estácio de sá ciências humanas

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estácio de sá ciências humanas
ISSN 1984-2848
ESTÁCIO DE SÁ
CIÊNCIAS HUMANAS
REVISTA DA FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE GOÂNIA
SESES - GO
Vol. 02, N. 9, JULHO 2013 / JANEIRO 2014
FICHA CATALOGRÁFICA DA REVISTA
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CPI)
FACULDADE DE GOIÁS
CATALOGAÇÃO NA FONTE / BIBLIOTECA FAGO
JAQUELINE R. YOSHIDA – BIBLIOTECÁRIA – CRB 1901
LOPES, Edmar Aparecido de Barra e (org.).
Revista de Ciências Humanas da Faculdade Estácio de Sá de Goiás-FESGO. Goiânia, GO,
v. 02, nº 09, Jul. 2013/Jan. 2014.
ISSN 1984-2848
Nota: Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiás – FESGO.
I. Ciências Humanas. II. Título: Revista de Ciências Humanas. III. Publicações Científicas.
CDD 300
ESTÁCIO DE SÁ
CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ GOIÁS – FESGO
VOLUME 02, n. 09, Jul. 2013/Jan. 2014
PERIODICIDADE: SEMESTRAL
ISSN: 1984-2848
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SUMÁRIO
ARTIGOS
08-23
DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR:
UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA E INOVADOR
AMANDA OLIVEIRA MAGALHÃES
24-32
DINHEIRO ELETRÔNICO E AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE
SOCIAL
CLEITO PEREIRA DOS SANTOS
33-40
EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO VISANDO A
INCLUSÃO DIGITAL DE PESSOAS ADULTAS
FLÁVIA VALÉRIA C. BRAGA MELO
DIÓRGENES DOS SANTOS
JUNILSON DIAS BARBOSA
41-59
MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA
NILDO VIANA
60-71
MÚSICA SERTANEJA UNIVERSITÁRIA E VALORES DOMINANTES:
UM ESTUDO DO DISCURSO DAS CANÇÕES E SUA RELAÇÃO COM OS
VALORES SOCIAIS CAPITALISTAS
GABRIEL TELES VIANA
FELIPE MATEUS DE ALMEIDA
72-83
MARX E SATRE: MÉTODO DIALÉTICO E REPRESENTAÇÕES
COTIDIANAS
MARIA ANGÉLICA PEIXOTO
84-94
QUESTÕES SOBRE MERCADORIA E CONSUMO EM KARL MARX
ERISVALDO SOUZA
95-99
U M PENSAR SO BRE A ÉTICA NAS RELAÇÕES DOCENTE E ALUNO
NO ENSINO SUPERIOR
MARIANA SIQUEIRA SILVA
100-112
CONCEPÇÃO MARXISTA ACERCA DA NOÇÃO DE INTELECTUAL
LEONARDO VENICIUS PARREIRA PROTO
113-125
JUVENTUDE E UTOPIA
ANDRÉ DE MELO SANTOS
126-139
O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NA SUCESSÃO DE REGIMES
DE ACUMULAÇÃO
MATEUS ORIO
140-161
A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE OS
AMBULANTES/FEIRANTES DA REGIAO CENTRAL DE GOIÂNIA
ENTRE 1970 E 2012: NEGOCIAÇÕES DISCURSIVAS COM A
MEMÓRIA DA HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL SOBRE SUJEITOS
ESQUECIDOS DO MUNDO DO TRABALHO
EDMAR APARECIDO DE BARRA E LOPES
_________________________
ARTIGOS
8 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
08-23, Jul. 2013/Jan. 2014.
DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR:
UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA E INOVADORA
Amanda Oliveira Magalhães
RESUMO
ABSTRACT
A universidade contemporânea confronta-se com
uma realidade que tem gerado vários desafios
relacionados aos processos de formação de
professores. Na perspectiva de ruptura com o
paradigma atual surge uma série de estudos sobre
inovações, buscando uma dimensão emancipatória.
Neste artigo reflete-se sobre docência universitária,
inovação seguinte as orientações de um novo
paradigma – o da complexidade. Apresenta-se neste
artigo a análise de práticas pedagógicas consideradas
inovadoras, por alunos do curso Psicologia,
disciplinas de Metodologia Científica e Oratória, em
função dos objetivos alcançados no processo ensinoaprendizagem.
Buscou-se
verificar
se
os
pressupostos da Teoria da Complexidade podem
auxiliar na redefinição das práticas pedagógicas nos
cursos de formação. Pode-se resumir que a inovação
é esperada e ajuda na promoção da conscientização
o que marcou definitivamente a relação dos alunos
com o objeto de conhecimento, além de favorecer a
autonomia e a confiança.
The contemporary university is faced with a reality
that has generated a number of challenges related to
the processes of teacher training. In the perspective
of a break with the current paradigm arises a series
of studies on innovations, seeking an emancipatory
dimension. This article reflects on university
teaching, innovation follows the guidelines of a new
paradigm - that of complexity. This paper presents
the analysis of innovative pedagogical practices
considered by students of psychology, disciplines of
scientific methodology and Oratory, depending on
the objectives achieved in the teaching-learning
process. This research sought to verify the
assumptions of Complexity Theory may help
redefine the pedagogical practices in training
courses. This research sought to verify the
assumptions of Complexity Theory may help
redefine the pedagogical practices in training
courses. It can be summarized that innovation is
expected and helps in promoting awareness which
definitely marked the relationship of the students
with the knowledge object, besides favoring
Palavras-chave: Docência Universitária. Inovação. autonomy and confidence.
Complexidade. Processo de Formação.
Keywords: University teaching. Innovation.
Complexity. Teachers’ formation.
Universidade brasileira e sua crise no século XXI
Dizer que as universidades brasileiras estão em crise parece expressar um julgamento
consensual a respeito de uma instituição que vive sérios problemas, mesmo quando se fala das
universidades particulares. Ambas, pública e particular, passam por problemas de difícil solução
que se expressam tanto no modelo pedagógico quanto na pesquisa e saberes produzidos. Essa crise
relaciona-se também a questão da mercantilização do ensino superior, que conforme é discutido por
9 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
08-23, Jul. 2013/Jan. 2014.
Santos (2000), estes sinais manifesta amplos aspectos entre si relacionados, compreendidos pelo
mesmo autor como sendo a expressão da crise de hegemonia, de legitimidade e institucional. No
caso da perda da hegemonia tem-se que a universidade brasileira enfrenta atribuições funcionais
contraditórias, uma vez que, além de produtora da alta cultura e formadora das elites, atualmente é
também produtora de padrões culturais médios e de conhecimentos instrumentais, responsáveis pela
formação de mão-de-obra qualificada. A crise de legitimidade representa a perda da
consensualidade que outorgava à universidade o papel de organizadora do conhecimento, a
universidade entra nesse aspecto da crise ao se consumar a hierarquização dos saberes
especializados. Já a crise institucional diz respeito a perda da autonomia universitária, em função do
atual quadro de políticas públicas, crise que afeta sobretudo o ensino superior público, mas também
o particular, que modifica o papel das universidades no campo da responsabilidade social, pois
exige que tenham eficácia de natureza empresarial. Entende-se que a universidade passou a ser
intimada a participar mais diretamente de outras relações sociais, sejam de produção, ou de
emancipação.
Priorizando as crises descritas por Santos (2005), no caso do Brasil, é possível destacar
seu aciramento em função das argumentações históricas contextuais na década de 1990, quando
agudizou-se a descaracterização intelectual entre os professores das universidades, com a
superfragmentação e desvalorização dos diplomas universitários, em geral. Santos A. C. (2007,
p.318) é crítico ao comentar esse processo: a “universidade, de produtora para o mercado, passou a
se produzir como mercado”.
Desde então, vários discursos críticos e metáforas foram elaborados sobre a crise das
universidades, além de serem altamente sugestivos, também revelam que ela não se restringe à
América Latina, afeta todas as instituições que se encontram sujeitas aos efeitos desagregadores das
políticas educacionais neoliberais. Criticamente analisando, de certo modo, a crise que envolve as
universidades expressa também o processo de precarização do espaço universitário, fazendo com
que se diminua sua importância na formação integral dos alunos. Aqui cabe a expressão de uma
contradição, ao mesmo tempo que se tem uma gama enorme de novas instituições formadoras, de
financiamentos, bolsas de estudos, e outras ações que favorecem a entrada dos alunos nas
universidades, o que se percebe é que a cada dia caminha-se à perda da identidade nacional e da
cultura, ao enfraquecimento da tecnologia e à baixa resolução dos complexos conflitos sociais
(TRINDADE, 1999).
Mesmo na versão nacional da referida crise, tem-se que as políticas governamentais
optaram por uma estratégia de incentivo à iniciativa privada, engendrando uma sintonia fina entre o
10 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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Ministério da Educação (MEC) e o pensamento do Banco Mundial e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), com vista a implantar a reforma universitária, cuja lógica da produtividade
transformou as universidades em instituições operacionais (CHAUÍ, 1999). Sob a mesma lógica da
produtividade, é fácil observar como os padrões de avaliação assumem muito mais prestígio do que
os de emancipação, isso acirra os desafios relacionados aos processos de formação, e envolve
seriamente os professores universitários.
Nessa contextualidade, parece que inovar pode ser uma maneira de reagir a um modelo
político que mostra-se perverso e se impõe, e no campo da docência universitária, significa
manifestar a vontade de tornar o ato educativo um fazer pedagógico que traduza a preocupação com
a formação do ser humano integral, autônomo, cônscio e emancipado.
O que se propõe é inovação, muito embora, como se sabe, em sua geração, a inovação
carregue o ônus da complexidade da iniciativa, não há como negar que convive-se com a urgência
de fazer vigorar uma perspectiva transformadora, se existe a imposibilidade de mudar a instituição
formadora, quem sabe iniciar pelos cursos formadores? Essa é a proposta desta reflexão, leva-se
em consideração a crise que envolve as universidades, em função das demandas por uma formação
que atenda o mercado de trabalho, mas entende-se que é preciso inspirar a reinvenção de cenários
pedagógicos tão inovadores quanto possível, aplicar-se na criação e articulação de saberes que
respondam as exigências atuais quanto a formação, ao mesmo tempo ajudar na construção mais
dinâmica do pensar dos alunos. Quiçá, seja possível elaborar práticas pedagógica que ajudem os
sujeitos a superarem conformismos cognitivos e intelectuais, de forma que os alunos se tornam mais
criativos e interventivos no social (MORIN, 1991).
Docência universitária: uma perspectiva inovadora baseada na teoria da complexidade
Os pressupostos construídos historicamente para a docência universitária brasileira,
quando não traduzem uma concepção de docência alicerçada na compreensão epistemológica da
ciência moderna, remetem-nos à um grande paradoxo: o não-lugar da formação. Para o exercício da
docência na educação infantil, fundamental e média, por exemplo, há exigência legal de formação
específica o que não acontece quando se trata da educação superior.
Uma referência importante dessa discussão pode ser localizada no artigo 206 da
Constituição Federal (1988) e na Lei de Diretrizes e Bases - LDB (Lei 9.394/96), que exigem a
formação do professor em curso superior para os vários níveis de ensino, menos o universitário.
Esse estado de coisas legitima a seguinte ideia: quem sabe fazer sabe ensinar.
11 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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Esse não-lugar de formação coloca a possibilidade de a docência universitária ser
realizada a partir de elementos que o professor traz de sua trajetória de aluno e/ou de esquemas
prévios e/ou da rotina que lhe é colocada, conhecimento que não é suficiente para o exercício da
docência, além de reforçar significativamente uma epistemologia da prática, cujo principal objetivo
parece ser apenas “montar o aluno” em ritmo fordista.
Um avanço nas discussões sobre a docência universitária já passa pela
profissionalidade, saberes, práticas, e por elementos não menos concretos, como: a tradição, a
cultura, a subjetividade dos envolvidos, valores, a política, a ampliação do ensino privado, os
marcos regulatórios do Estado e suas agências, a pressão das agências internacionais de
financiamento, a exigência da produtividade quantitativa, as exigências do mercado, o aumento da
carga de trabalho dos docentes, os baixos salários, e a desvalorização dos professores, aspectos que
se não fizerem parte das reflexões no campo da docência, faz com que ela seja vista como uma
profissão paralela, um “bico”.
Vale ressaltar que historicamente a licenciatura é um grau complementar e opcional, e
tem desaparecido dos cursos de formação, o que manifesta sua desvalorização, bem como deste
campo de atuação profissional. Como conseqüência, a preocupação com os conteúdos pedagógicos
ficou distante da formação do professor universitário, mas é preciso reconhecer que se existe a
necessidade de saberes próprios (do professor) para o exercício da profissão, no ensino superior,
também há a necessidade de um saber pedagógico presente, o que hoje é estudado pelo campo
denominado - pedagogia universitária.
Pode-se afirmar que os estudos produzidos no campo têm ajudado o professor
universitário a “ser professor”, refletir sobre essa função, ocupar o espaço da docência consigo
mesmo, com seus pares (estudantes e outros professores) e com a instituição em que trabalha. Neste
mesmo campo tem ganhado destaque a temática inovação, ela tem recebido a atenção de vários
pesquisadores que atuam no campo da pedagogia universitária, sob vários aspectos: currículos dos
cursos, atividades extracurriculares, processos de parcerias com a sociedade, formas de gestão,
novas tecnologias, estágio, e outros, estudos que também indicam que a compreensão do que vem a
ser inovação na docência exige vários olhares (FREIRE e SHOR, 1986; CONTRERAS, 1997;
SACRISTAN, 1999; VEIGA, RESENDE E FONSECA, 2002; VEIGA e CASTANHO, 2000;
CUNHA, 2001; CUNHA e LUCARELLI, 2007).
Neste sentido, para definir o conceito de inovação que aqui relaciona-se à docência, é
preciso destacar as contribuições de Freire (1975, 1980, 1992, 1996), no que se refere às ideias
pedagógicas contemporâneas inovadoras. Mesmo não tomando a docência inovadora como ponto
12 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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particular de análise, Freire delineou uma revolucionária forma de ver a educação e seus agentes.
Para ele somente um professor compromissado com um projeto pedagógico e político-social pode
promover uma docência inovadora com vistas a superar a atual racionalidade técnica. Em parceria
com Schor, traçou elementos fundamentais para que os professores entendessem melhor a
construção de seus saberes profissionais, valorizando os chamados saberes da prática, além de
promover uma educação com base em uma perspectiva historicamente construída (FREIRE e
SCHOR, 1986), o que contribui significativamente com o processo ensino aprendizagem dos alunos
e implemento da criatividade e criticidade na sala de aula.
Fechando a articulação docência universitária e inovação, tem-se em Lucarelli (2000) o
destaque da necessidade de alterações nas relações unilaterais de uma classe tradicional. Para a
autora, ao mudar as relações unilaterais, alteraria-se o sistema intersubjetivo do estudante como
sujeito, ainda que a aula universitária não esgote todas as suas estruturas subjetivas. Sendo assim,
entende-se que a inovação na educação universitária, passa a reunir ideias de progressão, de novo,
de intencionalidade, de aperfeiçoamento consciente, e emancipação.
Com Fuenzalida (1993) e Cunha (2004; 1998) constroi-se o conceito de inovação que
significa promover a ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os
procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; significa
também desenvolver uma gestão participativa, por meio da qual os sujeitos do processo inovador
(sala de aula) sejam protagonistas da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados.
Também significa promover a mediação entre as subjetividades dos envolvidos e o conhecimento,
englobando a dimensão das relações e da sensibilidade, do respeito mútuo, dos laços que se
estabelecem entre os sujeitos e o que se propõe a conhecer.
Em termos de concepção pedagógica, ainda é necessário acrescentar a proposta de
Hargreaves (1998, p. 218): uma docência inovadora necessita ter como “princípio a colaboração
mútua”, o que nos encaminha para a compreensão de que a mudança no âmbito da docência
universitária inclui, ao mesmo tempo, mudanças paradigmáticas, mas importante mudanças nos
sujeitos e em suas formas de pensar e agir.
Parece que este é um ponto crucial, ou seja, as características de uma ação docente
inovadora ligam-se ao esforço humano, mas sem dúvida, no nosso tempo histórico passa também
pelo alicerçar novas bases epistemológicas, como sugeridas pelo paradigma da Complexidade.
Para esclarecer, julga-se que os caminhos propostos pela Complexidade podem ajudar
na constituição de uma nova forma de pensamento – o complexo. Esse seria importante norteador
de novas condutas, estruturante de importantes formas de ver, ser, estar e agir no mundo. Em Morin
13 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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(1991) tem-se que a complexidade exige um pensamento que não separa, não é disjuntivo como o
pensamento cartesiano (que separa em pares cada vez menores para compreender o objeto), ao
contrário, une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos da vida
humana. Resumidamente, trata-se de um pensamento que integra os diferentes modos de pensar,
que considera todas as influências recebidas (internas e externas) na construção do conhecimento e,
ainda ajuda a enfrentar a incerteza e a contradição presentes no viver, reforçando o conviver
solidário.
A base epistemológica da complexidade advém de três teorias surgidas na década de
1940: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas, cujos impactos e aplicações
práticas só se manifestariam mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Com bases nestas três
teorias (informação, cibernética e sistema), o pensamento complexo se sustenta, metaforicamente,
através de três princípios: o dialógico, recursão e o hologramático. Para Morin (1999) o princípio
dialógico permite manter a dualidade no seio da unidade. O termo dialógico quer dizer que duas
lógicas, dois princípios que estão unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade, como por
exemplo claro-escuro, amigo-inimigo, na lógica cartesiana esses e muitos outros seriam pares
inconsiliáveis, mas com este princípio é possível e esperado o diálogo dos opostos. Neste sentido,
esse princípio ajuda o pensamento associar dois termos, complementares e antagônicos, ao mesmo
tempo, pois para a dialogia os antagonismos podem ser estimuladores e reguladores.
O segundo princípio é o da recursividade organizacional, a partir do qual os produtos e
os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz. Por exemplo, a
sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas, essa mesma sociedade, uma vez
produzida, retroatua sobre os indivíduos e os produz.
Com o princípio hologramático, entende-se que não só as partes estão no todo, mas
também o todo está nas partes. A ideia do holograma nos ajuda a compreender que o indivíduo é
parte da sociedade e a sociedade está presente em cada indivíduo por meio da linguagem, da
cultura, e de valores.
Essa separação entre os princípios é apenas didática, pois estes articulam-se
simultaneamente buscando a superação da lógica linear, aquela velha conhecida instituída nos
processos formativos. O pensamento complexo aspira a superação de uma prática pedagógica
organizada nos moldes da disjunção dos pares binários, tais como: simples-complexo, parte-todo,
local-global, unidade-diversidade, particular-universal, subjetivo-objetivo, procura envolver a
superação da descontextualização do agir pedagógico tão enraizada na universidade, da subdivisão
14 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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do conhecimento em áreas, institutos e departamentos, nas quais cada um delimita suas próprias
fronteiras epistemológicas (MORIN, 2001).
A partir das bases epistemológicas da complexidade para o educar, busca-se propor
reconceitualizações da visão de homem, de realidade, de sociedade e de mundo. Ontologicamente o
sujeito complexus é um ser não-dicotomizado, possui natureza multidimensional íntegra, torna-se
capaz de superar a fragmentação do saber, ir além das perspectivas limitadoras. A realidade,
sociedade e o mundo são constituídos por processos complexos, dinâmicos e relacionais, formados
por objetos interconectados por fluxos de energia, matéria e informação.
A educação nesta lógica tende a ser emancipadora, porque busca favorecer a reflexão do
cotidiano, além de estabelecer o diálogo entre os envolvidos no processo e entre estes e o
conhecimento, entre os diversos tipos de pensamento, assegurando o pluralismo e a diversidade de
opiniões e pontos de vista. Pode-se inferir que ainda estimula um modo de pensar marcado pela
articulação (MORIN, 2002a), algo desejado e esperado nos cursos formadores.
Petraglia e Almeida (2006, p. 03), no livro Estudos de Complexidade, assumem que a
relação entre educação e complexidade é um dos caminhos para a superação da fragmentação do
saber, para tanto destacam sete ideias complementares e interdependentes para a reforma do
pensamento linear, aspecto que julga-se importante para o campo da docência universitária: a
compreensão das noções de “homo complexus”; a utilização de diversas linguagens no contexto
educacional; presença da dialogia na educação; suporte na transdisciplinaridade; convivência com a
incerteza; desenvolvimento e aprendizagem da autoética e reforma do pensamento. Neste sentido, o
humano complexus é também sapiens e demens na relação consigo, com o outro e com o universo,
tem sua consciência de mundo ampliada, o que o ajuda na reelaboração do pensamento.
Para educar reconhecendo esse homo complexus, pressupõe-se que se leve em
consideração as diferenças e peculiaridades de cada sujeito, por isso exige-se que o professor utilize
diversas linguagens na sala de aula, de modo a facilitar a aprendizagem. Não é difícil perceber que a
heterogeneidade da sala de aula assinala para a necessidade de se desenvolver atividades e métodos
também diversos, a fim de se atingir o maior número de sujeitos.
Essas ideias ajudam compreender que para ser possível a inovação nos termos da
complexidade, existe a necessidade metodológica da transdisciplinaridade. Para maior discussão
sobre o tema, o termo trans de transdisciplinaridade significa o que está [...] entre as disciplinas,
através delas e além, dando uma ideia de transcendência e de inter-relações no mundo e na vida. A
transdisciplinaridade propõe o diálogo entre as diferentes áreas do saber, de forma a articular a
multidimensionalidade e a multireferencialidade do ser humano e do mundo (NICOLESCU, 2000).
15 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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Morin (2002b) trata a transdisciplinaridade como esquemas cognitivos reorganizadores
que atravessam as disciplinas. Em situações práticas, o termo transdisciplinar tem sido empregado
para designar projetos dos quais participam mais de uma disciplina, no sentido de um trabalho
comum para buscar respostas amplas e criativas. Para a complexidade, o diálogo entre os diferentes
tipos de pensamento propicia a transcendência do aqui e do agora na elaboração do conhecimento
complexo.
A convivência com a incerteza, ainda segundo a mesma teoria, passa a ser
compreendida tal como formulado por Heisenberg, físico quântico e um dos fundadores da
mecânica quântica (CHIBENI, 2005), ou seja, tem sua base assentada na falibilidade lógica, no
surgimento da contradição e na indeterminabilidade da verdade científica. O pensamento complexo,
que é desprovido de fundamentos de certezas absolutas, permeia os diversos aspectos do real, por
isso ele pode nos ajudar a viver no risco e na incerteza, que é o grande desafio da condição humana
na contemporâneidade. Neste sentido, a universidade, e é claro seus professores, encontram-se
diante do desafio de preparar o sujeito para conviver com essa dualidade, seus limites e
possibilidades.
O desenvolvimento e aprendizagem na universidade envolve o aspecto técnico, mas
muito mais do que isso, envolve sua auto-eco-organização (PETRAGLIA e ALMEIDA, 2006). Isso
passa necessariamente pela reforma do pensamento, essa pode promover conscientização que,
segundo Freire (1980, p. 26), manifesta-se como um teste de realidade, ou seja, quanto mais
conscientização, mais se “des-vela” a realidade, mais se penetra na essência do objeto frente ao qual
se quer analisar.
Por essa mesma razão, mesmo que Freire esteja dialogando a partir de uma base
epistemológica dialética, assume-se com ele que a conscientização não pode existir fora da
“práxis”, ou melhor, sem o ato ação-reflexão, que constitui uma unidade dialética, de maneira
permanente, o que caracteriza o modo de ser ou de transformar o mundo que distingue os homens.
Assim entendendo, a universidade pode ser (e deve ser) uma instituição inovadora, ao
mesmo tempo conservadora, regeneradora e geradora. Conservadora porque integra, memoriza e
ritualiza saberes, ideias e valores culturais; regeneradora, pois rediscute e atualiza saberes e os
propicia às novas gerações; e geradora porque cria, elabora e processa os novos saberes que serão
herdados sucessivamente. Neste sentido, apresenta-se como campo frutífero para a reflexão sobre a
docência e inovação, na qual é possível articular os pressupostos epistemológicos da Teoria da
Complexidade, como base de novas ações pedagógicas no sentido de promover um pensar mais
abrangente, multidimensional e contextualizado.
16 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
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08-23, Jul. 2013/Jan. 2014.
A experiência universitária: o processo de ensinagem desenvolvido na disciplina de Oratória
Com base no referencial proposto, empreendeu-se uma pesquisa que visa identificar
processos de inovação na universidade. Se tem buscado analisar as práticas pedagógicas
consideradas inovadoras por discente, em função dos objetivos alcançados no processo ensinoaprendizagem.
Neste artigo relata-se a análise dos dados referentes a experiência com alunos cursistas
da disciplina Metodologia do Ensino e Oratória, do curso de Psicologia da Faculdade Estácio de Sá,
Campus Goiânia, ano de 2013. Procurou-se verificar se os pressupostos da Teoria da Complexidade
poderiam auxiliar na redefinição das práticas pedagógicas no entendimento dos alunos e dos
resultados alcançados no processo ensino-aprendizagem. Explora-se como os alunos elaboram e
vivenciam essas novas práticas, além de buscar identificar o que eles valorizavam nas práticas
inovadoras pautadas na proposta do paradigma da complexidade.
Buscando promover o processo de (trans)formação dos alunos e revitalizar uma
formação unificadora, a disciplina teve como objetivo geral “compreensão sobre técnicas de
orátória, desde o preparo da apresentação passando pela postura do orador até as técnicas de
argumentação. Capacitar e desinibir pessoas para apresentação em público” (PLANO DE ENSINO
– CCA0340 - ESTÁCIO DE SÁ, p. 1). A ementa da disciplina foi organizada em: 1) História da
arte oratória; 2) Técnicas de relaxamento e concentração; 3) Qualidades do orador; 4) Como
preparar uma boa apresentação; 5) Tipos de ouvintes; 6) Esquemas de uma apresentação; 7)
Organização de racioncínio; 8) Estratégias de argumentação. Para desenvolver esses conteúdos,
optou-se por uma metodologia de trabalho que contemplou a participação dos alunos, , envolvendo
aulas expositivas dialogadas, seminários de leitura, interpretação e discussão de textos, estudos
dirigidos, apresentação de filmes, debates, aulas práticas com filmagens, e análise de desenpenho
dos estudantes.
o desafio consistia em criar situações de aprendizagem com toda a turma de forma
criativa, crítica e inovadora, que possibilitassem alcançar os objetivos propostos pelo plano de
ensino, constituindo-se, assim, um processo de ensinagem. A carga horária da disciplina
contemplava 40 h/semestrais, sendo desenvolvida em um encontros semanal.
Após apresentação da proposta de trabalho construída pela Professora da disciplina, o
grupo de alunos apresentou-se coerente e com compromisso em relação a seu papel enquanto
17 MAGALHÃES, Amanda Oliveira. Docência no ensino superior: uma experiência formativa e inovadora.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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acadêmicos, concordando com as propostas inovadoras a cada encontro, buscando superar e criar
novas situações de aprendizagem coletiva, e aprofundar conceitualmente as discussões.
Buscando um movimento de inovação, propos-se na disciplina algumas atividades como
por exemplo: “Quiz da persuasão”, que envolvia o sorteio de temas diversos, não conhecidos pelos
alunos, a partir dos quais eles deveriam criar uma apresentação utilizando as técnicas até então
estudadas (postura, fala, entonação, movimentação, vestimenta, teatrialização, etc.), a fim de
motivar e persuadir os ouvintes. Utilizou-se como temas norteadores os capítulos do livro “A arte
de ser leve” de Leila Ferreira, Editora Globo, 2010. Os temas escolhidos foram: O sorriso de Mona
Lisa, Velório drive-through, Tarja Rosa, O medo de e-mail, Ah! Os celulares, Ovos de grife, A tal
da felicidade, Travesseiro de penas, A obrigação de ser feliz, Um lugar chamado trajédia, dentre
outros. As atividades gerava a abertura para que os alunos construíssem suas ideias nas aulas em
cada encontro, ou seja, rompendo com o modo tradicional de dar aulas, inovando para o refletir
sobre e o fazer aulas, o que é esperado atualmente no contexto da formação unversitária. Os alunos
ainda desenvolveram a atividade “Oratória e Mídias, Seminário de leitura, Banners com a
exposição de vários conteúdos, Planejamento e Organzação de evento – Chá com ideias”, evento
este que finalizava a proposta da disciplina.
A inovação também pela permissão para que as aulas fossem ministradas por estratégias
dinâmicas, assim como sugerem Anastasiou e Alves (2005), rompendo com o perfil das aulas
ministradas de forma tradicional que, infelizmente, na sua maioria, ainda segue o modelo cartesiano
de reprodução do conhecimento, com exceção das aulas que são realizadas através da discussão e
debates de textos, mas não avançando além disto.
Em função do processo ensino-aprendizagem desenvolvido, solicitou-se aos grupos que
participaram da disciplina e das atividades que respondessem um questionário sobre a proposta
empreendida. Neste questionário os estudantes foram instigados à reflexão, discussão sobre a
inovação nos seus cursos de formação; as perguntas que nortearam esse momento foram: 1) o que
significa inovar em sala de aula; 2) tem professores inovadores? O que eles fazem?; 3) práticas
inovadoras são importantes em sala de aula?; 4) O processo ensino-aprendizagem pode ser
facilitado com práticas pedagógicas inovadoras?; 5) descreva práticas pedagógicas inovadoras que
voce gostaria que se repetissem em outras matérias.
De posse das respostas foi possível perceber que as bases teóricas da complexidade é
frutífero marco de reflexão, instigou um novo entendimento da relação professor-alunoconhecimento, sem dissociar essa reflexão dos dilemas, exigências e desafios mais amplos da vida
acadêmica coletiva.
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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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Para uma síntese reflexiva
Parte-se do pressuposto que o ensino superior parece padecer de dificuldades singulares,
primeiro produzir conhecimento, segundo formar pessoas capazes, competentes, íntegras, críticas,
via-de-regra, essa proposta é constituída com base em noções simplificadoras, dicotomizadas que
implicam em consideráveis mutilações não só no conhecimento produzido, mas infelizmente nas
pessoas que são formadas.
Assim entendendo, a proposta de inovação no campo da docência universitária da
disciplina de Oratória, inicia pelo entendimento que exite uma pluralidade de teorias e metodologias
desenvolvidos nos cursos formadores com poucas articulações e diálogos entre si, o que nos coloca
o questionamento: até que ponto os professores podem desenvolver estudos e teorizações
condizentes com a complexidade que sustentem suas práticas pedagógicas?
Não se tem uma resposta direta, mas a pesquisa desenvolvida ajudou a perceber que o
paradigma simplificador muito presente no ensino superior tem sido questionado pelos alunos e
pelos professores. Pois já se entende, ou pelo menos já se dicute, que não se tem propiciado a
construção de uma visão complexa sobre os fenômenos, e isso tem dificultado entre os alunos a
construção de possíveis caminhos para a constituição de uma nova compreensão epistemológica
nesse sentido.
Aqui propõe-se a compreensão complexa, inspirada particularmente pela obra de Edgar
Morin implica não apenas nas possíveis articulações entre as distintas contribuições, mas,
principalmente, na contextualização dessas articulações no cenário de questões epistemológicas
fundamentais como as que dizem respeito às disjunções clássicas do paradigma ocidental, como a
relação sujeito-objeto.
A experiência vivenciada na disciplina provou que é possível favorecer uma formação
que destaque a importância não só o desenvolvimento técnico, mas a produção de conhecimento
para quem dela participa; e também que é muito importante avançar na articulação entre sujeito e
objeto de estudo, pensamento e ação, teoria e prática, homem e sociedade, homem e relações, de tal
forma que o estudante possa avaliar, criticar e ensinar um viver, uma experiência relacional cujo
teor envolva necessariamente sua história de vida e a dos seus estudantes. Abaixo alguns
comentários dos alunos:
[...] evoluí bastante, apesar de ter um pouco de timidez, com o processo acabei evoluindo
bastante. Aprendi muito com as apresentações que foram propostas (Sujeito A).
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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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[...] a disciplina me ajudou a ser menos sério e mais simpático, mudou minhas formas de
relações sociais. Isso faz parte de uma boa integração com o público (Sujeito B).
[...] no início a proposta foi difícil para mim, mas aprendi a me expressar publicamente.
Essa disciplina ensina muito mais que técnica de falar em público, aprendi a perceber e
relacionar comigo e com os outros (Sujeito C).
Distancia-se, assim, uma docência voltada para o simples treinamento, e se aproxima do
entendimento de novas formas de interação consigo, com outros, e com a vida. As diversas formas
de feedback devolvidas aos estudantes ajudou a construir os conhecimentos por meio de ações sobre
os objetos, a realidade, o que otimizaria a aprendizagem de maneira em geral.
[...] Meu aprendizado foi muito reforçado, com o feedback dado pela professora, pelas
orientações e liberdade criativa, pude evoluir e aprender muito (Sujeito E).
Ainda é necessário pontuar as resistências por parte de alguns estudantes. Essas foram
trabalhadas no grupo, o que gerou o entendimento de que as resistências eram fruto de uma
representação ancorada numa perspectiva tradicional de educação, qual seja, a de que a sala de aula
não é espaço de discussões que envolvam questões para além do racional.
[...] No começo foi difícil, mas a exigência da disciplina me ajudou a romper com muitas
dificuldades. O professor tem que despertar a curiosidade do aluno, tem que instiga-lo a
participar, busca o melhor de cada aluno (Sujeito G).
Gradativamente, os estudantes foram compreendendo que as atividades propostas
demandavam novas formas de pensar e proceder. Não se pode negar que houve um processo de
aceitação e cooperação entre todos, também foram estabelecidas várias negociações que exigiram o
entendimento das diferenças e tolerância nas relações – realização de diferentes atividades que
exigiam encontro, treino, gravação de videos, etc.. O processo envolveu regulação, autoprodução e
auto-organização, tendo os futuros professores relatado que foi necessário compreender não só os
outros parceiros e suas dificuldades, mas também sua própria dificuldade relacionada às questões
afetivas, para poder resolvê-las (MAGALHÃES, 2011).
Os relatos abaixo trazem a importância das práticas inovadoras no ensino superiror. Ser
inovador é:
[...] mudar as formas de dar aula, criar uma forma que facilite o entendimento dos alunos
(Sujeito H).
[...] é saber interagir com os alunos, trazer coisas novas do contexto e atualidade para
comparar com o assunto abordado (Sujeito J).
[...] propor novas maneiras de propor os conteúdos e avaliar o aluno de maneira integral
(Sujeito B).
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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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[...] trazer novidades para o contexto da aula, motivar o aluno para que ele se interesse pelo
conteúdo (Sujeito A).
Resumidamente os relatos destacaram que os momentos da aula foi possível
contemplar o que o “aluno sabe”, porque as aulas eram dialógicas; valorizavam o diálogo. As
relações em sala de aula eram positivas o que facilitava o domínio afetivo e do cognitivo, alguns
alunos destacaram a importância da relação professor-aluno. Também havia a promoção de várias
formas de se conduzir os conteúdos, o que é necessário para estimular a independência dos alunos
criando condições para uma visão crítica da sociedade e da profissão; estimular a participação;
manifestar uma postura ética e política clara. Eles alegaram que foram estimulados a serem
autênticos e verdadeiros. Ainda afirmaram que a oportunidade de lidar com o estranho, inusitado e
diferente, favoreceu o posicionar, colocar idéias e opiniões sinceras, mesmo que estas sejam
divergentes do grupo.
Pensar a relação docência universitária e inovação requer uma permanente reconstrução
epistemológica e metodológica, na busca de promover uma atividade auto-organizativa que
assegure que o aluno é uma organização viva e contextualizada. Esse entendimento não visa à
acumulação de conhecimentos, mas pretende que os alunos dialoguem com os conhecimentos,
reestruturando-se e retendo o que é significativo.
Certamente, a mudança no campo da docência universitária exige consolidar novas
bases epistemológicas (novos paradigmas) como aqui se refletiu na forma da teoria da
complexidade, para ressignificar o conhecer, o ser, o conviver, e o aprender a apreender, mas
enquanto isso não acontece é necessário dar voz aos alunos, buscando atender o que têm
reinvindicado para otimizar importantes interlocuções nos processos formativos.
Espera-se que o que foi discutido aqui ajude na organização das aulas e nas relações
interpessoais tornando o desenvolvimento da disciplina inovador, como um processo de ensinagem.
Sem querer oferecer receitas, apenas apontamentos para reflexões, percebe-se que inovar pode ser
concebido no ensino superior como proposto por Souza (2008, pp.60-71): (1) considerar os
conhecimentos prévios dos alunos, que consiste em ponto de partida para a reelaboração e
ampliação de construções mais significativas, ao invés da justaposição de conhecimentos; (2)
aprendizagem cooperativa, definida em criação de estratégias para construção recíproca de
aprendizagens individuais e coletivas, incentivando a cooperação para novos saberes e fazeres; (3)
metacognição, processo de consciência reflexiva sobre o modo próprio de pensar, de apreender; (4)
motivação, enquanto atitude intrínseca ao aprendiz, que deve ser estimulada por professores
também motivados que desenvolvem projetos inovadores; (5) autonomia, criticidade e criatividade:
atitudes interdependentes, que no processo de ensinagem constituem em princípios metodológicos
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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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para a formação de um sujeito ativo, integral e competente; e (6) relações dialéticas entre
pensamento e emoção, articuladas para formação integral do sujeito que pensa e que sente.
A forma como as práticas pedagógicas foram organizadas envolveu a tentativa de
auxiliar todos os estudantes na elaboração de novas atividades, inclusive formas de solução de
conflitos, e tomada de consciência sobre as questões abordadas. Foram trabalhadas diversas
estratégias de atuação, mas a vivência do processo, a colaboração, o trabalho individual e coletivo, a
solidariedade, o respeito às angústias, aos erros, foram aspectos que marcaram gradativamente as
conquistas do grupo. Foi possível perceber que ampliou-se a consciência, ao mesmo tempo em que
os estudantes mostravam ser possível uma nova reflexão sobre a realidade que os cercavam.
Com as práticas desenvolvidas em sala de aula foi possível entender que as diretrizes
assumidas em cada actividade foi pensadas com intencionalidade para gerarem condições para
propiciar o desenvolvimento da reflexividade, flexibilidade, criticidade, criatividade, autonomia,
raciocínio lógico, afetivo, resiliência e espírito de investigação. Como afirma Morin (1999, p.182),
nós, sujeitos humanos, somos um “centro de sensibilidade que se torna centro de sentimento e de
afetividade”.
Entende-se que houve a integração de um novo fluxo de ser, de saber, de conhecer, de
sentir, de fazer, de conviver, de sensibilizar-se, e aprender a participar. Os pressupostos da teoria da
complexidade auxiliaram na compreensão de que esse processo acaba envolvendo as pessoas em
círculos de reflexão sobre a vida, o cosmos, o que acaba religando as pessoas.
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ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
DINHEIRO ELETRÔNICO E AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL
Cleito Pereira dos Santos1
RESUMO
ABSTRACT
O capitalismo transnacional do século XXI, rompe
os limites territoriais e comerciais impostos pelo
papel-moeda e paulatinamente tem estendido sua
esfera de ação incorporando novos mecanismos
tecnológicos que redefinem o sistema de pagamento
em termos da substituição de moedas e cheques
como forma predominante de transações no interior
da economia. O dinheiro eletrônico tem substituído
o dinheiro tradicional de forma eficaz. As transações
decorrentes de sua utilização têm demonstrado que
os caixas eletrônicos e as máquinas registradoras em
estabelecimentos comerciais dispensaram a relação
vendedor-cliente e/ou bancário-cliente e instituíram
a relação máquina-cliente como suporte de novas
formas de controle e hierarquia tanto na empresa
quanto na sociedade.
The transnational capitalism of the century, breaks
the boundaries and commercial taxes by paper and
has gradually extended its sphere of action
incorporating new technological mechanisms that
redefine the payment system in terms of replacing
coins and checks as the predominant form of
transactions in within the economy. Electronic
money has replaced the traditional money
effectively. Transactions arising from their use have
shown that ATMs and cash registers in shops
waived the vendor-customer relationship and / or
bank-customer relationship and instituted the client
machine as supporting new forms of control and
hierarchy both in company and in society.
Keywords: Capitalism, Social Control, Electronic
Palavras-Chave: Capitalismo; Dinheiro Eletrônico; Money, Domination, Technology
Controle Social; Dominação; Tecnologia
No capitalismo contemporâneo o desenvolvimento do sistema de pagamentos conduziu
ao aparecimento do dinheiro eletrônico. Essa forma de realização da riqueza conduz a um novo
padrão de organização do movimento do capital. Bancos, empresas e organizações estabelecem
relações a partir da rapidez e da dinâmica da nova forma de dinheiro, o dinheiro eletrônico. Aqui
abordaremos a questão do dinheiro eletrônico e as formas de controle instituídas pela sua aplicação.
O dinheiro, na sua forma tradicional ouro ou papel-moeda, representa a coerção estatal
sobre um conjunto de ações previamente determinadas. O Estado-nação ergue seu poder a partir da
capacidade de emitir moeda e controlar o seu fluxo no interior da economia. O dinheiro funciona
como o articulador da economia nacional, da circulação de mercadorias e simbolicamente
representa e dá status ao seu possuidor. A forma tradicional de representação do dinheiro está
restrita a um conjunto de elementos que garantem a autonomia do Estado nacional e o
1
Doutor em Sociologia Política/UFSC. Professor da Faculdade de Ciências Sociais/UFG. [email protected]
25 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
funcionamento da economia. Estes elementos, mobilidade da riqueza, impessoalidade nas
transações econômicas, extensão territorial, dentre outros, fundamentam a organização social.
No capitalismo o dinheiro assume uma importância vital para a expansão das relações
econômicas. O dinheiro transpõe fronteiras e assim expande o capitalismo para todo o globo
terrestre. A capacidade de criar riquezas está associada à mobilidade que o dinheiro possibilita à
circulação da mesma. Dinheiro, portanto, associa-se aqui a expansão constante da riqueza e à
circulação de mercadorias à escala global.
A emergência do dinheiro eletrônico situa-se na segunda metade do século XX. O
capitalismo gestado no pós-Segunda Guerra Mundial vivia sua época de ouro. Produção material e
consumo de massa a todo vapor, revigoravam a economia dos países capitalistas centrais e permitia
a expansão em busca de novos mercados. A acumulação de capitais assume a forma fordistakeynesiana que se estende do período pós-Segunda Guerra até a metade dos anos 1970. (Hobsbawn,
1995; Chesnais, 1996; Harvey, 2003).
Para Aglietta (2002), o dinheiro eletrônico poderá vir a substituir o dinheiro escritural
tendo em vista sua maior eficiência em transmitir maior número de informações e ao mesmo tempo
porque permite a identificação mais segura dos utilizadores. Nesse sentido, os cheques poderão
desaparecer no futuro transformando o dinheiro escritural em mero objeto do passado.
Por outro lado, a questão é mais complexa quando se trata do dinheiro fiduciário,
expresso pelo uso de moedas e notas. O usuário de dinheiro eletrônico é facilmente identificável; o
utilizador do dinheiro fiduciário não. O segundo, oferece anonimato e segurança. O dinheiro
eletrônico é centralizado através da interligação eletrônica e personalizada; o fiduciário é
descentralizado, mecânico e anônimo.
Nesse sentido, Aglietta aponta que, no futuro,
(...) o porta-moedas electrónico pode ser utilizado em vez do dinheiro fiduciário em casos
limitados, mas não o deverá substituir completamente. É mais provável que o porta-moedas
electrónico ocupe uma posição intermédia entre o dinheiro fiduciário e formas já existentes
de transferência de dinheiro entre contas bancárias, de forma a alargar o leque de meios de
pagamento.” (Aglietta, 2002, p. 77-8).
As mutações nas formas de pagamento têm início na época de ouro do capital. A partir
dos anos 1950 as empresas passam a transacionar, embora de forma limitada, com cartões de
papelão que autorizam os clientes a efetuarem compras em lojas previamente autorizadas. Este tipo
de cartão inicialmente disponibiliza compra de serviços tais como transportes, restaurantes e hotéis.
Posteriormente, avança-se para a efetuação de um conjunto maior de operações.
Segundo Weatherford (1999), a empresa Diners Club foi a pioneira no lançamento do
cartão de crédito nos EUA. A criação de formas de pagamento alternativas ao sistema padrão papel-
26 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
moeda transformará o contexto das relações de troca e as inovações serão de tal importância que
despesas dos usuários passam a ser relacionadas com o limite de crédito do cartão. O cartão
personifica uma relação social entre o usuário, o dinheiro (dinheiro plástico) e os estabelecimentos
comerciais aptos a realizar as operações financeiras consolidadas com o consumo de bens e
serviços.
Esta fase inicial do desenvolvimento de novas formas de pagamento, que coincide com
o desenvolvimento do capitalismo na segunda metade do século XX, significou a capacidade dos
agentes do capital em solucionar uma questão prática: a intensificação dos fluxos monetários e a
correspondente dificuldade dos indivíduos em portarem determinados valores para tipos de serviços
específicos. Nesse sentido, a invenção do cartão de crédito se associa à busca de praticidade nas
formas de pagamento, dispensando a presença de dinheiro convencional. Por conseguinte, a história
do dinheiro plástico tem início em um período de plena expansão do capital e do consumo de
massa. Dessa forma,
(...) em 1950, a Diners Club criou o primeiro cartão de crédito moderno. Esse cartão de
crédito era aceito em 27 dos melhores restaurantes do país e era usado originalmente por
ricos homens de negócios como forma conveniente de cobrar despesas relacionadas a
viagens e entretenimento. (...). Os primeiros cartões Diners Club eram apenas de papelão
com o nome do cliente em um dos lados e do outro uma lista dos restaurantes em que era
válido. Em 1955, a Diners Club mudou para cartões plásticos, lançando assim uma
tendência monetária totalmente nova na cultura de consumo. (Weatherford, 1999, p. 231).
