se reproduzir. Com as lutas operárias se intensificando no meio do século XIX, o regime de acumulação extensivo entra em crise, culminando com a insurreição da Comuna de Paris (1871) e marcando uma derrota temporária da classe capitalista. Regime de acumulação intensivo No final do século XIX o capitalismo se reorganiza a partir do regime de acumulação intensivo. As lutas de classes demandaram a ampliação de direitos civis e consequentemente a diminuição da jornada de trabalho e, por conseguinte, a diminuição da extração de mais-valor absoluto. Em resposta a isso, com o novo regime de acumulação a classe capitalista trouxe o taylorismo e a administração científica do trabalho como forma de aumentar a extração de maisNo que diz respeito ao mais-valor absoluto este se refere à forma mais simples de aumentar a exploração, ou seja, pelo aumento da jornada de trabalho ou pela diminuição do valor pago à subsistência do trabalhador. 133 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. valor relativo5 mantendo o avanço da acumulação. Inicia-se uma espécie de racionalização dos processos de trabalho a partir da busca da eliminação do “tempo morto”, o que implicava numa maior proximidade dos objetos de trabalho ao trabalhador bem como na diminuição do tempo reservado à alimentação e à manutenção física do trabalhador durante a jornada. Ou seja, a nova organização forçava uma intensificação do trabalho. O regime de acumulação intensivo era complementado pelo Estado liberaldemocrático, que implicou na ampliação da legislação trabalhista e dos direitos políticos e na instituição da democracia partidária liberal, ampliando progressivamente o sufrágio e estabelecendo partidos políticos e sindicatos como mediadores das reivindicações sociais. Para superar a crise do regime de acumulação anterior foi necessário, além disso, acabar com o “livre mercado”. Desta forma, este regime de acumulação teve como forma predominante de exploração internacional o imperialismo (Cf. LUXEMBURG, 1983; HOBSBAWM, 1992; COHEN, 1976), implicando no surgimento dos oligopólios, no protecionismo e no imperialismo financeiro, expandindo a produção capitalista aos países subordinados. O capitalismo deixava então de ser “livre-concorrencial” para se tornar oligopolista, ao mesmo tempo em que se intensificava a concorrência entre os países imperialistas na busca de novos domínios. Com o avanço da luta operária no início do século XX, a resistência ao taylorismo, o crescimento de organizações reformistas (partidos socialdemocratas, sindicatos) e tendências revolucionárias (anarquismo, correntes esquerdistas do marxismo) e com as diversas tentativas revolucionárias na Europa (por exemplo: na Alemanha, na Itália e na Hungria) o Estado liberaldemocrático e a classe capitalista cederam, em alguns países, o governo para a socialdemocracia (Cf. LUXEMBURG,1983; MAKHAÏSKY, 1981; HOBSBAWM, 1995), mas, com o insucesso desta tentativa em conter o ímpeto revolucionário, tiveram que apelar para a repressão e o fascismo instaurando uma crise generalizada do capitalismo na Europa que culminou nas duas guerras mundiais. Era instaurado aí o capitalismo de guerra e o regime de acumulação intensivo-extensivo se inicia em seguida, após a Segunda Guerra Mundial. 5 Outra forma de aumentar a exploração é por meio do aumento da produtividade. Este aumento pode se dar a partir da implementação de novas tecnologias na produção como também por meio de mudança na organização do trabalho, fazendo com que os trabalhadores produzam mais em menos tempo, acarretando em um aumento da exploração de mais-valor definido por Marx (1996a) como mais-valor relativo. 134 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. Regime de acumulação intensivo-extensivo Após o capitalismo de guerra foi possível uma ampla acumulação de capital em decorrência da destruição em massa das forças produtivas. No regime de acumulação intensivoextensivo o fordismo torna-se hegemônico como modo de organização do trabalho. Enquanto o taylorismo objetivava aumentar a extração de mais-valor relativo através da organização do trabalho, no fordismo este aumento se dava pela implantação de novas tecnologias que determinavam o ritmo e a intensidade do trabalho. Assim, a aplicação do fordismo instaurava a produção em massa, bem como inviabilizava a produção em pequena escala. (VIANA, 2003). O Estado se esforçava para controlar os ciclos econômicos para manter a demanda estável e o emprego relativamente pleno. Este conjunto de medidas que favoreciam a qualidade de vida da população é entendido como o Estado integracionista, pois integra os trabalhadores ao capitalismo pela maior participação deles no consumo como também pela conformação ideológica e consequente apaziguamento das lutas de classe: A política estatal de seguridade social e o conjunto de políticas voltadas para a educação, saúde, etc., visavam integrar a classe operária, melhorando seu nível de vida e a qualificação de parte dela, e, ao mesmo tempo, buscava ampliar o mercado consumidor, pois a força de trabalho ao ser liberada de determinados gastos e receber segurodesemprego, entre outros benefícios financeiros, passava a ter um maior poder aquisitivo. (VIANA, 2003, p. 72) A implementação do fordismo como modelo de organização do trabalho dependia também, logicamente, das relações internacionais que foram um dos motivos para as dificuldades de expansão fordista antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Por meio das políticas de ocupação e do plano Marshall, o fordismo se expandiu no pós-guerra permitindo que a capacidade produtiva excedente dos Estados Unidos fosse absorvida em outros lugares e possibilitando a formação de mercados de massa globais, isso tudo em uma conjuntura particular em que os Estados Unidos se impuseram por meio de alianças militares e relações de poder. (HARVEY, 2012). Assim, para compensar o aumento dos gastos estatais há uma intensificação do imperialismo, que “passa a se caracterizar pelo predomínio da exportação de capital-produtivo, e as empresas transnacionais se instalam em diversos países, abrindo uma nova fase de exploração imperialista” (VIANA, 2003, p. 72). Desta forma, o capitalismo oligopolista transnacional desenvolve o regime de acumulação intensivo-extensivo marcado pelo aumento da extração de mais-valor relativo nos países imperialistas, com a difusão do fordismo, e pelo predomínio da extração de mais valor absoluto nos países capitalistas subordinados, com a difusão das empresas multinacionais. “Assim, 135 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. a acumulação intensiva no capitalismo imperialista era reforçada pela acumulação extensiva no capitalismo subordinado, através da transferência de mais-valor.” (VIANA, 2003, p. 73). A legitimidade do Estado, porém, dependia cada vez mais de sua capacidade em levar os benefícios a todos de modo humano e atencioso. E isso dependia da contínua aceleração da produtividade no setor corporativo. Somam-se a isso os diversos movimentos contraculturais e de minorias e todos os insatisfeitos dos países de capitalismo subordinado que viam suas culturas locais serem sobrepujadas em troca de pífios aumentos em termos de padrão de vida. Alguns movimentos, por vezes, pareceram ameaçadores para o fordismo global, descredibilizando a hegemonia estadunidense em um período que ela parecia estar em seu apogeu. (HARVEY, 2012). No final da década de 1960, depois de completada a recuperação da Europa Ocidental e do Japão após a guerra, o mercado interno estadunidense começava a se esgotar. A queda da produtividade e da lucratividade marcou o começo de um problema fiscal nos Estados Unidos demandando uma aceleração da inflação que fez o dólar desvalorizar. Com isso a hegemonia econômica estadunidense começou a perder espaço para países da Europa Ocidental e para o Japão, além dos países recém-industrializados que entravam na competição (HARVEY, 2012). Além disso, a partir da década de 1960 as lutas sociais se manifestam de formas diversas através do movimento de contracultura, da autonomização do movimento estudantil e do movimento operário e do fortalecimento de tendências revolucionárias esboçadas anteriormente (VIANA, 2003). Regime de acumulação integral A alta exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado; a constante ampliação do mercado consumidor; e a integração da classe operária no capitalismo oligopolista internacional, pilares do regime de acumulação intensivo-extensivo, encontravam-se em dificuldade de se reproduzir (VIANA, 2003). Diante disso a nova ofensiva do capital no sentido de sua afirmação foi a busca do aumento da exploração tanto nos países imperialistas como nos subordinados, acabando de vez com o estado integracionista. E com isso surge o novo regime de acumulação que começa a predominar a partir da década de 1980: Trata-se do regime de acumulação integral, que busca aumentar, simultaneamente, a extração de mais-valor relativo e mais-valor absoluto. Esta busca de aumento da taxa de exploração vai ser batizada de “reestruturação produtiva” e terá no toyotismo [...] e modelos similares a forma como o capital irá agir no processo de valorização, o que será complementado pelo estado neoliberal e pelo neo-imperialismo. (VIANA, 2003, p. 75, grifo nosso). 