Desde então, o dinheiro plástico conheceu as mais variadas evoluções. Ainda nos anos
1950 os bancos iniciaram a emissão de cartões de crédito. Em 1958, o Bank of América criou o
BankAmericard que a partir de 1977 se transformou em Visa. Posteriormente, anos 1990, este
cartão se transformou no mais usado em escala mundial. Atingindo cerca de 12 milhões de
estabelecimentos e estando em circulação cerca de 400 milhões de cartões. (Weatherford, 1999, p.
231).
A crise de acumulação dos anos 1970, passagem para a acumulação flexível,
intensificou ainda mais o desenvolvimento das formas de pagamento. O dinheiro eletrônico, aparece
em um contexto de flexibilização da produção e do trabalho e de intensificação do consumo de
massa da era do toyotismo. A dinâmica do capital, à medida que procura superar os próprios limites
do modelo de acumulação, oferece respostas para a continuidade de sua reprodução ampliada. O
dinheiro eletrônico (cartão de crédito e débito, cartões inteligentes, etc.) se inscreve no contexto da
ampla financeirização da sociedade. Movimento este marcado pelo remodelamento dos sistemas
produtivo-financeiro.
A emergência do dinheiro eletrônico ocorreu de forma hesitante, segundo Bernardo
(2004). Para este autor, a implantação do sistema de débito e crédito a partir do processamento
27 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
eletrônico das informações contidas em um cartão magnético decorreu de maneira mais rápida nos
EUA. A década de 1970 é decisiva como marco inicial da emergência dessa nova forma de dinheiro
no capitalismo. Sendo assim,
(...) os ensaios iniciais de dinheiro eletrônico - definido aqui como os cartões de crédito e de
débito e a extensão do dinheiro contabilístico graças a processos eletrônicos - foram muito
hesitantes. O primeiro caixa bancário eletrônico, capaz não só de transferir fundos
eletronicamente mas ainda de dispensar dinheiro material e de aceitar depósitos em
dinheiro material , entrou em funcionamento em 1970 nos Estados Unidos, e passados oito
anos havia ainda apenas 21.000 terminais eletrônicos instalados por instituições financeiras,
dos quais só 7.700 eram caixas bancários. Em 1981, contavam-se nos Estados Unidos
20.000 caixas eletrônicos (...). No ano seguinte estavam instalados em todo mundo 70.000
caixas eletrônicos, dos quais 26.000 situavam-se nos Estados Unidos, onde já havia em
1993 mais de 40.000 caixas e cerca de 6 milhões de cartões de débito. Em meados desse
ano contavam-se na Grã-Bretanha mais de 4.600 caixas eletrônicos, mas o seu nível
tecnológico era ainda bastante rudimentar e eles estavam longe de efetuar todas as
operações que eram já correntes nos caixas norte-americanos. Foi a partir de então que se
acentuou a expansão dos caixas eletrônicos, até chegar aos níveis hoje conhecidos.
(Bernardo, 2004, p. 140).
Não resta dúvida que a expansão do sistema de cartões de crédito ampliou as bases do
endividamento em escala estratosférica. Tal sistema dispensa a existência do dinheiro tradicional no
ato da compra ou do consumo e posterga a preocupação do cliente com o saldo devedor. Assim, a
economia instituída pelo dinheiro eletrônico é a economia da dívida permanente e do consumo
diário e frenético.
Costa (2004), analisando a chamada “sociedade de controle”, enfatiza que na era das
tecnologias informacionais e da linguagem digital a cifra (senha) substitui a assinatura e o número
tidos como os mecanismos de controle usuais até então. A sociedade de controle pode ser definida a
partir da emergência de novas tecnologias que alteram o padrão de dominação societal. De acordo
com Benites (2004, p. 291):
O advento da ‘sociedade de controle’ marca a mudança de uma forma de uma forma de
organização societal marcada por técnicas e saberes que forjaram o homem confinado,
individualizado, produtor descontínuo de energia, para uma forma na qual o controle é de curto
prazo, contínuo e ilimitado, uma sociedade de comunicação rápida e instantânea.”
Em suma, a sociedade de controle representa a mudança estrutural nas formas de
comunicação no capitalismo contemporâneo. Instrumentos tecnológicos e comunicacionais revelam
as novas formas de controle vigente. Senhas, câmeras, e-mail, dinheiro eletrônico, cartões variados,
celulares, etc. compõem o universo da dominação do capital em escala global. Dominação tanto
sobre o universo do trabalho quanto do lazer e do ócio. Estamos diante da nova cartografia da
dominação do capital. (Costa, 2004).
28 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
O dinheiro eletrônico se inscreve nessa nova cartografia do controle. Se por um lado, “o
dinheiro papel é caro e sem controle em sua circulação”, por outro lado, “o dinheiro eletrônico,
além de reduzir os custos, acaba gerando mais controle sobre os indivíduos e a circulação do
capital. O papel moeda é anônimo, o dinheiro eletrônico não.” (Costa, 2004, p. 167).
As empresas já dispõem de amplos meios para controlar a ação dos trabalhadores. O
dinheiro eletrônico é mais um desses meios explicitados no estabelecimento de perfis a partir do
consumo e das transações financeiras realizadas pelos trabalhadores. Os fluxos de dinheiro expõem
as ações daqueles que o usam, uma vez que a identificação das transações e do usuário ocorre no
momento da própria transação. Coloca-se também a questão da própria mobilidade dos
trabalhadores.
A mobilidade no espaço e no tempo passa a ser controlada pela identificação do usuário
através das transações realizadas no decorrer de um período. Novamente cabe chamar a atenção
para o fato das transformações ocorrerem de modo desigual no âmbito da economia transnacional.
Nos países de capitalismo avançado, a sociedade de controle opera de modo mais visível do que no
capitalismo periférico.
Ainda de acordo com Weatherford (1999), algo de novo se instaurou com a chegada do
cartão de crédito. O elemento pessoal presente nas transações com papel moeda é suprimido e a
relação estabelecida é com o administrador do cartão que irá julgar se o usuário pode ter ou não ter
o cartão com determinado limite de crédito. Ao mesmo tempo, a emergência do cartão ampliou a
capacidade consumo e, conseqüentemente, das transações monetárias. Dinheiro passou, então, a ter
sua capacidade de circulação ampliada: as restrições são eliminadas.
O cartão de crédito expandiu o crédito, mas também eliminou o elemento pessoal. Por
meio do pagamento de uma taxa, a empresa de cartão de crédito agora assumia a responsabilidade e
o risco de julgar a validade do crédito de um consumidor. A difusão dos cartões de crédito que teve
início nos anos 60 provocou importantes mudanças nos padrões de compras e pagamento dos
consumidores. O cartão de crédito isentou seu dinheiro de restrições temporárias permitindo que as
pessoas usassem o dinheiro que elas ainda não haviam ganho ou recebido, mas que esperavam
receber em uma data posterior. (Weatherford, 1999, p. 232).
Esse movimento de expansão do crédito revela o caráter disciplinador e controlador do
dinheiro eletrônico. À medida que o possuidor do cartão de crédito está liberado para estabelecer
uma relação de crédito-débito baseado em salário ou renda futura, ele se relaciona em uma rede de
relações dominada prioritariamente pelas empresas detentoras do controle do cartão de crédito.
A emissão do cartão de crédito e de débito está sujeita ao cadastro do cliente que coloca
á disposição da empresa um conjunto de informações que irão constituir um valioso banco de
29 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
dados. Essas informações são manipuladas pelas empresas em vários sentidos. Desde as
informações cadastrais mais comuns, passando pelas preferências de consumo, o tipo do consumo
registrado no ato da transação, as qualificações do titular do cartão.
As tecnologias de informação e da comunicação desenvolvidas nos últimos anos
colaboram para acentuar o controle através do processamento contínuo e eficaz dos dados do
cliente. Segundo Bernardo (2004), indica também a magnitude do controle estabelecido pelas
empresas, constituindo bancos de dados que disponibilizam a qualquer momento um montante
infinito de informações sobre os usuários.
O registro de todos os artigos comprados com cartão de crédito, facilitado pela
generalização dos códigos de barras, é processado e guardado pela firma emissora do cartão. Em
1992, com 52% do volume mundial total das transações com cartões de crédito e com mais de
trezentos milhões de cartões em circulação, aceites em cerca de dez milhões de estabelecimentos
comerciais, a Visa era, tal como continua a ser, a maior firma do ramo. Ora, um software
sofisticado, instalado em 1993, permite que a Visa analise todas as transações efetuadas e constitua
um banco de dados com as preferências e as qualificações de cada um dos detentores dos seus
cartões. Além do montante colossal de informação de que dispõem as firmas emissoras de cartões
de crédito, note-se ainda que nos casos em que as chamadas telefônicas são efetuadas com este tipo
de cartão a coleta de informações multiplica os resultados. (Bernardo, 2004, p. 153). (Grifos do
autor).
O dinheiro eletrônico também estabeleceu uma estratificação e hierarquização dos
usuários. As empresas logo estabeleceram uma forma de diferenciar os possuidores dos cartões de
crédito. Diversos tipos e classes de cartões foram lançados para estratificar os usuários. O dinheiro
eletrônico cria, então, formas de hierarquias e controle associadas ao prestígio e tipos de cartões que
o usuário possui. Para Weatherford (1999), as empresas nos EUA logo descobriram o significado da
estrutura de classes e prestígio e o modo de pagamento adequado para a reprodução de tal estrutura.
Assim,
(...) reconhecendo a importância do modo de pagamento na estrutura de classe e prestígio
do país, os fabricantes de cartões de crédito de plástico freqüentemente criavam anúncios
enfatizando o prestígio como benefício integral ao uso de um determinado cartão. Anúncios
freqüentemente mostram cartões de crédito sendo usados por pessoas bem vestidas em
locais luxuosos com clubes de campo, hotéis e restaurantes finos, navios luxuosos,
limusines, e viagens aéreas em primeira classe, e os anúncios são repletos de palavras como
exclusivo, refinado, somente mediante convite e pretígio. (Weatherford, 1999, p. 233).
(Grifos do autor).
Esta não é uma particularidade norte-americana. Em todos os países onde operam, as
empresas procuram segmentar a clientela de acordo com a estrutura de classes e os símbolos de
30 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
status e prestígio presentes em cada um deles. Esta segmentação corresponde ao sistema de
hierarquias e controles existentes em cada país e, também, em escala global. Ainda segundo
Weatherford,
(...) nos prósperos e reluzentes anos 80, a American Express tinha aproximadamente meio
milhão de titulares de cartões ouro e precisava refiná-los por categorias. Durante um
período em 1984 a empresa tentou um serviço ainda mais exclusivo que chamou de black
card, mas esse deu lugar ao cartão platinum em 1985. A MasterCard e a Visa acrescentaram
seus próprios cartões platinum, gold e regular em meados dos anos 90. O sistema de cartões
de crédito platinum, gold e regular correspondiam às classes superiores, média e
trabalhadora na estratificação de débitos nos Estados Unidos. (Weatherford, 1999, p. 234).
(Grifos do autor).
Portanto a segmentação dos cartões de crédito representava a reprodução da estrutura de
classes da sociedade capitalista e a hierarquização e controle das despesas, dos costumes e das
preferências dos clientes. Na extensão da sociedade tal prática tornou-se predominante à medida
que a utilização do cartão de débito e de crédito se expande de forma a institucionalizar práticas de
transações caracterizadas pela utilização de uma forma de dinheiro, o dinheiro eletrônico. Hoje
podemos afirmar que o dinheiro eletrônico estendeu sua influência na sociedade de uma tal maneira
que é impossível realizar certas transações e aquisições sem sua utilização. Em outros termos,
(...) o dinheiro eletrônico alcançou uma tal hegemonia que se torna difícil o acesso a certos
serviços básicos quando não se possui cartões eletrônicos de crédito e de débito. Em países
onde não existem carteiras de identidade, os cartões de crédito cumprem regularmente essa
função, adquirindo portanto um estatuto de documento oficial, e em qualquer parte do
mundo tornou-se impossível a hospedagem num hotel, mesmo de categoria média, se não
se apresentar logo de entrada em cartão de crédito. (Bernardo, 2004, p. 141).
Esta expansão dos meios de pagamentos eletrônicos, notadamente o dinheiro eletrônico,
transformou as relações de compra e venda, colocando as transações comerciais em outro patamar.
Se o dinheiro tradicional, material, implicava a posse direta do objeto dinheiro, agora com o
dinheiro eletrônico pode-se realizar as transações sem imediatamente possuir renda ou salário que
garanta o pagamento futuro. Cria-se dinheiro ao comprar ou vender e, posteriormente, o cliente
efetua o pagamento. Isso tem conseqüências radicais para os assalariados, uma vez que salários
mensais e despesas mensais não estão mais separados, se confundem. Para Bernardo,
(...) com a generalização do dinheiro eletrônico, para a grande maioria dos assalariados nos
países mais evoluídos deixou de haver uma separação clara entre o salário mensal e as
despesas mensais. Existem dois fluxos paralelos, um dos salários e outro das despesas, e
tudo pressiona os assalariados a não distinguirem nem os períodos nem os ciclos relativos
desses fluxos. Recentemente, os bancos começaram mesmo a substituir os cartões usados
pelos seus clientes por outros cartões, que retiram automaticamente dinheiro das contas a
prazo fixo, quando não existem saldos suficientes nas contas correntes. Assim, o
endividamento tem-se tornado progressivamente mais fácil, a tal ponto que o consumo
passou a assentar no crédito. Ora, uma situação de endividamento sistemático contribui
para reduzir a capacidade de resistência dos assalariados, e prejudica portanto a sua aptidão
31 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
para impor aumentos de salários ou para se opor a despedimentos coletivos. (Bernardo,
2004, p. 141).
A gestão da força de trabalho no capitalismo contemporâneo realiza-se amplamente
apoiada em métodos de convencimento e repressão característicos do modo de regulamentação
atual da força de trabalho. O uso da tecnologia amplia e reforça a vigilância e o controle,
expandindo-os para além do universo do trabalho. A vida social, o espaço físico, o tempo recebem
novas colorações na era da sociedade digital. O crédito e o correspondente endividamento
funcionam como poderosos mecanismos de pressão e de controle sobre o universo do trabalho.
A expansão da utilização de cartões expõe o fato de cada vez mais os indivíduos
estarem lançando mão dos mesmos para realizar compras e outras transações. O volume de
transações implica na existência de um mercado eletrônico que tende a substituir o dinheiro
convencional, na forma papel moeda, pelo dinheiro eletrônico expresso em cartões inteligentes
(Smart Cards) com chip interno capaz de armazenar um conjunto de informações e combinando as
funções de cartão de crédito, cartão de débito, cartão de identificação pessoal, autenticação digital,
dentre tantas outras.
O capitalismo transnacional do século XXI, rompe os limites territoriais e comerciais
impostos pelo papel-moeda e paulatinamente tem estendido sua esfera de ação incorporando novos
mecanismos tecnológicos que redefinem o sistema de pagamento em termos da substituição de
moedas e cheques como forma predominante de transações no interior da economia. O dinheiro
eletrônico tem substituído o dinheiro tradicional de forma eficaz. As transações decorrentes de sua
utilização têm demonstrado que os caixas eletrônicos e as máquinas registradoras em
estabelecimentos comerciais dispensaram a relação vendedor-cliente e/ou bancário-cliente e
instituíram a relação máquina-cliente como suporte de novas formas de controle e hierarquia tanto
na empresa quanto na sociedade.
Seguindo a análise de Costa (2004), uma nova lógica está se instalando no capitalismo.
A “cidade digital” possibilita que tanto em casa quanto no trabalho, e através de uma rede
interconectada, possamos acessar infinitos produtos e serviços sem nos deslocarmos. O
desenvolvimento das tecnologias de informação e da comunicação, nos últimos anos, criou um
universo composto da junção da tecnologia com o aparato da produção – material e imaterial - e
deste com o consumo. Esse aspecto é central na era do capitalismo flexível dos países
desenvolvidos. As contradições afloram à medida que países e classes sociais são integrados de
modo desigual à lógica do capital transnacional.
32 SANTOS, Cleito Pereira dos. Dinheiro eletrônico e as novas formas de controle social. Docência no
ensino superior: uma experiência formativa e inovadora. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da
Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 24-32, Jul. 2013/Jan. 2014.
REFERÊNCIAS
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e Desenvolvimento Econômico. Lisboa: Ministério da Economia, 2003. pp. 37-84.
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dos mecanismos estatais de controle. Sociologias, Porto Alegre, ano 6, nº12, jul/dez 2004.
BERNARDO, João. Democracia Totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo:
Cortez Editora, 2004.
CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996.
COSTA, Rogério da. “Sociedade de Controle”. São Paulo em Perspectiva, 18(1). São Paulo, 2004.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 13ª. Edição. São Paulo: Loyola, 2003.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,
1995.
JINKINGS, Nise. Trabalho e Resistência na “Fonte Misteriosa”: os bancários no mundo da
eletrônica e do dinheiro. Campinas / SP: Ed. Unicamp/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
SCHILLER, Dan. A Globalização e as Novas Tecnologias. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
WEATHERFORD, Jack. A História do Dinheiro. São Paulo: Negócio Editora, 1999.
33 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO VISANDO
A INCLUSÃO DIGITAL DE PESSOAS ADULTAS
Flávia Valéria C. Braga Melo
Diórgenes dos Santos**
Junielson Dias Barbosa***
INTRODUÇÃO
Este texto pretende discutir a questão da exclusão de pessoas em geral, especialmente,
acima dos quarenta anos de idade, do mundo digital e do mundo do trabalho informatizado.
O tema em questão refere-se ao Projeto de Extensão realizado na Unidade Universitária
de Aparecida de Goiânia da UEG no ano de 2013, intitulado Inclusão Digital e Assessoria de
Emprego para pessoas acima de quarenta anos de idade. Pretendia-se oferecer curso de informática
básica, palestras e assessoria no intuito de auxiliar o público alvo na recolocação no mercado de
trabalho, visando assim, a qualificação destas pessoas a fim de que sejam aumentadas as
oportunidades de gozar de melhores condições de vida.
Incialmente, este artigo pretende abordar o mundo do trabalho globalizado e
competitivo, além da necessidade do conhecimento sobre informática básica para se obter
qualificação profissional e também apresentar as maiores dificuldades dos brasileiros com idade
madura de conseguir emprego, quando esses fazem parte do grupo de trabalhadores sem
qualificação.
Haverá ainda, sob a forma de relato, a descrição de algumas experiências de ensino e
aprendizagem vivenciadas no projeto de extensão para expor algumas dificuldades e êxitos, que
foram percebidos pelos acadêmicos extensionistas no decorrer das aulas e palestras à comunidade
convidada. Assim, o artigo discorre sobre a execução e trajetória dessas aulas, pelo desejo de se

Graduada e especialista em Sociologia; mestre em Ciências da Religião pela PUC (GO). Professora de Sociologia da
UEG de Aparecida de Goiânia, da Faculdade Nossa Senhora Aparecida - FANAP e do Colégio Prevest. É coordenadora
do Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de
Aparecida de Goiânia. ([email protected])
** (Coautor) Acadêmico do curso de Administração de Empresas da UnU de Aparecida de Goiânia e participa do
Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de
Aparecida de Goiânia.
*** (Coautor) Acadêmico do curso de Administração de Empresas da UnU de Aparecida de Goiânia e participa do
Projeto de Extensão Inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas acima de 40 anos de idade na UnU de
Aparecida de Goiânia.
34 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
obter respostas para uma variedade de questões que aguçaram a curiosidade dos acadêmicos que,
mesmo antes do projeto se encerrar, começaram buscar por respostas e novas discussões.
1 NOVAS TECNOLOGIAS E EXCLUSÃO DE PESSOAS
Há no país, um significativo número de pessoas sem acesso digital. Apesar da pesquisa
não ser recente, mas apenas para se ter uma ideia, de acordo com divulgação da Unesco (2008),
mais da metade dos brasileiros (54,4%) nunca havia usado um computador. Menos de 20% tinha o
equipamento em casa, e apenas 14,5% dos domicílios com computador estavam ligados à rede
mundial. Foi o que disse a Pesquisa sobre o Uso Domiciliar das Tecnologias de Informação e
Comunicação – a chamada TIC Domicílios –, realizada pelo Instituto Ipsos Opinion, a pedido do
Comitê Gestor da Internet (CGI) em 2005 e 2006.
Inclusive, promover e tornar acessível o acesso das novas tecnologias a todos,
representa um dos objetivos da ONU (Organização das Nações Unidas), para o desenvolvimento e
bem-estar dos povos no século XXI. A ONU estabeleceu, portanto, oito metas (até o ano de 2015)
que visam erradicar a pobreza extrema e amenizar problemas sociais graves como fome, incidência
de doenças, analfabetismo, dentre outros. Assim, a inclusão digital faz parte do oitavo objetivo
estabelecido como Meta para o Milênio, que é: “avançar no desenvolvimento de um sistema
comercial e financeiro aberto, previsível e não discriminatório [...], tornar acessíveis os benefícios
das novas tecnologias, em especial de informação e de comunicações.” (ONU, 2013).
A acessibilidade na internet é uma das formas de garantir a cidadania das pessoas. De
acordo com o Programa Nacional de Inclusão Social (BRASIL, 2013), “a inclusão digital é um dos
caminhos para atingir a inclusão social. Por meio dela, as camadas mais carentes da população
podem se beneficiar com novas ferramentas para obter e disseminar conhecimento, além de ter
acesso ao lazer, à cultura e melhores oportunidades no mercado de trabalho”.
De acordo com Viana (2009), a informatização dos serviços sociais é uma consequência
crescente do capitalismo em expansão. Assim, a informatização amplia a camada de trabalhadores
que já passaram pelo processo de inclusão digital, que exige cada vez mais a incorporação do saber
técnico no processo produtivo, embora esteja contribuindo para a produção de mais-valor
capitalista.
De acordo com Cantú (2003), para alcançar a qualificação por meio da educação
profissionalizante, o Brasil tem se apoiado no engajamento institucional de algumas entidades
públicas e privadas, visando uma efetiva oferta de formação profissional, com o intuito de
desenvolver a massa de trabalhadores aptos ás novas tecnologias e demandas organizacionais.
35 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
Ainda, a autora explica que, a preocupação com a qualificação profissional faz parte do
sindicalismo brasileiro desde os anos 1990. Dentre elas estão elencadas: formação continuada para
trabalhadores desempregados; iniciativas de reciclagem de trabalhadores; cursos técnicos para
filhos e associados abertos à comunidade; cursos de formação profissional para a população adulta
de baixa renda; alfabetização de jovens e adultos e, ainda, formação profissional de dirigentes.
Para fazer comparação entre o tempo de escolaridade dos brasileiros e o acesso digital,
tem-se o levantamento do IBGE (2010) que aponta que o nível de instrução dos usuários da Internet
foi acentuadamente mais elevado que o das pessoas que não utilizaram esta rede. O número médio
de anos de estudo dos usuários da Internet foi de 10,7 anos, enquanto o das pessoas que não
utilizaram esta rede ficou em 5,6 anos. Observa-se, portanto, que quanto maior o tempo de
escolaridade dos brasileiros, maior o acesso à internet. Logo, a escolaridade de uma pessoa, está
intrinsecamente vinculada ao conhecimento, habilitação para o mercado de trabalho, capacidade de
dominar as ferramentas da informática e o aumento da perspectiva de vida do indivíduo em relação
ao futuro.
Embora certas dificuldades de trabalho e qualificação profissional façam parte daquelas
pessoas consideradas maduras, numa faixa etária acima de quarenta anos idade, um estudo realizado
pelo Ministério da Previdência (BRASIL, 2008), observou que o emprego com carteira assinada
aumentou nas duas pontas: entre os mais jovens e os que têm acima de 50 anos. O levantamento
sugere que houve uma mudança no comportamento das empresas: em 2007, houve um crescimento
do número de jovens que conseguiram o primeiro emprego e de trabalhadores com mais de
cinquenta anos que voltaram ao mercado de trabalho formal. Entre as pessoas que tinham entre
dezesseis e dezenove anos, foram contratados quase 1,9 milhão de jovens, um aumento de 20,54%
em relação a 2006. Entre os trabalhadores com mais de cinquenta anos, o maior crescimento foi na
faixa dos cinquenta e cinco aos cinquenta e nove anos: mais de 2,1 milhões de pessoas conseguiram
emprego, 11% acima do ano anterior. Isto aponta que há mais vagas de emprego no Brasil para
pessoas mais maduras do que antes. Este levantamento sugere, portanto, que é possível aumentar
esse percentual de pessoas adultas e não mais consideradas jovens, no mercado de trabalho, se estas
pessoas fossem mais qualificadas. E, ainda, supõe que boa parte destas pessoas, encontra-se fora do
mercado em decorrência de fatores como: idade, baixa escolaridade, exclusão digital, longo período
de desemprego e dificuldades financeiras em procurar qualificação profissional, etc.
Segundo o IBGE (2010), a maioria dos profissionais brasileiros tem entre vinte e cinco
a quarenta e nove anos de idade, compõe 62,5% dos trabalhadores no país. A pesquisa revelou
também que o mercado brasileiro registrou aumento de profissionais com cinquenta anos ou mais,
representando um grupo de 21,5 % do total de pessoas que trabalham.
36 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
Segundo Malaquias (2003), hoje, "navegar" é imprescindível, sobretudo, dominar as
tecnologias de informação. Sem embargos, informação é poder. O analfabetismo digital é um
grande fator de exclusão, que resulta em sérias implicações sociais, políticas, jurídicas e
econômicas.
Logo a inserção de um público, que até certo ponto possui pouca ou nenhuma afinidade
com o mundo virtual, é algo que atualmente se faz extremamente necessário, para sua integração
junto a sociedade tanto a nível pessoal ou profissional.
As pessoas da terceira idade necessitam de um tempo maior e seguem um ritmo mais
lento para aprender a manipular e assimilar os mecanismos de funcionamento desses artefatos
(Kachar, 2003; 2009)
Sendo assim ao propiciarmos um ambiente amigável, onde possam se sentir seguros,
permitimos que assim eles se familiarizem e consigam ampliar seus horizontes, com relação a este
novo mundo.
Ainda segundo Kachar (2003), o uso dessa ferramenta permite a pessoas com mais
idade, uma melhora das condições de interação social e estímulo à atividade mental.
Malaquias (2003) afirma que, nosso país não pode perder essa chance histórica e
singular que é se desenvolver, concomitantemente, com o desenrolar da revolução da Informática.
De forma que se faz necessário, consequentemente, seja dada a oportunidade de acesso aos
brasileiros à educação visando a inclusão digital, no sentido que de só assim haverá o exercício
democrático da cidadania plena.
2 DESCRIÇÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO
O avanço da tecnologia cresce a cada dia e a ausência desse conhecimento nos deixa
alheios do mundo digital e globalizado. Segundo Carreazo (2010) a tecnologia é uma necessidade
absoluta, dela não podemos escapar. Ela tem um papel muito grande na maioria dos aspectos de
nossas vidas. Em outras palavras, ela responde a maioria dos problemas da humanidade. A
importância da tecnologia está apontando para maior conforto de utilização em qualquer forma. Ela
sempre orienta para a facilidade na vida.
Nesse sentido, o conhecimento da informática se tornou algo indispensável tanto para
atender às necessidades do mercado de trabalho quanto para atender às necessidades pessoais.
Porém, a falta do conhecimento da informática na educação fez com que parte da população
brasileira chegasse à fase adulta ou madura, sem ao menos “tocar” em um computador. Pensando
neste desafio, na tentativa de inserir pelo menos uma pequena parte desta população no mundo da
tecnologia, o projeto foi planejado.
37 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
Inicialmente, é importante descrever algumas informações relevantes sobre esse projeto
de extensão. Com a finalidade de promover inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas a
partir de quarenta anos de idade, ele possui a participação de 11 acadêmicos extensionistas,
pertencentes aos cursos de Administração de Empresas e Ciências Contábeis da UnU de Aparecida
de Goiânia e assiste um total de 18 pessoas da comunidade, com apenas duas desistências ao longo
do semestre. Iniciado em setembro de 2013, o projeto ocorre duas vezes na semana, com carga
horária de 2h/a por dia, no período vespertino. Os encontros são intercalados, numa aula ocorre aula
de informática básica e na outra ocorre a assessoria de emprego (com palestras sobre
empregabilidade, dicas e noções de como procurar emprego e nele se manter). Por esse motivo, os
acadêmicos extensionistas dividem-se em duas equipes e fazem revezamento entre as aulas, embora
boa parte desses alunos tenha optado pela participação e atuação nos dois encontros semanais,
situação gerada pelo envolvimento ativo dos mesmos no projeto e percepção destes da necessidade
da presença de um grupo maior de monitores para alcançar a demanda dos aprendizes.
São os próprios acadêmicos que, na condição de monitores fazem a pesquisa
bibliográfica, elaboram as aulas, organizam os slides, organizam teatros e dinâmicas motivacionais
e organizam o lanche nos intervalos das aulas (a intenção do café com biscoitos é de promover um
ambiente mais acolhedor para aliviar a tensão no momento do aprendizado).
Observou-se durante as aulas que já foram ministradas uma grande dificuldade entre as
pessoas que estão aprendendo informática básica, muitas delas não sabiam sequer ligar um
computador e chegaram a relatar que nunca haviam feito isso anteriormente. Foram detectadas
algumas dificuldades consideradas simples tais como: manusear o mouse, posicionar as mãos no
teclado, minimizar ou fechar um arquivo que esteja sendo utilizado, etc. A necessidade de
acompanhamento destas pessoas de forma individualizada era e ainda continua sendo constante.
Dentre os membros da comunidade que participam do projeto, estão pessoas com idade acima de
sessenta anos de idade, que embora possuam muita dificuldade, não demonstram resistência em
aprender. E por isso, para alcançar a aprendizagem de todos, os monitores realizam sucessivas
pausas até que todos confirmem que conseguiram executar a atividade sugerida e, ainda, algumas
atividades ficam pendentes para a próxima aula.
Todavia, o declínio de algumas atividades não inviabiliza a apropriação e o domínio do
recurso tecnológico, mas exige um contexto educacional específico que atenda às condições de
aprender sobre a máquina e por meio dela explorar outras possibilidades de desenvolvimento do
indivíduo. As pesquisas sobre a aprendizagem e utilização do computador, por idosos, no Brasil,
são ainda escassas, por isso a metodologia de ensino e aprendizagem específica, para eles, apresenta
muitos aspectos ainda a serem estudados (Kachar, 2003).
38 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
As pessoas com uma maior idade, como é o caso de nossos alunos, apresentam uma
maior dificuldade com relação ao manuseio, visualização e memorização das informações que
dizem respeito ao computador, porém o ambiente que é proporcionado durante as aulas permite
uma interação entre os alunos e o estabelecimento de uma amizade entre eles e os tutores, assim
sendo, as dificuldades que foram apresentadas ao longo do tempo acabaram diminuídas ou até
sanadas.
Entretanto, alguns autores salientam a necessidade de se planificar propostas
metodológicas direcionadas para a população idosa, tendo em atenção o seu processo cognitivo, o
ritmo que é mais lento, os recursos que se tornam mais limitados e as restrições sensoriais próprias
do envelhecimento. Mais especificamente, no que concerne ao ensino das TIC (Tecnologias da
Informação e Comunicação) a idosos, é necessário promover um ambiente de aprendizagem próprio
para os indivíduos em questão, que passa pela criação de uma interação com a máquina de acordo
com as suas necessidades e condições físicas (PEREIRA; NEVES, 2011).
Foi criado um ambiente onde podemos corroborar para a diminuição das dificuldades
dos alunos e também foi elaborada uma metodologia de ensino participativa e com uma interação
aluno-professor muito grande, de modo que conseguimos trazer uma segurança aos alunos, para
apresentarem suas dificuldades e aceitarem nosso auxilio. Observou-se que, durante o semestre, a
assiduidade e envolvimento dos acadêmicos envolvidos no projeto foram acima do esperado.
Dentre alguns relatos feitos pelos alunos monitores podemos mencionar:
[...] fui um dos primeiros acadêmicos a fazer a inscrição neste projeto, confesso que me
inscrevi com muita insegurança pois sempre fui tímido, calado, nunca fui de interagir com
pessoas que não conhecia. [...] posso afirmar que este projeto também mudou a minha vida,
no sentido de me ajudar a falar em púbico, hoje consigo falar com segurança com as
pessoas que estão olhando para mim. [...] Me sinto honrado de fazer parte deste projeto,
fico realizado de ver estas pessoas com o sorriso no rosto pela satisfação de aprender algo
novo, isso não tem preço, este projeto da professora me fez perceber que podemos mudar o
mundo algum dia. (Relato do acadêmico Jandersson Ferreira de Paula no dia 13 de
dezembro de 2013, atua como monitor do Projeto de Extensão Inclusão Digital e Assessoria
de Emprego)
[...] O projeto de extensão – Inclusão Digital é uma experiência que levarei comigo para a
vida toda. Não sabíamos que ajudar as pessoas é tão bom, o mais legal é que são coisas
simples que modificam a vida das pessoas.
[...] O projeto ajudou os acadêmicos da universidade a se desenvolverem na apresentação
em público e no diálogo com as pessoas. E, sem contar que ajudamos a população que
nunca nem teve contato com o computador a manuseá-lo apesar das dificuldades por ser o
primeiro contato com o mesmo. Mais que no final deu tudo certo e os alunos adoram sentar
em frente o computador e usá-lo. Foi uma coisa tão interessante, que nunca tinha
vivenciado. No percorrer das aulas criamos muito afeto e carinho uns pelos outros, isso foi
incrível a relação entre aluno e professor em sala de aula motiva nós acadêmicos
participantes do projeto e aos alunos da região que estão aprendendo de forma básica a
mexer e manusear um computador. [...](Relato da acadêmica Lorena Xaves no dia 15 de
dezembro de 2013, atua como monitora do Projeto de Extensão Inclusão Digital e
Assessoria de Emprego).
39 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
Em adição, a utilização de computadores e das tecnologias de informação e
comunicação a eles agregados, abrem uma nova perspectiva de resgate e inclusão social, por
contribuírem para o aumento da autoestima das pessoas idosas já que, além de ampliar os horizontes
da comunicação, aumenta sua interação social e independência, como também a legitimação do
idoso enquanto cidadão crítico e reflexivo. (Sales; Xavier; Bayer, 2003).
Com o projeto pretendia-se trazer um novo leque de informações aos alunos, que agora
têm um maior conhecimento sobre essas novas tecnologias e podem se inserir de uma maneira mais
acentuada nesse novo ambiente. Permitindo um aumento da interação social com os demais
usuários da rede, sendo que agora se tornaram mais independentes com relação ao manuseio da
máquina.
Assim, possibilitando às pessoas que fazem parte de uma faixa etária mais madura,
meios de se familiarizam com as novas tecnologias, estima-se que consigam acompanha-las.
Podemos então, demonstrar esses mecanismos de uma forma participativa e acolhedora,
transformando e dando novos horizontes aos alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o desemprego seja um fator preocupante para todas as faixas etárias, ele é mais
grave entre as pessoas que já passaram dos 40 anos de idade.
Entretanto, adequadamente preparadas, as pessoas desempregadas que se encontram no
universo da faixa etária proposta, certamente terão reduzido o tempo de desemprego. É sabido que
sem a devida qualificação, elas possuem um tempo maior que as aquelas consideradas jovens para
conseguir um novo trabalho. Por este motivo, é que emerge a necessidade de viabilizar o mais
rápido possível, oportunidade de trabalho a essas pessoas. É indubitável que, mesmo em proporção
pequena, este projeto esteja alcançando essa possibilidade. Por isso é que a extensão numa
Instituição de Ensino Superior é considerada um de seus pilares.
Tem-se observado maior autonomia dos alunos inscritos, não somente no uso do
computador, como também no manuseio de caixas eletrônicos, celulares e outros aparelhos
eletrônicos, assim, a experiência do projeto faz-se satisfatória. Essa autonomia é libertadora, gera
sentimento de pertencimento à sociedade em sua era pós-moderna e torna a ação extensionista
relevante.
Os relatos deixados neste texto não são conclusivos, por isso, ficam as considerações de
que a inclusão digital é necessária e viável e, principalmente, desejada por aqueles que não se
sentem aptos a manusear uma simples operação num computador. Por isso, fica aqui a descrição de
40 MELO, Flávia Valéria C. Braga; SANTOS, Diórgenes dos; BARBOSA, Junielson Dias. Experiências de
um projeto de extensão visando a inclusão digital de pessoas adulta. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 33-40, Jul. 2013/Jan. 2014.
alguns relatos e discussões, como possibilidade de reflexões, sugestões, mudanças e retomadas de
posições.
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trabalho. SP: Cortez, Universidade Estadual de Campinas, 1998.
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41 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA
Nildo Viana1
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo visa discutir o mito e sua
manifestação no mundo moderno. As formas do
mito na sociedade capitalista são analisadas a partir
dos conceitos de ideologia e utopia. A conclusão é a
de que os mitos modernos podem ser manifestar
tanto como ideologia quanto como utopia, sendo que
a classe social que é responsável pela sua produção
oferece a tendência ideológica ou utópica, tal se
percebe nas manifestações analisadas do mito como
antissemitismo e como messianismo.
This article aims to discuss the myth and its
manifestation in the modern world. Forms of myth
in capitalist society are analyzed based on the
concepts of ideology and utopia. The conclusion is
that modern myths can be manifested as both
ideology and utopia, and social class that is
responsible for its production offers the utopian or
ideological bias, as can be seen in the
demonstrations analyzed the myth as anti-semitism
and how messianism.
Palavras-Chave: Mito, Ideologia, Utopia, Classes Keywords: Myth, Ideology, Utopia, Social Classes,
Sociais, Messianismo, Antissemitismo.
Messianism, Anti-Semitism.
O mito é uma das manifestações culturais mais antigas da humanidade. Apesar disso,
não recebeu a mesma atenção que outros fenômenos culturais. Uma das razões para isso é a
suposição, comum nas representações cotidianas, de que os mitos desapareceram na sociedade
capitalista, na qual a secularização e racionalização não permitiriam manifestações do “pensamento
primitivo”. Essa suposição, no entanto, pode ser questionada. Sem dúvida, os mitos na sociedade
moderna não poderiam se manifestar exatamente da mesma forma que nas sociedades simples ou
pré-capitalistas, mas a suposta racionalização total de nossa sociedade é uma ficção.
Por conseguinte, para saber se o mito se manifesta ou não na sociedade capitalista, é
necessário, em primeiro lugar, explicitar o que é um mito. Dentre as diversas concepções de mito
(LÉVI-STRAUSS, 1978; CASSIRER, 1985; GODELIER, 1982; ELIADE, 1989a)2, grande parte
assume um caráter ideológico, ou seja, são um sistema de pensamento ilusório que busca definir o
mito mas que acaba ofuscando o seu verdadeiro caráter (VIANA, 2011). Nesse sentido,
começaremos definindo mito para depois ver suas manifestações na sociedade moderna.
1
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
Sem dúvida, existem di versas outras abordagens do mito, mas não julgamos necessário citar todas elas. Para uma
análise crítica destas quatro abordagens do mito, cf. Viana (2011).
2
42 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
O primeiro ponto a se destacar é que o conteúdo do mito não se encontra nele mesmo,
pois uma representação não pode se autonomizar em relação àqueles que a produziram, ou seja, os
seres humanos. Segundo Marx:
(...) “As representações que estes indivíduos elaboram são representações a respeito de sua
relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria
natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são expressão
consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações de atividades, de sua produção,
de seu intercambio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas
possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente
condicionados, em outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes
indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto
é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais
limitadas que daí resultaram” (MARX e ENGELS, 1982, p. 36).
Os mitos são representações que buscam explicar e conhecer o mundo, devido às
necessidades existenciais e sociais, e que servem para se atuar sobre a realidade reconhecida ou pelo
menos se situar diante dela sem ocorrer ricos desnecessários. Entretanto, existem várias outras
representações que buscam o mesmo objetivo, pelo menos motivos, e apresentam os mesmos
resultados.
Portanto, a definição do mito não pode se limitar a isto, pois é necessário delimitar a
forma específica em que ele se manifesta para compreendermos sua especificidade enquanto forma
cultural. Entretanto, não se pode autonomizar esta forma cultural, pois aí retornaríamos ao
formalismo (com todos os seus defeitos: descrição ao invés de explicação, generalização abusiva a
todas as formas parecidas de discurso, etc.). A definição do mito, assim como de todas as formas
culturais, deve se basear na unidade de seu “fundamento material” e sua forma específica de
manifestar tal fundamento.
A especificidade do mito encontra-se, como diria Hegel (1980), nas “imagens” ou na
“forma do figurativo” sob as quais se manifesta. A característica dom mito é que ele se manifesta
sob uma determinada “linguagem simbólica”. Entretanto, em antropologia muito se fala dos
“símbolos” e do “simbólico”, mas geralmente não se define esses termos. Concordamos com a
definição de Erich Fromm:
(...) “Costuma-se definir símbolo como 'algo que representa outra coisa'. Essa definição
parece um tanto decepcionante. Torna-se mais interessante, entretanto, caso nos
interessemos pelos símbolos que são expressões sensoriais da visão, audição, olfato e tato
como representando 'outra coisa' que é uma experiência interior, um sentimento ou
pensamento. Um símbolo dessa espécie é algo exterior a nós mesmos; o que ele simboliza é
algo dentro de nós. A linguagem simbólica é aquela por meio da qual exprimimos
experiências interiores como se fossem experiências sensoriais, como se fosse algo que
estivéssemos fazendo ou que fosse feito com relação a nós no mundo dos objetos. A
linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior,
um símbolo de nossas almas e nossas mentes” (FROMM, 1983, p. 20).
43 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
Resta, então, esclarecer qual é a relação entre o símbolo e o que é simbolizado. E,
Fromm distingue três espécies de símbolos: o convencional, o acidental e o universal. O símbolo
convencional é aquele que aplicamos na linguagem cotidiana. Tomemos como exemplo a palavra
“mesa”: ela representa outra coisa, que é um objeto que nós vemos, tocamos e usamos. Qual é a
relação entre a palavra e o objeto? Não existe nenhuma relação inerente entre esta palavra e este
objeto. A única razão para tal palavra simbolizar tal objeto se encontra na convenção de dar o nome
de “mesa” a este objeto determinado, ou seja, determinado nome foi dado a determinado objeto por
convenção. Não só as palavras, mas também as imagens podem ser símbolos convencionais. Por
exemplo, uma bandeira que representa determinado país e foi adotado convencionalmente como
símbolo. Segundo Erich Fromm:
(...) “O oposto exato do símbolo convencional é o símbolo acidental, apesar de ambos
terem uma coisa em comum: não há relação intrínseca entre o símbolo e o simbolizado.
Suponhamos que alguém teve em certa cidade uma experiência dolorosa; ao ouvir o nome
dessa cidade, facilmente ligará o nome a um estado de espírito deprimido, tal como o
associaria a uma disposição alegre se a experiência tivesse sido agradável. Está claro nada
existir de um triste ou alegre na natureza da cidade: é a experiência individual ligada à
cidade que transforma em símbolo de um estado de ânimo”(FROMM, 1983, p. 21).
O símbolo universal, segundo Erich Fromm, apresenta uma relação intrínseca entre o
símbolo e o simbolizado. Fromm explica esta espécie de símbolo através do exemplo do fogo:
(...) “Ficamos fascinados por certas qualidades dum fogo aceso numa lareira. Antes de mais
nada, por sua atividade, ele muda constantemente, mexe-se todo o tempo, e no entanto há
constância nele: permanece igual sem ser o mesmo. Dá impressão de força, energia, graça e
leveza. É como se tivesse uma fonte inexaurível de energia. Quando usamos o fogo como
símbolo, descrevemos a experiência interior caracterizada pelos elementos percebidos na
experiência sensorial do fogo: o estado de espírito de energia, leveza, movimento, graça e
regozijo – às vezes outro desses elementos, predominando no sentimento” (FROMM, 1983,
p. 22-23).
Acontece que em determinadas sociedades certos símbolos universais mudam de
significado. O sol, por exemplo, nos países nórdicos assume um aspecto simbólico positivo devido
à existência abundante de água e todo o crescimento depender da luz solar enquanto que, nos países
tropicais, o sol assume um aspecto negativo, pois, devido seu calor intenso, lá ele se apresenta como
uma força perigosa da qual é necessário se proteger. Portanto, as experiências se manifestam
simbolicamente diferentes e por isso podemos dizer que existem diversos “dialetos simbólicos”.
Além disso, um mesmo símbolo pode ter mais de um significado, pois diferentes tipos de
experiências podem ser relacionados e associados a um mesmo fenômeno natural.
Qual é a relação destas três espécies de símbolos e linguagem simbólica? A linguagem
simbólica como expressão do “mundo interior” descarta o símbolo convencional, pois este não
possui os seus elementos fundamentais. O símbolo acidental, por sua vez, dificilmente pode ser
compartilhado por outros indivíduos e por isso é muito raro sua utilização nos mitos ou na
44 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
literatura, nos contos de fada, etc. Escritas em linguagem simbólica. Portanto, a linguagem
simbólica dos mitos utiliza, fundamentalmente, os símbolos universais.
Entretanto, não é suficiente definir o mito como uma “linguagem simbólica”, pois a
poesia também é uma linguagem simbólica e não é um mito. Embora o mito se utilize dos símbolos
universais isto não é privilégio seu. A especificidade do mito está não só no fato dele se manifestar
sob linguagem simbólica, mas na forma específica na qual realiza isto. Consideramos que esta
linguagem simbólica tem como características próprias: a) tal como colocou Mircea Eliade (1989a;
1989b; 1988), aqueles que produzem e reproduzem o mito acreditam dele como algo verdadeiro e,
além disso, sua reprodução se dá em coletividade, que é a dos seus produtores e reprodutores; b) o
mito realiza o processo de personificação e é desta forma que ele busca explicar o mundo.
Portanto, se formos definir os mitos em poucas palavras, diríamos que eles são
representações que buscam explicar e conhecer o mundo provocadas por necessidades existenciais e
sociais que servem para atuar sobre a realidade buscando controlá-la ou se situar diante dela. Essas
representações se manifestam sob uma linguagem simbólica que é considerada verdadeira pelos que
a produzem e reproduzem e que executa o processo de personificação e assim busca explicar o
mundo. Estas necessidades existenciais são as necessidades de resposta ao que Erich Fromm (1961)
chama de “dicotomias existenciais”, que são a posição do homem diante da morte, a sua
impossibilidade de desenvolver toda a sua potencialidade devido a curta duração da vida e o fato do
homem ser um ente individual orgânico (logo, sozinho) que só se sente bem ao lado de outros de
sua espécie. As necessidades sociais estão ligadas às relações dos homens entre si e com a natureza,
inclusive para satisfazer as suas outras necessidades (biológicas e psíquicas). Existe, obviamente,
um entrelaçamento entre esses tipos de necessidades.
Portanto, esse é o conteúdo do mito, sua “essência”. Mas, como dizia Hegel (1980), a
essência em sua manifestação concreta é existência. Por isso, o mito assume formas diferentes em
sociedades e tempos históricos diferentes. Os mitos nas sociedades simples tratam da origem do
cosmos, do homem, das instituições, etc. A dependência do homem em relação à natureza nestas
sociedades faz com que ela se torne o tema fundamental dos mitos, embora as relações sociais se
apresentem também como temas.
Tal como colocou Hegel (1980) e Godelier (1985), as mitologias nas sociedades simples
apresentam-se sob a forma do antropomorfismo. Os seres da natureza ganham características
humanas. Dentre essas características existe uma que é fundamental e que explica todas as outras: a
intencionalidade. O sol, a lua, o mar, etc. ganham intencionalidade, se tornam agentes. Essa
intencionalidade não difere em nada da intencionalidade humana, a não ser as “razões ocultas” que
movem as ações das divindades.
45 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
Resta saber os motivos que levam os homens a executar esse procedimento. Uma
explicação para isso foi dada por E. P. Tylor. Segundo Pierre Smith (1978), Tylor afirmava que
foram as ilusões do sonho que criaram a crença em almas e espíritos que, para os indígenas, tudo
povoam e assim fundaram os mitos. Estes seriam uma análise confusa da realidade. Os deuses e
heróis da mitologia seriam personificações de forças naturais explicadas por “doença da linguagem”
que permite a transformação de objetos inanimados em sujeitos de ação. Portanto, a explicação do
antropomorfismo se encontra nas “ilusões do sonho”. Esta explicação, entretanto, nos parece
inconsistente. Consideramos que a relação do homem com a natureza é mediada pelo trabalho e
neste o homem atua sobre a natureza e esta, de acordo com a regularidade seu funcionamento,
responde à ação humana. Além do trabalho material que o homem realiza sobre a natureza, mas
relacionando-se com ele, há também um trabalho intelectual sobre ela, onde se busca compreendêla. Essa busca de compreensão da natureza (e também das relações sociais) é mediada pelo trabalho
intelectual da consciência. O homem não pode possuir uma “consciência da natureza”, mas sim uma
consciência da sua relação com a natureza (VIANA, 2007b). Esta autoconsciência produz uma
visão da natureza que tem como referencial o próprio homem em sua relação com a natureza. Sendo
o homem o referencial para a compreensão da natureza torna-se compreensivo o antropomorfismo.
Os conceitos, os sentimentos, as relações que são próprias do homem são transferidos para a
natureza por serem o referencial que eles possuem para buscar compreendê-la e explicá-la. A
personificação dos seres naturais, que assim se tornam “sobrenaturais”, é um procedimento racional
realizado em condições sociais determinadas3.
Essa situação se modifica com o processo crescente de separação entre o homem e a
natureza, provocado pelo desenvolvimento das forças produtivas. O homem adquire, com isto, a
autoconsciência da real diferença entre ele e a natureza. São os homens que são portadores de
intelectualidade e não a natureza.
Quando as populações das sociedades simples entram em contato com outras
populações (principalmente no caso dos povos ocidentais e suas invasões) há uma reformulação dos
mitos, ou seja, os mitos também estão envolvidos da dinâmica histórica. Vejamos isto através de
um exemplo. Os índios hidatsa, norte-americanos, tinham mito que dizia o seguinte:
“(...) dois demiurgos criaram a terra e fizeram emergir os humanos do mundo subterrâneo.
Depois que as tribos e as línguas se diversificaram, aconteceu, em certo lugar, que uma
3
“As religiões e as mitologias dos povos são produtos da razão que se torna consciente. Embora pareçam ainda tão
insuficientes, tão pueris, contudo contém o momento da razão; o instinto da racionalidade as fundamenta” (HEGEL,
1980, p. 112). Para Hegel, a mitologia é produto da “razão fantasiadora”. No entanto, isto só pode ser afirmado partindo
do ponto de vista de nossa sociedade, que tem outro referencial, caracterizada por possuir uma relação diferente com a
natureza e relações sociais também distintas e que por isso a mitologia aparece como equivalente da “fantasia”.
Portanto, a mitologia não é produto da “razão fantasiadora” e sim da razão, só que esta trabalhando a partir de outro
referencial.
46 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
mulher 'ofereceu de beber' (provavelmente um eufemismo) a seu jovem cunhado. Este
julgou o oferecimento inconveniente e declinou do convite. Furiosa por ter sido repelida, a
mulher acusou seu cunhado de ter pretendido violá-la, e, a pretexto de conduzi-lo à guerra,
o marido ultrajado abandonou seu irmão mais novo numa ilha. Os deuses intrometeram-se
na questão, tomando partido por um ou por outro dos irmãos. Os protestos do irmão
prevaleceram finalmente e destruíram, numa conflagração, o irmão casado e quase todos os
habitantes da aldeia. Os sobreviventes separaram-se. Os que partiram para o norte,
tornaram-se os Crow-hidatsa; os que formam para o sul, os awaxawi, cuja migração foi
provocada por um dilúvio, que se seguiu aos acontecimentos, dirigiram-se para o Missouri,
onde encontraram, mais tarde, outro grupo hidatsa, os awatixa. Quanto aos Crow-hidatsa
propriamente ditos, voltaram para o sul, onde se cindiram, dando origem às duas tribos
respectivamente conhecidas por esses nomes (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 147-148).
(...) questão, tomando partido por um ou por outro dos irmãos. Os protestos do irmão
prevaleceram finalmente e destruíram, numa conflagração, o irmão casado e quase todos os
habitantes da aldeia. Os sobreviventes separaram-se. Os que partiram para o norte,
tornaram-se os Crow-hidatsa; os que formam para o sul, os awaxawi, cuja migração foi
provocada por um dilúvio, que se seguiu aos acontecimentos, dirigiram-se para o Missouri,
onde encontraram, mais tarde, outro grupo hidatsa, os awatixa. Quanto aos Crow-hidatsa
propriamente ditos, voltaram para o sul, onde se cindiram, dando origem às duas tribos
respectivamente conhecidas por esses nomes (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 147-148).
Este mito relata migrações, fusões e separações de tribos que ocorreram historicamente.
Segundo Lévi-Strauss,
De fato essas migrações são aquelas provocadas por ataques dos Ojibwa dos bosques,
armados pelos colonos franceses do Canadá, e em consequência de que os ancestrais
comuns dos Crow e dos hidatsa tiveram que refugiar nas planícies. A arqueologia confirma
esses movimentos de populações. A chegada dos Awatika ao Missouri, a separação ulterior
dos Crow-hidatsa em duas tribos, são também fatos históricos atestados (LÉVI-STRAUSS,
1983, p. 149).
Vemos, portanto, que as novas condições históricas e a nova situação social se
refletiram na explicação mítica do mundo, inclusive criando novos temas, pois muda-se também o
próprio significado de elementos existentes no mito, tal como demonstra os maias de Yucatán que
consideravam os Dzules (estrangeiros) como deuses e após a invasão espanhola passaram a
considerá-los como destituídos de sabedoria, palavras e ensinamentos, aqueles que vieram para
“ensinar o terror”, “secar as flores”, “mutilar o sol”, e que deixaram apenas “a amargura”
(GENDROP, 1987).
Demonstrando que o mito muda temas e significados com a mudança histórica e social
e que tais mudanças ocorreram dentro de sociedades simples. Resta saber qual é o tipo de mudança
que ocorre no mito quando se instaura uma sociedade complexa em substituição a uma sociedade
simples. Portanto, é aqui que devemos colocar a questão do mito no mundo moderno 4. A
contradição entre o homem e natureza como tema fundamental dos mitos nas sociedades simples é
substituída pelo tema das contradições sociais nas sociedades de ascensão da sociedade capitalista
traz consigo a “secularização” (parcial) da cultura e juntamente com ela se expande o racionalismo
4
Por “mundo moderno” entendemos as sociedades em que predomina o modo de produção capitalista, ou seja,
capitalismo e modernidade são uma única e mesma coisa.
47 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
e o cientificismo. Entretanto, isso não afeta todas as classes sociais com a mesma intensidade, pois
classes trabalhadoras possuem menor acesso às “conquistas da ciência” e as classes privilegiadas
possuem um maior domínio neste campo. Cada classe social produz aqueles que irão sistematizar as
ideias e/ou ilusões sobre si e sobre a sociedade. Na classe dominante realiza-se uma divisão entre
aqueles que executam o trabalho manual e aqueles que executam o trabalho intelectual (MARX e
ENGELS, 1982). No caso das classes trabalhadoras, a elaboração de suas concepções acerca de si e
da sociedade é realizada principalmente pelos seus próprios integrantes que não exercem uma
profissão intelectual embora existam algumas exceções.
Se retornarmos a tese de que os homens criam representações reais ou ilusórias como
expressão consciente de suas relações sociais então devemos ver a diferença entre estes dois tipos
de representações e como elas se relacionam com as classes sociais. A ideologia dominante é, como
dizia Marx, a ideologia da classe dominante (MARX e ENGELS, 1982). Esta busca “naturalizar” e
“universalizar” o mundo existente e assim evitar o reconhecimento da história e das contradições
sociais. Ela é, portanto, uma representação ilusória da realidade, ou seja, é uma inversão da
realidade, falsa consciência, sistematizada pelos ideólogos (MARX e ENGELS, 1982). As classes
exploradas, devido a sua própria situação social, não podem evitar o reconhecimento da história e
das contradições sociais e por isso apresenta em suas representações a necessidade da mudança.
Portanto, a classe dominante evita reconhecer a história e as classes exploradas buscam, ao
contrário, reconhecê-la e, consequentemente, as ideias da classe dominante são conservadoras e as
ideias das classes exploradas são revolucionárias. No primeiro caso, temos a ideologia e, no
segundo caso, a utopia.
Se a ideologia busca “naturalizar” e “universalizar” o existente, a utopia traz, ao
contrário, a proposta de um novo existente, ou, mais exatamente, uma nova sociedade que constitui
uma mudança radical. Entretanto, tal como exposto por Ernst Bloch, existem dois tipos de utopia: a
utopia abstrata e a utopia concreta (BICCA, 1987). A utopia concreta é aquela que leva em
consideração as possibilidades de sua realização enquanto a utopia abstrata não fundamenta as
condições de sua concretização.
A relação entre mito e ideologia é bastante complexa, pois a ideologia só surge com a
divisão entre trabalho manual e intelectual, ou seja, quando surgem os ideólogos, e o mito surgiu
antes de tal divisão. Em outras palavras: a ideologia surge com a ascensão das sociedades de classes
e o mito é anterior ao surgimento dessas sociedades. Isto quer dizer que o mito não é uma ideologia
nas sociedades sem classes, embora possa, numa sociedade classista assumir a forma de ideologia.
A ideologia, por sua vez, pode assumir a forma de mito, embora isto seja raro por possuir inúmeras
outras formas de se manifestar.
48 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
A relação entre mito e utopia é semelhante mas não é igual. A utopia também surge com
o aparecimento das sociedades de classes e se apresenta sob as duas formas acima citadas. O mito
surge antes mas se reproduz de forma modificada nas sociedades classistas. O mito, quando propõe
uma nova sociedade e realiza a crítica da sociedade existente, assume a forma de utopia, embora por
suas características intrínsecas, como demonstraremos mais à frente, somente pode assumir a forma
de utopia abstrata. A utopia, assim como a ideologia, possui inúmeras outras formas de se
manifestar.
Se recordarmos a definição de mito apresentada anteriormente, veremos como ele se
manifesta no mundo moderno. O deslocamento da contradição do homem com a natureza para as
contradições sociais cria a necessidade se buscar compreender e controlar principalmente os
fenômenos sociais, ao invés, como nas sociedades simples, os fenômenos naturais, neste sentido, o
tema dos mitos modernos são “secularizados” e tornam-se sociais. A transformação ou conservação
das relações sociais tornam-se produtos da ação social. Se os mitos das sociedades simples
personificam os seres da natureza transformando-os em “seres sobrenaturais”, os mitos das
sociedades complexas fazem com que essa “natureza personificada”, reconhecida pela “herança
cultural”, se materialize em pessoas e/ou grupos sociais. Os mitos, nas sociedades simples, servem
como regularizador das relações e ações sociais por serem “modelo exemplar” que se deve
reproduzir, seja através de tabus ou rituais5. Nas sociedades complexas, os mitos também cumprem
o papel de incentivar ações sociais, seja através da prática política ou de rituais. Os mitos são
representações que fundamentam ações sociais e por isso não podem ser analisados isoladamente
em sua dimensão simbólica, pois as ações que eles provocam estarão sempre presentes.
Podemos dizer que os mitos na sociedade capitalista foram precedidos por outros nas
sociedades de classes pré-capitalistas. Entretanto, como nosso objetivo é tratar dos mitos no mundo
moderno, só trataremos dos mitos nas sociedades classistas pré-capitalistas quando contribuírem
para compreensão dos “mitos modernos”.
Os mitos no mundo moderno se manifestam tanto como ideologia quanto como utopia
abstrata. O exemplo mais típico nesse último caso é o do messianismo. Embora alguns autores
coloquem que o messianismo tenha surgido a partir do declínio do mundo feudal (MANNHEIM,
1986), o primeiro movimento messiânico na história foi representado pelo cristianismo primitivo6.
5
Georges Sorel, utilizando-se da distinção bergsoniana do “eu superficial” (resultado da adaptação mecânica ao mundo
exterior) e do “eu profundo” (que age livremente, de modo criador), coloca que o mito é a tradução em imagens do “eu
profundo” das massas e por isso as tornam protagonistas de uma transformação radical. Portanto, o mito com sua
linguagem simbólica é “mobilizador” e gera ações sociais. apesar do acerto dessa colocação, Sorel apresenta uma
concepção, em alguns aspectos, equivocada do mito e por isso pode julgar a “greve geral” como um mito (cf. PAOLA,
1984).
6
Sobre o caráter messiânico e utópico do cristianismo primitivo existe uma ampla bibliografia (LUXEMBURGO,
1986; FROMM, 1986; HOUTART, 1982). Sobre a integração do cristianismo na sociedade feudal há também uma
49 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
Mas antes de tratarmos do messianismo no mundo moderno, devemos primeiro defini-lo. Os termos
“messias” e “messianismo”. Surgiram a partir dos relatos bíblicos e posteriormente passaram a ser
aplicados a outros fenômenos fora da religião cristã e judaica, devido à descoberta dos etnólogos da
existência de crenças e figuras messiânicas em sociedades primitivas. Segundo Jean-Pierre Dozon o
messianismo tem como aspectos essenciais: “1. negação do mundo presente; 2. espera de um
mediador: profeta ou messias; 3. crença no milênio” (DOZON, 1978, p. 13).
A partir dessa definição vemos que o messianismo é uma subcategoria do milenarismo,
pois este pode existir sem a figura de um messias. O milenarismo também apresenta uma estrutura
mítica, mas geralmente se reproduz no interior de uma seita e tem suas manifestações bastante
reduzidas no mundo moderno7. O profetismo, segundo Dozon, pode ser considerado uma
subcategoria do messianismo, pois o profeta é o mensageiro que anuncia a vinda do messias. Maria
Isaura P. De Queiróz diz que Max Weber e P. Alphandery apresentaram uma definição muito
próxima de messias: “o messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do bem
sobre o mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do paraíso terrestre,
tratando-se, pois de um líder religioso e social” (1976, p. 27).
Portanto, resta saber se podemos definir o messianismo como um mito. Julgamos que
sim, pois o messianismo se manifesta, tal como os mitos, sob uma linguagem simbólica que se
caracteriza por: a) é considerada verdadeira pelos que a produzem e reproduzem coletivamente; b)
realiza a encarnação de um ser ‘sobrenatural’ – tal como definido anteriormente – ou então dota um
ser humano de atributos mágicos por ser um enviado dos seres divinos. Entretanto, essa definição é
incompleta, pois o mito também é: a) uma representação que busca compreender e explicar o
mundo; b) esta representação é provocada por necessidades existenciais e sociais; c) seu objetivo é,
ao compreender e explicar o mundo, controla-lo ou se situar diante dele. Consideramos que estes
elementos também estão presentes no messianismo. O messianismo também busca compreender e
explicar as contradições sociais, pois ele surge em momentos de crise social ou em regiões
extremamente empobrecidas, sendo gerado a partir de necessidades existenciais e sociais e seu
objetivo é controlar o mundo através da instauração de uma nova “idade de ouro”. As diferenças
são evidentes: as representações voltam-se para as contradições sociais, sendo expressão mais
destas do que da contradição homem-natureza. E sua atuação sobre o mundo também assume
característica de ação política. Outra diferença está em que a personificação de seres da natureza é
pressuposta e essa natureza personificada se manifesta através de um homem, o messias que é a
encarnação de um ser sobrenatural ou seu “enviado”.
ampla bibliografia (LUXEMBURGO, 1986; MANNHEIM, 1972; DOZON, 1978) e sobre o caráter utópico da doutrina
cristã no antigo testamento há a obra de Fromm (1988).
7
Sobre o milenarismo, o pré-milenarismo e o pós-milenarismo é interessante a leitura de Dozon (1978), Queiróz
(1976); Hobsbawn (1978).
50 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
Portanto, o messianismo é uma forma de manifestação de mito. Tanto o mito quanto o
messianismo são representações que possuem as mesmas características e as mesmas raízes. O
messianismo, no entanto, é também uma mobilização social, manifestação da luta de classes, além
de ser uma representação. O mito, nas sociedades simples, produz um conjunto de atividades que
lhe são complementares, assim como o messianismo nas sociedades complexas. O mito e o
messianismo são mobilizadores, pois são representações que geram ações coletivas. Entretanto, o
messianismo é não só um mito, mas uma manifestação deste sob a forma de utopia abstrata. Isto é
comprovado pelo seu discurso utópico que propõe a instauração de uma nova sociedade e por isso
traz implícita ou explicitamente uma crítica da sociedade existente.
O messianismo surge como uma negação da sociedade existente. Entretanto, existem
outras formas de negação da sociedade existente que não utilizam a linguagem mítica. Por isso, para
explicarmos o surgimento do messianismo temos que realizar uma análise que supere tanto o
reducionismo sociológico (que explica o fenômeno messiânico por razões puramente sociais)
quanto o reducionismo religioso (que explica o messianismo por razões puramente religiosas). Ernst
Bloch (1973) já dizia que a compreensão da rebelião camponesa liderada por Thomas Münzer, sob
a forma de milenarismo, não pode ser proporcionada pelo estudo isolado do aspecto econômico,
pois é necessário compreender o contexto cultural em que ele se realizou.
(...) convém olhar as rebeliões camponesas mais profundamente e não só levar em conta o
seu aspecto econômico, se se quer realmente apreender, o que então aconteceu e podia
acontecer, tem-se de levar necessariamente, em consideração, uma outra coação e um outro
apelo, ao lado do choque econômico. Pois o apetite econômico é, aliás, o mais sóbrio e
permanente, porém não o motivo mais peculiar da alma humana, sobretudo em exaltados
tempos religiosos. Não só vacilantes e livres orientações da vontade, bem como estruturas
de sentido espiritual, pelo menos sociologicamente reais e amplamente compreensivas,
agem efetivamente sobre o acontecimento econômico, ou ao lado dele. A situação do
respectivo modo de produção é já, em si mesmo enquanto desígnio econômico, dependente
de conjunto de decisões mais altas e complexas, principalmente de sentido religioso,
conforme Max Weber demonstrava; portanto, a economicidade logo se encontra bastante
sobrecarregada com superestrutura e, no seu autônomo processo, condiciona e efetiva
aparição de conteúdos culturais-religiosos, porém de nenhum modo isolada, por sua parte,
deste conteúdo. O que significa que não pode, sozinha, fazê-los eclodir, abstraída de um
intercondicionamento, entrelaçado com características nacionais, com sobreviventes
ideológicos de anteriores relações econômicas, com a ideologia da sociedade em ascensão,
cuja superestrutura se encontrava, pois, em vários aspectos, já mais amadurecida que a
econômica, cuja madureza só em seguida ocorria. E, finalmente, existe, percebida pela
respectiva classe revolucionária, a influência, a longo prazo, por parte do autônomo
processo espiritual-religioso, pelo menos ‘histórico-filosófico’ – com frequência
interrompido – enquanto autoeducação do gênero humano” (BLOCH, 1973, p. 47-48)8.
A partir disto consideramos que o messianismo só pode ser compreendido como
expressão das lutas de classes. Acontece que ele é uma expressão específica dessas lutas e para ser
8
A ideia geral de Bloch está correta, apesar de sua linguagem carregar problemas (economia, supesrestrutura, etc.), mas
é importante para questionar o economicismo, tal como outros fizeram, especialmente Korsch (1977) e Pannekoek
(1978).
51 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
compreendido em sua especificidade é necessário compreender aqueles que estão envolvidos nestas
contradições e contexto cultural em que eles vivem.
Não tratamos do messianismo na sociedade escravista e na sociedade feudal com suas
características particulares, mas apenas de sua manifestação na sociedade moderna. O messianismo
surge como produto das contradições sociais, seja a miséria e a destruição do mundo rural
tradicional, seja a opressão colonial (principalmente no caso da África) e revela a necessidade
sentida pelas classes exploradas de lutar por mudanças sociais. Essa luta por mudanças sociais é
realizada muitas vezes inintencionalmente e é esse caráter inintencional que revela suas limitações
políticas e faz com que ele não ultrapasse o nível da utopia abstrata.
A penetração do modo de produção capitalista em nações ou regiões pré-capitalistas ou
não-capitalistas destrói relações sociais tradicionais e traz a resposta das classes exploradas sob a
forma de messianismo9. Portanto, um dos motivos fundamentais do surgimento dos movimentos
messiânicos é a desestruturação de relações sociais tradicionais pela expansão capitalista. Tal
expansão se caracteriza pela subordinação de modos de produção pré-capitalistas ou nãocapitalistas às suas necessidades. Os modos de produção pré-capitalistas são aqueles que são
anteriores ao capitalismo (escravismo, feudalismo, modo de produção tributário, etc.) enquanto que
os não-capitalistas são aqueles que surgem simultaneamente com o capitalismo (por exemplo, modo
de produção camponês e o artesão) e se caracterizam por serem subordinados a ele. A penetração
capitalista em modos de produção pré-capitalistas ocorre apenas a nível nacional e somente após
isto é com a formação do predomínio do capitalismo juntamente com a formação de modos de
produção não-capitalistas é que há a penetração sobre estes últimos, o que leva, com o
desenvolvimento capitalista, à sua destruição. Portanto, podemos dizer que o capitalismo só cria
relações de produção tipicamente capitalistas e a produção de relações de produção não-capitalistas
é produto do contato entre capitalismo e pré-capitalismo ou passagem deste para aquele10. O
messianismo como produto do primeiro caso ocorre principalmente em países africanos e como
produto do segundo caso em países como o Brasil.
O fenômeno messiânico não surge somente da expansão capitalista, mas também da
formação cultural de onde ele emerge. O cristianismo primitivo surgiu como uma
apropriação/assimilação cultural das mitologias anteriormente existentes realizada pelo povo judeu.
O messianismo africano das classes exploradas se caracteriza por ser uma apropriação cultural feita
9
O messianismo nem sempre é uma resposta apenas das classes exploradas quando a penetração capitalista se dá em
nações, pois as elites locais podem se utilizar da religiosidade popular para romper com o pacto colonial e implantar sua
própria dominação, tal como no exemplo do kimbaguismo na África (DOZON, 1978).
10
Isso entra em visível contraposição com a concepção de José de Sousa Martins, que defende a tese da “produção
capitalista de relações de produção não-capitalistas”, inspirado em Rosa Luxemburgo, pois, em nossa concepção, a
produção capitalista se expande sobre relações de produção já existentes e tornar o resultado desse contato como
produto exclusivo do capitalismo é um equívoco (cf. MARTINS, 1985).
52 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
por estas do cristianismo do colonizador e das mitologias africanas, criando, assim, o sincretismo
messiânico. São os agentes histórico-concretos, as classes sociais, que, partindo de suas condições
reais de existência que assimilam os elementos culturais existentes para satisfazerem suas
necessidades e interesses. Esse processo de assimilação é um processo cultural comum, pois é a
partir das necessidades e cultura já existente que se interpreta e produz novas representações.
É por isso que no período de crise da sociedade feudal todas as mobilizações sociais
contestatórias assumiam uma linguagem religiosa e herética. Os camponeses conviviam com a
desarticulação do modo de produção feudal e a formação do capitalismo e sofriam as consequências
sociais da ascensão do domínio do capital e do predomínio do mundo urbano e mercantil. A forma
dominante da ideologia dominante era a teologia e era esta, portanto, que servia de referencial
cultural para os camponeses lutarem pela sua emancipação. Foi por isto que Engels afirmou que no
mundo feudal “todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas tinham de ser ao mesmo tempo
e principalmente heresias teológicas” (ENGELS, 1978).
Vejamos o exemplo do messianismo brasileiro expresso no caso de Canudos e
Contestado. Em ambos os casos havia uma desestruturação das sociedades tradicionais e esta
atingia as classes sociais mais empobrecidas tanto destruindo seu modo de vida tradicional quanto
criando uma situação social insuportável para elas. O conflito de terras, a pobreza, as dificuldades
para sobrevivência, que se agravaram depois da proclamação da república, fizeram com que os
camponeses identificassem a “República dos Coronéis” como o reino do mal e por isso uma volta à
monarquia era tida como um retorno ao reino do bem. A penetração capitalista durante a república
dos coronéis acirrou as lutas de classes expressas na luta pela terra, provocando as rebeliões
camponesas (MARTINS, 1986; QUEIRÓZ, 1977).
Entretanto, isso, por si só, não explica por qual motivo a classe camponesa reagiu diante
desta situação usando uma linguagem mítica. É preciso, para compreendermos isto, conhecermos a
formação cultural predominante no campo brasileiro nesta época. Neste, o que predominava era a
cultura rústica11. A base cultural do messianismo brasileiro era o “catolicismo rústico”
(MONTEIRO, 1982). As classes exploradas retiram do universo cultural existente, no caso, do
catolicismo rústico, os elementos culturais e os re-elabora fazendo uma assimilação dele para
satisfazer suas necessidades, produzindo assim o messianismo.
Portanto, o messianismo de Canudos e Contestado são produtos da expansão capitalista
no campo e em regiões não-capitalistas e da assimilação cultural que as classes exploradas realizam
do catolicismo rústico para compreenderem e explicarem sua realidade e a partir disto agirem diante
das transformações sociais que lhes atingiam. A volta da “monarquia”, ou seja, do reino onde
11
Sobre o conceito de “cultura rústica”, cf. Queiróz (1976).
53 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
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predomina a “Lei do Céu”, em substituição à “República”, onde predomina a “Lei do Diabo”, é a
proposta de uma nova “idade de ouro”, com a implantação do “igualitarismo comunitário”.
Os mitos no mundo moderno também se manifestam sob a forma de ideologia. Vamos
retomar, então, a discussão sobre ideologia e utopia, mas agora como formas de manifestação do
mito. O mito como utopia abstrata é um produto principalmente das classes exploradas enquanto
que sob a forma de ideologia é um produto das classes auxiliares da burguesia e em momentos de
crise recebem o apoio da classe dominante e tornam-se consolidados socialmente. Outra diferença
se encontra no fato de que, como utopia abstrata, o mito coloca a ênfase na construção de uma nova
sociedade e na ação do enviado da divindade que representa o bem enquanto que o mito como
ideologia coloca a ênfase no combate àqueles que representam o mal para proteger a sociedade
existente de suas ações maléficas. Outra diferença substancial encontra-se no fato de que o mito
enquanto utopia se manifesta principalmente em regiões subordinadas ou colonizadas, surgindo
como negação desta situação, mas o mito como ideologia surge nas regiões dominantes e
colonizadoras. Todas essas diferenças podem ser sintetizadas em uma só: o mito como utopia é uma
assimilação cultural das classes exploradas da cultura existente para satisfazer suas necessidades e
interesses e o mito como ideologia é uma assimilação cultural da burguesia e suas classes auxiliares.
Uma das manifestações do mito na sociedade capitalista sob a forma de ideologia é o
antissemitismo. O que é o antissemitismo? Antes de responder a esta pergunta é necessário
responder outra: o que é semita? Semitas são os “descendentes de Sem”, um dos filhos de Noé, que
depois do dilúvio teriam povoado a Ásia, assim como os filhos de Cam povoaram a África e os de
Japmet a Europa. Isto, obviamente, é uma crença popular que nem mesmo é coerente com a
genealogia bíblica. Nesse sentido, é melhor buscar uma definição melhor fundamentada:
(...) A palavra foi criada em 1781 pelo filósofo alemão Schözer para designar um grupo de
línguas que constitui uma família, de parentesco evidente, e comparável ao grupo indoeuropeu, a que pertencem idiomas tão diversos como o latim, o alemão, o russo e o
sânscrito. As principais línguas semitas são o árabe, o hebraico, o aramaico (ainda falado
hoje por uns poucos milhares de indivíduos), além das mortas, como o acadiano ou
babilônico e o assírio, usadas nos antigos documentos cuneiformes (MORAIS, 1972, p. 45).
Portanto, a palavra semita não possui conotação racial, pois parentesco linguístico não
implica parentesco racial. Além disso, os que falam a língua semita pertencem à raças diferentes.
Apesar de uma grande diversidade de concepções sobre raças e quantidade de raças, a que é mais
próxima da realidade é a que reconhece a existência de apenas três raças: a negroide, a mongoloide
e a caucasoide (LEWIS, 1968; VIANA, 2009a; VIANA, 2009b) demais concepções fazem
proliferar uma grande quantidade de raças, que, no entanto, dificilmente são sustentáveis.
Portanto, por tudo que foi visto é pouco convincente pensar na existência de uma “raça
semita”. Resta saber, nesse caso, qual é o sentido da palavra antissemitismo. Segundo Vamberto
54 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
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Morais (1972), tal palavra é um “eufemismo incorreto” que busca dar uma “fachada respeitável” ao
antijudaísmo. Por isso, a pergunta correta é a seguinte: o que é o judaísmo? Ele era uma religião
unitária que se dividiu em duas outras: a dos judeus rabínicos e a dos judeus cristãos. Os primeiros
mantiveram as suas crenças originárias intactas enquanto que os outros se tornaram cristãos, ou
seja, passaram a defender que o messias – Jesus Cristo – já havia surgido e que teria morrido para
salvar a humanidade (MARGULIES, 1976). Os judeus, inclusive, serão acusados de serem
responsáveis pela morte de Cristo. Em poucas palavras, o antissemitismo é o antijudaísmo e o
judaísmo é uma religião de um povo que se dispersou pelo mundo e sofreu diversas mudanças no
decorrer de sua longa história.
A origem histórica do antissemitismo se encontra na separação entre judeus e cristãos.
Além da divergência sobre a vinda ou não de Cristo, eles se separavam porque o judaísmo se
caracterizava por ser um messianismo nacional e o cristianismo um messianismo social. Por isso, os
judeus continuaram combatendo o império romano enquanto que os cristão defendiam a tese do
“daí a César o que é de César”, pregando um messianismo universalista que não se opunha,
diretamente, a Roma. Os cristãos acusavam os judeus de “deicídio”: “a culpa pelo sangue de Cristo
cairá sobre todos os descendentes do povo deicida (Mateus, 27, 25), que se assemelhará ao Diabo
(João, 8, 44)” (MARGULIES, 1976). Com a integração do cristianismo na sociedade feudal, o
judaísmo se tornou ainda mais marginalizado e acabou sendo, em muitos casos, perseguido pela
Igreja Católica e os judeus passaram a ser relegados a guetos, de acordo com os interesses dos
senhores feudais.
Mas o nosso interesse é no antissemitismo na sociedade moderna. O antissemitismo
vem para compreender e explicar as razões das tensões sociais, das crises sociais e financeiras, das
dificuldades das classes sociais subsidiárias, e, como em todo mito, a partir deste “saber”, busca
controlar ou se situar diante da situação existente. As necessidades que levam os seres humanos a
adotar essa visão da realidade é o sentimento de insegurança e impotência de determinadas classes
diante da crise social e financeira e o temor da burguesia em relação ao proletariado. Tal
compreensão e explicação do mundo são consideradas “verdadeiras” pela coletividade que a produz
e reproduz, ou seja, os antissemitas. O antissemitismo busca concentrar o mal nos judeus. No fundo,
eles criam um inimigo imaginário (VIANA, 2007a; VIANA, 2009a). A “conspiração judaica” para
dominar o mundo é apresentada como obra dos “judeus capitalistas” ou dos “judeus comunistas”.
Claro que isto é bastante confuso e ambíguo. Segundo Jean-Paul Sartre:
(...) Para o antissemita, o que faz o judeu é a presença nele da judiaria, princípio judeu
análogo ao Flogístico ou à virtude dormitiva do ópio. Não nos iludamos: as explicações
pela hereditariedade e pela raça apareceram mais tarde, são como o tênue revestimento
científico desta convicção primitiva; muito antes de Mendel e Gobineau, existia o horror ao
judeu e os que o experimentavam não poderia explicá-lo senão dizendo, como Montaigne
55 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
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dizia de sua amizade por La Boetie: ‘porque é ele, porque sou eu’. Sem esta virtude
metafísica, as atividades atribuídas ao judeu seriam rigorosamente incompreensíveis. De
fato, como conceber a obstinada loucura de um rico comerciante judeu que deveria, se fosse
razoável, almejar a prosperidade do país onde comercia e que, segundo nos afiançam, se
encarniça em arruiná-lo? Como compreender o internacionalismo nefasto de homens cujas
famílias, afetos, costumes, interesses, natureza e fonte de suas fortunas deveriam ligá-lo ao
destino de um país particular? Os hábeis falam de uma vontade judaica de dominar o
mundo: mas ainda aqui, se não possuirmos a chave, as manifestações desta vontade correm
o risco de nos parecer ininteligíveis; pois, ora nos apontam atrás do judeu, o capitalismo
internacional, o imperialismo dos trustes e dos traficantes de canhões, ora o bolchevismo,
com seu punhal entre os dentes, e não se vacila em tornar igualmente responsáveis pelo
comunismo os banqueiros israelitas, a quem deveriam horrorizar, e pelo capitalismo
imperialista, os judeus miseráveis que povoam a Rue des Rosiers. Mas tudo se esclarece se
dispensarmos o judeu de uma conduta racional e conforme com seus interesses, se
discernirmos nele, ao contrário, um princípio metafísico que o impele a praticar o mal em
todas as circunstâncias, ainda que para tanto deva destruir-se a si mesmo. Este princípio,
não resta a menor dúvida, é mágico: de um lado, é uma essência, uma forma substancial, e
ao judeu, faça o que fizer, não é dado modificá-la, assim como o fogo não pode impedir-se
de arder. E, de outro, como é necessário que se possa odiar os judeus e como não se detesta
um tremor de terra ou a filoxera, esta virtude é também liberdade. Só que a liberdade em
questão é cuidadosamente limitada: o judeu é livre para praticar o mal, não o bem, pois
dispõe de livre arbítrio suficiente apenas para arcar com a plena responsabilidade dos
crimes que comete, mas não o bastante para que possa reformar-se. Estranha liberdade que,
em vez de preceder a essência, lhe permanece inteiramente submetida, que não passa de
uma qualidade irracional e continua sendo, não obstante, liberdade. Só há uma criatura, que
eu conheça, tão absolutamente livre e acorrentada ao Mal: é o próprio Espírito do Mal, é
Satã. Destarte, o judeu é assimilado ao espírito maligno (SARTRE, 1960, p. 25-26).
O antissemitismo inverte a realidade ao produzir um inimigo imaginário e
responsabilizá-lo pelos males que afetam a sociedade. Assim, ofusca a percepção das verdadeiras
determinações dos fenômenos e da crise social e a concentra num grupo social específico: os
judeus. A culpabilidade coletiva dos judeus pelos problemas sociais é uma inversão da realidade e
se organiza sob forma sistemática, ou seja, é uma ideologia, e se manifesta sob uma linguagem
mítica.
É preciso entender como o antissemitismo é reproduzido no mundo moderno. As
contradições do modo de produção capitalista faz com ele viva constantes “crises cíclicas” e estas
criam uma situação de insegurança social. O antissemitismo tem nas classes privilegiadas e algumas
outras que ficam entre a burguesia e o proletariado, os seus produtores e reprodutores, mas, como o
acirramento das lutas de classes, a burguesia se utiliza dessa ideologia para combater o “perigo da
revolução”. A competição social, elemento fundamental da sociabilidade capitalista (VIANA, 2008)
é outra razão para que as classes ameaçadas pela crise reproduzirem o antissemitismo, pois assim
permite encontrar setores da sociedade que podem ser chamados de “inferiores” que lhe possibilita
se sentir “superior”, para compensar o sentimento de inferioridade em relação à burguesia. Sartre,
tratando da relação entre antissemitismo e as classes que ficam entre a burguesia e o proletariado,
afirma:
(...) Parece, com efeito, que a maioria dos ricos utiliza esta paixão mais do que se lhes
entrega: tem mais o que fazer. Propaga-se comumente pelas classes médias, precisamente
56 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
porque não possuem terra, nem castelos, nem casas, mas apenas dinheiro líquido e algumas
ações no banco, não foi por acaso que a pequena burguesia alemã de 1925 era antissemita.
A principal preocupação deste ‘proletariado de colarinho postiço’ era distinguir-se do
autêntico proletariado. Arruinado pela grande indústria, ridicularizado pelos junkers,
dedicava todo o coração ao junkers e aos grandes industriais. Entregou-se ao
antissemitismo com o mesmo calor que usava roupas burguesas: porque os operários eram
internacionalistas, porque os junkers possuíam a Alemanha e ele também queria possuí-la
(SARTRE, 1960, p. 17-18).
Karl Marx dizia que uma classe social que busca se tornar uma “nova classe dominante”
deve concentrar todas as falhas da sociedade numa outra classe social (1968). Acontece que a classe
dominante busca, também, concentrar o mal em alguns setores da sociedade para que esta seja
responsabilizada pela situação de crise social e/ou financeira e com isso tenta evitar a revolta contra
o conjunto das relações sociais que ela mesma é representante. Por isso, a classe dominante utiliza a
ideologia antissemita, e não só ela, para criar o inimigo imaginário12 e busca jogar o resto da
sociedade contra os “culpados” pela situação social indesejável. A burguesia se utiliza deste
artifício de forma consciente ou nao-consciente, pois ela tem que evitar o re-conhecimento da
histórias e das lutas de classes. Tal como demonstrou Lukács (1989), a “consciência possível” da
burguesia nao pode ultrapassar certos limites e re-conhecer as lutas de classes e a historicidade do
capitalismo seria re-conhecer o seu próprio fim enquanto classe social, o que só ocorre com
indivíduos no interior da classe, mas não no seu conjunto ou maioria, muito menos nos seus
representantes ideológicos.
Entretanto, a escolha do grupo específico que será a “vítima” da ação repressora só pode
se realizar a partir de dois pressupostos: a) é preciso que exista um grupo social que seja
diferenciado em relação ao resto da sociedade; b) é preciso que haja uma tradição cultural que já
alimente preconceitos contra tal grupo. Em determinadas sociedades e períodos históricos é possível
utilizar como inimigos imaginários mais de um grupo social (na Alemanha nazista, o alvo principal
eram os judeus, mas também se visava os homossexuais e os comunistas). Não deixa de ser
esclarecedor, nesse sentido, que o neonazismo no Brasil, na falta de judeus e de uma forte tradição
antissemita, coloque como inimigos imaginários os negros, os homossexuais e os nordestinos. O
antissemitismo na Alemanha tinha toda uma tradição cultural de preconceito contra os judeus e foi
isto que possibilitou, juntamente com outras determinações, tal como a crise financeira e social, a
ascensão do nazismo.
Portanto, chegamos à conclusão de que existem mitos no mundo moderno e que eles se
manifestam tanto como utopia abstrata quanto como ideologia. Claro que neste último caso,
segundo o exemplo do antissemitismo, ele se apresenta “disfarçado” como “ciência”, tal como no
12
Em termos populares, também usado na psicologia, o inimigo imaginário é chamado de “bode expiatório”, mas
também de “inimigo objetivo”, na expressão de Hannah Arendt (1975). O termo “inimigo imaginário” é utilizado por
Viana (2007a) e Agacinski (1991). Para uma análise crítica da concepção de “bode expiatório” e “inimigo objetivo”, cf.
Viana (2007a).
57 VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 41-59, Jul. 2013/Jan. 2014.
caso do nazismo que prega a “superioridade” da “raça ariana” e a inferioridade dos judeus como
justificativa para a “solução final” (extermínio) usando discurso pseudocientífico. Entretanto, nem
os “arianos”, nem os “judeus” podem ser considerados uma “raça” e o mecanismo do pensamento
antissemita, tal como demonstrou Sartre, é mítico. O mito, de representação inocente e homogênea
nas sociedades simples, passa a ser, nas sociedades de classes, uma representação libertária ou
conservadora do mundo existente, expressando uma ou outra classe social existente. Em síntese, o
mito como ideologia é uma manifestação geralmente das classes privilegiadas ou que estão entre a
burguesia e o proletariado e o mito como utopia é expressão das classes exploradas e essa diferença
dos produtores dessas formas de mito também mostra a diferença de perspectiva e objetivo, sendo
uma concepção contestadora ou conservadora.
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Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
2013/Jan. 2014.
MÚSICA SERTANEJA UNIVERSITÁRIA E VALORES DOMINANTES: UM ESTUDO
DAS CANÇÕES E SUA RELAÇÃO COM OS VALORES SOCIAIS CAPITALISTAS
Gabriel Teles Viana
Felipe Mateus de Almeida
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo propõe refletir sobre a transmissão
de valores dominantes (axiológicos) através das
letras da música sertaneja universitária. Nesse
sentido, far-se-á uma discussão sobre elementos que
compreendemos como fundamentais para se analisar
este fenômeno, quais sejam, a questão do regime de
acumulação integral, valores, a história da música
sertaneja, o vínculo com a totalidade das relações
sociais e por fim, a análise de uma música sertaneja
universitária com o objetivo de demonstrar seu
caráter axiológico.
This article offers a reflection about the transmission
of dominant values (axiologics) through lyrics of the
new country music. Accordingly, will be made a
discussion on what we understand as fundamental
elements to analyze this phenomenon, which they
are, the issue of accumulation values, the history of
country music, the bond with the totality of social
relations and finally, examination of the new country
music in order to demonstrate its axiological
character.
Keywords: new country music, accumulation,
Palavras-chave: Música Sertaneja Universitária, values, speech analysis
Regime de Acumulação, Valores, Análise do
discurso
INTRODUÇÃO
Este trabalho se vincula principalmente a questão da produção cultural e a música
sertaneja universitária. Pretendemos analisar os valores inseridos e reproduzidos pelo chamado
“Sertanejo Universitário” através do discurso transmitido em suas letras e canções.
Como objetivo geral, pretendemos apresentar uma análise crítica dos valores inseridos e
reproduzidos pelo sertanejo universitário. Além disso, pretende-se fazer uma discussão teórica
sobre os valores e sua produção social e apresentar uma reflexão sobre a relação entre música e
sociedade.
Inicialmente, será feita uma análise histórica sobre as transformações do modo de
produção capitalista. Após isso, será feita uma análise das transformações ocorridas na música
sertaneja a partir da reestruturação capitalista e do nascimento do chamado regime de acumulação
integral (Viana, 2009) para que se possa compreender os valores que se tornaram dominantes na
61 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
2013/Jan. 2014.
contemporaneidade e, consequentemente, se tornaram presentes no campo da produção cultural e
musical.
AS TRANSFORMAÇÕES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
A crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista ocorrida
com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento do regime de
acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de mercadorias e nas demais estruturas
existentes no capitalismo, trouxeram mudanças significativas.
O fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento
capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo Viana:
Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a
racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais profunda. O método
elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de trabalho, que passa a ser
cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é aumentar a produtividade do trabalho (o
que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo)
através de diversos artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso
do cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das tarefas, a
formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de elaboração e de execução
etc (op.cit., 2009, pp. 65 e 66).
O taylorismo possuía como características um regime rígido que priorizava a
vigilância profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos ambientes
de trabalho; possuía um caráter burocrático devido a criação dos cargos de gerentes científicos e,
além disso, tinha uma produção centralizada e baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo
foi o primeiro regime que se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo1 e com a
aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos operários e dos especialistas
encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma burocracia nesse regime de acumulação.
Desde o final dos anos 60 até o começo da década de 70, várias tentativas com o
objetivo de deixar o espaço fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem
mais pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o absenteísmo e os demais
descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o modo de regulação fordista do trabalho.
Além disso, segundo Heloani (2003, p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a
fragmentação e consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”, fizeram
com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no regime de acumulação que
vigorava no modo de produção capitalista.
1
Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade física do trabalho por meio da
mecanização.
62 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
2013/Jan. 2014.
É nesse contexto que surge o modo de regulamentação/acumulação toyotista ou
como alguns preferem chamá-lo, ohnista. Para Heloani o toyotismo pode ser caracterizado como
uma:
(...)inovadora forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que
produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a descentralização do
processo produtivo. Uma enorme rede constituída por pequenas empresas responsabiliza-se
pelo fornecimento de peças e outros elementos para serem utilizados por núcleos centrais
que dispõem da visão do conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande
poder de barganha com seus fornecedores (op.cit., 2003, p.119).