136 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. A forma estatal do novo regime de acumulação é o Estado neoliberal, cuja ideologia surge com Hayek no pós-guerra e se desdobra com outros autores, vindo a ser aplicada apenas no final da década de 1970 e início da década de 1980 quando o contexto da crise do Estado integracionista possibilita a aceitação social de tais diretrizes. Esta forma estatal traz a desregulamentação das relações de trabalho, o fim das políticas sociais e a redução de gastos estatais buscando “proporcionar uma política estatal favorável à retomada da acumulação capitalista, bem como a nova política fiscal e internacional.” (VIANA, 2003, p. 76). E este, que é o regime de acumulação contemporâneo, tem como forma de exploração internacional o neoimperialismo: é um imperialismo integral (VIANA, 2009) que consiste na transferência de mais-valor pelas empresas transnacionais que buscam se instalar nos locais onde a força de trabalho é mais barata. Vão se criando nichos no mercado consumidor, acirrando a competição internacional, assim como persiste a ocorrência de guerras rápidas que destroem meios de produção e fomentam a indústria bélica, aumentando também os conflitos internacionais. As novas formas de organização do trabalho no capitalismo são variadas e focalizam tanto o controle e gerência como a aplicação de tecnologia. Estas formas de organização do trabalho – que empregam jornadas variáveis, subcontratações, produção em pequenos lotes – não se tornaram hegemônicas em todos os lugares e, é importante ressaltar, o taylorismo e o fordismo também não se tornaram. O fordismo, aliás, ainda persiste como forma organizativa hegemônica em alguns setores industriais específicos. Uma das novas formas de organização do trabalho nasce no Japão a partir da percepção do governo japonês que teria de adaptar a produção automobilística às condições particulares de seu país se quisesse competir com as indústrias estadunidenses e europeias. O ministério do comércio internacional e da indústria então declara a indústria automobilística como prioridade e estabelece uma série de medidas que alavancam a indústria no país. “Nessas condições nasce o sistema produtivo próprio do Japão, que, conforme o caso, recebe o nome de métodos flexíveis, just-in-time, método kanban ou toyotismo, já que a Toyota foi a primeira a empregá-lo. (GOUNET, 1999, p. 25). As políticas denominadas neoliberais que foram implementadas a partir do regime de acumulação integral vieram de encontro às necessidades de “empreendedorismo” por parte dos Estados. As dificuldades em dar prosseguimento à acumulação capitalista não suportariam mais um Estado integracionista. Por isso muitos governos, tenham sido eles autointitulados de direita ou de esquerda, tiveram que aderir às políticas de “desregulamentação”, de favorecimento à iniciativa privada. E também, neste período, a intervenção do Estado nos mercados financeiros passa a ser mais importante e frequente. 137 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. O subemprego – visto muitas vezes como “empreendedorismo”, uma forma digna de “vencer na vida” – assim como o desemprego assumem grande importância no regime de acumulação integral no sentido da manutenção de um exército industrial de reserva, como também de burlar as leis trabalhistas conseguidas por intermédio de longas lutas dos trabalhadores durante os regimes de acumulação anteriores. O regime de acumulação integral – com os diversos métodos de organização do trabalho, o neoliberalismo e o neoimperialismo – inaugura um nível de exploração sem precedentes que visa responder às necessidades de acumulação em um modo de produção cada vez mais complicado. A tentativa de sugar até a última gota de suor do trabalhador implica em uma expansão cada vez mais dificultosa, abrindo precedentes para um esgotamento muito difícil de ser revertido. Considerações finais Uma análise detalhada do capitalismo em seu desenvolvimento histórico, ou seja, uma análise dos regimes de acumulação e as diferentes formas de conduzir o processo de valorização, as formas Estatais, as relações internacionais e demais regulamentações sociais mostra que a luta de classes não deixou de existir, nem tampouco de se acirrar, a despeito de algumas correntes teóricas contemporâneas como o pós-modernismo (Cf. Eagleton, 1998). A luta de classes no interior do capitalismo por vezes se arrefeceu e isso ocorreu em épocas e localidades específicas. Da mesma maneira, a luta de classes se acirrou drasticamente em alguns momentos que significaram grandes abalos para o modo de produção, demandando mudanças na organização capitalista que deixaram marcas e impuseram novos obstáculos à acumulação. Ressaltamos novamente a persistência do modo de produção capitalista como a forma predominante de reprodução da vida humana e com ele a persistência de diversas formas de exploração e opressão humanas engendradas no decorrer da história. Compreendemos que nestes processos os maiores prejudicados são aqueles que em suas mãos movimentam a produção dos bens necessários ao sustento de toda a humanidade, ou seja, os indivíduos da classe produtora. A sucessão dos regimes de acumulação evidencia a forma como os trabalhadores são explorados, primeiro sendo coagidos a trabalhar como proletários, depois tendo que trabalhar em ritmos cada vez mais fortes sendo, posteriormente, incitados ao consumo para terem, por fim, a intensificação de todas as formas de exploração. A aparência de que a vida de muitos trabalhadores melhorou a ponto de que haja a superação da luta de classes não consegue ir além do fim do Estado integracionista que, por sinal, existiu em tempo e espaços limitados e já inexistentes. A intensificação dos processos de trabalho 138 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014. em todo o mundo deve apontar para novos conflitos sociais em que persiste o confronto entre a proposta de continuarmos em uma sociedade opressora e desumana e a possibilidade da superação do que está posto para a realização de uma associação livre de produtores realmente emancipados. Enfim, o desenvolvimento de diferentes processos de trabalho, que exploram cada vez mais os trabalhadores, tende a dificultar cada vez mais o “crescimento”, ou seja, quanto mais arrochadas as condições de trabalho, mais difícil é aumentar a exploração do mais-valor, mais difícil torna-se manter o fundamento do capitalismo, abrindo cada vez mais possibilidades de insatisfação, de crítica e de enfrentamento. A insatisfação, as mortes no trabalho, o retardamento da produção pelos trabalhadores e o absenteísmo são expressões de oposição ao capitalismo, mas apenas o desenvolvimento histórico da humanidade irá mostrar se os trabalhadores irão superar a desmobilização imposta pelas novas formas de trabalho e se as insatisfações se potencializarão em uma crítica cada vez mais ferrenha e consequentemente a ruptura com este modo de produção e a instauração de um modo de vida verdadeiramente humano. Referências COHEN, B. A questão do imperialismo. A economia política da dominação e dependência. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. EAGLETON, T. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. GOUNET, T. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo, 1999. HARVEY, D. Condição pós-moderna. 23. ed. São Paulo: Loyola, 2012. HOBSBAWM, E. A era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995. HOBSBAWM, E. 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A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE OS AMBULANTES/FEIRANTES DA REGIAO CENTRAL DE GOIÂNIA ENTRE 1970 E 2012: NEGOCIAÇÕES DISCURSIVAS COM A MEMÓRIA DA HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL SOBRE SUJEITOS ESQUECIDOS DO MUNDO DO TRABALHO Edmar Aparecido de Barra e Lopes1 RESUMO ABSTRACT Neste artigo pretendemos demonstrar que as representações sociais sobre os ambulantes/feirantes no jornal O Popular (entre 1970 e 2012) também se materializam enquanto negociações/reapropriações discursivas com uma modalidade de memória específica, ou seja, com aquela resultante de abordagens da historiografia tradicional sobre o mundo do trabalho. Num primeiro momento, procuraremos discorrer sobre a contribuição de alguns importantes autores e autoras que participam com suas análises no descortinamento de permanências e rupturas relativas à produção de uma memória historiográfica sobre os sujeitos do mundo do trabalho no Brasil em diferentes momentos históricos, tanto em âmbito nacional quanto regional e local. Num segundo momento, chamaremos atenção para o modo como a dinâmica de produção das práticas discursivas do jornal o popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e 2012) em geral é tributária de uma relação ideológica com tal memória, uma vez que tende, não raramente, ao incorporar seletiva e fragmentadamente momentos ou aspectos analíticos dessa memória historiográfica, de modo a balizar um processo de construção de representações sobre os ambulantes/feirantes e as relações dessas representações com as ideias hegemônicas sobre a cidade e o urbano, a política e a esfera pública, além da ideia de trabalho. uma construção simbólica pretensamente objetiva, na medida em que orientada por esse discurso especializado, ou seja, historiográfico. This article aims to demonstrate that social representation of the street / market vendors in the newspaper The People (between 1970 and 2012) also materialize as negotiations / discursive reappropriations with a specific type of memory, ie, with that resulting from traditional approaches of historiography on the world of work. A first time seek discuss the contribution of authors and some important authors participating with your analysis of the unveiling continuities and ruptures concerning the production of memory on historiographical subject in the world of work in Brazil in different historical moments, both in scope national and regional and local. Secondly, we call attention to how the dynamics of the production of discursive practices of the popular newspaper on the street / market vendors (between 1970 and 2012) is generally tax of an ideological relationship with that memory, it tends not rarely, by incorporating selective and fragmentarily moments or analytical aspects of this historiographical memory in order to mark out a process of constructing representations of the street / market vendors and the relationships of these representations with the hegemonic ideas about the city and the urban, political and public sphere, in addition to the idea of work. allegedly one objective symbolic construction, insofar as directed by the specialized speech, or historiographical. Keywords: Social representations, Historiography, Memory, World of Work. Palavras-Chave: Representações Sociais, Historiografia, Memória, Mundo do Trabalho. 1 Pós-doutorado em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Mestrado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999). Graduação em História pela Universidade Federal de Goiás (1995). 141 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. Vários autores da historiografia brasileira e também da sociologia têm contribuído para chamar atenção sobre a presença de uma diversidade de sujeitos ou tipos de trabalho esquecidos ou marginalizados do mundo do trabalho por abordagens tradicionais e/ou oficiais sobre o tema. Tratase de rupturas teórico-metodológicas que têm contribuído há muito para uma revisão crítica da memória historiográfica dominante sobre o assunto. Essa tradição e memória historiográficas, tradicional, no que diz respeito à ideia de trabalho predominante, consolidaram-se com base nas seguintes características: 1) está fortemente marcada por uma visão positivista de história, atravessada por um olhar conciliador entre as classes sociais e caracteriza as abordagens sobre mundo do trabalho; 2) nessa tradição historiográfica o trabalho integrado aos moldes convencionais do mercado é referenciado como elemento de distinção social e constitutivo da ideia de nação e de modernidade; 3) a ideia de evolução social é outra característica, na qual uma sociedade só pode encontrar o caminho civilizacional através da educação, também através do trabalho mercadologicamente integrado que participaria como variante pedagógica dos corpos desgarrados, das formas de produção, de circulação e consumo indesejáveis à ideia de cidade moderna; 4) a defesa e o respeito à propriedade privada enquanto qualidades basilares do bom trabalhador ou cidadão útil e, nesse sentido, trabalhar bem significa principalmente se orientar segundo esses valores. Em síntese, trata-se de uma tradição historiográfica que alimenta uma memória na qual o conceito de trabalho é construído a partir da noção de que o trabalho, não qualquer forma de trabalho, é o elemento ordenador da sociedade. O trabalho, tal como referido, figura enquanto condição para a reforma moral do homem, da cidade e da nação. A ideia do trabalho quantificado, regulado, higienizado, externamente controlado permeia e predomina na constituição histórica do espaço público.2 Na contramão dessa forma de abordagem historiográfica, muitos autores têm ressaltado que os trabalhadores do pequeno comércio em suas diversas formas não constituem realidade nova na história do país. Entretanto, muito comumente, foram emudecidos enquanto sujeitos pela tradicional narrativa historiográfica. Apesar de no Brasil, desde a sociedade colonial escravista, uma diversidade de tipos sociais composta de jornaleiros, camaradas, lavradores, agregados e outros 2 Esta tradição e memória historiográficas sobre o mundo do trabalho encontram hoje grandes dificuldades de oferecer um conjunto de ferramentas conceituais satisfatórias para a análise dos novos processos que caracterizam especialmente a nova ordem econômica global e a forma como o mundo do trabalho em sua diversidade experimenta tais transformações. Trata-se de um conjunto de procedimentos teórico-metodológicos que subsidiam representações sobre as práticas dos trabalhadores marcadas por uma forte crise advinda da falta de capilaridade relativa aos novos ritmos que passaram a marcar o mundo do trabalho particularmente a partir de meados da década de 1970 e início de 1980. 142 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. formarem uma camada intermediária de trabalhadores livres entre senhores proprietários dos meios de produção e escravos. Vejamos como esse olhar historiográfico está presente em alguns autores, contribuindo para criar uma nova e crítica memória sobre tais sujeitos até algumas décadas atrás esquecidos ou marginalizados do mundo do trabalho. Nessa linha de discussão, Caio Prado Júnior (1976) considera senhores e escravos como os dois grupos bem classificados na estrutura social da colônia porque têm suas situações de classe bem definidas. Os primeiros como dirigentes da colonização nos seus vários setores; os segundos como massa trabalhadora. Entretanto o autor chama atenção para a existência de uma camada intermediária, conceituada pelo autor como subcategoria da população colonial, forma inorgânica da sociedade, constituída pelos indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma, cujo número vai aumentando com o tempo reforçando a ideia da marginalidade econômica do trabalhador livre. Caio Prado Júnior (1976, p. 286) explica: Esta situação tem causas profundas, de que vimos a principal mais saliente e imediata:a escravidão, que desloca indivíduos livres da maior parte das atividades e os força para situações em que a ociosidade e o crime se tornam imposições fatais. Mas alia-se [...] outro fator que se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial [...] um último fator é a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileiras [...] cujas repercussões sociais [...] foram nefastas: em cada fase descendente [...] desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde raízes e base vital de subsistência [...] nos distritos auríferos de MG, GO, MT [...] uma boa parte da população destas capitanias estava nestas condições. Também analisando o universo dos homens livres inseridos no contexto da escravidão, Franco (1976) ressalta em sua obra a situação de marginalidade econômica a que ficaram relegados os homens livres em função da forma de organização do sistema mercantil de produção. Para a autora, esse sistema fundado no latifúndio, na escravidão e na monocultura: [...] possibilitou e consolidou a formação de uma ralé que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão, simultaneamente abria espaço para sua existência e os deixava sem razão de ser [...]