Nesse sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e
organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como características a
descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In Time (JIT) e a flexibilização e integração
das subjetividades dos trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o
sistema Just In Case (JIC)2, o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo
onde a produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por produtos.
Porém, o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a
questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores ( Harvey, 2003;
Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação do trabalho era mais rígido e
fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia, no toyotismo substituíram-se as ordens pelas
regras, ou seja, foi disseminada uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte
importante da empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou discordar
das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus companheiros de função. O
trabalhador passou a acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que
deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado e vigiado, e além
da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora ele também era vítima de uma
ideologia3.
Nesse sentido, podemos afirmar que ao contrário do que pensava David Harvey em
seu livro “condição pós-moderna” onde defende a concepção de que vivemos em um regime de
acumulação flexível, podemos afirmar – assim como pensa Viana (2009) – que vivemos em um
regime de acumulação integral. Portanto, faz-se necessário uma breve discussão sobre esse debate
entre regime de acumulação integral e regime de acumulação flexível para que se possa salientar a
importância das transformações do modo de produção capitalista e sua relação com as
transformações no campo da produção cultural.
2
No sistema Just In Case a produção era em massa.
O conceito de Ideologia que está sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia como
falsa consciência sistematizada.
3
63 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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REGIME DE
FLEXÍVEL?
ACUMULAÇÃO
INTEGRAL
OU
REGIME
DE
ACUMULAÇÃO
Harvey em seu livro “Condição Pós-Moderna” faz uma discussão sobre taylorismo,
fordismo e toyotismo e diz que o toyotismo pode ser caracterizado como um regime de acumulação
flexível. Harvey recorre à linguagem da escola de regulamentação que pode ser entendida como
uma escola que cria um modo de regulamentação que vai fazer com que haja uma materialização do
regime de acumulação que toma a forma de hábitos, leis e redes que regulamentam e garantem a
unidade e a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução
(Harvey, 2003).O autor conceitua a acumulação flexível como:
(...)um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras
de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2003, p.140).
A acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma
flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer os serviços
financeiros e como uma acumulação que é responsável por uma nova inovação comercial,
tecnológica e organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção.
Nildo Viana em seu livro “O Capitalismo na era da Acumulação Integral” apresenta
uma concepção diferente da concepção defendida por Harvey. Segundo Viana:
Ao se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos
trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e
inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos
trabalhadores, o que existe é uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto
os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de
aumentar a extração de mais-valor relativo. (op.cit., 2009, pp.69 a 70)
Percebe-se com esta citação, o quanto a proposição de Viana é diferente e mais
radical do que a de Harvey. Enquanto Harvey defende a ideia de que o atual regime cria uma
flexibilização nos processos de trabalho, no aparato de produção, um relaxamento na disciplina
fabril dos trabalhadores, Viana diz o contrário e defende a ideia de que existe um regime de
acumulação integral que provoca uma extensão no processo de mercantilização das relações sociais
e da busca de ampliação do mercado consumidor.
Acreditamos que - assim como é colocado por Viana -, essa ideia de acumulação
flexível é bastante equivocada. É um termo que deve ser superado e, por isso, também utilizaremos
o termo acumulação integral (op.cit., 2009, p.70). Não existe flexibilização dos processos de
trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores; o termo flexível é apenas
64 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
2013/Jan. 2014.
mais uma tentativa da burguesia e de suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro sentido do
processo de superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo muito
maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos trabalhadores, ou seja, um
conjunto de discursos, ideias, equipamentos, materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia
uma grande facilidade para exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação
integral invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e apenas no
ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer, nos seus programas de TV, nas
suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades e, para polemizar um pouco mais, até
dentro das igrejas que ainda são um “braço invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação
integral engloba a esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e se
coloca a serviço dos interesses do capital.
Pensando pela lógica da acumulação integral, a produção cultural no modo de
produção capitalista também passa por mudanças que são necessárias para que se possam manter
vigentes os valores da classe dominante em uma sociedade capitalista. Nesse sentido, a música
sertaneja passou e tem passado por diversas mutações no decorrer de sua história e acreditamos que
isso esteja associado às transformações do modo de produção capitalista e a influência do capital
fonográfico e comunicacional (indústria cultural).
MÚSICA E SOCIEDADE
A relação entre música e sociedade é complexa, pois se insere em determinado contexto
histórico e em determinadas relações de produção desta sociedade. É necessário partir do
pressuposto que a música é produto do trabalho humano, cuja consciência e valores expressos são
constituídos socialmente, portanto, a partir relações sociais; e no caso da sociedade moderna,
produto das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a seguir, partiremos
das determinações concretas para analisar o desenvolvimento histórico da música caipira, passando
pela música sertaneja até culminar em nosso objeto de análise fundamental: a música sertaneja
universitária.
DA MÚSICA CAIPIRA A MÚSICA SERTANEJA
O que compreende-se por música caipira e música sertaneja? O que consiste suas
particularidades e vicissitudes? Através destas perguntas, permearemos as convergências e
distinções entre estas concepções musicais.
Uma das principais características da música caipira é o seu caráter espontâneo
enquanto manifestação artística. Originada da classe camponesa paulista, as manifestações
65 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
2013/Jan. 2014.
espontâneas eram ligadas à produção, ao trabalho, à religião, ao lazer, enfim, ao universo das
relações de produção do caipira paulista. A determinação fundamental da música caipira é, pois, “a
sua função enquanto mediador das relações sociais, no sentido de evitar a própria desagregação”
(CALDAS, 1979, p. 80). Portanto, a mediação é feita desde a sobrevivência econômica, como os
mutirões, até o convívio social, como essência da integração entre as populações de bairros.
Antônio Candido nos traz a ideia deste papel agregador
O pequeno número de componentes da comunidade, e o entrosamento íntimo das
manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar, seja a uma
participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção dum número
maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos padrões de expectativa, que
mal se chega a distinguir. Na vida do caipira paulista vemos manifestações como a canaverde, onde praticamente todos os participantes se tornam poetas, trocando versos e ápodos;
ou o cururu tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da
inspiração dos presentes, ampliando-se os contendores (CANDIDO, 1967, pág. 39).
Quanto ao texto da canção na música caipira, raramente o autor particulariza o seu
discurso; ao contrário, o poeta caipira, através de sua cantoria, assume a posição de porta-voz de seu
povo. Waldenyr Caldas afirma que “o texto da canção está sempre carregado de uma mensagem que
permite a identidade com a comunidade, e que atende aos anseios desta” (CALDAS, 1979, pág. 81).
No entanto, este cenário começa a esboçar mudanças quando, a partir de uma nova
estruturação econômica brasileira, pautada na crescente industrialização e urbanização do país
(sobretudo nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro), ocorre uma abertura para um
novo regime de acumulação. Com a crise do café, o êxodo rural se intensifica, aumentando
significadamente o contingente diário daqueles que emigram para o centro urbano, procurando
melhores condições de vida na cidade.
É nesse sentido que a arte “rústica”
4
se urbaniza,
destituindo-se de um valor e revestindo-se de outro (CALDAS, 1979).
De acordo com a bibliografia sobre a gênese da música sertaneja (CALDAS, 1987;
NEPOMUCENO, 1999), esta deu início com os trabalhos da Turma do Cornélio Pires. Após
frutífera receptividade deste “novo gênero” musical, Waldenyr Caldas analisa a incorporação da
música sertaneja na Indústria Cultural:
Quando os agentes da indústria cultural percebem a grande receptividade dessas músicas no
meio rural, e já então com certa, ressonância no meio urbano, com a apresentação da dupla
Alvarenga e Ranchinho no Cassino da Urca no Rio de Janeiro, em 1930, e com a gravação
de grande aceitação de “Tristeza do Jeca”, por Paraguasu, incentivadas pelas gravadoras.
São muitas as duplas que dão início à incorporação da música sertaneja pela indústria
cultural (CALDAS, 1979).
4
Definição dada por Antonio Candido, que exprime “um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo
das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultam do ajustamento do colonizador português ao Novo
Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o
aborígene” (Candido, 1971)
66 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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Compreendemos aqui Indústria Cultural nos termos de Adorno e Horkheimer (1975)
onde ocorre uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer
outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para
sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo.
O resultado disso foi o exponencial crescimento da música sertaneja enquanto “novo
estilo musical”. Consequência deste crescimento foi a perda de autonomia por parte de seus
compositores e cantores, que passaram a produzir não aquilo que ansiavam e conheciam, mas o que
era determinado por elementos especializados em mercadologia.
Nasce, com este movimento histórico, a canção sertaneja de caráter mercantil; caráter
esse domina sua existência já desde seus primórdios até os dias de hoje.
Com essas incorporações da música sertaneja pela indústria cultural, percebem-se agora
novas conotações ideológicas, que se manifestam de forma evidente na linguagem. O tema
predominante, que era antes o viver no campo, alterna-se (não é substituído) agora com os
“casos de amor” vividos na cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já
não pertence mais somente ao meio rural e ao interior, de que ela, agora, é urbana também
(CALDAS, 1979).
Com o processo de neoimperalismo (o que alguns ideólogos irão chamar de
“globalização”), a música sertaneja sofreu diversas transformações e deixou de representar e atingir
apenas uma parcela de uma população que vivia no campo e trabalhava o dia todo para poder ter o
que comer e sustentar sua família. Em decorrência disso, a música caipira, que falava do cotidiano
de seus compositores e de seus ouvintes passou a se denominar música sertaneja e a atingir um
público cada vez mais diversificado e desinteressado sobre o cotidiano, as letras, os problemas e os
anseios que eram trazidos pela música caipira. Segundo Santos:
A música sertaneja desde a década de 60 vem apresentando mudanças significativas em
vários aspectos, e isso de deve à incorporação de elementos associados à estrutura musical,
adequação aos instrumentos elétricos (guitarra, contrabaixo), mistura de ritmos, dentre
outros (SANTOS, 2010, p. 159-160).
O sertanejo universitário é a principal prova dessa transformação da música sertaneja.
Nesse ritmo musical, a viola e o violão acústico deixam de serem os únicos instrumentos de
acompanhamento e abrem espaço para a bateria, o contrabaixo, a guitarra, o violino e o teclado. O
rock, o Axé, e o pop se misturam e criam um ritmo que cada vez mais se afasta da realidade dos
trabalhadores ouvintes e compositores da música caipira que falava de seu cotidiano e de suas
dificuldades.
Nesse sentido, podemos afirmar que o sertanejo universitário é um ritmo advindo da
indústria cultura e do regime de acumulação integral capitalista. Isso se deve ao fato de suas letras
serem escritas com o intuito de passar os valores de consumismo. Cria-se uma cultura consumista
67 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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que é passada através das letras e do estilo dos cantores e compositores do sertanejo universitário
que acaba por propagar e disseminar essa cultura fazendo com que ela se torne dominante.
Antes de iniciarmos a análise sobre o discurso nas letras destas música, esboçaremos
uma discussão teórica sobre valores e música sertaneja universitária, utilizando algumas canções
como um exemplo de reprodução de valores dominantes (axiológicos).
MÚSICA E VALORES
A música sertaneja – assim como todas as outras representações artísticas e culturais
-, perpassa valores. Todas as relações sociais desenvolvidas em um determinado modo de produção
são orientadas segundo determinados valores e determinadas concepções. Em uma sociedade onde
vigora o modo de produção capitalista e, consequentemente, uma sociedade onde existem
antagonismos entre classes, os valores também são heterogêneos:
O ser humano é um ser social e por isso as relações sociais são fontes de valores. [...] em
sociedades heterogêneas (de classes) existe heterogeneidade de valores. [...] cada classe
social bem como outros grupos sociais, produzem valores diferentes e, em muitos casos,
conflitantes. O conflito social é acompanhado pelo conflito de valores (VIANA, 2007, p.
24).
Tendo como base essa citação de Viana, podemos afirmar que a ideia de neutralidade
é algo impossível de se provar porque todos nós somos orientados segundo determinados valores e
concepções orientados por nossa condição de classe. Em sociedades classistas, os valores podem
ser definidos como valores autênticos e valores inautênticos, sendo os valores autênticos universais
e os valores inautênticos históricos, transitórios e particularistas (VIANA, op. cit., p. 24). Isso quer
dizer que os valores inautênticos são valores falsos que servem como base de legitimação para a
ideologia da classe dominante e de suas vontades para que os mecanismos de exploração da classe
trabalhadora (no caso do modo de produção capitalista) continuem funcionando de maneira correta
sem que ajam conflitos ou levantes revolucionários contra o sistema capitalista. Esses valores são
históricos porque são construídos em uma determinada época; são transitórios porque mudam de
acordo com as necessidades de reestruturação produtiva do modo de produção capitalista e são
particularistas porque representam as vontades apenas da classe dominante e não possuem um
caráter universal, verdadeiro e emancipatório com o objetivo de superar as contradições do capital,
libertando os sujeitos de suas amarras e de suas contradições. Esse papel de libertação está
associado à questão dos valores autênticos que por conta da dominação dos valores inautênticos se
encontram acobertados e esquecidos no inconsciente da classe trabalhadora.
Partindo dessa discussão, nossa concepção de valores está associada à discussão
apresentada por Viana que diferencia valores axiológicos de valores axionômicos. Os valores
68 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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axiológicos podem ser definidos como: “[...] aqueles valores que correspondem aos interesses da
classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais. Eles “transformam em
virtude”, aquilo que é para reprodução de uma determinada sociedade de classes, uma necessidade”
(VIANA, op. cit., p.34). Os valores axiológicos são os valores da classe dominante e representam as
necessidades, anseios e vontades dessa classe que acabam sendo universalizados por conta de
ideologias5 que legitimam os interesses dessa classe dominante através de instituições e
representações sociais, artísticas e culturais.
Os valores axionômicos podem ser definidos como uma “forma assumida pelos
valores autênticos, expressando, geralmente, os interesses das classes exploradas e/ou grupos
sociais oprimidos (VIANA, op. cit., p. 35). Os valores axionômicos são os valores reais e universais
que expressam as concepções dos grupos ou classes excluídas em uma determinada sociedade.
Portanto, nesse artigo, estamos partindo do pressuposto de que a música sertaneja
universitária é responsável por transmitir os valores axiológicos da classe dominante que são
transitórios, inautênticos, históricos e particularistas através de suas mensagens passadas através de
suas letras. Um exemplo disso está na música “Camaro Amarelo” que é interpretada por Munhoz &
Mariano. A letra da música diz o seguinte:
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x]
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
5
Ideologia como falsa consciência sistematizada, para utilizar a terminologia de Marx.
69 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo [2x]
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce
A escolha desta música deu-se por seu caráter hegemônico e dominante de sua
reprodução nos meios de comunicações (rádios, televisores, shows e etc.). De autoria da dupla
Munhoz & Mariano, oriundos da capital do Mato Grosso do Sul, Campos Grande, a música
inicialmente foi lançada na gravação do segundo DVD da dupla “Ao Vivo em Campo Grande Vol.
II” em maio de 2012 e posteriormente lançada em formato de download digital em 25 de junho de
2012. Em menos de seis meses, a música, de acordo com Crowley Broadcast Analysis 6, atingiu a
primeira posição da tabela brasileira das músicas mais tocadas e ouvidas nas grandes centrais
radiofônicas do Brasil. Portanto, impera-se uma análise de quais valores são reproduzidos e
perpetuados através do discurso da letra desta música.
De modo geral, a música conta a história, em primeira pessoa, de um jovem rapaz que
almeja chamar a atenção de uma moça. No entanto, por não portar elementos (dinheiro, carro,
status, etc.) que possibilitam o êxito de convencê-la de ser um rapaz que possa trazer o que ela
almeja e valoriza, acaba não conseguindo chamar sua atenção. Mas um acontecimento muda toda a
história: seu pai morre e o jovem rapaz recebe uma grande herança, transfigurando sua vida;
6
Crowley Brodcast Analysis é uma empresa que faz a monitoração em rádios, para informações musicais e de
veiculação publicitária. Outro elemento que demonstra sua importância para o capital fonográfico é que ela
fornece, desde 2009, as paradas para a revista Billboard Brasil que se baseia na grade-básica de rádios com mais de
350 emissoras.
70 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
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vestindo roupas de grife, cuidando de sua aparência, “andando igual um patrão” e, sobretudo, com
um novo carro: um Camaro Amarelo. É aqui que ocorre uma guinada na história: a moça, que antes
o ignorava, por ter apenas uma CG (modelo de uma moto popular), agora com a herança herdada,
torna-se interessada pelo rapaz, agora com status social e ostentando artigos de luxo. Mas o rapaz
despreza a moça, já que sua nova condição o faz ter possibilidades de chamar a atenção de várias
mulheres. E assim a história torna a repetir.
É evidente uma grande quantidade de elementos axiológicos presentes na letra desta
música. O primeiro deles é a valoração do dinheiro: o dinheiro como valor fundamental (VIANA,
2012). Com a intensificação da mercantilização das relações sociais após a instauração do regime
de acumulação integral, a cultura e o universo psíquico dos indivíduos acabam tornando-se cada vez
mais mercantilizados, fazendo com o que a essência do indivíduo, o Ser, seja obliterado e
substituído pela aparência do TER, como bem salientou Erich Fromm (1987). O rapaz só poderá
conseguir atenção caso tenha dinheiro, o que possibilita comprar roupas de grife, melhorar sua
aparência e, acima de tudo, obter um Camaro amarelo, mercadoria de grande apresso e fundamental
dentro da música. O status social do dinheiro, portanto, possibilita o indivíduo ter importância
dentro da sociedade capitalista. Outros elementos que estão subordinados a valoração do dinheiro,
tais como o tratamento de outro indivíduo como mercadoria, a valoração daquilo que o indivíduo
tem e não daquilo que ele é, reforçam o caráter axiológico dos valores inseridos na letra desta
música.
O exemplo de “Camaro Amarelo” de Munhoz & Mariano não constitui um caso isolado
dentro do universo da Música Sertaneja Universitária; a grande maioria das músicas deste “estilo”
refere-se a valores axiológicos do consumismo, da alienação enquanto relação social, do amor
romântico burguês, da valoração da ostentação e etc., tais como “Piradinha” de Gabriel Valim, “As
mina pira” de Gusttavo Lima, “Ai se eu te pego” de Michel Telo e entre outras. Claro que há
exceções, onde o discurso da ostentação e do dinheiro como valor fundamental não são reinantes,
como nas músicas de Victor & Léo, Paula Fernandes etc., no entanto, estes cantam representações
cotidianas que em grande medida são ilusórias, sobretudo sobre o amor romântico burguês.
CONCLUSÃO
A luta cultural perpassa uma luta mais ampla, que é a luta de classes. Nesse sentido,
a análise e crítica de produtos culturais que expressam valores axiológicos tornam-se necessários
para demonstrar que as relações sociais que constituem estes produtos culturais são determinadas,
não naturais e que reforçam a exploração e dominação.
Nesse sentido, a Música Sertaneja
71 VIANA, Gabriel Teles; ALMEIDA, Felipes Mateus de. Música sertaneja universitária e valores
dominantes: um estudo das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 60-71, Jul.
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Universitária cumpre um papel de obliterar o avanço na consciência para a emancipação humana e
perpetuar valores axiológicos da classe dominante.
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integral. São Paulo: Ideias & Letras, 2009, p. 41-93.
MUSICOGRAFIA:
MUNHOZ & MARIANO. Camaro Amarelo.
72 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
2013/Jan. 2014.
MARX E SATRE:
MÉTODO DIALÉTICO E REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS
Maria Angélica Peixoto
RESUMO
ABSTRACT
A discussão sobre a dialética encontra em Marx e
Sartre duas grandes referências. O presente artigo
busca analisar brevemente a concepção de dialética
destes dois autores e, após isto, realizar uma
comparação entre ambos. O objetivo, manifesto na
última parte do presente texto, é resgatar suas
contribuições para se pensar um referencial
metodológico e teórico que ajude a trabalhar a
questão das representações cotidianas.
The discussion of the dialectic in Marx and Sartre
finds two major references. This article seeks to
briefly examine the concept of the dialectic of these
two authors and, after that, to make a comparison
between them. The goal, manifest in the latter part
of this text, is to rescue their contributions to think
for a methodological framework and theoretical
work that helps the issue of everyday
representations.
Palavras-chave: Dialética, método, representações Keywords:
Dialectic
method,
cotidianas, Marx, Sartre.
representations, Marx, Sartre.
everyday
INTRODUÇÃO
Discutir o método dialético e analisar suas implicações na pesquisa social e das
representações cotidianas é algo urgente. Verificar as conexões entre a concepção de Marx e a de
Sartre é um elemento desse processo. O estudo do método dialético tem a contribuição de vários
autores e em meio à diversidade de interpretações e desdobramentos, esse recorte permite um
trabalho possível. O foco aqui será a concepção de Marx e após uma discussão sobre como esse
autor desenvolveu o método dialético, ver alguns apontamentos sobre o método dialético em Sartre
e assim estabelecer uma comparação entre ambos. Por fim, observar-se-á a contribuição destas duas
abordagens para se pensar uma pesquisa voltada para o fenômeno das representações cotidianas.
MARX E A DIALÉTICA
O método dialético em Marx tem como pressuposto o materialismo histórico, ou seja, a
teoria da história que aponta para a discussão sobre conceitos como luta de classes, relações de
produção, forças produtivas, consciência, superestrutura, entre outros. Nessa concepção de história,
Marx e Engels destacam que a consciência é expressão do ser social e que o modo de produção é a
base que institui as formas jurídicas, políticas e ideológicas ou “superestrutura”. O modo de
73 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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produção constitui um modo de vida, a divisão social do trabalho e as classes sociais – a partir de
certo nível do desenvolvimento histórico e das forças produtivas, quando surgem as sociedades
divididas em classes sociais antagônicas e, deste momento em diante, a história é a história das lutas
de classes. Esses aspectos não serão aqui desenvolvidos, por que nosso objetivo é trabalhar o
método dialético em Marx, cuja base está no materialismo histórico sendo que este fica, então,
subentendido.
O texto em que Marx desenvolve de forma mais aprofundada a discussão sobre o
método dialético é Contribuição à crítica da economia política (MARX, 1983). Por isso, tomarei
essa obra como eixo fundamental da discussão sobre método dialético, o que não impede de ver
outras contribuições em outras obras desse autor e de outros autores. Esse livro é um
aprofundamento das análises sobre o capitalismo que já havia iniciado e um esboço do que iria
desenvolver em O Capital. A obra parte da análise da mercadoria e da produção capitalista, e ao
mesmo tempo, que busca reconstituir no pensamento esse modo de produção, também lança mão e
critica a economia política em vários aspectos. Um destes aspectos se encontra no capítulo "O
método da economia política", no qual discute o método usado pelos economistas e aproveita para
expor o seu próprio método: o dialético. Depois dessa obra, publicada em vida, mas que, por
problemas pessoais e financeiros, inclusive ele afirmou que ninguém escreveu sobre "dinheiro
sofrendo de tal falta de dinheiro” produz outra em que aprofundaria mais ainda sua teoria do modo
de produção capitalista: O Capital (que também ficou inacabada).
Marx não estava preocupado em compreender apenas a existência de diversas formas de
sociedade, mas principalmente compreender o seu processo de transformação, o que significa
compreender a transição de uma forma de sociedade para outra. O objetivo do método dialético é
descobrir as leis dos fenômenos e mais ainda as suas leis de transformação (MARX, 1988). O
importante aqui é compreender o processo de transformação social. É por isso que Marx no
Prefácio à Contribuição à crítica da economia política irá apresentar a transformação da
correspondência entre forças produtivas e relações de produção e entre estas e a superestrutura em
contradição. É em determinado momento histórico que esta correspondência se transforma em
contradição e isto marca a instauração de um período de mudança social.
Para efetivar a análise do desenvolvimento histórico das sociedades humanas, Marx
utilizará o método dialético. Segundo Marx este método tem como objetivo descobrir as leis dos
fenômenos e de suas transformações. Marx diz que para se compreender o processo de
transformação social não se utiliza os mesmos procedimentos que um químico ou um físico. No
estudo da sociedade não se pode usar nem reagentes químicos, nem experiências de laboratórios e
devem ser substituídos pela faculdade de abstrair (MARX, 1988).
74 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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Em sua discussão sobre o Método da Economia Política Marx expõe os procedimentos
do método dialético. Segundo ele, o mais natural seria começar pelo que existe efetivamente, pelo
concreto. Foi assim que procedeu a Economia Política em seu nascimento. Ela partia sempre de
uma realidade viva, concreta e a partir daí, ia descobrindo as suas determinações mais simples. Por
exemplo, os economistas partiam do estudo da população e chegava a conceitos cada vez mais
simples, tais como: divisão social do trabalho, valor, mercado, entre outros. Marx irá considerar isto
equivocado. Considerará como o método científico correto o procedimento que foi adotado
posteriormente pela Economia Política. O método dialético consiste em chegar às determinações
mais simples, mais abstratas, já colocadas em evidência pela tradição do pensamento econômico,
até chegar a determinações cada vez mais complexas. É através do reconhecimento das diversas
determinações que se pode reconstruir o concreto no pensamento. O concreto, neste sentido, é a
síntese de suas múltiplas determinações. É através do processo de abstração que o pesquisador irá
reconstruir o concreto no pensamento, descobrindo, assim, suas determinações. Assim, o ponto de
partida, após as formulações teóricas, passa a ser a teoria e o concreto-dado e por isso o real, a
sociedade, “deve figurar sempre na representação como pressuposição”.
A abstração assume papel fundamental no método dialético. É com o recurso da
mediação do processo de abstração que se reconstrói o concreto no pensamento. (VIANA, 1998;
DAL ROSSO & GONZALES, 1994). Como ocorre este processo de abstração? Tal processo visa
compreender o aspecto essencial do fenômeno. Busca apreender sua determinação fundamental. Ele
é um processo mental de reconstituição do real na consciência humana, pois, embora o real exista
independentemente da consciência humana, é “somente quando esta trabalha a realidade através da
abstração” é que ele é reconstituído no pensamento, tornando-se consciente (VIANA, 1998, p. 52).
O ponto de partida e o ponto de chegada da pesquisa é o concreto. Porém, o concreto
que é o ponto de partida da pesquisa é um concreto não pensado, não determinado, mas que
continua sendo ponto de partida por ser o ponto de partida da intuição e da representação. Este é um
concreto dado. Através do processo de abstração que se descobrirá as múltiplas determinações do
fenômeno, que se chega ao concreto pensado, determinado: “não uma representação caótica de um
todo, mas uma rica totalidade de determinações e relações numerosas” (MARX, 1983, p. 218). A
gênese do concreto já é determinada na realidade e existe independentemente do pensamento, antes
de sua reconstrução mental.
Marx elabora o seu método dialético que toma a realidade social como fenômeno
histórico e transitório e por isso os conceitos ou as categorias que são expressões da realidade
também são históricos e transitórios. Cabe ao cientista buscar descobrir estas leis da transformação
social. Marx afirma que:
75 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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“Do mesmo modo em que toda a ciência histórica ou social em geral, é preciso nunca
esquecer, a propósito da evolução das categorias econômicas, que o objeto, neste caso a
sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como no cérebro; não esquecer que
as categorias exprimem, portanto, formas de existência determinadas, muitas vezes simples
aspectos particulares desta sociedade determinada, deste objeto, e que esta sociedade de
maneira nenhuma começa a existir, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir
do momento em que ela está em questão como tal” (MARX, 1983, p. 224).
Para Marx, o acesso à verdade é possibilitado para quem parte da perspectiva do
proletariado. Para Marx, partir da perspectiva burguesa é um obstáculo ao desenvolvimento da
consciência. Para ter acesso à verdade é preciso partir da perspectiva contrária, ou seja, da
perspectiva do proletariado. Segundo suas próprias palavras:
“O desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía a possibilidade de
qualquer desenvolvimento original da economia burguesa, mas não a sua crítica. À medida
que tal crítica representa, além disso, uma classe, ela só pode representar a classe cuja
missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das
classes — o proletariado” (MARX, 1988, p. 24).
Esse breve resumo do método dialético de Marx é por demais resumido, sendo que
existem diversos outros aspectos e questões envolvidas. Não poderei desenvolver uma análise mais
extensa do mesmo, pois o objetivo do presente trabalho remete para a comparação com a concepção
de Sartre de método dialético e suas repercussões no processo da pesquisa social e das
representações cotidianas mais especificamente, o que limita a possibilidade de uma análise mais
extensa.
SARTRE A DIALÉTICA
Sartre parte para a discussão sobre o método dialético a partir de sua concepção
existencialista, que ele formula duas versões, sendo a primeira versão mais fenomenológica e a
segunda mais próxima do marxismo (VIANA, 2008a). A obra O Ser e o nada faz parte da primeira
concepção e a obra Crítica da razão dialética (2002) faz parte da segunda.
A dialética sartreana se distingue da engelsiana (ENGELS, 1996). Engels pensa a
dialética como existindo na natureza, sendo composta por leis do pensamento, da sociedade e da
natureza (ENGELS, 1996). Sartre terá objeções a Hegel, Marx e outros, apesar de sua proximidade
com o último, mas não deixará de criticar a concepção engelsiana de dialética. Um dos elementos
de crítica de Sartre a Engels é a partir do pressuposto que as ideias não se impõem à matéria. A
relação entre ideia e matéria é mais problemática do que parece à primeira vista. A primazia da
matéria reside no fato do objeto se revelar aos nossos olhos, gerando o modo de abordagem.
Sartre parece ficar entre uma análise hegeliana e marxista, mas reconhece que o ser é
irredutível à consciência, existe um processo de totalização que não está finalizado e o objeto possui
a primazia sobre o sujeito. A questão do sujeito humano, para Sartre, remete ao mundo humano. É
76 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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neste contexto que ele observa a união do sujeito com a humanidade. O mundo social é o mundo de
indivíduos múltiplos, do prático-inerte. Nesse nível, aparece a classe social como coletivo: “no nível
do campo prático-inerte, ela revela-nos a classe como coletivo, e o ser-de-classe como um estatuto
de serialidade imposto à multiplicidade que a compõem” (SARTRE, 1987, p. 33). O vínculo do
indivíduo com a humanidade se dá via sua posição social, marcada pela escassez e pelo conflito
derivado dela. Sartre, assim, não abandona a luta de classes, elemento fundamental do pensamento
de Marx.
Nosso método é heurístico, ele nos ensina coisas novas porque é regressivo e progressivo
ao mesmo tempo. Seu primeiro cuidado é, como o do marxista, recolocar o homem no seu
quadro1. Pedimos à história geral que nos restitua as estruturas da sociedade
contemporânea, seus conflitos, suas contradições profundas, e o movimento de conjunto
que estas determinam. Assim, temos de início um conhecimento totalizante do momento
considerado, mas, em relação ao objeto de nosso estudo, este conhecimento permanece
abstrato. Começa com a produção material da vida imediata e completa-se com a sociedade
civil, o Estado e a ideologia. Ora, no interior deste movimento, nosso objeto já figura e é
condicionado por estes fatores na medida mesma em que ele os condiciona. Assim, sua
ação já está inscrita na totalidade considerada, mas permanece para nós implícita e abstrata.
De outro lado, temos certo conhecimento fragmentário de nosso objeto: por exemplo,
conhecemos já a biografia de Robespierre na medida em que é uma determinação da
temporalidade, isto é, uma sucessão de fatos bem estabelecidos. Tais fatos parecem
concretos porque são conhecidos pormenorizadamente, mas falta-lhes a realidade, uma vez
que não podemos ainda vinculá-los ao movimento totalizador. Esta objetividade não
significante contém em si, sem que nela possamos apreendê-la, a época inteira cm que
apareceu, da mesma maneira que a época, reconstituída pelo historiador, contém esta
objetividade. E, entretanto, nossos dois conhecimentos abstratos caem fora um do outro.
Sabe-se que o marxista contemporâneo pára aqui: ele pretende descobrir o objeto no
processo histórico e o processo histórico no objeto. Na realidade, ele substitui um e outro
por um conjunto de considerações abstratas que se referem imediatamente aos princípios. O
método existencialista, ao contrário, quer permanecer heurístico. Não terá outro meio senão
o "vaivém": determinará progressivamente a biografia (por exemplo), aprofundando a
época, e a época, aprofundando a biografia. Longe de procurar integrar logo uma à outra,
mantê-las-á separadas até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um
termo provisório na pesquisa (SARTRE, 1987, p. 170-171).
Sartre reconhece o método dialético como um “método heurístico”, tal como defendido
por Korsch (2008) e Viana (2007a; 2007b) e defende a necessidade do vaivém entre o indivíduo e a
totalidade. Esse processo significa uma revalorização do indivíduo, o que era de esperar em uma
abordagem existencialista, e uma crítica ao “marxismo contemporâneo”, que fica nas abstrações
gerais e desconsidera do indivíduo. Nesse sentido, a abordagem de Sartre se diferencia da de Marx,
mas de forma não tão intensa como seria de se imaginar. Isso, obviamente, é resultado da
aproximação de Sartre em relação ao pensamento marxista. Também é possível imaginar que tal
aproximação é apenas metodológica, mas, no entanto, a proximidade de Sartre com o pensamento
de Marx é mais geral e adentra para outras questões (VIANA, 2008a), que por não ser objeto do
presente artigo será deixado de lado.
1
Outra tradução coloca “contexto” (SARTRE, 1967).
77 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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MARX, SARTRE E A PESQUISA SOCIAL COM REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS
O objetivo central do presente artigo é realizar uma comparação geral do pensamento de
Marx e Sartre, a nível metodológico, para observar seus desdobramentos na pesquisa social, mais
especificamente na pesquisa com representações cotidianas. A pesquisa com representações
cotidianas tem como base teórico-metodológica o marxismo, sendo que algumas obras são
fundamentais em sua constituição (MARX e ENGELS, 1992; VIANA, 2008b). Esta é uma
abordagem que se distingue de outras e que vem recebendo diversos estudos e pesquisas, ganhando
contribuições teóricas (VIANA, 2008b; PEIXOTO, 2010; VIANA, 2013a; VIANA, 2013b;
SOARES et al. 2011) e empíricas (PEIXOTO, 2010; LACHTIN, 2010; SOARES e LACHTIN,
2011; PANINO, 2010). Nesse sentido, torna-se útil e importante analisar a vitalidade da discussão
metodológica de Marx e Sartre e sua contribuição para a pesquisa social com representações
cotidianas. O procedimento a seguir parte de uma comparação entre estes autores e o que eles
podem fornecer de contribuição metodológica para a pesquisa social com representações cotidianas.
A breve, e também muito incompleta, síntese da concepção sartreana de dialética, bem
como da marxista, deixa transparecer um antagonismo com a concepção de Marx. Contudo, mais do
que antagonismo o que há é um desdobramento e, em certos momentos, uma oposição. Os
desdobramentos se encontram no fato de que Sartre aponta como preocupação principal o indivíduo
– e daí sua discussão sobre biografia. Daqui também podemos encontrar uma oposição. Essa
oposição, no entanto, não é antagonismo. A oposição é diferenciação, distinção, diferença, o
antagonismo é o irreconciliável (CHAUÍ, 1990).
Quando Sartre afirma que seu método é heurístico, no fundo, coincide com Marx. Este,
em seu Prefácio à Crítica da economia Política, coloca que sua teoria dos modos de produção é um
“fio condutor” e Karl Korsch (2008) destacará que a dialética é um instrumento heurístico. Aliás,
não é sem motivo que Sartre critica os “marxistas” (na passagem citada fala de “marxistas
contemporâneos”) e não Marx. Numa análise marxista sobre o indivíduo, usando o método
dialético, ele deveria ser entendido como algo concreto, ou seja, síntese de múltiplas determinações.
Isso coincide com a situação como apontado por Sartre, o “quadro”, “contexto”. Nesse caso, Sartre
inova ao colocar a necessidade do vaivém, de pensar o indivíduo no interior da época e a época com
relação ao indivíduo. Marx não abandonou essa possibilidade, mas ao não se preocupar com a
explicação do indivíduo, pouco desenvolveu nesse aspecto.
Claro que a concepção de Sartre deve ter sido inspiradora do método regressivoprogressivo de Henri Lefebvre (1981a; 1981b). Deste autor, a ideia apontada por Frehse, é também
útil para nossa análise:
78 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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Se, como afirma Lefebvre, a “lei de desenvolvimento desigual de formas análogas e de
interação dessas formas parece ser uma das grandes leis da história”, isso implica que num
mesmo espaço, “local de pesquisa”, convivam essas relações sociais e concepções
historicamente diversas (FREHSE, 2001, p. 180).
Ao recordar Marx, segundo o qual devemos evitar as especulações (MARX e ENGELS,
1992) ou Sartre, ao abordar a primazia do objeto, percebe-se que é extremamente útil realizar uma
reflexão sobre a contribuição metodológica de ambos para a pesquisa social. Não deixa de ser
importante tanto a discussão geral sobre método quanto observar as potencialidades do método para
tal processo de pesquisa. A pesquisa com representações cotidianas pode ganhar bastante com
reflexões metodológicas e estabelecimento de relações destas com o processo concreto de
realização da pesquisa social.
O primeiro ponto é a discussão sobre o conceito básico de nossa análise. Como Marx
coloca, toda pesquisa deve partir das determinações mais simples para chegar às mais complexas, e
tais determinações são reconstituídas através dos conceitos. O conceito fundamental aqui é o de
representações. Nesse sentido, abordarei a concepção de representações na obra de alguns autores
para expor a que adotarei. A abordagem das representações sociais é uma das grandes referências
hoje. Ela se inspira, em parte, em Durkheim (1994). A concepção de representações sociais esteve
em evidência durante os anos 1990 e foi perdendo espaço progressivamente. As críticas endereçadas
a esta concepção (VIANA, 2008b) fizeram desabar seu edifício ideológico. A obra de Moscovici
(1977), o grande arquiteto dessa concepção, mostra lacunas e problemas não superados. Um dos
principais pontos problemáticos dessa abordagem é que, para ela, as representações são objetivas,
verdadeiras.
Desta forma, é necessário buscar caminhos alternativos. Um destes caminhos é a
inspiração no sociólogo Henri Lefebvre. A abordagem de Lefebvre, inspirada em Hegel e
principalmente Marx, aponta para uma visão contrária à da concepção de representações sociais.
Uma das principais divergências das duas abordagens reside no fato de para Lefebvre as
representações são falsas: “A força das representações reside nessa capacidade de estabelecer
vínculos inexistentes no plano da realidade, mas bastante eficazes quando representados” (ABREU,
2003: 49). Assim, notamos a diferença entre a concepção de Lefebvre e a das representações
sociais. Inclusive ele usa apenas o termo representações, mas não sociais, por julgar que todas as
representações são sociais (LEFEBVRE: 2006). A sua abordagem vem sendo resgatada por diversos
pesquisadores (ALMEIDA: 2001; ABREU: 2003) e se torna uma concepção alternativa para a
abordagem das representações sociais.
Contudo, é possível encontrar uma conexão entre estas duas concepções e a de Marx.
Assim, alguns autores tentaram relacionar ou vincular a concepção de Marx e a abordagem das
79 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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representações sociais (SAWAYA, 1995; SOUSA FILHO, 2003), mostrando a vitalidade do
pensamento deste autor. Por outro lado, Henri Lefebvre tem como uma das fontes inspiradoras o
pensamento de Marx. Nesse contexto, a oposição entre a concepção de Lefebvre que coloca as
representações como falsas e a abordagem das representações sociais que as colocam como
verdadeiras pode ser resolvida pela posição de Marx cuja tese mostra concordância e ao mesmo
tempo discordância em relação a ambas as posições.
Para Marx, as representações podem ser reais ou ilusórias, verdadeiras ou falsas. Se
existe limitação nas relações sociais reais, então haverá limitações nas próprias representações e é
assim que elas são explicadas:
As representações que estes indivíduos elaboram são representações a respeito de sua
relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria
natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são a expressão
consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção,
de seu intercâmbio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas
possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente
condicionados, um outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais deste
indivíduo é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto
é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais
limitadas que daí resultaram (MARX & ENGELS, 1992: 36).
Desta forma, as representações podem ser falsas ou verdadeiras e é essa uma
contribuição de Marx que não é possível descartar. Curiosamente, depois de Marx já ter
estabelecido a discussão num nível superior, outros, inclusive tomando como base seu pensamento,
realizam o retrocesso e caem no equívoco de considerar que as representações sejam sempre falsas
ou sempre verdadeiras.
É por isso que é necessário resgatar a concepção de Marx e desenvolvê-la, inclusive no
sentido da pesquisa social. A teoria das representações cotidianas (VIANA, 2008b), lança as bases
desse processo de retomada, por um lado, da concepção de Marx sobre as representações e,
desenvolvimento, por outro. Esse é um processo que vem sendo desenvolvido contemporaneamente
(PEIXOTO: 2010; VIANA: 2008b) e consiste não apenas em mostrar que as representações podem
ser verdadeiras ou falsas mas no sentido de desenvolver uma análise mais profunda, tal como
compreender as suas características formais e de conteúdo, entender que no mundo das
representações cotidianas existe um núcleo fundamental que é composto pelas convicções e um
conjunto de elementos que são ideias sem maior enraizamento nos valores e crenças dos indivíduos,
o mundo das opiniões, de caráter mais passageiro e menos firme (VIANA, 2008b). Entender que as
representações cotidianas são formas de pensamento simples, cuja simplicidade é uma característica
80 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
2013/Jan. 2014.
complementada pela regularidade e pela naturalização2 e que, portanto, são diferentes do
pensamento complexo (VIANA, 2008b) é outro elemento importante.
Se a base teórico-metodológica da teoria da representações cotidianas é fundada no
marxismo, então nada mais adequado do que a contribuição de Marx e Sartre na pesquisa social
sobre este fenômeno. O primeiro elemento é a exigência metodológica de dar mais atenção à
situação real do que à consciência” (LAPASSADE, 1975) e é por isso que o estudo das
representações cotidianas remete, necessariamente, ao seu processo de produção (VIANA, 2008b)
que é, evidentemente, social. Isso significa manter-se estritamente de acordo com a proposição
metodológica de Marx, ter a sociedade como pressuposição, e teórica, segundo a qual é a vida que
determina a cosciencia (MARX, 1983) e não o contrário, como supõe os idealistas.
Desta forma, para saber como se pode reconstituir as representações cotidianas no
pensamento esses apontamentos metodológicos são fundamentais. É preciso entender o “contexto”,
a “época”, a “sociedade”, tal como Marx e Sartre colocam. A exigência metodológica de focalizar
mais as relações sociais concretas do que as representações cotidianas (VIANA, 2008b;
LAPASSADE, 1975) não é mais do que a tradução de um princípio do método dialético. Esse
processo, no entanto, requer pesquisa sobre as relações sociais, além do acesso às representações
cotidianas. As relações sociais concretas são a base das representações cotidianas e ambas precisam
estar presentes no processo da pesquisa para atender à exigência metodológica dialética.
O passo seguinte é analítico, é buscar as determinações, desde as mais simples até as
mais complexas, das representações cotidianas e isso requer análise das relações sociais concretas.
Nesse ponto, a contribuição de Sartre se manifesta de forma mais cristalina. Além da necessidade
do vaivém entre relações sociais concretas e representações cotidianas, é preciso entender não só o
contexto de produção das relações sociais mas também a inserção dos indivíduos nesse contexto. O
modo de vida e a cotidianidade que estão na base da produção das representações cotidianas não são
homogêneas na sociedade capitalista, elas são perpassadas pela divisão social do trabalho (VIANA,
2008b), especialmente na sua forma de divisão de classes, mas não somente nesta. Nesse momento,
a contribuição de Sartre ajuda no sentido de colocar que as representações cotidianas são de um
indivíduo, com determinado pertencimento de classe, raça, sexo, entre outras determinações, que se
manifestam num contexto geral, num conjunto de relações sociais. Por isso, é preciso ver a posição
do individuo no interior das relações sociais. E ver o seu histórico, pois sua situação não é estática e
suas representações cotidianas foram construídas historicamente (VIANA, 2013b).
2
“A vida cotidiana é a base real sob a qual se erguem as representações cotidianas. Nada mais natural, portanto, que as
representações cotidianas estejam impregnadas de cotidianidade e suas características. As três características. As três
características da cotidianidade que apontamos anteriormente estão também presentes nas representações oriundas
desta cotidianidade: naturalização, simplificação e regularidade” (VIANA, 2008b: 111).
81 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
2013/Jan. 2014.
Após ter o acesso ao material informativo sobre as relações sociais concretas e
representações cotidianas o processo prossegue com o momento da análise, no qual se utiliza a base
teórico-metodológica da pesquisa para sua realização3. O referencial teórico auxiliará a ordenação e
análise do material informativo oriundos das entrevistas4 e demais informações adquiridas. A etapa
posterior será a análise de conjunto e revisão do material informativo em seu conjunto, visando
reconstituir as representações cotidianas no pensamento. Desta forma percebemos que a concepção
de Marx e Sartre a respeito do método dialético abrem novas e amplas perspectivas para a pesquisa
social e contribuem com a pesquisa em representações cotidianas, mais particularmente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conclusão final depois das considerações anteriores é a de que a abordagem dialética
é rica em potencialidades analíticas. Ela visa, ao mesmo tempo, perceber as condições sociais e
históricas, por um lado, e as representações, por outro. Assim, tal como apontado por Marx, visa
compreender as representações a partir de sua inserção numa determinada realidade social e ao
mesmo tempo analisar as condições sociais nas quais elas emergem e, como coloca Sartre,
observando o vaivém entre condições reais e representações, ampliando, por conseguinte, a
capacidade analítica do pesquisador, já que não se restringe apenas ao contexto e nem somente ao
indivíduo, mas em relações complexas e de influência recíproca entre ambos.
O método dialético em Marx e a contribuição de Sartre ajudam a pensar e fundamentar
a base metodológica de análise das representações cotidianas e da pesquisa social em geral. O
quadro comparativo entre os dois autores, ao demonstrar a inexistência de antagonismo, abre
amplas perspectivas de desenvolvimento de pesquisas fundadas na contribuição destes dois autores
e outros que compartilhar a mesma perspectiva de uma dialética crítica.