. (FRANCO, 1976, p. 14). No mesmo sentido, Forestan Fernandes (1976) confere atenção, em suas análises sobre as sociedades estratificadas, à denominada camada intermediária. O autor preocupa-se em estabelecer o nível de participação da camada intermediária aos padrões da cultura dominante. Contudo o foco central de sua análise está fundado na relação que estabelece entre marginalização e sistema de produção colonial. Para o autor: 143 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. A sociedade, no seu todo, compunha-se de um núcleo central, formado pela raça branca dominante, e pelos conglomerados de escravos índios, negros ou mestiços. Entre esses dois extremos, situava-se uma população livre e de posição ambígua, predominantemente mestiça de brancos e indígenas que se identificava com o segmento dominante em termos de lealdade e solidariedade, mas que nem sempre se incluía na ordem estamental. Onde o crescimento da economia foi mais intenso, esse setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência mas condenando-se a condições permanentes de anomia social. (FERNANDES, 1976, p. 32). Somando-se às contribuições já referidas, Novais (1974, p. 35-36) afirma que “o próprio funcionamento da produção colonial exigia outras categorias sociais além do binômino matriz senhor-escravo”. O autor ressalta, sobretudo, o caráter de subordinação e de dependência conferido aos trabalhadores livres relacionado respectivamente à economia mercantil e ao binômino senhorescravo, explicando que na prática esses trabalhadores constituem-se em “uma necessidade estrutural, ou pelo menos em uma possibilidade estrutural atualizável a qualquer momento” (NOVAIS, 1974, p. 35-36). Nesse sentido, o universo das várias categorias de trabalhadores que se incluíam na camada intermediária tinha seu movimento de contração ou expansão condicionado pelo movimento prévio da economia mercantil escravocrata. Novais (1974) contribui para conferir alguma visibilidade a esses trabalhadores livres no período colonial, defendendo a tese de que eles são também constitutivos do modo de produção colonial, ainda que marginalizados. Emília Viotti da Costa (2007, p. 144), por sua vez, afirma que “o trabalho livre esteve, desde o início [...], associado ao escravo nas fazendas de café. Ao caboclo eram atribuídas certas tarefas mais perigosas e árduas [...] ou algumas para as quais o escravo não merecia confiança”3. Já José de Souza Martins (1979) concorda na concomitância dessas formas de trabalho, ressalvando que os trabalhadores livres no contexto histórico referido por Viotti estavam envolvidos na fase de derrubada das matas, o que poderia comprometer o capital imobilizado no escravo. Octávio Ianni (1962), no conjunto desse coro, é outro a constatar a persistência do trabalho escravo associado às formas do trabalho livre, aglutinando-se numa mesma unidade produtiva. Sobre essa diversa e quantitativamente expressiva camada social de indivíduos livres e marginalizados na sociedade colonial escravista, particularmente naquilo que se refere aos trabalhadores/as livres que exerciam atividades caracterizadas como comércio de miúdos e que mais se aproximam dos sujeitos desta pesquisa (ambulantes/feirantes), outros estudiosos nos oferecem também valiosas contribuições. 3 A respeito das tarefas arriscadas que evidenciam a função do jornaleiro livre que era tanto poupar o escravo de tarefas arriscadas como completar eventualmente a mão de obra servil nas plantagens, ver também Gorender (1978). 144 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. Novamente Caio Prado Júnior (1993, p. 22) ressalta que no Brasil essa forma de trabalho está presente desde o primeiro século da colonização brasileira quando: “[...] o comércio estava limitado aos pequenos mercadores ambulantes que percorriam o interior à cata de fregueses, uma vez que não passavam os centros urbanos de pequenos arraiais, vilas, quando muito, de caráter tipicamente rural”. Sobre esse tipo de comércio no período colonial, Venâncio e Furtado (2001, p. 95) acrescentam que ele era composto por “[...] Negros, mestiços e forros, especialmente mulheres, que eram numerosos no comércio ambulante e nas vendas da periferia dos núcleos urbanos, comerciando gêneros alimentícios e bebidas”. Sem pretender esgotar a possibilidade de referências nesse sentido, podemos ainda citar Mary de Baiocchi (1980) que, falando da concomitância do trabalho escravo e dos trabalhadores livres no período colonial em Goiás, explica que isso podia ser observado tanto na lavoura de subsistência quanto nas minas. Ainda no que concerne a Goiás no contexto da colônia (inicialmente região mineratória, depois agropastoril), o Estado apresentava as características básicas da sociedade colonial escravista. Segundo Sales (1983), no decorrer do período aurífero dois grupos principais eram visíveis e atuantes na estrutura das relações de produção em Goiás: O dos proprietários de minas, também donos de fazendas agrícolas ou de gado e a massa escrava. Entre os dois pólos [...] gravitavam uma população flutuante que vive de pequenos ganhos, mas compõe o domínio do minerador [...] sua produção é incerta e a ocupação irrelevante. Constitui, entretanto, presença e número no complexo regular do modo de produção. São os agregados, os faiscadores livres, os tropeiros, os pequenos comerciantes, vaqueiros, carreiros [...] cujo trabalho depende de habilidade, mas não de especialização acentuada. (VASCONCELOS, 1981, p. 353). Os autores referidos têm como preocupação comum e central de suas análises chamar atenção para uma economia e sociedade na qual o mundo do trabalho sempre foi muito mais diverso e complexo do que pretende em geral uma determinada memória dominante alimentada pela historiografia oficial. Soma-se a isso o fato de muitos sujeitos não terem sido reconhecidos enquanto tais em análises tradicionais de diferentes períodos e contextos históricos. Essas análises historiográficas ressaltando a presença de uma multiplicidade de sujeitos presentes no mundo trabalho em diferentes períodos da história política do país, desde a época colonial, têm sido reforçadas e aprofundadas por vários outros estudiosos como Dias (1984), Mott (1976), Costa (1981) e outros. Esses estudiosos não apenas têm contribuído para dar mais audibilidade para essas vozes esquecidas do mundo trabalho, como também têm promovido uma escuta que procura instituir uma nova relação de forças com as narrativas constituídas sobre o tema, 145 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. visando evitar generalizações. Trata-se de um esforço teórico-metodológico que visa ressaltar e compreender a multiplicidade de sujeitos políticos que sempre marcou o compósito do mundo do trabalho em diferentes momentos históricos do país. Esses autores participam nesse processo de rupturas com abordagens historiográficas tradicionais sobre a história de aspectos do mundo trabalho no Brasil, por exemplo ao ressaltarem algumas peculiaridades do chamado pequeno comércio ou comércio miúdo entre homens e mulheres no período colonial. Assim temos que, segundo esses autores, enquanto, de um lado, as mulheres quase monopolizavam o comércio miúdo (nos referimos aqui sobremaneira ao universo dos tabuleiros, em que as mulheres que se dedicavam a vender pastéis, bolos, doces, quitutes e aguardente), os homens, de outro lado, dominavam alguns pequenos setores, constituindo dois grupos: os “mascates” e os “tendeiros”. Sobre esses dois grupos, Venâncio e Furtado (2001, p. 107) esclarecem: Os primeiros eram os pequenos vendedores ambulantes com arregações de valor. As autoridades não os viam com bons olhos, acusando-os de serem contrabandistas de mercadorias e extraviadores de ouro e pedras preciosas; o mesmo pensava a população que os responsabilizava por aumentos abusivos de preços, prejudicando o comércio estabelecido em loja e vendas. Apesar de brancos e livres, a pobreza que os caracterizou e o fato de viverem de venda a retalho, em geral, miudezas, situava-os entre os estratos mais baixos da sociedade. Os segundos, por sua vez, estavam entre os comerciantes volantes mais pobres, pois para montar as suas tendas de pano e se movimentar pelas Capitanias não precisavam de grandes investimentos. Nas tendas, exerciam ofícios, como sapateiro ou ferreiro, além de vender pequenos produtos [...]. Nesse agrupo, também havia aqueles que, apesar de tendeiros, não faziam longos deslocamentos, limitando-se aos arraias, sendo que muitos eram escravos a serviço de seus proprietários. No que concerne ao que hoje conhecemos como Estado de Goiás, apesar de pouco expressiva, esta forma de trabalho já se fazia presente antes da economia do ouro e se intensificou com seu apogeu entre 1726 e 1749 com a exploração das minas dos Goyazes 4 a partir de 1726 e com a fundação do Arraial de Sant`Anna e outros arraiais às margens dos rios propícios à mineração, tais como Rio das Almas, Arraial da Meia Ponte etc. 5 Entretanto, as atividades e a presença desses sujeitos continuam pouco documentadas e analisadas pela historiografia local. Isso se deve em parte em função de uma memória historiográfica tradicional ainda muito influente, marcada não apenas pela pouca visibilidade geralmente conferida aos sujeitos das formas de trabalho livre no Brasil e em Goiás (desde a época do período colonial), mas também muitas vezes 4 Segundo Chaul (1997), a região das minas dos Goyazes foi governada inicialmente por Bartolomeu Bueno que ostentava o título de capitão-mor até 1734. No ano de 1744, foi criada a Capitania de Goiás. 5 Para mais informações ver Chaul (1997). 146 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. marcadas por análises etnocêntricas de viajantes de meados do século XIX como Pohl (1817-1821), Saint-Hilaire (1819), Gardnen (1836-1941). O primeiro, por exemplo, relata que “[...] quanto aos brancos e aos mulatos ou livres, por hereditária preguiça, nada os leva a mexer, a por as mãos em qualquer trabalho que demande algum esforço. Preferem passar fome. Faltam negros escravos e qualquer serviço só dificilmente pode ser feito”. (POHL, 1976, p. 175). Semelhante visão tem Saint-Hilaire (1975, p. 109), ao relatar que “[...] Os atuais habitantes da Província de Goiás, debilitados pelo calor e pela ociosidade não parecem descendentes de intrépidos paulistas [...]”. Gardner (1975, p. 152), por sua vez, reforça a visão apresentada classificando os habitantes da Vila das Almas e da Natividade como “[...] vadios, indolentes e ociosos, fator que os levava a um estado de pobreza e fome”. Também constitui parte da trama da memória historiográfica tradicional, e ainda com força intensa sobre a história do mundo do trabalho no Brasil, representações sociais afins partilhadas pelos administradores no contexto de decadência da mineração em Goiás. É o caso de Cunha Mattos (s/d) que, no final da primeira metade do século XIX, sugeria uma atuação mais rigorosa da polícia para obrigar os vadios libertos ao trabalho. Nesse sentido, afirma que “[...] os escravos acabaram [...] os homens livres não querem trabalhar para não se parecerem ou para não se confundirem com os escravos [...] conservam-se em apatia e ociosidade”. (MATTOS, s/d, p. 82) A impossibilidade de administradores desse período em compreender as causas profundas dessa recorrente falta de ocupação, caracterizando os trabalhadores livres não apenas no período colonial, mas também no âmbito das lavouras cafeeiras e de outras regiões do país onde a escravidão estava quase extinta (Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro) contribuiu para alimentar uma crescente disposição por parte de proprietários e administradores de tentar resolver o problema caracterizado pela ociosidade dos trabalhadores livres que, segundo diziam, “preferiam viver no limiar da vadiagem”. Assim gradualmente se consolidou a ideia de que somente um regulamento policial poderia garantir o trabalho necessário. Por isso, eram tomadas medidas efetivas contra a denominada ociosidade reinante na Província de Goiás. Ressalta o Matutina Meiapontense, em 4 de janeiro de 1831, que a Câmara Municipal da Cidade de Goiás cria a lei, de 10 de janeiro de 1831, resolvendo que: [...] todo proprietário, que em sua casa consentir homens ociosos, ou que não ganhem salário, os quais estejam com a título dos feijões, e contudo trabalhem não regularmente, mas como de ordinário costumam, quando querem, ou como lhes parece, sendo que tal 147 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. indivíduo poderia ser aliás mais útil, não a si mesmo como ao Município, seja multado pela primeira vez em 4.000 réis no duplo e triplo, pelas reincidências. 6 Importante observar que essa lei atingia tanto os homens livres proprietários dos meios de produção como aqueles destituídos de propriedade, sem nenhuma ocupação que lhes garantissem a subsistência (no caso, os denominados vadios) e aqueles que embora trabalhassem a “título dos feijões” eram inconstantes no exercício de seu dever, ou seja, agregados. De teor semelhante é a resolução tomada em 15 de dezembro de 1831 pelo Conselho Geral da Província de Goiás considerando que a maior parte da população vive em ociosidade prejudicial à sociedade e às lavouras e criações, e em razão do exposto decide no artigo 4: Os juízes de Paz vigiarão sobre os proprietários, senhores de terras, e homens poderosos, procurando haver deles uma circunstanciada relação de todas as pessoas livres que tiverem em suas companhias a titulo de agregados, ou qualquer outro especioso indagando em que eles se ocupam, de que tiram sua subsistência, o motivo porque os colheram, e d’onde vieram [...] ficando responsáveis pela veracidade das declarações [...].7 Essas referências foram apresentadas para demonstrar o paralelismo relativo às representações sociais que proprietários, administradores e viajantes tinham sobre os trabalhadores livres no Brasil em outros momentos históricos, caracterizadas especialmente pelas ideias de preguiça, ociosidade e vadiagem. Ideias que constituem importantes elementos das representações sociais dominantes que vários sujeitos sociais da cidade de Goiânia (independentemente de origem de classe social, embora que em níveis diferenciados) têm sobre os ambulantes/feirantes em questão. No que concerne a tais representações sobre trabalhadores marginalizados do sistema produtivo, autores como Cândido (1972) e Franco (1976) referindo-se à lavoura cafeeira na segunda metade do século XIX demonstram que o problema da desqualificação do trabalhador livre nacional enquanto ocioso e pouco dado ao trabalho é resultado de razões profundas: existência da escravatura, impossibilidade de acesso à propriedade e à economia de subsistência a que estavam condenados por sua marginalização da economia básica de exportação. Novas análises sobre o assunto têm contribuído para romper com a referida memória historiográfica relativa ao tema, evitando-se assim explicações rasteiras sobre esses sujeitos. Dias (2000, p. 58), referindo-se à historiografia brasileira produzida entre 1950 e 1960, observa que os 6 7 Ver: Matutina Meiapontense, 4 de janeiro de 1831, n. 185. Ver: Arquivo Histórico do Estado de Goiás – Assembleia Legislativa cx. 19. 148 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. sujeitos praticantes do comércio ambulante e de outras ocupações do cotidiano dos homens livres pobres eram ainda estudados de forma descolada de suas respectivas historicidades 8 . De outra forma, a autora explica: Inseridos numa perspectiva globalizante, vistos como desordeiros ou subordinados ao todo da nação, do poder, da ordem dominante. Para aceitar diferenças foi preciso transcender enquadramentos amplos. Aceitar o outro implicava abrir-se para uma pluralidade de possibilidades de participação. [...] Aceitar o outro implicava documentar experiências de vida, aceitar conjunturas sociais fragmentadas que desafiam globalidades tidas como certas, nacionais, coerentes com sistemas ideológicos predefinidos (DIAS, 2000, p. 58). A autora prossegue esclarecendo que se tratava, pois, de uma abordagem que tendia a reduzir a urdidura dos pormenores, a diversidade de sociabilidades e a experiências de vida aos sabores das conjunturas internacionais, mas que pouco a pouco começou a dar espaço necessário à construção de uma historiografia dos homens pobres que desde a época colonial não estavam integrados sistematicamente à economia de exportação ou que resistiam à integração no sistema produtivo (DIAS, 2000). Enfatiza necessidades tais como: [...] o desvendamento de conjunturas parciais de grupos sociais em formação sem imporlhes conceitos e categorias abstratas. [...] A reconstituição das conjunturas locais e regionais. [...] O estudo de aspectos aparentemente fortuitos e fragmentários. [...] rever conceitos que alimentam a idéia do social por oposição ao político. (já que) Interpretar o social implica passar pelo crivo de redefinição da cidadania política (DIAS, 2000, p. 5860). Esse reenquadramento teórico-metodológico da produção do conhecimento histórico e necessário à percepção de novas formas de sociabilidades, como o cotidiano das atividades de trabalhadores do pequeno comércio, particularmente do pequeno comércio considerado ilegal frente ao poder instituído, está também representado por muitas outras análises criticas que contribuem para reconstruir a memória historiográfica tradicional relativa à historicidade do mundo do trabalho no país. Doles (1978) explica-nos que a própria dinâmica da economia aurífera da Capitania de Goiás favorecia de diversas formas o aumento desse tipo de comércio marginalizado. A autora 8 Apesar de observados já na época da colonial, Dias (2000) chama-nos atenção para a crescente presença desses trabalhadores na região centro-sul a partir de meados do século XIX. No que concerne a Goiás no mesmo período, o processo de concentração da estrutura fundiária somado a problemas de abastecimento interno e transportes têm muito a ver com a sorte desses trabalhadores. Assim, explica que “O comércio era parte importante das atividades de subsistência, desdobrando-se em cadeias infindáveis de múltiplos intermediários, desde o caminho das roças aos ranchos de tropas, às vendas de beira estrada [...] realidade amplamente documentada pelos viajantes e pelas posturas das municipalidades”. (DIAS, 2000, p. 66). 