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subjetividade na acadêmica dos psicólogos. Cadernos de Pós-Graduação em Educação/Uninove,
vol. 02, 2003.
3
Alguns autores distinguem entre análise e interpretação, enquanto que outros englobam esta última na primeira.
Concordo com esta última concepção, que é a de Minayo: “somos partidários desse posicionamento por acreditarmos
que a análise e a interpretação estão contidas no mesmo movimento: o de olhar atentamente para os dados da pesquisa”
(MINAYO, 1998: 68).
4
O mais adequado, no caso da pesquisa com representações cotidianas, é o uso da entrevista interpretativa (VIANA,
2013b; PEIXOTO, 2010), um desenvolvimento do “questionário interpretativo” (FROMM e MACCOBY, 1972).
Embora, se o foco for as opiniões ao invés das convicções, aí seja possível usar outras técnicas de pesquisa (VIANA,
2013b).
82 PEIXOTO, Maria Angélica. Marx e Satre: método dialético e representações cotidianas. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 72-83, Jul.
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2014.
QUESTÕES SOBRE MERCADORIA E CONSUMO EM KARL MARX
Erisvaldo Souza
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo tem como objetivo desenvolver
uma análise sobre algumas questões fundamentais
sobre a mercadoria e consumo a partir da
perspectiva de Karl Marx. Esta análise parte das
principais obras deste autor para fundamentar
conceitualmente
este
trabalho.
Destaca-se
inicialmente a questão destas obras, bem como seu
método de análise da sociedade, que é o método
dialético. Seus textos iniciais sobre Economia
Política são importantes para essa análise, mas
posteriormente a obra O Capital que vai nos
possibilitar ampliar a discussão, pois é onde o autor
trabalha de forma mais aprofundada estas questões.
Analisa-se a partir da perspectiva do autor, a
produção de mercadorias, a distribuição e o
consumo das mesmas, bem como busca-se
compreender o consumo a partir da produção de
mercadorias e do próprio fetichismo que também é
analisado neste artigo.
This article aims to develop an analysis of some key
questions about the merchandise and consumption
from the perspective of Karl Marx. This analysis
part of the main works of this author to be able to
justify conceptually this work. Initially the question
stands out of these works, as well as its method of
analysis of society, which is the dialectical method.
Their initial texts on political economy are important
for this analysis, but subsequently the work the
Capital that will enable us to broaden the discussion,
because that's where the author works further these
issues. Analyzed from the perspective of the author,
goods production, distribution and consumption of
the same, as well as seeks to understand the
consumption from the production of goods and own
fetishism which is also analyzed in this article.
Palavras-chave:
Mercadoria,
Distribuição, Trabalho.
Keywords: Commodity, consumption, distribution,
Work.
Consumo,
INTRODUÇÃO
O livro O Capital é uma das principais obras de Karl Marx, onde ele desenvolve uma
análise aprofundada da sociedade capitalista e seus diversos aspectos, dentre eles: sociais, políticos,
econômicos e culturais etc. Para desenvolver sua análise, Marx parte da análise dos economistas
clássicos, principalmente Adam Smith e David Ricardo, ao mesmo tempo em que mostra suas
limitações, pois estes partiam de uma perspectiva da economia burguesa, ou seja, estes eram
defensores do liberalismo enquanto doutrina, perspectiva contrária a de Karl Marx, que para
analisar a sociedade capitalista, partiu da visão dos explorados, ou seja, da classe trabalhadora.
Para entendermos a questão da mercadoria e do próprio consumo na obra de Marx, é
necessária a análise destas que são importantes para o desenvolvimento tanto de sua obra como de
seu método de análise da sociedade capitalista, como é o caso de Os Manuscritos Econômico-
85 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
2014.
Filosóficos (2004); Para a Crítica da Economia Política (1978a); Salário, Preço e Lucro (1978b);
O Capital (1988), seu método de análise está expresso de forma embrionária no Manifesto do
Partido Comunista de 1848 (1998) escrito em conjunto com Engels e que foi desenvolvido de
forma mais sistemática em O Capital, mas seu método está presente em toda sua obra.
Em Para a Crítica da Economia Política de 1857, Marx desenvolve alguns
apontamentos teóricos e metodológicos de algumas questões que serão analisadas em sua obra
máxima O Capital, o autor nos possibilita o entendimento de alguns elementos como: a produção, o
consumo, troca e a distribuição de mercadorias, pois nesse contexto específico o capitalismo como
modo de produção estava se consolidando. “A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial.
Este mercado desenvolveu enormemente o comércio, a navegação, a comunicação por terra” (Marx
& Engels, 1998, p. 11,12).
Para Marx, o objeto de seu estudo em Para a Crítica a Economia Política, é em
primeiro lugar a produção material, “indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos
indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida” (Marx, 1978a, p. 103). A
sociedade capitalista tem por base a produção de mercadorias a partir do trabalho humano, onde
normalmente o fruto deste trabalho não pertence ao trabalhador, que é expropriado pelo capitalista,
é neste sentido que Marx analisa a produção material na sociedade capitalista, ou seja, a produção
social de determinados indivíduos, que podemos chamar de classes sociais que compõem a
sociedade capitalista.
“Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços
naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado
humano limitado” (Marx, 1978a, p. 103). A sociedade capitalista é marcada pela luta de classes que
gera a concorrência e disputa entre as classes sociais, e até mesmo entre os indivíduos isolados que
buscam se inserir nesta mesma sociedade, esta disputa acontece nos diversos espaços da sociedade e
com objetivos distintos, neste caso, não é somente uma concorrência econômica, mas também
política, social e cultural. Assim, pode-se colocar:
A ideia que se apresenta por si mesma é esta: na produção, os membros da sociedade
apropriam-se [produzem, moldam] dos produtos da natureza para as necessidades humanas;
a distribuição determina a proporção dos produtos particulares em que queira converter a
quantia que lhe coube pela distribuição, finalmente no consumo, os produtos convertem-se
em objetos de desfrute individual (Marx, 1978a, p. 107).
É a produção que vai criar os objetos e que irão corresponder as necessidades humanas.
Por outro lado só é possível a produção a partir do trabalho humano, mas antes temos a
transformação da natureza que também é fruto da ação humana. Desses diversos aspectos
86 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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analisados por Marx, sejam eles, produção, troca, distribuição, consumo, é também imediatamente
produção. Vejamos essa questão de forma mais organizada:
A produção é pois, imediatamente consumo; o é, imediatamente, produção. Cada qual é
imediatamente, seu contrário. Mas ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador
entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais não
teria objeto. Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o
sujeito, para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo
(Marx, 1978a, p. 109).
Marx ainda exemplifica que, sem a produção não há consumo, mas sem consumo
tampouco há produção, desta forma, ele diz que o consumo produz de uma dupla maneira a
produção, porque na realidade o produto só se torna um produto efetivo quando é consumido. Está
presente uma relação direta um com o outro, mas ao mesmo tempo é o seu contrário, Marx coloca
ainda outro elemento fundamental, ao afirmar que o consumo cria a necessidade de uma nova
produção, ou seja, o fundamento ideal que move internamente a produção, e que é a sua
pressuposição.
Algumas questões discutidas por Marx e em outros momentos por Marx & Engels, são
fundamentais para que possamos entender a formação histórica da sociedade capitalista, desta
forma a discussão do seu método de análise (que será realizado em outro momento), a definição de
mercadoria, consumo, distribuição, produção etc. são conceitos importantes para o desenvolvimento
deste artigo.
Neste sentido buscando ainda um entendimento sobre a sociedade capitalista, “a
burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou
para si, no Estado representativo moderno autoridade política exclusiva” (Marx & Engels, 1998, p.
12,13). A burguesia como classe social precisa se instalar em todos os lugares para poder produzir e
vender suas mercadorias. Desta forma: “precisa instalar-se em todos os lugares, estabelecer
conexões em todos os lugares” (Marx & Engels, 1998, p. 15). Isto quer dizer que a burguesia como
classe social vai se organizando e estabelecendo conexões em todo o mundo, pois de forma isolada,
esta deixaria de existir. Assim, “a burguesia, por meio de sua exploração do mercado mundial, deu
um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países” (Marx & Engels, 1998, p.
14).
De fato a produção capitalista no que diz respeito ao conjunto de mercadorias
produzidas e sua forma de estabelecer um mercado mundial, torna, pessoas e produtos em “coisas e
que estas são cosmopolitas, pois na sociedade contemporânea, não há como negar esse caráter das
mercadorias, inclusive da música, mesmo existindo contradições na sociedade capitalista, onde
alguns países têm uma economia desenvolvida e outros de economia subordinada, mas como coloca
87 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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o próprio Marx, quando falamos na produção artística ou cultural, esta independe da produção
material de determinada sociedade, isto quer dizer que podemos ter uma produção cultural
desenvolvida em um país da periferia do capitalismo.
Cabe ressaltar ainda que “a burguesia, pelo aperfeiçoamento rápido de todos os
instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, arrasta todas as
nações, até a mais bárbara, para a civilização” (Marx & Engels, 1998, p. 16). É a renovação,
transformação das técnicas de produção que ocorrem na sociedade capitalista, que faz com que a
produção de mercadorias passa a se expandir por todo o mundo, os meios de comunicação é outro
elemento facilitador da expansão capitalista, neste caso, estes acabam reproduzindo o modo de
produção capitalista, pois é no contexto do século XIX que os meios de comunicação e a própria
difusão em massa começa a acontecer em alguns países da Europa, é a origem da chamada indústria
cultural que no século XX será fruto de diversos estudos e polêmicas, mas vem contribuir de forma
pontual para a produção e reprodução dos produtos da cultura.
Vimos que com seus produtos, a burguesia arrasta as mais bárbaras sociedades para o
mundo civilizado, este mundo civilizado é o mundo burguês, é por isso que Marx vai afirmar que
esta classe social cria um mundo à sua imagem, ou seja, o melhor mundo é o mundo burguês, fato
este que deve ser contestado, pois nem sempre as mercadorias capitalistas satisfazem as
necessidades humanas, o próprio Marx realiza essa crítica e ao mesmo tempo busca superar esse
modelo de sociedade.
A história das sociedades que Marx estudou ao longo de sua vida, principalmente a
sociedade capitalista em sua totalidade, é o objeto de pesquisa desse autor em O Capital, que de
alguma forma resume e retoma parte da sua produção intelectual, bem como vai influenciar
diversos outros estudos sobre sociedade, economia, história, política etc. Esta obra é fundamental
para o entendimento da sociedade capitalista que estava se consolidando e se ampliando no contexto
do século XIX.
Na primeira parte desta obra, o autor analisa a mercadoria, pois segundo ele, a riqueza
das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma “imensa coleção
de mercadorias” e a mercadoria individual como sua forma elementar, assim ressalta o autor, nossa
investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria.
Para encaminharmos o nosso entendimento, faz-se necessário fazer alguns
questionamentos: o que é a mercadoria? Quais são suas características? São questões iniciais que
ajudam a pensar o tema proposta neste artigo. Marx afirma que: “a mercadoria é, antes de tudo, um
objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de
qualquer espécie” (Marx, 1988, p. 45). A mercadoria não é uma coisa única, esta se apresenta em
88 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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suas múltiplas determinações como pressupõe o método dialético de Marx, para satisfazer
necessidades humanas em seus diversos aspectos e que estas necessidades podem se organizar tanto
do estômago como aponta Marx, como da fantasia, que não irão alterar em nada na coisa, ou seja,
na mercadoria.
Fazendo uma relação com a indústria cultural, podemos afirmar que esta além de
produzir mercadorias culturais a partir do trabalho humano, também de alguma forma acaba
produzindo “fantasias” e que são consumidas em todo o mundo, pois as mercadorias em uma forma
de comércio mundializado são vendidas em todos os lugares, obviamente que algumas realidades
são distintas umas das outras, neste caso a produção, difusão se dá também de forma diferente.
A mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor falso. A mercadoria é valor de
uso ou objeto de uso e “valor”. Ela apresenta-se como esse duplo que ela é, tão logo seu
valor possua uma forma rápida de manifestação, diferente da sua forma natural, a do valor
de troca, e ela jamais possui essa forma quando considerada isoladamente, porém sempre
apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de tipo diferente. No
entanto, uma vez conhecido isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo, mas serve
como abreviação (Marx, 1988, p. 62,63).
Podemos dizer que as mercadorias não são coisas simples, e que às vezes ela acaba
confundindo a mente dos indivíduos desatentos, pois estas vão além do simples valor de uso e de
troca. Todas as mercadorias têm algo em comum, Marx afirma que: “deixando de lado então o valor
de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos
do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos” (Marx,
1988, p. 47). Toda mercadoria existe a partir da ação humana (trabalho), isto quer dizer que uma
mercadoria é trabalho acumulado, e que a partir do acúmulo de trabalho na produção dessas
mercadorias, estas passam a ter um valor mercantil, onde o trabalho humano acrescenta valor a
estas mercadorias.
Marx ainda coloca que: “portanto, um valor de uso ou bem possui valor, apenas, porque
nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato” (Marx, 1988, p. 47). Isto quer dizer
que sem o trabalho humano não há mercadorias no sentido capitalista do termo, pois eu posso muito
bem produzir um valor de uso, sem ser valor de troca ou até mesmo mercantil. Segundo Marx, todo
trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa
qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo
trabalho, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente
adequada a um fim, e essa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso.
Em relação à música em geral, esta forma um público que não é homogêneo, pois cada
classe social estabelece seu gosto musical, ou é influenciada pelos meios de comunicação que tem
seus interesses, que é a produção, difusão e venda de objetos musicais (música), vale dizer que o
89 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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produto musical não é um mero fragmento, este é um elemento dentro de uma totalidade. No
modelo de produção da sociedade capitalista, existe uma relação entre o produtor e seu produto.
“Entre o produtor e os seus produtos se coloca a distribuição, a qual, por meio de leis sociais,
determina sua parte no mundo dos produtos e interpõe-se, portanto, entre a produção e o consumo”
(Marx, 1978a, p. 112). É outro elemento presente na análise que Marx desenvolve, onde a
distribuição é a mediadora entre produção e consumo. O autor aponta alguns resultados que são
importantes para entendermos esse conjunto de elementos: “o resultado a que chegamos não é que a
produção, a distribuição, o intercambio, o consumo, são idênticos, mas que todos eles são elementos
de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (Marx, 1978a, p. 115).
Por fim, o autor afirma que as necessidades do consumo determinam a produção. Esta
produção acontece a partir do interesse das classes sociais em luta é por isso que Marx afirma que o
motor da história é a luta de classes que acontece na sociedade, onde a classe burguesa produz sua
ideologia ao mesmo tempo em que coloca os seus interesses particulares como sendo coletivos.
Neste caso ver a obra A Ideologia Alemã de Marx e Engels (2005).
A música como manifestação social/espiritual pode ser uma forte aliada contra a
alienação ou até mesmo a ideologia produzida pela classe dominante e seus ideólogos, pois a
música e suas manifestações podem contribuir com um pensamento contestatório, mas esta também
está vinculada a sociedade capitalista. Essas contradições colocadas existem nas relações sociais
cotidianas, mas em alguns momentos estas podem se desenvolver, aumentando assim, o
acirramento entre as classes sociais, ou até mesmo a contestação completa da sociedade.
O método de Marx é o método dialético que ele utiliza como recurso heurístico para a
análise da sociedade. O correto para Marx é começar pelo real e pelo concreto, que são a
pressuposição prévia e efetiva, mas o pesquisador não deve partir de concepções equivocadas como
fizeram os economistas clássicos que analisaram somente determinados aspectos da sociedade
capitalista, bem como a produção da vida material.
O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social,
político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em uma certa etapa de seu
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com
as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica,
com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão
jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham
movido (Marx, 1978, p. 130).
A sociedade em geral neste caso pode incluir as diversas classes sociais que integram
esse modo de produção da vida material e que de alguma forma vai possibilitar a vida social, até
mesmo formas de vida que não acontecem somente a partir de uma determinação econômica, como
90 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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foi muito discutido ao longo da história do marxismo, mas também outras formas, como: sociais,
políticas e principalmente culturais e que na verdade o ser social é o ser consciente, não aquele ser
que passa a acreditar nas fantasias da sociedade capitalista e de uma classe dominante.
Para que possamos entender a mercadoria a partir da concepção marxista de sociedade e
o consumo que é a nossa proposta inicial, torna-se fundamental uma análise sobre a concepção de
trabalho expressa em Marx, pois sem trabalho humano não há produção de mercadorias ao modelo
da sociedade capitalista. O trabalho é uma categoria fundamental para que possamos entender a
obra de Marx, desta forma ele afirma que nesse processo de trabalho acontece a alienação do
trabalhador que é reduzido a uma simples mercadoria, que também é vendida no mercado como
qualquer outra mercadoria, aqui está presente a relação entre mercadoria e trabalho ou seu contrário.
Para Marx (2004) o trabalho dentro do sistema de produção industrial capitalista,
inexoravelmente, leva à alienação do homem, que “objetifica” diante da máquina e se torna uma
ferramenta, instrumento utilizado pelo capital a fim de explorá-lo. Este mesmo operário no processo
de produção de mercadorias, quanto mais riqueza produz, mas pobre ele fica, pois os objetos
produzidos por ele, não pertencem a ele.
Marx analisa as relações de trabalho no contexto do século XIX período marcado pelo
avanço do capitalismo, principalmente na Inglaterra, principal país capitalista desse período. É um
momento onde as relações de trabalho estão sendo transformadas, pois até o momento, grande parte
dos trabalhadores na Europa, trabalhavam no campo e não tinham um trabalho assalariado e
industrial, fato novo na história das relações trabalhistas.
Para desenvolver sua análise sobre as relações de trabalho, Marx inicia sua obra
tratando de uma questão fundamental quando falamos em trabalho, a questão do salário, que para
ele, “o salário é determinado mediante o confronto hostil entre capitalistas e trabalhador. A
necessidade da vitória do capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o trabalhador do que
este sem aquele”. (Marx, 2004, p. 23). Este confronto hostil que o autor se refere, é a luta de classes
que ocorre entre patrão e empregado, tanto no interior das fábricas ou em momentos de greves que
os trabalhadores reivindicam melhores condições de trabalho e aumento salarial, onde o capitalista
vai tentar a todo custo vencer o trabalhador. Marx afirma que o capitalista proprietário, pode viver
mais tempo sem o trabalhador, porque este é proprietário de fábricas, por exemplo, e o trabalhador
por outro lado, só tem sua força física para poder sobreviver, então o trabalhador é forçado a vender
a sua força de trabalho para poder receber um salário e realizar o sustento de sua família.
Na sociedade capitalista, o capital é trabalho acumulado, bem como é um trabalho que
tem uma divisão social extremamente racional para que cada trabalhador possa desenvolver uma
função dentro da fábrica. “Com esta divisão do trabalho, por um lado, e o acúmulo de capitais, por
91 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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outro, o trabalhador torna-se sempre mais puramente dependente do trabalho, e de um trabalho
determinado, muito unilateral, máquina” (Marx, 2004, p. 26). Esta dependência do trabalhador em
relação ao trabalho é fruto do desenvolvimento do capitalismo e da própria forma de organização do
mesmo, que vai ao longo da história realizar investimentos em tecnologia e fazer com que o
trabalhador se torne cada vez mais dependente do trabalho e consequentemente da máquina.
Por outro lado, “mesmo na situação de sociedade que é mais favorável ao trabalhador, a
consequência necessária para ele é, portanto, sobre trabalho e morte prematura, descer à condição
de máquina, de servo do capital que se acumula perigosamente diante dele, nova concorrência,
morte por fome ou mendicidade de uma parte dos trabalhadores” (Marx, 2004, p. 27). Na sociedade
do trabalho, resta ao trabalhador, trabalhar para poder manter sua sobrevivência, o trabalho da
forma que a sociedade capitalista estabelece, não é nada bom para o trabalhador, pois este é forçado
ao trabalho, pois o trabalho pode levar o homem a morte prematura como o próprio Marx afirma,
essa morte depende das condições de trabalho que este trabalhador está enfrentando, pois este se
torna a partir dessas relações uma máquina e ao mesmo tempo que esta mesma sociedade
capitalista, vai jogar parte desses trabalhadores em um tipo de vida hostil em relação ao consumo e
ao próprio trabalho, pois nem todos irão encontrar trabalho, pois a sociedade capitalista tem por
base a concorrência e a competição entre os trabalhadores, que devem segundo Marx buscar formas
de contestação e transformar a sociedade.
Segundo Marx, a relação entre trabalhador e capitalista, há ainda que observar que a
elevação do salário é mais do que compensada, para o capitalista, pela redução da quantidade de
tempo de trabalho, e que a elevação do salário e o aumento do juro do capital atuam sobre o preço
das mercadorias como juro simples e composto. Desta forma podemos afirmar que não é
interessante para o trabalhador lutar por simples aumento de salário ou até mesmo diminuir sua
quantidade de tempo de trabalho, pois na lógica capitalista o patrão dono de fábrica vai sair sempre
no lucro, pois o preço da mercadoria vai aumentar.
Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do trabalho, a riqueza e o
aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até [a condição de] máquina.
Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem-estar da
sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do
capitalista, leva-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida
por uma correspondente queda de intensidade (Marx, 2004, p. 29).
Na prática a divisão social do trabalho, desenvolve uma produção de mercadorias, pois
essa divisão acaba sendo organizada para esse fim, que é uma produção maior de mercadorias,
aumentando assim, a riqueza dos capitalistas e o próprio aprimoramento da sociedade, o mais
estranho dessa relação é que quem produziu essas mercadorias continua pobre e quanto mais
92 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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mercadorias esses trabalhadores produzem, mais pobres eles ficam, isto quer dizer que as
mercadorias que são produzidas pelo trabalhador não pertence a ele. Nessa sociedade do trabalho o
trabalhador vive em uma condição de máquina. O trabalho humano produz riquezas para a
sociedade (capitalistas) e o trabalhador cada vez mais fica dependente do capitalista, levando a uma
concorrência entre os próprios trabalhadores que não deveria ocorrer, pois se os trabalhadores
concorrem entre sim, estes facilitam a vida dos capitalistas no sentido de explorá-los.
Desta forma a economia burguesa, tem no trabalhador a fonte de riquezas da sociedade.
“Mas a economia conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida
às mais estritas necessidades corporais” (Marx, 2004, p. 31). O trabalho da forma que é colocado
para o trabalhador, somente como fonte de riqueza para o capitalista, vai cada vez mais fortalecer a
economia burguesa e desumanizar o próprio trabalhador, que normalmente trabalha em condições
desumanas, quanto às necessidades humanas, estas vão além de simples necessidades corporais,
pois estes precisam de cultura, lazer etc, para que possam desenvolver melhor suas potencialidades
enquanto ser humano, fato este que nas relações de trabalho os trabalhadores vão se alienando e
perdendo essas potencialidades.
Enquanto, a economia burguesa considera o trabalho humano algo abstrato como uma
coisa, Marx analisa o trabalho como sendo uma mercadoria que é vendida como qualquer outra,
pois o trabalhador assalariado no sistema capitalista não tem outra opção a não ser trabalhar para
receber um salário que nem sempre é justo. “O trabalhador não está defronte àquele que o emprega
na posição de um livre vendedor... o capitalista é sempre livre para empregar o trabalho, e o
trabalhador é sempre forçado a vendê-lo. (Marx, 2004, p. 36). Desta forma percebemos que na
realidade existe uma relação entre indivíduos e mais ainda que é uma relação desigual, onde a
liberdade reina somente para um desses indivíduos, que é o patrão, como fica evidente, pois o
trabalhador é forçado a vender sua força de trabalho.
O próprio trabalho segundo Marx se torna um objeto, onde o trabalhador só pode se
apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. “A apropriação do
objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto
menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital” (Marx, 2004, p. 81).
Mesmo sendo um produtor de mercadorias e diversos objetos que são utilizados na sociedade,
grande parte dos objetos produzidos pelo trabalhador se torna algo estranho para sua vida, pois estes
objetos não lhe pertencem, nem como propriedade e nem como mercadoria, pois seu dinheiro não é
suficiente para esse fim.
O estranhamento do trabalho em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em
que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores
93 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
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cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto
mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que
quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico
de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador
(Marx, 2004, p. 82).
As leis e a organização da economia burguesa levam à alienação do trabalhador em
relação ao que ele está produzindo, são objetos que tem um determinado valor no mercado, mas
esses objetos o trabalhador não consegue comprar. Na lógica capitalista, como é apontado acima em
diversos aspectos, o fruto do trabalho humano não pertence a quem produziu, gerando uma série de
conseqüências ao próprio trabalhador, a alienação é uma delas. Marx afirma que o trabalho produz
maravilhas para os ricos, mas produz privações para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas
para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. O trabalhador na sociedade
capitalista trabalha 10 ou 12 horas diariamente e não consegue sequer comprar uma moradia por
outro lado o burguês desfruta de seus palácios, fruto da exploração do trabalho alheio, por outro
lado a vida não é nada bela e feliz para o trabalhador, pois como o próprio Marx coloca o trabalho
desumaniza o homem.
Portanto, as relações de trabalho na sociedade capitalista são fundamentais para a
manutenção desta mesma sociedade e o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora. Para
superar essa dominação e exploração o trabalhador devem se organizar coletivamente e lutar em
busca de superar esta situação. Marx propõe uma transformação social total Marx & Engels (1998)
e Marx (1988). A proposta dos autores que tem por base a luta entre as classes sociais é a supressão
das próprias classes sociais, pois segundo os autores, somente o proletariado organizado é capaz de
enfrentar a burguesia enquanto classe social e transformar radicalmente a sociedade. Outro
elemento importante na obra de Marx e que é analisado em O Capital é o conceito de fetichismo
que também está vinculado à mercadoria.
Assim, temos alguns apontamentos importantes sobre o consumo, a produção de
mercadorias e distribuição, bem como esta difusão de mercadorias passa a ser um dos principais
objetivos do mercado capitalista, pois a cada dia essa produção de mercadorias se amplia e novas
mercadorias surgem e a busca por consumidores a partir de propagandas na televisão, rádio,
internet, revistas, jornais, passa a ser algo fundamental para que os empresários capitalistas possam
atingir certos objetivos, que é principalmente o consumo de seus produtos.
REFERÊNCIAS
MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Nova Cultural, 1988. Vol. I.
MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo, Nova Cultural, 1978a.
94 SOUZA, Erisvaldo. Questões sobre mercadoria e consumo em Karl Marx. Estácio de Sá – Ciências
Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 84-94, Jul. 2013/Jan.
2014.
MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. São Paulo, Nova Cultural, 1978b.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.
MARX, & ENGELS, Fredrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Centauro, 2005.
MARX, Karl & ENGELS, Fredrich. O Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1998.
95 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
95-99, Jul. 2013/Jan. 2014.
UM PENSAR SOBRE A ÉTICA NAS RELAÇÕES DOCENTE E
ALUNO NO ENSINO SUPERIOR
Mariana Siqueira Silva1
RESUMO
ABSTRACT
É comum nos dias atuais encontrarmos profissionais It is common nowadays find afflicted professionals
aflitos, buscando alternativas para viabilizar seus seeking alternatives to allow their relationships, and
relacionamentos e, por seguinte, a qualidade de seu following, the quality of their work. Many of these
trabalho. Muitos desses profissionais estão centrados professionals are focused on education, are
na Educação, são professores. Além das mudanças teachers. In addition to social changes and the
sociais e das novas exigências do mercado de changing demands of the labor market, the
trabalho, o próprio sistema educacional no Brasil educational system itself in Brazil is outdated. This
encontra-se defasado. Tal contexto sugere novas context suggests new attitudes, break paradigms
posturas, a ruptura de paradigmas e um pensar sobre and think about the values of educators and schools.
os valores dos educadores e do meio escolar. Em tais In such a perspective reflection on ethics is needed
perspectivas uma reflexão sobre a ética se faz in professional performances. The ethics implies a
necessária nas atuações profissionais. A ética moral commitment to their own actions, vital for
implica em um compromisso moral com suas the teacher, who today, in addition to technicalities
próprias ações, atitude vital para o professor, que educator is a global educator who prepares the
hoje, além de educador tecnicista é um educador individual to society attitude. The article presented
global, que prepara o indivíduo para a sociedade. O here has as its central objective address ethics in the
artigo aqui apresentado possui como objetivo central teaching profession, explaining moral values and
abordar a ética na profissão docente, explanando os responsibilities of educators and institutions of
valores morais e as responsabilidades dos higher education in the training of citizens.
educadores e das Instituições de Ensino Superior na
formação do cidadão.
Keywords: Ethics, professor, global education,
Higher Education.
Palavras-chave: Ética, professor, formação global,
Ensino Superior.
INTRODUÇÃO
Toda relação interpessoal requer ética. Nas últimas décadas, talvez pela intensificação
de assuntos sociais, a palavra ética é ouvida com grande frequência.
Entendemos de modo
consistente o significado da palavra, mas as práticas dos valores morais e éticos precisam, por
vezes, ser exploradas.
É comum ao ingressarmos no Ensino Superior, como docentes ou educandos,
recebermos uma série de orientações dadas como Código de Ética e Conduta. Tal iniciativa se dá
1
Cursando Mestrado em Educação, graduada em Pedagogia. Atualmente é Analista de PCP Jr. e coordenadora de
Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá.
96 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
95-99, Jul. 2013/Jan. 2014.
por um princípio básico da ética que, segundo Vázques (1997), é a ciência do comportamento moral
dos homens em sociedade.
A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é
ciência de uma forma específica de comportamento humano. A nossa definição sublinha,
em primeiro lugar o caráter científico desta disciplina; isto é, corresponde à necessidade de
uma abordagem científica dos problemas morais. De acordo com esta abordagem, a ética se
ocupa de um objeto próprio: o setor da realidade humana que chamamos moral, constituído
por um tipo peculiar de fatos ou atos humanos. Como ciência, a ética parte de certo tipo de
fatos visando descobrir lhes os princípios gerais. Enquanto conhecimento científico, a ética
deve aspirar a racionalidade e objetividade mais completas e, ao mesmo tempo, deve
proporcionar conhecimentos sistemáticos, metódicos e, no limite do possível,
comprováveis. (Vasquez, 1997, p. 12-13).
Para Cortella (2007) a ética é o conjunto de princípios e valores de uma pessoa que
possui como objetivo conduzir suas atitudes, de tal modo, a moral é a prática das condutas éticas de
um determinado indivíduo.
É importante perceber que a postura ética é um fenômeno que ocorre no interior de cada
um de nós, assim ela ultrapassa um pensamento individualista e emerge para o social, distribuindo
valores morais e estimulando comportamentos que transformam a sociedade.
Percebe-se que o docente, além de seus conhecimentos técnicos e científicos, é tido
como referência de conduta, ou seja, moral para seus alunos. Buscando aporte na História da
Educação narrada nas correntes pedagógicas, o mestre é um espelho que reflete para o aluno
exemplificações de postura, decisões, pensamentos e conceitos.
Assim, o professor, também no contexto universitário, não se deve restringir apenas aos
conhecimentos acadêmicos contemplados em sua área de conhecimento, pois ele é, constantemente,
tido como referencial de conduta para seus alunos.
Talvez um dos grandes entraves geradores do fracasso escolar e da formação dos alunos
universitários, motiva-se pelo fato de que os professores já não se consideram responsáveis pela
moral de seus alunos. Engana-se aquele que ingressa na docência universitária imaginando depararse com alunos formados, em caráter e personalidade, e situados em seu contexto social, muitos
ainda carregam consigo indagações e anseios que influenciam sua formação como adultos. Para
tanto, ainda assim, na idade considerada adulta, os professores são peças chaves em sua formação
não só educacional, mas global. É fundamental que o docente tenha a percepção da sua importância
sobre a formação de seus alunos, sendo um agente transformador, que indague e motive uma
postura crítica.
Apesar de conviver durante alguns anos em um mesmo ambiente – a sala de aula,
departamentos como a reitoria e a direção são figuras marcantes para os universitários, mas por não
lidarem diariamente com eles, não constituem a realidade do aluno. A figura que de modo constante
97 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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preenche o cotidiano universitário é, de fato, o professor. Podemos logo pensar que além dos
conteúdos técnicos do curso escolhido, o professor prepara o aluno para a vida, para os desafios que
encontrará a partir da conclusão do Ensino Superior.
Os vínculos estabelecidos nas relações de ensino e aprendizagem corroboram para essa
troca entre professor e aluno, tal ação pode ser intensificada de acordo com as vivências e
afinidades. No nível superior as relações, por vezes, são mais consistentes e até mesmo duradouras,
trata-se de uma relação entre adultos, onde a razão sustenta a emoção e estreita os laços.
De tal modo, ao atentar-se para cada detalhe afirma-se a grande importância da postura
docente e da ética empregada nas ações dos professores perante seus alunos e sociedade acadêmica.
A postura ética revela a face transformadora da Educação, ou seja, sugere pensamentos e
comportamentos que empreendam um caminho de reconstrução, que penetre o aluno e, por
seguinte, o meio em que ele vive.
O Relatório elaborado para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação do
Século XXI (2000) aborda os quatro pilares que devem sustentar um sistema educacional de
qualidade: aprender a conviver, aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer. Com essas
quatro características marcantes, que nos remetem a uma aprendizagem que exceda os murros das
Instituições de Ensino, a Educação passa a abranger valores aquém dos conteúdos descritos nos
currículos escolares e, mais uma vez, o professor é elemento chave em tal objetivo.
Para uma função educadora que, por princípios éticos, vise transformações, o perfil do
professor universitário não deve apenas se resumir nos conhecimentos científicos acerca de sua área
do conhecimento, pois ele em todos os momentos é dado como referencial para seus alunos. Como
agente transformador, baseado em uma conduta que reflita sobre a moral e a ética, o docente
carrega consigo o dever e a responsabilidade acerca da formação global de seu aluno. Formação que
exceda aos conteúdos curriculares e permita ao aluno um pensamento critico que o torne cidadão.
As maiorias das universidades hoje não promovem o ensino de modo global, formam o
profissional e não o sujeito em sua totalidade:
O professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo: passar do papel
de solista ao de acompanhante, tornando-se não mais alguém que transmite conhecimento,
mas aquele que ajuda seus alunos a encontrar, organizar e gerir o saber, guiando, mas não
modelando os espíritos, demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que
devem orientar toda a vida. (Delors, 2000).
Assim como em toda relação interpessoal, é sabido que nem sempre a relação professor
e aluno é salubre e promove um vínculo adequado. Todavia, os professores, quando conscientes de
seu papel carregam consigo a responsabilidade e a gana por uma sociedade mais justa. Sendo assim,
98 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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toda a jornada da relação professor e aluno deve ser vivenciados com base nos valores vitais para a
vida social: respeito, cordialidade, ética, empatia e educação.
As atitudes diárias, baseadas em tais valores, estabelecem a confiança entre professor e
aluno, tecendo fios que fortalecem uma relação permeada pela ética. Sendo assim, juntamente com
os conhecimentos técnicos e científicos, o professor transmite para o aprendiz os saberes morais e
éticos, que lhes proporcionará uma formação global, corroborando para a sua postura profissional e
cidadã.
Cabe ressaltar que o benefício de um trabalho docente baseado em tais conceitos traz
resultados satisfatórios não só para o aluno, mas transforma uma realidade social, uma vez que as
premissas ensinadas ultrapassam as barreiras da escola e refletem na sociedade.
No contexto universitário não podemos nos esquecer de que lidamos com a formação
profissional, formamos futuros médicos, advogados, engenheiros, professores, jornalistas,
pedagogos e uma lista com diversos profissionais em distintos meios de atuação, portanto, a
percepção da contribuição para a formação ética e moral desses profissionais é primordial para o
educador. Existe um ciclo não factível de rupturas, o professor transmite princípios éticos para que
o futuro profissional atue baseado nos mesmos princípios.
Os princípios e as posturas designados éticos são norteados pela reflexão. A reflexão é
crucial para o desenvolvimento, pois possibilidade a estruturação de pensamentos e ações,
consolidando a práxis docente e as responsabilidades para com o educando.
Cortella (2007) supõe que três reflexões orientam a conduta ética, desafiando e
instigando nossas escolhas: Quero? Devo? Posso? É importante considerar que a liberdade não pode
nos omitir de tais questões, quando agimos com transparência e somos capazes de responder as três
perguntas indagadas pelo autor, somos referenciais de conduta. Assim, percebemos que o exercício
da ética consiste em refletir nossas ações de modo coletivo e sendo o professor um referencial para
a formação do aluno, as responsabilidades se agravam neste sentido.
O exemplo das condutas éticas propagadas pelos docentes, embasadas no estimulo de
competências e habilidades, são de extrema importância para a formação do aluno. Cabe ao
professor preparar o aluno para enfrentar os desafios futuros não somente com conhecimentos
técnicos e segurança, mas também com responsabilidade, ética e determinação:
Atribui-se a grande força dos professores nos exemplos que dão, manifestando sua
curiosidade e sua abertura de espírito, mostrando-se prontos a sujeitar as suas hipóteses à
prova dos fatos e até mesmo a reconhecer seus próprios erros. (Delors, 2000)
Assim, conclui-se que a ética nasce do exercício de reflexão e autoavaliação continua
também da postura docente no Ensino Superior, revisar valores e analisar as práticas em sala de
99 SILVA, Mariana Siqueira. Um pensar sobre a ética nas relações docente e aluno no ensino superior.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09,
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aula é zelar pela formação moral dos alunos. É certo que todas as reflexões podem ser insuficientes
para a formação global do individuo, mas toda a transformação, inclusive a transformação social,
ocorre de modo gradativo partindo de um principio e de um compromisso moral.
REFERÊNCIAS
CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a sua obra? Inquietações propositivas sobre gestão, liderança
e ética. Ed. Vozes, 14º ed. Rio de Janeiro, 2011.
DELORS, Jean (org.). Educação: um tesouro a descobrir. UNESCO MEC, 4 ed., 2000.
VÁZQUES, Adolfo Sánchez. Ética. Civilização Brasileira, 15 ed., 1997.
ROCHA, Carla Beatriz; CORREIRA, Genilce Souza. Ética na docência do Ensino Superior.
Revista Educare, v. 2, p. 1-7, 2006.
100 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
Jul. 2013/Jan. 2014.
CONCEPÇÃO MARXISTA ACERCA DA NOÇÃO DE INTELECTUAL
Leonardo Venicius Parreira Proto
A proposta de discussão a qual desenvolveremos o presente texto tem como principal
objetivo elaborar a concepção de intelectual partindo de premissas teórico-metodológicas
fundamentadas no materialismo histórico dialético e tendo como eixo o conceito de intelectual
trabalhado pelo marxismo, numa perspectiva de compreensão deste conceito a partir da noção de
totalidade.
Em um primeiro momento do texto explicitaremos algumas notas sobre conceituações
do termo no sentido de entendermos como a expressão intelectual é recente enquanto categoria
conceitual e uma forma de distinção social desenvolvida no interior da sociedade capitalista.
Posteriormente, e para fundamentar nosso texto lançaremos mão de como Marx e alguns de seus
intérpretes elaboraram este conceito tendo presente às formas de desenvolvimento das relações
sociais de produção no conjunto da sociabilidade capitalista e como, em certa medida, esta noção é
permeada pela ideologia e seu agente produtor, o ideólogo.
Numa leitura marxista da realidade e sua apropriação feita pelos intelectuais e suas
interpretações do real, é preciso considerar como estes se inserem na lógica empreendida pelo
desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classes instituída na dinâmica histórica do embate
entre a classe dominante e os reais sujeitos de emancipação, o proletariado.
O DEBATE ENTRE JACOBY E MANNHEIM: UMA BREVE NOTA
Os intelectuais é uma expressão utilizada recentemente, localizada com maior precisão
na Rússia do século XIX pelo uso recorrente do termo intelligentsia, que para Russel Jacoby (2001)
significava a consciência de pertencimento a um grupo. Segundo este autor,
a experiência russa é reveladora, porque legou não apenas uma palavra, intelligentsia, como
debates densos e instrutivos. Críticos, romancistas e revolucionários que compunham essa
intelligentsia desempenharam um papel decisivo ao longo de todo o século XIX e o início
do século XX (JACOBY, 2001, p. 138).
A existência de indivíduos intelectuais com a função específica de produção de ideias
pode ser observada anteriormente já na antiguidade clássica pela formação dos chamados filósofos,
101 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
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responsáveis naquela sociedade escravista pelo auxílio e manutenção do status quo das classes
dominantes gregas. Dotados de uma especificidade na divisão social do trabalho, a partir do
trabalho intelectual, os filósofos constituem-se em um dos primeiros grupos de indivíduos cuja
tarefa está circunscrita por um trabalho demarcado por dada característica específica, a do trabalho
intelectual.
A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge
uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a consciência
pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis existente, representar
realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em
condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da
filosofia, da moral, etc., ‘puras’ (MARX e ENGELS, 1991, p. 45).
Para Jacoby (2001), o caso Dreyfus1 é uma referência da noção de intelectual moderno e
do qual as esquerdas se apropriaram como modelo, apesar de todo esgotamento que esta referência
sofreu no final do século passado. Este movimento de intelectuais motivado por questões nacionais,
de conteúdo antissemitista e questionador das atribuições do Estado, propicia pensar como a figura
dos intelectuais numa visão moderna vai se aproximando da tentativa destes de se tornarem
autônomos em relação às várias instituições, apesar de níveis de dependência e∕ou mesmo de
indivíduos identificados como a defesa e sustentação da utopia.
“O destino de toda visão utópica está vinculado ao destino dos intelectuais, pois se em
algum momento a utopia pode sentir-se em casa, é entre os pensadores independentes e nos cafés
por eles freqüentados” (JACOBY, 2001, p. 139). Por outro lado, segundo este autor, a utopia
propugnada pelos intelectuais vai dando lugar a absorção das burocracias pelos intelectuais, muito
presentes pelo nível de envolvimento destes com a academia e o cotidiano das universidades. O
universo dos intelectuais vai cada vez mais ganhando contornos de defesa do progresso e do
desenvolvimento da ciência, e com isto a conseqüência mais célere é a miopia.
A noção de intelectual nesta burocratização de suas práticas vai configurando a perca de
uma dimensão de engajamento das questões sociais em virtude de vida ordenada pela rotinização do
pensamento, tal como teorizou Adorno e Horkheimer em Conceito de Iluminismo (1983), cuja
mecanização do pensar é algo presente na instrumentalização da razão moderna, próprios do
desenvolvimento do capitalismo.
1
Na França, durante o caso Dreyfus a palavra intelectual é evocada publicamente, devido ao movimento criado a favor
deste militar francês, cujas acusações de alta traição e espionagem o levaram a prisão como também vários outros
pensadores à época se engajaram contra a sentença e uma onda antissemita e xenófoba no país. Anatole France,
Theodorl Herzl (um dos fundadores do sionismo) e Émile Zola participaram ativamente desta campanha de indignação
contra a acusação do Estado frente a situação de Alfred Dreyfus, a ponto de Zola escrever uma carta dirigida ao
presidente da República à época contra esta ação estatal.
102 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
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Jacoby (2001) recupera Mannheim com intuito de enfatizar na figura do intelectual uma
preocupação em transformá-lo num profissional desta sociedade imune ao processo de
transformação social e as tais ideologias esquerdistas, mas envolvido com a capacidade racional de
previsão dos fenômenos sociais. Em Mannheim (1986), o intelectual era um indivíduo desenraizado
de suas origens de classe e distante de configurações ideológicas e luta pela utopia, bastando a si o
fato de ser um indivíduo da ciência e da racionalidade dos processos.
(...) o pensador sistemático oculta cuidadosamente suas contradições, tanto para si mesmo
como para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as contradições constituem uma
fonte de desconcerto, o pensador experimental nelas percebe pontos de partida, em que o
caráter fundamentalmente polêmico de nossa situação atual torna-se, pela primeira vez,
realmente aberto ao diagnóstico e à investigação (MANNHEIM, 1986, p.78).
O intelectual nesta compreensão mannheimiana é o indivíduo dotado de uma erudição
capaz de transcender a própria realidade, pensando estar acima das ideologias e quaisquer
perspectivas políticas, negando a si mesmo o fato de ser produto de concepções ideológicas, que
aqui poderia ser entendido como o cientista “crente” na neutralidade axiológica e no mito da ciência
como consciência puramente objetiva.
“Também aqui poderíamos tomar Mannheim como uma figura típica, vendo-se como
alguém que defendia os intelectuais independentes. Como refugiado, sentia-se sem raízes e
sem pátria (...) Mannheim tentou transformar esta instabilidade em virtude, rejeitando a
visão esquerdista típica que classificava os intelectuais como burgueses. Nem acreditou
que pudessem ser considerados membros da classe trabalhadora. Os intelectuais estariam,
isto sim, “situados entre as classes”, relativamente desvinculados ou “flutuando livremente”
(JACOBY, 2001, p. 148).
A crítica a esta noção sociológica dos intelectuais como grupo social desvinculado
assume uma dimensão incontestável nas elaborações jacobyanas, e este é uma das razões pelas
quais critica a ideia de neutralidade ou do não envolvimento de intelectuais com a dimensão política
da sociedade presente na obra de Mannheim, o que demonstra sua insatisfação perante a
(im)postura da posição dos intelectuais nesta sociedade contemporânea e como estes aderiram sem
muita resistência as formas burocráticas de atuação no âmbito das instituições.
Em uma perspectiva de análise marxista da realidade, e neste caso específico, da
posição e tarefa dos intelectuais no conjunto das relações sociais de produção e para uma analítica
crítica é necessário atentarmos para a noção de totalidade no referencial do materialismo histórico
dialético e de como esta categoria deve ser assumida como recurso heurístico para analisar a própria
compreensão do que seja o conceito de intelectual.
103 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
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A CATEGORIA DA TOTALIDADE E A NOÇÃO DE DETERMINAÇÃO FUNDAMENTAL
No ensaio intitulado Totalidade e Determinação Fundamental, Nildo Viana (2007a),
fundamentará sua explicação de totalidade tendo como referência o método do materialismo
histórico. Para este, o materialismo histórico, baseado no pensamento de Marx existe uma
determinação fundamental em quaisquer sociedade, e esta é o modo de produção.
A partir dessa compreensão, Viana (2007a) vai desenvolvendo sua reflexão sobre a
questão da totalidade. Para o autor, “de forma mais simples, totalidade é o que abarca o todo.
Abarcar o todo de um ser é perceber sua totalidade” (p. 105). Como somos seres sociais, a idéia
expressa aqui de totalidade é considerar o indivíduo no conjunto da sociedade ou totalidade como
condição ontológica dos indivíduos em suas relações sociais.
Para o marxismo, a totalidade é uma dialética das partes em relação com o todo e viceversa, relação necessária do todo com a composição das partes. “Acontece que uma dessas partes
exerce uma “determinação fundamental” sobre as outras, ou seja, sobre a totalidade. A própria
totalidade é uma derivação desta parte fundamental” (VIANA, 2007a, p. 106).
A sociedade seria essa totalidade desenvolvida em relação à complexidade das partes,
vividas e experimentadas no cotidiano dos indivíduos dessa mesma sociedade. Há nessa perspectiva
a negação da atomização ou fragmentação da realidade, como decorrência das análises feitas pela
pós-modernidade.
O isolacionismo das questões do indivíduo é nesse sentido anulado, por ser um ente
social. As demandas individuais, por mais particularistas que pareça ser às situações de vivência, ao
existirem, a ser elaborada, relaciona-se na esfera social, na dinâmica das múltiplas determinações.
Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante é, em última
instância, a produção e reprodução da vida real. Portanto, se alguém distorce esta afirmação
para dizer que o elemento econômico é o único determinante, transforma-a numa frase sem
sentido, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da
superestrutura – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as
constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas
jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as
teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas, e seu desenvolvimento
ulterior em sistemas dogmáticos – excercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas
históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma (ENGELS,
1987, p. 39).
A totalidade constituída ou constituinte é uma dimensão da realidade concreta dos
indivíduos. E por realidade concreta entende-se a síntese de múltiplas determinações (MARX,
1983; VIANA, 2007a).
As relações sociais concretas, de indivíduos também concretos dão-se na dialética do
materialismo histórico considerando os seres nas suas formações sociais e nas suas formas de
104 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
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produzirem sociabilidades. A concreção dessas relações sociais se dará na práxis desses indivíduos
históricos. É na práxis que podemos perceber a totalidade concreta, à ação do humano e sua
constituição histórica (VIANA, 2007b).
Determinação fundamental ou modo de produção e totalidade ou sociedade como
recursos heurísticos de explicação da realidade são fundamentais no materialismo histórico dialético
por compreender o real na perspectiva do “desenvolvimento de uma consciência correta da
realidade”. Essa consciência, de acordo com a perspectiva de Viana parte do interesse de classes e
como se fala em “consciência correta da realidade”, fundamentam-se no interesse da classe
trabalhadora e na falsificação da realidade, como imprime a ideologia dominante burguesa
(VIANA, 2007c).
Portanto, ao se falar de totalidade concreta é necessário trabalhar o materialismo
histórico dialético tendo como sujeitos imprescindíveis, o proletariado e sua perspectiva de ruptura
com sociedade de classes, pois essa sociedade classista reduz a noção de totalidade e a substitui por
uma visão parcelar, fragmentária do processo histórico. Interessa à ideologia da classe dominante
uma visão fragmentada da realidade ou da consciência da mesma, pois é essa visão que a permite
seguir com o processo de dominação e estruturação das classes sociais como justificativa da
naturalização da condição histórica dos indivíduos.
O materialismo histórico dialético, enquanto método contribui no combate a
ideologização da sociedade de classes. É método que explicará a realidade concreta, um aporte para
o entendimento da totalidade.
Assim, podemos definir método como um recurso mental para analisar a realidade concreta
e assim reconstituí-la no pensamento. A reconstituição da realidade concreta no
pensamento significa a expressão da realida- de tal como ela é e o método é um recurso que
possibilita isto (VIANA, 2007d, p. 866-867).
O método constitui de um aporte teórico para proceder a um processo de abstração que
visa analisar o concreto-dado e transformá-lo em um concreto-abstrato. Eis aqui a compreensão da
totalidade em termos da dialética materialista, pois a analisar a sociedade com a mediação do
método pretende-se descobrir a essência dos fenômenos, ou seja, “a determinação fundamental do
seu processo de transformação” (VIANA, 2007c, p. 88).
Parece que o melhor método será começar pelo real e pelo concreto, que sã o a condição
prévia e efetiva; assim, em economia política, por exemplo, começar pela população que é a
base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, numa observação
atenta, apercebermo-nos de que há aqui um erro. A população é uma abstração se
desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe. Por seu lado, essas classes são
uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousa, por exemplo, o trabalho
assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O
capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço,
etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do
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todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples, do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez
mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples. Partindo daqui, seria
necessário caminhar no sentido contrário até se chegar finalmente de novo à população, que
não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de
determinações e de relações numerosas. A primeira foi a que, historicamente, a economia
política adotou ao seu nascimento. Os economistas do século XVII, por exemplo, começam
sempre por uma totalidade viva: população, Nação, Estado, diversos Estados; mas acabam
sempre por formular, através de análise, algumas relações gerais abstratas determinantes,
tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc. A partir do momento em que esses
fatores isolados foram mais ou menos fixados e teoricamente formulados, surgiram
sistemas econômicos que partindo de noções simples tais como o trabalho, a divisão do
trabalho, a necessidade, o valor de troca, se elevavam até o Estado, às trocas internacionais
e ao mercado mundial. Este segundo método é evidentemente o método cientificamente
correto. O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade
na diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um
resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto
igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo
reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento
(MARX, 1983, p. 218-219).
No método, a explicação da realidade é mediada pela noção de categoria. Segundo
Viana (2007d) a formação das categorias são necessárias como instrumentos de análise da realidade
concreta, subsídios para apreensão intelectual do mundo real. É nesse conjunto do concreto-dado e
concreto-pensado, que,
“Marx vai destacar a totalidade enquanto categoria fundamental do método dialético. Para
Marx, a totalidade é o concreto. O processo de reconstituição da realidade no pensamento
significa a passagem do concreto tal como visto imediatamente pela consciência para a
descoberta de suas determinações, seu processo de constituição, reconstituindo-o enquanto
concreto-determinado. Este processo, realizado via abstração, significa o uso do método
dialético para reconstituir o concreto enquanto totalidade com suas múltiplas determinações e
sua determinação fundamental. Assim, Marx concebe o real, o concreto, como uma totalidade
e assim esta categoria assume papel fundamental em seu método” (VIANA, 2007d, p. 868869).
Para Nildo Viana, Lukács e Korsch são continuadores do pensamento marxista no que
consiste a idéia de totalidade concreta. Essa preocupação de ambos pensadores, de recuperar a
categoria de totalidade estaria associada à crítica a deformação da dialética marxista pelo
reformismo social-democrata e bolchevismo (2007d).
Lukács (2003) tendo como perspectiva analítica o ponto de vista do proletariado na
história e sua ontologia como ser social, trabalha a idéia da dialética marxista no conjunto
totalizante da práxis desse mesmo proletariado. Na perspectiva do proletariado, o ponto de partida é
a condição da sociedade burguesa para a transformação social. “Ir além da empiria só pode
significar, ao contrário, que os objetos da própria empiria são aprendidos e compreendidos como
aspectos da totalidade, isto é, como aspectos de toda a sociedade em transformação histórica” (p.
330).
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Na concepção lukacsiana de totalidade,
“O método dialético distingue-se do pensamento burguês não apenas pelo fato de ele ser
capacitado para o conhecimento da totalidade, mas por este conhecimento ser possível
somente porque a relação do todo com as partes tornou-se fundamentalmente diferente
daquela existente no pensamento reflexivo. Dito de maneira breve, a essência do método
dialético – a partir desse ponto de vista – consiste no fato de que a totalidade está
compreendida em cada aspecto assimilado corretamente pela dialética e de que todo o
método pode desenvolver-se a partir de cada aspecto” (LUKÁCS, 2003, p. 342-343).
Assim, a noção de totalidade na compreensão do materialismo histórico dialético
colabora para o entendimento de que as múltiplas determinações sociais podem ser analisadas por
esse viés teórico. Isso significa à recusa dos particularismos, ou das concepções que criticam o
próprio marxismo, justificando que Marx não conseguiu elaborar uma teoria que pensasse questões
da nossa contemporaneidade: como os estudos de cultura, de gênero, étnico-raciais, da sexualidade,
etc2.
No texto sobre a “Dialética de Marx”, Karl Korsch (2008), originalmente escrito em
1923, expõe que a dialética materialista se constitui enquanto “expressão teórica” do proletariado
numa construção da práxis libertária. A idéia de totalidade está vinculada ao movimento histórico
do proletariado revolucionário, pois estes são sujeitos da ruptura com a determinação fundamental e
sujeitos da construção emancipação humana.
A categoria da totalidade somente pode ser pensada na esfera da luta de classes. O
marxismo é a expressão teórica do proletariado revolucionário (KORSCH, 2008) e tem como tarefa
fundamental o esforço de romper com modo de produção capitalista a partir da luta de classes. Esse
movimento é possível com a consciência histórica do desenvolvimento das forças produtivas e da
inserção da classe trabalhadora e as várias determinações em relação à totalidade social.
Uma indagação que podemos fazer quanto a essa noção da categoria totalidade é: como
a classe trabalhadora perceberá a si mesmo como potencial revolucionário na esfera da sociedade de
classes? Em termos de apreensão da totalidade, a classe trabalhadora e sua inserção na luta de
classes exercitarão sua práxis para além de si, entendendo que a abolição da sociedade de classes
exige posturas e reflexões que a colocam como sujeito histórico revolucionário e responsável pela
construção de uma nova totalidade: a sociedade comunista.
2
A proposta do texto é discutir fundamentalmente duas questões relacionadas ao marxismo (totalidade e divisão do
trabalho intelectual) e a apropriação do marxismo sobre determinadas concepções. Teríamos que desenvolver outro
aspecto, quiçá em outro texto ou produção mais elaborada, sobre a contraposição entre as noções de totalidade e
fragmentação no pensamento social. Porém, para dar apenas um indicativo da problemática levantada, o marxista
Lisandro Braga (2007) desenvolve uma discussão importante sobre as cotas raciais e a pós-modernidade, ou seja, como
as discussões parciais de problemas sociais são minimizadas diante da dimensão da totalidade, ou seja, o atual
desenvolvimento das forças produtivas apropria-se de forma redutora das várias demandas sociais, reduzindo-as em
seus particularismos.
107 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
Jul. 2013/Jan. 2014.
Não é possível acrescentar que os homens não são os livres árbitros das suas forças
produtivas – que são a base de toda a sua história – pois qualquer força produtiva é uma
força adquirida, o produto de uma atividade anterior. Assim, as forças produtivas são o
resultado da energia prática dos homens, mas esta energia está ela mesma circunscrita pelas
condições nas quais os homens se encontram, pelas forças produtivas adquiridas, pela
forma social que existe antes deles, que eles não criam, que é o produto da geração anterior.
Pelo simples fato de que toda a geração posterior encontra forças produtivas já adquiridas
pela geração anterior, que lhe servem de matéria-prima para novas produções, forma-se
uma conexidade na história dos homens , forma-se uma história da humanidade, que é tanto
mais história da humanidade quanto se desenvolveram as forças produtivas dos homens, e
consequentemente, as suas relações sociais. A conseqüência necessária é que a história
social dos homens nunca é mais do que a história do seu desenvolvimento individual , quer
tenha consciência disso ou não. As suas relações materiais formam a base de todas as suas
relações. Essas relações materiais não são mais do que as formas necessárias nas quais se
realiza a sua atividade material e individual (MARX, 2006, p. 176-177).
Na construção de práticas revolucionárias da classe trabalhadora contra o
conservadorismo das ações e reprodução da ideologia dominante burguesa, o proletariado precisa
no seu cotidiano possibilitar práticas culturais e políticas que objetivam a crítica impiedosa das
forças de reprodução do capital, no escopo de uma nova determinação fundamental, ou o novo
modo de produção: comunista, aponta Viana (2007a; 2008).
Assim, a sociedade dos trabalhadores, aqueles que trabalham e se realizam no trabalho,
tanto satisfazendo suas necessidades quanto através da própria satisfação do trabalhado não
alienado, manifestação da objetivação, se torna uma sociedade de repartição igualitária da
produção coletiva (VIANA, 2008, p. 82-83).
A apropriação da categoria de totalidade e a formulação de uma nova visão de mundo a
partir do proletariado devem romper com as formas alienantes do trabalho. Isso significa uma
ruptura com as formas da divisão social do trabalho, em especial aqui, com a divisão do trabalho
intelectual, um dos pontos fulcrais da sociedade de classes.
CRÍTICA DA DIVISÃO DO TRABALHO INTELECTUAL
Na dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas um dos aspectos ou
determinações vigentes diz respeito à divisão social do trabalho e suas formações especializadas, tal
como manifestada na divisão do trabalho intelectual.
“As forças produtivas são os instrumentos, matérias-primas, instalações, meios de
circulação etc, necessários à produção e circulação dos produtos. As relações de produção
se dão entre os indivíduos histórico-concretos no seio da produção e circulação dos bens
materiais (...). Nas sociedades classistas, a divisão social do trabalho já apresenta uma
maior complexidade, aparece a figura do apropriador e a do explorado. É o momento
também do florescimento de determinadas formas de regularização necessárias à
manutenção destas relações antagônicas” (MAIA, 2007a, p. 10).
A contribuição da epistemologia marxista enseja ressaltar a crítica ao universo da
especialização, uma das variantes ideológicas do capitalismo, centrada na “importância” da
108 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
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Jul. 2013/Jan. 2014.
competição, da concorrência, da meritocracia, atingível pelo mecanismo da escolarização e o valor
ofertado aos indivíduos “pensantes” em detrimento dos que representam sua negação, aqueles/as
trabalhadores/as ligados/as a produção manual, braçal ou técnica (no sentido da repetição de
procedimentos mecânicos).
No âmbito da divisão do trabalho intelectual, o marxismo é o referencial possível de
crítica às formas de regularização social da burguesia dominante. Uma de suas formulações
culturais dá-se em torno da formação intelectual, em grande parte incentivada pela escolarização
dos indivíduos e sua valoração ao conteúdo meritocrático.
O desenvolvimento da ciência burguesa é uma forma de elaboração sistemática
ideologizada de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Sua apologia discursiva em
favor da racionalidade moderna e dos avanços do conhecimento humano reforça o processo de
fragmentação do saber, além de imprimir a lógica cartesiana: a idéia de dicotomização entre o
sujeito e objeto do conhecimento, numa alusão explícita da separação entre ser e a consciência,
inviabilizando assim a dimensão de totalidade do sujeito.
Assim, a ciência vê o todo através da separação, soma a hierarquização das partes. O
processo de separação produzido pela ciência é tão evidente que basta lembrarmos a famosa
divisão (separação) entre ciências naturais e ciências humanas. Há também uma tentativa de
hierarquização, onde, geralmente, as ciências naturais são tidas como o “centro” exemplar
da produção científica (VIANA, 2007a, p. 127-128).
A entrada no mundo moderno, tendo como determinação fundamental o capitalismo,
propiciou o desenvolvimento da ciência enquanto saber especializado, atomizado, cultor de
variantes da perspectiva reducionista e determinista do campo das chamadas ciências: exata,
natureza e humana.
Essa visão parcelar do processo de constituição do conhecimento produziu condições e
hábitos burgueses que celebrariam a evolução científica como um dos referenciais do projeto de
consolidação da dominação burguesa e de sua primazia enquanto classe detentora dos meios de
produção. Em termos ideológicos, “este procedimento cria um reino de especialização. Cada
especialista passa a ver o mundo através das lentes de sua ciência” (VIANA, 2007a, p. 129).
A divisão do trabalho (...) expressa-se também no seio da classe dominante como divisão
do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior dessa classe, uma parte
aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da
formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de
subsistência), enquanto que os outros relacionam-se com estas idéias e ilusões de maneira
mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm
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Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
Jul. 2013/Jan. 2014.
pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios (MARX e ENGELS, 1991,
p. 73)3.
Portanto, os ideólogos enquanto classe auxiliar da burguesia e a serviço da mesma tem
como função a formulação de idéias, de pensamentos que reforçam a tese da sociedade de classes e
em muitas situações políticas, desenvolvem aspectos de convencimento das formas de regularização
social, por meio de discursos reprodutores dos valores burgueses, tais como ascensão social, defesa
da máxima liberdade dos indivíduos e de seus direitos de consumação da propriedade privada, etc.
O surgimento dos intelectuais ocorre com a separação entre trabalho intelectual e manual
(...). O discurso dos intelectuais possui uma legitimidade devido ao fato de ser considerado
verdadeiro, superior. A legitimidade do discurso do intelectual se encontra na sua autodeclarada capacidade de monopolizar a veiculação da verdade, através da razão, da
interpretação da palavra de Deus, da pesquisa empírica, ou qualquer outra justificativa, ela
mesma ideológica, mas aceita socialmente (VIANA, 2006, REA).
Para Nildo Viana (2006), os intelectuais como classe social ou como classe auxiliar da
burguesia, para ser mais exato segundo sua proposição, colabora com a institucionalização de
práticas de defesa dos interesses de si enquanto grupo social a serviço do processo de dominação.
De acordo com a formulação de discursos apologéticos à razão emancipatória, defendem o estatuto
científico e o ethos da neutralidade da própria ciência.
Nesse sentido, é o próprio Weber em sua obra “Ciência e Política: duas vocações”, ao
explicar o sistema de inserção como docente-pesquisador na universidade alemã, que vai dar a
dimensão real da constituição do modo de produção capitalista e absorção por parte da
determinação fundamental do trabalho intelectual na vida universitária.
Nos últimos tempos, podemos observar claramente que, em numerosos domínios da
ciência, desenvolvimentos recentes do sistema universitário alemão orientam-se de acordo
com padrões do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciência e de medicina se
transformaram em empresas de “capitalismo estatal”. Já não é possível geri-las sem dispor
de recursos financeiros consideráveis. E nota-se o surgimento, como aliás em todos os
lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fenômeno específico do
capitalismo, que é o de “privar o trabalhador dos meios de produção”. O trabalhador – o
assistente – não dispõe de outros recursos que não os instrumentos de trabalho que o Estado
coloca a seu alcance; conseqüentemente, ele depende do diretor do instituto tanto quanto o
empregado da fábrica depende do seu patrão – pois o diretor de um instituto imagina, como
inteira boa-fé, que aquele é seu instituto, dirige-o à seu bel-prazer. Assim, a posição do
assistente é, com freqüência, nesses institutos, tão precária quanto a de qualquer existência
“proletaróide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas (WEBER, p.
19-20, 2011).
Essa explicação weberiana do sistema de constituição de cátedras no ensino
universitário especializado alemão e norte-americano oferece elementos para aquilo que Makhaïsky
3
Em relação à temática da aparência e sua construção ideológica é importante ressaltar a reflexão tendo como
instrumental de análise a sociedade do espetáculo, entendendo-a, como fez Guy Debord (2007), como esforço de
visibilizar, dar aparência (produção de imagem), à determinação fundamental e a totalidade nesse movimento dialético
de produção e reprodução do capital na sociedade contemporânea (PROTO, 2011).
110 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
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(apud VIANA, 2006) caracterizou de apropriação por parte dos intelectuais da extração de maisvalor do proletariado, pois para este, os intelectuais serviriam como auxiliares da burguesia com o
intuito de obter vantagens do nível de vida burguês.
É por esse motivo que Makhaïsky (1981) em seu texto, O Socialismo de Estado, critica
radicalmente os intelectuais a serviço do Estado e preocupados com as formas de devolução de
prestação de serviço, no caso, por meio de salários. De acordo com suas teses, há um ataque
impiedoso contra o rendimento salarial da intelectualidade, pois o salário falsifica os verdadeiros
motivos para a abolição do Estado Socialista e a derrocada do capital.
Mas o grande problema gerado por tal divisão do trabalho intelectual não se encontra
apenas nisto. O “ovo da serpente” choca noutro lugar. Ele se encontra na prática derivada
desta formação. A ideologia não só é falsa consciência, não somente legitima o status quo,
como também é mobilizadora, é constituinte de técnicas, ações, práticas, políticas estatais
etc. Vejamos alguns exemplos para perceber a amplitude das conseqüências da divisão do
trabalho intelectual. Em certas ciências ou categorias profissionais ela gera ideologias. A
forma mais visível destas se encontra nos chamados determinismos: geográfico, biológico,
genético, econômico etc. Assim nasce o biologismo, o sociologismo, o economicismo etc.
Mas elas também se manifestam sob formas mais amenas. Esta ideologia, por sua vez, além
de ser uma forma de falsa consciência, também gera outras conseqüências. A falsa
consciência pode legitimar o status quo, desmobilizar os movimentos de contestação social,
corroer a crítica e a percepção da totalidade da vida social etc. Mas uma vez existindo, pode
se tornar uma fonte de ações, práticas, políticas estatais e técnicas extremamente nocivas,
seja ao conjunto da população ou a parte dela (VIANA, 2002, REA).
A divisão do trabalho intelectual impele reforça o nível ideológico promovido pelos
intelectuais da “ordem”, e de suas razões discursivas, legitimadoras da estrutura de classes, imposta
pelas várias mediações do capitalismo, como as instituições do saber especializado promotoras do
desenvolvimento do modo de produção: escolas4, universidades, indústrias, meios de comunicação
social, instituições financeiras e o Estado (aliás, é um grande benemérito “social” do capital, pois
regula e organiza as relações sócias de produção).
Qual seria uma possível solução para este problema? Devemos reconhecer que a base social
da especialização (a inserção numa categoria profissional), não pode ser removida no
contexto da sociedade moderna. Isto só seria possível com uma profunda transformação
social, o que pode constituir num objetivo, mas não numa prática imediata. Apesar disto, é
possível superar a divisão do trabalho intelectual através de uma formação mais ampla.
Portanto, tanto a predisposição individual dos pesquisadores como ações coletivas podem
contribuir com o processo de questionamento da divisão do trabalho intelectual e buscar
formas de superá-la. Assim, algumas serpentes não irão nascer e iremos contribuir para que
as universidades deixem de ser um ninho de serpentes e passem a ser semente de um
mundo novo (VIANA, 2002, REA).
4
Para Gramsci (2010), a civilização moderna e a organização da cultura escolar foram desenvolvidas em dois tipos de
escola: a dos dirigentes e especialistas e a organizada para as classes subalternas. A escola voltada para as classes
dirigentes seguiam como orientação a formação humanista e para a formulação do pensamento complexo. Para as
classes subalternas, a escola propícia era a de base técnica, voltada para a formação profissional e instrumental.
111 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
Jul. 2013/Jan. 2014.
Outras perguntas também são imprescindíveis, a nosso ver. É possível a elaboração de
uma crítica a divisão capitalista do trabalho intelectual fundada no materialismo histórico dialético?
Qual o papel dos intelectuais que radicalizam suas críticas a formação social do capital? Existem
intelectuais anticapitalistas? Quais suas ligações com a classe trabalhadora?
A resposta a essas indagações está diretamente interligada a própria existência do
proletariado enquanto classe. O intelectual vinculado a classe trabalhadora tem como condição
existencial a constituição de um projeto coletivo junto ao proletariado e a negação de si mesmo
como indivíduo pertencente a uma “classe autônoma”.
O intelectual, neste caso, deve realizar um engajamento na luta pela transformação social e
abolição das classes em geral, inclusive da sua própria classe social. Isto pode ser feito sob
as mais variadas formas, desde a ação política concreta até a própria atividade profissional,
direcionada para a crítica das ideologias, da burocracia e do próprio papel do intelectual na
sociedade moderna. A articulação do intelectual com o movimento operário, os
movimentos sociais, as lutas políticas concretas também assume importância neste
contexto. Além disso, é fundamental a contribuição com o desenvolvimento do pensamento
complexo no sentido de desvendar as diversas formas de dominação e reprodução da
exploração e opressão. Assim, os intelectuais passam de serviçais do poder para críticos do
poder e este é o papel do intelectual que supera os seus interesses imediatos e egoístas e
passa a defender os interesses gerais da humanidade, que são também seus interesses,
contribuindo, assim, com a emancipação humana (VIANA, 2006, REA).
Portanto, a luta de classes é esse movimento no qual os intelectuais devem engajar-se
junto aos/as trabalhadores/as com o objetivo primordial: a superação do capitalismo e a supressão
da sociedade classista.
Isso exigirá dos/as intelectuais um esforço militante na construção de uma sociedade
livre do domínio do capital e a favor da humanidade emancipada, na qual os indivíduos e sujeitos
livres se associarão para construírem a sociedade comunista. De acordo com essa constatação, os/as
que tiverem do lado desse projeto revolucionário, inclusive, os intelectuais, terão de predisporem a
realizar tarefas militantes para a construção de “coletivos de autogestão social” (VIANA, 2008, p.
53).
Para concluir, o legado marxista, em sua práxis com a possibilidade concreta da
realização de outra lógica de sociedade. O esforço teórico do marxismo é de radical significação
para a classe trabalhadora, pois possibilita o crescimento crítico do projeto da socialista e de
movimentos da classe trabalhadora em prol de sua emancipação. O marxismo vê no materialismo
histórico dialético o método de explicação da realidade, no qual alimenta a realização concreta da
totalidade histórica e social (KORSH, 2008).
112 PROTO, Leonardo Venicius Parreira. Concepção marxista acerca da noção de intelectual. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 100-112,
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Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
JUVENTUDE E UTOPIA
André de Melo Santos
RESUMO
ABSTRACT
As manifestações que tem ocorrido recentemente no
Brasil evidenciaram uma grande participação de
jovens e estudantes. Diante disso buscamos discutir
o conceito de juventude na sociedade moderna,
como esta categoria social entrou em evidência no
cenário político. Diante dessa massiva participação
de jovens nos movimentos sociais buscaremos
discutir o conceito de utopia, no sentido de que
desejo move esses jovens, utopia que busca algo
alcançável ou sonhos da juventude?
The events that have occurred recently in Brazil
showed significant participation of young people
and students. Therefore we discuss the concept of
youth in modern society, as this social category
came into prominence in the political arena. Given
this massive youth participation in social movements
seek to discuss the concept of utopia, in the sense
that desire moves these young people, seeking
something attainable utopia and dreams of youth?
Keywords: Youth,
Palavras-chave: Juventude, sociedade moderna, movements, utopia.
movimentos sociais, utopia.
modern
society,
social
Introdução
As manifestações que ocorreram no Brasil no mês de junho além de não serem previstas
-se bem que não existem meios nas ciências sociais de fazer previsões- milhares de pessoas
tomaram as ruas numa onda de protestos que começaram com o movimento passe livre
reivindicando a revogação do aumento da tarifa em algumas cidades como Goiânia e São Paulo e
com a proximidade do evento que antecede a copa do mundo que será realizada no Brasil entraram
na pauta protestos contra os gastos públicos com a realização do evento no Brasil e contra a
corrupção entre outros
Uma característica marcante desse movimento foi a grande participação de jovens e
estudantes algo que no ocidente desde o fim da II Guerra Mundial se tornou algo frequente,
lembremo-nos do maio de 1968 (GROPPO, 2000) um movimento que teve na França a maior
repercussão e que questionou as bases da sociedade capitalista. Desde então os movimentos
estudantis ganharam força e tomaram as ruas.
Segundo Marx (2011) como classe explorada caberia à classe trabalhadora lutar pela
destruição da sociedade capitalista, as organizações de trabalhadores tiveram segundo Bihr (2012)
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Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
dois caminhos a seguir um mais radical que buscaria a revolução e outro defendido pela
socialdemocracia que tinha como ideia central a participação na democracia burguesa e
consequentemente a vitória eleitoral significaria que as reformas fossem implantadas para fazer com
que os interesses da classe trabalhadora fossem atendidos. Contudo a socialdemocracia nunca
realizou essas reformas e, aonde chegou ao poder o que se viu foi à continuidade da hegemonia
capitalista.
O fim da Segunda Guerra Mundial presenciou transformações na sociedade capitalista,
a destruição ocorrida no conflito permitiu uma estabilidade e crescimento econômico, um novo
regime de acumulação foi implantado e este permitiu nos países imperialistas o que se chamou de
integração da classe operária a sociedade de consumo e, para isto foram criados mecanismos de
assistência e seguridade para a classe trabalhadora, embora nos países subordinados que estavam
sendo industrializados com a utilização de capitais transnacionais, as condições dos trabalhadores
foram muito ruins (COSTA, 1997). Desta forma quando o regime de acumulação entrou em crise e
o maio de 1968 é um sintoma disso, a classe trabalhadora dos países imperialistas entrou
tardiamente na luta e desde então vive o dilema de lutar contra a sociedade capitalista ou buscar o
retorno ao modelo do regime intensivo-extensivo que lhe proporcionou certos benefícios.
Neste contexto que emergiram as lutas estudantis, no momento em que nos países
imperialistas a classe operária oscilava entre lutar ou buscar reformas coube ao movimento
estudantil liderar as ondas de revoltas. Diante disso que nos propomos a discutir dois pontos que
acreditamos serem relevantes, o conceito de juventude e o de utopia.
Conceito de Juventude
O conceito de juventude fez isso porque uma característica dos movimentos sociais do
pós II Guerra, no ocidente tem forte presença de grupos estudantis, como exemplo o maio de 1968
e, o próprio movimento antiglobalização, atualmente em Goiânia um movimento estudantil
questiona o aumento da passagem de ônibus, embora este atinja a todos inclusive os trabalhadores,
é visível que as manifestações são compostas em sua maioria de jovens.
Desta forma se faz necessário definir a juventude, a que grupo ela pertence e, diante
disso o motivo da contestação juvenil. Por outro lado se faz notar o interesse do estado em relação à
juventude, segundo Groppo:
Os nazistas pregavam claramente que queria da juventude ( e dos líderes da juventude,
incluindo os professores) uma integração militante ou ativa. Nos princípios da política
nazista para a educação e juventude, segundo George L. Mosse, está a busca da cooptação
da juventude e das novas gerações, deixando-se relativamente de lado as velhas gerações
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Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
consideradas contaminadas por vestígios de liberalismo e até socialismo/comunismo (2000,
p.159-160)
A juventude seria o ímpeto cultural do Terceiro Reich, e assim fica claro como o partido
nazista mobilizou a juventude da Alemanha e, como esta foi uma das bases de sustentação do
regime.
Assim se faz necessário buscar uma definição de juventude, e neste caso é útil observar
como os sociólogos tratam o termo. Iniciaremos com as análises de Mannhaeim, passando por
Lapassade até chegar a autores contemporâneos como Groppo e Viana para chegarmos a uma
definição que colabore com a nossa pesquisa.
Mannheim no livro Diagnóstico de Nosso Tempo esboça uma definição de juventude,
inicialmente colocando a questão do conflito de gerações, colocando que:
Na sociedade moderna a juventude tem a função específica da mocidade é a de um agente
revitalizante, é uma espécie de reserva que põe em evidência quando essa revitalização for
necessária para ajustamento a circunstâncias em rápida mudança ou completamente novas
(Mannheim, 1972, p50)
Ele coloca que a juventude não está completamente envolvida na ordem social (1972),
daí seu espírito aventureiro, desta forma disposta a enfrentar com mais entusiasmos as novas
situações do que as gerações mais velhas. Outro ponto debatido é se a juventude é de uma
perspectiva mais progressista ou conservadora, visto que socialmente o jovem é visto como
progressista e o adulto conservador. Desta forma, para Mannheim o jovem ainda não tem direitos
adquiridos e sua potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade, tendo escrito sobre a
juventude na época da ascensão do nazismo, no livro escrito em 1931, Diagnóstico de Nosso
Tempo, devido à manipulação que os nazistas faziam com a juventude pode ter colaborado para ele
elaborar essa definição de juventude que se assemelha a um vagão de trem que pode ser puxado
para qualquer lado.
Segundo ele, na linguagem da sociologia, ser jovem significa, sobretudo ser um homem
marginal, em muitos aspectos um estranho no grupo (1972, p.53), mais adiante ele coloca:
Evidentemente esta situação de elemento estranho é somente um potencialidade e, como eu
disse, depende em grande parte das influências orientadoras e diretoras vindas de fora saber
se essa potencialidade será suprimida ou se será mobilizada e integrada em um movimento
(1972, p.53).
Uma obra importante para discussão sobre juventude é o livro A Entrada na Vida, de
Georges Lapassade. Nesta obra de grande importância para o debate sobre a juventude na sociedade
moderna e escrita na década de 1960, no tempo dos grandes movimentos contestatórios da sociedade
capitalista fez uma discussão sobre o significado da juventude. O autor começa questionando o
papel do adulto padrão na sociedade moderna. Segundo ele:
116 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
O homem moderno aparece cada vez mais, em todos os planos da sua existência, como um
ser inacabado. O inacabamento da formação tornou-se uma necessidade, num mundo
marcado pela transformação permanente das técnicas, o que implica numa educação
igualmente permanente (LAPASSADE, 1975, p. 16)
A ideia que se tem de adulto como um ser amadurecido, terminado, é colocada em
xeque na sociedade moderna já que as transformações constantes da sociedade capitalista colocam o
indivíduo em uma situação de estar sempre preparado para novas situações, diferente, por exemplo,
da sociedade feudal, onde se tinha a estabilidade na vida inteira.
Assim, a juventude se caracteriza por essa transição entre a infância e a vida adulta,
segundo Lapassade:
A adolescência é um período de passagem, de transição. Pode considerar-se adolescência
como uma mudança na pertença ao grupo. Até aqui, o indivíduo pertença ao grupo das
crianças; esta pertença termina na idade em que o jovem se esforça seriamente por entrar na
vida adulta, pelos projetos de futuro e pelo seu estilo geral de vida. (1975, p.158-159).
Assim a juventude é um período de mudança e segundo o autor esse período é marcado
por uma grande plasticidade na personalidade, visto que sai de um mundo conhecido e seguro, o da
infância, e entra num mundo desconhecido, o do adulto dai o radicalismo de opiniões. O ser adulto
na sociedade capitalista é ser para a classe trabalhadora, ou ser explorado. Muitos se recusam a se
tornar adulto, pelo que isso significa: trabalhadores alienados (Lapassade, 1975, p.189).
Mesmo que a escola, os meios de comunicação e a sociedade tenham o papel de formar
não só o jovem, mas toda a sociedade a aceitar sua condição de classe, os jovens acabam se
rebelando contra isso, pois muitos não querem seguir o destino dos pais, neste ponto chegamos às
revoltas juvenis, um confronto do indivíduo com seu meio social, o jovem se depara com o mundo
que terá que viver.
Pode-se ver esta contradição, precisamente nas expectativas da sociedade em relação aos
jovens: tudo mostra que esta sociedade, por um lado, manifesta uma certa desconfiança a
respeito do indivíduo que levasse demasiado longe o espirito crítico e a iniciativa: o ideal
da organização é, neste ponto, um ideal que caracteriza o conjunto do sistema social. Mas,
por outro, a mesma sociedade não pode verdadeiramente manter-se senão pela adesão dos
indivíduos que a compõem. É nisso que está a sua contradição: manter um sistema
conformista, fundado sobre valores ilusórios, e, ao mesmo tempo, pretender preparar
adultos capazes de humanizarem um tal sistema e nele se integrarem ativamente
(Lapassade, 1975, p.260)
Na juventude, esse conflito se torna mais agudo, e, no caso da sociedade capitalista que
aprofundando o processo de exploração, oferece ao jovem uma perspectiva não muito animadora
em relação ao futuro, é normal que o jovem recuse o mundo do adulto.
Outro sociólogo que discute a questão da juventude é Luís Antônio Groppo, no seu livro
Juventude, de 2000, ele usa a Sociologia e a História para discutir o tema nas sociedades modernas.
No seu texto ele coloca uma definição clara, segundo ele:
117 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
A juventude é uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos
sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de
complementos e atitudes a ela atribuídos. Ao mesmo tempo, é uma situação vivida em
comum por certos indivíduos. Na verdade, outras faixas etárias poderiam ser definidas
assim, como a infância, a terceira idade e a própria idade adulta. Trata-se não apenas dos
limites etários pretensamente naturais e objetivos, mas também, e principalmente, de
representações simbólicas e situações sociais com suas próprias formas e conteúdos que
tem importante influência nas sociedades modernas (Groppo, 2000, p.7-8).
A juventude para Groppo é uma construção social da modernidade (Viana, 2012) com
ênfase no aspecto cultural desta abordando aspectos que segundo este autor caracterizam a
juventude: A noção de transitoriedade- na qual o juventude antecede a vida social plena; noção de
projeto- a etapa juvenil como estágio de preparação para uma vida posterior socialmente estável; a
noção de crise e ruptura (Groppo, 2000, p. 26)
Por fim, chegamos a definição do sociólogo marxista Nildo Viana, que ao analisar a
questão da juventude que ela se caracteriza por viver um processo de ressocialização, contudo na
sociedade capitalista, devido à sua divisão em classes e, que uma classe, a burguesia, explora as
demais, os jovens principalmente os provenientes da classe operária é uma ressocialização
repressiva e coercitiva (VIANA,2004).
A juventude é, pois, um grupo social em processo de ressocialização. No processo de
socialização, a criança, através da família, da escola e da comunidade, é preparada para
viver no interior de determinadas relações sociais, instituídas pelo capitalismo, adquirindo
habilidades (falar, ler, escrever, etc.), valores, padrões de comportamento, etc., e um certo
grau de saber necessário para sua idade e atividades sociais. O processo de ressocialização
visa, fundamentalmente, preparar a força de trabalho para sua inserção no mercado de
trabalho. A escola atua nos dois processos, mas de forma diferenciada, pois na
ressocialização se fornece uma escolarização que permite a entrada no mercado de trabalho,
seja promovendo a exigência mínima em determinadas fatias deste mercado (ensino
médio), ou mais aprimorado (cursos técnicos) o maior exigência, o ensino superior
especializado (universidade). Ao lado da preparação da força de trabalho, o jovem também
é preparado para o processo de imputação de responsabilidades sociais. Além da inserção
no mercado de trabalho, o adulto também deve realizar outras atividades sociais, entre as
quais as obrigações familiares e sociais em geral (casamento, sustento da família, cuidado
dos filhos, atividades civis e institucionais, etc.). O processo de ressocialização é uma
preparação do jovem para que ele se insira na vida adulta (VIANA, 2004, p.38-39).
Essa ressocialização é repressiva porque a sociedade tem que preparar o jovem para o
que Lapassade (1975) coloca o trabalho alienado. Daí que outro sociólogo Rousselet na obra
Alergia ao Trabalho (1974) coloca que cada vez mais os jovens não se interessam pelo trabalho e
este significa entrar na vida adulta. Esse desinteresse manifesta-se mais amplamente contexto do
regime de acumulação integral (VIANA, 2009), onde as condições de trabalho se tornam
inflexíveis, apesar do discuro da flexibilidade, existe uma insegurança em relação a estabilidade no
emprego e uma incerteza em relação ao futuro.
Essa ressocialização é também coercitiva, porque, diante dessa realidade, o jovem é
obrigado a se inserir no sistema. Embora os mecanismos de socialização (escola, família, igrejas,
118 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
etc.) reforcem e estimulem a necessidade dessa inserção, mesmo assim percebemos que muitos
jovens resistem. Os que entram na universidade e, tem acesso a conteúdos mais críticos, geralmente
ministrados em disciplinas como sociologia, história e filosofia tendem a desenvolver um espírito
crítico maior. Na verdade isso explica a rebeldia jovem e estudantil, mas não casos concretos de
radicalização. Para explicar esses casos é necessário remeter para outras relações sociais, tal como
questões políticas, educacionais, aumento da repressão e pobreza, etc. Pode ser ai que encontramos
um dos motivos do movimento estudantil ter assumido um caráter contestatório. Dito isto, temos
que analisar o que vem a ser a contestação juvenil, segundo Viana:
A contestação juvenil é uma das manifestações da contestação social e é uma das mais
recorrentes na sociedade moderna. Ela também assume formas distintas a bases específicas
e torna-se necessário analisá-las. Desde a contestação moderada e cotidiana até a
participação em movimentos revolucionários ou até mesmo explosão inicial de processos
de radicalização, a juventude emerge na cena política mostrando sua tendência contestadora
(VIANA, 2012).
Desta forma, a contestação juvenil nasce na crítica ao processo de ressocialização que
ocorre na sociedade moderna. A sociedade reconhece o caráter rebelde do jovem, tanto que as
instituições que atuam neste processo tentam canalizar essa rebeldia o exemplo mais claro é um
grupo de jovens ligados à igreja denominados, Radicais de Deus, ou seja, reconhecem a contestação
juvenil e tenta canalizá-la, outro exemplo é como o movimento Punk, que no seu início fazia uma
crítica a sociedade capitalista, bandas como o The Clash se apresentavam como defensores do
socialismo, até o movimento ter sido absorvido pelo capital ao ponto de surgir uma moda inspirada
no movimento.
Segundo Viana:
A contestação juvenil pode ser, portanto de duas formas: a que fica nos limites da
sociedade moderna e, por conseguinte, não ultrapassa os limites de diminuição da repressão
e coerção, ou outros paliativos (o mercado consumidor jovem é rico em protestos culturais
semelhantes) ou a contestação total, que assume caráter politizado e aponta para a
transformação social (2012, p.8)
Erich Fromm (1974) coloca uma diferença entre o caráter rebelde e o revolucionário,
segundo ele o primeiro contesta a sociedade não por querer mudanças, se revolta contra este por não
ter benefícios uma vez conseguidos à rebeldia cessa, os milhares de militantes de partidos de
esquerda que outrora criticavam o governo e suas políticas uma vez que chegaram ao poder
mudaram o discurso. Já o caráter revolucionário questiona a sociedade não por querer benefícios
pessoais, sente os problemas da sociedade a almeja uma mudança que traga melhorias para todos os
indivíduos.
Neste ponto que faremos uma discussão com os autores que discutem a utopia
especialmente Mannheim e Bloch que são para nós os principais teóricos sobre o tema podem nos
119 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
ajudar a explicar os motivos da contestação juvenil. Ambos concordam que a utopia transcende a
realidade e, vemos que a contestação juvenil tem origem numa sociedade opressora e coercitiva.
Porém, daí para frente os dois seguirão caminhos diferentes, Mannheim apontando para uma
perspectiva conservadora, e Bloch buscando elementos para demonstrar que a utopia é um
sentimento que no seu sentido concreto pode ser um combustível para as transformações sociais.
Utopia e Sociedade Moderna
Dando sequência à discussão teórica dede nosso trabalho chegamos ao conceito de
utopia, buscaremos traçar um histórico do termo até chegarmos à discussão científica do termo
tratado pelo sociólogo Karl Mannheim e pelo filósofo marxista Ernst Bloch.
A ideia que se tem de utopia é de algo inalcançável, algo que transcende a realidade,
portanto não realizável. O próprio termo utopia significa não lugar, algo pensado por Thomas More
(2008) no Século XVI como uma sociedade ideal onde os homens viveriam com abundância e
harmonia. A partir dai o termo passou a designar algo fora da realidade, uma pessoa utópica era
visto como alguém distante do mundo real um sonhador que não tem consciência da realidade.
Contudo, a utopia pode ser definida como uma consciência antecipadora, ou seja, ela
pode ser o germe de novas realizações humanas, mesmo que pensadas de difícil concretização, parte
do seu conteúdo pode vir a se realizar. A história está cheia de exemplos, de como que sonhos se
tornaram realidade, embora não necessariamente o conteúdo sonhado fora transposto para a
realidade. As revoluções burguesas são um bom exemplo para se livrar da nobreza, a burguesia
criou o liberalismo, a democracia e estes como projetos tinham a perspectiva de tornar a vida na
sociedade melhor, em tese estes princípios que se contrapunham à ordem feudal prometiam uma
vida melhor para todas as classes, o ideal da revolução francesa ‘’Liberdade, Fraternidade e Justiça
é um exemplo disso.
O que esses ideais escondiam era que a sociedade capitalista, é uma sociedade divida
em classes e, a forma de exploração que se diferenciava das sociedades anteriores e, que os ideais
pregados por ela no período pré-revolucionário não passavam de ideologias, ou seja, formas de falsa
consciência sistematizada.
O que move os indivíduos a esses ideais é o sonho de uma vida melhor, na sociedade
capitalista nem todos estão contentes com, o pouco, que têm e isso faz com que desejem uma forma
de superar esta condição neste momento, surge a utopia, o desejo de transcender essa realidade
buscando uma vida melhor. Assim é que entra a discussão que faremos com Mannhiem e Bloch,
analisaremos o que cada um trata como utopia para por fim fazermos uma síntese e trazermos a
120 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
discussão para o nosso tema, movimentos contestatórios de juvens no regime de acumulação
integral.
Mannheim e Utopia
Mannheim foi um sociólogo húngaro que viveu de 1893 a 1947, num período de muita
agitação na Europa. Neste período temos a tentativa de revolução na Rússia em 1905, a primeira
guerra mundial e a revolução Russa de 1917. Mannheim se instala na Alemanha e leciona em
Heidelberg e Frankfurt. Com a ascensão do nazismo na Alemanha se exila na Inglaterra onde reside
até falecer em 1947.
Trataremos aqui da sua obra Utopia e Ideologia na qual ele define o termo. No começo
do texto Mannheim diz que um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o
estado de realidade dentro do qual ocorre (Mannheim, 1972, p. 216). Assim fica claro nesta
definição de que se trata de algo que transcende a realidade, e isso não pode também se confundir
com a ideologia, entendida como falsa consciência sistematizada da realidade.