149 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. atribui o aumento do comércio legal, e também ilegal, no referido período histórico às seguintes causas: [...] o surgimento dos referidos povoados junto às jazidas de ouro; a circulação de ouro em pó, como moeda permitida e possível na Capitania de Goiás; a facilidade dos comerciantes ambulantes e estabelecidos contrabandearem ouro, apesar da centralização políticoadministrativa e da dura fiscalização, uma vez que o mineiro comprava quase todas as suas coisas por preços altíssimos usando ouro como moeda e também o fato de os comerciantes ambulantes ou não contarem com léguas desertas e indefinidas de fronteiras carentes de policiamento, como também fiscalização facilmente corruptível; o dinamismo e aventura de homens que abrindo picadas permitiam a passagem das tropas de animais carregados, único meio de transporte. (DOLES, 1978, p. 91). Na mesma linha de análise, Pijning (2001) explica que não se trata de uma particularidade da fase aurífera da Capitania de Goiás. Como já foi dito, desde a época colonial no Brasil arraiais e vilas, conforme a dinâmica político-econômica de cada uma delas eram espaços nos quais “ambulantes, mercadores, pescadores e oficiais, buscavam sua parcela na economia ilegal. O controle exercido por um administrador sobre esse ambiente podia ser facilmente convertido em uma renda extra”. (PIJNING, 2001, p. 404). Já Christolow (1947), historiador britânico da primeira metade do século XX, que produziu uma história político-econômica do comércio ilegal das colônias portuguesas e espanholas reconhece que o comércio ilegal era uma das dimensões do mercantilismo. Moutoukias (1988), historiador que atua na França e estudou o comércio ilegal na Buenos Aires do século XVII como parte indissociável da sociedade colonial, na qual grupos com diferentes interesses cooperavam e competiam entre si estabelecendo redes a partir de sua participação dentro de atividades juridicamente ilegais. Pijning (2001, p. 399) reforça tais análises afirmando que: O contrabando (o comércio ilegal) foi incorporado pela organização jurídica, econômica e social. [...] Algo inerente à economia do Atlântico pré-moderno, atuante em todos os aspectos da sociedade luso-brasileira, assim como em qualquer outra parte da Europa, África e das Américas. Tal autor defende que no Brasil colonial, como em outras partes do mundo, múltiplas formas de comércio ilegal eram aceitas e onipresentes. Sobre a compreensão da dinâmica desse tipo de comércio em suas várias escalas, explica também que é mais importante saber quem praticava o comércio ilegal do que saber o quanto ele era praticado no sentido de compreendermos eventuais operações de perseguição e condenação dessa prática. 150 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. Ao atentarmos para o comércio ilegal em suas várias escalas e formas, mais ou menos tolerado ou mais ou menos expressivo em diferentes momentos da Capitania de Goiás e posteriormente na nova capital de Goiás – Goiânia -, espaço onde periodizamos nosso objeto de pesquisa através de tais autores, construímos um olhar crítico para realizarmos uma leitura da memória historiográfica oficial sobre as atividades dos ambulantes/feirantes nessa cidade. Para assim, compreendermos mais aprofundadamente os processos que colonizam e constituem as representações sociais dominantes sobre esses trabalhadores no jornal O Popular entre 1970 e 2012. Representações que resistem em compreendê-los como praticantes particularmente pertencentes ao sistema ainda que de forma marginal 9 ; como participantes de uma rede de conexões sociais, políticas, econômicas e culturais; como atores sociais que reivindicam a sobrevivência e direitos políticos; como sujeitos sociais ocupando o espaço público, exigindo serem olhados não mais como objetos de caridade, mas como parceiros de um mesmo jogo10. A reconstrução da memória historiográfica sobre o mundo do trabalho no país passa pela crescente rejeição dos sujeitos a que nos referimos como figurantes mudos e de uma história sem povo. Trata-se de uma oportunidade de por à prova, segundo Linhares (1998), esquemas explicativos vigorantes de longa data, entre eles o de que o Brasil teria nascido sob a égide do capitalismo mercantil, tendo sido desde seus princípios determinado de fora para dentro. Assim o autor convida-nos a Voltarmos para dentro do país o enfoque de sua História, levando à busca de novas fontes, de diferentes perspectivas teóricas, e de explicações localizadas e documentadas para fenômenos específicos, resulta em abandonar uma certa perspectiva nacional (generalizante) de análise, para lidar com realidades concretas e documentadas, localizadamente. (LINHARES, 1998, p. 13). 9 Segundo Robert Castel (1997, p. 28-29): “Pode-se distinguir duas formas principais de marginalidade. A primeira é uma marginalidade ‘livre’, caracterizada pela distância em relação ao trabalho regular, mas também em relação às formas organizadas de proteção aproximada que se constitui na assistência. O marginal organiza para si uma existência precária, nos interstícios da vida social [...] Esse traço merece ser novamente retomado, pois ele distingue claramente a marginalidade da pobreza, e mesmo da pobreza dependente. [...] Podemos qualificar os marginais propriamente ditos de sem-estatuto. São os clochards, os ciganos, os sem domicílio fixo, os catadores de papel e outros coletores de lixo nos limites da cidade. O segundo tipo de marginais constitui-se daqueles que foram retirados a título provisório ou definitivo, da vida social comum, encontrando-se em espaços institucionalizados separados. [...] Os grandes marginais são ou aqueles que mais fogem à institucionalização e se entregam ainda, a formas de nomadismo incertas e arriscadas, nas sociedades modernas [caso dos ambulantes clandestinos em Goiânia] ou aqueles que se encontram superinstitucionalizados em espaços de reclusão” [caso dos ambulantes cadastrados pela Prefeitura de Goiânia que têm suas respectivas atividades comerciais submetidas a uma série de regras de controle]. 10 Sobre o assunto ver Bresciani (1990; 2000). 151 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. A reelaboração de tal memória dominante afirma-se na medida em que acorda para as práticas de sujeitos (legais ou ilegais perante o Estado) que viviam nas fímbrias da estrutura socioeconômica dominante desde a época colonial, como os ambulantes/feirantes - objeto desta pesquisa. Isso não significa a rejeição pura e simples de esquemas explicativos anteriores, mas uma bela oportunidade de enriquecermos a produção historiográfica brasileira. Também está baseada na recomendada necessidade daquilo que Benjamin (1987, p. 225) chama de “escovar a história a contrapelo” e, desse modo, perseguir em diferentes momentos históricos do país figuras de sujeitos sociais como a dos comerciantes ambulantes legais ou ilegais. Sujeitos sociais marginalizados, mas presentes no bojo de um sistema que deles depende para sua reprodução. Essa nova historiografia contribui para a reconstrução da memória sobre o mundo do trabalho no qual, entre outras coisas, se reconhece que comerciantes ambulantes desde os tempos coloniais contribuíram na dinâmica do funcionamento de uma economia endógena, mas não isolada. Figurando como sujeitos instituintes de práticas que se conjugavam na confirmação e na formação de territorialidades próprias, e não raro conflitantes, com a ordem social11 predominante. Entretanto, na contramão desse processo de reconstrução da memória oficial historiográfica sobre o mundo do trabalho, a base ideológica das práticas discursivas do jornal O Popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e 2012) ainda insiste intensamente em estratégias de silenciamento da historicidade e do protagonismo desses sujeitos no âmbito da participação política e da construção da esfera pública, bem como na disputa por um determinado projeto de cidade e de urbanidade. Tais práticas discursivas bebem muito mais numa memória historiográfica alimentada por recortes sobre a vida econômica e política, social e cultural em Goiás e em Goiânia, marcados por valores de progresso e modernidade europeus que transformam todas as práticas e as atividades que não são consideradas classicamente capitalistas (conforme modelos tradicionais de interpretação da dinâmica do capital) em atraso e decadência. Por conseguinte, em realidades em descompasso com a lógica produtiva dominante de então, bem como com o discurso modernizante que mitificaria a fundação da cidade de Goiânia. As referidas representações sociais produzidas pelo jornal sobre os ambulantes/feirantes negociam estrategicamente como a memória historiográfica oficial sobre o mundo do trabalho quando privilegiam perspectivas teórico-metodológicas que relegam as experiências cotidianas e as 11 Sobre o conceito de social e sua relação com manifestações residuais no decorrer da história, ver Baudrillard Júnior (1994). 