Ao limitar o significado do termo “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade
e que, ao mesmo tempo, rompe as amarras da ordem existente, estabelece-se uma distinção
entre os estados de espíritos utópicos e os ideológicos. Uma pessoa pode-se orientar para
objetos que sejam estranhos à realidade e que transcendam a existência real- e, não
obstante, permanecer ainda ao nível e na manutenção da ordem de coisas existente. (1972,
p. 216)
As ideologias segundo Mannheim podem situacionalmente transcender a realidade, e
desta forma influenciar no comportamento dos indivíduos, por ter seu conteúdo deformado, na
prática não promove uma transformação. O autor cita o exemplo do amor fraterno cristão que
embora fundado na boa fé, não ataca os fundamentos de uma sociedade fundada na servidão e acaba
sendo irrealizável, pois não ataca as bases desiguais dessa sociedade.
Para o autor, existe uma dificuldade de se identificar separadamente os elementos
utópicos dos ideológicos, pois estes aparecem no mesmo contexto histórico. O exemplo foram às
utopias desejadas pela burguesia que aparentemente eram para toda sociedade, mas que ocultava o
seu significado real e, quando realizadas revelaram seu conteúdo ideológico.
Para que uma utopia venha a se realizar é necessário que um grupo em determinada
época
No sentido de nossa definição, uma utopia real não pode, a longo prazo, ser trabalho de um
indivíduo, já que o indivíduo não pode por si mesmo romper a situação histórica e social.
Somente quando a concepção utópica do individuo se impõe a correntes já existentes na
sociedade, dando-lhes expressão, quando, sob esta forma, reflui de volta ao horizonte de
todo grupo, sendo por este traduzida em ação, somente então pode a ordem existente ser
desafiada pela luta por outra ordem de existência. (1972, p. 231)
121 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
Ao buscar transcender a ordem existente o elemento utópico se torna um desejo
dominante e na modernidade essa mentalidade utópica sofreu mudanças em suas formas conforme a
época. Assim, segundo Mannheim a primeira forma de mentalidade utópica surgiu com os
Anabatistas onde estratos oprimidos da sociedade acreditavam ser predestinados e depois do
julgamento final ficariam mil anos na terra. A segunda forma foi a ideia liberal humanitária
característica da época que antecedeu as revoluções burguesas e, que defendiam uma ordem
segundo esses ideias. A terceira forma a ideia conservadora, que segundo o autor não detém
nenhuma utopia, porém, acha-se por sua própria estrutura completamente em harmonia com a
realidade sobre a qual, por hora, mantém o domínio (1972 , p.253).
A última forma de mentalidade utópica, a socialista-comunista, segundo o autor,
radicaliza a utopia liberal, no sentido de acreditar no domínio da liberdade e igualdade. Contudo, na
medida em que a questão seja a da penetração da ideia no processo de evolução e no
desenvolvimento gradativo dela, a mentalidade socialista não a experimenta nesta forma
espiritualmente sublinhada (1972, p.264). Ao ascender ao palco político, conquistar espaço o
socialismo tende a abandonar seus impulsos utópicos de transformação social, se interessando por
questões isoladas do que uma perspectiva mais ampla.
Por fim, Mannheim coloca a situação da utopia na época contemporânea, lembrando
que o livro foi escrito na década de 1930, num mundo onde existia o nazi-fascismo e o comunismo
soviético vivia os anos de terror de Stálin. Para o autor
O próprio processo histórico nos mostra uma utopia que transcendia completamente a
história, vir gradativamente descendo em uma aproximação cada vez mais chegada à vida
real. Ao se tornar mais próxima da realidade histórica, sua forma sofre mudanças tanto em
função com em substância (Mannheim, 1972, p. 271).
Assim quando um grupo atinge o poder, a utopia se desliga da política e se aproxima de
uma posição conservadora. Fica evidente que o autor identifica o elemento utópico ligado a grupos
ou estratos sociais, o que significa que a utopia ligada a interesses de grupos específicos não tem
uma perspectiva de transformação social mas visam apenas para seu grupo e não para toda
sociedade. Os grupos que são portadores dessa mentalidade uma vez conseguindo ascender ao
poder tendem a se tornarem conservadores e, outros grupos que então se tornam marginalizados
tentem a desenvolver a mentalidade utópica até que consigam atingir o poder. Fica parecendo que a
utopia é uma roda da história em que classes em conflito se utilizam para garantir sua hegemonia e
assim sucessivamente.
122 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
Ernst Bloch e a Utopia
Ersnt Bloch (1885-1977) também contribuiu para discussão sobre utopia, sendo
militante marxista participou de vários movimentos que passaram o século XX e que diretamente
tem relação com a teoria de Marx. O capitalismo passou por grandes transformações no século XX
e estas tiveram influência no marxismo.
A revolução Russa é o grande acontecimento do começo do século e, a perspectiva de
uma transformação global logo foi se desvanecendo com os rumos que o modelo bolchevista deu
para a revolução. Logo o regime se transformou num capitalismo de estado onde a exploração saiu
das mãos da burguesia para ir para as mãos de uma burocracia estatal que de fato criou uma
ditadura, não como dito por Marx no Manifesto Comunista, uma ditadura de uma classe e que até se
esfacelar no fim da década de 1980 manteve as mesmas características.
Tendo participado do grupo que formou o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt,
Bloch teve contato com correntes dentro do marxismo, um tema que é fundamental em sua obra é a
questão da liberdade e, para Bloch somente o marxismo pode trazer ao homem a liberdade
autêntica. Sua obra mais importante e, que nos interessa neste estudo Princípio Esperança escrita
entre os anos 30 e 50 trata do tema da utopia. No começo da obra ele escreve:
A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais
intolerável o mais absolutamente insuportável para as necessidades humanas. É por isso
que até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e
perversamente estimulada. É por isto que até mesmo as últimas misérias da filosofia
ocidental não conseguem mais apresentar sua filosofia da miséria sem a penhora de uma
suplantação, uma superação (2005, p. 15).
Desta forma, Bloch concebe a esperança como algo essencial para o ser humano, os
sonhos tornam-se um elemento importante para a vida do ser humano, e estes contém o que ele
denominou a consciência antecipadora.
Define claramente com um novo tipo de consciência que nada tem a ver com a concepção
freudiana do inconsciente que se refere às profundezas da psique humana, a uma paisagem
lunática das perdas cerebrais, onde tudo o que foi recalcado é conservado. O ainda-nãoconsciente, é definido como uma instância da vida psíquica de produzir o sonhar para
frente, que indica o provir geral (MUNSTER, 1993, p.32).
Desta forma os sonhos são divididos em sonhos noturnos e os sonhos diurnos que são
estruturas fundamentais e, repletos de conteúdos utópicos. A utopia seria o conteúdo que carregam
estes sonhos diurnos.
Bloch também identificou que o termo utopia carrega uma imagem de algo irrealizável.
Como Mannheim e More, utopia transcende a realidade. Contudo, Bloch faz uma diferenciação do
123 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
termo, diferenciando as utopias abstratas das utopias concretas, estas últimas, segundo o autor pode
levar o indivíduo a buscar a transformação, e apenas o marxismo contém elementos que podem
fazer com que essa transformação realmente aconteça.
O que fez com que o conceito de utopia, como já foi observado, fosse exageradamente
reduzido (ou seja, restringido a romances que falam de um Estado ideal) e adquirisse
justamente aquela modalidade abstrata (pelo caráter preponderantemente abstrato desses
romances) que só foi superada quando o socialismo elevou essas utopias ao nível da uma
ciência (Bloch, 2005, p24).
Assim o marxismo, com a análise da sociedade capitalista pode fornecer os elementos
para uma crítica que supere as ideologias e coloque o homem numa condição de realizar o que
Marx chamou de entrar na história, pois todas as sociedades divididas em classes são a pré-história
da humanidade e o socialismo pode fundar a história da humanidade sem exploração.
Como Mannheim, Bloch vê a utopia como possibilidade, desta forma se faz necessário
um conhecimento que possibilite que o conteúdo concreto da utopia se realize. Como foi dito antes
esse conhecimento está para Bloch no marxismo e para tanto ele divide este em corrente fria
caracterizada pela:
A análise das condições materiais e subjetivas do processo de transformação, em paralelo
ao ser-segundo-a-possibilidade. Pertence, consequentemente, a esta análise metódica da
situação e das condições, não apenas o exame das tendências da história e dos indicadores
econômicos, e sim, também, das superestruturas, principalmente das estritamente
ideológicas (BICCA, 1986, p.116)
E a corrente quente é definida por ela como o momento do entusiasmo na teoria
marxista, portanto, da exortação para práxis transformadora, da formação de uma vontade para o
novo, vontade de ser de outro modo, que remete ao ser-em-possibilidade (Bicca, 1986, p.116). A
corrente quente contém a intensão libertadora, a vontade de criar uma nova sociedade, materialista e
humanista na qual a igualdade e a liberdade serão reais. A corrente fria é a teoria, que auxilia as
classes exploradas um conhecimento da real da sociedade capitalista.
Portanto Bloch elabora um novo significado para o termo utopia, através de toda sua
teorização o conteúdo utópico no seu sentido concreto, diferente de Mannheim ou More na qual a
utopia transcende a realidade, mas não visa uma revolução na sociedade. Bloch diferencia a utopia
abstrata da utopia concreta, abstrata porque seu conteúdo não visa uma transformação esta é vista
como algo irrealizável. A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo
(BLOCH, 2005, p.307).
O conceito de utopia de Bloch é muito importante quando vemos o florescimento de
movimentos contestatórios com o antiglobalização, que inicia com reivindicações mais específicas e
destas vão surgindo outras questões e as concessões que a burguesia faz diante das reivindicações
concretas vai se confrontando com o capital e deixando claro que as medidas paliativas que o
124 SANTOS, André de Melo. Juventude e utopia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade
Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 113-125, Jul. 2013/Jan. 2014.
capital adota para atender estas demandas são cada vez mais ineficazes e, somente uma revolução
pode de fato levar o homem à liberdade. Esta revolução precisa segundo Bloch ser sonhado e este
avançar para que se realize a revolução.
Considerações Finais
Embora a onda de manifestações entraram em refluxo, visto que poucos protestos
ocorrem, o espírito que a fomentou, o desejo de buscar mudanças na sociedade permanecem vivos,
embora conforme discutimos não temos condições de afirmar que estas manifestações sejam uma
utopia concreta, que busquem uma transformação radical, podemos dizer que elas representam um
sentimento de indignação.
Embora essa indignação seja contra as mazelas da sociedade capitalista ela ainda não
busca uma ruptura, se acredita que ainda é possível que esta sociedade seja mais justa, como
almejam os manifestantes. Contudo, a sociedade capitalista é marcada pela exploração de classe e,
portanto não tem como ser mais justa, pode em algum momento fazer concessões, porém como o
desenvolvimento do capital gera suas crises se faz do ponto de vista da burguesia intensificar a
extração de mais valor. Isso legitimado pelo Estado Neoliberal com sua política de corrosão dos
direitos sociais. Desta forma a repressão estatal tende a aumentar, e daí podemos ter a possibilidade
da própria radicalização do movimento, que se inicialmente lutava contra o aumento da tarifa do
transporte, contra a corrupção, etc, pode assumir a luta contra a sociedade capitalista.
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2013/Jan. 2014.
O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NA SUCESSÃO
DE REGIMES DE ACUMULAÇÃO
Mateus Orio1
RESUMO
Este artigo tem como objetivo discutir o capitalismo
como o modo contemporâneo de produção e
reprodução da vida humana. Partindo da
compreensão da exploração de mais-valor como
essencial ao capitalismo, é empreendida uma análise
do modo de produção compreendendo suas
mudanças no decorrer da história segundo a
sucessão de diferentes regimes de acumulação. A
discussão se dá no sentido de apresentar elementos
fundamentais da produção capitalista desde a
acumulação primitiva de capital até a forma
contemporânea: a acumulação integral. Assim, será
discutida a composição do Estado capitalista, as
relações internacionais, as formas pelas quais são
desenvolvidos os processos de trabalho, assim como
a criação de ideias que visam a legitimação do tipo
específico de acumulação empreendido em cada
época. A partir desta discussão é possível traçar uma
análise crítica do modo de produção capitalista que
aponte para a busca de sua superação.
ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss the
capitalism as the contemporary mode of production
and reproduction of human life. Based on the
understanding the exploitation of surplus value as
essential to capitalism, an analysis is undertaken of
the production process including its changes
throughout history according to the succession of
different regimes of accumulation. The discussion is
developed in order to present the fundamental
elements of capitalist production since the primitive
accumulation of capital to the contemporary form:
unabridged accumulation. Thus, will be discussed
the composition of the capitalist state, international
relations, the ways in which work processes are
developed, as well as the creation of ideas aimed at
legitimizing the specific type of accumulation
undertaken each season. From this discussion, it is
possible to draw a critical analysis of the capitalist
mode of production to point to the pursuit of its
overcoming.
Palavras-chave: Produção contemporânea, mais- Key words: Contemporary production, surplus
valor, mudanças na acumulação capitalista.
value, changes in capitalist accumulation.
Apresentação
Este estudo tem como objetivo discutir o modo de produção capitalista em suas
reorganizações no decorrer da história. Neste sentido, o ponto de partida é a constatação de que o
referido modo de produção não foi suplantado por outra forma de reprodução das relações humanas.
A discussão que se segue empreende um caminho em torno do desenvolvimento do capitalismo
para tornar possível a compreensão do modo de produção da vida humana na contemporaneidade.
1
Sociólogo e Doutor em Sociologia na Universidade Federal de Goiás.
127 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul.
2013/Jan. 2014.
Entendendo o processo de construção de um conhecimento totalizante e verdadeiro
compreendemos, tal como Marx e Engels na Ideologia Alemã (1984), a realidade como uma síntese
de múltiplas determinações, ou seja, como uma unidade entre diversos acontecimentos que são
determinantes para o conhecimento do passado, a existência do presente e para a apresentação de
tendências para o futuro. Do mesmo modo, compreendemos a realidade como independente perante
a consciência individual, ou seja, não é o pensamento que cria a realidade, a realidade existe quer
pensemos nela quer não pensemos, existe independentemente de que nós, seres humanos, criemos
representações corretas ou equivocadas sobre ela. E entendemos que o que define a veracidade das
representações criadas pelos seres humanos acerca da realidade é a prática, ou seja, o valor de
verdade das representações humanas refere-se à prática concreta.
Por outro lado, o modo para se chegar à compreensão da realidade – que se confirme na
prática concreta – parte de uma análise minuciosa dos diversos elementos que compõe a unidade, ou
seja, das múltiplas determinações da realidade. Nesse sentido, o processo de concepção da realidade
como representação, ou seja, o processo de apreensão da realidade no pensamento, é um processo
de síntese. É um processo final, que de forma alguma cria a realidade, mas busca “recriar” esta
realidade na consciência humana. Nesse sentido, a compreensão da realidade parte de uma análise
minuciosa, ancorada na prática concreta e as representações que daí resultam constituem um
conhecimento totalizante e verdadeiro.
Tendo como pressupostos os indivíduos reais, a ação destes indivíduos reais e suas
condições materiais de vida “tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua
própria ação” (MARX; ENGELS, 1984, p. 26-27) compreendemos que o primeiro pressuposto da
história humana é a existência de seres humanos vivos. E o primeiro ato histórico dos seres
humanos, que os distingue dos animais, não é meramente pensar, mas produzir seus meios de vida
(MARX; ENGELS, 1984).
Tomando então o modo de produção contemporâneo, ou seja, o capitalismo, podemos
compreendê-lo como um modo de vida determinado dos indivíduos. A forma de organizar a vida
humana contemporaneamente parte da produção, distribuição, troca e consumo de mercadorias. E
estas possuem tanto uma utilidade como uma grandeza de valor. A divisão social do trabalho no
capitalismo separa aqueles que produzem as mercadorias daqueles que possuem os meios para
produzi-las. Assim, aqueles que possuem os meios de produção (os indivíduos da classe burguesa)
contratam outros para produzirem as mercadorias para si. Então, os frutos da produção não
pertencem àqueles que produzem (os indivíduos da classe proletária), pois eles apenas recebem um
salário que equivale a uma parte do resultado da produção. Por fim, excetuando-se os gastos gerais
com a produção e os salários dos produtores, o restante dos frutos produzidos pertence à classe dos
128 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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donos dos meios de produção. A este resultado que é produzido pelo proletariado, mas que não
chega até suas mãos e é, ao contrário, expropriado pela burguesia, chamamos mais-valor. O maisvalor é o que permite à classe burguesa sobreviver sem que tenha a necessidade de produzir sua
subsistência. Deste modo, o mais-valor é o que evidencia o principal conflito de classe na sociedade
contemporânea.
Sendo assim, após partimos da compreensão da atualidade do capitalismo, reafirmando
a sobrevivência do modo de produção fundamentado na extração de mais-valor por meio da
exploração do trabalho, passaremos à análise das modificações ocorridas no modo de produção
capitalista entendendo que o mesmo não fora suplantado por nenhuma outra forma social de
produção e, por conseguinte, continua dominante na contemporaneidade. Portanto, partiremos da
teoria dos regimes de acumulação (VIANA, 2003; 2009) para tratar das modificações no
capitalismo de maneira dialética.
As transformações desenvolvidas no modo de produção capitalista serão tratadas
segundo a sucessão de regimes de acumulação que são, por sua vez, expressão da luta de classes
que reverbera em consequências sociais gerais. Nesse sentido, a mudança na acumulação capitalista
requer uma reorganização da sociedade incluindo não somente uma reorganização da produção,
mas acompanhada de uma reorganização do Estado capitalista. Além disso, são necessárias também
reorganizações em torno das relações internacionais: a forma política com que os países
economicamente dominantes se comportarão com relação aos subordinados, e são necessárias
também mudanças no que diz respeito à ideologia dominante, compreendendo a construção da
legitimidade de ideias como perpassada pela compreensão da população acerca da dinâmica das
relações sociais. Tudo isso compondo um todo de múltiplas relações de modo a manter a coesão
social por determinado período de tempo.
No item a seguir será discutida a concepção do conceito de regimes de acumulação à
guisa de compreender o capitalismo em sua totalidade, assim como em sua atualidade. A partir de
então, serão discutidas as diferentes formas de acumulação desenvolvidas no capitalismo, ou seja,
os diferentes regimes de acumulação e suas especificidades. Nesse sentido serão abordadas: a
acumulação primitiva de capital que proporcionou o desenvolvimento das condições para a
produção fundamentada na exploração de mais-valor; o regime de acumulação extensivo que foi o
primeiro regime de acumulação propriamente capitalista; o regime de acumulação intensivo que se
desenvolveu a partir da administração científica do trabalho; o regime de acumulação intensivoextensivo que, após o capitalismo de guerra, trouxe a produção em massa e a tecnologia para ditar o
ritmo do trabalho; e, por último, o regime de acumulação integral que busca a máxima acumulação
129 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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por meio de formas variadas de organização do trabalho. No item final são apresentadas algumas
considerações que apontem para uma reflexão crítica do modo de produção capitalista.
Desenvolvimento capitalista e regimes de acumulação
O modo de produção capitalista não foi suplantado. Ele ainda é predominante nas
relações sociais contemporâneas e estende seus tentáculos cada vez mais, impossibilitando formas
alternativas e até mesmo subordinadas de relações sociais de produção. O capitalismo vai invadindo
todas as comunidades humanas mesmo havendo forte resistência em algumas localidades.
Naturalmente a sociedade do século XXI não é idêntica à sociedade do século XVI,
quando o capitalismo estava emergindo, e nem à sociedade do século XVIII, já com o capitalismo
predominando e se expandindo para todo o mundo. Muitas relações sociais, incluindo relações de
produção, formas jurídicas, composições estatais, etc. foram extintas e muitas outras desenvolvidas.
Mas o que é fundamental é percebermos que a exploração do trabalho por meio da extração de
mais-valor2 é, ainda, a base da produção humana. A extração de mais-valor é a essência do
capitalismo e esta essência já foi demonstrada por Marx (1996a3) no século XIX. O que podemos
observar são diversas mudanças na organização da produção, nas instituições sociais que servem de
apoio à legitimação da produção capitalista, bem como na ideologia dominante.
Foram necessários o movimento real da sociedade e o predomínio do capitalismo na
Europa para que Marx pudesse compreender o mais-valor como essência deste modo de produção.
Da mesma maneira, a compreensão teórica do desenvolvimento do capitalismo é perpassada pelo
desenvolvimento concreto deste modo de produção no decorrer da história. De uma forma dialética,
Marx parte das concepções de diversos autores acerca da sociedade, sem as quais não poderia ter
elaborado sua teoria, confronta estas concepções com a realidade e, a partir de um processo de
profunda reflexão, tomando por base a realidade, elabora sua teoria concreta da sociedade. Então,
para que seja elaborada uma teoria acerca do desenvolvimento concreto do capitalismo e suas
mudanças é necessário compreender o movimento histórico real da sociedade, promovendo uma
análise das concepções produzidas no período, mas confrontando-as com a realidade de maneira
dialética.
Para compreender as mudanças no capitalismo em uma totalidade é necessário não se
perder de vista a essência deste modo de produção, ou seja, a produção de mais-valor, assim como o
2
Preferimos a utilização da expressão “mais-valor” em detrimento da tradução mais comum, “mais-valia”, por
considerar aquela uma tradução mais elucidativa do conceito de Marx.
3
Obra originalmente publicada em 1867.
130 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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antagonismo de classe subsistente a esta relação, ou seja, a exploração do trabalho do proletariado
pela burguesia. Além disso, não podemos limitar a análise a uma localidade isolada, pois isso
fragmentaria a compreensão das relações sociais e provocaria equívocos relativos principalmente à
divisão internacional do trabalho. Assim, a teoria dos regimes de acumulação (Viana, 2003; 2009)
expressa as mudanças no capitalismo em sua totalidade:
[...] um regime de acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento capitalista,
marcado por determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização),
determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional. (VIANA,
2009, p. 29-30).
Desta forma, um regime de acumulação específico é expressão da luta de classes
contemporânea em uma correlação relativamente estável seja no âmbito da organização da
produção ou mediada pelos estados nacionais de modo a influenciar as relações internacionais.
Além disso, a mudança no regime de acumulação provoca mudanças gerais na sociedade, pois a
cada novo regime de acumulação surgem diferentes expressões culturais, ideológicas, etc. (VIANA,
2009).
Com uma mudança no regime de acumulação a sociedade precisa se reorganizar como
um todo para que o regime seja aceito, bem como reproduzido. Desta forma, reorganizam-se a
composição estatal, no sentido da maneira como o Estado irá intervir na sociedade e da forma mais
ou menos restrita como permitirá a participação da população nas decisões políticas; reorganiza-se a
sociedade civil, compreendendo o espaço privado que não diz respeito às regulamentações estatais:
na sociedade civil também são constituídas mediações políticas e jurídicas de modo à mediatizar e a
integrar organizações e reivindicações da sociedade em torno de instituições privadas. E há todo um
aparato ideológico que se normatiza em leis e costumes, favorecendo a uma aceitação e integração
social generalizadas nos momentos de estabilidade do regime de acumulação. (VIANA, 2003;
2009).
A partir disso as ideias criadas e difundidas durante o período de estabilidade de um
regime de acumulação são apreendidas como verdadeiras, “pragmáticas”, ou mesmo
inquestionáveis. A construção da legitimidade destas ideias é inseparável do processo de
constituição do regime de acumulação. As mesmas ideias, porém, caem por terra e são impugnadas
com maior ou menor intensidade tão logo o regime de acumulação comece a dar indícios de
esgotamento. Ao passar por cada regime de acumulação tentaremos trazer alguns elementos que
demonstrem como a sociedade vai se reorganizando a partir das mudanças ocorridas na produção e
também como as regulamentações sociais interferem na mudança da própria produção.
131 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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Acumulação primitiva
Tratando enfim do desenvolvimento do capitalismo, podemos perceber inicialmente que
o processo de gênese da acumulação capitalista remonta ao desenvolvimento secular das condições
para a produção fundamentada no mais-valor. Entre estas condições estão a formação de um capital
acumulado e de uma classe trabalhadora livre e sem propriedades. Estas duas condições expressam
que as atrocidades engendradas pela busca impiedosa do lucro são comuns desde as origens do
modo de produção capitalista.
Muito do que foi tratado como comércio – um meio pelo qual o capital era acumulado
antes da instauração do modo de produção capitalista – não era simplesmente a troca de
mercadorias, mas incluía “também a conquista, pirataria, saque, exploração.” (HUBERMAN, 1986,
p. 163).
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o
enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias
Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras
marcam a aurora da era de produção capitalista. (MARX, 1996b, p. 370)
No que diz respeito ao trabalho livre não podemos esquecer do desemprego provocado
pelos cercamentos de terras e pelo próprio avanço das indústrias que solaparam a produção
artesanal (e posteriormente também a manufatureira) fazendo com que não restasse a antigos
camponeses e artesãos nada mais que sua própria força de trabalho, promovendo a separação
compulsória dos produtores de seus meios de produção, engendrando a classe proletária. E assim
temos a chamada acumulação primitiva de capital (MARX, 1996b) que abriu as portas para a
produção efetivamente capitalista.
Regime de acumulação extensivo
Seguindo a teoria dos regimes de acumulação de Nildo Viana (2003; 2009): após a
acumulação primitiva de capital inicia-se o primeiro regime de acumulação propriamente
capitalista: o regime de acumulação extensivo, que tinha como característica, principalmente a
extração de mais-valor absoluto4. A forma de organizar o trabalho neste período era então baseada
4
O mais-valor designa, nada mais que, um valor excedente. Este excedente advém da exploração do trabalho. Maisvalor implica em mais-trabalho (Cf. MARX, 1996a), ou seja, um trabalho que se estende para além do necessário à
subsistência do trabalhador. Concluímos então que falar em mais-valor implica falar em exploração dos trabalhadores.
132 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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na máxima exploração que incluía baixos salários e o constante aumento da jornada de trabalho,
bem como a ampla utilização de força de trabalho infantil e feminina.
Para desenvolver a acumulação capitalista desta maneira, a forma estatal surgida neste
regime de acumulação foi o Estado liberal, que tinha como um de seus pilares a democracia
censitária. O Estado liberal trazia a defesa do livre mercado, mas é necessário compreender que a
acumulação primitiva, que possibilitara este primeiro regime de acumulação capitalista, foi baseada
no protecionismo que favoreceu a acumulação de capital nos países que primeiro desenvolveram a
produção capitalista. O livre mercado passa a ser então a bandeira dos países capitalistas desejosos
de suplantar os demais. A democracia censitária era o resultado das revoluções antimonárquicas,
capitaneadas pela burguesia, classe que tem como fundamental a estima pelo direito natural à
propriedade privada.
O neocolonialismo (Cf. VIANA, 2003) era, neste período, a forma predominante das
relações internacionais em que os países que primeiro desenvolveram a produção capitalista
buscavam exportar suas mercadorias e importar as matérias-primas dos países subordinados,
desenvolvendo o processo de acumulação de capital e abrindo caminho para a expansão do
capitalismo. Este primeiro regime de acumulação capitalista, o regime de acumulação extensivo,
apresenta já consigo uma característica intrínseca ao referido modo de produção: o caráter
expansivo. O capitalismo começa a estender seus tentáculos da Europa para o mundo.
A luta de classes neste período se deu no sentido da busca de melhores condições de
trabalho, bem como da luta pela ampliação dos direitos civis. A partir então da década de 1840 este
regime de acumulação encontra dificuldades para se reproduzir. Com as lutas operárias se
intensificando no meio do século XIX, o regime de acumulação extensivo entra em crise,
culminando com a insurreição da Comuna de Paris (1871) e marcando uma derrota temporária da
classe capitalista.
Regime de acumulação intensivo
No final do século XIX o capitalismo se reorganiza a partir do regime de acumulação
intensivo. As lutas de classes demandaram a ampliação de direitos civis e consequentemente a
diminuição da jornada de trabalho e, por conseguinte, a diminuição da extração de mais-valor
absoluto. Em resposta a isso, com o novo regime de acumulação a classe capitalista trouxe o
taylorismo e a administração científica do trabalho como forma de aumentar a extração de maisNo que diz respeito ao mais-valor absoluto este se refere à forma mais simples de aumentar a exploração, ou seja, pelo
aumento da jornada de trabalho ou pela diminuição do valor pago à subsistência do trabalhador.
133 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul.
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valor relativo5 mantendo o avanço da acumulação. Inicia-se uma espécie de racionalização dos
processos de trabalho a partir da busca da eliminação do “tempo morto”, o que implicava numa
maior proximidade dos objetos de trabalho ao trabalhador bem como na diminuição do tempo
reservado à alimentação e à manutenção física do trabalhador durante a jornada. Ou seja, a nova
organização forçava uma intensificação do trabalho.
O regime de acumulação intensivo era complementado pelo Estado liberaldemocrático, que implicou na ampliação da legislação trabalhista e dos direitos políticos e na
instituição da democracia partidária liberal, ampliando progressivamente o sufrágio e estabelecendo
partidos políticos e sindicatos como mediadores das reivindicações sociais. Para superar a crise do
regime de acumulação anterior foi necessário, além disso, acabar com o “livre mercado”. Desta
forma, este regime de acumulação teve como forma predominante de exploração internacional o
imperialismo (Cf. LUXEMBURG, 1983; HOBSBAWM, 1992; COHEN, 1976), implicando no
surgimento dos oligopólios, no protecionismo e no imperialismo financeiro, expandindo a produção
capitalista aos países subordinados. O capitalismo deixava então de ser “livre-concorrencial” para
se tornar oligopolista, ao mesmo tempo em que se intensificava a concorrência entre os países
imperialistas na busca de novos domínios.
Com o avanço da luta operária no início do século XX, a resistência ao taylorismo, o
crescimento de organizações reformistas (partidos socialdemocratas, sindicatos) e tendências
revolucionárias (anarquismo, correntes esquerdistas do marxismo) e com as diversas tentativas
revolucionárias na Europa (por exemplo: na Alemanha, na Itália e na Hungria) o Estado liberaldemocrático e a classe capitalista cederam, em alguns países, o governo para a socialdemocracia
(Cf. LUXEMBURG,1983; MAKHAÏSKY, 1981; HOBSBAWM, 1995), mas, com o insucesso
desta tentativa em conter o ímpeto revolucionário, tiveram que apelar para a repressão e o fascismo
instaurando uma crise generalizada do capitalismo na Europa que culminou nas duas guerras
mundiais. Era instaurado aí o capitalismo de guerra e o regime de acumulação intensivo-extensivo
se inicia em seguida, após a Segunda Guerra Mundial.
5
Outra forma de aumentar a exploração é por meio do aumento da produtividade. Este aumento pode se dar a partir da
implementação de novas tecnologias na produção como também por meio de mudança na organização do trabalho,
fazendo com que os trabalhadores produzam mais em menos tempo, acarretando em um aumento da exploração de
mais-valor definido por Marx (1996a) como mais-valor relativo.
134 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul.
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Regime de acumulação intensivo-extensivo
Após o capitalismo de guerra foi possível uma ampla acumulação de capital em
decorrência da destruição em massa das forças produtivas. No regime de acumulação intensivoextensivo o fordismo torna-se hegemônico como modo de organização do trabalho. Enquanto o
taylorismo objetivava aumentar a extração de mais-valor relativo através da organização do
trabalho, no fordismo este aumento se dava pela implantação de novas tecnologias que
determinavam o ritmo e a intensidade do trabalho. Assim, a aplicação do fordismo instaurava a
produção em massa, bem como inviabilizava a produção em pequena escala. (VIANA, 2003).
O Estado se esforçava para controlar os ciclos econômicos para manter a demanda
estável e o emprego relativamente pleno. Este conjunto de medidas que favoreciam a qualidade de
vida da população é entendido como o Estado integracionista, pois integra os trabalhadores ao
capitalismo pela maior participação deles no consumo como também pela conformação ideológica e
consequente apaziguamento das lutas de classe:
A política estatal de seguridade social e o conjunto de políticas voltadas para a educação,
saúde, etc., visavam integrar a classe operária, melhorando seu nível de vida e a
qualificação de parte dela, e, ao mesmo tempo, buscava ampliar o mercado consumidor,
pois a força de trabalho ao ser liberada de determinados gastos e receber segurodesemprego, entre outros benefícios financeiros, passava a ter um maior poder aquisitivo.
(VIANA, 2003, p. 72)
A implementação do fordismo como modelo de organização do trabalho dependia
também, logicamente, das relações internacionais que foram um dos motivos para as dificuldades
de expansão fordista antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Por meio das políticas de ocupação
e do plano Marshall, o fordismo se expandiu no pós-guerra permitindo que a capacidade produtiva
excedente dos Estados Unidos fosse absorvida em outros lugares e possibilitando a formação de
mercados de massa globais, isso tudo em uma conjuntura particular em que os Estados Unidos se
impuseram por meio de alianças militares e relações de poder. (HARVEY, 2012). Assim, para
compensar o aumento dos gastos estatais há uma intensificação do imperialismo, que “passa a se
caracterizar pelo predomínio da exportação de capital-produtivo, e as empresas transnacionais se
instalam em diversos países, abrindo uma nova fase de exploração imperialista” (VIANA, 2003, p.
72).
Desta forma, o capitalismo oligopolista transnacional desenvolve o regime de
acumulação intensivo-extensivo marcado pelo aumento da extração de mais-valor relativo nos
países imperialistas, com a difusão do fordismo, e pelo predomínio da extração de mais valor
absoluto nos países capitalistas subordinados, com a difusão das empresas multinacionais. “Assim,
135 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul.
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a acumulação intensiva no capitalismo imperialista era reforçada pela acumulação extensiva no
capitalismo subordinado, através da transferência de mais-valor.” (VIANA, 2003, p. 73).
A legitimidade do Estado, porém, dependia cada vez mais de sua capacidade em levar
os benefícios a todos de modo humano e atencioso. E isso dependia da contínua aceleração da
produtividade no setor corporativo. Somam-se a isso os diversos movimentos contraculturais e de
minorias e todos os insatisfeitos dos países de capitalismo subordinado que viam suas culturas
locais serem sobrepujadas em troca de pífios aumentos em termos de padrão de vida. Alguns
movimentos, por vezes, pareceram ameaçadores para o fordismo global, descredibilizando a
hegemonia estadunidense em um período que ela parecia estar em seu apogeu. (HARVEY, 2012).
No final da década de 1960, depois de completada a recuperação da Europa Ocidental e
do Japão após a guerra, o mercado interno estadunidense começava a se esgotar. A queda da
produtividade e da lucratividade marcou o começo de um problema fiscal nos Estados Unidos
demandando uma aceleração da inflação que fez o dólar desvalorizar. Com isso a hegemonia
econômica estadunidense começou a perder espaço para países da Europa Ocidental e para o Japão,
além dos países recém-industrializados que entravam na competição (HARVEY, 2012). Além
disso, a partir da década de 1960 as lutas sociais se manifestam de formas diversas através do
movimento de contracultura, da autonomização do movimento estudantil e do movimento operário
e do fortalecimento de tendências revolucionárias esboçadas anteriormente (VIANA, 2003).
Regime de acumulação integral
A alta exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado; a constante ampliação
do mercado consumidor; e a integração da classe operária no capitalismo oligopolista internacional,
pilares do regime de acumulação intensivo-extensivo, encontravam-se em dificuldade de se
reproduzir (VIANA, 2003). Diante disso a nova ofensiva do capital no sentido de sua afirmação foi
a busca do aumento da exploração tanto nos países imperialistas como nos subordinados, acabando
de vez com o estado integracionista. E com isso surge o novo regime de acumulação que começa a
predominar a partir da década de 1980:
Trata-se do regime de acumulação integral, que busca aumentar, simultaneamente, a
extração de mais-valor relativo e mais-valor absoluto. Esta busca de aumento da taxa de
exploração vai ser batizada de “reestruturação produtiva” e terá no toyotismo [...] e
modelos similares a forma como o capital irá agir no processo de valorização, o que será
complementado pelo estado neoliberal e pelo neo-imperialismo. (VIANA, 2003, p. 75,
grifo nosso).
136 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul.
2013/Jan. 2014.
A forma estatal do novo regime de acumulação é o Estado neoliberal, cuja ideologia
surge com Hayek no pós-guerra e se desdobra com outros autores, vindo a ser aplicada apenas no
final da década de 1970 e início da década de 1980 quando o contexto da crise do Estado
integracionista possibilita a aceitação social de tais diretrizes. Esta forma estatal traz a
desregulamentação das relações de trabalho, o fim das políticas sociais e a redução de gastos
estatais buscando “proporcionar uma política estatal favorável à retomada da acumulação
capitalista, bem como a nova política fiscal e internacional.” (VIANA, 2003, p. 76).
E este, que é o regime de acumulação contemporâneo, tem como forma de exploração
internacional o neoimperialismo: é um imperialismo integral (VIANA, 2009) que consiste na
transferência de mais-valor pelas empresas transnacionais que buscam se instalar nos locais onde a
força de trabalho é mais barata. Vão se criando nichos no mercado consumidor, acirrando a
competição internacional, assim como persiste a ocorrência de guerras rápidas que destroem meios
de produção e fomentam a indústria bélica, aumentando também os conflitos internacionais.
As novas formas de organização do trabalho no capitalismo são variadas e focalizam
tanto o controle e gerência como a aplicação de tecnologia. Estas formas de organização do trabalho
– que empregam jornadas variáveis, subcontratações, produção em pequenos lotes – não se
tornaram hegemônicas em todos os lugares e, é importante ressaltar, o taylorismo e o fordismo
também não se tornaram. O fordismo, aliás, ainda persiste como forma organizativa hegemônica em
alguns setores industriais específicos.
Uma das novas formas de organização do trabalho nasce no Japão a partir da percepção
do governo japonês que teria de adaptar a produção automobilística às condições particulares de seu
país se quisesse competir com as indústrias estadunidenses e europeias. O ministério do comércio
internacional e da indústria então declara a indústria automobilística como prioridade e estabelece
uma série de medidas que alavancam a indústria no país. “Nessas condições nasce o sistema
produtivo próprio do Japão, que, conforme o caso, recebe o nome de métodos flexíveis, just-in-time,
método kanban ou toyotismo, já que a Toyota foi a primeira a empregá-lo. (GOUNET, 1999, p. 25).
As políticas denominadas neoliberais que foram implementadas a partir do regime de
acumulação integral vieram de encontro às necessidades de “empreendedorismo” por parte dos
Estados. As dificuldades em dar prosseguimento à acumulação capitalista não suportariam mais um
Estado integracionista. Por isso muitos governos, tenham sido eles autointitulados de direita ou de
esquerda, tiveram que aderir às políticas de “desregulamentação”, de favorecimento à iniciativa
privada. E também, neste período, a intervenção do Estado nos mercados financeiros passa a ser
mais importante e frequente.
137 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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O subemprego – visto muitas vezes como “empreendedorismo”, uma forma digna de
“vencer na vida” – assim como o desemprego assumem grande importância no regime de
acumulação integral no sentido da manutenção de um exército industrial de reserva, como também
de burlar as leis trabalhistas conseguidas por intermédio de longas lutas dos trabalhadores durante
os regimes de acumulação anteriores. O regime de acumulação integral – com os diversos métodos
de organização do trabalho, o neoliberalismo e o neoimperialismo – inaugura um nível de
exploração sem precedentes que visa responder às necessidades de acumulação em um modo de
produção cada vez mais complicado. A tentativa de sugar até a última gota de suor do trabalhador
implica em uma expansão cada vez mais dificultosa, abrindo precedentes para um esgotamento
muito difícil de ser revertido.
Considerações finais
Uma análise detalhada do capitalismo em seu desenvolvimento histórico, ou seja, uma
análise dos regimes de acumulação e as diferentes formas de conduzir o processo de valorização, as
formas Estatais, as relações internacionais e demais regulamentações sociais mostra que a luta de
classes não deixou de existir, nem tampouco de se acirrar, a despeito de algumas correntes teóricas
contemporâneas como o pós-modernismo (Cf. Eagleton, 1998). A luta de classes no interior do
capitalismo por vezes se arrefeceu e isso ocorreu em épocas e localidades específicas. Da mesma
maneira, a luta de classes se acirrou drasticamente em alguns momentos que significaram grandes
abalos para o modo de produção, demandando mudanças na organização capitalista que deixaram
marcas e impuseram novos obstáculos à acumulação.
Ressaltamos novamente a persistência do modo de produção capitalista como a forma
predominante de reprodução da vida humana e com ele a persistência de diversas formas de
exploração e opressão humanas engendradas no decorrer da história. Compreendemos que nestes
processos os maiores prejudicados são aqueles que em suas mãos movimentam a produção dos bens
necessários ao sustento de toda a humanidade, ou seja, os indivíduos da classe produtora. A
sucessão dos regimes de acumulação evidencia a forma como os trabalhadores são explorados,
primeiro sendo coagidos a trabalhar como proletários, depois tendo que trabalhar em ritmos cada
vez mais fortes sendo, posteriormente, incitados ao consumo para terem, por fim, a intensificação
de todas as formas de exploração.
A aparência de que a vida de muitos trabalhadores melhorou a ponto de que haja a
superação da luta de classes não consegue ir além do fim do Estado integracionista que, por sinal,
existiu em tempo e espaços limitados e já inexistentes. A intensificação dos processos de trabalho
138 ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Estácio de Sá –
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em todo o mundo deve apontar para novos conflitos sociais em que persiste o confronto entre a
proposta de continuarmos em uma sociedade opressora e desumana e a possibilidade da superação
do que está posto para a realização de uma associação livre de produtores realmente emancipados.
Enfim, o desenvolvimento de diferentes processos de trabalho, que exploram cada vez
mais os trabalhadores, tende a dificultar cada vez mais o “crescimento”, ou seja, quanto mais
arrochadas as condições de trabalho, mais difícil é aumentar a exploração do mais-valor, mais
difícil torna-se manter o fundamento do capitalismo, abrindo cada vez mais possibilidades de
insatisfação, de crítica e de enfrentamento. A insatisfação, as mortes no trabalho, o retardamento da
produção pelos trabalhadores e o absenteísmo são expressões de oposição ao capitalismo, mas
apenas o desenvolvimento histórico da humanidade irá mostrar se os trabalhadores irão superar a
desmobilização imposta pelas novas formas de trabalho e se as insatisfações se potencializarão em
uma crítica cada vez mais ferrenha e consequentemente a ruptura com este modo de produção e a
instauração de um modo de vida verdadeiramente humano.
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memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE OS
AMBULANTES/FEIRANTES DA REGIAO CENTRAL DE GOIÂNIA ENTRE 1970 E
2012: NEGOCIAÇÕES DISCURSIVAS COM A MEMÓRIA DA HISTORIOGRAFIA
TRADICIONAL SOBRE SUJEITOS ESQUECIDOS DO MUNDO DO TRABALHO
Edmar Aparecido de Barra e Lopes1
RESUMO
ABSTRACT
Neste artigo pretendemos demonstrar que as
representações sociais sobre os ambulantes/feirantes
no jornal O Popular (entre 1970 e 2012) também se
materializam enquanto negociações/reapropriações
discursivas com uma modalidade de memória
específica, ou seja, com aquela resultante de
abordagens da historiografia tradicional sobre o
mundo do trabalho. Num primeiro momento,
procuraremos discorrer sobre a contribuição de
alguns importantes autores e autoras que
participam com suas análises no descortinamento
de permanências e rupturas relativas à produção
de uma memória historiográfica sobre os sujeitos
do mundo do trabalho no Brasil em diferentes
momentos históricos, tanto em âmbito nacional
quanto regional e local. Num segundo momento,
chamaremos atenção para o modo como a dinâmica
de produção das práticas discursivas do jornal o
popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e
2012) em geral é tributária de uma relação
ideológica com tal memória, uma vez que tende, não
raramente,
ao
incorporar
seletiva
e
fragmentadamente momentos ou aspectos analíticos
dessa memória historiográfica, de modo a balizar um
processo de construção de representações sobre os
ambulantes/feirantes e as relações dessas
representações com as ideias hegemônicas sobre a
cidade e o urbano, a política e a esfera pública, além
da ideia de trabalho. uma construção simbólica
pretensamente objetiva, na medida em que orientada
por esse discurso especializado, ou seja,
historiográfico.
This article aims to demonstrate that social
representation of the street / market vendors in the
newspaper The People (between 1970 and 2012)
also materialize as negotiations / discursive
reappropriations with a specific type of memory, ie,
with that resulting from traditional approaches of
historiography on the world of work. A first time
seek discuss the contribution of authors and some
important authors participating with your analysis of
the unveiling continuities and ruptures concerning
the production of memory on historiographical
subject in the world of work in Brazil in different
historical moments, both in scope national and
regional and local. Secondly, we call attention to
how the dynamics of the production of discursive
practices of the popular newspaper on the street /
market vendors (between 1970 and 2012) is
generally tax of an ideological relationship with that
memory, it tends not rarely, by incorporating
selective and fragmentarily moments or analytical
aspects of this historiographical memory in order to
mark out a process of constructing representations of
the street / market vendors and the relationships of
these representations with the hegemonic ideas
about the city and the urban, political and public
sphere, in addition to the idea of work. allegedly one
objective symbolic construction, insofar as directed
by the specialized speech, or historiographical.
Keywords: Social representations, Historiography,
Memory, World of Work.
Palavras-Chave:
Representações
Sociais,
Historiografia, Memória, Mundo do Trabalho.
1
Pós-doutorado em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas. Doutorado em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (2008). Mestrado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1999). Graduação em História pela Universidade Federal de Goiás (1995).
141 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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Vários autores da historiografia brasileira e também da sociologia têm contribuído para
chamar atenção sobre a presença de uma diversidade de sujeitos ou tipos de trabalho esquecidos ou
marginalizados do mundo do trabalho por abordagens tradicionais e/ou oficiais sobre o tema. Tratase de rupturas teórico-metodológicas que têm contribuído há muito para uma revisão crítica da
memória historiográfica dominante sobre o assunto.
Essa tradição e memória historiográficas, tradicional, no que diz respeito à ideia de
trabalho predominante, consolidaram-se com base nas seguintes características: 1) está fortemente
marcada por uma visão positivista de história, atravessada por um olhar conciliador entre as classes
sociais e caracteriza as abordagens sobre mundo do trabalho; 2) nessa tradição historiográfica o
trabalho integrado aos moldes convencionais do mercado é referenciado como elemento de
distinção social e constitutivo da ideia de nação e de modernidade; 3) a ideia de evolução social é
outra característica, na qual uma sociedade só pode encontrar o caminho civilizacional através da
educação, também através do trabalho mercadologicamente integrado que participaria como
variante pedagógica dos corpos desgarrados, das formas de produção, de circulação e consumo
indesejáveis à ideia de cidade moderna; 4) a defesa e o respeito à propriedade privada enquanto
qualidades basilares do bom trabalhador ou cidadão útil e, nesse sentido, trabalhar bem significa
principalmente se orientar segundo esses valores.
Em síntese, trata-se de uma tradição historiográfica que alimenta uma memória na qual
o conceito de trabalho é construído a partir da noção de que o trabalho, não qualquer forma de
trabalho, é o elemento ordenador da sociedade. O trabalho, tal como referido, figura enquanto
condição para a reforma moral do homem, da cidade e da nação. A ideia do trabalho quantificado,
regulado, higienizado, externamente controlado permeia e predomina na constituição histórica do
espaço público.2
Na contramão dessa forma de abordagem historiográfica, muitos autores têm ressaltado
que os trabalhadores do pequeno comércio em suas diversas formas não constituem realidade nova
na história do país. Entretanto, muito comumente, foram emudecidos enquanto sujeitos pela
tradicional narrativa historiográfica. Apesar de no Brasil, desde a sociedade colonial escravista,
uma diversidade de tipos sociais composta de jornaleiros, camaradas, lavradores, agregados e outros
2
Esta tradição e memória historiográficas sobre o mundo do trabalho encontram hoje grandes dificuldades de oferecer
um conjunto de ferramentas conceituais satisfatórias para a análise dos novos processos que caracterizam especialmente
a nova ordem econômica global e a forma como o mundo do trabalho em sua diversidade experimenta tais
transformações. Trata-se de um conjunto de procedimentos teórico-metodológicos que subsidiam representações sobre
as práticas dos trabalhadores marcadas por uma forte crise advinda da falta de capilaridade relativa aos novos ritmos
que passaram a marcar o mundo do trabalho particularmente a partir de meados da década de 1970 e início de 1980.
142 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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formarem uma camada intermediária de trabalhadores livres entre senhores proprietários dos meios
de produção e escravos. Vejamos como esse olhar historiográfico está presente em alguns autores,
contribuindo para criar uma nova e crítica memória sobre tais sujeitos até algumas décadas atrás
esquecidos ou marginalizados do mundo do trabalho.
Nessa linha de discussão, Caio Prado Júnior (1976) considera senhores e escravos como
os dois grupos bem classificados na estrutura social da colônia porque têm suas situações de classe
bem definidas. Os primeiros como dirigentes da colonização nos seus vários setores; os segundos
como massa trabalhadora. Entretanto o autor chama atenção para a existência de uma camada
intermediária, conceituada pelo autor como subcategoria da população colonial, forma inorgânica
da sociedade, constituída pelos indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem
ocupação alguma, cujo número vai aumentando com o tempo reforçando a ideia da marginalidade
econômica do trabalhador livre. Caio Prado Júnior (1976, p. 286) explica:
Esta situação tem causas profundas, de que vimos a principal mais saliente e imediata:a
escravidão, que desloca indivíduos livres da maior parte das atividades e os força para
situações em que a ociosidade e o crime se tornam imposições fatais. Mas alia-se [...] outro
fator que se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial [...]
um último fator é a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileiras [...]
cujas repercussões sociais [...] foram nefastas: em cada fase descendente [...] desagrega-se a
parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos
inutiliza-se, perde raízes e base vital de subsistência [...] nos distritos auríferos de MG, GO,
MT [...] uma boa parte da população destas capitanias estava nestas condições.
Também analisando o universo dos homens livres inseridos no contexto da escravidão,
Franco (1976) ressalta em sua obra a situação de marginalidade econômica a que ficaram relegados
os homens livres em função da forma de organização do sistema mercantil de produção. Para a
autora, esse sistema fundado no latifúndio, na escravidão e na monocultura:
[...] possibilitou e consolidou a formação de uma ralé que cresceu e vagou ao longo de
quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à
sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão, simultaneamente abria espaço
para sua existência e os deixava sem razão de ser [...]. (FRANCO, 1976, p. 14).
No mesmo sentido, Forestan Fernandes (1976) confere atenção, em suas análises sobre
as sociedades estratificadas, à denominada camada intermediária. O autor preocupa-se em
estabelecer o nível de participação da camada intermediária aos padrões da cultura dominante.
Contudo o foco central de sua análise está fundado na relação que estabelece entre marginalização e
sistema de produção colonial. Para o autor:
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ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
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A sociedade, no seu todo, compunha-se de um núcleo central, formado pela raça branca
dominante, e pelos conglomerados de escravos índios, negros ou mestiços. Entre esses dois
extremos, situava-se uma população livre e de posição ambígua, predominantemente
mestiça de brancos e indígenas que se identificava com o segmento dominante em termos
de lealdade e solidariedade, mas que nem sempre se incluía na ordem estamental. Onde o
crescimento da economia foi mais intenso, esse setor ficava largamente marginalizado,
protegendo-se sob a lavoura de subsistência mas condenando-se a condições permanentes
de anomia social. (FERNANDES, 1976, p. 32).
Somando-se às contribuições já referidas, Novais (1974, p. 35-36) afirma que “o próprio
funcionamento da produção colonial exigia outras categorias sociais além do binômino matriz
senhor-escravo”. O autor ressalta, sobretudo, o caráter de subordinação e de dependência conferido
aos trabalhadores livres relacionado respectivamente à economia mercantil e ao binômino senhorescravo, explicando que na prática esses trabalhadores constituem-se em “uma necessidade
estrutural, ou pelo menos em uma possibilidade estrutural atualizável a qualquer momento”
(NOVAIS, 1974, p. 35-36). Nesse sentido, o universo das várias categorias de trabalhadores que se
incluíam na camada intermediária tinha seu movimento de contração ou expansão condicionado
pelo movimento prévio da economia mercantil escravocrata. Novais (1974) contribui para conferir
alguma visibilidade a esses trabalhadores livres no período colonial, defendendo a tese de que eles
são também constitutivos do modo de produção colonial, ainda que marginalizados.
Emília Viotti da Costa (2007, p. 144), por sua vez, afirma que “o trabalho livre esteve,
desde o início [...], associado ao escravo nas fazendas de café. Ao caboclo eram atribuídas certas
tarefas mais perigosas e árduas [...] ou algumas para as quais o escravo não merecia confiança”3. Já
José de Souza Martins (1979) concorda na concomitância dessas formas de trabalho, ressalvando
que os trabalhadores livres no contexto histórico referido por Viotti estavam envolvidos na fase de
derrubada das matas, o que poderia comprometer o capital imobilizado no escravo. Octávio Ianni
(1962), no conjunto desse coro, é outro a constatar a persistência do trabalho escravo associado às
formas do trabalho livre, aglutinando-se numa mesma unidade produtiva.
Sobre essa diversa e quantitativamente expressiva camada social de indivíduos livres e
marginalizados na sociedade colonial escravista, particularmente naquilo que se refere aos
trabalhadores/as livres que exerciam atividades caracterizadas como comércio de miúdos e que
mais se aproximam dos sujeitos desta pesquisa (ambulantes/feirantes), outros estudiosos nos
oferecem também valiosas contribuições.
3
A respeito das tarefas arriscadas que evidenciam a função do jornaleiro livre que era tanto poupar o escravo de tarefas
arriscadas como completar eventualmente a mão de obra servil nas plantagens, ver também Gorender (1978).
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ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
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Novamente Caio Prado Júnior (1993, p. 22) ressalta que no Brasil essa forma de
trabalho está presente desde o primeiro século da colonização brasileira quando: “[...] o comércio
estava limitado aos pequenos mercadores ambulantes que percorriam o interior à cata de fregueses,
uma vez que não passavam os centros urbanos de pequenos arraiais, vilas, quando muito, de caráter
tipicamente rural”. Sobre esse tipo de comércio no período colonial, Venâncio e Furtado (2001, p.
95) acrescentam que ele era composto por “[...] Negros, mestiços e forros, especialmente mulheres,
que eram numerosos no comércio ambulante e nas vendas da periferia dos núcleos urbanos,
comerciando gêneros alimentícios e bebidas”.
Sem pretender esgotar a possibilidade de referências nesse sentido, podemos ainda citar
Mary de Baiocchi (1980) que, falando da concomitância do trabalho escravo e dos trabalhadores
livres no período colonial em Goiás, explica que isso podia ser observado tanto na lavoura de
subsistência quanto nas minas.
Ainda no que concerne a Goiás no contexto da colônia (inicialmente região mineratória,
depois agropastoril), o Estado apresentava as características básicas da sociedade colonial
escravista. Segundo Sales (1983), no decorrer do período aurífero dois grupos principais eram
visíveis e atuantes na estrutura das relações de produção em Goiás:
O dos proprietários de minas, também donos de fazendas agrícolas ou de gado e a massa
escrava. Entre os dois pólos [...] gravitavam uma população flutuante que vive de pequenos
ganhos, mas compõe o domínio do minerador [...] sua produção é incerta e a ocupação
irrelevante. Constitui, entretanto, presença e número no complexo regular do modo de
produção. São os agregados, os faiscadores livres, os tropeiros, os pequenos comerciantes,
vaqueiros, carreiros [...] cujo trabalho depende de habilidade, mas não de especialização
acentuada. (VASCONCELOS, 1981, p. 353).
Os autores referidos têm como preocupação comum e central de suas análises chamar
atenção para uma economia e sociedade na qual o mundo do trabalho sempre foi muito mais
diverso e complexo do que pretende em geral uma determinada memória dominante alimentada
pela historiografia oficial. Soma-se a isso o fato de muitos sujeitos não terem sido reconhecidos
enquanto tais em análises tradicionais de diferentes períodos e contextos históricos.
Essas análises historiográficas ressaltando a presença de uma multiplicidade de sujeitos
presentes no mundo trabalho em diferentes períodos da história política do país, desde a época
colonial, têm sido reforçadas e aprofundadas por vários outros estudiosos como Dias (1984), Mott
(1976), Costa (1981) e outros. Esses estudiosos não apenas têm contribuído para dar mais
audibilidade para essas vozes esquecidas do mundo trabalho, como também têm promovido uma
escuta que procura instituir uma nova relação de forças com as narrativas constituídas sobre o tema,
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ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
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visando evitar generalizações. Trata-se de um esforço teórico-metodológico que visa ressaltar e
compreender a multiplicidade de sujeitos políticos que sempre marcou o compósito do mundo do
trabalho em diferentes momentos históricos do país. Esses autores participam nesse processo de
rupturas com abordagens historiográficas tradicionais sobre a história de aspectos do mundo
trabalho no Brasil, por exemplo ao ressaltarem algumas peculiaridades do chamado pequeno
comércio ou comércio miúdo entre homens e mulheres no período colonial.
Assim temos que, segundo esses autores, enquanto, de um lado, as mulheres quase
monopolizavam o comércio miúdo (nos referimos aqui sobremaneira ao universo dos tabuleiros, em
que as mulheres que se dedicavam a vender pastéis, bolos, doces, quitutes e aguardente), os
homens, de outro lado, dominavam alguns pequenos setores, constituindo dois grupos: os
“mascates” e os “tendeiros”.
Sobre esses dois grupos, Venâncio e Furtado (2001, p. 107)
esclarecem:
Os primeiros eram os pequenos vendedores ambulantes com arregações de valor. As
autoridades não os viam com bons olhos, acusando-os de serem contrabandistas de
mercadorias e extraviadores de ouro e pedras preciosas; o mesmo pensava a população que
os responsabilizava por aumentos abusivos de preços, prejudicando o comércio
estabelecido em loja e vendas. Apesar de brancos e livres, a pobreza que os caracterizou e o
fato de viverem de venda a retalho, em geral, miudezas, situava-os entre os estratos mais
baixos da sociedade. Os segundos, por sua vez, estavam entre os comerciantes volantes
mais pobres, pois para montar as suas tendas de pano e se movimentar pelas Capitanias não
precisavam de grandes investimentos. Nas tendas, exerciam ofícios, como sapateiro ou
ferreiro, além de vender pequenos produtos [...]. Nesse agrupo, também havia aqueles que,
apesar de tendeiros, não faziam longos deslocamentos, limitando-se aos arraias, sendo que
muitos eram escravos a serviço de seus proprietários.
No que concerne ao que hoje conhecemos como Estado de Goiás, apesar de pouco
expressiva, esta forma de trabalho já se fazia presente antes da economia do ouro e se intensificou
com seu apogeu entre 1726 e 1749 com a exploração das minas dos Goyazes 4 a partir de 1726 e
com a fundação do Arraial de Sant`Anna e outros arraiais às margens dos rios propícios à
mineração, tais como Rio das Almas, Arraial da Meia Ponte etc. 5 Entretanto, as atividades e a
presença desses sujeitos continuam pouco documentadas e analisadas pela historiografia local. Isso
se deve em parte em função de uma memória historiográfica tradicional ainda muito influente,
marcada não apenas pela pouca visibilidade geralmente conferida aos sujeitos das formas de
trabalho livre no Brasil e em Goiás (desde a época do período colonial), mas também muitas vezes
4
Segundo Chaul (1997), a região das minas dos Goyazes foi governada inicialmente por Bartolomeu Bueno que ostentava
o título de capitão-mor até 1734. No ano de 1744, foi criada a Capitania de Goiás.
5
Para mais informações ver Chaul (1997).
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marcadas por análises etnocêntricas de viajantes de meados do século XIX como Pohl (1817-1821),
Saint-Hilaire (1819), Gardnen (1836-1941).
O primeiro, por exemplo, relata que “[...] quanto aos brancos e aos mulatos ou livres,
por hereditária preguiça, nada os leva a mexer, a por as mãos em qualquer trabalho que demande
algum esforço. Preferem passar fome. Faltam negros escravos e qualquer serviço só dificilmente
pode ser feito”. (POHL, 1976, p. 175). Semelhante visão tem Saint-Hilaire (1975, p. 109), ao relatar
que “[...] Os atuais habitantes da Província de Goiás, debilitados pelo calor e pela ociosidade não
parecem descendentes de intrépidos paulistas [...]”. Gardner (1975, p. 152), por sua vez, reforça a
visão apresentada classificando os habitantes da Vila das Almas e da Natividade como “[...] vadios,
indolentes e ociosos, fator que os levava a um estado de pobreza e fome”.
Também constitui parte da trama da memória historiográfica tradicional, e ainda com
força intensa sobre a história do mundo do trabalho no Brasil, representações sociais afins
partilhadas pelos administradores no contexto de decadência da mineração em Goiás. É o caso de
Cunha Mattos (s/d) que, no final da primeira metade do século XIX, sugeria uma atuação mais
rigorosa da polícia para obrigar os vadios libertos ao trabalho. Nesse sentido, afirma que “[...] os
escravos acabaram [...] os homens livres não querem trabalhar para não se parecerem ou para não se
confundirem com os escravos [...] conservam-se em apatia e ociosidade”. (MATTOS, s/d, p. 82)
A impossibilidade de administradores desse período em compreender as causas
profundas dessa recorrente falta de ocupação, caracterizando os trabalhadores livres não apenas no
período colonial, mas também no âmbito das lavouras cafeeiras e de outras regiões do país onde a
escravidão estava quase extinta (Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro) contribuiu para
alimentar uma crescente disposição por parte de proprietários e administradores de tentar resolver o
problema caracterizado pela ociosidade dos trabalhadores livres que, segundo diziam, “preferiam
viver no limiar da vadiagem”.
Assim gradualmente se consolidou a ideia de que somente um regulamento policial
poderia garantir o trabalho necessário. Por isso, eram tomadas medidas efetivas contra a
denominada ociosidade reinante na Província de Goiás. Ressalta o Matutina Meiapontense, em 4 de
janeiro de 1831, que a Câmara Municipal da Cidade de Goiás cria a lei, de 10 de janeiro de 1831,
resolvendo que:
[...] todo proprietário, que em sua casa consentir homens ociosos, ou que não ganhem
salário, os quais estejam com a título dos feijões, e contudo trabalhem não regularmente,
mas como de ordinário costumam, quando querem, ou como lhes parece, sendo que tal
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indivíduo poderia ser aliás mais útil, não a si mesmo como ao Município, seja multado pela
primeira vez em 4.000 réis no duplo e triplo, pelas reincidências. 6
Importante observar que essa lei atingia tanto os homens livres proprietários dos meios
de produção como aqueles destituídos de propriedade, sem nenhuma ocupação que lhes garantissem
a subsistência (no caso, os denominados vadios) e aqueles que embora trabalhassem a “título dos
feijões” eram inconstantes no exercício de seu dever, ou seja, agregados. De teor semelhante é a
resolução tomada em 15 de dezembro de 1831 pelo Conselho Geral da Província de Goiás
considerando que a maior parte da população vive em ociosidade prejudicial à sociedade e às
lavouras e criações, e em razão do exposto decide no artigo 4:
Os juízes de Paz vigiarão sobre os proprietários, senhores de terras, e homens poderosos,
procurando haver deles uma circunstanciada relação de todas as pessoas livres que tiverem
em suas companhias a titulo de agregados, ou qualquer outro especioso indagando em que
eles se ocupam, de que tiram sua subsistência, o motivo porque os colheram, e d’onde
vieram [...] ficando responsáveis pela veracidade das declarações [...].7
Essas referências foram apresentadas para demonstrar o paralelismo relativo às
representações sociais que proprietários, administradores e viajantes tinham sobre os trabalhadores
livres no Brasil em outros momentos históricos, caracterizadas especialmente pelas ideias de
preguiça, ociosidade e vadiagem. Ideias que constituem importantes elementos das representações
sociais dominantes que vários sujeitos sociais da cidade de Goiânia (independentemente de origem
de classe social, embora que em níveis diferenciados) têm sobre os ambulantes/feirantes em
questão.
No que concerne a tais representações sobre trabalhadores marginalizados do sistema
produtivo, autores como Cândido (1972) e Franco (1976) referindo-se à lavoura cafeeira na segunda
metade do século XIX demonstram que o problema da desqualificação do trabalhador livre nacional
enquanto ocioso e pouco dado ao trabalho é resultado de razões profundas: existência da
escravatura, impossibilidade de acesso à propriedade e à economia de subsistência a que estavam
condenados por sua marginalização da economia básica de exportação.
Novas análises sobre o assunto têm contribuído para romper com a referida memória
historiográfica relativa ao tema, evitando-se assim explicações rasteiras sobre esses sujeitos. Dias
(2000, p. 58), referindo-se à historiografia brasileira produzida entre 1950 e 1960, observa que os
6
7
Ver: Matutina Meiapontense, 4 de janeiro de 1831, n. 185.
Ver: Arquivo Histórico do Estado de Goiás – Assembleia Legislativa cx. 19.
148 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
2013/Jan. 2014.
sujeitos praticantes do comércio ambulante e de outras ocupações do cotidiano dos homens livres
pobres eram ainda estudados de forma descolada de suas respectivas historicidades 8 . De outra
forma, a autora explica:
Inseridos numa perspectiva globalizante, vistos como desordeiros ou subordinados ao todo
da nação, do poder, da ordem dominante. Para aceitar diferenças foi preciso transcender
enquadramentos amplos. Aceitar o outro implicava abrir-se para uma pluralidade de
possibilidades de participação. [...] Aceitar o outro implicava documentar experiências de
vida, aceitar conjunturas sociais fragmentadas que desafiam globalidades tidas como certas,
nacionais, coerentes com sistemas ideológicos predefinidos (DIAS, 2000, p. 58).
A autora prossegue esclarecendo que se tratava, pois, de uma abordagem que tendia a
reduzir a urdidura dos pormenores, a diversidade de sociabilidades e a experiências de vida aos
sabores das conjunturas internacionais, mas que pouco a pouco começou a dar espaço necessário à
construção de uma historiografia dos homens pobres que desde a época colonial não estavam
integrados sistematicamente à economia de exportação ou que resistiam à integração no sistema
produtivo (DIAS, 2000). Enfatiza necessidades tais como:
[...] o desvendamento de conjunturas parciais de grupos sociais em formação sem imporlhes conceitos e categorias abstratas. [...] A reconstituição das conjunturas locais e
regionais. [...] O estudo de aspectos aparentemente fortuitos e fragmentários. [...] rever
conceitos que alimentam a idéia do social por oposição ao político. (já que) Interpretar o
social implica passar pelo crivo de redefinição da cidadania política (DIAS, 2000, p. 5860).
Esse reenquadramento teórico-metodológico da produção do conhecimento histórico e
necessário à percepção de novas formas de sociabilidades, como o cotidiano das atividades de
trabalhadores do pequeno comércio, particularmente do pequeno comércio considerado ilegal frente
ao poder instituído, está também representado por muitas outras análises criticas que contribuem
para reconstruir a memória historiográfica tradicional relativa à historicidade do mundo do trabalho
no país. Doles (1978) explica-nos que a própria dinâmica da economia aurífera da Capitania de
Goiás favorecia de diversas formas o aumento desse tipo de comércio marginalizado. A autora
8
Apesar de observados já na época da colonial, Dias (2000) chama-nos atenção para a crescente presença desses
trabalhadores na região centro-sul a partir de meados do século XIX. No que concerne a Goiás no mesmo período, o
processo de concentração da estrutura fundiária somado a problemas de abastecimento interno e transportes têm muito a
ver com a sorte desses trabalhadores. Assim, explica que “O comércio era parte importante das atividades de subsistência,
desdobrando-se em cadeias infindáveis de múltiplos intermediários, desde o caminho das roças aos ranchos de tropas, às
vendas de beira estrada [...] realidade amplamente documentada pelos viajantes e pelas posturas das municipalidades”.
(DIAS, 2000, p. 66).
149 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
2013/Jan. 2014.
atribui o aumento do comércio legal, e também ilegal, no referido período histórico às seguintes
causas:
[...] o surgimento dos referidos povoados junto às jazidas de ouro; a circulação de ouro em
pó, como moeda permitida e possível na Capitania de Goiás; a facilidade dos comerciantes
ambulantes e estabelecidos contrabandearem ouro, apesar da centralização políticoadministrativa e da dura fiscalização, uma vez que o mineiro comprava quase todas as suas
coisas por preços altíssimos usando ouro como moeda e também o fato de os comerciantes
ambulantes ou não contarem com léguas desertas e indefinidas de fronteiras carentes de
policiamento, como também fiscalização facilmente corruptível; o dinamismo e aventura de
homens que abrindo picadas permitiam a passagem das tropas de animais carregados, único
meio de transporte. (DOLES, 1978, p. 91).
Na mesma linha de análise, Pijning (2001) explica que não se trata de uma
particularidade da fase aurífera da Capitania de Goiás. Como já foi dito, desde a época colonial no
Brasil arraiais e vilas, conforme a dinâmica político-econômica de cada uma delas eram espaços nos
quais “ambulantes, mercadores, pescadores e oficiais, buscavam sua parcela na economia ilegal. O
controle exercido por um administrador sobre esse ambiente podia ser facilmente convertido em
uma renda extra”. (PIJNING, 2001, p. 404).
Já Christolow (1947), historiador britânico da primeira metade do século XX, que
produziu uma história político-econômica do comércio ilegal das colônias portuguesas e espanholas
reconhece que o comércio ilegal era uma das dimensões do mercantilismo. Moutoukias (1988),
historiador que atua na França e estudou o comércio ilegal na Buenos Aires do século XVII como
parte indissociável da sociedade colonial, na qual grupos com diferentes interesses cooperavam e
competiam entre si estabelecendo redes a partir de sua participação dentro de atividades
juridicamente ilegais. Pijning (2001, p. 399) reforça tais análises afirmando que:
O contrabando (o comércio ilegal) foi incorporado pela organização jurídica, econômica
e social. [...] Algo inerente à economia do Atlântico pré-moderno, atuante em todos os
aspectos da sociedade luso-brasileira, assim como em qualquer outra parte da Europa,
África e das Américas.
Tal autor defende que no Brasil colonial, como em outras partes do mundo, múltiplas
formas de comércio ilegal eram aceitas e onipresentes. Sobre a compreensão da dinâmica desse tipo
de comércio em suas várias escalas, explica também que é mais importante saber quem praticava o
comércio ilegal do que saber o quanto ele era praticado no sentido de compreendermos eventuais
operações de perseguição e condenação dessa prática.
150 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
2013/Jan. 2014.
Ao atentarmos para o comércio ilegal em suas várias escalas e formas, mais ou menos
tolerado ou mais ou menos expressivo em diferentes momentos da Capitania de Goiás e
posteriormente na nova capital de Goiás – Goiânia -, espaço onde periodizamos nosso objeto de
pesquisa através de tais autores, construímos um olhar crítico para realizarmos uma leitura da
memória historiográfica oficial sobre as atividades dos ambulantes/feirantes nessa cidade. Para
assim, compreendermos mais aprofundadamente os processos que colonizam e constituem as
representações sociais dominantes sobre esses trabalhadores no jornal O Popular entre 1970 e 2012.
Representações que resistem em compreendê-los como praticantes particularmente pertencentes ao
sistema ainda que de forma marginal 9 ; como participantes de uma rede de conexões sociais,
políticas, econômicas e culturais; como atores sociais que reivindicam a sobrevivência e direitos
políticos; como sujeitos sociais ocupando o espaço público, exigindo serem olhados não mais como
objetos de caridade, mas como parceiros de um mesmo jogo10.
A reconstrução da memória historiográfica sobre o mundo do trabalho no país passa
pela crescente rejeição dos sujeitos a que nos referimos como figurantes mudos e de uma história
sem povo. Trata-se de uma oportunidade de por à prova, segundo Linhares (1998), esquemas
explicativos vigorantes de longa data, entre eles o de que o Brasil teria nascido sob a égide do
capitalismo mercantil, tendo sido desde seus princípios determinado de fora para dentro. Assim o
autor convida-nos a
Voltarmos para dentro do país o enfoque de sua História, levando à busca de novas fontes,
de diferentes perspectivas teóricas, e de explicações localizadas e documentadas para
fenômenos específicos, resulta em abandonar uma certa perspectiva nacional
(generalizante) de análise, para lidar com realidades concretas e documentadas,
localizadamente. (LINHARES, 1998, p. 13).
9
Segundo Robert Castel (1997, p. 28-29): “Pode-se distinguir duas formas principais de marginalidade. A primeira é uma
marginalidade ‘livre’, caracterizada pela distância em relação ao trabalho regular, mas também em relação às formas
organizadas de proteção aproximada que se constitui na assistência. O marginal organiza para si uma existência precária,
nos interstícios da vida social [...] Esse traço merece ser novamente retomado, pois ele distingue claramente a
marginalidade da pobreza, e mesmo da pobreza dependente. [...] Podemos qualificar os marginais propriamente ditos de
sem-estatuto. São os clochards, os ciganos, os sem domicílio fixo, os catadores de papel e outros coletores de lixo nos
limites da cidade. O segundo tipo de marginais constitui-se daqueles que foram retirados a título provisório ou definitivo,
da vida social comum, encontrando-se em espaços institucionalizados separados. [...] Os grandes marginais são ou aqueles
que mais fogem à institucionalização e se entregam ainda, a formas de nomadismo incertas e arriscadas, nas sociedades
modernas [caso dos ambulantes clandestinos em Goiânia] ou aqueles que se encontram superinstitucionalizados em
espaços de reclusão” [caso dos ambulantes cadastrados pela Prefeitura de Goiânia que têm suas respectivas atividades
comerciais submetidas a uma série de regras de controle].
10
Sobre o assunto ver Bresciani (1990; 2000).
151 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 140-161, Jul.
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A reelaboração de tal memória dominante afirma-se na medida em que acorda para as
práticas de sujeitos (legais ou ilegais perante o Estado) que viviam nas fímbrias da estrutura
socioeconômica dominante desde a época colonial, como os ambulantes/feirantes - objeto desta
pesquisa. Isso não significa a rejeição pura e simples de esquemas explicativos anteriores, mas uma
bela oportunidade de enriquecermos a produção historiográfica brasileira. Também está baseada na
recomendada necessidade daquilo que Benjamin (1987, p. 225) chama de “escovar a história a
contrapelo” e, desse modo, perseguir em diferentes momentos históricos do país figuras de sujeitos
sociais como a dos comerciantes ambulantes legais ou ilegais. Sujeitos sociais marginalizados, mas
presentes no bojo de um sistema que deles depende para sua reprodução.
Essa nova historiografia contribui para a reconstrução da memória sobre o mundo do
trabalho no qual, entre outras coisas, se reconhece que comerciantes ambulantes desde os tempos
coloniais contribuíram na dinâmica do funcionamento de uma economia endógena, mas não
isolada. Figurando como sujeitos instituintes de práticas que se conjugavam na confirmação e na
formação de territorialidades próprias, e não raro conflitantes, com a ordem social11 predominante.
Entretanto, na contramão desse processo de reconstrução da memória oficial
historiográfica sobre o mundo do trabalho, a base ideológica das práticas discursivas do jornal O
Popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e 2012) ainda insiste intensamente em
estratégias de silenciamento da historicidade e do protagonismo desses sujeitos no âmbito da
participação política e da construção da esfera pública, bem como na disputa por um determinado
projeto de cidade e de urbanidade.
Tais práticas discursivas bebem muito mais numa memória historiográfica alimentada
por recortes sobre a vida econômica e política, social e cultural em Goiás e em Goiânia, marcados
por valores de progresso e modernidade europeus que transformam todas as práticas e as atividades
que não são consideradas classicamente capitalistas (conforme modelos tradicionais de
interpretação da dinâmica do capital) em atraso e decadência. Por conseguinte, em realidades em
descompasso com a lógica produtiva dominante de então, bem como com o discurso modernizante
que mitificaria a fundação da cidade de Goiânia.
As referidas representações sociais produzidas pelo jornal sobre os ambulantes/feirantes
negociam estrategicamente como a memória historiográfica oficial sobre o mundo do trabalho
quando privilegiam perspectivas teórico-metodológicas que relegam as experiências cotidianas e as
11
Sobre o conceito de social e sua relação com manifestações residuais no decorrer da história, ver Baudrillard Júnior
(1994).
152 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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demandas desses sujeitos a uma condição de marginalidade, ou de curiosidade da efervescência das
ruas.
As matérias do jornal O Popular no referido período, sobre esses sujeitos, se
reapropriam ideologicamente de uma memória historiográfica, reforçando-a, visando: 1) legitimar a
ideia da cidade de Goiânia como espaço de novas relações econômicas por excelência; 2) definir o
espaço público como espaço-fronteira entre o “velho” e o “novo” na medida em que é concebido
como símbolo de modernidade; 3) produzir e reproduzir uma ideia de cidade e urbanidade
modernas, permeada pelos discursos médico e urbanista e, por consequência, pela defesa de
medidas associadas à disciplinarização dos corpos no espaço, em função da construção de um
conforto policiado que deveria ser estendido indistintamente à todas as camadas da população como
forma de integrá-las simbolicamente às regras de civilidade.
Nesse sentido, quando os ambulantes/feirantes são representados pelas matérias de O
Popular em geral eles figuram não como sujeitos, mas sim como corpos - objetos que devem ser
policiados e disciplinarizados segundo as novas regras de civilidade e de polidez. Trata-se de um
exemplo histórico da tese de Baudrillard (1994, p. 71), segundo a qual “o social [...] existe cada vez
mais, mas sobretudo como gestão racional dos resíduos, e dentro em pouco produção racional dos
resíduos”.
Tais práticas discursivas sobre os sujeitos desta pesquisa - em seu processo de
elaboração e reelaboração - recorrem à memória dominante historiográfica, sobretudo às narrativas
que abordam aspectos do pós-1930 em Goiás, de modo a alimentar um processo de representação
da ideia de modernidade urbana e econômica que teria se efetivado, segundo Chaul (1997, p. 20),
“por meio da recuperação das imagens/conceitos da decadência e do atraso, como forma de
justificar a deposição do velho”. Por consequência, evidenciam-se enquanto discurso autoritário
revelando poucos lugares para formas de trabalho consideradas não modernas ou mesmo précapitalistas.
Tais representações sobre os trabalhadores ambulantes/feirantes tendem a não
reconhecer os modos de sobrevivência que infestam as fissuras da promovida ideia de cidade
moderna, legitimando dessa forma uma ideia de cidade e de urbanidade enquanto marco do novo
em oposição ao velho, expressão do moderno em oposição ao tradicional, ruptura entre passado e
presente.
Até o final dos anos de 1980, tais práticas discursivas sobre esses sujeitos no jornal O
Popular, representadas enquanto práticas dissonantes com a ideia de Goiânia como espaço de
153 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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modernidade, alinham-se com propostas dos poderes instituídos no sentido de promover
intervenções visando ao saneamento de usos e costumes não compatíveis com os ideais de
civilidade. Elas contribuem, pois, decisivamente para a consolidação de um projeto dominante e
autoritário de espaço público e política, já que rasteiramente representados enquanto pasteurizados e
sem fissuras, isentos de uma rede de relações com tradicionais modos de fazer do mundo do
trabalho.
As matérias do jornal O Popular, ainda na esteira da referida memória historiográfica
tradicional sobre o mundo trabalho, não raramente reforçam ideologicamente as relações de
oposição entre as estruturas dadas e as experiências ou atividades econômicas desenvolvidas pelos
ambulantes/feirantes, analisando-as e, não raramente, apresentando-as de forma isolada ou
descolada de enquadramentos históricos mais favoráveis ao reconhecimento desses sujeitos
enquanto protagonistas da cidade e do urbano, da esfera pública e da política.
Portanto tais práticas discursivas, de mãos dadas com a memória historiográfica
dominante em questão, são produzidas e reproduzidas - senão de costas - certamente resistentes em
conferir a devida atenção às medições culturais das práticas desses sujeitos. Mediações necessárias
a uma compreensão crítica sobre o modo como as classes e a dinâmica de classes se realizam.
Como lembra-nos Thompsom (1998, p. 53),
As classes acontecem à medida que os homens e mulheres vivem suas relações de
produção e experimentam suas situações determinantes, dentro do conjunto de relações
sociais com uma cultura e expectativas herdadas, e ao modelar essas experiências em
formas culturais.
O aspecto profundamente ideológico de tais práticas discursivas de O Popular se revela,
sobretudo, no modo como elas, de um lado, privilegiam determinadas análises historiográficas
tradicionais associadas ao mundo do trabalho e a tais sujeitos; de outro lado, na forma como
insistem em não reconhecer o processo de revisitação crítica dessa historiográfica e da memória
produzida por ela e que desde o início dos anos de 1970 vem sendo desenvolvida. Dessa forma,
procede a um recorte de tal discurso científico de modo a legitimar o não reconhecimento de
práticas econômicas e culturais cotidianas de luta por sobrevivência através das quais esses sujeitos
sociais criam e recriam constantemente territorialidades próprias. Esse procedimento ideológico,
como já foi ressaltado, é também alimentado pelo recurso a falsas oposições como: o moderno em
oposição ao antigo, o trabalho formal em oposição ao trabalho informal.
Tal procedimento discursivo visando interesses de classe e segmentos de classes
dominantes quanto a um determinado projeto de cidade, urbanidade, política, esfera pública e
154 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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trabalho procura fazer a forma prevalecer sobre o conteúdo, ou seja, insiste na construção de
representações sociais sobre os ambulantes/feirantes marcadas, em geral, pelo não reconhecimento
de que eles nunca deixaram de figurar historicamente nas diversas fronteiras geográficas e
temporais da história de Goiânia; no não reconhecimento dessa forma marginalizada do mundo
trabalho que sempre sobreviveu nos interstícios da vida econômica e social dessa cidade
Percebemos assim que a construção de tais representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes no jornal em questão tem como uma de suas bases a negociação/apropriação
com e da memória historiográfica oficial e dominante, através da qual se erige discursivamente uma
cidade das letras em oposição a uma cidade das ruas pautada: a) pela pouca e muitas vezes
nenhuma audibilidade conferida a esses sujeitos no que diz respeitos as suas demandas e
particularidades enquanto sujeitos políticos; b) pela recusa em reconhecer a força instituinte desses
trabalhadores, sobretudo até o final dos anos de 1980; c) por estratégias de silenciamento ou
anulação política desses sujeitos. Estratégia que se tornou mais complexa e mais refinadamente
maquiada com o crescimento das novas demandas históricas (sociais, políticas, econômicas e
culturais) desses trabalhadores, sobretudo a partir do final dos anos de 1980 e início de 1990.
Alem do mais, a construção de tais representações sociais no jornal O Popular ainda é
fortemente pautada por uma cegueira avessa à ideia de descentralidade e multiplicidade do social.
Operação estratégica à finalidade ideológica de jogar sombra sobre a intensidade da vida econômica
e política, social e cultural que se faz presente no calor cotidiano das calçadas do centro de Goiânia,
particularmente entre os trabalhadores ambulantes/feirantes do centro histórico planejado da cidade.
Assim, tais práticas discursivas, em função dos interesses dos segmentos de classe
dominante associada à chamada cidade das letras em oposição à cidade das ruas, fazendo uso de
referências a algumas passagens de Sader (1988), contribuíram e contribuem decisivamente para
sombrear a emergência desses sujeitos na “[...] cena pública reivindicando seus direitos, a começar
pelo primeiro, o direito de reivindicar direitos”, na medida em que insiste em reelaborar velhas
modalidades dominantes de representação sobre eles, com o objetivo de negação “[...] de uma
novidade no real e nas categorias de representação do real”. (SADER, 1988, p. 26-27).
Portanto, trata-se de um modelo de representação social sobre tais trabalhadores ainda
muito pouco poroso em relação ao “[...] crescimento de investigações empíricas relativas a
diferentes períodos e aspectos dos mundos do trabalho” (FORTES; NEGRO, 1998, p. 68), já que o
padrão de representação social cumpre uma função importante no processo de legitimação de uma
155 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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determinada visão de trabalho dominante, através do apagamento de outras formas de memórias
associadas às ideias hegemônicas de cidade, urbanidade, política e esfera pública.
Trata-se, portanto, de um modelo de representação que tende a se reproduzir nas
referidas práticas discursivas das matérias de O Popular de modo a não reconhecer as rupturas
promovidas pela nova história social do trabalho, desde as décadas de 1970 e 1980, em relação ao
mundo do trabalho em geral e ao cotidiano dos ambulantes/feirantes em particular. Posição
compreensível na medida em que tais matérias jornalísticas em geral insistem na representação
desses sujeitos pautada pelas ideias de passividade e conformismo, incapacidade de universalização
de seus objetivos, incapacidade de ação autônoma (SADER, 1998).
Finalizando, trata-se de um modelo de representação social sobre os trabalhadores
ambulantes/feirantes marcado por características como: a) resistência à ideia de que tais
trabalhadores são sujeitos de própria história; b) desvalorização de manifestações do cotidiano
desses sujeitos enquanto formas e possibilidades de expressões de resistência e autonomia; c)
insistência ideológica no não reconhecimento da crise dos referenciais políticos e analíticos (de tipo
estruturalista e reducionista) da historiografia tradicional, que balizam as representações sobre os
trabalhadores em questão; d) pouco ou nenhum diálogo com o universo das experiências de tais
sujeitos; e) marginalização das diversas formas de sociabilidades percebidas entre eles e da
capacidade criadora e do poder instituinte (CASTORIADS, 1982, p. 176) que recaem sobre eles; f)
insistência no uso de explicações simplificadas de processos através do uso de ferramentas
conceituais utilizadas de forma acríticas (OLIVEIRA, 1987); g) não reconhecimento de novas e
progressivas formas de associação desses trabalhadores enquanto elementos de identidade; h)
negação da historicidade concreta desses sujeitos através da negação de um conjunto de posições
que eles assumem, tais como: relações domésticas, relações com aparatos institucionais, várias
formas de subordinação cultural, racial e sexual (LACLAU, 1986); i) ofuscamento do imaginário
desses sujeitos a partir da concordância com o fato de que esse imaginário na medida em que
devidamente revelado no discurso“[...] revela também os contornos do sujeito, através da atribuição
de sentido a si e ao mundo circundante” (ARENDT, 1981).
Assim não é raro encontrarmos em muitas das matérias do jornal, publicadas entre 1970
e 2012 sobre os ambulantes/feirantes da região central da cidade, tanto ideias associadas à
legitimidade de medidas policialescas para reprimir as atividades desses trabalhadores quanto as
que defendem formas de vigilância sobre eles, travestidas em ideologias como o sanitarismo e o
higienismo. Somam-se a elas, associações desses sujeitos à vagabundagem, ociosidade, preguiça,
156 BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. A construção das representações sociais sobre os
ambulantes/feirantes da região central de Goiânia entre 1970 e 2012: negociações discursivas com a
memória da historiografia tradicional sobre sujeitos esquecidos do mundo do trabalho. Estácio de Sá –
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ameaça à ordem etc. Tais representações sociais ainda constituem parte expressiva da trama da
memória historiográfica tradicional dominante sobre o tema e com a qual negociam/reapropriam as
referidas matérias do jornal O Popular.
Discorremos, pois, sobre um processo de legitimação/construção discursiva sobre as
práticas e representações próprias do cotidiano dos ambulantes/feirantes da região central de
Goiânia marcadas por uma sempre renovada estratégia de desqualificação desses sujeitos.
Operação realizada com base na apropriação/negociação de uma determinada dimensão do
discurso historiográfico de modo a supervalorizar interpretações que não reconhecem ou
marginalizam a presença desses trabalhadores no âmbito da dinâmica econômica dominante e da
formação da esfera pública, ignorando, pois, novas interpretações historiográficas que procuram
conferir mais visibilidade aos referidos sujeitos esquecidos do mundo do trabalho.
Enfim, as práticas discursivas de O Popular sobre os ambulantes/feirantes (entre 1970 e
2012) também sobre os ombros de uma determinada tradição historiográfica participam
decisivamente numa dinâmica de representação social sobre eles, caracterizada pela produção
especializada do esquecimento ou do não reconhecimento desses sujeitos que fizeram e fazem
também parte do mundo trabalho na cidade de Goiânia.
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Avenidas são opção para Feira Hippie, Caderno Cidade, 15 jun. 2005.
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Camelôs são motivo de protesto, Caderno Cidade, 17 fev. 1994.
Centro faz barulho de ensurdecer, Caderno Cidade, 17 maio 2000.
Centro monta estrutura para atender camelôs, Caderno Cidade, 13 maio 2002.
Economia não formal sobe com a crise, Caderno de Economia, 21 abr. 1991.
Feira Hippie, polícia prende e reduz furtos, 29 ago. 1989.
Feirantes destroem carro de fiscalização, Caderno Cidade, 2 fev. 2001.
Feiras avançam fora de controle, Caderno Cidade, 18 fev. 2001.
Feiras levam bagunça e tumulto às ruas, Caderno Cidade, 22 fev. 2010.
Indiferentes às reclamações dos lojistas e às punições da Secretaria de Ação Urbana, os camelôs
continuam invadindo as áreas centrais de Goiânia, Caderno Cidade/Estado, 9 fev. 1990.
Indiferentes [...] os camelôs continuam invadindo as áreas centrais de Goiânia, Caderno
Cidade/Estado, 9 dez. 1990.
Lojas abrem “filiais” na Feira Hippie, Caderno Economia, 25 jul. 1999.
Lojista quer discutir mudança na Anhanguera, Caderno Cidade, 7 fev. 1990.
Mudanças na cidade levam ao caos urbano, Caderno Cidade/Estado, 29 ago. 1989 e de 14 jul.
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Mudanças na cidade levam ao caos urbano, Caderno Cidade/Estado, 14 jul. 1991.
Ninguém controla a Feira Hippie, Caderno Cidade, 22 jan. 2001.
Prefeitura divulga perfil dos ambulantes goianienses, Caderno Cidade, 5 out. 2001.
Prefeitura não quer as feiras assim tão livres, 7 mar. 1970.
Prefeitura tem planos para disciplinar feiras livres, 15 jan.1970.
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Prefeitura vai impedir álcool na feira/Goiastur abre o palco da praça, 23 maio 1982.
Por uma feira não tão livre assim, 31 mar. 1970.
Proprietários de carrinhos pedem prefeitos que os poupem, 24 jan. 1970.
Recessão faz crescer temor de desemprego, Caderno Economia, 11 de nov. 1990.
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Retirada dos camelôs já é discutida, Caderno Cidade, 13 fev. 1993.
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Vendas ficam acima da expectativa, 29 agos. 1989.
Vende-se tudo nos sinaleiros, Caderno Cidade, 10 jun. 2001.
Yara prevê a feira bem mais organizada, 27 nov. 1983.
Jornal Matutina Meiapontense
Matutina Meiapontense, 4 jan. 1831, n. 185.
Editor Responsável
Edmar Aparecido de Barra e Lopes
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b) No caso de coletânea: SOBRENOME, Nome. Título não sublinhado. In: SOBRENOME,
Nome, org. Título do livro sublinhado. Local de publicação, editora, data, p. ii-ii. Ex.:
FICHTNER, N. A escola como instituição de maltrato infância. In: KRINSKY, S., org. A
criança maltratada. São Paulo, Almeida, 1985. p. 87-93. Solicita-se observar rigorosamente
a sequência e a pontuação.
c) No caso de artigo: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do Periódico
Sublinhado, local de publicação, número do periódico (número do fascículo): página inicialpágina final. Mês(es) e ano de publicação. Ex.: CLARK, D. A. Factors influencing the
retrieval and control of negative congnotions. Behavior and Therapy, Oxford, 24(2): 151-9.
1986. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação.
d) No caso de tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese sublinhado. Local,
data, número de páginas, dissertação (Mestrado) ou Tese (Doutorado). Instituição em que foi
defendida. (Faculdade e Universidade). Ex.: HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo:
a formação do Brasil Colonial. São Paulo, 1986, 403 p. Tese (Doutorado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Solicita-se observar
rigorosamente a sequência e a pontuação.
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