152 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. demandas desses sujeitos a uma condição de marginalidade, ou de curiosidade da efervescência das ruas. As matérias do jornal O Popular no referido período, sobre esses sujeitos, se reapropriam ideologicamente de uma memória historiográfica, reforçando-a, visando: 1) legitimar a ideia da cidade de Goiânia como espaço de novas relações econômicas por excelência; 2) definir o espaço público como espaço-fronteira entre o “velho” e o “novo” na medida em que é concebido como símbolo de modernidade; 3) produzir e reproduzir uma ideia de cidade e urbanidade modernas, permeada pelos discursos médico e urbanista e, por consequência, pela defesa de medidas associadas à disciplinarização dos corpos no espaço, em função da construção de um conforto policiado que deveria ser estendido indistintamente à todas as camadas da população como forma de integrá-las simbolicamente às regras de civilidade. Nesse sentido, quando os ambulantes/feirantes são representados pelas matérias de O Popular em geral eles figuram não como sujeitos, mas sim como corpos - objetos que devem ser policiados e disciplinarizados segundo as novas regras de civilidade e de polidez. Trata-se de um exemplo histórico da tese de Baudrillard (1994, p. 71), segundo a qual “o social [...] existe cada vez mais, mas sobretudo como gestão racional dos resíduos, e dentro em pouco produção racional dos resíduos”. Tais práticas discursivas sobre os sujeitos desta pesquisa - em seu processo de elaboração e reelaboração - recorrem à memória dominante historiográfica, sobretudo às narrativas que abordam aspectos do pós-1930 em Goiás, de modo a alimentar um processo de representação da ideia de modernidade urbana e econômica que teria se efetivado, segundo Chaul (1997, p. 20), “por meio da recuperação das imagens/conceitos da decadência e do atraso, como forma de justificar a deposição do velho”. Por consequência, evidenciam-se enquanto discurso autoritário revelando poucos lugares para formas de trabalho consideradas não modernas ou mesmo précapitalistas. Tais representações sobre os trabalhadores ambulantes/feirantes tendem a não reconhecer os modos de sobrevivência que infestam as fissuras da promovida ideia de cidade moderna, legitimando dessa forma uma ideia de cidade e de urbanidade enquanto marco do novo em oposição ao velho, expressão do moderno em oposição ao tradicional, ruptura entre passado e presente. Até o final dos anos de 1980, tais práticas discursivas sobre esses sujeitos no jornal O Popular, representadas enquanto práticas dissonantes com a ideia de Goiânia como espaço de 153 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. modernidade, alinham-se com propostas dos poderes instituídos no sentido de promover intervenções visando ao saneamento de usos e costumes não compatíveis com os ideais de civilidade. Elas contribuem, pois, decisivamente para a consolidação de um projeto dominante e autoritário de espaço público e política, já que rasteiramente representados enquanto pasteurizados e sem fissuras, isentos de uma rede de relações com tradicionais modos de fazer do mundo do trabalho. As matérias do jornal O Popular, ainda na esteira da referida memória historiográfica tradicional sobre o mundo trabalho, não raramente reforçam ideologicamente as relações de oposição entre as estruturas dadas e as experiências ou atividades econômicas desenvolvidas pelos ambulantes/feirantes, analisando-as e, não raramente, apresentando-as de forma isolada ou descolada de enquadramentos históricos mais favoráveis ao reconhecimento desses sujeitos enquanto protagonistas da cidade e do urbano, da esfera pública e da política. Portanto tais práticas discursivas, de mãos dadas com a memória historiográfica dominante em questão, são produzidas e reproduzidas - senão de costas - certamente resistentes em conferir a devida atenção às medições culturais das práticas desses sujeitos. Mediações necessárias a uma compreensão crítica sobre o modo como as classes e a dinâmica de classes se realizam. Como lembra-nos Thompsom (1998, p. 53), As classes acontecem à medida que os homens e mulheres vivem suas relações de produção e experimentam suas situações determinantes, dentro do conjunto de relações sociais com uma cultura e expectativas herdadas, e ao modelar essas experiências em formas culturais. O aspecto profundamente ideológico de tais práticas discursivas de O Popular se revela, sobretudo, no modo como elas, de um lado, privilegiam determinadas análises historiográficas tradicionais associadas ao mundo do trabalho e a tais sujeitos; de outro lado, na forma como insistem em não reconhecer o processo de revisitação crítica dessa historiográfica e da memória produzida por ela e que desde o início dos anos de 1970 vem sendo desenvolvida. Dessa forma, procede a um recorte de tal discurso científico de modo a legitimar o não reconhecimento de práticas econômicas e culturais cotidianas de luta por sobrevivência através das quais esses sujeitos sociais criam e recriam constantemente territorialidades próprias. Esse procedimento ideológico, como já foi ressaltado, é também alimentado pelo recurso a falsas oposições como: o moderno em oposição ao antigo, o trabalho formal em oposição ao trabalho informal. Tal procedimento discursivo visando interesses de classe e segmentos de classes dominantes quanto a um determinado projeto de cidade, urbanidade, política, esfera pública e 154 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. trabalho procura fazer a forma prevalecer sobre o conteúdo, ou seja, insiste na construção de representações sociais sobre os ambulantes/feirantes marcadas, em geral, pelo não reconhecimento de que eles nunca deixaram de figurar historicamente nas diversas fronteiras geográficas e temporais da história de Goiânia; no não reconhecimento dessa forma marginalizada do mundo trabalho que sempre sobreviveu nos interstícios da vida econômica e social dessa cidade Percebemos assim que a construção de tais representações sociais sobre os ambulantes/feirantes no jornal em questão tem como uma de suas bases a negociação/apropriação com e da memória historiográfica oficial e dominante, através da qual se erige discursivamente uma cidade das letras em oposição a uma cidade das ruas pautada: a) pela pouca e muitas vezes nenhuma audibilidade conferida a esses sujeitos no que diz respeitos as suas demandas e particularidades enquanto sujeitos políticos; b) pela recusa em reconhecer a força instituinte desses trabalhadores, sobretudo até o final dos anos de 1980; c) por estratégias de silenciamento ou anulação política desses sujeitos. Estratégia que se tornou mais complexa e mais refinadamente maquiada com o crescimento das novas demandas históricas (sociais, políticas, econômicas e culturais) desses trabalhadores, sobretudo a partir do final dos anos de 1980 e início de 1990. Alem do mais, a construção de tais representações sociais no jornal O Popular ainda é fortemente pautada por uma cegueira avessa à ideia de descentralidade e multiplicidade do social. Operação estratégica à finalidade ideológica de jogar sombra sobre a intensidade da vida econômica e política, social e cultural que se faz presente no calor cotidiano das calçadas do centro de Goiânia, particularmente entre os trabalhadores ambulantes/feirantes do centro histórico planejado da cidade. Assim, tais práticas discursivas, em função dos interesses dos segmentos de classe dominante associada à chamada cidade das letras em oposição à cidade das ruas, fazendo uso de referências a algumas passagens de Sader (1988), contribuíram e contribuem decisivamente para sombrear a emergência desses sujeitos na “[...] cena pública reivindicando seus direitos, a começar pelo primeiro, o direito de reivindicar direitos”, na medida em que insiste em reelaborar velhas modalidades dominantes de representação sobre eles, com o objetivo de negação “[...] de uma novidade no real e nas categorias de representação do real”. (SADER, 1988, p. 26-27). Portanto, trata-se de um modelo de representação social sobre tais trabalhadores ainda muito pouco poroso em relação ao “[...] crescimento de investigações empíricas relativas a diferentes períodos e aspectos dos mundos do trabalho” (FORTES; NEGRO, 1998, p. 68), já que o padrão de representação social cumpre uma função importante no processo de legitimação de uma 155 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. determinada visão de trabalho dominante, através do apagamento de outras formas de memórias associadas às ideias hegemônicas de cidade, urbanidade, política e esfera pública. Trata-se, portanto, de um modelo de representação que tende a se reproduzir nas referidas práticas discursivas das matérias de O Popular de modo a não reconhecer as rupturas promovidas pela nova história social do trabalho, desde as décadas de 1970 e 1980, em relação ao mundo do trabalho em geral e ao cotidiano dos ambulantes/feirantes em particular. Posição compreensível na medida em que tais matérias jornalísticas em geral insistem na representação desses sujeitos pautada pelas ideias de passividade e conformismo, incapacidade de universalização de seus objetivos, incapacidade de ação autônoma (SADER, 1998). Finalizando, trata-se de um modelo de representação social sobre os trabalhadores ambulantes/feirantes marcado por características como: a) resistência à ideia de que tais trabalhadores são sujeitos de própria história; b) desvalorização de manifestações do cotidiano desses sujeitos enquanto formas e possibilidades de expressões de resistência e autonomia; c) insistência ideológica no não reconhecimento da crise dos referenciais políticos e analíticos (de tipo estruturalista e reducionista) da historiografia tradicional, que balizam as representações sobre os trabalhadores em questão; d) pouco ou nenhum diálogo com o universo das experiências de tais sujeitos; e) marginalização das diversas formas de sociabilidades percebidas entre eles e da capacidade criadora e do poder instituinte (CASTORIADS, 1982, p. 176) que recaem sobre eles; f) insistência no uso de explicações simplificadas de processos através do uso de ferramentas conceituais utilizadas de forma acríticas (OLIVEIRA, 1987); g) não reconhecimento de novas e progressivas formas de associação desses trabalhadores enquanto elementos de identidade; h) negação da historicidade concreta desses sujeitos através da negação de um conjunto de posições que eles assumem, tais como: relações domésticas, relações com aparatos institucionais, várias formas de subordinação cultural, racial e sexual (LACLAU, 1986); i) ofuscamento do imaginário desses sujeitos a partir da concordância com o fato de que esse imaginário na medida em que devidamente revelado no discurso“[...] revela também os contornos do sujeito, através da atribuição de sentido a si e ao mundo circundante” (ARENDT, 1981). Assim não é raro encontrarmos em muitas das matérias do jornal, publicadas entre 1970 e 2012 sobre os ambulantes/feirantes da região central da cidade, tanto ideias associadas à legitimidade de medidas policialescas para reprimir as atividades desses trabalhadores quanto as que defendem formas de vigilância sobre eles, travestidas em ideologias como o sanitarismo e o higienismo. Somam-se a elas, associações desses sujeitos à vagabundagem, ociosidade, preguiça, 156 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul. 2013/Jan. 2014. ameaça à ordem etc. Tais representações sociais ainda constituem parte expressiva da trama da memória historiográfica tradicional dominante sobre o tema e com a qual negociam/reapropriam as referidas matérias do jornal O Popular. Discorremos, pois, sobre um processo de legitimação/construção discursiva sobre as práticas e representações próprias do cotidiano dos ambulantes/feirantes da região central de Goiânia marcadas por uma sempre renovada estratégia de desqualificação desses sujeitos. Operação realizada com base na apropriação/negociação de uma determinada dimensão do discurso historiográfico de modo a supervalorizar interpretações que não reconhecem ou marginalizam a presença desses trabalhadores no âmbito da dinâmica econômica dominante e da formação da esfera pública, ignorando, pois, novas interpretações historiográficas que procuram conferir mais visibilidade aos referidos sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Enfim, as práticas discursivas de O Popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e 2012) também sobre os ombros de uma determinada tradição historiográfica participam decisivamente numa dinâmica de representação social sobre eles, caracterizada pela produção especializada do esquecimento ou do não reconhecimento desses sujeitos que fizeram e fazem também parte do mundo trabalho na cidade de Goiânia. REFERÊNCIAS ARQUIVO HISTÓRICO DO ESTADO DE GÓIAS – Assembleia Legislativa cx. 19. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ASSOCIAÇÃO GOIANA DE IMPRENSA. Imprensa goiana, depoimentos para sua história. Goiânia: Cerne, 1980. BAIOCCHI, Mari de. Os Negros de Cedro. 1980, 223f. Tese (Doutorado em Antropologia) Faculdade de Filosofia e Letras e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. BAUDRILLARD, J. À Sombra das Maiorias Silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. 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Terra da informalidade, Rua 44 atrai gente de todo o Brasil, 20 nov. 2011. Vendas ficam acima da expectativa, 29 agos. 1989. Vende-se tudo nos sinaleiros, Caderno Cidade, 10 jun. 2001. Yara prevê a feira bem mais organizada, 27 nov. 1983. Jornal Matutina Meiapontense Matutina Meiapontense, 4 jan. 1831, n. 185. Editor Responsável Edmar Aparecido de Barra e Lopes [email protected] 1 – Os trabalhos enviados para publicação deverão ser inéditos, não sendo permitida sua apresentação simultânea em outro periódico. De preferência redigidos em português, a REVISTA publicar eventualmente textos em língua estrangeira (inglês, francês, espanhol). 2 – Os originais serão submetidos apreciação do Conselho Editorial, após prévia avaliação do Conselho Consultivo, o qual poder aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões para alterações. Os nomes dos relatores permanecerão em sigilo, omitindo-se também os nomes dos autores perante os relatores. 3 – Os artigos e comentários críticos devem ser apresentados com original e cópia e devem conter entre 10 (dez) e 18 (dezoito) laudas e 70 (setenta) toques de 30 (trinta) linhas. As resenhas devem conter 05 (cinco), os resumos de TCC 03 (três) e a entrevistas até 15 (quinze) laudas. 4 – Os originais devem ser encaminhados através do email: [email protected] (fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5). 5 – Cada artigo deve vir acompanhado de seu título e resumo em português e inglês (abstract), com aproximadamente 80 palavras e título em inglês; e de, no máximo cinco palavraschave em português e inglês. 6 – No cabeçalho do original serão indicados o título (e subtítulo se houver) e o nome do(s) autores, com indicação, em nota de rodapé, dos títulos universitários ou cargos que indiquem sua autoridade em relação ao assunto do artigo. 7 – As notas do rodapé, quando existirem, deverão ser de natureza substantiva, e indicadas por algarismos arábicos em ordem crescente. As menções a autores, no decorrer do texto, devem subordinar-se ao esquema (Sobrenome do autor, data) ou (Sobrenome do autor, data, página). Ex.: (ADORNO, 1968) ou o ano serão identificados por uma letra depois da data. Ex.: (PARSONS, 1967ª), (PARSONS, 1964b). 8 – A bibliografia (ou referências bibliográficas) ser apresentada no final do trabalho, listada em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes esquemas: a) No caso de livro: SOBRENOME, nome. Título sublinhado. Local de publicação, Editora, data. Ex.: GIDDENS, Anthony. Novas regras do método sociológico. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. b) No caso de coletânea: SOBRENOME, Nome. Título não sublinhado. In: SOBRENOME, Nome, org. Título do livro sublinhado. Local de publicação, editora, data, p. ii-ii. Ex.: FICHTNER, N. A escola como instituição de maltrato infância. In: KRINSKY, S., org. A criança maltratada. São Paulo, Almeida, 1985. p. 87-93. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. c) No caso de artigo: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do Periódico Sublinhado, local de publicação, número do periódico (número do fascículo): página inicialpágina final. Mês(es) e ano de publicação. Ex.: CLARK, D. A. Factors influencing the retrieval and control of negative congnotions. Behavior and Therapy, Oxford, 24(2): 151-9. 1986. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. d) No caso de tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese sublinhado. Local, data, número de páginas, dissertação (Mestrado) ou Tese (Doutorado). Instituição em que foi defendida. (Faculdade e Universidade). Ex.: HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo: a formação do Brasil Colonial. São Paulo, 1986, 403 p. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. GUANICUNS III 2006 24-09-06.pmd 294 24/9/2006, 20:20 9 – Uma vez publicados os artigos remetidos e aprovados pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial, A REVISTA, se reserva todos os direitos autorais, inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução com transcrição e com devida citação da fonte. 10 – Os conceitos emitidos nos trabalhos serão de responsabilidades exclusiva dos autores, não refletindo obrigatoriamente a opinião do Conselho Consultivo e do Conselho Editorial. 11 – A REVISTA de caráter interdisciplinar e pretende se consolidar como um instrumento de reflexão crítica, contribuindo para dar visibilidade produção técnico-científica do corpo docente e discente da instituição. 12 – A REVISTA aceita colaborações, sugestões e críticas, que podem ser encaminhadas ao Editor, através do e-mail supracitado. 13 – Originais não aproveitados serão devolvidos, mas fica resguardado o direito do autor(a) em divulgá-los em outros espaços editoriais. Naturalmente toda a responsabilidade pelos artigos a seus respectivos autores. Endereço: Avenida Bandeirantes, n. 1140, Setor Leste CEP: 76.170-000/Caixa Postal: 07 Dúvidas:Tel/Fax: 62-81259000 E-mail: [email protected] Solicita-se permuta/Exchange desired.
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